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Aos 16...
Eu leio romances, estudo pouco e penso em bailes, não consta que faça mal, nem que se perca
o juízo por isso.
MARTA CAIRES / MADEIRA / 04 DEZ 2016 / 02:00 H.

A cabeça dói e eu fecho os olhos, é para não esquecer a noite e o baile, ali no Casino, entre jardins de relva, escadarias de
mármore e cromados, luzes na pista de dança e mesinhas para bebericar vodca com laranja. E isso vale o corpo dorido, os pés
cansados dos sapatos de salto, que dancei as músicas quase todas e ainda fumei dois cigarros como se fosse uma artista de
cinema. O meu baile, o primeiro de todos que os da paróquia nos tempos do grupo de jovens não contam.

E deixo-me ficar no quintal, é dia feriado e a minha mãe ainda não começou as limpezas do Natal e também não é dia de ir à
missa. A tarde é minha e eu estico a sensação, aquela liberdade de andar pela cidade sem pensar nas horas e nos autocarros,
sem medo de um sermão e com a minha mãe de sorriso largo, quase tão feliz como eu. Acho que até chorou na Sé quando
fomos tirar fotografias, mas as mães são estranhas.

É que tenho 16 anos e não me ocorre que as lágrimas sejam de orgulho, nem que aquela mulher pequenina e grisalha veja em
mim mais do eu mesma. E que algures, no meu fato e nos meus sapatos, no meu cabelo cortado à moda, no batom e no laço
se veja a ela, aos sonhos que tinha e lhe tiraram porque era rapariga e pobre e, nos anos 40, as raparigas pobres do Laranjal
não estudavam. Só que isso eu não sei, nem sequer entendo como é mais bonito do que o meu baile e todas as músicas que
dancei na pista.

A minha mãe é uma senhora a caminho dos 52 anos e eu ensaio os meus primeiros passos no mundo, tenho uma vida e vejo
um caminho pela frente que me parece claro. Não há como me enganar, tenho tudo decidido da roupa que vou comprar no
Natal aos estudos em Lisboa, essa cidade imensa da qual tenho uma vaga ideia da ponte, do Cristo Rei e da Torre de Belém.
É o que dá na televisão e chega-me, o resto não me mete medo.

E depois falta tanto, este ano e o outro, os exames, a minha mãe e as minhas tias, que são sempre difíceis de convencer e têm
opinião a propósito de tudo. Do desenho do meu fato, do tamanho dos saltos, das calças de ganga e das camisas largas
unissexo, do cabelo à frente dos olhos, do tempo que passo a ler e a escrever. Um dia ainda me dá um esgotamento, é o que
se diz das pessoas que estudam muito, parece que os doidos são pessoas inteligentes com os cérebros queimados.

Eu leio romances, estudo pouco e penso em bailes, não consta que faça mal, nem que se perca o juízo por isso. A minha mãe
pode continuar feliz, com aquele sorriso que nem um sermão me passou por ter chegado às quatro da manhã. Um dia não são
dias e o meu irmão foi comigo. E eu tenho 16 anos, percebo pouco de pessoas e menos ainda da minha mãe. Vou lá entender
as linhas em que se cosem as emoções da minha mãe, como vive e sente.

O que sei eu, com a cabeça a doer e dos pés cansados, daquele orgulho, daquela estranha capacidade de viver a minha
felicidade, o meu sucesso, os meus desastres e as minhas mágoas como se fossem dela, como se os meus sonhos fossem
também seus. Eu preciso de tempo, dos anos que ainda não tenho para compreender como é bonito, como é bom e como faz
falta.

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