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A reprodução

do racismo
fazendeiros, negros e imigrantes
no oeste paulista, 1880-1914

Karl Monsma

São Carlos, 2016

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© 2016, Karl Monsma

Capa
Fotografia: Beim Kaffeetrocknen (secagem do café), acervo do Instituto Martius-Staden,
São Paulo.

Projeto gráfico
Vítor Massola Gonzales Lopes

Preparação e revisão de texto


Marcelo Dias Saes Peres
Daniela Silva Guanais Costa
Vivian dos Anjos Martins

Editoração eletrônica
Felipe Martinez Gobato

Apoio
Capes

Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitária da UFSCar


Monsma, Karl Martin.
M754r A reprodução do racismo : fazendeiros, negros e
imigrantes no oeste paulista, 1880-1914 / Karl Martin
Monsma. -- São Carlos : EdUFSCar, 2016.
366 p.

ISBN – ?

1. Racismo. 2. Imigrantes. 3. Fazendas de café. 4.


São Paulo (Estado) - história. I. Título.

CDD – 305.8 (20a)


CDU – 323.12
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmi-
tida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônicos ou mecânicos, incluindo fotocó-
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do titular do direito autoral.

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O
capítulo 1

Ã
A natureza do racismo e a persistência


da dominação racial

OD
Etnicidade, racialização e racismo
PR
Mesmo afirmando que “raças” são construções sociais, os cientistas
sociais muitas vezes usam as categorias raciais êmicas, ou nativas, como
categorias analíticas, sem investigar os processos sociais que produzem
tais sistemas de classificação. Isso acontece porque as pesquisas geral-
RE
mente abordam somente um tipo de racismo, muitas vezes em somente
um contexto, onde é “óbvio” quais são as categorias raciais e quem está em
que categoria. Na América, as definições de “negro”, “branco” e “indígena”
são razoavelmente claras, mesmo quando variam de uma região a outra,
e pode existir certa ambiguidade a respeito da classificação de indivíduos.
A

Na Europa, todos sabem, ou acham que sabem, o que é um “cigano” (rom)


ou um “judeu”. Na França, todos acham que sabem o que é um “magrebino”.
Em Israel, todos acham que sabem o que é um “palestino”. No Japão, todos
DA

acham que sabem o que é um “coreano” ou um “burakumin”. É só quando


perguntamos se essas várias formas de discriminação e subordinação de
grupos humanos devem ser chamadas de “racismo”, e o que elas têm em
comum, que somos forçados a pensar na definição do racismo e em pro-
cessos de racialização.
BI

Popularmente, e também entre muitos cientistas sociais, é comum


hoje pensar que “raça” é um fenômeno que tem a ver com diferenças físicas
entre grupos de ascendência comum, ao passo que “etnicidade” diz respeito
a diferenças culturais. Essa distinção intelectual é fruto da separação radi-
OI

cal da biologia e cultura operada pelas ciências sociais dos séculos XIX e
XX, mas também é conveniente para muitos nos grupos dominantes hoje,
que podem afirmar que seus preconceitos contra negros, imigrantes, roma,
PR

muçulmanos ou outras minorias não constituem racismo; em vez disso,

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alegam que tais preconceitos são avaliações realistas dos defeitos ou “atra-
sos” culturais desses grupos. Entretanto, antes do século XX, as ideologias
racistas raramente distinguiam biologia e cultura. As disposições e tendên-


cias comportamentais geralmente eram vistas como expressões do “sangue”
herdado dos ancestrais, e havia forte tendência de pensar, de maneira mais
ou menos lamarckiana, que a cultura passava pelo sangue às gerações pos-
teriores. De fato, muito do racismo popular em várias partes do planeta
continua misturando afirmações de inferioridade biológica e cultural. Uma

OD
definição do racismo coerente com a evidência histórica e atual não pode
basear-se em distinções entre fenótipo e cultura.
Para elaborar uma definição do racismo que englobe a dominação
de grupos humanos não distinguidos por diferenças corporais, precisamos
relacionar os conceitos de etnicidade e racismo. Um grupo étnico, para

PR
Weber, é um grupo humano com uma identidade coletiva baseada na
origem comum, real ou imaginada.52 Barth acrescenta elementos impor-
tantes a essa definição, enfatizando a manutenção das fronteiras étnicas,
que são elementos culturais específicos salientados para distinguir o grupo
dos outros – mesmo quando outros aspectos dessas culturas são seme-
RE
lhantes – junto com normas definindo as formas aceitáveis de interação
intergrupal.53 Hoje, existe amplo consenso entre antropólogos sobre a na-
tureza contrastiva da etnicidade e sobre a futilidade da identificação de
grupos étnicos conjuntos coerentes de representações e práticas culturais,
diferentes daqueles de outros grupos étnicos.54 Ou seja, um grupo étnico
A

não equivale a uma “cultura”, a delimitação das fronteiras étnicas só im-


porta em situações de interação entre grupos e tais fronteiras permitem
a manutenção dessa forma de identidade coletiva. Como as diferenças fí-
DA

sicas são socialmente construídas – somente certas diferenças físicas são


socialmente reconhecidas como importantes, e outras são desconsideradas
–, podemos estender a lógica de Barth para incluir a categorização cultu-
ral das diferenças físicas como uma forma de fronteira étnica quando este
sistema de classificação serve para identificar grupos de origens distintas.
BI

A definição sociológica do racismo também deve reconhecer a rela-


ção íntima entre ideologias ou discursos racistas e práticas de dominação
racial. Tratar o racismo como somente um conjunto de ideias erradas é
desconsiderar a racialização das instituições sociais e a consequente dura-
OI

52 Weber (1978, p. 385-398).


53 Barth (1998).
PR

54 Cf. Oliveira (1976).

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bilidade do racismo, ao mesmo tempo em que tende a esvaziar o sentido
real, e muitas vezes material, da dominação racial para aqueles que a so-
frem.55 Abaixo desenvolve-se o argumento de que o racismo se caracteriza


pelo essencialismo negativo, que define como intrínseca e duravelmente
negativas as características internas de um grupo étnico, tais como mora-
lidade, aptidões, inteligência e disposições. O essencialismo negativo serve
para justificar a dominação ou exclusão do grupo assim definido. A defini-
ção do racismo usado aqui, portanto, inclui dois elementos: a dominação

OD
étnica e uma ideologia que essencializa e categoriza negativamente o grupo
subordinado, justificando sua subordinação. Nesta concepção, diferenças
corporais ou outras diferenças de aparência, como a indumentária, podem
servir como marcadores convenientes do pertencimento racial, mas não
originam a racialização. Em vez disso, a racialização é consequência da
PR
dominação étnica. As categorias raciais, e todo um conjunto de dispo-
sições e estratégias de ação a elas associado, se internalizam no habitus
racial do indivíduo, que, em conjunto com a racialização do Estado e das
outras instituições, assegura a continuidade da dominação racial ao longo
do tempo, inclusive em épocas de significativas mudanças sociais, quando
RE
o racismo pode assumir novas formas.

O conceito de “raça” no mundo europeu moderno


A

Historicamente, segundo Banton, os europeus usavam “raça” para


designar qualquer grupo humano com ascendência comum, e o termo era
mais ou menos sinônimo de “linhagem”.56 Era possível referir-se aos des-
DA

cendentes de um indivíduo como uma “raça”, como na referência bíblica


à “raça de Abraão”. Várias aristocracias se pensavam como descendentes
de conquistadores forasteiros com “sangue” superior – por exemplo, os
descendentes dos francos na França ou dos cavaleiros teutônicos na Ale-
manha oriental. Ou seja, pensavam-se como “raças” superiores aos povos
BI

que dominavam.57 Com o colonialismo, a formação dos impérios e o na-


cionalismo, as noções de superioridade inata das aristocracias se difun-
diram à classe média e às camadas populares de vários países europeus,
que passavam a se pensar como naturalmente superiores a outros povos,
OI

55 Bonilla-Silva (1997).
56 Banton (1977).
PR

57 Malik (1996).



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processo particularmente notável na Alemanha58 e nas potências coloniais,
especialmente Inglaterra e França, cujos cidadãos de classe média podiam
gozar de um estilo de vida aristocrático nas colônias.


Mas o termo “raça” não se limitava estritamente à ascendência co-
mum. Em vários casos, era possível homens do povo adquirirem títulos
de nobreza, mediante pagamento ou serviços militares, e depois de três
ou quatro gerações seus descendentes seriam aceitos como portadores de
“sangue superior” (ou azul) como os outros nobres.59 Ou seja, havia meca-

OD
nismos de mobilidade e integração de alguns plebeus à “raça superior” da
aristocracia. Não havia muita preocupação em distinguir rigorosamente
entre características hereditárias e adquiridas porque se pensava que as
características adquiridas seriam herdadas no “sangue” das gerações sub-
sequentes, ao mesmo tempo em que se pensava que o comportamento

PR
revelava qualidades inerentes e hereditárias. Nas justificativas bíblicas
pela escravização de africanos e pela suposta inferioridade dos negros que
predominavam antes das teorias científicas do século XIX, era o pecado
de algum ancestral dos africanos – tipicamente Ham – que explicava por-
que eles haviam sido condenados a servir os outros e, em algumas versões,
RE
porque eles foram marcados por Deus com o estigma da pele escura, que
simbolizava sua maldição.60
Com o passar do tempo, “raça” se referia cada vez mais a povos intei-
ros, correspondendo às coletividades humanas de origem comum – real ou
imaginada – que hoje são conhecidas, nas ciências sociais, como grupos ét-
A

nicos. É somente a partir do racismo científico europeu e norte-americano


do século XIX que se estabeleceu a noção de “raças” como tipos humanos
permanentemente distintos.61 Exatamente onde passavam as linhas divi-
DA

sórias entre as “raças” era tema polêmico por bastante tempo, com forte
tendência de identificar “raças” diferentes dentro da Europa, distinguin-
do, especialmente, as “raças nórdicas”, do noroeste da Europa, das “raças
latinas” e das “raças eslavas”. Entretanto, a partir do início do século XX,
aceitava-se cada vez mais o esquema branco-negro-amarelo-vermelho, ou
BI

termos equivalentes referentes a origens continentais, embora este ainda


não fosse o único esquema influente antes da Segunda Guerra Mundial,
como mostra o antissemitismo europeu, a continuidade da racialização
OI

58 Elias (1996).
59 Nye (1993).
60 Hofbauer (2006).
PR

61 Banton (1977).

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dos irlandeses pelos ingleses, ou ainda a tendência norte-americana de
classificar os italianos como não brancos.62
Desde o fim da Segunda Guerra, existe alto grau de consenso entre


cientistas sociais e a grande maioria dos biólogos e geneticistas de que
“raças” biológicas não existem, se por este termo entendemos populações
humanas claramente delimitadas que diferem entre si com respeito a
várias características biológicas importantes e tendem para certa homo-
geneidade interna com respeito às mesmas características. Consideran-

OD
do as populações de continentes distintos que na história recente foram
identificadas como “raças”, existe muito mais variação genética dentro de
cada uma dessas populações que entre elas. As características genéticas
não existem em conjuntos com forte correlação interna, facilmente di-
ferenciáveis de outros conjuntos. Isso quer dizer que, mesmo em nível
PR
puramente físico, a maioria das características dos indivíduos é pouco
correlacionada com as origens continentais – há pessoas altas e baixas, e
de vários tipos sanguíneos, originárias de todos os continentes. As dife-
renças físicas observáveis entre grupos de diferentes origens geralmente
resultam de pequenas mutações, permitindo adaptações a ambientes dis-
RE
tintos que em nada influenciam a grande maioria do DNA. A pele clara
dos europeus, por exemplo, resulta de uma mutação permitindo maior
produção de vitamina D em um ambiente subpolar com pouca radiação
solar. Mesmo características físicas popularmente identificadas com uma
origem continental são encontradas em diversos outros contextos – a pele
A

escura típica dos africanos também é típica de vários grupos da Índia, das
ilhas do Pacífico e da Austrália.
Particularmente caro aos racistas é a crença na correlação entre apa-
DA

rência física e características morais, intelectuais e de personalidade, como


a inteligência, a sensualidade, a honestidade ou a afetividade. Entretan-
to, se “raças” biológicas não existem, a ideia da correlação entre fenótipo e
características internas fica ainda mais absurda. Mesmo se as qualidades
internas dos indivíduos fossem geneticamente determinadas, não have-
BI

ria nenhum motivo para achar que estas se associassem com a aparência
física, porque os genes variam de forma relativamente independente um
do outro. Os cientistas sociais e os psicólogos também contribuíram para
debelar a crença em qualidades internas características de “raças”, mos-
OI

trando que a grande maioria das disposições, capacidades e tendências


comportamentais dos seres humanos é produto do contexto social e das
PR

62 Jacobson (1998).

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histórias individuais específicas, não da herança biológica de indivíduos
ou grupos. Mesmo se admitirmos que existe um componente biológico de
algumas capacidades individuais, a composição genética fornece somente


potencialidades cuja realização depende da história de vida dos indivíduos
em contextos específicos.
Hoje os cientistas sociais e os grupos sociais mais escolarizados
geralmente distinguem nitidamente a cultura da biologia, e muitas vezes
usam essa diferença para distinguir o preconceito étnico do racismo. En-

OD
tretanto, ainda existe uma tendência popular, muitas vezes aproveitada e
estimulada por políticos, de misturar e confundir a ancestralidade, a his-
tória compartilhada e a cultura dos povos estigmatizados. Separar rigoro-
samente, na análise sociológica, a discriminação cultural da discriminação
em base da ancestralidade ou da aparência física é introduzir distinções

PR
intelectualistas que pouco preocupam, ou nem fazem sentido, aos atores
envolvidos na discriminação e no racismo. Além disso, hoje na Europa,
nos EUA e provavelmente em várias outras partes do mundo, os termos
“grupos étnicos”, “etnias”, “culturas” e “imigrantes” muitas vezes servem
como eufemismos para “raças”, porque o racismo é oficialmente inaceitável,
RE
mas persiste. Na Europa continental, há uma forte tendência de evitar o
termo “raça”, visto como facilitador do racismo porque reforça a crença na
realidade das “raças”. No Reino Unido e nos EUA, usa-se o termo, mas
as pessoas geralmente tomam cuidado para expressar o racismo de forma
parcialmente velada, em códigos mais aceitáveis política e legalmente.63
A

Em todos esses países, muitos políticos ou intelectuais tendem a


essencializar grupos étnicos, imigrantes ou culturas da mesma maneira de
racistas assumidos. Na Europa continental, difunde-se a noção de que os
DA

muçulmanos são “inassimiláveis” ou “resistentes à integração”, passando sua


religião e cultura distintas e resistentes de geração a geração. Além disso,
alega-se, ou insinua-se, que muçulmanos são intrinsecamente intolerantes,
machistas, simpatizantes do terrorismo, e portanto incapacitados para a
cidadania democrática. Os roma, muitas vezes mais desprezados ainda,
BI

são vistos como intrinsecamente criminosos, malandros, vagabundos e


sujos. Na Inglaterra, a acusação de refratários à integração recai especial-
mente sobre os indianos e paquistaneses, muitas vezes classificados junto
OI

63 Quando um político francês fala dos “imigrantes”, a imagem evocada é dos magrebinos e descendentes, não
dos italianos e descendentes, também presentes em grandes números na França. Quando políticos e intelectuais dos
Estados Unidos hoje atribuem a criminalidade à “cultura da pobreza”, os ouvintes ou leitores entendem que estão
PR

falando dos negros, não dos muitos brancos pobres.

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com os caribenhos e africanos como “pretos” (blacks).64 Nos EUA, alega-se
que a pobreza de boa parte da população negra é fruto de uma “cultura de
pobreza”, em que a gravidez precoce das meninas, a ausência dos pais, o


machismo e o uso de drogas ilícitas criam um ciclo de criminalidade mas-
culina e pobreza feminina e infantil que se repete a cada geração. Tais opi-
niões, que eximem a população branca da responsabilidade pela pobreza
negra, se ecoam em várias afirmações de brancos brasileiros a respeito da
pobreza e violência nas favelas, vilas e outras comunidades carentes onde a

OD
população negra se concentra.

Racialização e racismo nas ciências sociais

PR
A crença na existência de “raças” ainda persiste em muitos contextos,
mas hoje os cientistas sociais geralmente afirmam que “raças” existem so-
mente como construções sociais. Para alguns, essas construções interpre-
tam as diferenças físicas entre grupos humanos de origens distintas. Peter
Wade e outros criticam esta definição de “raça” por presumir a existência
RE
pré-social das diferenças físicas percebidas como “raciais”, mas mantêm a
centralidade das diferenças físicas (socialmente construídas) à definição
do racismo.65 Para Wade, as diferenças físicas também são socialmente
construídas: existem vários tipos de diferença entre os corpos humanos,
mas somente percebemos alguns como importantes e “raciais”. Em seu li-
A

vro influente sobre a formação racial nos Estados Unidos, Omi e Winant
adotam uma abordagem semelhante, definindo “raça” como “um conceito
que significa e simboliza conflitos e interesses sociais pela referência a tipos
DA

distintos de corpos humanos”.66 Nesta mesma linha construtivista, Sérgio


Costa trata “raças” como consequências do racismo e da hieraquização,
mas repete a ênfase central nas diferenças físicas: “O racismo corresponde
à suposição de uma hierarquia qualitativa entre os seres humanos, os quais
são classificados em diferentes grupos imaginários, a partir de marcas cor-
BI

porais arbitrariamente selecionadas”.67 Para Antonio Sérgio Guimarães,


a classificação das diferenças físicas é somente um aspecto da definição
sociológica de “raças”, que ele define como “discursos sobre as origens de
OI

64 Miles (1993).
65 Wade (1997).
66 Omi e Winant (1994, p. 55).
PR

67 Costa (2006, p. 11).

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um grupo, que usam termos que remetem à transmissão de traços fisionô-
micos, qualidades morais, intelectuais, psicológicas etc., pelo sangue”.68 En-
tretanto, parece aqui que Guimarães ainda quer incluir a construção social


das diferenças corporais como um elemento central, e talvez necessário, da
definição social de “raças”.
Para esses autores, a seleção das características corporais específicas
que significam “raças” é um processo social historicamente variável, o que
sugere a necessidade de uma teoria da categorização racial: por que alguns

OD
tipos de diferenças corporais, e não outros, são percebidos como “raciais”
e por que alguns grupos humanos, e não outros, são identificados como
“raças”? Wade afirma que as diferenças físicas que percebemos como rele-
vantes para a classificação racial são aquelas que diferenciam os europeus
dos outros povos por eles conquistados, subjugados ou colonizados desde

PR
o início da expansão imperial da Europa no século XV. Ou seja, a racializa-
ção do mundo e o racismo são produtos do colonialismo e do imperialismo
da Europa e das “novas Europas”, ou colônias de assentamento europeu,
como os Estados Unidos, a África do Sul, a Austrália, a Argentina e, em
parte, o Brasil.
RE
Wade certamente não é o único autor a perceber o racismo como
um fenômeno originário das relações entre a Europa e o resto do mundo.
Hoje é comum no mundo acadêmico e nos movimentos sociais presumir
que o termo “racismo” diz respeito exclusivamente às relações entre euro-
peus e seus descendentes, por um lado, e os outros povos do mundo, por
A

outro. Esta abordagem certamente esclarece boa parte dos racismos e das
divisões raciais do mundo, especialmente na América, mas limita desne-
cessariamente o conjunto dos fenômenos percebidos como raciais, arbitra-
DA

riamente definindo como não racistas formas nítidas de discriminação e


dominação que não têm a ver com a dominação europeia ou envolvem gru-
pos humanos não diferenciados por aparência física – como, por exemplo,
o antissemitismo. Autores como Robert Miles e George Fredrickson no-
tam que o antissemitismo é uma das principais e mais duradouras formas
BI

do racismo europeu, mas não tem relação direta com o colonialismo, e suas
raízes antecedem os descobrimentos e a expansão europeia.69 Aqui não é
possível abordar as origens do antissemitismo europeu, mas é importante
notar que o antissemitismo tem pouco a ver com diferenças físicas. Em-
OI

bora os antissemitas muitas vezes imaginem diferenças físicas, não existe

68 Guimarães (2008, p. 66).


PR

69 Miles (1993), Fredrickson (2002).

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nenhum tipo de diferença corporal que distingue os judeus em geral. O
antissemitismo parte não de diferenças fenotípicas, mas da categorização
de judeus como portadores de disposições internas negativas – como a


cobiça ou uma tendência diabólica de conspirar contra a civilização cris-
tã – que são percebidas como características intrínsecas e duradouras do
grupo. De fato, como Miles mostra, em vários momentos grupos europeus
racializaram outros europeus.70 A Irlanda, por exemplo, foi a primeira co-
lônia da Inglaterra, e há uma longa história dos ingleses representarem e

OD
tratarem os irlandeses como selvagens e subumanos. Para Miles, o racismo
europeu começou dentro daquele continente e só depois foi aplicado aos
outros povos do mundo. Mesmo para compreender os racismos europeus,
precisamos de uma teoria que não se centra na construção social de dife-
renças físicas.
PR
Identificar o racismo com a expansão europeia tampouco pode ex-
plicar fenômenos parecidos em outras partes do mundo, por exemplo, a
maneira como os japoneses trataram os chineses e os coreanos durante a Se-
gunda Guerra ou o genocídio dos tutsis de Ruanda em 1994, que certamente
seriam definidos como racistas se os europeus fossem os autores. É impor-
RE
tante elaborar uma definição do racismo que não seja estreitamente ligada
somente a um processo histórico – a expansão europeia da época moderna
– ou somente a uma categoria de racistas – os europeus e seus descendentes.
Senão, a possibilidade do racismo praticado por outros grupos em outras
circunstâncias seja excluída por definição.
A

Uma definição geral do racismo


DA

O antropólogo e sociólogo irlandês Richard Jenkins fornece uma de-


finição do racismo que não se limita à expansão europeia, considerando-o
a dominação sistemática de um grupo étnico por outro, acompanhado pela
categorização do grupo subordinado como inferior.71 Nesta abordagem, as
BI

raças se definem por relações de poder e dominação, não por diferenças


fenotípicas. As ideologias elaboradas para justificar a dominação racial
podem incluir ideias a respeito de diferenças físicas, mas também podem
se basear na suposta inferioridade cultural do grupo subordinado. Esta
OI

definição salienta dois aspectos distintos do racismo: as ideologias e as

70 Miles (1993).
PR

71 Jenkins (1997).

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práticas da dominação racial. Pensar raça como uma forma de etnicidade
combinada com dominação salienta o processo político da construção das
identidades raciais. Qualquer forma de identidade coletiva é construída


pelas relações entre a classificação interna do grupo, pelos próprios inte-
grantes, e a categorização externa, por outros.72 Entretanto, a racialização
envolve a imposição de categorias ao grupo subordinado pelo grupo domi-
nante, junto com definições do grupo assim categorizado como intrinse-
camente inferior.73 Ou seja, a racialização decorre da dominação simbólica

OD
que acompanha a dominação econômica e política de um grupo étnico por
outro. Por exemplo, quem decidiu que todos os diversos grupos étnicos
da África subsaariana deveriam ser colocados na mesma categoria, como
“negros”, foram os brancos que escravizaram e exploraram os africanos e
seus descendentes. A aceitação da identidade negra pelos africanos e seus

cia ao racismo. PR
descendentes é uma forma de racialização defensiva, que facilita a resistên-

As ideologias racistas e seus esquemas de categorização também são


impostos publicamente ao grupo dominado; não ficam restritos às repre-
sentações internas ao grupo que se crê superior. Para Jenkins, a violência é
RE
uma maneira particularmente eficaz de categorizar o “outro”.

Os abusos verbais e a violência concernem a mar-


telação das fronteiras étnicas mediante a impo-
sição de definições do que o “outro” étnico é ou
A

precisa fazer. O poder está no cerne da questão.


(…) A violência – sobretudo matar – pode ser
entendida como o ato supremo de categorização.
DA

(…) É realmente “colocá-los no seu lugar”.74

À ênfase de Jenkins na dominação e na categorização, devemos


acrescer outro elemento, enfatizado por Miles: a categorização racista es-
sencializa os povos dominados; identificando habilidades, comportamen-
BI

tos e disposições do grupo que supostamente são inerentes e duradouros,


herdados de uma geração a outra.75 Quando a categorização racial referen-
cia diferenças somáticas, estas geralmente são vistas não como a origem
OI

72 Id. (1997, 2004).


73 Fenton (1999), Guimarães (2002).
74 Jenkins (1997, p. 63, 106).
PR

75 Miles (1993).

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das diferenças internas, mas como marcadores das diferenças essenciais.
Por exemplo, os africanos e seus descendentes na América já foram per-
cebidos como ingênuos, pouco inteligentes, sensuais, afetuosos, ou como


preguiçosos, perversos, traiçoeiros e violentos, dependendo do lugar e do
momento histórico. A pele escura e outras características físicas servem
como marcadores – impostos por Deus ou pela natureza – da diferença
do negro, mas o que realmente importam são as supostas diferenças de
disposição e capacidade, não a aparência física em si mesma.

OD
Podemos distinguir entre o racialismo, a crença nas qualidades
intrínsecas e duradouras de grupos de origem comum e o racismo.76 O
etnocentrismo ou a xenofobia não constituem, necessariamente, o racia-
lismo nem o racismo. Como Max Weber nota, os grupos étnicos quase
sempre acreditam que seu modo de vida é mais honrado que o de outros
PR
grupos, e sentem que algumas práticas dos outros são repugnantes.77 Essas
posturas viram racialistas quando tais práticas são vistas como inerentes
ao grupo e hereditárias. A racialização – o processo de essencializar um
grupo étnico – pode ser positiva ou negativa, ou alguma mistura dos dois.
Geralmente grupos que racializam outros de maneira negativa também
RE
racializam a si mesmos de forma positiva. As nacionalidades europeias,
por exemplo, exibem tendências de se racializar mutuamente. Afirmações
como “os italianos têm sangue quente”, “os holandeses são sovinas” ou “os
franceses são arrogantes” essencializam uma nacionalidade, e, portanto,
podem ser consideradas manifestações do racialismo, mas não do racismo,
A

porque não acompanham a dominação sistemática de algumas naciona-


lidades europeias por outras e não integram ideologias sistematicamente
rebaixando a coletividade assim classificada.
DA

Em situações de racismo, por outro lado, quando um grupo étni-


co domina outro, a racialização tende a ser mais agressivamente negativa,
envolvendo uma estrutura maior de afirmações inter-relacionadas e explí-
citas, ou seja, uma ideologia racista que afirma a inferioridade essencial
do grupo subordinado e justifica a dominação racial. Em contraste com as
BI

nacionalidades europeias mencionadas acima, os irlandeses foram raciali-


zados de forma particularmente negativa pelos ingleses no passado, como
consequência da colonização da Irlanda pela Inglaterra e as migrações
posteriores de irlandeses à Inglaterra em busca do emprego.78 Os judeus
OI

76 A distinção entre racialismo e racismo desenvolvida aqui é parecida com aquela de Appiah (1992, p. 13-15).
77 Weber (1978).
PR

78 Miles (1993).

1

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A REPRODUÇÃO DO RACISMO

Ã
e roma sofreram a estigmatização e a dominação raciais em toda a Euro-
pa. As mesmas representações raciais se transferiram aos Estados Unidos,
onde foram reelaborados nas avaliações de diversos grupos imigrantes.


Os judeus, irlandeses e italianos, inicialmente categorizados como “raças”
inferiores, empreenderam longas lutas para serem reclassificados como
“brancos” nos EUA.79
Com a definição do racismo desenvolvida aqui, é possível agrupar
uma ampla variedade de formas semelhantes de dominação étnica e de es-

OD
sencialização negativa de povos como racismo, e podemos evitar a prolife-
ração de novos ismos sem justificativa teórica, como etnicismo, linguismo,
anti-imigrantismo etc. Sempre haverá casos difíceis de categorizar, com al-
gumas, mas não todas, características do racismo identificadas aqui. Esses
casos servem para pensar sobre a utilidade dos conceitos e para aprofundar
a teoria do racismo.
PR
Uma teoria do racismo não deve focar somente os sistemas ideológi-
cos mais ou menos coerentes elaborados por intelectuais, como o racismo
científico do final do século XIX e início do XX. Também precisa abordar
a racialização das instituições sociais, por um lado, e a internalização do
RE
racismo como um aspecto do habitus, por outro. As instituições, como o
Estado, as escolas, a polícia, as igrejas e a família, incorporam categorias
raciais e tratam os integrantes dessas categorias de maneira diferenciada.
O habitus racial consiste em: 1) categorias raciais de percepção e classifi-
cação dos outros e de si mesmo; 2) percepções, associadas às categorias
A

raciais, de capacidades, tendências comportamentais e qualidades morais;


3) disposições corporais e emoções – de atração ou repulsão, confiança
ou suspeita, segurança ou medo – a respeito das pessoas racialmente ca-
DA

tegorizadas; e 4) esquemas de ação diferentes a respeito das pessoas de


categorias “raciais” distintas. Internaliza-se o habitus racial pela experiên-
cia em um mundo social racializado. Como o habitus em geral, o habitus
racial pode ser complexo e contraditório,80 sustentando ideias e esquemas
de percepção muitas vezes incoerentes e fragmentários, que podem se
BI

influenciar pelas ideologias mais explícitas dos intelectuais, mas não são
totalmente determinados por elas.
Como podemos nos referir aos grupos étnicos racializados sem
atribuir alguma realidade preexistente às “raças”? Miles argumenta que
OI

devemos descartar totalmente a palavra “raça”, por implicar que as “raças”

79 Jacobson (1998).
PR

80 Lahir (2005).



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KARL MONSMA

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realmente existem.81 Ele critica vários dos seus colegas ingleses, como
Stuart Hall, por usos dessa palavra que tratam implicitamente as “raças”
como se fossem reais, apesar de afirmarem que as “raças” não existem.


O ponto central de Miles é que a crença na existência de “raças” é uma
consequência do racismo; o racismo não é consequência de diferenças
raciais preexistentes. Portanto, é o racismo e os processos de racializa-
ção que devem ocupar o centro da análise, não as “relações raciais”, termo
que substancializa as “raças”. Entretanto, nas suas discussões do racismo,

OD
Miles precisa substituir outros termos para se referir aos grupos envolvi-
dos, como “grupos racializados”, o que resulta em circunlóquios um tanto
desajeitados para se referir às coletividades que perpetram o racismo ou
sofrem dele. Antônio Sérgio Guimarães resolve esse problema de forma
mais elegante ao se referir a “raças sociais”, o que retira toda referência
PR
biológica ou somática do conceito sociológico de raça e chama a atenção
para a realidade social do racismo.82 Raças sociais, nessa concepção, per-
tencem à mesma ordem da realidade que classes sociais. Ambos tipos de
coletividades são definidos por relações sociais, com dimensões práticas
e simbólicas. No caso das raças sociais, estas são relações de dominação
RE
étnica e de produção de representações negativas e essencialistas do grupo
subordinado, que por sua vez reforçam a dominação étnica.
Embora as ideologias e as práticas racistas geralmente ocorram em
conjunto e se reforcem mutuamente, em alguns casos grupos podem ser
expostos a ideologias racistas, internalizando-as pelo menos parcialmen-
A

te, sem participar diretamente nas práticas racistas correspondentes. Os


livros escolares do início da década de 1940 nos EUA incluem descrições
nitidamente racistas dos aborígenes australianos.83 Nesse caso, as crianças
DA

internalizaram uma ideologia racista, mas não tiveram a oportunidade de


participar na prática da dominação dos aborígenes, que foi implantada pe-
los ingleses e pelos australianos brancos. Como a grande maioria das crian-
ças dos EUA nunca havia visto um aborígene australiano, as representa-
ções racistas dos livros didáticos provavelmente se enraizaram nas suas
BI

disposições e nos seus esquemas de pensamento de maneira relativamente


superficial, enquanto uma criança branca na Austrália, exposta às mesmas
representações, teria as internalizado de forma bem mais profunda.
OI

81 Miles (1993).
82 Guimarães (2002).
PR

83 Esta afirmação se baseia nos livros escolares que o pai do autor usou quando criança.



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A REPRODUÇÃO DO RACISMO

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Parece que o racismo antinegro inicial dos camponeses e trabalha-
dores europeus que migraram para o interior de São Paulo no final do sé-
culo XIX e início do XX era um tanto parecido com o racismo da criança


norte-americana contra os aborígenes australianos. Na Itália ou em outros
países europeus, os camponeses e outros pobres foram expostos espo-
radicamente a representações negativas dos escravos e outros negros da
América e dos africanos – nos jornais, nos livros escolares e, especialmente,
nas cartas enviadas da América por parentes e nos relatos de emigrantes

OD
retornados. Mesmo os analfabetos podiam ouvir essas representações ra-
cistas de outros. Entretanto, esses emigrantes em potencial internalizaram
o racismo antinegro de forma relativamente superficial porque, além da
exposição inconstante, essas representações não correspondiam a nada na
sua experiência cotidiana – com as exceções importantes dos retornados da

PR
América e dos italianos que haviam cumprido o serviço militar na África.84

Racismo de exploração e racismo de exclusão


RE
Podemos distinguir duas lógicas, ou propósitos, da dominação ra-
cial. Uma é a dominação de um povo para explorá-lo, cuja manifestação
extrema é a escravidão; outra é a dominação de um povo com o desígnio de
excluí-lo da competição por recursos, oportunidades ou poder, cuja versão
última é o genocídio. Na realidade, as duas formas se misturam de várias
A

maneiras, mas geralmente uma delas predomina.


Ao longo da história da América, há uma tendência para a predomi-
nância do racismo de exclusão – de terras e outros recursos naturais – com
DA

respeito aos povos indígenas, e a predominância do racismo de exploração


com relação aos africanos e seus descendentes, embora a mistura exata
varie bastante de um lugar para outro e ao longo do tempo. Certamente
houve bastante exploração de mão de obra indígena em alguns contextos,
BI

84 Também é possível participar na dominação racial sem compartilhar a ideologia que justifica isso. Muitos
moradores dos países avançados hoje – e também de países semiperiféricos como o Brasil – participam objetiva-
mente de formas de dominação racial quando compram roupas, tapetes, calçados ou eletrodomésticos fabricados
em países como Índia, Bangladesh, Vietnã ou China, sem internalizar nenhuma ideologia racista a respeito dos
trabalhadores que produzem esses itens de consumo, e muitas vezes sem saber a origem desses produtos. Em uma
OI

economia globalizada, a divisão do mundo em regiões de mão de obra cara e barata, em conjunto com restrições às
migrações internacionais, implica a dominação e exploração dos povos de países com salários baixos pelos povos
de países com salários mais altos. Além disso, a organização do trabalho nos países de salários baixos pode envol-
ver a hiperexploração de minorias nacionais, como os dalit (“intocáveis”) da Índia. O comprador de um tapete ou
tênis na Alemanha, nos EUA ou no Brasil pode nem saber onde e como foi produzido, mas está participando de
PR

um sistema internacional de dominação racial.



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como nas minas de prata coloniais de Alto Peru (Bolívia) ou nas fazendas
de café e de algodão da Guatemala até a segunda metade do século XX,85
mas na maior parte do continente o que predominou em longo prazo foi


o roubo de terras, águas, minérios, florestas e outros produtos naturais
pelos invasores europeus, às vezes respaldados por campanhas militares de
extermínio, como a Conquista del Desierto argentina das décadas de 1870
e 1880 ou os Indian Wars do Oeste dos Estados Unidos, que chegaram ao
auge nas décadas após a Guerra Civil daquele país. Em outras partes do

OD
continente, como no México ou na Amazônia, foram as doenças europeias
que cumpriram a tarefa de exterminar a maior parte da população indíge-
na e abrir o caminho para a tomada dos recursos pelos invasores.
Com a exceção de uma pequena minoria de imigrantes africanos
recentes, todos os negros da América são descendentes de africanos escra-
PR
vizados. A exploração da mão de obra forçada de negros perdurou durante
a grande maioria da presença de europeus e africanos na América. Mesmo
depois do fim oficial da escravidão, novas formas de coerção de trabalhado-
res, como peonagem (ou servidão) por dívidas, surgiram em várias partes
do continente. É somente nas décadas recentes que o racismo de exclusão
RE
passou a predominar com respeito aos negros em alguns contextos, como
nos Estados Unidos, onde boa parte da população branca pensa os negros
como dispensáveis e inúteis, vivendo a custo do contribuinte e só causando
problemas sociais, já que seu trabalho não é mais necessário nas fazendas
e nas fábricas daquele país.86
A

Uma forma notável de racismo de exclusão pesa sobre as “minorias


intermediárias” em várias partes do mundo, como os judeus na Europa,
os chineses no sudeste asiático, os indianos e libaneses na África ou os
DA

sírio-libaneses (“turcos”) na Amérca Latina.87 Muitas vezes as elites do


grupo dominante ressentem a competição dos comerciantes e empresá-
rios dessas minorias, que também sofrem de ressentimentos populares em
função do seu papel como donos de pequenas lojas ou casas de aluguel,
cobradores de dívidas, agenciadores de mão de obra ou outros papéis de
BI

mediação vistos como predatórios. Esses ressentimentos facilmente levam

85 Schmid (1967).
OI

86 Essa atitude dos brancos e o consequente descaso das autoridades com respeito à saúde e aos direitos
humanos dos negros – evidenciado, por exemplo, na tolerância pela violência policial contra negros e, mais recen-
temente, na falta de ação para impedir o envenenamento da água de uma cidade inteira de população majorita-
riamente negra (Flint, Michigan) – têm originado várias teorias conspiratórias entre os negros, como a noção de
que a CIA inventou a AiDs para exterminar a população negra.
PR

87 Bonacich (1973).



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A REPRODUÇÃO DO RACISMO

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à estigmatização das diferenças culturais ou acusações de falta de lealdade
ao país de acolhimento, no caso de minorias intermediárias imigrantes, ou
ainda da definição continuada desses grupos como “estrangeiros”, apesar


da sua presença no país por várias gerações. Tudo isso facilmente desem-
boca em restrições legais ao grupo assim racializado, em expulsões, como
no caso dos indianos de Uganda, ou em genocídios, como aquele cometido
pelos nazistas contra os judeus.
Muitas vezes, o racismo de exclusão reforça o racismo de explo-

OD
ração, porque deixa um povo vulnerável à exploração, produzindo o que
Bonacich caracteriza como um “mercado de trabalho cindido” (split labor
market) e exacerbando o racismo entre os trabalhadores do grupo racial
dominante.88 A situação dos imigrantes “ilegais” em vários países exem-
plifica essa mistura. É o racismo de exclusão de boa parte da população

PR
do país de destino – que quer impedir a competição de imigrantes por
empregos e moradias, ou acha que os imigrantes aumentam a crimina-
lidade e sobrecarregam os serviços públicos – que inibe a regularização
destes imigrantes e os deixa vulneráveis à exploração, forçados a aceitar
salários baixos e condições de trabalho e moradia precárias. Os negros do
RE
Brasil hoje sofrem desse complexo interligado de exclusão e exploração. A
exclusão de oportunidades educacionais e dos melhores empregos reforça
a exploração dos negros, que são forçados a aceitar empregos precários e
com salários baixos.
Tanto a exploração como a exclusão envolvem aspectos simbólicos
A

importantes, que às vezes podem ser mais importantes que os aspectos ma-
teriais, e com consequências igualmente devastadoras para os povos raciali-
zados. A exclusão simbólica se manifesta quando os integrantes de grupos
DA

racializados são impedidos de competir pelo capital simbólico de reconheci-


mento e respeito. Para Bourdieu, “não existe pior desapropriação, pior priva-
ção, quiçá, que aquela dos vencidos na luta simbólica pelo reconhecimento,
pelo acesso a um ser social socialmente reconhecido, ou seja, em uma palavra,
à humanidade”.89 A exclusão simbólica pode magnificar as consequências da
BI

exclusão material. Antes do genocídio, os judeus foram excluídos simbolica-


mente da nação alemã. Propagandistas nacionalistas exageraram o papel de
banqueiros internacionais judeus no financiamento dos Estados, e os nazis-
OI

88 Id. (1972).
89 Bourdieu (2003, p. 346). Discutindo especificamente a situação do escravo, Orlando Patterson (1982, p. 77-
101) afirma que a sujeição gera a degradação do cativo e seu tratamento, pela população livre, como uma pessoa sem
PR

honra e sem a possibilidade de conquistá-la.



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tas elaboraram uma ideologia culpando os judeus por quase todos os males
do país.90
A exploração simbólica ocorre quando integrantes do grupo subor-


dinado se sentem obrigados a prestar homenagem, com demonstrações de
respeito, aprecio ou gratidão, a integrantes do grupo dominante para con-
seguir bens ou oportunidades, ou quando as pessoas racializadas são obri-
gadas a aceitar humilhações e insultos de indivíduos do grupo dominante
sem responder. Vários autores recentes enfatizam os efeitos destrutivos do

OD
desrespeito, da falta de reconhecimento e da humilhação. Para Honneth,
os insultos e outros atos aviltantes humilham a pessoa, atingindo sua au-
toestima, sua dignidade (ou honra) e sua capacidade de sentir-se parte da
mesma comunidade moral com os autores de sua humilhação.91 Honneth
percebe movimentos sociais pela expansão do significado da cidadania, ou
PR
pela extensão dos direitos de cidadania a novos grupos, como maneiras de
superar a experiência do desrespeito e da humilhação. Já o fenomenolo-
gista Jack Katz identifica a humilhação como uma das principais causas
da violência interpessoal.92 Para Katz, a violência, muitas vezes, é uma
maneira de reafirmar a dignidade e o valor moral da pessoa em resposta à
RE
humilhação, que destruiu sua identidade pública.93
Boa parte das tensões e brigas entre elites, negros e imigrantes
abordados neste livro surgiu de conflitos pelo capital simbólico. Além
de suscitar a esperança de alcançar a cidadania plena – nas palavras de
Marshall: “um estatuto conferido a todos que são membros plenos de uma
A

comunidade”94 –, a abolição final permitiu àqueles ainda escravizados em


1888 maior liberdade para responder a insultos e tratamento aviltante, por-
que afrouxou, sem eliminar completamente, os controles cotidianos ante-
DA

riormente exercidos sobre os cativos. Além dos conflitos sobre condições


de trabalho, remuneração, multas e moradias, tanto negros como imigran-
tes exigiam trato digno dos fazendeiros, e estes respondiam com violência
a atitudes que percebiam como falta de respeito. Por sua vez, a maior parte
BI

90 Arendt (1958), Elias (1996, p. 301-316).


91 Honneth (1995).
92 Katz (1988).
93 James C. Scott (1990) desenvolve um argumento semelhante quando afirma que as feridas mais profundas
OI

da dominação geralmente se derivam não da simples privação material, mas da vergonha da submissão involun-
tária e da humilhação de sofrer abusos sem poder responder (abertamente). William Ian Miller (1993) explica
porque a humilhação atinge tão fortemente a identidade pública da pessoa: consiste na destruição de pretensões
não reconhecidas por outros; ou seja, a demonstração pública de que os outros não acreditam e não aceitam a
representação de si produzida por uma pessoa.
PR

94 Marshall (1964, p. 84).

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A REPRODUÇÃO DO RACISMO

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da violência entre imigrantes e negros se originou em conflitos sobre quem
tinha o direito à precedência ou de mandar no outro. Negros tipicamente
reivindicavam o respeito e a igualdade, mas os imigrantes, querendo se dis-


tinguir dos negros, não aceitavam suas aspirações e atuavam para humilhá-
-los, muitas vezes com a violência.

A reprodução do racismo

OD
Como qualquer instituição social, o racismo não continua por força
própria, na ausência das atividades humanas, que perpetuam a dominação
racial e a essencialização negativa dos grupos étnicos racializados. A re-
produção e a mudança sociais se relacionam porque, como Sewell mostra,

PR
falhas na reprodução social podem reverberar por várias ordens institu-
cionais, resultando em mudanças sociais imprevisíveis.95 Para Sahlins, as
tentativas de acionar as velhas categorias culturais em novas circunstâncias
podem produzir mudanças na natureza das categorias e das relações entre
elas.96 Por outro lado, muitos arranjos sociais e categorias de pensamen-
RE
to sobrevivem até os períodos de mudança social intensa. As instituições
sociais e os sistemas simbólicos que sobrevivem servem de base para a “re-
construção” do mundo social em períodos de mudança. Como Giddens
enfatiza, para atuar no mundo, mesmo em situações de mudança radical,
os humanos precisam mobilizar as categorias de entendimento e as rela-
A

ções sociais existentes, o que tende a reforçar essas mesmas categorias e


relações.97 Como a ênfase central deste livro está justamente na persistên-
cia do racismo em longo prazo, apesar das mudanças institucionais que
DA

trouxeram alguns avanços para os negros brasileiros, é importante abordar


brevemente os processos sociais da reprodução do racismo.
A reprodução do racismo acontece no dia a dia e de geração a gera-
ção, e envolve pelo menos cinco ordens da realidade social: as instituições,
as redes sociais, as representações e ideologias, as rotinas de interação so-
BI

cial e o habitus racializado dos grupos dominantes e subordinados. Esses


aspectos ou níveis da vida social podem ser distinguidos analiticamente,
mas na realidade quase sempre se combinam e se influenciam mutuamente.
OI

95 Sewell (2005).
96 Sahlins (1981, 1985).
PR

97 Giddens (1984).

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. Instituições racializadas. Talvez a instituição mais abrangente
seja o Estado. O que Omi e Winant denominam o “Estado ra-
cial” abrange não somente as leis que racializam, discriminam


ou visam combater o racismo; inclui também todas as cate-
gorias raciais e entendimentos diferenciados das raças sociais
institucionalizados em todos os órgãos do Estado em todos
seus níveis, além das consequências racialmente diferenciadas
das políticas do Estado.98 Como esses autores enfatizam, o

OD
Estado racial muitas vezes é internamente contraditório, com
alguns órgãos trabalhando contra os projetos raciais de ou-
tros. As tentativas explícitas de mudar o regime racial, como a
abolição da escravidão, tipicamente partem do ou envolvem o
Estado, mas isso não significa que todas as partes do Estado
PR
trabalham em harmonia. Uma parte importante da história
da reprodução do racismo na época da abolição brasileira são
as tentativas de instâncias do Estado local, sobretudo as câ-
maras municipais e os delegados de polícia, de amenizar as
consequências da abolição para os grandes fazendeiros. Outro
RE
aspecto do Estado racial é a falta de reconhecimento, muitas
vezes proposital, da história de dominação racial e da conti-
nuidade da discriminação em várias formas, resultando em
políticas universalistas do Estado com consequências racial-
mente diferenciadas.
A

Além do Estado, em uma sociedade racializada, as categorias


raciais podem estar embutidas em quase qualquer instituição
social, como as escolas, as empresas, as igrejas e as famílias.
DA

Isso não necessariamente quer dizer que a escola, por exem-


plo, classifica os alunos oficialmente por categorias raciais.
É suficiente os professores e diretores informalmente classi-
ficarem e tratarem de maneira diferente os alunos de raças
sociais subordinadas, para a escolarização ter consequências
BI

racialmente diferenciadas – por exemplo, tendo expectativas


de desempenho mais baixo para os alunos negros ou asso-
ciando estes com a violência e a indisciplina. Nas empresas,
as categorias raciais internalizadas dos empregadores influen-
OI

ciam quem é contratado e para que função – por exemplo,


a exclusão de mulheres negras de funções que envolvem o
PR

98 Omi e Winant (1994).

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A REPRODUÇÃO DO RACISMO

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contato com o público por supostamente não terem “boa apa-
rência” –, além de influenciar a avaliação do desempenho e
as promoções – evidente na resistência a colocar negros em


posições de mando sobre brancos. A família é outra institui-
ção central para a reprodução do racismo, e provavelmente
onde as categorias raciais figuram de maneira mais explícita.
Além de serem o local principal da socialização primária e
da reprodução das primeiras camadas do habitus, muitas

OD
vezes as famílias tentam controlar as escolhas matrimoniais
da próxima geração, influenciando assim o grau de “pureza”
dos grupos étnicos e a nitidez das fronteiras entre eles. Sem
a discriminação racial nas escolhas matrimoniais, seria bem
mais difícil reproduzir o racismo de uma geração a outra.

PR
. Redes sociais racializadas. Em qualquer contexto social
marcado pelo racismo, as redes sociais – de amizades, de fa-
mílias, de contatos, de colaboração profissional – tendem a
ser racializadas. Em alguns contextos, a raça social dominante
RE
mantém redes quase totalmente separadas daquelas da raça
subordinada. No Brasil, as redes tendem a incluir brancos,
negros e mestiços, mas os negros e mestiços se concentram
nos setores subordinados e periféricos das redes. As redes
influenciam quem recebe favores ou informações úteis e em
A

troca de quê. A incorporação dos negros e pardos em posi-


ções subordinadas de redes dominadas por brancos no Brasil
significa, primeiro, que os brancos tendem a receber os favo-
DA

res e as informações mais valiosas, e, segundo, que os negros


devem agradecimentos e lealdade a brancos mais poderosos
pelas oportunidades que recebem. Ou seja, a natureza das
redes sociais brasileiras facilita a exploração racial simbólica
ao mesmo tempo em que intensifica o controle sobre os ne-
BI

gros e fragmenta sua resistência. Manter boas relações com


brancos poderosos, ou simplesmente da classe média, muitas
vezes significa a diferença entre a miséria e uma vida simples,
mas digna. A grande importância no Brasil das redes de rela-
OI

ções pessoais, ou o capital social, para conseguir quase tudo


– emprego, moradias, prioridade no atendimento pela buro-
cracia do Estado, vários direitos supostamente garantidos por
PR

lei, outros contatos e amizades – significa a perda de muitas

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oportunidades para aqueles prejudicados com menos capital
social por pertencerem a grupos estigmatizados, o que contri-
bui para a reprodução da dominação racial.


. Representações e ideologias racializadas. As representa-
ções sociais, sobretudo ideologias raciais explícitas, cons-
tituem o aspecto da realidade social mais comumente ana-
lisado por pesquisadores do racismo. Muitos intelectuais

OD
privilegiam o estudo de ideologias raciais explícitas porque
tendem a exagerar a influência dos intelectuais no mundo e
porque as ideologias dos intelectuais, quase sempre explici-
tadas em livros, são facilmente acessíveis por um método de
pesquisa particularmente agradável aos intelectuais, que é a
PR
leitura de livros. É importante notar, porém, que as represen-
tações racializadas incluem uma ampla variedade de fenôme-
nos menos conscientes e intelectualizados, como categorias
de pensamento irrefletidas, estereótipos raciais parcialmente
subconscientes e fragmentos, muitas vezes contraditórios, de
RE
ideologias antiquadas, que muitas vezes incidem bem mais
na dominação racial que as tentativas por parte de intelec-
tuais de descrever e justificar a ordem racial de seu tempo.
Por exemplo, no século XIX, enquanto muitos intelectuais
se influenciavam pelas teorias do racismo científico, boa parte
A

dos brancos da América continuava acreditando que os ne-


gros ocupavam posições subordinadas em função da maldi-
ção bíblica de Ham (Cam), ou de seu filho Canaã, suposto
DA

ancestral dos negros.99

. Rotinas de interação racializadas. Como Giddens enfa-


tiza, é por meio das rotinas de interação que as estruturas
sociais – neste caso, as estruturas da dominação racial – se
BI

reproduzem no dia a dia.100 As rotinas e normas informais da


interação face a face delimitam o comportamento aceitável ou
despropositado dos integrantes de grupos subordinados. A
violação dessas normas racializadas de interação, que regem
OI

a exploração simbólica, acarreta várias formas de castigo, tais

99 Fredrickson (2002, p. 79-80), Hofbauer (2006, p. 42-94).


PR

100 Giddens (1984).

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como humilhações e xingamentos, a perda de oportunidades
de emprego ou até a violência física. Essas normas limitam
o que os racialmente estigmatizados podem fazer em outros


níveis institucionais, como no mercado de emprego ou no
Estado. Também existe um conjunto de normas de compor-
tamento e interação impostas pelo grupo dominante aos seus
integrantes, que reforçam a coerência interna do grupo e sua
capacidade de manter os subordinados no “seu lugar”.101

OD
. O habitus racial. O habitus racial é particularmente impor-
tante para a reprodução do racismo em situações de mudança
nas instituições racializadas, como a abolição oficial da escra-
vidão, porque o habitus é relativamente durável; as disposi-

PR
ções e formas de percepção racializadas que se internalizaram
sob o antigo regime racial continuam no novo. O habitus
racial do grupo dominante se reproduz pela internalização
das divisões raciais do mundo social, na forma de disposições,
esquemas de percepção e estratégias de ação que reforçam e
RE
legitimam a dominação racial.102 Como o resto do habitus, o
habitus racial gera práticas raciais pela sua transposição en-
tre situações análogas, mas nunca exatamente iguais, o que
implica o risco de mudanças e reformulações no decorrer
dessas transposições, possibilidade que é bem maior nas cir-
A

cunstâncias geradas por mudanças institucionais.103 Este livro


aborda de maneira central a reprodução do habitus racial em
situações de mudança institucional nas relações de domina-
DA

ção racial, bem como a internalização do habitus racial por


grupos “novos”, previamente externos ao sistema racial local.
Para dar conta das contradições da dominação racial na prá-
tica cotidiana, é importante modificar o conceito de habitus
para englobar disposições parcialmente contraditórias e es-
BI

quemas de percepção e ação segmentados. Na forma apresen-


tada por Bourdieu, o habitus é a internalização das estruturas
OI

101 Elias e Scotson (1994).


102 A discussão de Bourdieu (2002) sobre a reprodução da dominação masculina é sugestiva para estudos
da reprodução da dominação racial, embora a profundidade das identidades raciais varie muito mais que a das
identidades de gênero.
103 Sewell (1992, 2005) enfatiza as possibilidades para mudança inerentes na transposição do habitus entre
PR

situações.

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do mundo social, na forma de disposições, categorias cogni-
tivas e esquemas de ação, e a prática se gera pela transposição
do habitus entre situações sociais homólogas.104 Segundo seu


próprio relato, no prefácio de Le sens pratique (1980), Bour-
dieu adotou esse conceito como maneira de compreender as
ambiguidades, inconsistências e contradições da prática que
ele não conseguia derivar das oposições ultracoerentes do
estruturalismo levi-straussiano.105 Entretanto, na versão de

OD
Bourdieu o habitus continua relativamente integrado e coe-
rente, e as incoerências da prática se originam da improvisa-
ção e da ambiguidade inerentes às transposições do habitus,
não das contradições do próprio habitus.
Aqui se considera que, na maioria das vezes, o habitus é seg-
PR
mentado e parcialmente contraditório, correspondendo às
lógicas estruturais parcialmente diferenciadas das instituições
e campos sociais distintos em que o indivíduo atua.106 Como
Sewell demonstra, em uma discussão da obra de Sahlins, qual-
quer sociedade, sobretudo aquelas com um grau mínimo de
RE
complexidade, inclui várias estruturas e sistemas culturais, com
lógicas parcialmente diferenciadas.107 Por exemplo, o mesmo
indivíduo pode ser escravo, colega de trabalho, marido, pai e
amigo, com respeito a vários outros, e as estruturas simbólicas
e formas de atividades e interação que definem em cada tipo
A

de relação são parcialmente diferenciadas. As lógicas distintas


e potencialmente contraditórias de diversas esferas institucio-
nais são internalizadas como aspectos distintos do habitus.
DA

As pessoas recém-chegadas de outros contextos, como os


imigrantes europeus no interior paulista, podem resistir ou
adotar o habitus racial predominante, ou ainda internalizar
esse habitus só parcialmente. De maneira geral, a internali-
zação do habitus racial por esses migrantes será mais super-
BI

ficial que a internalização pelos brancos nativos, porque as


primeiras experiências formam as camadas mais profundas
do habitus. Entretanto – lembrando que o habitus gera a ação
OI

104 Bourdieu (1980, p. 87-165; 2000a, p. 256-300; 2003, p. 185-234).


105 Id. (1980).
106 Lahir (2005).
PR

107 Sewell (2005, p. 205-213), Sahlins (1985).



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A REPRODUÇÃO DO RACISMO

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pela transposição entre contextos de categorias, disposições
e esquemas –, as categorias raciais do novo contexto podem
acionar disposições mais profundas do habitus de origem se


as novas categorias raciais se relacionarem com categorias
fundamentais do local de origem.
Normalmente as contradições parciais do habitus não cau-
sam problemas porque existem outros esquemas de per-
cepção – ou seja, outro nível do habitus – que classificam

OD
as situações sociais e acionam as disposições e esquemas de
percepção e ação adequadas para cada situação.108 Entretanto,
se algo acontecer para mudar a definição da situação, ou para
causar certa confusão ou desentendimento sobre essa defini-
ção, outros aspectos do habitus podem ser acionados, resul-

PR
tando em mudanças abruptas de comportamento. No Oeste
paulista, na época da abolição e nas primeiras décadas pos-
teriores, observam-se negros, sobretudo escravos e libertos,
mudando rapidamente da obediência humilde, combinada
com a resistência disfarçada, para a rebeldia aberta; fazen-
RE
deiros alternando entre o paternalismo e a repressão violenta
de trabalhadores negros; e trabalhadores imigrantes repenti-
namente trocando a solidariedade de classe com negros pelo
ódio racial.
Quando os atores discordarem sobre a definição da situação,
A

as ações do outro podem suscitar confusão, ultraje ou raiva.


É justamente em épocas de mudança institucional que de-
sentendimentos e conflitos sobre a definição de situações co-
DA

tidianas são mais prováveis. Depois da abolição, ex-senhores


achavam que os libertos deveriam continuar lhes acatando, ao
passo que muitos libertos acreditavam que podiam controlar
suas próprias vidas. A chegada de novos grupos, que no caso
abordado são os imigrantes europeus, também contribuiu
BI

para confusões sobre as interações cotidianas. As mudanças


no comportamento de negros, fazendeiros e imigrantes se
relacionavam: a abolição levou a afirmações de dignidade e
igualdade, por parte de negros, que por sua vez suscitavam a
OI

ultraje e a violência, tanto de fazendeiros como de imigrantes.


PR

108 Goffman (1974).



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KARL MONSMA

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As instituições, as redes sociais, as representações, as interações
face a face e o habitus se relacionam e interagem. Crescer no contexto
de instituições, redes, representações e interações racializadas produz o


habitus racializado. O habitus racial, por sua vez, reforça as fronteiras ra-
ciais das redes sociais e da interação cotidiana e influencia a credibilidade
das ideologias raciais, bem como as decisões dos funcionários do Estado
e dos empregadores. Neste livro, o foco será principalmente no habitus e
nas interações face a face, em boa parte porque o habitus racial tem um

OD
papel essencial na reprodução do racismo entre gerações e em situações
de mudança institucional, e porque as interações face a face revelam as
categorias de percepção e as disposições comportamentais do habitus. A
resistência individual ao racismo e as tentativas de recolocar os subordina-
dos no “seu lugar” também ficam mais evidentes nas interações face a face.
PR
Em situações de mudança institucional, como a abolição brasileira,
os velhos habitus raciais de distintos grupos sociais se encontram em um
contexto parcialmente transformado. No interior paulista, o habitus racial
dos fazendeiros e das outras elites locais, formado durante a vigência da
escravidão, e obviamente com variações individuais, continuava depois
RE
da abolição, influenciando a resposta dessas elites às reivindicações dos
libertos. O habitus dos ex-escravos também havia se formado na época da
escravidão e influenciava seus entendimentos da liberdade e suas formas
de resistência ao racismo. Os imigrantes europeus tinham ainda outro
habitus, relativamente pouco racializado, que encontrou um contexto
A

altamente racializado, embora os imigrantes possam ter interpretado as


divisões raciais mediante categorias de percepção formadas na sua expe-
riência com outras formas de dominação social no seu lugar de origem
DA

– como, por exemplo, as relações entre senhores e camponeses. Este livro


desenvolve o argumento de que os imigrantes internalizaram o habitus
racial brasileiro de forma contraditória, às vezes solidarizando-se com os
negros e às vezes adotando posturas abertamente racistas. Entretanto, em
longo prazo, foi o racismo que predominou entre os imigrantes, por moti-
BI

vos explicados no resto deste livro.


As consequências desses encontros de diferentes habitus em um
contexto diferente daquele em que eles foram internalizados não são to-
talmente previsíveis. O habitus sempre inclui elementos contraditórios, e
OI

a interação de vários tipos de agentes ao longo do tempo resulta na combi-


nação complexa de múltiplos processos sociais. Com a transformação par-
cial do contexto institucional, as consequências da ação se tornam menos
PR

certas ainda para todos os envolvidos, em boa parte porque as expectativas

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A REPRODUÇÃO DO RACISMO

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e estratégias das diferentes categorias de atores mudam de maneiras im-
previstas ou até incompreensíveis pelos outros. Os resultados dessas inte-
rações complexas em médio e longo prazo dependem bastante da política


e da natureza das redes sociais, que organizam e direcionam as propensões
dos habitus. Entretanto, a natureza das redes e da política também está
em fluxo em situações de mudança social e institucional, como a abolição
e a imigração em massa para o estado de São Paulo. O desafio central aqui
é entender como esses processos complexos resultaram na reprodução do

OD
racismo, muitas vezes em novas formas, e a perpetuação das desigualdades
raciais depois da abolição.
A complexidade da situação e a imprevisibilidade dos resultados
excluem a possibilidade de que os resultados fossem planejados com al-
gum grau de precisão pelas elites intelectuais e políticas que idealizavam

PR
a abolição e a imigração subvencionada. Entretanto, os projetos das elites
certamente são pertinentes ao entendimento do que aconteceu depois da
abolição. Fica claro que as elites paulistas nunca contemplaram a possibi-
lidade da igualdade plena para a população negra. O que mais queriam era
a incorporação dos libertos e outros negros ao mercado de trabalho como
RE
mão de obra barata e subserviente. Mas muitos negros se recusaram a co-
laborar com esse projeto, reivindicando autonomia, dignidade e igualdade
com os brancos. Em resposta, os fazendeiros, a polícia, os jornalistas e a
população branca em geral desenvolveram um conjunto de novos estereó-
tipos racistas. Central a esse processo era a classificação, pelo habitus racial
A

dos brancos, da resistência ao racismo e das reivindicações de negros como


despropositadas, impudentes, inadequadas e traiçoeiras.
As elites também queriam que os imigrantes servissem como mão
DA

de obra barata e submissa. Entretanto, em longo prazo, a resistência dos


imigrantes aos abusos dos fazendeiros e da polícia se provou mais efi-
caz que aquela dos negros. Este livro desenvolve o argumento de que
esse sucesso relativo era consequência principalmente da natureza das
redes sociais dos imigrantes, que eram mais densas, em função do nú-
BI

mero maior de imigrantes, e contavam com a participação de uma elite


imigrante. A resistência dos imigrantes também recebeu o apoio dessas
elites e dos representantes de Estados europeus, vantagens inexistentes
no caso dos negros. Além do mais, os imigrantes pobres internalizaram
OI

as representações negativas dos negros e participaram ativamente nos


esforços dos brancos para manter os negros no “seu lugar”, em parte para
se distinguir dos negros e reivindicar tratamento melhor.
PR



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KARL MONSMA

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Um dos resultados desses processos foi certo deslocamento das
fronteiras étnicas, com a redefinição dos grupos étnicos existentes e a
reconfiguração das relações entre eles. No início da imigração em massa,


havia bastante convivência entre todos os grupos étnicos e raciais no Oeste
paulista, mas com o passar do tempo a fronteira entre negros e todos os
grupos “brancos” ficou mais nítida. No primeiro momento, os europeus e
seus descendentes assumiram identidades mais amplas. As identidades re-
gionais viraram nacionais, processo particularmente evidente no caso dos

OD
imigrantes da Itália, que inicialmente se identificavam principalmente com
a região de origem, mas eram categorizados como “italianos” pelos brasi-
leiros, e cujos filhos geralmente aceitavam essa identidade mais ampla.109
Depois, as diferenças entre as etnicidades europeias foram diminuindo em
importância, ao mesmo tempo em que as divisões raciais entre brancos e
negros ganhavam saliência.
PR
RE
A
DA
BI
OI
PR

109 Trento (1989).

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