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Táticas militares exóticas do mundo contemporâneo

por Andrew Korybko [*]


entrevistado por Eleonora e Rodolfo Lucena

1. O que é Guerra Híbrida?

Desde a publicação original de meu livro em 2015, expandi a definição para incluir o
seguinte:

"Guerras Híbridas são conflitos de identidade provocados externamente, os quais


exploram diferenças históricas, étnicas, religiosas, socioeconômicas e geográficas que
ocorrem por meio de estados de trânsição geoestratégica, através da transição em fases,
de "Revoluções Coloridas" (ou seja, revoluções contra Governos que não tem
alinhamento ideológico com os Estados Unidos e a consequente instauração de governo
pró-ocidental) para Guerras Não Convencionais, objetivando perturbar, controlar ou
influenciar projetos transnacionais e multipolares de conexão de infraestrutura, através de
Alteração de Regime, Mudança de Regime, e/ou Reinicialização de Regime (no original,
R-TCR: Regime Tweaking, Regime Change, Regime Reboot ).

Em resumo, o que isto significa é que países como os EUA tomam vantagem dos pontos
vulneráveis na identidade preexistente de um alvo para transformar em arma uma,
algumas, ou todas as seis diferenças acima citadas, de modo a provocar um movimento
de protesto em grande escala, que possa então ser apropriado, ou por eles direcionado
para propósitos políticos. Fracassos nesses movimentos fazem com que alguns dos
participantes acabem voltando-se ao terrorismo,
táticas de guerrilha, e outras formas de conflito não
convencional contra o Estado. Tornou-se frequente,
pelo menos no Hemisfério Oriental, que esses
fenômenos manufaturados tenham o efeito de
diminuir a viabilidade de um dos muitos projetos de
Rota da Seda da China (uma rota comercial de
acesso ao mercado consumidor chinês), ao coagir
o estado alvejado a que aceite compromissos
políticos ("Alteração de Regime"), um novo governo
("Mudança de Regime"), e/ou reforma
constitucional "descentralizada" ("Reinicialização de
Regime"), que às vezes pode levar a uma
"balcanização".

2. Seu livro descreve Guerras Híbridas como


"caos gerenciado". Como isso se constrói?

Através do estudo detalhado da sociedade do


Estado alvo e das tendências gerais da natureza
humana (auxiliadas por antropologia, sociologia,
psicologia e outras pesquisas) é possível obter uma
noção de como tudo se opera no mundo
"naturalmente". Armados com esse insight, os praticantes de Guerra Híbrida podem
prever com precisão quais "botões apertar" através de provocações pré-planejadas, para
incitar reações esperadas de seus alvos, tudo com a intenção de perturbar o status quo
através do início de processos autossustentáveis de desestabilização manipulados
externamente. O objetivo final é produzir o maior efeito possível com o menor esforço
possível, explorando então os eventos rápidos e incerteza resultantes para realizar seus
próprios planos políticos.

3. O livro descreve os EUA como um propulsor desses movimentos. Por quê?

Os EUA têm interesses globais em razão de sua hegemonia global, que é bastante
presente mas ainda assim está diminuindo. Décadas de experiência operando em todos
os continentes dotaram os EUA de uma compreensão profunda da situação doméstica de
praticamente todos os países. Não só é muito mais fácil para os EUA iniciar Guerras
Híbridas do tipo que corresponde ao meu modelo, porém, mais importante ainda, os EUA
têm a motivação para fazê-lo, o que é algo que muitos dos outros Grandes Poderes não
têm, quando se diz respeito a países fora de suas "esferas de influência" regionais.

4. O Brasil tornou-se alvo de Guerra Híbrida após a descoberta do petróleo pré-sal?

Em meu ponto de vista, o Brasil foi alvo desde o momento em que Lula foi eleito, com seu
deslocamento para a multipolaridade, mas a subsequente descoberta das reservas de
pré-sal adicionou um novo e definitivo ímpeto à Guerra Híbrida dos EUA contra o Brasil,
embora apenas porque alguns desses recursos seriam vendidos para a China. Se Lula
tivesse feito um acordo com os EUA para provê-los com acesso irrestrito aos depósitos
pré-sal e também permitisse a Washington usar isto como vantagem indireta no controle
do acesso à China a esses depósitos, aí os EUA não teriam muita motivação para
continuar uma Guerra Híbrida contra o Brasil, ou esta teria sido mais leve, ou teria levado
mais tempo para se instaurar. Ao invés disso, graças à postura independente de Lula
quanto aos depósitos do pré-sal e em muitas outras questões, ele e sua sucessora foram
vistos como alvos "legítimos" pelos EUA, porque Washington temia que eles acelerariam
seu declínio hegemônico no hemisfério, se não os impedissem o mais rápido possível.

5. O fato de que o Brasil participou ativamente do BRICS junto a Rússia, Índia,


China e África do Sul foi também razão para ser alvo de Guerra Híbrida?

Sim, porém mais no sentido simbólico. Neste caso, minha opinião pessoal é de que o
BRICS, embora seja uma plataforma bastante promissora, não chegou a alcançar seu
potencial total, graças à rivalidade entre China e Índia, manipulada pelos EUA, o que
impediu sua efetividade geral antes mesmo que a primeira fase da Guerra Híbrida no
Brasil tivesse sucesso em depor a Presidenta Rousseff. A remoção de Dilma e o "golpe
constitucional" contra o presidente sul-africano Zuma combinaram para encolher o BRICS
à tríade original, o RIC, que em si é bastante dividido entre China e Índia (a despeito das
declarações oficiais contrárias de seus governos), com a Rússia exercendo um papel de
"equilíbrio" entre elas. Para todas as intenções e propósitos, o BRICS naõ existe mais de
verdade, exceto como um clube de conversa anual, e uma memória de sonhos
despedaçados para muitos.

6. O livro fala bastante sobre os casos da Síria e da Ucrânia e diz que esses
modelos podem ser reproduzidos em outros lugares. Este modelo poderia ser
reproduzido no Brasil?
Teoricamente, sim. Porém, não penso que seja tão provável, pois as dimensões de
contrariedade à Rota de Seda na Guerra Híbrida, que formam a principal motivação
destes conflitos cinéticos, são em sua maior parte aplicáveis ao singular ambiente
operacional do Hemisfério Oriental (Afro-Eurásia), que é mais suscetível a conflitos de
identidade externamente manipulados desse tipo. Isto dito, a engenharia social,
precondicionamento político e as campanhas de guerra psicológica que formam a base
das Revoluções Coloridas (a primeira metade não-cinética das Guerras Híbridas) são
definitivamente reprodutíveis em todo o mundo, em especial na era atual das mídias
sociais interconectadas.

7. O livro também lida com a "Primavera Árabe". Analistas têm apontado que o
Brasil tem sido alvo de uma Guerra Híbrida desde 2013, quando um estranho
movimento começou a surgir no país, através da internet. Isso faz sentido?

Bastante, porque a primeira fase organizacional ativa das Guerras Híbridas de hoje em dia
começa na internet, onde os praticantes do movimento usam a web para obter
informações importantes sobre seus alvos antes de engajar-se com eles de forma direta
ou indireta, através de campanhas informacionais com alvos que apelem mais
efetivamente a seus interesses ou necessidades. Isto é cada vez mais descoberto através
de análises de "Big Data", como o que a Cambridge Analytica é acusada de fazer.
Movimentos sociopolíticos começam a brotar online muito mais que nas ruas, como
costumavam antes, porque as pessoas estão mais confortáveis em engajar-se através da
conveniência da tela do celular, e no momento em que elas quiserem, o que é diferente do
trabalho físico que era necessário em reuniões presenciais e atividades do tipo. Hoje em
dia, tudo que eles têm de fazer é checar as últimas notícias compartilhadas num grupo de
Facebook ou WhatsApp, e podem fazer isso quando tiverem vontade.

8. Ocorreu uma avalanche de fake news durante a campanha eleitoral,


especialmente através de grupos do WhatsApp. Estamos sendo vítimas de uma
Guerra Híbrida?

Sim, está acontecendo uma Guerra Híbrida bastante intensa no Brasil agora e isto afeta
cada faceta da vida dos indíviduos, desde o que eles leem nas mídias sociais
(informações reais, fake, ou manipuladas) até o que ouvem nas ruas. Players externos
estão tentando precondicionar de forma bastante sutil o público nos últimos anos para que
se voltem contra o Partido dos Trabalhadores, após a "Operação Lavajato", que foi
assistida pela NSA, operação essa que tomou "vida própria" através do modelo de ciclos
de desestabilização autossustentáveis que descrevi antes. Isto forçou o Partido dos
Trabalhadores a retroceder e defender sua integridade, o que por sua vez levou a uma
reação ainda mais feroz daqueles que estavam tentando derrubá–lo. O Brasil está metido
em Guerra Híbrida por tanto tempo agora, que não se consegue perceber que cada
fragmento de informação acessado de uma forma ou de outra é conectado a esta
campanha incessante.

9. Qual o objetivo desta Guerra Híbrida, e quem está por trás dela? Jair Bolsonaro?

Não acho que Bolsonaro tenha sido o progenitor desta Guerra Híbrida, mas ao invés
disso, que as mentes por trás dela nos EUA já tinham um plano há muito tempo para
moldar as condições sociopolíticas do país de tal forma que um candidato "cavalo negro"
(termo mais comum na língua inglesa para um candidato eleito de forma inesperada ou
que ascendeu subitamente) que poderia subir ao poder com facilidade, e então
sistematicamente desmantelar tudo que o Partido dos Trabalhadores alcançou durante
seu tempo no poder. A partir de uma perspectiva externa, observando e sabendo o que se
sabe agora de antemão sobre a Operação Lavajato, a inteligência americana
provavelmente concluiu muito antes que Bolsonaro seria o melhor candidato possível
devido a seu histórico de pronunciamentos políticos controversos, que se alinha com os
interesses gerais americanos para com o país. Também ajudou o fato de que ele não foi
envolvido em quaisquer dos escândalos anticorrupção dos últimos anos, sobre os quais
os EUA teriam sabido de antemão, sabendo-se como a NSA participa da procura de
"indícios" que então catalizaram a purga política no país.

Com o PT fora do poder e mesmo com muitos dos usurpadores e seus aliados tendo sido
provados como igualmente corruptos, se não mais corrutpos ainda, o palco estava pronto
para que o candidato "cavalo negro" entrasse em cena e capturasse a imaginação de
muitos que foram precondicionados a odiar todo os políticos convencionais após a
Operação Lavajato (e especialmente políticos do PT, que levaram a maior parte da culpa).
Também buscam de modo cada vez mais desesperado que medidas drásticas sejam
implementadas para salvá-los da onda de crimes, ou pelo menos dê a eles uma chance
de luta para salvar-se, através da liberação das armas prometida por Bolsonaro. Meu
ponto de vista é que os EUA trabalharam muito duro para facilitar a ascensão de
Bolsonaro e estão ajudando-o em cada passo do caminho, algo que até mesmo ele pode
não ter percebido antes, mas que agora quase com toda certeza deve estar ciente de
forma direta, pelas próprias forças que consideram a probabilidade de sua vitória no
segundo turno.
10. Qual a diferença do uso de Facebook e Whatsapp no contexto de Guerras
Híbridas?

O WhatsApp é mais instantâneo e impulsivo, enquanto o Facebook é mais organizado e


metódico. O primeiro é geralmente usado para o envio de pequenos fragmentos de
informação e a rápida organização de multidões bem grandes, enquanto o segundo tem
melhor uso em planejamento organizacional profundo e no controle de multidões a longo
prazo. Basicamente, são dois lados da mesma moeda, e caminham lado a lado quando se
pensa no aspecto tático das Revoluções Coloridas.

11. O livro foi originalmente publicado em 2015. O que mudou desde a primeira
edição? As Guerras Híbridas tornaram-se mais sofisticadas?

Como respondi na primeira pergunta, expandi e expliquei mais cientificamente a definição


de Guerra Híbrida, incluindo seis das categorias identitárias mais populares que são
alvejadas, bem como os objetivos de Alteração, Mudança e Reinicilização de Regime, que
são objetivos finais importantes, os quais deve-se sempre ter em mente para melhor
compreender toda a questão desses conflitos em relação a qualquer que seja o governo
alvo. As táticas de engenharia social e precondicionamento político das Revoluções
Coloridas (a primeira metade da Guerra Híbrida) foram reveladas como muito mais
sofisticadas após o vazamento sobre como a Cambridge Analytica esteve colhendo e
analisando dados de usuários de mídias sociais para obter uma percepção sobre-humana
do que as pessoas nos países alvos estão interessadas, suas necessidades, e como
melhor manipulá-las. Isto significa que o planejamento da Guerra Híbrida entrou numa era
completamente nova, porém apenas em países onde a maioria da população (ou pelo
menos aquelas com quaisquer das seis categorias identitárias mencionadas antes, que os
EUA desejam alvejar) utilizam mídias sociais, o que não é o caso em boa parte da África,
que estão gradualmente se tornando campo de batalha de Guerras Híbridas contra os
projetos de Rota da Seda da China.

12. Como devemos reagir a Guerras Híbridas?

Depende no caso de atores do Estado ou não Estado, e se no segundo caso, pró ou


contra o Estado. O Estado pode restringir ou monitorar mídias sociais, embora a primeira
ação mencionada possa inadvertidamente despertar a fúria da população, e sem querer
confirmar as suspeitas do povo de que o governo está suprimindo seu "direito de livre
expressão" porque está com "medo" deles, o que pode ser verdade ou não. Atores que
não sejam do Estado, como o cidadão comum, precisam aprender pensamento crítico
para diferenciar entre notícias reais, fake news, e notícias manipuladas, bem como a
diferença entre colunas não editoriais, análises, e simples reportagem jornalística. Quanto
aos partidos de oposição, tanto sistêmicos quanto não sistêmicos, estes precisam
engajar-se em suas próprias Guerras Híbridas, seja de modo ofensivo ou defensivo,
embora sempre seja melhor que estejam do lado da verdade ao invés de valer-se de
mentiras, porque a primeira é bem mais efetiva que a segunda, e ser apanhado mentindo
pode diminuir a confiança da audiência nesses grupos. Da mesma forma, todos os lados
da eterna Guerra Híbrida (que se está tornando parte da vida cotidiana) precisam expor as
mentiras dos outros.

13. Você escreveu sobre ações dos EUA mas não cita movimentos similares da
parte da Rússia. Porém, eles não existem? As acusações contra a Rússia nesta área
(em especial quanto às eleições americanas) não são verdadeiras?

Meu livro trata primordialmente sobre o uso de um modelo específico que transiciona do
encorajamento externo de atividade antiestatal não-cinética para atividades cinéticas
(Revoluções Coloridas não-violentas transformando-se em Guerras Não Convencionais
violentas) e almeja provar a existência de um método nunca antes descoberto de
desestabilização estatal, posto em prática pelos EUA para propósitos geopolíticos. É
importante lembrar que o livro trata de Revoluções Coloridas transformando-se em
Guerras Não Convencionais, a origem destas duas, a fase de transição, e o resultado
destes ciclos auto-sustentáveis de inquietude apoiados por partes estrangeiras. As
Guerras Híbridas não são apenas operações de gerenciamento de percepção ou infowars,
coisa que todo país do mundo faz e até mesmo muitos atores corporativos (embora os
últimos não o façam por razões políticas, mas simplesmente para mercadejar seus
serviços ou produtos, às vezes às custas dos competidores). As Guerras Híbridas também
nem sempre são mantidas por atores estatais, ou mesmo por atores não estatais
conduzindo uma certa atividade em prol do Estado.

É minha visão pessoal que as acusações contra a Rússia não são relevantes para o
modelo de Guerra Híbrida elaborada em meu livro, porque nunca houve nenhuma
intenção séria de organizar uma Revolução Colorida ou Guerra Não Convencional. Mais
ainda, todas as acusações apontam para atividades bem conhecidas sendo conduzidas
por um ator não estatal, que pode ou não ter agido em prol do Estado, porém jamais se
confirmou uma conexão clara com o Kremlim. Outro ponto importante a se ter em mente é
que mesmo se a cor geral dessas acusações for verdadeiro, o que eu duvido,
representaria apenas uma forma bem básica de guerra de informações, coisa que é
comparativamente mais crua e de escopo bem menor do que a União Soviética conduziu
durante a Guerra Fria, o que mais uma vez sugere que deve ter havido engajamento de
um ator não estatal de fato independente do governo russo e suas agências de
inteligência.

Em todo caso, a questão foi artificialmente politizada, porque já foi provado que não houve
impacto no resultado das eleições, mas foi algo transformado em arma pelos oponentes
de Trump no "Estado Profundo" (burocracias diplomáticas, inteligência e exército
permanente) e seus cúmplices públicos (sejam "idiotas úteis" ou colaboradores
voluntários) acadêmicos, midiáticos e em outras comunidades (incluindo-se aí cidadãos
comuns) para "deslegitimar" sua vitória e pressioná-lo a fazer Alteração de Regime
(concessões políticas), Mudança de Regime (renúncia ou impeachment), ou
Reinicialização de Regime (a reforma do sistema de colégio eleitoral e outras medidas do
gênero). Pode-se dizer que as acusações exageradas de "interferência russa" estão
sendo usadas como importante armamento de Guerra Híbrida contra Trump, como parte
das guerras de "Estado Profundo" nos EUA, o que pode ser um futuro estudo de caso
interessante no contexto de meu modelo.

19/Outunbro/2010

A edição brasileira de Guerras híbridas, da editora Expressão Popular, pode ser


adquirida aqui e a edição em inglês pode ser descarregada aqui (para descarregar
clique com o botão direito do rato e faça Save As...)

O original encontra-se em eurasiafuture.com/... e a versão brasileira em


tutameia.jor.br/...

Esta entrevista encontra-se em https://resistir.info/ .


07/Nov/18

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