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1- O ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIENCIA.

1.1 – Panorama Histórico da pessoa com deficiência.

As anomalias, sejam elas físicas ou intelectuais, acompanham a humanidade


desde o início de sua existência. Apesar dos poucos relatos dos primeiros passos do
homem na terra, é possível perceber que havia já nas primeiras sociedades a
presença de pessoas com deficiência, e a depender do grupo a que pertenciam tinham
formas diferentes de serem tratadas. SILVA (1987). Segundo Laraia, (2009 p. 16), o
comportamento em relação a tais pessoas “variou da exclusão social ao abandono e
da destruição até a proteção”.
Aqueles que exterminavam as pessoas que nasciam com algum tipo de
deficiência, o faziam pautados na ideia de que mantê-las traria risco para o grupo,
pois, na maioria das vezes, não tinham por si mesmas condições de ir em busca do
seu sustento ou de acompanhar o bando, o que traria demasiados prejuízos para o
grupo. SILVA (2017)
Com relação aos grupos que acolhiam as pessoas com deficiência, o faziam
baseados em uma consciência mítica, acreditando que tais pessoas possuíam
poderes sobrenaturais, tratando-as como seres superiores, ou ainda, acolhiam para
ganhar afeição dos deuses. LARAIA (2009)
Nas sociedades antigas, tais como a egípcia, a grega e a romana, em relatos
históricos, demonstravam claramente a divergência no tratamento em relação as
pessoas com deficiência. No Egito antigo, tais pessoas integravam todos os grupos
sociais, desde os mais pobres até aos faraós, exerciam profissões, e conviviam com
as demais pessoas sem qualquer impeditivo. SILVA (2017)
Nas populações Gregas, ao contrário das populações egípcias, o tratamento
das pessoas que possuíam qualquer tipo de anomalia era o extermínio. Segundo
Gugel (2018)1, a supressão se dava “por exposição, ou abandono ou, ainda, atiradas
do aprisco de uma cadeia de montanhas chamada Taygetos, na Grécia.”

1 GUGEL, Maria Aparecida. A pessoa com deficiência e sua relação com a história da humanidade
Disponível em: http://www.ampid.org.br/ampid/Artigos/PD_Historia.php. Acesso em: 28/08/2018.
O povo grego sempre foi marcado pela cultura ao corpo, para eles a condição
física era primordial. Os espartanos, guerreiros na essência, preparavam suas
crianças a fim de se tornar grandes guerreiros, portanto qualquer anomalia que fosse
detectada iria contra a estrutura do povo. Neste contexto, afirma Gugel (2018),2 que
“Pelos costumes espartanos, os nascidos com deficiência eram eliminados, só os
fortes sobreviviam para servir ao exército de Leônidas”.
Para os Romanos a situação não era muito diferente das Gregas, já que a lei
permitia o extermínio de bebês que nasciam antes de completados sete meses de
gestação, e também aqueles que nasciam disformes, pois não eram reconhecidos
como sujeitos de direitos. SILVA (1987).
A lei das XII tabuas, mais precisamente na Tábua IV, na Lei III, autorizava o pai
matar o filho que nascesse com alguma anomalia, o que acontecia por intermédio de
afogamento3. Mais tarde foi determinado que, antes da eliminação, era necessário a
apresentação de tais crianças a membros da população para constatar que se tratava,
realmente, de uma “aberração”. SILVA (2017).
Com o surgimento do cristianismo, ainda que de forma tímida, as perspectivas
com relação às pessoas com deficiência começaram a mudar. Pautados no amor ao
próximo e na caridade, reconheciam que qualquer pessoa era criatura formada por
Deus, adotando aqueles que, de alguma forma, sofriam pela condição anômala a que
viviam, e que na maioria das vezes eram abandonados à própria sorte. LARAIA
(2009).
Por volta do século V, sobre influência da igreja, foram criadas casas de abrigo
para viajantes, mais conhecidas como "xenodochium"4, porém eram habitadas, na
sua maioria, por pessoas que possuíam algum tipo de deficiência ou por idosos. SILVA
(1987).
Com a expansão do assistencialismo, durante a Idade Média, foram criadas
várias casas de assistências voltadas para o acolhimento dessas pessoas. Mantidas
pela igreja e pelos senhores feudais, tais casas ficavam sob os cuidados da igreja,

2 IDEM
3O "Táboa IV - Sobre o Direito do Pai e Direito do Casamento Lei III - O pai imediatamente matará o
filho monstruoso e contrário à forma do gênero humano, que lhe tenha nascido há pouco".[...]”. (SILVA,
1987, p. 87)
4 O autor do Livro Epopeia Ignorada, caracteriza o termo xenodóchium como “um grande e bem
organizado abrigo para peregrinos e estrangeiros doentes ou com problemas, que recebia também
doentes e miseráveis da própria localidade e seus arredores [...]”. (SILVA, 1987, p. 164)
porém, em sua maioria, servia de isolamento das pessoas que lá estavam, excluindo-
as do convívio das demais, numa espécie de “limpeza” social. RESQUE (2014).
Somente após a revolução Francesa, entre os séculos XVI e XVIII, é que
começou a observar as pessoas com deficiências sob o ponto de vista patológico,
passíveis de tratamento. Além disso, houve muitos avanços, principalmente no âmbito
educacional para pessoas cegas e surdas. Neste tempo houve a criação do código
Braile para pessoas cegas, por Louis Braille, e ainda, o desenvolvimento de ajuda tais
como, cadeiras de rodas, bengalas e muletas. GUGEL (2009)
Conforme pode aduzir, ocorreram diversas mudanças no que tange as pessoas
com deficiência, porém, essa evolução se deu de maneira sutil, voltada somente para
o amparo e acolhimento, ficando ainda muitos resquícios de uma cultura carregada
por preconceitos e dogmas. O olhar sob o viés dos direitos humanos só aconteceu
mais tarde após a criação de normas voltadas ao assunto, modificando a concepção
do que é pessoa com deficiência.

1.2 – A pessoa com Deficiência: Conceito.

Ao longo da História, evidencia-se a evolução quanto aos paradigmas da


pessoas com deficiência, mudanças estas que refletem diretamente na sua
conceituação.
O período histórico abarcou 4 fases: a primeira fase onde imperava a intolerância,
onde tais pessoas eram consideradas pecadoras, impuras, amaldiçoadas; a segunda
em que eram consideradas invisíveis, e por muitas vezes eram expurgadas do
convívio social; a terceira fase, conhecida como assistencialista, onde começou a
observá-las sob o ponto de vista biológico; e por fim, uma quarta fase, em que se
passou a observar as pessoas com deficiência pela perspectiva dos direitos humanos.
PIOVESAN (2013).
Essa última fase, passa a compreendê-las não só sob o ponto de vista médico,
como na terceira fase, mas busca reconhecer seu contexto como um todo, levando
em consideração o meio em que vivem e reconhecendo que as pessoas com
deficiência são sujeitos de direito. Esta mudança apontou o Estado como interventor
em busca de eliminar os obstáculos que impediam o exercício dos direitos pelas
pessoas com deficiência. (PIOVESAN, 2013)
O maior avanço nesse sentido, a despeito das demais convenções existentes, foi
a criação da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiências criada em 2006
e assinada pela Organização das Nações Unidas (ONU). (GUGEL, 2016).
Baseada na Declaração Universal de Direitos Humanos, a CDPD5 vem com o
propósito de promover, proteger e assegurar o pleno exercício desses direitos de
maneira mais específica, atuando junto aos Estados signatários, aplicando medidas
de natureza administrativa, legislativa, entre outras, a fim de que sejam
implementados o que nela está previsto, podendo o Estado desenvolver medidas
apropriadas para assegura-las do pleno exercício de seus direitos. (PIOVENSAN,
2013).
A Carta reconhece que o conceito de pessoa com deficiência não possui uma
definição estática, mas que está em constante aperfeiçoamento, trazendo já em seu
preambulo o seguinte preceito:
Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a
deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras
atitudinais e ambientais que impedem sua plena e efetiva participação na
sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. CDPD
(2012).

Portanto, é certo afirmar que a evolução e o aperfeiçoamento deste conceito


depende não só de um aparato de normas que visam garantir a igualdade, mas é
necessário uma nova tomada de consciência, bem como uma postura diferenciada,
por parte das demais pessoas, oportunizando uma sociedade mais igualitária.
BARROS (2014)
Ato contínuo, a CDPD no art. 3º, destaca quais os princípios que embasaram
seu texto,6
Art. 3º - a. O respeito pela dignidade inerente, independência da pessoa,
inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e autonomia individual. b.
A não-discriminação; c. A plena e efetiva participação e inclusão na
sociedade; d. O respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com
deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade; e. A
igualdade de oportunidades; f. A acessibilidade; g. A igualdade entre o
homem e a mulher; e h. O respeito pelas capacidades em desenvolvimento
de crianças com deficiência e respeito pelo seu direito a preservar sua
identidade.

5 Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência


6 (SECRETARIA ESPECIAL DAS PESSOAS COM DEFICIENCIA: Convenção sobre os Direitos das
pessoas com Deficiência. Disponível em:
http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/publicacoes/convencaopessoascomdef
iciencia.pdf. Acesso em: 01 de set. 2018.
Tais princípios poderão ser encontrados implícitos em todo ato normativo, e
tem o condão de trazer proteção, promover a inclusão e desenvolver a autonomia da
pessoa com deficiência. CDPD (2012).
Com a criação da Convenção, o conceito de pessoa com deficiência passa a
ter uma definição nova, compreendendo a deficiência como toda barreira física,
mental e sensorial, que acomete o indivíduo de forma duradoura, causada ou
agravada por barreiras que impeçam a plena desenvoltura e consequentemente a
inserção do indivíduo no meio social. BARROS (2014).
É o que se extrai do artigo 1º da CDPD:

(...) Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo
prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em
interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e
efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.

Nota-se que a o conceito de pessoa com deficiência já não é mais visto


somente do ponto de vista médico, mas pelo viés social, observando que a deficiência
não está na pessoa, mas na interação com as barreiras que impossibilitam sua
interação na sociedade.
Para assegurar que a efetividade da CDPD, existe um comitê, composto por 18
membros, com a finalidade de monitorar a aplicação da convenção pelos Estados
Partes. Seus membros devem atuar de forma pessoal e não governamental, serem
peritos com vasta experiência em direitos humanos e deficiência. CDPD (art. 34)
Criou-se também, justamente a CDPD, um protocolo a ser aderido,
opcionalmente, pelos estados signatários. Este documento reconhece o direito que
um indivíduo ou grupo de indivíduos dos Estados partes possam apresentar suas
queixas individuais ao comitê. (Protocolo CDPD, Art. 1)
Os Estados partes, através de relatórios expedidos regularmente, informam a
comissão como esses direitos estão sendo implementados, e ao examinar os
relatórios enviados, a comissão fará sugestões e recomendações aos estados
emitentes.7

7 UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS: Comissão dos Direitos das pessoas com Deficiência.
Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/HRBodies/CRPD/Pages/CRPDIndex.aspx. Acesso em: 02
set. 2018.
Hoje a convenção conta com 177 países signatários e 99 que aderiram, além
da convenção, o protocolo8. Dentre esses países está o Brasil, que no ano de 2008,
mais precisamente em 10 de julho, por meio do decreto legislativo n. 186, e
promulgada em 25 de agosto de 2009 no Decreto nº 6.949, adota o disposto pela
Convenção dos Direitos da pessoa com deficiência, bem como seu protocolo,
demonstrando grande avanço na conceituação, atitudes e comportamentos no que
tange às pessoas com deficiência também no âmbito interno. GUGEL (2016).
A convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, não foi só ratificada
pelo Brasil juntamente com o protocolo adicional, mas acima disso, foi e até então o
único9 tratado a ser admitido como parte da Constituição Federal. Isso porque
obedeceu o rito descrito no parágrafo 3º incluído no art. 5º da Constituição Federal/88
pela emenda 45. Portanto a CDPD, não faz parte somente do plano do Direito
internacional, pois obedece a norma de direito interno, uma vez que foi por ela
recepcionada. SANTOS (2014).
O Comitê Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que realiza reuniões
periódicas, considerou o relatório inicial enviado pelo Brasil (CRPD / C / BRA / 1) em
sua 216ª e 217ª reunião, e expediu as recomendações a respeito na sua 226ª reunião
realizada em 1ª de setembro de 2015. CRPD/C/BRA/CO/1(2015)10
Em suas recomendações a comissão destaca como pontos positivos, a adoção
da CDPD dando a ela status de norma constitucional, e ainda reconhece o esforço do
pais pela criação de comissões a fim de alcançar os diferentes eixos descritos na
carta, bem como medidas para melhorar a acessibilidade das pessoas com
deficiência. CRPD/C/BRA/CO/1(2015)
Contudo, relata em torno de 27 pontos preocupantes, dentre eles ressaltou a
preocupação quanto a adoção de normas e programas que assegurem as diversas
necessidades desse grupo de pessoas, e ainda a melhoria nas políticas de educação
saúde e recreação garantindo efetividade na promoção dos direitos. Desta ainda, em

8 UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS: Convention on the Rights of Persons with Disabilities.
Disponível em https://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/CRPD/OHCHR_Map_CRPD.pdf. Acesso
em: 02 set. 2018.
9 Dado atualizados retirados no site: http://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-
legis/internacional/tratados-equivalentes-a-emendas-constitucionais-1- Acesso em 15 set. 2018.
10UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS: Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad
observaciones finales sobre el informe inicial del Brasil* Disponível em https://documents-dds-
ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G15/220/78/PDF/G1522078.pdf?OpenElement. Acesso em: 16 set. 2018.
relação ao Estatuto das Pessoas com Deficiências, na época, em vias de ser
aprovado, recomendando a adoção de medidas que atendesse diretamente a
finalidade já proposta pela CDPD antes mesmo de sua aprovação. ONU/BR (2018) 11.

O conceito de pessoa com deficiência já sofrera diversas modificações, porém


sempre há novas buscas a fim de que não fique somente no campo da conceituação,
buscando cada vez mais a efetivação e a compreensão que engloba o conceito de
pessoa com deficiência, e para esse fim foi criada a lei 13.146/2015, norma esta que
revolucionou vários institutos do direito interno.

1.3 Criação da Lei 13.146/2015 – Estatuto das Pessoas Com deficiência.

Embora a Convenção sobre os Direitos das pessoas com deficiência tenha e


vem cumprindo seu papel fora necessário internalizar essa matéria junto à legislação
brasileira, adequando o ordenamento interno por meio de medidas que não
promovesse somente o respeito, mas que fossem inclusivas, gerando liberdade e
autonomia privada as pessoas com deficiência. Com esse intuito foi editada a Lei
13.146 de 6 de julho de 2015. LIMONGI (2017).
O projeto de Lei 7999/2006, apresentado no dia 21 de dezembro de 2006 pelo
senador Paulo Paim, tinha intuito de criar uma lei que modificasse diversos diplomas
do ordenamento jurídico brasileiro, e que assim se tornasse efetivo o que já de alguma
forma já tinha sido trazido pela Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência.
RODRIGUES (2017)
A Lei Brasileira da inclusão busca mudar o conceito de pessoa com deficiência,
demonstrando que não é somente barreira física que tais pessoas encontram, mas se
deparam com barreiras ainda maiores, produzidas pelo meio social. Tal instituto veio
com o condão de diminuir estes obstáculos, permitindo que as pessoas com
deficiência possam demonstrar sua capacidade e desenvolver autonomia e
independência. ARAUJO e FILHO (2015)12.

11ONUBR.Comitê da ONU sobre direitos das pessoas com deficiência divulga observações sobre o
Brasil. Disponível em: https://nacoesunidas.org/comite-da-onu-sobre-os-direitos-das-pessoas-com-
deficiencia-divulga-observacoes-finais-sobre-brasil/. Acesso em: 16 de set.2018
12ARAUJO, L.; FILHO, W., O Estatuto da Pessoa com Deficiência - EPCD (Lei 13.146, de 06.07.2015):
algumas novidades. RT online. Disponível em file:///C:/Users/a/Desktop/tcc/13146/EPCD(2).pdf.
Acesso em:02 de set. 2018.
Com a entrada em vigor da Lei 13.1468/2015, o ordenamento jurídico brasileiro
sofreu profundas alterações, objetivando a promoção da autonomia e a igualdade a
essas pessoas, dentre elas estão o acesso igualitário a saúde, a sexualidade, a
constituição de família, ao tratamento inclusivo educacional. Ocorre que ao
estabelecer essas novas diretrizes, na busca de proteção, contrariamente o que pode
acontecer é a desproteção acentuando a vulnerabilidade daqueles que não possuem
o discernimento para muitos atos do cotidiano. D’ALBUQUERQUE (2018)
Assim, sabendo que a criação da Lei Brasileira da inclusão modificou várias
normas do Direito brasileiro com a finalidade de proteção, vamos perceber que a maior
delas foi no âmbito do direito Civil, modificando de forma contundente o instituto da
capacidade civil.

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