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Desde a segunda metade do século XX, a história da individualização tomou novo rumo
a uma “segunda modernidade”. Na sua essência, a modernidade da industrialização e as
práticas do capitalismo de produção em massa produziram mais riqueza do que jamais
se imaginara possível. Nos lugares onde política democrática, políticas de distribuição,
acesso à educação e a serviço de saúde e instituições fortes da sociedade civil
complementavam a riqueza, uma nova “sociedade de indivíduos” começou aemergir.
Centenas de milhões de pessoas ganharam acesso a experiências que até então eram
exclusivas a uma minúscula elite: educação universitária, viagens, aumento na
expectativa de vida, renda disponível para gastos supérfluos, melhora no padrão de vida,
amplo acesso a bens de consumo, fluxos variados de comunicação e informação e
trabalho especializado, exigente do ponto de vista intelectual. P. 50
De fato, uma reportagem do The New York Times de 2015 concluía que 158 famílias
americanas e suas corporações forneciam quase metade (176 milhões de dólares) de
todo o dinheiro levantado por ambos os partidos políticos em apoio aos candidatos
presidenciais em 2016, principalmente em apoio a “candidatos republicanos que se
comprometeram a limitar regulações, cortar impostos [...] e reduzir direitos”.
Historiadores, jornalistas investigativos, economistas e cientistas políticos analisaram os
complexos fatos ligados a uma guinada na direção da oligarquia, debruçando-se sobre
as sistemáticas campanhas de influência pública e restrição política que ajudaram a
conduzir e preservar uma agenda radical de livre mercado à custa da democracia. P. 59
O meio digital tem sido essencial para essas degradações. Kim ressalta que documentos
de papel impunham restrições naturais ao comportamento contratual simplesmente em
virtude do custo para produzir, distribuir e arquivar. Contratos de papel requerem uma
assinatura física, limitando o fardo que a rma pode vir a impor a um cliente exigindo
que ele leia múltiplas páginas de letra miúda. Termos digitais, em contraste, são “sem
peso”. Podem ser expandidos, reproduzidos, distribuídos e arquivados sem custo
adicional. Uma vez que as empresas entenderam que os tribunais estavam dispostos a
validar seus acordos de clicar-embrulhar e navegarembrulhar, não havia nada para
impedi-las de expandir o alcance desses contratos degradados “para extrair de
consumidores benefícios adicionais não relacionados com a transação”. Isso coincidiu
com a descoberta do superávit comportamental que examinaremos no Capítulo 3, na
medida em que os contratos de termos de serviço foram estendidos para incluir
“políticas de privacidade” complexas e perversas, estabelecendo outra regressão infinita
desses termos de expropriação. Até mesmo o ex-presidente da Comissão Federal de
Comércio Jon Leibowitz declarou publicamente: “Todos nós concordamos que os
consumidores não leem políticas de privacidade.” Em 2008, dois professores da
Carnegie Mellon calcularam que uma leitura razoável de todas as políticas de
privacidade que uma pessoa encontra durante o período de um ano exigiria 76 dias de
trabalho inteiros a um custo de oportunidade nacional de 781 bilhões de dólares. Hoje,
esses valores são bem mais altos. Ainda assim, a maioria dos usuários permanece sem
ter a ciência desses termos “vorazes” que, conforme Kim coloca, permitem às empresas
“adquirir direitos sem negociar e estabelecer e embutir furtivamente práticas antes que
usuários — e reguladores — percebam o que aconteceu”. P. 65
Cada um dos noventa cidadãos tinha uma reivindicação exclusiva. Uma mulher fora
intimidada pelo ex-marido e não queria que ele descobrisse na internet seu endereço. A
privacidade de informação era essencial para sua paz de espírito e sua segurança física.
Uma senhora de meia-idade estava constrangida por ter sido presa em seus tempos de
estudante universitária. Um dos requerentes era um advogado, Mario Costeja González,
que anos antes fora despejado de sua casa. Embora a questão já tivesse sido resolvida
havia muito tempo, uma busca pelo nome do advogado no Google continuava a mostrar
links para a notificação de despejo, o que, segundo ele, prejudicava sua reputação.
Embora a agência tenha rejeitado a ideia de solicitar que sites de jornais e outras fontes
de notícias removessem informação legítima — o tipo que, raciocinavam eles, existiria
quaisquer que fossem as circunstâncias —, ela endossava a noção de que o Google tinha
responsabilidade e deveria responder pelo fato. Afinal, a empresa havia se encarregado
unilateralmente de mudar as regras referentes ao ciclo de vida da informação quando
decidiu revirar, indexar e tornar acessíveis detalhes pessoais na rede mundial de
computadores sem pedir a permissão de ninguém. A agência concluiu que os cidadãos
tinham o direito de requisitar a remoção de links e ordenou ao Google que parasse de
indexar a informação e removesse os links existentes para suas fontes originais. P. 74
As técnicas descritas na patente significavam que cada vez que um usuário faz uma
consulta no mecanismo de busca Google, o sistema, de maneira simultânea, apresenta
uma configuração específica de um anúncio específico, tudo na fração de segundo que
leva para atender à busca. Os dados usados para executar essa tradução instantânea de
busca para anúncio, uma análise preditiva que foi apelidada de “matching”
[correspondência], excediam — e muito — a mera concepção de termos de busca.
Novos conjuntos de dados eram compilados e melhorariam drasticamente a exatidão
dessas predições. Esses conjuntos de dados eram denominados user profile information
[informação de perfil do usuário], ou “UPI”. Esses novos dados significavam que não
haveria mais espaço para suposições e bem menos desperdício no orçamento para
publicidade. A certeza matemática substituiria tudo isso. P. 97
Outra análise de 2015, esta do milhão de sites principais, feita por Timothy Libert, da
Universidade da Pensilvânia, descobriu que 90% deles vazam dados para uma média de
nove domínios externos que rastreiam, capturam e expropriam dados do usuário para
propósitos comerciais. Entre esses sites, 78% iniciam transferências de terceiros para
um domínio de propriedade de uma empresa: o Google. Outros 34% transferem para um
domínio de propriedade do Facebook. Em 2016, Steven Englehardt e Arvind
Narayanan, da Universidade de Princeton, declararam os resultados de suas medições e
análises de rastreamento de dados em um milhão de sites. Eles identificaram 81 mil
terceiros envolvidos, mas apenas 123 deles estão presentes em mais de 1% dos sites.
Desse grupo, os cinco principais terceiros elementos e doze dos vinte principais são de
domínios possuídos pelo Google. “Na verdade”, concluem eles, “Google, Facebook e
Twitter são as únicas entidades de terceiros presentes em mais de 10% dos sites”.
Pesquisadores chineses investigaram dez mil aplicativos dos trinta principais terceiros
do mercado de aplicativos em 2017. Eles descobriram processos “encobertos” nos quais
um aplicativo dispara autonomamente outros aplicativos de fundo no telefone do
usuário, e concluíram que essa “conspiração de aplicativos” era muitíssimo comum nos
mercados Android de terceiros. Dos mil principais aplicativos numa das plataformas
mais populares da China, 822 disparavam uma média de 76 outros aplicativos, e desses
lançamentos 77% eram desencadeados por “push services” que utilizam nuvens com o
intuito inicial de atualizar aplicativos, mas que obviamente estão fazendo muito mais
que isso. Ao se tratar do Android, observam os pesquisadores, o Google fornece o push
servisse. P . 162
Em 2010, a Comissão Federal Alemã para Proteção de Dados anunciou que a operação
Street View do Google na realidade camuflava uma varredura de dados secreta; os
carros do Street View estavam coletando, em sigilo, dados pessoais de redes de Wi-Fi
privadas. O Google negou a acusação, insistindo que estava juntando apenas nomes de
redes de Wi-Fi de transmissão pública e os endereços identificadores de roteadores Wi-
Fi, mas não informação pessoal enviada pela rede. Em questão de dias, uma análise
independente de peritos em segurança alemães provou, de maneira decisiva, que os
carros do Street View estavam extraindo das casas informação pessoal não encriptada.
O Google foi forçado a reconhecer que havia interceptado e armazenado “dados de
payload” (corpo de dados), informação pessoal apanhada de transmissões Wi-Fi não
encriptadas. Conforme postaram numa nota de pesar no blog: “Em alguns casos e-mails
inteiros e URLs foram capturados, bem como senhas.” Peritos técnicos no Canadá, na
França e na Holanda descobriram que os dados de payload incluíam nomes, números de
telefone, informação sobre crédito, senhas, mensagens, e-mails e transcrições de bate-
papos, bem como registros de namoros on-line, pornográfica, comportamentos de
navegação na web, informação médica, dados de localização, fotos e arquivos de vídeo
e áudio. Concluíram que tais pacotes de dados podiam ser costurados e formar um perfil
detalhado de uma pessoa passível de ser identificada. P. 170
Por exemplo, uma nova abordagem para empréstimos com base em aplicativos
estabelece de maneira instantânea o crédito baseado na detalhada mineração do
smartphone de um indivíduo, e de outros comportamentos on-line, inclusive de textos,
e-mails, coordenadas de GPS, posts em mídias sociais, pers no Facebook, transações
no varejo e padrões de comunicação. Fontes de dados podem incluir detalhes íntimos
como a frequência com quevocê carrega a bateria do seu celular, quantas mensagens
você recebe, se e quando você retorna uma ligação, quantos contatos você tem listados
no seu aparelho, como preenche formulários on-line, ou quantos quilômetros você
percorre todos os dias. Esses dados comportamentais geram padrões com nuances que
antecipam a probabilidade da dívida de um empréstimo ser paga ou não, possibilitando,
assim, um desenvolvimento e refinamento algorítmicos contínuos. Dois economistas
que pesquisaram essa abordagem descobriram que essas qualidades do superávit
produzem um modelo preditivo comparável à classificação de crédito tradicional,
observando que “o método quantifica ricos aspectos do comportamento tipicamente
considerados informação ‘suave’, tornando-a compreensível para instituições formais”.
“Você é capaz de entrar e realmente entender a vida diária desses clientes”, explica o
CEO de uma das principais empresas que analisa dez mil sinais por cliente. P. 203
Segundo o filósofo da linguagem John Searle, uma declaração é uma forma particular
de falar e agir que estabelece fatos a partir do vazio, criando uma realidade onde não
havia nada. É assim que a coisa funciona: às vezes falamos apenas para descrever o
mundo — “você tem olhos castanhos” — ou para modificá-lo — “feche a porta”. Uma
declaração combina ambas as características, garantindo uma nova realidade ao
descrever o mundo como se uma modificação desejada já fosse verdade: “Todos os
homens são criados iguais.” “Eles aí estão para que os comandeis.” Como escreve
Searle: “Tornamos algo um fato representando-o como já sendo fato.” P. 208
Esses invasores do século XXI não pedem permissão; eles avançam, cobrindo a terra
devastada com práticas de falsa legitimação. Em vez de editos monárquicos cinicamente
transmitidos, eles oferecem acordos de termos de serviço cinicamente transmitidos cujas
estipulações são, em igual medida, obscuras e incompreensíveis. Constroem suas
fortificações defendendo com ferocidade os territórios reivindicados, ao mesmo tempo
em que juntam forças para a próxima incursão. Por fim, acabam construindo cidades em
intrincados ecossistemas de comércio, política e cultura que declaram a legitimidade e
inevitabilidade de tudo que conquistaram. P. 211
Mais de seiscentos anos atrás, a imprensa colocou a palavra escrita nas mãos do povo,
resgatando as preces, ignorando os sacerdotes e entregando a oportunidade de
comunhão espiritual direto aos devotos. Viemos a não dar a devida valorização à
difusão sem paralelos de informação que a internet possibilita, prometendo mais
conhecimento para mais gente: uma poderosa força democratizante que realiza
exponencialmente a revolução de Gutenberg na vida de bilhões de indivíduos. Mas essa
grande conquista nos cegou para um desenvolvimento histórico diferente, que se move
fora do nosso alcance e fora da nossa vista, projetado para excluir, confundir e enevoar.
Nesse movimento oculto, a luta competitiva em relação às receitas da vigilância reverte
para a ordem pré-Gutenberg, uma vez que a divisão da aprendizagem na sociedade
tende ao patológico, capturada por um restrito sacerdócio de funcionários especialistas
em informática, suas máquinas de propriedade privada e os interesses econômicos em
cujo nome eles aprendem a exercer seu trabalho. P. 222
Nada está imune, uma vez que produtos e serviços de todos os setores aderem a
dispositivos como o termostato Nest na competição pelas receitas de vigilância. Por
exemplo, em julho de 2017, o aspirador de pó autônomo da iRobot, o Roomba,
apareceu em manchetes quando o CEO da empresa, Colin Angle, contou à Reuters a
respeito de sua estratégia de negócios para a smart home baseada em dados, começando
com um novo fluxo de renda derivado da venda de plantas baixas das casas de clientes
esboçadas a partir das novas capacidades de mapeamento por máquina. Angle indicou
que a iRobot poderia chegar a um acordo para vender as plantas para o Google, a
Amazon ou a Apple dentro de dois anos. Em preparação para a entrada na concorrência
de vigilância, uma câmera, novos sensores e software já haviam sido adicionados à
linha mais sosticada do Roomba, possibilitando novas funções, inclusive a habilidade
de traçar um mapa e ao mesmo tempo rastrear a própria localização. O mercado
recompensara a visão de crescimento da iRobot, fazendo o preço da ação da empresa
disparar para 102 dólares em junho de 2017, sendo que, apenas um ano antes, era de 35
dólares. Houve, assim, uma capitalização de mercado de 2,5 bilhões de dólares sobre
receitas de 660 milhões de dólares. P. 270
Não somos escrutinizados pelo conteúdo, e sim pela forma. O preço que lhe é oferecido
não deriva do que você escreve, mas de como você escreve. Não é o que está nas suas
frases, e sim no tamanho e na complexidade delas; não é o que você lista, e sim o fato
de elaborar uma lista; não é o retrato, mas a escolha do filtro ou grau de saturação; não é
o que você revela, mas como você compartilha ou deixa de compartilhar; não é onde
você faz planos de ver seus amigos, mas como os faz: um casual “mais tarde” ou um
local e hora acertados? Pontos de exclamação e escolhas de advérbios operam como
sinais reveladores e potencialmente nocivos do seu eu. P. 316
Por algum tempo, parecia que todo mundo estava lucrando. A Niantic fechou um acordo
com o McDonald’s para levar os usuários do jogo aos trinta mil restaurantes da cadeia
no Japão. O dono de uma rede britânica de shopping centers providenciou “equipes de
recarga” para perambular os shoppings com carregadores portáteis para os jogadores. A
Starbucks anunciou que “participaria da brincadeira” com doze mil lojas nos Estados
Unidos se tornando “Pokéstops” ou “gyms” ociais, além de criar um “Pokémon Go
Frappuccino [...] a iguaria perfeita para qualquer praticante de Pokémon em ação”.
Outro acordo, dessa vez com a cadeia de celulares Sprint, converteria 10.500 lojas e
pontos da empresa em Pokémon hub. A empresa de streaming de música Spotify
anunciou que as músicas relacionadas com Pokémon tiveram a venda triplicada. Uma
seguradora do Reino Unido ofereceu cobertura especial para telefones celulares, com o
seguinte aviso: “Não deixe que um dano acidental atrapalhe você de capturar todos
eles.” A Disney admitiu que ficou decepcionada com as próprias estratégias para
“mesclar o físico e o digital de modo a criar novos tipos de experiências de jogo
conectadas” e planejava transformar seu colossal negócio de brinquedos “numa direção
similar ao Pokémon Go”. P. 362
O estudo internacional de “desconexão” nos ajuda a definir o cenário, pois revela uma
gama de angústia emocional sintetizada em seis categorias: vício, incapacidade de se
desconectar, tédio, confusão, angústia e isolamento. A súbita desconexão da rede pelos
estudantes gerou os tipos de anseio, depressão e ansiedade que são característicos de
vícios diagnosticados clinicamente. O resultado foi que, em todos os países, a maioria
dos participantes admitiu que não podia aguentar o dia inteiro desconectada. Sua
angústia era agravada pelo mesmo pacto faustiano com o qual estamos bastante
familiarizados, quando descobriram que quase todas as necessidades logísticas,
comunicativas e informacionais de seu cotidiano dependiam de seus dispositivos
conectados: “Encontrar-se com amigos ficou difícil ou impossível, achar o caminho
para um destino sem um mapa on-line ou acesso à internet virou um problema e apenas
organizar uma noite em casa passou a ser um desafio.” Pior ainda, os estudantes
julgaram impossível imaginar até mesmo uma participação social casual sem quaisquer
mídias sociais, em particular o Facebook: “Cada vez mais, nenhum jovem que queira ter
uma vida social pode se dar ao luxo de não ser ativo no site, e ser ativo no site signica
levar a própria vida no site.” P. 503 as cidades inteligentes “contam” com essa
dependência, não há resistência ou questionamento. Tudo e todos estarão na nuvem, no
algoritmo.
O mais surpreendente é o fato de a General Motors ter empregado mais gente no auge
da Grande Depressão do que o Google e o Facebook empregam no auge de sua
capitalização de mercado. P. 563
O enfraquecimento do valor dado à democracia nos Estados Unidos e em muitos países
europeus é uma preocupação séria. De acordo com uma pesquisa da Pew Research,
apenas 40% dos entrevistados nos Estados Unidos apoiam a democracia e
simultaneamente rejeitam as alternativas. Um total de 46% acham aceitáveis ambas as
alternativas, a democrática e a não democrática, e 7% preferem apenas a opção não
democrática. A amostra americana segue as de Suécia, Alemanha, Holanda, Grécia e
Canadá em termos de profundidade do compromisso com a democracia, mas outras
democracias fundamentais do Ocidente, incluindo a Itália, o Reino Unido, a França e a
Espanha, junto com a Polônia e a Hungria, caem na mediana de 37%, ou abaixo dela,
exclusivamente comprometidos com a democracia dos 38 países analisados. P. 580