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Universidade Estadual de Campinas

Aline Campoli

A evolução das tecnologias big data e o indivíduo:


Em busca de um ponto de equilíbrio.

Campinas, 2017

1
RESUMO:

As capacidades de obtenção, registro, armazenagem e interpretação de dados estão no


cerne do desenvolvimento humano desde os primórdios das civilizações, antes mesmo
da criação da escrita. Registros de informações sempre foram utilizados com finalidades
militares e tributárias, servindo como base para o progresso das cidades, populações e
tecnologias, assim como para a vigilância e controle das mesmas.

A evolução das técnicas de informação e comunicação possibilitou o aprimoramento


desses mecanismos, e modelou a sociedade contemporânea informatizada que agora
convive com o avanço das aplicações Big Data e Internet das Coisas, em um cenário
onde a extração massiva de dados produz uma nova lógica de acumulação, na qual a
informação sobre seus usuários é à base de geração de valor. (ZUBOFF, 2015)

Incríveis possibilidades advindas do emprego de tais técnicas são amplamente


divulgadas através de correntes de informações que giram nos meios de comunicação
amparados por discursos que pregam a neutralidade da ciência e a inevitabilidade da
tecnologia, e nos quais as críticas geralmente limitam-se a questões relacionadas à
privacidade, segurança e controle de fraudes.

Essa pesquisa pretende investigar a percepção do usuário comum de internet acerca dos
riscos que a coleta e utilização indiscriminada de dados de navegação representam em
relação à autonomia e as liberdades individuais, no momento em que a identificação de
padrões de comportamento por algoritmos preditivos promete antecipar tendências, e
com isso minimizar riscos econômicos e políticos. (ZUBOFF, 2015)

INTRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA:

As novas tecnologias de comunicação e informação que se propagaram desde o


surgimento da rede mundial de computadores parecem ter colaborado para a criação da
“aldeia global tecnológica” profetizada por McLuhan, mas não concretizou os ideais de
emancipação individual e livre mercado almejados pelo que Barbrook definiu como “a
excêntrica união de artistas, hackers e empreendedores" que originou a Ideologia
Californiana.

2
“Esta nova fé emergiu de uma bizarra fusão da boemia cultural de São
Francisco com as indústrias de alta tecnologia do Vale do Silício.
Promovida em revistas, livros, programas de televisão, páginas da rede,
grupos de notícias e conferências via Internet, a Ideologia Californiana
promiscuamente combina o espírito desgarrado dos hippies e o zelo
empreendedor dos yuppies. Este amálgama de opostos foi atingido
através de uma profunda fé no potencial emancipador das novas
tecnologias da informação. Na utopia digital, todos vão ser ligados e
também ricos.” (BARBROOK, 1996).

Ainda que não tenha atingido a utopia do livre mercado, nem extinguido as
desigualdades entre classes que esse grupo multifacetado aspirava, a popularização da
rede revolucionou a clássica relação unilateral emissor-mensagem-receptor; no
ciberespaço não há mais exclusividade de protagonismo do emissor, ou passividade do
receptor, todos podem ser emissores e todos são receptores, “receptores não são mais
anônimos, passivos e isolados uns dos outros” (LEVY, 1999).

Quando Levy fez essa declaração em 1999 a Google começava a se destacar pela
qualidade de seu mecanismo de busca e por sua filosofia baseada no slogan “Don’t be
evil”. Para conseguir receitas sem cobrar de seus usuários, a empresa criou em 2002 um
sistema próprio de venda de anúncios, o Adwords, que foi lançado com a promessa de
fornecer anúncios relevantes e úteis, ao invés de intrusivos e irritantes1 (atualmente os
anúncios não são exibidos apenas na página de busca da Google, mas também em
qualquer website integrado ao Adsense2). Em 19 anos a empresa especializou-se em um
modelo de negócio que direciona as informações dos seus mais de 2,2bilhões de
usuários3, para os anúncios patrocinados.

Os resultados personalizados espalharam-se nos mais diversos sites e aplicações da web


influenciando não apenas escolhas comerciais, mas também aspectos da vida social e
privada do cidadão comum. Um artigo4 publicado após a vitória de Donald Trump nos

1
Informação retirada do Manual do Acionista do Google, lançado em 2004 quando a empresa entrou no
mercado de ações: https://abc.xyz/investor/founders-letters/2004/ipo-letter.html
2
O Adsense que permite integrar websites a plataforma de anúncios do Google, que paga uma parte do
valor arrecadado com a publicidade para o dono do website.
3
Informação da Bussiness Insiders citada em matéria da BBC Brasil:
http://www.bbc.com/portuguese/geral-36833505
4
Big Data: Toda democracia será manipulada? http://outraspalavras.net/posts/big-data-toda-
democracia-sera-manipulada/

3
EUA descreve controversas estratégias baseadas em análises Big Data, aplicadas na
campanha do republicano pela empresa Cambridge Analytcs, a mesma que fez a
campanha do Brexit na Inglaterra. “Estamos muito felizes que nossa abordagem
revolucionária de comunicação dirigida por dados tenha desempenhado papel tão
essencial na extraordinária vitória do presidente eleito Trump”- comunicado a imprensa
de Alexander James Ashburner Nix - CEO da Cambridge Analytica, logo após a eleição
do republicano.

As possibilidades de lucros e controle comportamental que essas análises representam


vem provocando uma verdadeira corrida em busca da acumulação massiva de dados de
navegação e fomentando a popularização da Internet das Coisas5, que promete
potencializar incrivelmente a oferta desses dados.

Desenha-se um futuro onde algoritmos aplicados aos dados pessoais poderão apontar
para a probabilidade de um ataque cardíaco ou a incapacidade de pagamento de um
empréstimo e com isso influenciar os valores cobrados pelos serviços, com base em
julgamentos feitos pela máquina. (SCHÖNBERGER, 2013).

As consequências desse potencial de controle sobre o comportamento das pessoas são


analisadas também em termos de governamentalidade algorítmica. Os usos particulares
de informações capturadas na navegação em rede nas operações de data mining não são
geradores de espaço público ou privado; a “personalização” de serviços e produtos,
representa a colonização do espaço público por uma esfera privada, levando-nos a temer
que os modelos de filtragem levem a formas de imunização informacional que
favoreçam a radicalização das opiniões e o desaparecimento da experiência comum.
(ROUVROY, 2015).

“Contrariamente ao que dão a entender as metáforas orgânicas utilizadas


notadamente pela IBM para promovê-los enquanto as próximas etapas
“naturais” no desenvolvimento das tecnologias da informação, da
comunicação e da rede e enquanto elementos quase-naturais da evolução
da própria espécie humana, nós explicitamos os componentes ideológicos
que acompanham a emergência da informática ubíqua, da inteligência
ambiente ou da computação autônoma. Mesmo que, a partir deste

5
Ver entrevista sobre Plano Nacional da Internet das Coisas: http://computerworld.com.br/plano-
nacional-de-internet-das-coisas-dara-enfase-formacao-de-mao-de-obra - acesso em 03/12/16

4
momento, as máquinas se tornem cada vez mais “autônomas” e
“inteligentes”, elas continuam, certamente, dependentes de seu design
inicial, das intenções, scripts ou cenários em função dos quais elas foram
imaginadas. Elas são, desde sua concepção (e quaisquer que sejam as
formas que elas assumam em seguida), portadoras de visões do mundo,
expectativas e projeções conscientes ou inconscientes de seus
conceituadores.” (Rouvroy, 2011).

Essa nova lógica de acumulação protagonizada pelo Google e replicada por outros
gigantes do Big Data foi denominada por Shoshana Zuboff como uma nova forma de
capitalismo, o “capitalismo de vigilância”. A autora aponta para a dificuldade que a
maioria dos artigos tem em descrever o que é Big Data, sua teoria é que a origem desse
problema está na tentativa de defini-lo como um objeto tecnológico, resultado ou
capacidade.

“Big Data não é uma tecnologia ou um efeito inevitável da tecnologia.


Não é um processo autônomo, como Schimidt e outros tentam nos fazer
acreditar. Ele se origina no social, e é aí que precisamos encontrá-lo e
conhecê-lo. Nesse artigo eu exploro a ideia de que “Big Data” é acima de
tudo o componente fundamental de uma nova lógica de acumulação
profundamente intencional e altamente consequente, que batizei de
“capitalismo de vigilância”6. (ZUBOFF, 2015).

O conceito de “capitalismo de vigilância” se apropria da predição e modelagem do


comportamento humano como meio de controle de mercado e produção de lucro através
de um sistema de vigilância massiva apelidado de Big Other, em uma brilhante analogia
com o governante virtual Big Brother, cujos poderes sobre humanos podiam detectar
não apenas as ações, mas também os sentimentos dos habitantes da fictícia Oceania,
retratada na obra 1984, de George Orwell.

No mundo real, estão sendo desenvolvidas pesquisas com o objetivo de identificar


comportamentos inatos e o poder que a análise desses dados representa assusta até
6
Tradução livre do original: “Big data, I argue, is not a technology or an inevitable technology effect. It is
not an autonomous process, as Schmidt and others would have us think. It originates in the social, and it
is there that we must find it and know it. In this article I explore the proposition that ‘big data’ is above
all the foundational component in a deeply intentional and highly consequential new logic of
accumulation that I call surveil- lance capitalism.”

5
mesmo seus idealizadores, a exemplo do comentário do cientista Alex Pentland em uma
entrevista7 para a revista Harvard Business:

“Em minha pesquisa no MediaLab, uso uma tecnologia de “sensores


vestíveis” que mede tom de voz, movimento e gesticulação –
comportamentos inatos – para coletar dados muito pessoais sobre como
os indivíduos se comunicam uns com os outros. Quando iniciei esse
trabalho, fiquei impressionado com o poder dos dados que estavam sendo
gerados, mas logo vi também como seria possível abusar deles.
Coletivamente temos agora dados que podem ajudar a melhorar o meio
ambiente, a criar um governo transparente, lidar com pandemias e, é
claro, ter melhores trabalhos e serviços para os clientes. Mas é óbvio que
alguém em alguma empresa pode abusar disso.”

Do ponto de vista técnico, a exploração das infinitas possibilidades probabilísticas e


preditivas do Big Data podem proporcionar avanços socioeconômicos expressivos,
contudo, até que ponto, ao transferir a função de análise para a máquina, o indivíduo
subjugado a um objeto com capacidades inumanas, pode estar colocando em risco sua
própria autonomia e liberdades individuais?

“O humano aparece agora deslocado de sua função de decidir sobre quem


é perigoso, doente, beneficiário ou bom consumidor e passa a ensinar e
aprender em seu acoplamento com as máquinas essa decisão, porque o
trabalho de cruzamento de dados na atual sociedade é inerentemente
inumano. O processo automatizado tem a figura humana, o técnico, a
ensinar-lhe padrões de reconhecimento, ou seja, que características
somadas resultam nessa figura fugidia. (KANASHIRO, 2013).

Os conceitos listados até aqui são importantes para situar o objetivo dessa pesquisa; a
utilização indiscriminada das técnicas big data e data minning, ao colocar análises
matemáticas em primeiro plano, influenciam não apenas o consumo, mas todos os
aspectos da sociedade informatizada, extrapolando os limites do ciberespaço e pondo
em risco questões primordiais como o livre arbítrio e a autonomia do indivíduo.

7
Trecho da entrevista de Alex “Sandy” Pentland, intitulada “Com os grandes dados vêm grandes responsabilidades”,
publicada na Revista Harvard Business Review: https://hbr.org/2014/11/with-big-data-comes-big-responsibility .
Versão traduzida pela revista Harvard Business Brasil, que não está mais disponível no site.

6
OBJETIVOS E JUSTIFICATIVAS:

Esta pesquisa pretende traçar um perfil do usuário de internet, no que tange a percepção
do cidadão comum quanto à utilização dos dados gerados durante a navegação em rede
no momento em que:

 Aceita os termos e condições dos desenvolvedores para utilizar aplicações


gratuitas como mecanismos de busca, plataformas de e-mail e redes sociais;
 Utiliza sistemas de automação residencial (Internet das Coisas).

O intuito é traçar um perfil desses usuários focando especificamente no nível de


entendimento quanto aos riscos inerentes à captura e manipulação de dados gerados
durante a navegação em rede.

Este estudo não pretende posicionar-se a favor ou contra o avanço de tais tecnologias,
ao contrário, espera poder contribuir para que através de reflexões e ponderações éticas,
sejam traçados caminhos que levem a utilização equilibrada dessas informações, até
então impossíveis de se interpretar.

PROPOSTA DE DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

O desenvolvimento do estudo aqui proposto deve envolver pesquisas exploratórias e


documentais, incluindo entrevistas e coleta de dados para análise posterior, em conjunto
com a ampliação e levantamento de conceitos teóricos que colaborem com a construção
da dissertação.

Com base nas informações obtidas a partir de pesquisas e estudos aprofundados, espero
poder apresentar um panorama do perfil do usuário comum de internet no Brasil
especialmente no que tange a percepção quanto aos usos potenciais dos dados de
navegação, e elaborar conclusões que apontem caminhos para uma utilização consciente
dos sistemas conectados em rede.

7
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8
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