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Um lugar, muitas memórias


A cidade mudava com as estações e nós com ela. O sol trazia as esplanadas e a feira do Livro,
o frio apelava ao cinema e a jantares em casa
MARTA CAIRES / 05 MAR 2017 / 02:00 H.

O frio demorava a passar, eu sabia isso desde que aterrara em Lisboa com uma mala de viagem esfolada nos cantos e
inspirara o ar gelado da grande cidade. O frio não se dissipava, não abrandava com sol ou esmorecia ao meio-dia, mas tinha
charme, uma elegância de casacos e roupas quentes. E, embora eu sonhasse muitas vezes com o aconchego morno do
Funchal, era bom sair do metro e fazer o caminho até a faculdade metida dentro de camisolas de gola alta e um blazer aos
quadrados.

O mundo podia ser diferente e bom, podia ser frio e elegante, as avenidas largas e as ruas cheias de desconhecidos. Ali,
enquanto parava no semáforo da 5 de Outubro, ninguém sabia quem eu era, nem que tinha uma casa na curva e um quintal
com duas laranjeiras, lá longe, a meio do Atlântico, numa ilha sem Inverno. E que na fazenda do meu avô havia bananeiras e
vinha, dava ameixas no Verão e nêsperas pela Páscoa. Ali, eu era uma miúda de cabelo pelas costas, óculos redondos e livros
debaixo do braço a caminho das aulas.

E tinha uma história como as senhoras de salto alto e meias de vidro a correr para o escritório, os homens engravatados do
BNU, aquele prédio berrante e cheio de cromados, os empregados do Continental, onde íamos tomar café depois do jantar na
cantina. A minha talvez fosse mais remota, mais estranha e exótica, uma ilha é um território encantado para quem a vê à
distância, para quem a imagina quente, ensolarada e verdejante. E talvez fosse naqueles anos, quando as férias ainda eram
um luxo e as viagens de avião uma extravagância.

Eu tinha outra ideia. A minha ilha não me parecia encantada e tinha sonhado muito com a viagem, com atravessar o mar e
encontrar outros lugares. A minha adolescência em cima do terraço a ver a linha do horizonte ou a decorar os nomes dos
países, rios e oceanos no globo terrestre das Selecções fizeram-me desejar muito o mundo, esse mundo que estava para além
do que eu via. E Lisboa dava-me pela primeira vez um pedaço desse mundo dos mapas. Ali o frio demorava a passar, a
Primavera chegava de mansinho e o Verão era quente. E o Outono trazia o cheiro a castanhas assadas.

A cidade mudava com as estações e nós com ela. O sol trazia as esplanadas e a feira do Livro, o frio apelava ao cinema, a
jantares em casa para esquecer a cantina e aquecer o coração, mas Lisboa não era apenas isso: um lugar novo, uma porta
aberta para o mundo, dos passeios de comboio a ver mais terras e mais gente, a provar a comida e ouvir as histórias dos
outros. Das mães das amigas que me levavam com elas ao fim-de-semana para visitar as terras de onde vinham, dos amigos
que lá tinham, a contar um pouco sobre os percursos até chegar a Lisboa.

Todos tinham uma história, muitos sonhos e todos estavam, pelos muitos acasos de que se faz a vida, em Lisboa naqueles
primeiros anos da década de 90, quando ainda se mandavam cartas pelo correio e alugavam cassetes no clube de vídeo. Era
um tempo diferente, muito diferente que, às vezes até custa a explicar a quem não o viveu. E eu estava longe de casa pela
primeira vez, tinha 20 anos e era livre, pois Lisboa é, além de todas as outras memórias que guardo, o lugar onde fui dona da
minha vida por inteiro pela primeira vez.

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