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“Até mesmo Hayek e Friedman defendem o Bolsa

Família”
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Escrito por Fernando Fiori Chiocca February 24, 2017

Existe alguma ideia pior do que estatizar a esmola, tornando-a assim um dever para uns e
um direito para outros? Por um lado, trata-se de uma imoralidade criminosa subtrair por
meio da força a propriedade alheia; por outro, gera dependência e um incentivo à
vadiagem.

Muitas pessoas de bom senso, mesmo sem possuir base alguma na teoria econômica ou
na de direitos naturais, rejeitam instintivamente tal ideia. Apesar disso, a ideia começou a
ser implantada no Brasil por FHC em 2001, e hoje está em pleno funcionamento. Embora
seja uma ideia tenebrosa, ela encontra respaldo em muitos pensadores associados ao
Liberalismo. O primeiro deles pode ter sido Thomas Paine. O escritor que participou da
Revolução Americana e da Revolução Francesa idealizou uma proposta de “renda mínima”
— talvez se baseando no proviso de Locke, o pensador que é um dos pilares do
liberalismo.[1] Muitos outros autores fizeram propostas semelhantes, como Marx, Keynes e
Galbraith, e era esperado que defendessem esse redistributivismo. Mas é absurdo ver
nomes associados à defesa da liberdade dando seu aval a este tipo de espoliação.

Quando F. A. Hayek estava escrevendo sua obra Os Fundamentos da Liberdade, ele


estava sendo subsidiado pelo Volker Fund. Nesta mesma época, Murray Rothabrd
trabalhava como consultor para o Volker Fund e, em janeiro de 1958, quando Hayek
entregou os catorze primeiros capítulos de seu livro, o Volker Fund pediu a Rothbard que
desse sua opinião sobre eles. A análise de Rothbard, além de devastadora, continha uma
acurada previsão de como aquele livro seria usado pelos inimigos da liberdade em prol da
causa redistributiva. Devido a seus erros conceituais — com destaque ao conceito de
coerção —, Rothbard o classificou como um péssimo livro, um “livro do mal”; além disso,

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graças ao status de Hayek, o livro foi considerado também como sendo extremamente
perigoso, e Rothbard recomendou que se descontinuasse qualquer suporte à finalização e
promoção da obra, já que isso seria destrutivo para a causa da liberdade.[2]

Hayek era considerado um dos mais proeminentes líderes intelectuais pró-livre mercado, e
como ele estava defendendo que o estado atuasse em inúmeras funções, Rothbard previu
que a oposição iria se utilizar do velho artifício de “mas até mesmo Hayek admite que . . .”
para argumentar em defesa de suas posições pró-estado.

A previsão que Rothbard teve instantaneamente, assim que bateu os olhos nos primeiros
capítulos da obra de Hayek, vem se concretizando desde então. Por exemplo, para atacar
Ron Paul na última corrida presidencial americana, o “economista” esquerdista Paul
Krugman usou Hayek contra os opositores da saúde pública:

“No passado, conservadores aceitavam a necessidade de uma rede de proteção garantida


pelo governo por razões humanitárias. E não sou eu quem está dizendo isso; quem disse
isso foi Friedrich Hayek, o herói intelectual conservador, que declarou especificamente em
O Caminho da Servidão seu apoio a um ‘amplo sistema de serviços sociais’ para proteger
os cidadãos de ‘eventualidades comuns’, e especificou a área da saúde.”

Outro teórico que é considerado um dos maiores defensores do livre mercado e que
também fez inúmeras concessões à atuação do estado foi Milton Friedman; e ele é
igualmente utilizado pelos detratores do livre mercado, como constatou Hans-Hermann
Hoppe anos depois da previsão de Rothbard:

“… fazer concessões em nível de teoria, como vemos acontecer, por exemplo, entre
liberais moderados como Hayek e Friedman, ou mesmo entre os chamados minarquistas,
não apenas denota uma grande falha filosófica, como também é uma atitude, do ponto de
vista prático, inútil e contraproducente. As ideias destas pessoas podem ser — e de fato
são — facilmente cooptadas e incorporadas pelos governantes e pelos ideólogos do
estado. Aliás, não é de se estranhar a frequência com que ouvimos estatistas defendendo
a agenda estatista dizendo coisas como “até mesmo Hayek (Friedman) diz — ou, nem
mesmo Hayek (Friedman) nega — que isto e aquilo deve ser feito pelo estado!”
Pessoalmente, eles até podem ter ficado descontentes com isso, mas não há como negar
que suas obras serviram exatamente a este propósito; e, consequentemente, queiram ou
não, eles realmente contribuíram para o contínuo e incessante crescimento do poder do
estado.”

Hayek e Friedman são mundialmente aclamados como os representantes máximos do livre


mercado; logo, este artifício não conhece fronteiras — e no Brasil também foi e é utilizado
por estatistas. O primeiro economista brasileiro a propor um programa de renda mínima foi
Antônio Maria da Silveira, no artigo Redistribuição de Renda, publicado na Revista
Brasileira de Economia, em abril de 1975 — e, para tal, ele se baseou nos trabalhos dos
liberais Friedman e Hayek, além de nos de outros economistas socialistas.[3] E foi um
grande amigo de Antônio Maria um dos maiores responsáveis pela implementação do
programa assistencialista no Brasil: o senador Eduardo Matarazzo Suplicy. Juntamente

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com o senador Cristovam Buarque, eles podem ser considerados os pais do Bolsa
Família. E, exatamente como previsto por Rothbard, também se utilizaram do artifício “Até
mesmo Hayek e Friedman” na defesa de suas propostas:

“Podemos encontrar defensores da renda mínima e do imposto de renda negativo dentre


aqueles que se posicionaram com mais eloquência em favor do capitalismo. Friedrich A.
von Hayek, ganhador de um prêmio Nobel de Economia, defende, em O caminho da
servidão(1994), no capítulo sobre segurança e liberdade, proteção contra privações físicas
severas e garantia de que um mínimo de meios de subsistência deve ser dado a todos.
George Stigler (The economics of minimum wage legislation, American Economic Review,
n. 36, jun. 1946) mostrou que o imposto de renda negativo seria a melhor forma de
proteger a remuneração daqueles que, de outra forma, ganhariam muito pouco. Milton
Friedman popularizou a defesa do imposto de renda negativo como o instrumento mais
eficiente no combate à pobreza (Capitalism and freedom, University of Chicago Press,
1962).”[4]

Hayek e Friedman poderiam discordar de determinadas particularidades do Bolsa Família


ou de outros programas de renda mínima, mas o fato de eles aceitarem conceitualmente
um programa estatal de amparo aos necessitados já serviu para desmantelar qualquer
oposição que poderia existir a estes programas. Inclusive, Hayek e Friedman parecem
discordar entre si nas particularidades de seus programas. Hayek declarou que era
totalmente contra o programa de Imposto de Renda Negativo de Friedman, e que
concordava com a refutação que Henry Hazlitt havia feito dele. Não obstante, a proposta
de Friedman parece ser menos ruim que a de Hayek, pois Friedman a desenvolveu para
ser apenas um substituto de outras ações assistencialistas do estado. E mais, Hayek é
mesmo uma figura confusa, parecendo discordar dele próprio. Nesta entrevista realizada
anos após a publicação de suas principais obras, ele se posiciona contra qualquer tipo de
redistribuição de renda, pois estas políticas seriam discriminatórias ao fazerem distinção
entre diferentes grupos de pessoas — uma posição irreconciliável com seus escritos
anteriores.

Friedman também discordou de particularidades de outros programas, como o EITC


(Earned income tax credit), mas concordou com o princípio redistributivista, como
mostraram Suplicy e o professor Philippe Van Parijs[5] em entrevista que realizaram com
Friedman. Respondendo a uma questão sobre o EITC, Friedman diz:

“O EITC contribuiu para erradicar a pobreza nos EUA. Eu não acredito que tenha sido uma
ferramenta extremamente eficiente devido à forma particular pelo qual ele se integra ao
imposto de renda. Tem dado margem a abusos.”[6]

E quando Suplicy pede para Friedman comparar sua proposta de Imposto de Renda
Negativo à do Renda Cidadã, Friedman diz que ambas são semelhantes, como o professor
Philippe Van Parijs comenta: “Esta é uma afirmação muita clara da equivalência formal
entre os dois esquemas, o que sugere que Friedman é tão a favor de uma proposta quanto
de outra”.[7]

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Detalhes a parte, o maior erro de Hayek e Friedman foi o de não considerarem um
princípio elementar de ética e justiça. Para haver qualquer forma de renda mínima, esta
renda tem de vir de algum lugar. Se o amparo aos mais necessitados vem de Igrejas,
instituições ou indivíduos privados, a renda tem origem voluntária, por meio de doações de
pessoas que desejam destinar parte de seus bens para caridade. No entanto, se é o
estado quem fornece a renda mínima, então este recurso é obtido por meio da agressão
ou da ameaça de agressão física dos produtores, isto é, por meio do roubo. Frédéric
Bastiat expressou brilhantemente este princípio em 1850:

“é-me impossível separar a palavra fraternidade da palavra voluntária. Eu não consigo


sinceramente entender como a fraternidade pode ser legalmente forçada, sem que a
liberdade seja legalmente destruída e, em consequência, a justiça seja legalmente
deturpada. A espoliação legal tem duas raízes: uma delas, como já lhe disse
anteriormente, está no egoísmo humano; a outra, na falsa filantropia.”[8]

Se algo é compulsório, então não é caridade mas sim agressão. O conceito de caridade
compulsória é contraditório, pois considera apenas o recebedor e ignora o espoliado. Se
caridade significa ajudar, quem é que está ajudando a pessoa que está sendo obrigada,
sob a mira de um revólver, a entregar parte de sua renda para que ela seja dada a outra
pessoa? É esta a base de qualquer programa de redistribuição de renda feito pelo estado,
pois para haver algo para distribuir é necessário que este algo tenha sido previamente
produzido e retirado à força dos produtores. ‘Não é seu para dar‘ é um conceito que até
pouco tempo era amplamente compreendido até mesmo por políticos socialistas, como
Herbert Hoover, que estendeu os tentáculos do estado a inúmeras áreas, mas tinha
ressalvas quanto à caridade:

“A assistência voluntária era praticamente a única esfera em que o presidente Hoover


parecia preferir de todo o coração a ação voluntária à governamental. No outono anterior,
Hoover havia se recusado a convocar uma sessão especial do Congresso para a
assistência ao desemprego dizendo que isso era responsabilidade das agências
voluntárias. De fato, a tradição voluntarista ainda era tão forte nessa área, que a Cruz
Vermelha opôs-se a um projeto de lei, no começo de 1931, que lhe concederia US$ 25
milhões para prestar assistência. A Cruz Vermelha declarou que seus próprios fundos
bastavam, e seu Presidente disse a um comitê da Câmara que essa verba do congresso
’em grande medida destruiria a doação voluntária’. Muitos líderes locais da Cruz Vermelha
opunham-se fortemente a qualquer ajuda federal, e até mesmo a qualquer assistência
pública de modo geral, de modo que o projeto de lei, após passar pelo Senado, foi
derrubado na Câmara. Muitas organizações privadas de caridade, filantropos e assistentes
sociais tinham a mesma opinião.”[9]

É inegável que Hayek e Friedman colaboraram muito na luta contra a tirania estatal.
Porém, eles não são nem de longe os autores que melhor representam a liberdade; e é
inegável também que eles apoiaram muitas posições contrárias à liberdade. E é
exatamente por causa de todas as concessões que estes autores fizeram aos estatistas,
que a esquerda os alçou à posição de maiores e mais radicais representantes do livre
mercado, ao passo que pensadores realmente radicais como Mises e Rothbard foram
jogados para fora do debate. Hayek e Friedman são os inimigos que a esquerda adora
odiar. De fato, eles não são inimigos — eles fazem parte da esquerda, e são aceitos e
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respeitados pelo mainstream (que é esquerdista).[10]

Libertários não seguem pessoas; nós seguimos ideias. Mesmo no Instituto que leva seu
nome, é natural criticar as diversas ideias de Ludwig von Mises, e não pretendemos fazer
“culto à personalidade” nem de Mises, nem de Rothbard e nem de ninguém. Mas o fato é
que alguém inevitavelmente será identificado como o líder intelectual de um movimento, e
a esquerda já nomeou os atuais “líderes”. Não temos líderes, mas se existem pessoas cuja
obra representa melhor a defesa da liberdade, estas pessoas são Mises e Rothbard.

Notas:

[1] A proposta de “dividendo universal” de Paine, que garantiria uma renda mínima a todos,
é baseada em sua ideia de que todo ser humano do planeta é coproprietário da terra
apenas em virtude de ter nascido neste planeta e de estar vivo. Já o proviso de Locke dizia
que os indivíduos podiam se apropriar da terra ‘misturando seu trabalho a ela’, contanto
que sobrasse o suficiente para que outros também pudessem se apropriar de porções
semelhantes. Veja a refutação do proviso lockeano em Rothbard, capítulo 29 do A Ética da
Liberdade; Hoppe, pág. 410 et pass. The Economics and Ethics of Private Property; e de
Jasay, págs. 188 e 195 do Against Politics.
[2] Dois anos depois, quando Rothbard recebeu e analisou a obra completa, ele elogiou a
erudição da obra — principalmente pelo valioso conteúdo de suas notas — e enalteceu
alguns capítulos específicos, mas no geral sua avaliação continuou a mesma. Hayek havia
fracassado monumentalmente em sua tentativa de estabelecer um sistema em prol da
liberdade. Murray N. Rothbard vs. the philosophers: unpublished writings on Hayek, Mises,
Strauss, and Polanyi, capítulos 2 e 3, Roberta Adelaide Modugno — Auburn, Alabama:
Ludwig von Mises Institute, 2009. Para uma crítica devastadora de Os Fundamentos da
Liberdade, veja: F.A. Hayek e o conceito de coerção, em A Ética da Liberdade, Instituto
Ludwig von Mises Brasil, 2010, capítulo 28.

[3] Homenagem a Antônio Maria da Silveira, Eduardo Matarazzo Suplicy.

[4] SUPLICY, Eduardo Matarazzo e BUARQUE, Cristovam. Garantia de renda mínima para
erradicar a pobreza: o debate e a experiência brasileiros. Estud. av. [online]. 1997, vol.11,
n.30

[5] O professor Philippe Van Parijs, da Universidade Católica de Louvain, é um filósofo e


economista político belga, conhecido como proponente e principal defensor do conceito da
renda mínima. É um dos fundadores e secretário-geral da “BIEN”, “Basic Income European
Network” (Rede Europeia da Renda Básica), fórum que defende a instituição de uma renda
básica em todas as nações.

[6] UM DIÁLOGO COM MILTON FRIEDMAN SOBRE O IMPOSTO DE RENDA


NEGATIVO, paper de EDUARDO M. SUPLICY. Basic Income European Network, VIIIth
International Congress, Berlin, 6-7 de outubro de 2000.

[7] Ibid., pág. 9.

[8] A Lei, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, pág. 24.

[9] A grande depressão americana, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, pág. 281.
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[10] “The Hayek Myth“, PFS 2012, Hans Hermann Hoppe.

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