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A responsabilidade do juiz e a garantia da

independência

KÁTIA MAGALHÃES ARRUDA

SUMÁRIO

1. Aspectos gerais sobre o conceito de respon-


sabilidade. 2. Evolução da responsabilidade do
Estado e do juiz. 3. Responsabilidade do juiz: civil,
penal, administrativa e política. 4. A responsabi-
lidade judicial e a independência do Poder Judi-
ciário. 5. Considerações finais.

1. Aspectos gerais sobre o conceito


de responsabilidade
Primordialmente, torna-se necessário acla-
rarmos o conceito de “responsabilidade” para
que possamos compreender com nitidez os
demais termos formulados neste trabalho,
facilitando a assimilação de sua repercussão
frente aos atos dos juízes.
A doutrina alemã elaborou uma distinção
tradicional entre os termos ‘obrigação’(schuld)
e ‘responsabilidade’(hoftung), ao considerar
que a violação da obrigação enseja a responsa-
bilidade e, com isso, o dever de reparar o dano
para restabelecer a situação que existiria se o
ato ilegítimo não tivesse sido praticado, resta-
belecendo-se, assim, a situação jurídica anterior
ou uma situação compensatória à mesma.1
Na verdade, o conceito de responsabilidade
é muito confundido com outras figuras
jurídicas, particularmente com o de dever jurí-
dico ou obrigação. O próprio Kelsen nos chama
a atenção para a distinção entre ambas quando
observa que o indivíduo é juridicamente
obrigado a determinada conduta quando uma
oposta conduta sua é tornada pressuposta de
Kátia Magalhães Arruda é professora da um ato coercitivo (sanção), enquanto a
Universidade Federal do Maranhão, juíza do
1
trabalho, atualmente concluindo o curso de mestrado Conforme Wald, Arnaldo. Obrigações e
na Universidade Federal do Ceará e bolsista da contratos. 11. ed. Revista dos Tribunais, 1994. p.
CAPES. 465.
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responsabilidade surge a partir do descumpri- Ainda, para que possamos falar de respon-
mento do dever, ou seja, responsável é o indi- sabilidade como categoria conceitual autônoma,
víduo que, tendo um determinado dever devemos tomar em consideração, seguindo a
jurídico, não o cumpre em plenitude, o que lição de Canotilho, três dimensões:
implica tanto o não-fazer como o fazer de forma a) a responsabilidade pressupõe o reconhe-
defeituosa. cimento ao titular dessa responsabilidade, ou
Vemos ainda que, na responsabilidade, o seja, um sujeito responsável;
indivíduo responsável não é, obrigatoriamente, b) a responsabilidade implica uma vincu-
o descumpridor do dever ou obrigação, podendo lação funcional, traduzida na obrigatoriedade
a responsabilidade ser dirigida contra um outro da observação de certos deveres jurídicos;
indivíduo que se encontre vinculado com aquele
numa relação determinada pela ordem jurídica. c) a responsabilidade está articulada com a
Somos, portanto, obrigados a determinada existência de sanções jurídicas (penais, disci-
conduta, a nossa conduta, enquanto somos plinares, civis) ou político-jurídicas (censura,
responsabilizados tanto por uma conduta destituição, exoneração), pelo não-cumprimento
própria como pela conduta de outrem. Já ou cumprimento defeituoso de deveres ou
quando temos um ‘ônus’, não se trata de dever, tarefas destinados aos agentes ou órgãos
já que não acarreta uma sanção e muito menos responsáveis.
uma responsabilidade. A conseqüência do
não-cumprimento de um ônus pode gerar a 2. Evolução da responsabilidade
não-conquista do direito pleiteado, como no
caso do litigante que tem o ônus de provar do Estado e do juiz
determinado fato e não o faz, mas, com certeza, A noção de responsabilidade do Estado pode
não gera a responsabilidade desse litigante. ser considerada como uma conquista do Estado
A responsabilidade verifica-se, portanto, de Direito, não porque tenha propiciado o
quando um órgão ou seu titular responde pelos surgimento da teoria da responsabilidade hoje
efeitos derivados pelo exercício. O constitu- existente, mas, principalmente, porque a
cionalista português J.J. Canotilho vincula os responsabilização do Estado está intrinse-
efeitos do ato para expressar a configuração da camente vinculada à concepção de legalidade,
responsabilidade. Assim, quando o ato do na medida em que o Estado é visto como
agente público repercute na relação de confi- submetido à ordem jurídica e não como
ança política que existe entre os agentes ou entidade superior a esta.
órgãos, fala-se de responsabilidade política;
quando a situação de responsabilidade deriva Na verdade, um rápido apanhado histórico
da lesão de um direito por violação de deter- mostra-nos que a responsabilidade do Estado
minada obrigação para com outro sujeito ou não era posta em discussão na antigüidade. Na
por comportamento ilícito, fala-se de respon- Grécia, por exemplo, o soberano respondia
sabilidade civil; quando a situação se refere a tão-somente perante as divindades, enquanto
violação de normas diretivas de caráter admi- em Roma o Estado respondia, como figura do
nistrativo ou disciplinar, fala-se em responsa- Fisco, tão-somente nos casos e em situações
bilidade administrativa ou disciplinar; e, ainda, derivadas de relações contratuais. Na idade
quando a situação deriva de comportamento Média, por sua vez, embora o Estado já fosse
delituoso, estamos diante da responsabilidade concebido como uma unidade jurídico-política,
penal. este não sofria responsabilização sobre os danos
Para estudarmos o tema da responsabilidade causados aos particulares, até porque o poder
dos juízes, temos, necessariamente, de fazer a provinha de uma origem divina, não causando,
presente contextualização, visto que todos os portanto, dano indenizável.
posicionamentos aqui expressos vão seguir uma É interessante observar que, da Idade Média
vinculação com o que se entende ou não por até o século XVIII, em que a teoria do Estado
responsabilidade, em nível conceitual. de origem divina foi substituída pela teoria da
De qualquer modo, onde há o exercício de soberania de origem popular, nada foi alterado
poder, deve haver responsabilidade, visto que, quanto à irresponsabilidade do Estado, embora
entre ambos, há relações diretamente propor- os funcionários fossem responsabilizados nos
cionais, se analisados dentro de um sistema casos de culpa e dolo.
democrático. Contraditoriamente ao que ocorria quanto
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à irresponsabilidade do Estado, na Idade Média, 3. A responsabilidade do juiz
a responsabilidade do juiz era direta e absoluta.
Relata o magistrado Octacílio Paula Silva, em Entre os critérios de classificação da
seu livro Ética do magistrado à luz do Direito responsabilidade dos magistrados, existem os
pertinentes ao sujeito (juiz), podendo ser direta,
Comparado, que, à época de Carlos Magno, indireta ou inexistente, e ainda classificação que
havia um decreto determinando que, tardando divide a responsabilidade em: do juiz, do
o juiz na solução da lide, fosse o litigante viver Estado, ou de ambos.
às suas expensas até a decisão do caso pendente.
Relata, ainda, que, entre os germanos, o No trabalho em tela, vamos analisar a
contedor vencido podia desafiar em duelo o responsabilidade quanto a sua natureza,
magistrado que o julgara, e, se vencesse, a dividindo-a em civil, penal, disciplinar e política.
decisão era anulada, porque tal se manifestara A responsabilidade, no Direito pátrio, difere
a vontade de Deus.2 muito pouco dos países que adotam o sistema
De qualquer modo, o que se constata, como romano-germânico. Por exemplo, no tocante à
dito anteriormente, é que o princípio da lega- responsabilidade civil, é absorvida pela respon-
lidade foi essencial na evolução da responsa- sabilidade do Estado como forma de resguardar
bilidade do Estado, recebendo também a independência do Judiciário. Informe-se que,
na Itália e Espanha, é distinta: a responsabi-
contribuição da teoria organicista, a partir do lidade é solidária entre o Estado e o juiz,
entendimento difundido que defendia que os postura jurídica que recebe constantes
atos dos funcionários públicos eram atos do críticas, visto que ambas acabam por origi-
próprio Estado. nar-se da mesma causa.
A partir da admissão da responsabilidade
patrimonial do Estado, surgiram as teorias 3.1. Responsabilidade civil no Brasil
subjetivas e objetivas da responsabilidade A regra, a princípio, é a irresponsabilidade
Estatal, em que, na primeira, o Estado respon- pessoal do juiz em face do parágrafo 6º do art.
deria somente no caso de dano causado por 37 da CF/88, que determina:
conduta ilícita, ou contrária ao Direito, o que
se tornou insuficiente e forçou a evolução para “As pessoas jurídicas de direito
a responsabilidade objetiva do Estado, garan- público e as de direito privado prestadoras
tindo ao administrado o ressarcimento dos de serviços públicos responderão pelos
danos causados no desempenho das atividades danos que seus agentes, nessa qualidade,
estatais, desde que existente o nexo causal causarem a terceiros, assegurado o direito
de regresso contra o responsável nos
entre o ato lesivo e a atuação do agente
casos de dolo ou culpa.”
estatal.
O italiano Mauro Cappelletti disserta sobre Para o magistrado, a previsão do art. 49 da
dois obstáculos historicamente levantados à LOMAN praticamente repete o art. 133 do
admissão da responsabilidade judicial: o CPC, prescrevendo a responsabilidade por
princípio de que o Estado não pode cometer perdas e danos quando o juiz agir com dolo ou
injustiça (The King can do no wrong) e o fraude no exercício de suas funções e quando
princípio da coisa julgada (res judicata facit recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo,
jus), ambos inaceitáveis; o primeiro em vista providência que deva ordenar de ofício ou a
de que o exercício da função pública não isenta requerimento das partes, sendo que esta última
hipótese só ocorrerá se, após a parte requerer
do dever de prestar contas da própria ação e o ao magistrado a determinação necessária, ela
segundo em face de a coisa julgada ser um não for atendida no prazo de 10 dias. Vale
princípio de proteção e segurança ao direito, e ressaltar que o motivo justo, como o acúmulo
não um valor absoluto superior à idéia de de serviço, é necessário para excluir a respon-
justiça.3 sabilidade do magistrado.
2
SILVA, Octacílio Paula. Ética do magistrado à 3.2. Responsabilidade criminal
luz do Direito Comparado. São Paulo : Revista dos
Tribunais, 1994. p. 281-2. Decorre da prática de crime comum, todos
3
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes irresponsáveis? os previstos no Código Penal, assim como os
Tradução Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto crimes direcionados para os funcionários
Alegre : S. A. Fabris, 1989. públicos, abrangidos os juízes, tais como:
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peculato, sonegação, emprego irregular de ver- prejuicios e de sentimientos. Además, el
bas públicas, prevaricação, violência arbitrária, hombre está condicionado por el mundo
entre outros. que le rodea (se vive en un determinado
Tais crimes recebem responsabilidade; tipo de sociedad y si dependente de ella)
internos, por meio de processo administrativo por circunstancias históricas de carácter
e disciplinar, e externos por meio de processos político, económico y sociológico. Y se
judiciais. Estão sujeitos, ainda, ao processo de ello es una realidad insoslayable, resulta
responsabilidade administrativa civil e penal, más lógico enfrentarse con ella que
nos casos da Lei nº 4.898/65, referentes a casos pensar en un juez mítico, marginalizado
de abuso de autoridade, possuindo privilégio de la vida misma. El juez es tributario
de foro. de la sociedad en que vive, como persona
e, incluso, como perteneciente a una clase
social.”
3.3. Responsabilidade administrativa E continua o texto, falando dos condicio-
Tal responsabilidade é relativa em face da namentos do juiz, para concluir:
garantia de independência no exercício da “Condicionamientos sabidos e
função jurisdicional, garantindo a Constituição ‘queridos’ por el propio Estado del que
Federal que a subordinação do juiz deve ser el juez forma parte, ya que el juez es un
tão-somente à lei e a sua consciência. órgano del Estado que, en el orden judi-
A lei que trata da matéria é a Lei Orgânica cial, lo expresa y representa. Todo lo cual
da Magistratura Nacional, ao prescrever, em lleva a la conclusión de que la función
seu capítulo primeiro, os deveres do magistrado, del juez es, eminentemente, política.”4
inserindo, em seu capítulo segundo, as Ocorre que a admissão de responsabilidade
penalidades seguintes: advertência, por negli- política dos juízes é mais coerente em sistemas
gência no cumprimento dos deveres da função; nos quais os juízes cumprem funções expres-
censura (somente para a primeira instância, samente políticas, no sentido de serem eleitos
assim também a pena de advertência), em e destituídos. Na Inglaterra, por exemplo, os
reiterada negligência no cumprimento dos juízes, como outros agentes públicos, podem
deveres do cargo ou nos procedimentos incor- ser acusados (impeached) perante a House of
retos – não justificando a infração punição mais Lords, a pedido da House of Commons. O
grave; remoção compulsória, por motivo de procedimento de impeachment encontra-se
interesse público (voto de 2/3 dos membros também em outros países do Common Law,
efetivos do Tribunal); aposentadoria compul- embora com diferenças. Nos Estados Unidos,
por exemplo, representa uma expressão da
sória com vencimentos proporcionais ao tempo
responsabilidade constitucional, mais que da
de serviço; demissão em ação penal por crime responsabilidade política. As constituições do
comum ou de responsabilidade, ou em proce- Oregon e da Califórnia utilizam o recall5 dos
dimento administrativo para perda do cargo juízes, e inclusive de decisões judiciais.
3.4. Responsabilidade política De qualquer modo, a responsabilidade
política implica responsabilização por escolhas,
Antes de mais nada, é importante afirmar a análise de conveniência e oportunidade, impor-
noção do juiz como cidadão e, portanto, como tando em dois elementos esssenciais para a sua
participante político, o que não significa parti- caracterização :
dário, devendo observar-se que a participação a) a responsabilidade dá-se perante órgãos
política é um direito e dever de todo cidadão, políticos, podendo ser, em última instância, do
categoria na qual estão inseridos os juízes. Poder Legislativo ou Executivo;
Não há dúvida que a responsabilidade
política do juiz é oposta à concepção de um b) a responsabilidade não se baseia, de
juiz asséptico, expressão utilizada pelo jurista forma principal, na violação de deveres
espanhol Cesáreo Rodríguez Aguilera, que 4
RODRIGUEZ-AGUILERA, Cesáreo. El poder
defende: judicial en la Constitución. Barcelona : Bosch, 1980,
“El hombre (todo hombre y, portanto, p. 97-8.
el juiz) es un mecanismo extraordina- 5
Conforme o professor BONAVIDES, Paulo.
riamente complejo, cúmulo de saberes y Ciência política. 5. ed. Rio de Janeiro : Forense,
de técnicas, conjunto de intuiciones, 1983. p. 353-354.
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jurídicos, mas sobretudo em comportamentos a órgãos de caráter eminentemente político,
valorizados com base em critérios políticos.6 enquanto, na segunda, é feita para grupos
Para o argentino Eugênio Raul Zaffaroni, sociais ou, em última instância, para o público
em posicionamento defendido em seu livro em geral.
Poder Judiciário, o juiz, quando descumpre a
Constituição Federal, por exemplo, responde
juridicamente, e não politicamente. Nas
4. A responsabilidade do juiz e a
palavras do jurista argentino: independência do Poder Judiciário
“De nossa parte, entendemos, Para entrarmos nesse tópico do presente
decididamente, que a responsabilidade estudo, é importante explicitarmos o nosso
do juiz é jurídica, no sentido de que não entendimento sobre o conceito de independência
pode ser destituído senão por motivo de e qual a razão de ser de tal garantia.
uma causa prevista com anterioridade e A doutrina costuma separar a independência
plenamente comprovada em um processo da magistratura da independência do juiz. A
com as devidas garantias de legalidade, primeira, referente aos seus órgãos, implica o
de defesa e imparcialidade. De modo que chamamos autogoverno do Judiciário e a
algum a destituição de um juiz pode ser segunda refere-se ao juiz e a sua atuação,
um mero ato de oportunidade jurídica. podendo expressar-se interna e externamente.
Se assim fosse, a independência judicial A independência do juiz, portanto, significa
seria um mito, e a própria jurisdição uma a garantia de que o magistrado não se submete
simples ilusão”. a pressões de poderes externos, assim como a
Considerando o ponto de vista acima segurança de que o juiz pode atuar com inde-
descrito, acabaríamos por defender a inexis- pendência das pressões internas. Na definição
tência de responsabilidade política no Brasil, do Professor José de Albuquerque Rocha:
vez que os critérios de conveniência e oportu- “Do ponto de vista teórico, pode-se
nidade quanto ao mérito das decisões judiciais, definir a independência como sendo a
afastada evidentemente a hipótese de ilega- capacidade de decidir livre de toda
lidade, não podem ser analisados politicamente, influência interna ou externa. Significa
sob pena de ferir-se a independência consagrada a negação de sujeição a qualquer poder.”7
constitucionalmente.
Na verdade, a agressão à independência
Tal não ocorreria, entretanto, se, a exemplo externa do juiz é mais facilmente controlada
da Europa, a responsabilidade política dos que a agressão à independência interna. A
magistrados fosse resolvida pelos Tribunais noção externa, aliás, é bem mais difundida, e
Constitucionais, que teriam a legitimidade para hoje é praticamente consentânea a compreensão
censurar decisões judiciais, com critérios polí- de que o juiz não é um empregado do Executivo
ticos de escolha. ou Legislativo, pois essa compreensão é aver-
Um aspecto que se deve enfatizar é a siva à democracia moderna e aos princípios
importância da motivação e fundamentação das constitucionais; entretanto, não é o juiz também
decisões judiciais, em cumprimento do nosso um empregado de instâncias superiores, a
Texto Constitucional, art. 93, inciso IX, visto serviço da vontade e interesses dos Tribunais.
que possibilita a transparência dos motivos
ideológicos ensejadores das decisões, assim A forma hierarquizada e bonapartista como
como a vinculação da dicção do Direito à visão é concebido o Poder Judiciário não contribui
da sociedade, possibilitando uma abertura para para a independência interna do magistrado.
a responsabilização política ou pelo menos uma Zaffaroni8 compara a estrutura militarizada do
responsabilidade social. Judiciário a um exército e considera que a
gravidade de tal verticalidade para a indepen-
Ressalte-se, aliás, que o multimencionado dência do juiz é tão grande que sua danosidade
Mauro Cappelletti, em obra já citada, diferencia seria comparada à horizontalidade do exército,
a responsabilidade política da responsabilidade
7
social, exatamente porque, na primeira, a A definição acima está no livro do citado
“prestação de contas” é dada primordialmente professor do Curso de Mestrado da Universidade
Federal do Ceará, Estudos sobre o Poder Judiciário.
6
Sobre o assunto e a referida caracterização, São Paulo : Malheiros, 1995. p. 28.
8
disserta (CAPPELLETTI, op. cit. p. 36-7). ZAFFARONI, op. cit. p. 88.
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vez que a independência do juiz na democracia opostos e devem ser avaliados de forma dialé-
é tão importante quanto a disciplina exigida tica. Sendo o juiz independente, com objetivo
do Exército em uma guerra. de cumprir a lei e assegurar a justiça, deve o
No nosso dia-a-dia como magistrada, é mesmo ser responsabilizado quando agir de
bastante comum ouvirmos a expressão “juízes forma a usurpar a legitimidade que lhe foi
inferiores” quando se trata de juízes não ocu- conferida pela Lei Magna.
pantes de Tribunais, embora essa concepção A idéia central do sistema democrático apa-
seja desconforme com a independência rece sob a fórmula de “checks and balances”,
funcional dos órgãos judiciais entre si. A inde- isto é, o poder descontrolado gera a degenera-
pendência funcional implica a liberdade do juiz ção e igualmente os controladores não podem
ou Tribunal para julgar de acordo com a lei e a ser irresponsáveis no exercício de tal poder.
sua consciência, implicando a investigação, A independência é um valor decorrente do
interpretação e construção–reelaboração da Estado democrático de direito, tanto quanto a
norma, adequando-a à realidade, sendo esse o responsabilidade do Estado e seus agentes só
princípio garantido legalmente, observando-se avançou conjuntamente com a democracia, e
que os recursos correspondentes às decisões isso, por si só, já seria um relevante ponto para
judiciais não alteram esse princípio, já que demonstrar que a independência deve ser exer-
operam até como reflexo da dialética judicial, cida com responsabilidade e que esses dois
o mesmo não se dizendo de posturas que conceitos, ao invés de contrapostos, são
ofendem a dignidade e a independência do juiz, complementares.
atentando contra os princípios ora estudados e
aviltando a Constituição Federal.
A independência, no entanto, não tem poder 5. Considerações finais
e objetivos isolados. A independência é meio O eixo central desse trabalho, portanto,
dirigido ao valor da imparcialidade, na medida prende-se ao estudo da responsabilidade do juiz
em que não se pode pretender um juiz imparcial e à tentativa de compatibilizá-la com a inde-
se ele não é independente. pendência, entendendo essa última como
A imparcialidade não significa, entretanto, garantia instrumental.
neutralidade; o juiz é imparcial por colocar-se A necessidade de compatibilizar a respon-
acima dos interesses das partes em conflito, sem sabilidade com a independência do juiz, externa
atuar como interessado em parte A ou B, e sim e interna, inclusive com o dever de prestar
na melhor solução, daí por que a razão de ser contas, que é inerente a todo indivíduo e órgão
da independência atua como garantia da que exerça uma função pública, serve aos
imparcialidade, legitimando o juiz para decidir princípios constitucionais que embasam um
contendas de partes que na maioria das vezes Estado democrático de direito.
não o conhecem, não sabem o que ele pensa,
mas esperam que seu julgamento seja equili- A prestação de contas do juiz, por sua vez,
brado e objetivo em face da sua imparcialidade com possibilidade de responsabilização sempre
e independência. que seja descumprido um dever jurídico, desde
Mas sendo o juiz independente, como que permita uma ampliação mais efetiva e
responsabilizá-lo por seus atos e decisões? democrática da participação popular em tão
Desse questionamento poderia advir a reafir- fechado Poder como o Judiciário, acaba por
mação de que a independência do juiz refere-se auxiliar como ponto de legitimação de um
a pressões externas e internas que possam poder que não foi conferido de forma direta e
interferir em seu julgamento imparcial e não a nem por representantes eleitos, como preceitua
independência do povo, como tem sido o art. 1º, parágrafo único, da CF: “Todo o poder
compreendido na prática por muitos, e muito emana do povo, que o exerce por meio de
menos independente ao respeito à Constituição representantes eleitos ou diretamente, nos
e seus princípios que fundamentam o nosso termos desta Constituição”.
Estado, fundamentando, por conseqüência, a Onde há exercício de poder, há de existir
legitimidade do juiz, que, embora exerça um responsabilidade sobre o poder exercido. Tal
poder, não foi eleito ou escolhido diretamente responsabilidade, por sua vez, há de atender a
pelo povo. todos os aspectos que venham a ser atingidos
Independência e responsabilidade não são pela atuação do agente–juiz, seja civil, penal,
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administrativo e político. Nesse sentido, a S. A. Fabris, 1989.
criação de uma Corte Constitucional seria CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e
extremamente útil, a exemplo do que ocorre Direito Alternativo. São Paulo : Acadêmica,
na Europa, para a responsabilidade política do 1992.
magistrado, até porque inúmeras decisões CLEVE, Clemerson Merlin. O Direito e os direitos
judiciais têm sido tomadas sem que se leve em : elementos para uma crítica do Direito contenpo-
conta o princípio referente à dignidade da râneo. São Paulo : Acadêmica; Curitiba : Seientia
et labor, 1988.
pessoa humana e sem que se observe a precei-
tuação contida na Lei de Introdução ao Código GORDO, Alfonso Peres. El Tribunal Constitucional
Civil (art. 5º), que determina que, na aplicação y sus funciones. Barcelona : Bosch, 1982.
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