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Paradoxo Perdido

Fredric Brown

Ficção Científica
Título original: Paradox Lost
Tradução: Jamir Martins
Editora Cultrix
1974
Idioma: Português-BR
Digitalização, revisão e formatação de SusanaCap
www.portaldetonando.com.br/forumnovo/
Índice

APRESENTAÇÃO 3
PARADOXO PERDIDO 7
SHOW DE MARIONETES 36
O ÚLTIMO TREM 50
INOCORRÊNCIA 57
BATIDAS À PORTA 75
OBEDIÊNCIA 92
O AGENTE COMISSIONÁRIO 108
AILUROFOBIA 130
EINE KLEINE NACHTMUSIK 136
SÍRIO NADA 161
O NOVATO 185
DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS 213
ALGO VERDE 220

APRESENTAÇÃO

Fred detestava escrever. Mas gostava muito de ter escrito. Era capaz de entregar-se a toda espécie
de atividade só para retardar o momento em que finalmente tinha de sentar-se à máquina:
espanava a mesa, tocava flauta, lia um pouco, tornava a tocar. Ou, se residíamos numa cidade em
que não houvesse carteiro, iria pessoalmente ao Correio buscar a correspondência, e, de caminho,
convidava alguém para uma partida — às vezes duas ou três — de xadrez ou cartas. Quando
finalmente voltava para casa, decidia já ser tarde demais para dar início ao trabalho. Após dias
dessa prática, sua consciência acabava por doer. Era então que se entregava efetivamente ao
trabalho, produzindo algumas linhas, ou mesmo páginas inteiras. Fosse como fosse, os livros aí
estão escritos.
Não era autor prolífico. Em média, enchia três páginas por dia. Às vezes, quando o livro parecesse
escrever-se por si, sua produção diária subia para seis ou sete laudas; o que entretanto era raro.
Fred tinha o hábito de andar de um lado para outro, sempre que planejava uma nova história. E
como ambos passássemos em casa boa parte do tempo, surgiu o problema de que eu lhe interrom-
pesse o fio das idéias, ao dirigir-lhe a palavra em tais ocasiões. Coisa que o azucrinava deveras.
Após tentarmos, sem êxito, várias soluções, sugeri que usasse um boné vermelho quando não
quisesse ser incomodado. O que ele fez. Com o passar do tempo, acostumei-me a inspecionar-lhe a
cabeça antes de dirigir-me a ele.
Sempre que acabava um livro, íamos viajar, e o tempo que passávamos fora dependia
exclusivamente de nossa situação financeira no momento.
Havia ocasiões em que sua imaginação realmente encalacrava. E por mais que andasse de um lado
para outro em casa, não chegava a parte alguma. Quando isto se deu, certa vez, durante a
composição de um de seus primeiros livros, achou ele que uma viagem noturna de ônibus talvez
ajudasse. Não tinha o hábito de recolher cedo e supunha que, depois de apagadas as luzes do
coletivo, tudo estando às quietas, pudesse se concentrar melhor. Muniu-se, pois, de um bloco de
papéis e de um lápis-lanterna, passou alguns dias fora e, quando regressou, o problema estava
resolvido.
Fez muitas outras viagens desse tipo. Tantas, que eu até acabei capaz de prever quando estavam
para acontecer. Nem sempre ele regressava com a solução que tinha ido buscar; mas, nessa
eventualidade, jã vinha com a trama pronta para algum outro livro.
O clímax de sua carreira foi quando abandonou a leitura de provas para dedicar-se por inteiro à
tarefa de escrever. Mas a ocasião em que se sentiu mais feliz e orgulhoso foi quando ganhou o
Prêmio Edgar Allan Poe, dos Escritores Americanos do Mistério, pela melhor história no gênero:
The Fabulous Clipjoint. Nenhuma obra posterior lhe deu satisfação comparável. Essa assinalava,
entretanto, sua estréia como escritor. É compreensível que, dentre os livros que escreveu, gostasse
mais de uns que de outros; porém The Fabulous Clipjoint, por ter sido o primeiro, era também seu
predileto.
Até que não tivesse vários volumes publicados, continuou a escrever contos entre um e outro livro,
para não lhe faltarem recursos quando se empenhasse em obra de maior fôlego. Posteriormente,
porém, só escrevia ou esboçava uma história curta quando estivesse seguro de que realmente devia
fazê-lo.

Durante muito tempo desejou escrever The Office; mas, como se tratasse de um romance em
moldes convencionais, a obra representava, para ele, uma experiência totalmente nova. Sabia que
seus livros de mistério e ficção científica seriam sempre bem vendidos, mas ignorava qual pudesse
ser a acolhida a um romance escrito por um estreante nesse campo. Ainda não se podia dar ao luxo
de produzir obra que não vendesse com certeza. Por fim, escreveu-o. E vendeu.
Experimentou escrever para a TV por breve tempo, mas decidiu que isso não era para ele e acabou
de volta aos livros. De sua autoria
têm sido publicadas algumas centenas de contos e vinte e oito romances, sendo esta a sua oitava
coletânea.

Se bem que aprecie todos os livros de Fred, o meu favorito é The Screaming Mimi. Outros de que
também gosto especialmente são Here Comes a Candle, The Lenient Beast, The Far Cry, His Name
Was Death e Night of the Jabberwock.

Realmente, não sou entusiasta da ficção científica, porque a maioria das obras desse gênero são, a
meu ver, excessivamente técnicas. Mas acho as de Fred de fácil leitura. Minhas prediletas dentre
essas são The Lights in the Sky Are Stars e The Mind Thing. What Mad Universe é obra quase
clássica que também se pode contar entre as minhas favoritas.
Gosto muito de suas coletâneas, e desta em especial, por ser sua última obra acabada. E, já que
representa seu adeus ao público, espero que o leitor também a aprecie.

Elizabeth Brown

PARADOXO PERDIDO

Uma varejeira azul, que de algum modo conseguira atravessar a tela protetora da janela, zumbia
agora em círculos monótonos logo abaixo do teto da sala de aula. Exatamente como o Professor
Dolohan, que zunzunava em monótonos círculos lógicos em cima do palanquezinho em frente à
classe. Na última fileira, Shorty McCabe, que estivera a olhar alternadamente da mosca para o
mestre, acabou decidindo ser o inseto o mais interessante dos dois.
— O absoluto negativo — pontificava o professor, — por assim dizer, não é negativo
absolutamente. E isto só na aparência é contraditório. Na ordem inversa, essas palavras adquirem
novas conotações. Por conseguinte...
Shorty McCabe lançou um suspiro inaudível e continuou a apreciar as evoluções da varejeira azul,
desejando também ele poder voar em círculos, com aquele mesmo zumbido espiritual que tanto lhe
enchia a alma. Guardadas as devidas proporções, uma mosca havia de ser mais ruidosa que um
avião.
Mais, até, comparativamente, que uma serra elétrica. Por falar nisso, será que a gente podia serrar
uma serra com outra serra? Nesse caso alguém poderia afirmar sem erro que serra serra serra. E na
interrogativa ainda ficava melhor: Será que serra serra serra? Ou, melhor ainda: Sara, será que serra
serra serra?
— ... Pode-se encarar — recitava ainda o professor — o absoluto como um modo do ser.. .
Bravos, pensava Shorty McCabe, a gente podia encarar qualquer coisa como sendo qualquer outra
coisa, e que se ganhava com isso além de uma dor de cabeça? De resto, a varejeira azul ia se
tornando mais interessante agora. Voava para baixo, rumo à frente da sala, e talvez fosse pousar na
cabeça do professor. E zoar.
Mas, não; em vez disso pousou em alguma parte oculta atrás da mesa de Dolohan. Sem a mosca
para distraí-lo, Shorty procurou em torno alguma outra coisa em que olhar ou pensar. Da última
fileira, só via nucas diante de si. Afinal, podia concentrar-se na maneira peculiar como os cabelos
crescem no cachaço das pessoas; mas o tema lhe pareceu de interesse extremamente limitado.
Imaginava quantos estudantes à sua frente não estariam dormindo a sono solto. A metade estaria,
com certeza. Oxalá também pudesse dormir. Mas não podia; cometera a tolice de ir se deitar cedo
na véspera, e, em conseqüência, estava sem sono e infeliz.
— ...Porém — ladainhava o Professor Dolohan, — se desprezarmos a violação probabilística
suscitada pelo enunciado segundo o qual o absoluto positivo seria menos que absolutamente
positivo, seríamos levados a...
Hurra! A mosca azul voltava de seu exílio temporário de detrás da mesa. Espiralou para o teto, lá
deteve-se um instante para recompor a aparência, logo vindo abaixo de novo; para o fundo da sala,
desta vez.
Se não alterasse a rota, em seu curso espiralante, passaria raspando pelo nariz de Shorty. O que fez.
Por um instante o rapaz vesgueou os olhos, sem desfitá-la, e, para não perdê-la de vista, voltou-se
para trás. A mosca passou voando por ele e...
Simplesmente já não estava mais ali. Em algum ponto, cerca de doze polegadas de Shorty McCabe,
o inseto, às súbitas, deixara de voar e de zoar. Não estava mais por lá. Não morrera nem pousara.
Simplesmente...
Desaparecera. Em pleno ar, quatro pés acima do solo, deixara de existir. O zumbido cessara de
inopino, e no súbito silêncio que se fez, a voz do professor pareceu mais alta, se não mais cômica.
— Com o vocábulo criando, nós criamos, por via de uma pressuposição contrária aos fatos, um
conjunto pseudo-real de axiomas que, de certo modo, constituem o inverso do existir. . .
Shorty McCabe, ainda com os olhos escancarados em direção do ponto em que a mosca se esvaíra,
exclamou por fim:
— Essa não!
— Como foi que disse?
— Desculpe, Professor — disse Shorty. — Eu só estava limpando a garganta.
— o inverso do existir... Onde é que estávamos? Ah, sim. Criamos uma base axiomática de
pseudológica que nos fornece diferentes respostas para todos os problemas. Quero dizer...
Notando que os olhos do professor já se tinham desviado de si, Shorty voltou-se de novo para trás, a
fim de varejar o ponto em que a varejeira se moscara. Teria deixado de ser mosca? Besteira! Com
certeza estava sendo vítima de alguma ilusão de ótica. Moscas são capazes de voar em grande
velocidade. Talvez a tivesse perdido de vista durante o vôo...
E tornou a espiar o Professor Dolohan com o rabo dos olhos, assegurando-se de que tinha a atenção
presa alhures. Então estendeu o braço, experimentalmente, no rumo do ponto ou de algum ponto
próximo do ponto onde vira a varejeira desaparecer.
Não sabia o que esperava encontrar, mas o certo é que não sentiu absolutamente nada. Bem, ao
menos era lógico. Se a mosca tinha voado para o nada e ele, Shorty, ao estender a mão não tocara
em nada da experiência nada resultava provado. Mas, fosse como fosse, não deixou de sentir um
vago desaponto. Dificilmente esperaria tocar a mosca que não estava ali, ou dar com algum
obstáculo sólido mas invisível ou saiba-se lá o quê. Entretanto, que fim levara o inseto?
Shorty descansou as mãos sobre a carteira e, durante um minuto inteiro tentou esquecer-se do
ocorrido, atentando para o que o professor dizia. Mas aquilo ainda era pior que pasmar da mosca.
Então pela milésima vez, perguntou-se o que o levara à tolice de se inscrever na classe 2 B de
Lógica. Nunca passaria nos exames. Além do mais o curso que estava fazendo era de Paleontologia,
matéria que muito apreciava. Ao menos, um dinossauro era, por assim dizer, alguma coisa em que
se podia deitar os dentes. Mas Lógica, bah! era aquela ladainha: 2 B or not 2 B. Antes estudar
fósseis que ouvi-los palestrar.
Foi então que baixou casualmente os olhos para as mãos que tinha sobre a carteira.
— Epa! — bradou assombrado.
— Sim, Sr. McCabe? — acudiu o professor.
Shorty não respondeu desta vez; e lá podia? Transfixava a própria mão esquerda. Eis que estava
completamente sem dedos! Ante aquela visão terrífica, o rapaz cerrou positivamente os olhos.
Notando-o, o professor exibiu seu sorriso magisterial.
— Creio que o nosso amigo aí do fundo... humm... caiu no sono — disse. — Alguém, por
obséquio, queira...
Então, e rápido, Shorty recolheu as mãos ao colo e respondeu:
— Desculpe, Professor; o senhor disse alguma coisa?
— E quanto a você, disse alguma coisa? Shorty engoliu em seco.
— Eu. . . Não, senhor.
— Estávamos examinando — tornou o professor (para toda a classe, felizmente, e não para Shorty
apenas) — a possibilidade daquilo a que podemos nos referir como sendo o impossível. Não vejam
nisso nenhuma contradição, já que podemos distinguir perfeitamente o impossível do apossível.
Este último...
Sub-repticiamente, Shorty tornou a trazer as mãos para diante dos olhos e pôs-se a compará-las,
com olhares pasmos. A direita estava direita, mas a esquerda. . . De novo, fechou os olhos por um
momento e tornou a abri-los. Todos os dedos daquela mão, para todos os efeitos, continuavam
desaparecidos. No entanto, podia senti-los ali. Experimentalmente, acionou os músculos cujo ofício
seria movê-los, caso ainda os tivesse, e, de fato, sentiu-os exatamente ali.
Todavia não estavam, tanto quanto lhe era dado ver. Apalpou-os com a mão direita, e nada sentiu. A
direita entrou direta no espaço que eles deveriam ocupar, sem nada sentir nem tocar. Não obstante,
podia mexê-los. E demonstrava-o.
Era desconcertante. .
Foi quando se lembrou de que aquela era a mão que aproximara do local em que a varejeira azul
azulara. Nisso como para corroborar sua súbita suspeita, sentiu um ligeiríssimo toque num dos
dedos ausentes, e algo tão leve quanto a mais azul das moscas entrou a percorrer-lhos. Logo a
sensação desapareceu, como se novamente o invisível inseto tivesse alçado vôo.
Shorty mordeu os lábios, para reprimir nova exclamação. Já estava muito visado na classe.
Estaria biruta? Ou o professor teria razão ao julgá-lo adormecido? Como certificar-se? Beliscando-
se? Com os dedos que lhe restavam, a saber, os da mão direita, beliscou para valer a própria perna.
Doera. Mas e daí? Se era capaz de sonhar que se beliscava, não podia igualmente sonhar que doía?
Voltou a cabeça para a esquerda. Não havia nada para ver daquela banda: uma carteira vaga do
outro lado do corredor, outra ainda, também vazia, após aquela, a parede, a janela e o céu azul por
trás da vidraça.
Todavia...
Relanceou os olhos em direção do professor, que agora se concentrava nos símbolos que traçava no
quadro-negro.
— Digamos — dizia ele — que N represente o infinito conhecido e que o símbolo a equivalha ao
fator de probabilidade.
Numa nova tentativa, Shorty estendeu a mão esquerda para o vão entre as carteiras e examinou-a
detidamente. Com o fito de ainda certificar-se do fenômeno, esticou o braço um bocadinho mais.
Com o que ficou totalmente maneta. Apressadamente, recolheu o resto do braço e entrou a suar frio
por todos os poros.
Estava maluco, não podia ser outra coisa!
Fez nova tentativa para mover os dedos faltantes, e o resultado foi satisfatório. Moviam-se como se
deviam mover. Ainda tinham sensibilidade, cinética e tudo mais. Só que... Levando o coto do punho
em direção da carteira, não conseguiu senti-la. Dispôs as coisas de tal modo que sua mão, caso
ainda a tivesse apensa à extremidade do pulso, teria, forçosamente, que tocar a carteira ou bem
vará-la, mas nada sentiu. Estivesse aquela mão onde pudesse estar, era certo que na ponta de seu
pulso já não estava. Ainda havia de estar lá, no vão entre as carteiras, ou onde quer que a tinha
enfiado. Mas, e se ele todo se erguesse, retirando-se da sala, acaso ela permaneceria no local onde
fora perdida, e invisível? E se se arredasse dali umas mil milhas. . .? Mas isso era simplesmente
tolo!
Sê-lo-ia mais que estar ali sentado, com uma mão a dois pés de si? A diferença entre uma tolice de
dois pés e outra de mil milhas era apenas de grau.
Afinal, estaria lá a mão ou não?
Tirou a caneta do bolso e, com ela, passou a dar cutiladas no ar, aproximadamente no local onde
supunha lhe tivesse ficado o membro perdido, quando — não pairassem dúvidas a tal respeito —
constatou que só estava empunhando parte da caneta; metade, para ser exato. Tendo o cuidado de
não levá-la mais adiante, ergueu-a e a fez tombar de novo. No trajeto, ela colidiu — bem o sentira
ele — com as juntas invisíveis dos dedos de sua mão sumida! O fenômeno tanto o assombrou, que
foi levado a soltar a caneta; com o que também a perdeu inapelavelmente. Já não estava no solo,
entre as carteiras, nem em nenhuma parte. Virara sorvete! E que boa caneta de cinco dólares não
tinha sido!
Bolas! Ali estava a lamentar a perda de uma caneta, quando estava sem mão! Que faria a tal
respeito?
Isto: cerrou os olhos e disse consigo: “Shorty McCabe, você tem que destrinchar logicamente esse
negócio e dar jeito de recuperar essa mão, esteja ela onde estiver. E não se atreva a entrar em
pânico. Com toda certeza você está dormindo e sonhando tudo isto. Ou bem pode ser que não. Se
assim for, você está mesmo numa sinuca de bico. Agora, pois, sejamos lógicos. Há por aqui um
lugar, alguma superfície plana ou coisa que o valha, em que a gente pode perfeitamente enfiar a
mão ou qualquer outra coisa que quiser, a qual, porém, daí em diante, não se tem mais jeito de
recuperar. Haja que outras coisas houver desse outro lado, o certo é que sua mão esquerda está lá. E
sua direita não sabe o que a esquerda faz porque uma está aqui e outra não, sendo que ambas
jamais... Ei! Parado aí, Shorty! Isso não tem graça!”
Mas havia algo que podia fazer. E era apurar, aproximadamente, a forma e o tamanho do. . .
Daquilo, fosse o que fosse.
Sobre a carteira havia uma caixa de prendedores de papel. Colheu alguns com a direita e lançou um
deles naquele espaço entre as carteiras. O projétil adentrou a região visada umas seis ou oito
polegadas antes de desaparecer. Não o ouviu cair em parte alguma.
Até aí, nada de novo. Lançou outro prendedor, um pouco mais baixo que o primeiro. Mesmo
resultado. Então curvou-se sobre o assento, tendo o cuidado de não enfiar a cabeça na região
sumidoura, e jogou ainda outro prendedor, mais baixo, no mesmo rumo. A oito polegadas, o objeto
também sumiu. Jogou ainda outro e mais outro, pouco além e aquém daquele ponto. O tal plano
tinha, no mínimo, uma jarda de frente e fundo, e era mais ou menos paralelo ao corredor entre as
carteiras.
E de altura? Desferiu um prendedor que fez uma curva a seis pés de alto e sumiu. Outro mais, ainda
mais alto e pela frente. Após descrever uma curva no espaço, foi aterrar na cabeça de uma aluna,
três carteiras adiante, na fileira vizinha. Ela teve um ligeiro sobressalto e levou a mão à cabeça.
— Sr. McCabe — bradou o Professor Dolohan com severidade, — posso saber se esta palestra o
aborrece?
Shorty estremeceu.
— S... Não, Professor. Eu só estava...
— O senhor estava, segundo eu pude perfeitamente testemunhar, fazendo experiências balísticas e
estudando a natureza da parábola. Parábola, Sr. McCabe, é a curva descrita por um míssil projetado
no espaço e livre de qualquer outra força contínua que não o seu empuxo inicial e a força de
gravidade. Agora, será que posso tornar à minha palestra original, ou talvez queira vir aqui à frente
demonstrar a natureza da mecânica parabolóide para gáudio e edificação de seus colegas?
— Desculpe, Professor. Eu só ia... Humm... Digo... Peço desculpas.
— Obrigado, Sr. McCabe. E agora — o professor voltou-se para o quadro-negro, — se fizermos o
símbolo b representar o grau de apossibilidade, em contraposição a c...
Embezerrado com a reprimenda, Shorty baixou os olhos para as mãos — digo, mão — que tinha ao
colo. Olhou para o relógio na parede, logo acima da porta, e viu que em cinco minutos acabaria a
aula. Tinha que fazer algo, e depressa.
Olhou de novo para o vão. Não que lá houvesse algo para ver. Havia, porém, muito em que pensar.
Meia dúzia de prendedores de papel, a melhor caneta-tinteiro que já tivera e sua mão esquerda.
Havia uma invisível qualquer coisa lá fora. Que não se podia sentir, quando tocada, nem ouvir,
quando alvejada por prendedores de papel. Algo que admitia o trânsito de objetos numa direção,
não porém na contrária. Ele poderia, sem dúvida, estender sua mão única lá para fora e, com ela,
tocar a outra; mas nesse caso ficaria também sem esta. Logo acabaria a aula e. . .
Pinhões! Só havia uma coisa, moderadamente sensata, para se fazer. Do outro lado do plano nada
lhe magoava a mão esquerda, não era assim? Então, por que não penetrá-lo de corpo inteiro? Onde
quer que viesse a dar consigo, ao menos achar-se-ia de novo na íntegra.
Despediu um olhar furtivo para o professor, aguardando que se voltasse para traçar algo no quadro-
negro. Então, sem parar para pensar melhor e nem mesmo ousando pensar duas vezes, Shorty
ergueu-se.
E as luzes se apagaram.
Ou teria ele adentrado a escuridão?
Já não ouvia o professor, mas identificava certo zumbido semelhante ao de uma varejeira azul que
voasse em círculos pelas imediações.
Uniu as mãos, constatando que ambas ali estavam: direita e esquerda a se congratularem. Bem,
onde quer que estivesse, estava inteiro de novo.
Mas por que era que agora não conseguia enxergar?
E um súbito espirro estrondeou perto, fazendo-o estremecer de susto.
— Há... Hummm... alguém aí? — perguntou. A voz lhe tremia um pouco, e ele agora desejava
estar realmente dormindo, para poder acordar.
— Lógico que sim — respondeu-lhe uma voz aguda e ranheta.
— Ahn... Quem?
— Que história é essa de “quem”? Eu. Não está vendo?... Não; claro que você não pode me ver.
Esqueci-me. Mas ouça só aquele sujeito!... E dizem que nós é que somos loucos! — E
ouviu-se crepitar uma gargalhada no escuro.
— Q-Qual sujeito? — indagou Shorty. — E q-quem diz que quem é louco? Escute aqui, eu não
estou...
— Aquele sujeito — tornou a voz. — O professor. Você não está...? Não, não está. Esquecia-me de
que não podia estar. Seja como for, você não tem nada para fazer aqui. Eu estou ouvindo o professor
disparatar sobre o que aconteceu aos sáurios.
— Aos quê?
— Sáurios, “seu”; dinossauros. E ainda dizem que nós é que somos birutas!
Shorty McCabe sentiu de súbito a imperiosa necessidade de sentar. Tateando, identificou a parte
superior de uma mesa, bem como um banco vago atrás dela, em que se acomodou. E tornou a tomar
da palavra.
— Isto tudo é grego para mim, senhor. Quem diz que quem é louco?
— Dizem que nós o somos. Não percebe?... Está bem, não percebe. Quem deixou essa mosca
entrar?
— Comecemos do princípio — suplicou Shorty. — Onde é que eu estou?
— Ah vocês normais! — tornou a voz, com petulância. — É só apresentar-lhes alguma coisa fora
do comum e já disparam a fazer perguntas... Um minutinho só, que já respondo. Quem quer me
tocar essa mosca daqui!
— Não posso vê-la... Eu...
— Silêncio! Eu quero assistir à aula; foi para isso que vim. Ele... Caramba! Está ensinando que os
dinossauros se extinguiram dada a falta de alimento, por terem crescido demais. Não é uma asneira
grossa? Quanto maior a criatura, maiores as suas chances de encontrar comida, não é verdade?
E essa, então, de que os herbívoros morressem à míngua no meio daquelas florestas! Ou de que os
carnívoros estalassem de fome, com os herbívoros por perto! E.. . Mas para que dizer-lhe tudo
isto? Você é um normal que está aí!
— Eu. . . não entendo. Se sou normal, que é o senhor? A isso a voz riu exultante e respondeu:
— Eu sou maluco.
Shorty McCabe engoliu em seco. Não parecia haver mais nada que dizer. A voz estava obviamente
certa quanto àquilo.
Em primeiríssimo lugar, se dali se pudesse ouvir algo, havia de ser o Professor Dolohan discorrendo
sobre o absoluto positivo; e eis que aquela voz (com quem quer que lhe estivesse anexo, se alguém
havia) acreditava estar a ouvir coisas sobre o desaparecimento dos sáurios. Isso não fazia o menor
sentido, porque o Professor Dolohan nem era capaz de distinguir um pterodáctilo matusquela de um
esferóide oblato.
E — Ai! — gemeu Shorty.
Alguma coisa lhe desabara duramente sobre o costado, fazendo-o vergar.
— Desculpe — disse a voz. — Eu só queria ver se esbordoava essa mosca danada. Estava pousada
em você. Enfim, errei o alvo. É só um minutinho enquanto eu ligo a chave e faço a bicha sair. Vai
querer sair também?
E o zumbido cessou, de súbito. Shorty recompôs-se e respondeu:
— Ouça, eu... não creio que me convenha sair, antes de formar uma boa idéia de onde. Na certa
estou maluco, mas...
— Nada disso, você é normal; os malucos somos nós. Ao menos, é o que se diz. Enfim, essa arenga
sobre dinossauros me aborrece; aturá-la quase chega a ser pior que dar trela a você. Começa que
não tinha nada que estar aqui, nem você nem aquela mosca, entendeu? O raio da máquina entrou em
pane. Preciso dizer ao Napoleão...
— A quem?
— Napoleão. É o manda-chuva desta província. Os Napoleões são manda-chuvas em algumas
outras também. É que boa parte de nós acredita ser Napoleão em pessoa, mas não eu. É uma ilusão
comuníssima em nosso meio. Enfim, o Napoleão a que me refiro é o de Donnybrook.
— Donnybrook? Não é um asilo de doidos?
— Lógico que é; onde mais se poderia achar alguém que pensasse ser Napoleão?
Shorty McCabe cerrou os olhos e constatou que tanto montava tê-los assim como abertos;
continuava às escuras. Disse então com seus botões: “Preciso continuar a fazer perguntas até obter
respostas racionais, do contrário acabo endoidando. Talvez eu já esteja doido. Pode ser que estar
doido seja isto. Porém, se estou, ainda estarei sentado na classe, assistindo à aula do Professor
Dolohan ou... Ou o quê?
Abriu os olhos e indagou:
— Vamos ver se se pode examinar a coisa de um outro ângulo. Onde está o senhor?
— Eu? Oh, eu também estou em Donnybrook. Normalmente, quero dizer. Todos desta província
estamos, salvo alguns poucos que ainda se acham do lado de fora, compreende? Neste preciso
instante — e subitamente a voz passou a dar mostras de embaraço — eu me encontro numa cela
acolchoada.
— E — interveio Shorty, receoso — é isto aqui? Digo, eu também estou nessa cela acolchoada?
— Lógico que não. Você não é demente. Ouça, não tenho que lhe dar satisfações. Há uma linha
divisória bastante nítida entre nós. entenda bem isso. Acontece apenas que a máquina enguiçou.
Shorty sentiu ganas de perguntar qual máquina, mas teve o palpite de que a resposta que iria obter
suscitaria bem umas sete ou oito perguntas mais. Talvez se malhasse um único ponto até assentá-lo
direito, passasse depois a entender o resto.
— Voltemos ao Napoleão — disse. — O senhor afirma que há mais de um Napoleão entre vocês?
Como é possível? Não pode haver dois exemplares de uma mesma pessoa.
E a voz matava-se de rir.
— Isso diz você; o que prova que é mesmo uma pessoa normal. Essa é a maneira mais
comezinhamente normal de raciocinar; é correta, não há dúvida. Mas esses tais que se crêem
Napoleão são birutas. Logo, essa verdade universal, por muito verdadeira que seja, não se lhes
aplica. Por que diacho cem homens não haverão de ser o mesmíssimo Napoleão, se são azoretados
demais para saber que não podem sê-lo?
— Bem — prosseguiu Shorty, — ainda que o Napoleão original já não estivesse morto e bem
morto, ao menos noventa e nove dentre eles estariam completamente enganados, não é mesmo?
Coisa lógica!
— O mal — tornou a voz — é que não parece haver jeito de se lhe meter na cabeça que nós somos
umas pessoas destrambelhadas.
— Nós? Quer dizer que eu...?
— Não, não, não, não, não. Quis dizer nós outros, eu e os demais, não você. Eis por que você nem
devia estar aqui, percebe agora?
— Não — foi a resposta.
E o curioso era que Shorty já não sentia nenhum temor. Sabia que devia estar dormindo e sonhando
tudo aquilo; porém, quanto a achar, não achava que estivesse. E convencera-se de que louco não
ficara. A própria voz a que falava lho dissera; e aquela era uma voz que, sim senhor, parecia saber o
que dizia.
Uma centena de Napoleões!
— Que gozado — disse. — Vou descobrir quanto puder, antes de acordar. Quem é o senhor; qual o
seu nome? O meu é Shorty.
— Fraco gosto em conhecê-lo, Shorty. Via de regra, as pessoas normais me caceteiam; mas você
parece um tantinho menos paulificante que a maioria. Entretanto, prefiro não lhe revelar o nome por
que sou conhecido em Donnybrook; não o quero por lá fazendo visitas de caridade ou o que
for. Chame-me de Dunga apenas.
— Quer dizer... Ahn... Dos Sete Anões? Acredita ser um dos...?
— Oh, não, de jeito nenhum. Não sou paranóico; as minhas manias, como você as chamaria, nada
têm que ver com identidade. Esse é apenas o apelativo pelo qual atendo. Meu outro nome não é da
sua conta.
— E quais são — arriscou ainda Shorty — as suas... ahn... manias?
— Modéstia à parte, sou inventor; o que se chama de inventor maluco, bem entendido. E creio
inventar máquinas-do-tempo, para começar. Esta aqui é uma delas.
— Esta? Quer dizer que eu estou dentro de uma máquina-do-tempo? Ora, sim senhor, isso até que
explicaria... ahn... uma ou outra coisa. Mas, escute, se isto aqui é uma dessas tais máquinas, e
funciona, por que diz que crê inventá-las? Se esta é... Digo...
A voz ria ao responder:
— Acontece que é impossível existirem máquinas-do-tempo. Seria um paradoxo. Seu
professor poderá explicar-lhe que uma máquina dessas não pode existir de jeitíssimo nenhum. Do
contrário, duas coisas poderiam ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. Então alguém poderia
regredir no tempo e esganar-se a si mesmo quando fosse mais jovem e... Xi! todo o resto dessas
baboseiras. É completamente impossível, creia-me. Só mesmo um doido varrido poderia...
— No entanto, o senhor afirma que isto aqui é uma... ahn... Onde está ela, por falar nisto? Quero
dizer, onde no tempo?
— Agora? Em 1968, claro.
— Em 19. . .? Mas, espere aí, nós ainda estamos em 1963. A não ser que tenha mexido nela depois
que eu entrei...
— Não; eu permaneço estacionado em 1968 desde que você subiu até agora; foi nesse ano que
assisti àquela aula sobre os dinossauros. O caso é que você subiu antes; cinco anos antes. É o raio
daquele defeito... O tal de que tenho que falar com o Napo...
— Mas onde é que eu estou... estamos... agora?
— Você está na mesmíssima classe de que saiu, Shorty. Só que cinco anos depois. Se estender o
braço, vai notar... Experimente levar a mão um pouco para a esquerda, logo atrás de onde você
estava sentado.
— Ahn... Vou poder reavê-la depois, ou vai acontecer como antes?
— Não se preocupe; vai reavê-la.
— Se é assim... — disse Shorty, esticando a mão no rumo indicado. Tocava algo que lhe pareceu
ser um tufo de cabelos. Pegou-os experimentalmente e os puxou de leve.
O tufo se lhe arrancou da mão, e ele recolheu o braço involuntariamente.
— Puxa! — exclamou a voz a seu lado. — Isso foi mesmo divertido!
— Que... que aconteceu? — indagou o rapaz.
— Aquilo era uma ruiva atordoante. Está sentada no mesmo lugar em que você estava cinco anos
atrás. Foi o cabelo dela que você puxou. E devia ter visto o pulo que ela deu! Ouça...
— O quê?
— Silêncio, ou não poderei ouvir... — Fez-se uma pausa e a voz riu um riso contido e malicioso. —
O professor está cavando um encontro com ela!
— Ahn? — exclamou Shorty. — Em plena aula? Como...
— Ora, ele apenas olhou para ela no momento em que a ouviu disparar um grito e a mandou
permanecer em classe depois da aula. Mas, a julgar pelo modo como envesga os olhos para cima
dela, sou capaz de jurar que tem outros motivos para retê-la. E não é para menos; a ruiva é mesmo
de fechar o comércio. Vamos lá, torne a puxar-lhe o cabelo!
— Ahn... Bem, isso não seria lá muito... Ahn...
— Está bem — tornou a voz, desapontada. — Teimo em esquecer que você não é maluco. Ser
normal deve ser mesmo uma droga. Enfim, vamos sair daqui. Já estou enfarado de tudo isto. Como
prefere caçar?
— Caçar! Bem, não tenho boa pontaria. Especialmente quando não enxergo nada.
— Oh, a escuridão acaba se você sair de dentro da máquina. O mundo que irá ver é o seu próprio,
só que mais amalucado. Ou, melhor, trata-se de um... Como seu professor exprimiria isto?... De um
aspecto ilógico da logicidade. Seja como for, sempre caçamos de estilingue; é mais engraçado.
— E o que é que caçam?
— Dinossauros. São mais divertidos.
— Dinossauros! Com estilingue! Está ma... Digo... No duro?
— Claro! Aí está o mais ridículo no que aquele professor dizia sobre os sáurios. Fomos nós que os
extinguimos. Desde que construí esta máquina-do-tempo, o período jurássico se tem constituído,
por assim dizer, na nossa estação de caças favorita. Mas ainda devem ter ficado alguns. Conheço
um bom lugar para tais caçadas. É bem aqui onde estamos.
— Aqui! Não estamos numa sala de aula, em 1968?
— Estávamos. Vejamos, vou inverter a polaridade, e você poderá sair.. . Andando!
— Mas... — começou Shorty. — Enfim... — acrescentou depois. E deu um passo para a direita.
O brilho do Sol ofuscou-o. Era mais intenso do que jamais se lembrava de ter visto antes e
representava um violento contraste com a escuridão em que viera imerso. Levou as mãos aos olhos,
à guisa de anteparo, e só bem lentamente pôde retirá-las e reabri-los, vendo, então, que estavam
sobre o areai de um remansoso lago.
— Eles costumam vir aqui para beber — explicou uma voz familiar. E o rapaz voltou-se. O
homem que viu era um tampinha de aparência engraçada, umas boas quatro polegadas mais baixo
que ele, que por sua vez só media um metro e sessenta e cinco de altura. Usava, ademais, óculos de
tartaruga e um minúsculo cavanhaque; seu rosto parecia miúdo e seco debaixo da imensa cartola
preta que o tempo já esverdeara aqui e ali.
Enfiando a mão no bolso, sacou de um estilinguezinho, cujas tiras de borracha, entretanto, eram
bem grossas, e disse, passando-o a Shorty:
— Pode dar o primeiro tiro, se quiser.
O outro abanou vigorosamente a cabeça e respondeu.
— O senhor primeiro.
O homúnculo inclinou-se sobre o solo arenoso e escolheu meticulosamente algumas pedras.
Embolsou-as todas menos uma, da qual se serviu para municiar a arma. A seguir, sentou-se numa
enorme pedra arredondada e esclareceu:
— Não precisamos nos esconder. São muito burros esses dinossauros. Virão exatamente até nós.
Shorty tornou a olhar em volta de si. Havia árvores, a umas cem jardas do lago, atrás deles;
estranhas e monstruosas árvores, com folhas descomunais, de um verde mais pálido que o de
qualquer planta que já vira. Entre o bosque e o lago só havia montículos de arbustos enfezados, de
cor pardacenta, e uma espécie graúda de relva amarelada.
Faltava algo. Shorty subitamente se lembrou do quê.
— E a máquina-do-tempo? — indagou.
— Oh, está bem aqui.
E, para comprová-lo, o homenzinho estendeu a mão para a esquerda, fazendo-a desaparecer até o
cotovelo.
— Oh! — exclamou Shorty, e aduziu: — Eu só queria ver com que ela se parece.
— Parecer? — bradou o outro. — Como haveria de parecer-se com alguma coisa? Digo-lhe que não
existem essas tais de máquinas-do-tempo. Nem podem existir; seria o cúmulo do absurdo. O tempo
é uma dimensão perfeitamente fixa. E foi provar isto para mim próprio o que me virou o juízo de
vez.
— E quando foi que isso se deu?
— Daqui a mais ou menos quatro milhões de anos, aí por volta de 1961. Encasquetei de
construir uma máquina dessas, e acabei doido ao convencer-me de que não podia.
— Oh — disse Shorty. — Ouça, como é que antes, no futuro, eu não pude enxergá-lo e agora
posso? E de quem é este mundo de há quatro milhões de anos, seu ou meu?
— Uma só resposta esclarece ambas as questões. Isto aqui é uma região neutra, anterior à
bifurcação entre doidice e sensatez. Os dinossauros são tremendamente obtusos; não têm
miolo bastante nem para ser malucos, muito menos para ser normais. Não sabem de absolutamente
nada. Ignoram que não possam existir máquinas-do-tempo. Aí está por que podemos vir aqui.
— Oh — repetiu Shorty. E aquilo o fez calar-se por um momento. Enfim, o que acabava de ouvir
não parecia nem um pouco mais extraordinário que esperar o momento de ver um dinossauro ser
abatido a estilingadas. Mas, afinal, o grosso da maluqueira estava em que fosse capaz de esperar, a
sério, um dinossauro de verdade. Uma vez assentado esse ponto, tudo o mais já parecia menos tolo.
— Escute aqui — disse ele; — se acham que usar estilingue contra essas criaturas é divertido, o que
me diz de um abano enxota-moscas?
A isso os olhos do homenzinho se iluminaram.
— Grande idéia! — exclamou ele. — Talvez queira ter a honra de inaugurar o novo método...
— Não! — interveio Shorty, às pressas. — Eu só estava brincando. Mas ouça...
— Não ouvi nada.
— Não é isso; o que eu quis dizer foi... Bem, escute aqui: logo, logo eu vou acordar ou qualquer
coisa parecida, e ainda tenho algumas perguntinhas que gostaria de fazer enquanto... enquanto o
senhor ainda está aqui.
— Quer dizer enquanto você ainda está aqui — emendou o encartolado homenzinho. — Já lhe disse
que o fato de você ter entrado nisto comigo foi puramente acidental; coisa, aliás, que terei de
discutir com o Napo...
— Dane-se o Napoleão — interveio Shorty. — Ouça, quer ter a fineza de me responder isto de
modo que eu entenda: Nós estamos aqui ou não estamos? Digo, se aí do lado há uma máquina-do-
tempo, como é que ela pode estar aí, se máquinas-do-tempo não existem? E, afinal, eu estou, ou
não, ainda em classe, na aula do Professor Dolohan; e, se ainda estou lá, que faço aqui agora? E.. .
Ai, raios; o que significa tudo isto?
O homenzinho sorria consternado.
— Vê-se logo que você está completamente confuso. Mas acho que posso tirá-lo do apuro. Sabe
alguma coisa sobre Lógica?
— Bem, um pouquinho, Sr... Ahn.. .
— Pode me chamar de Dunga. E se sabe um pouquinho que seja de Lógica, é esse justamente o seu
mal. Esqueça o pouco que aprendeu e lembre-se de que eu sou maluco; isso torna as coisas
diferentes, não? Um maluco não tem obrigação de ser lógico. Nossos mundos são diversos, não está
vendo? Ora, você é o que chamamos de pessoa normal; isto é, encara as coisas do mesmo modo
como o resto das pessoas. Nós, porém, não. E, como é óbvio que a matéria não passa de mero
conceito intelectual...
— No duro?
— Claro!
— Mas isso de acordo com a Lógica. Descartes...
O homenzinho pôs-se a cabriolar o estilingue em torno da forquilha.
— Oh, sim. Mas não de acordo com outros filósofos. Os dualistas. É justamente nisso que os
lógicos nos deixam fulos. Dividem-se em dois campos e assumem posições frontalmente opostas. E
não é possível que ambas as correntes estejam igualmente erradas. Tolo, não acha? Mas o fato é que
a matéria é mero produto da consciência, precisamente como certos indivíduos, não exatamente
loucos, supõem que seja. Ora, existe um conceito normal de matéria, no qual você crê, e uma
chusma de outros, anormais. Os anormais se aglutinam entre si.
— Não chego a compreender. Está me dizendo que existe alguma espécie de sociedade secreta de...
ahn... lunáticos que... ahn... vivem, por assim dizer, num mundo diferente?
— Nada de por assim dizer — corrigiu o outro, enfático. — E não se trata de sociedade secreta nem
de nenhuma organização desse tipo. A coisa simplesmente é assim e está acabado. Nós nos
projetamos em dois universos, se assim me posso exprimir. Um é normal; nele nascem e, é claro,
permanecem os nossos corpos. Se somos doidos bastante para atrair sobre nós a atenção pública,
acabamos internados nos asilos que lá existem. Mas também temos uma outra existência: em nossas
mentes. É onde eu estou e é onde você está no momento, sem tirar nem pôr: na minha mente.
Tampouco estou de fato aqui onde pareço estar.
— Arre! — exclamou Shorty. — Mas como é que eu posso estar na sua...?!
— Já expliquei. Falha da máquina. Mas, seja como for, a Lógica não é muito prezada no meu
mundo. Um paradoxo a mais ou a menos não faz a mínima diferença, e uma máquina-do-tempo,
afinal, não é coisa para despertar tanta celeuma; é uma bagatela. Muitos de nós as têm. Muitos têm
regredido até aqui a fim de caçar. É como extinguimos os dinossauros e aí está por que...
— Espere aí — freou-o Shorty. — Este mundo em que estamos, neste preciso instante, o período
jurássico, faz parte aí do seu... ahn... conceito, ou é real? Parece real e tem todo jeito de ser
autêntico.
— É perfeitíssimamente real, só que nunca existiu de verdade. Coisa lógica! Se a matéria é um
conceito da mente, e os sáurios não têm mente de jeito nenhum, como poderiam eles conceber para
si um mundo em que vivessem? A menos que nós, posteriormente, o ideássemos para eles...
— Ai — gemia Shorty, com a cabeça à roda. — Está me dizendo agora que os dinossauros
realmente nunca...!
— Psiu! Aí vem um — interrompeu-o o baixote.
Shorty estremeceu. Olhando em torno, não avistou nada que se parecesse com um dinossauro.
— Logo ali embaixo — apontou o homenzinho; — entre aqueles arbustos. Agora, observe a
pontaria aqui do degas.
Shorty baixou consideravelmente os olhos, enquanto seu companheiro, erguendo-se, assumia
posição de tiro. Uma pequena criatura, aparentada ao lagarto, mas erecta e saltitante como lagarto
algum jamais foi, aproximava-se dos arbustos. Media cerca de meio metro de altura.
O homúnculo distendeu o estilingue, a pedra sibilou no ar e, com um baque surdo, estuporou a
criatura, atingindo-a bem entre os olhos. O homenzinho correu agilmente até o local e ergueu a
peça.
— O próximo é seu — disse. Shorty pasmava ante o sáurio abatido.
— Um struthiomimus! — exclamou por fim. — Puxa! E se aparecesse um daqueles gigantaços?
Um brontossauro, digamos, ou um tiranossauro?
— Esses já estão extintos. Acabamos com a raça toda. Só sobraram desses miudinhos. Mas,
convenhamos, sempre é melhor que caçar coelhos. Bem, um me basta por esta vez. Já começo a me
aborrecer, mas posso esperá-lo abater o seu.
Shorty abanou a cabeça.
— Não sou tão bom no estilingue; fica para outra vez. Quedê a máquina?
— Está aí mesmo; dê dois passos à frente. Shorty obedeceu, e de novo as luzes se apagaram.
— É só um instante — tornou a voz do homenzinho — enquanto eu aciono as alavancas. Vai querer
descer no mesmo lugar onde subiu?
— Ahn... É uma boa idéia. Do contrário, eu poderia me perder. Onde estamos agora?
— De volta a 1968. E aquele fulano ainda está dizendo à classe o que pensa ter acontecido aos
dinossauros. E aquela ruiva!... Ela é mesmo um estouro. Quer puxar o cabelo dela outra vez?
— Não — respondeu Shorty. — Só que eu queria apear em 1963 mesmo. Como isso poderia me
fazer chegar lá?
— Você veio de 63, não é? É o danado do defeito. Bem, acho que isto vai reconduzi-lo exatamente
ao ponto de partida.
— Acha, apenas? — indagou Shorty. — Ouça, e se eu apeasse um dia antes e me sentasse em minha
própria carteira, lá na sala de aula?...
A voz sorriu a isso.
— Você não poderia fazê-lo; não é maluco. Mas eu já o fiz, certa vez... Bem, vá saindo. Agora
quero regredir para...
— Obrigado pela carona — agradeceu Shorty. — Mas... Espere um pouco. . . Ainda tenho uma
pergunta a fazer... Sobre esses dinossauros...
— Sim? Seja breve: a máquina pode aprontar alguma a qualquer instante.
— Os grandes, os verdadeiramente grandalhões... ahn... como raios podem ter sido abatidos a
estilingadas? Ou não foram?
O homenzinho rachava-se de rir.
— Claro que foram. Só tivemos que usar estilingues maiores. Até a vista, amigo!
Shorty sentiu-se empurrar para fora, e a luz tornou a ofuscá-lo. Achou-se em pé, no meio da classe.
— Sr. McCabe — disse-lhe a voz sarcástica do Professor Dolohan, — ainda faltam cinco minutos
para o término da aula. Até lá, quer ter a gentileza de voltar para seu lugar? Andou, que mal per-
gunte, sonambulando?
Shorty sentou-se e respondeu, embaraçado:
— Eu... Ahn... Desculpe, Professor.
Permaneceu atônito o resto do período. A aventura fora demasiado vivida para ter sido sonhada. E
acresce que sua caneta continuava desaparecida. Mas era claro que podia tê-la perdido em alguma
outra parte. No entanto, a coisa toda tinha sido tão vivida que lhe foi necessário um dia inteiro para
finalmente se convencer de que fora sonho, e uma semana para esquecer-se do ocorrido, o que fez
aos poucos e por longo tempo.
Gradativamente, sua lembrança do caso se esvaiu. Um ano depois ainda se recordava
nebulosamente de que tinha tido um sonho particularmente disparatado. Quatro anos mais, e já não
se lembrava de patavina: não há sonho que resista a tanto tempo.

Agora já era professor adjunto de Paleontologia e estava em plena aula.


— Os sáurios — ensinava ele — extinguiram-se na segunda parte do período jurássico. Tendo-se
desenvolvido em excesso, acabaram não mais podendo se alimentar...
Enquanto discorria, não tirava os olhos da bela ruiva da última fileira. Pensava num modo de cobrar
coragem para abordá-la e propor-lhe um encontro amoroso.
Havia uma varejeira azul ali; brotara de certo ponto ao fundo da classe e voejava agora de um lado
para outro, enchendo a sala do seu zumbido monótono. A vista do inseto sugeriu algo à lembrança
do Professor McCabe, que, enquanto falava, procurava lembrar o que seria. Mas, nesse preciso
instante, a ruiva da última fileira saltou da cadeira, com um ganido.
— Miss Willis — acudiu ele, — o que houve?
— Eu... tive a impressão de que me puxassem o cabelo, Professor — explicou ela, corando;
circunstância que a fazia ainda mais atordoante. —— Com certeza... eu estava cochilando.
McCabe espetou nela os olhos (severamente, porque tinha voltada sobre si a atenção da classe) e
desde logo reconheceu no incidente a deixa por que tanto esperava.
— Miss Willis — disse por fim, — queira esperar-me após a aula.

SHOW DE MARIONETES

O Horror chegou a Cherrybell nas primeiras horas de uma tarde abrasiva de agosto.
Talvez haja aí uma redundância, pois qualquer dia de agosto em Cherrybell, Arizona, é abrasivo.
Situa-se essa localidade na rodovia 89, cerca de quarenta milhas ao sul de Tucson e trinta ao norte
da fronteira mexicana. Consiste de dois postos de gasolina, um de cada lado da estrada para servir o
tráfego em ambos os sentidos, um armazém geral, uma taverna com licença apenas para vender
vinho e cerveja, um posto de comércio para os turistas que não podem esperar até chegarem à
fronteira para começar a comprar sarapes e huaraches, uma barraca de hamburgers às moscas e
algumas casinholas de adobe habitadas por americanos de origem mexicana que trabalham em
Nogales, cidade-limítrofe do Sul, e que, só Deus sabe por que, preferem morar em Cherrybell
mesmo tendo de viajar regularmente, alguns até em Fords modelo T. O letreiro na estrada diz:
“Cherrybell, Pop. 42”, mas exagera; Pop morreu o ano passado (Pop Anders, o tal que dirigia a
barraca de hamburgers agora deserta), de modo que a cifra correta é 41.
O Horror surgiu em Cherrybell montado num burro que, por seu turno, era conduzido por um velho
e sujo rato do deserto, um explorador com barbas grisalhas, que — ninguém saíra por lá a
perguntar-Ihe o nome — se vendia por Dade Grant. O nome do Horror era Garth. Tinha
aproximadamente dois metros e oitenta de comprido, mas era tão magro, um graveto de homem,
que não havia de pesar mais de cinqüenta quilos. O burro do velho Dade passeava-o com facilidade,
se bem que os pés do cavaleiro rasgassem sulcos na areia em ambos os lados da montaria, à medida
que cavalgava. O arrastar-se pela areia por, como se viu depois, bem mais de cinco milhas não lhe
causou o menor dano às botinas — mais pareciam borzeguins — que eram tudo o que usava,
descontado um par do que alguma vez teriam sido ceroulas natatórias, azuis como só ovo de tordo
americano. Mas não eram suas dimensões o que o tornavam horrível de se olhar; era a pele que
tinha. Parecia rubra, como carne viva. Era como se tivesse sido esfolado vivo e depois o tivessem
tornado a enfiar na própria pele, só que de ponta-cabeça e pelo avesso. Seu crânio, sua face, eram
igualmente estreitos e alongados; afora isso, em tudo o mais que se pudesse ver parecia humano —
ou pelo menos humanóide. A não ser que o leitor faça caso de questiúnculas tais como de que seus
cabelos eram da mesa cor dos calções, e bem assim seus olhos e botinas. Vermelho-sangue e azul-
claro.
Casey, o dono da taverna, foi o primeiro que os avistou vindo da planície, dos lados da cadeia de
montanhas no rumo do Leste. Chegara-se à porta dos fundos para tomar um pouco de ar fresco
embora quente. Estavam a cerca de cem jardas naquele momento, e logo surpreendeu-o a esquisitice
da figura bifurcada em cima do burro. Apenas esquisitice, àquela distância; o horror mesmo só veio
quando se acercaram mais. O queixo de Casey caiu e permaneceu caído até que o trio estivesse a
cinqüenta jardas; só então, e lentamente, caminhou em direção deles. Há pessoas que disparam em
fuga à vista do desconhecido, e outras que lhe avançam ao encontro. Casey avançou, porém
devagar.
Ainda ao ar livre, a vinte jardas dos fundos da taverninha, encontrou-se com eles. Dade Grant fez
alto e largou a corda por que puxava o burro. O animal estacou e inclinou a cabeça. Para
descavalgar, o homem-graveto só teve que firmar os pés que já trazia no chão e erguer-se. Deteve-se
um momento, apoiando-se com as mãos nas costas do burro, depois sentou-se na areia.
— Planeta de alta gravidade — disse. — Não vou poder me demorar muito.
— Posso ‘panhá água pro meu burro? — quis o explorador saber, dirigindo-se a Casey. — Deve
‘tá danado de com sede. Nós num pôde trazê as borsa d’água e outras coisas também, se não num
dava jeito de trazê aí... — E com o polegar indicou o Horror ru-bro-azulino.
Casey estava justamente se compenetrando de que era efetivamente um horror. À distância, a
combinação de cores parecia um tanto outré, porém de perto... A pele era rude, parecia ter veias
pelo lado de fora, dava a impressão de úmida (que não estava), e que o diabo leve o leitor se não era
exatamente como se tivesse despido a própria pele e tornado a enfiar-se nela de cabeça para baixo.
Ou que a tivesse apenas despido e ponto final. Casey, que jamais vira nada parecido antes e
esperava nunca mais ver, pressentiu algo atrás de si e olhou por cima do ombro. Outros já tinham
dado pela coisa e vinham se chegando para lá, mas os que mais ousavam acercar-se, dois meninos,
ficaram a dez jardas dele.
— Muchachos — gritou ele. — Agua por el burro. Un pazal. Pronto.
Olhou para trás e balbuciou: — Que...? Quem...?
— O nome é Dade Grant — explicou o explorador, estendendo A mão que Casey apertou distraído.
Quando a largou viu que o dono a sacudia de novo por sobre o respectivo ombro, com o que
entendeu que o rato do deserto indicava, com o polegar, o ser sentado na areia. — O dele é Garth,
ele que disse. É um extra-não-sei-quê e também uma espécie de ministro.
Casey cumprimentou a criatura com um gesto de cabeça e muito se alegrou de obter um gesto
similar em troca, em vez de uma mão estendida.
— Eu sou Manuel Casey — explicou. — Que quis dizer o velho com esse extra-qualquer-coisa?
A voz do homem-graveto era inesperadamente profunda e vibrante.
— Eu sou extraterreno. E ministro plenipotenciário.
Por incrível que pareça, Casey era moderadamente bem-educado e entendeu as duas frases que
ouvira; era provavelmente a única pessoa em Cherrybell capaz de entender a segunda. Já menos
surpreendente, considerando-se a aparência de seu interlocutor, era que acreditasse em ambas.
— Deseja alguma coisa, cavalheiro? — perguntou. — Mas que acham de sairmos primeiro desse
sol?...
— Não, obrigado. Aqui é um pouco mais frio do que me disseram, mas estou bem. Este tempo de
vocês corresponde a uma tarde fria de primavera no meu planeta. E quanto ao que desejo, quero que
notifique seus superiores de minha presença. Creio que se interessarão.
Bem, pensava Casey, por sorte a criatura dera com a pessoa mais indicada para aquilo num raio de
pelo menos vinte milhas. Manuel Casey era meio irlandês, meio mexicano. Tinha um meio-irmão
que era meio irlandês e meio americano, e esse seu meio-irmão era um tal de coronel da Base Aérea
de Davis-Monthan em Tucson. Respondeu, pois:
— Espere um instante, Sr. Garth, é só o tempo de telefonar. E o senhor, Sr. Grant, não quer entrar?
— Não, o Sór num me faz mar. Tô costumado. E o “Seu” Garth aqui pediu pr’eu ficá perto dele até
ele acabá o que veio fazê aqui. Disse que depois me dava um troço... um eletro... humm...
— Um indicador mineralógico eletrônico, portátil, operado a bateria — esclareceu Garth. — É
um aparelhinho simples que serve para indicar qualquer concentração de minério num raio de pelo
menos uma milha; acusa espécie, grau, quantidade e profundidade.
Casey engoliu em seco, desculpou-se, e, abrindo caminho por entre a turba de curiosos, tornou a
entrar na taverna. Em um minuto estava com o Coronel Casey ao telefone, mas precisou de mais
quatro para convencê-lo de que não estava bêbedo nem gracejando.
Vinte e cinco minutos depois ouviu-se um ruído no céu, que se foi avolumando e cessou, enquanto
um helicóptero para quatro pousava e emudecia a poucos passos de uma criatura extraterrena, dois
homens e um jumento. Somente Casey tivera coragem de voltar para junto do trio; havia outros
espectadores, mas conservavam-se à distância.
O Coronel Casey, mais um major e um capitão, além de um tenente que pilotava o helicóptero,
todos saíram e correram para lá. O homem-graveto ergueu-se, com seus quase três metros de altura;
do esforço que lhe custava o simples estar em pé, dir-se-ia que estava acostumado à gravidade
menor que a da Terra. Inclinou-se e repetiu sua identificação como ministro plenipotenciário
extraterreno. A seguir, desculpou-se por tornar a sentar, tendo dado as explicações necessárias, e
sentou-se.
O coronel apresentou-se e aos outros três que com ele vinham.
— Então, caro senhor, que deseja de nós?
O homem-graveto fez um esgar, decerto na intenção de sorrir. Da mesma forma que cabelos e olhos,
seus dentes também eram azul-claros.
— Vocês usam por aqui a fórmula “levem-me ao seu líder”. Não peço isso. Para ser franco, tenho
de ficar aqui. Também não peço que me tragam aqui nenhum dos seus maiorais. Não seria educado.
Estou perfeitamente disposto a aceitar que eles sejam representados pelos senhores, a falar-lhes e
deixar-me entrevistar. Só uma coisa peço. Vocês têm gravadores de fita; que um seja trazido aqui,
antes de eu começar a falar ou a responder perguntas. Quero estar seguro de que seus chefes
receberão a mensagem completa e exata.
— Perfeitamente — disse o coronel, e voltou-se para o piloto. — Tenente, ligue para a base e
mande trazerem um gravador o mais depressa possível. Pode ser lançado de pára-... Não
demoraria muito. Mande vir outro helicóptero.
O tenente se voltou a fim de executar a ordem.
— Mande trazerem também — gritou-lhe ainda o superior — cinqüenta metros de fio de extensão.
Vamos ter que ligar o aparelho dentro da taverna do Maneco.
E o tenente correu para o rádio do helicóptero. Os outros estiveram sentados a suar por um
momento, mas logo Manuel Casey se ergueu.
— É espera de meia hora — disse, — e se vamos ficar debaixo deste sol, que acham de uma cerveja
gelada? Sr. Garth?
— Bebida gelada? Estou sentindo um pouco de frio. Se quiser me trazer alguma coisa quente...
— O café está saindo. Quer um cobertor?
— Não, obrigado. Não será necessário.
Casey foi-se e logo voltou equilibrando numa bandeja meia dúzia de cervejas geladas e uma xícara
de café fumegante. O tenente já estava de volta então. Casey baixou a salva e serviu primeiramente
o homem-graveto, que, degustando o café, disse estar delicioso.
O Coronel Casey limpou a garganta e disse:
— Sirva aí o nosso amigo explorador em seguida, Maneco. Quanto a nós... Bem, é
proibido beber em serviço, mas estava quarenta e quatro graus à sombra lá em Tucson; aqui está
bem mais quente e, depois, não estamos na sombra. Cavalheiros, considerem-se oficialmente de
licença pelo tempo que levarem para tomar uma garrafa de cerveja, ou até que chegue o gravador,
ou o que acontecer primeiro.
A primeira coisa que aconteceu, dentre essas duas, foi terminarem a cerveja, mas quando a última
delas foi consumida, o segundo helicóptero já podia ser avistado e ouvido. Casey indagou do
homem-graveto se queria mais café. O oferecimento foi educadamente recusado. Casey olhou para
Dade Grant e deu uma piscadela; o rato do deserto piscou em resposta, de modo que Casey voltou
para a taverna em busca de mais duas garrafas, uma para cada um deles, que felizmente eram
terrestres e civis. Já de volta, deu com o tenente que trazia o fio de extensão e teve de refazer o
caminho do corredor para mostrar-lhe onde ficava a tomada.
Ao sair, verificou que o segundo helicóptero viera lotado com mais quatro tripulantes, além do
gravador. Ali estavam, com o piloto, um sargento, que era técnico treinado em operar gravadores de
fita e que já ultimava os reajustes no aparelho, um tenente-coronel e um suboficial, que só viera
pelo passeio ou por lhe ter parecido curiosa a requisição de um gravador que, ademais, seria
transportado por ar e com urgência para nada menos que Cherrybell, Arizona. Pasmaceavam em
torno do homem-graveto, confabulando entre si aos sussurros.
O coronel, sem fazer espalhafato, pediu a atenção de todos e logo o silêncio que se armou em roda
foi completo.
— Cavalheiros, tenham a bondade de sentar em círculo. Sargento, esse microfone no centro será
capaz de captar com clareza o que dissermos?
— Sim, senhor. Já está quase pronto.
Dez homens e um humanóide extraterreno sentaram-se, configurando um círculo aproximado, em
cujo centro o microfone pendia de um tripé. Os humanos transpiravam profusamente enquanto o
humanóide tiritava de frio. Logo fora do círculo, estava o burro, cabisbaixo e macambúzio.
Avançando aos poucos, mas ainda assim a uns cinco passos da cena da reunião, e espalhando-se
também num semicírculo, estava toda a população de Cherrybell; o armazém e os postos de
gasolina ficaram desertos.
O sargento-técnico apertou um botão, e o rolo do aparelho pôs-se a girar.
— Testando... testando — disse ele.
Premiu, por um instante, o botão para reenrolar e depois o de reproduzir.
“Testando... testando” — reproduziu o gravador.
O som era alto e claro. O sargento fez a fita reenrolar-se, desgravou, e desligou o aparelho.
— Quando eu comprimir o próximo botão, estaremos gravando — disse, dirigindo-se ao coronel.
Este olhou para o comprido extraterreno em quem viu um sinal de assentimento; então, voltando-se
de novo para o sargento, fez-lhe sinal. O homem apertou o botão para gravar.
— Meu nome é Garth — começou o homem-graveto, claro e devagar. — Venho de um planeta cujo
sol não figura no catálogo de estrelas aqui de vocês, apesar de o grupo globular de que faz parte
juntamente com noventa mil outras estrelas lhes ser conhecido. Situa-se, daqui, no rumo
do centro da galáxia, a uma distância de pouco mais de quatro mil anos-luz.
“Mas não estou aqui como representante de meu planeta natal nem da minha gente apenas; venho
na qualidade de ministro plenipotenciário da União Galáctica, que é uma federação das civilizações
bem informadas da Galáxia em prol do bem comum. Cumpriu-me visitar os senhores e decidir, aqui
e agora, se devemos acolhê-los em nossa federação.
“Podem agora perguntar o que quiserem. Reservo-se, porém, o direito de omitir algumas respostas
até que tenha tomado uma decisão. Caso a decisão seja favorável, responderei a todas as perguntas,
inclusive as que tiver deixado sem resposta no decorrer da entrevista. De acordo?”
— Perfeitamente — respondeu o coronel. — Como chegou aqui? Alguma espaçonave?
— Acertou. Está em órbita, agora mesmo, a vinte e duas mil milhas; gira com a Terra e, assim,
permanece sempre bem acima de nós. Estou sendo observado desde lá; razão por que prefiro ficar
aqui fora. Tenho que fazer-lhe sinal quando quiser que baixe para me apanhar.
— Como é que sabe falar com tanta fluência a nossa língua? Telepatia?
— Não, em parte alguma da Galáxia existem raças telepatas, salvo entre os próprios membros
dela. Aprendi a língua de vocês com esse fim em vista. Temos tido observadores aqui por
muitos séculos. E, ao dizer nós, refiro-me à União Galáctica, é claro. Obviamente, eu não poderia
passar por terrestre, mas há outras espécies que podem. A propósito, eles não são espiões nem
agentes, e nada fizeram capaz de afetá-los; são observadores apenas, nada mais.
— Que ganharemos em nos juntar à união de vocês, caso nos convidem a fazê-lo e aceitemos? —
reperguntou o coronel.
— Em primeiro lugar, um curso-relâmpago sobre as ciências sociais básicas que ponha fim a
essa sua tendência para lutarem entre si e acabe com suas agressões ou ao menos as controle.
Quando estivermos convencidos de que cumprirão esta parte, e podendo vocês fazê-lo, terão direito
a viagens espaciais e muitas outras vantagens, na medida de sua capacidade para assimilá-las.
— E se não nos convidarem ou recusarmos?
— Então serão deixados em paz; até mesmo nossos observadores serão retirados. Caso em que
vocês terão de escolher seu próprio destino: ou desolam o planeta e o fazem inabitável dentro do
próximo século, ou dominam por si mesmos a ciência social e tornam a se candidatar como
membros da União. De tempos em tempos examinaremos o caso. Quando, e se, nos parecer certo
que já não se destruirão a si mesmos, então sofrerão nova abordagem.
— Por que tem tanta pressa? Por que não pode permanecer mais tempo para que nossos chefes,
como os chama, o ouçam pessoalmente?
— Pergunta impugnada. A razão não é importante, mas é complicada; simplesmente não quero
perder tempo em explicações.
— Supondo que sua decisão seja favorável, como entraremos em contacto a fim de participar-
lhe a nossa? Deve saber bastante sobre nós para compreender que eu não posso decidir isso sozinho.
— Tomaremos conhecimento de sua decisão pelos nossos observadores. Uma das condições que
impomos, porém, é que esta entrevista seja publicada em seus jornais, integralmente e sem sofrer
nenhuma espécie de censura, tal como está sendo gravada. Exigimos que se faça o mesmo com
todas as deliberações e decisões de seu governo.
— E quanto às outras nações? Não podemos responder por elas.
— Seu governo deverá ser o primeiro a decidir-se. Caso aceite, ser-lhe-ão fornecidas técnicas
capazes de levar os demais povos à aceitação; tais técnicas não incluem uso nem ameaça de
força.
— Hão de ser técnicas fabulosas — comentou o coronel, impressionado, — se forem mesmo
capazes de levar certo país, que não quero mencionar, a entrar em acordo conosco, sem nem sequer
sofrer uma ameaça.
— Às vezes a oferta de recompensas é mais eficaz que o emprego de ameaças. Acha que o país que
o senhor não quis mencionar gostaria de ver a nação de vocês colonizando planetas de estrelas
distantes antes mesmo de eles conseguirem atingir Marte? Mas isto é o de menos. Podem confiar
em tais técnicas.
— Parece bom demais para ser verdade. Mas o senhor disse que tem de decidir aqui e agora se
seremos ou não convidados a participar da União de vocês. Pode nos dizer em que fatores baseará
tal decisão?
— Eu tenho (tinha, porque já o fiz) de avaliar o seu grau de xenofobia. No sentido lato em que a
usam, essa palavra significa pavor de estranhos. Temos um vocábulo que infelizmente não tem
equivalência precisa em sua língua: significa medo e repulsa a alienígenas. Eu, ou melhor, um
membro da minha espécie, foi escolhido para estabelecer o primeiro contacto público com vocês.
Por ser eu o que vocês chamariam de humanóide (da mesma forma que vocês são o que nós
classificaríamos de humanóides), sou-lhes talvez mais horripilante e repulsivo do que muitas
espécies completamente diferentes o seriam. Por ser, para vocês, uma caricatura do ser humano,
sou-lhes mais repugnante do que qualquer outra criatura que com vocês não tivesse nenhuma
semelhança.
“Talvez pensem que sentem horror por mim, e repulsa excessivos, mas, podem crer, passaram nessa
prova. Existem espécies pela Galáxia que jamais poderão ser membros da federação, por mais que
progridam, dado serem violenta e incuravelmente xenófobas; nunca poderiam encarar nem
conversar com nenhum tipo de estrangeiros, à vista do qual ou fugiriam espavoridas ou procurariam
matá-lo no mesmo instante. Pela observação que fiz de vocês e de sua gente — e o monstrengo fez,
com o braço comprido, um gesto que abrangeu a população civil de Cherrybell reunida não longe
do local da conferência, — verifiquei que sentem repulsa por mim, mas, acreditem, é relativamente
pequena e perfeitamente sanável. Neste teste passaram.”
— E ainda há outros?
— Só mais um. Creio, porém que já é tempo de... — E, sem terminar a sentença, o homem-graveto
estirou-se por terra, cerrando os olhos.
O coronel se pôs em pé.
— Ora, com todos os...! — começou ele; e dando a volta, apressado, ao tripé que segurava o
microfone, inclinou-se sobre o extraterreno recumbente e aplicou o ouvido àquele peito rubro.
Quando por fim tornou a erguer a cabeça, Dade Grant, o explorador grisalho, reprimiu uma risada.
— Não há pulsação, Coronel, porque não há coração. Deixá-lo-ei com vocês como lembrança e lhe
acharão dentro coisas bem mais interessantes que coração e tripas. Exato, é apenas um marionete
que eu estava operando... da mesma forma que o seu Edgar Bergen opera o seu... Como se
chama?... Oh, sim: Charlie McCarthy. Agora que já serviu à sua finalidade, foi desativado. Pode
voltar ao seu lugar, Coronel.
O Coronel Casey caminhou de volta morosamente.
— Por quê? — perguntou.
Dade Grant desfez-se da barba e da peruca, esfregou um lenço no rosto para remover a maquilagem
e surgiu, aos olhos de todos, como um jovem de boa cara.
— O que ele lhes disse — começou, — ou lhes foi dito por meio dele, é inteiramente verdadeiro.
Ele não passa de um simulacro, é certo, mas constitui uma réplica exata de um membro de uma das
espécies inteligentes da Galáxia, por quem, segundo nossos psicólogos, vocês estariam inclinados a
sentir o maior horror, caso fossem violenta e irremissivelmente xenófobos. Só não utilizamos, nessa
missão, um membro real da espécie porque eles lá têm um tipo de fobia particular chamada
agorafobia: medo do espaço. São muito civilizados e membros efetivos da federação, só que nunca
saem de seu planeta natal.
“Nossos observadores nos asseguram que vocês não têm essa fobia. Mas não foram capazes de
avaliar previamente o seu grau de xenofobia; o único meio, pois, de avaliá-lo era trazer algo em
lugar de alguém, que servisse a essa finalidade e estabelecesse o contacto inicial.”
Nesse ponto o coronel lançou um suspiro audível.
— Não posso negar que de algum modo isso me alivia. Podemos perfeitamente haver-nos com
humanóides, não há dúvida, e o faremos quando for preciso. Mas admito que é um alívio saber que
a principal raça da Galáxia é, pelo menos, humana, em vez de humanóide. Qual será o teste
seguinte?
— Estão passando por ele neste instante. Chamem-me... — e estalou os dedos. — Qual é o nome
da segunda marionete de Bergen, depois de Charlie McCarthy?
O coronel hesitou, mas o sargento-técnico apresentou a resposta:
— Mortimer Snerd.
— Isso; chamem-me de Mortimer Snerd. E agora acho que já é tempo de... — Sem terminar a frase,
estendeu-se de costas sobre a areia e fechou os olhos, exatamente como o fizera, minutos antes, o
homem-graveto.
O burro ergueu a cabeça e enfiou-a dentro do círculo da conferência, por sobre o ombro do
sargento.
— Isto acaba com as marionetes, Coronel — disse ele. — E agora quer me explicar esse negócio
sobre a importância de a raça principal ser humana ou humanóide e o que vem a ser isso de raça
principal?

O ÚLTIMO TREM

Eliot Haig, estava sentado só, junto ao balcão, como muitíssimas vezes antes, enquanto lá por fora
se espraiava um crepúsculo muito peculiar. O interior ensombrado da taverna parecia quase mais
escuro que a rua. No espelho azul do balcão, que realçava esse efeito, Haig parecia ver-se imerso no
pálido luar de uma lua tristemente azul. Obscura mas nitidamente, ele se mirava; não estava dúplice,
malgrado os vários tragos que virara. Unicíssimo.
E, como sempre após estar a beber algumas horas, pensou: Talvez eu consiga hoje.
Aquela frase significava muito; significava tudo. Significava dar o salto mortal desta para uma outra
vida, que há tempos desejava. Significava simplesmente desembaraçar-se de um advogado
embrulhão e moderadamente bem sucedido, chamado Eliot Haig; dar ao lixo com todas as miúdas
complicações de sua vida, seus envolvimentozinhos pessoais, a chicana que estava já na própria
letra da lei, ou insuspeitadamente fora dela; era cortar, enfim, o fio do hábito que o prendia a uma
existência sem sexo nem nada.
A reflexão deprimiu-o e mais que nunca o fez sentir necessidade de mexer-se, de alhures ir, nem
que só fora em busca de outro trago. Virou o último sorvo do copo que ante si tinha e do tamborete
resvalou-se para chão firme.
— Adeus, Joe — disse, e se foi indo.
— Deve ser incêndio nalgum lugar — disse-lhe o garçom; — olhe só o céu por lá! Será no depósito
de madeira, do outro lado da cidade? — E, mãos à janela, olhava o céu fora.
Haig levantou a vista após cruzar a porta. O céu estava de um cinza-róseo, como o halo de um
clarão de lume ao longe. Assim se via o trecho todo de céu, que se podia ver de onde ele o olhava,
nem traço havendo do rumo da conflagração.
Deixou-se ir ao sul, a esmo. O apito distante de uma locomotiva recordou-lhe.
Por que não? pensava. Por que não hoje? E o velho impulso que lhe obcecara mais de mil noites,
noites baldas, era mais forte agora. Ele se dirigia, nesse preciso instante, para a estação ferroviária;
o que também já antes fizera, vezes muitas. Várias vezes chegara ao ponto mesmo de ver partirem
trens, pensando: — Eu neste devia estar —, mas nunca, nunca embarcando.
A meia quadra da estação, ouviu repicar o sino, vapor chiar e o trem partir perdido. Se era certo que
vinha com coragem de o tomar.
Súbito, ocorreu-lhe que aquela noite era diferente; naquela noite decidira-se a fazê-lo. Apenas com a
roupa do corpo e os trocados dos bolsos. Exatamente como sempre quisera fazer; rompimento total.
Dessem-no por perdido, espantassem-se, que lá alguém deslindasse a confusão a resultar-lhe da
ausência.
Walter Yates, que estava em pé, defronte à porta aberta de sua taverna, não longe, gritou-lhe:
— Olá, Mr. Haig. Que bela aurora boreal, hem? A mais bela que eu já vi!
— Então é isso? — admirou-se Haig. — Pensei que era reflexo de algum incêndio monstruoso.
Walter abanou a cabeça.
— É nada! Olhe o norte; parece que o céu se arrepia naquela direção. É a aurora.
Haig virou-se e olhou o norte, ao fim da rua, longe. O brilho avermelhado naquela direção era...
Sim, “arrepiado” até que o descrevia. E era bonito, ademais; um tudo-nada arrepiante, mesmo quan-
do já se sabia o que era.
Tornou a voltar-se, passou por Walter e, enfiando pela taverna adentro, pediu:
— Um gole pra quem tem sede!
Depois, revolvendo o conteúdo do copo com um bastonete, perguntou:
— Walter, a que hora parte o próximo trem?
— Pra onde?
— Qualquer parte.
Walter ergueu os olhos para o relógio:
— O rápido deve apontar daqui a alguns segundos.
— Cedo demais! Quero primeiro terminar a bebida. E o outro depois desse?
— Sai um às dez e catorze. Deve ser o último da noite. Pelo menos até a meia-noite é. A essa hora
fecho, de modo que não sei.
— E pra onde vai ele?... Espere, não responda! Não quero saber. Mas hei de tomá-lo.
— Sem saber pra onde vai?
— Sem nem me importar com isso — corrigiu Haig. — E, ouça aqui, Walter, falando sério: quero
que me faça um obséquio: se você ler no jornal que eu desapareci, não conte a ninguém que me viu
esta noite nem nada do que eu lhe disse.
Walter anuiu, com a graveza que o assunto pareceu merecer-lhe e respondeu:
— Sei ficar de boca fechada, Mr. Haig. O senhor tem sido bom freguês. Por mim é que ninguém há
de achá-lo.
Haig oscilava um pouco no tamborete, com os olhos fitos no rosto de Walter, que lhe sorria ledo e
leve. A conversa sabia-lhe a costumice. Era como se já tivesse recitado as mesmas palavras antes e
obtido idêntica resposta.
— Acaso eu já lhe disse isso antes, Walter? — esganiçou. — Quantas vezes?
— Oh, umas seis ou oito, talvez dez. Não sei.
— Meu Deus! — murmurou Haig. Fitava Walter, cujo vulto se nublara e cindira em dois; só com
esforço podia tornar a recompor--lhe a figura, levemente sorridente, ironicamente tolerante. Tinha
sido, sabia-o agora, mais de dez vezes.
— Walter, serei acaso algum bêbedo?
— Lá isso eu não diria, Mr. Haig. Vá que seja um bom copo, mas...
E já não queria olhar no rosto de Walter.
Tombou os olhos para o copo e o viu vazio. Pediu outro e, enquanto o serviam, fitou-se no espelho
de detrás do balcão. Não era azul, felizmente. Já era bastante mau ver duas imagens de si próprio
num espelho plano; imagens gêmeas, Haig & Haig, só que agora isso era piada velha, e outra mais
razão por que estava para pegar o trem que lhe viesse, fosse como fosse.
Estava, por Deus que estava! Ébrio ou sóbrio, iria por aquele último trem.
Só que também essa frase já lhe viera feita, com um ressaibo incomodamente familiar.
Quantas vezes já a teria dito?
Descambou os olhos para o copo, ainda com um quarto do conteúdo por beber, depois o viu de
novo cheio até mais que metade, e ouviu Walter dizer-lhe: — Talvez seja mesmo incêndio, Mr.
Haig; um incêndio gigante; brilha muito pra ser aurora. Vou sair um instantinho.
Haig, porém, não arredou assento do tamborete; quando tornou a erguer os olhos, Walter, que já
voltara, estava atrás do balcão, fuçando no rádio.
— É incêndio, afinal? — perguntou Haig.
— Com certeza. Vou pegar o noticiário das dez e quinze e já vamos saber.
O rádio atacou um jazz em que alguém cavalgava uma clarineta a toda brida sobre metais em
surdina e tambores atazanantes.
— Vem ao ar num minuto; na estação já está.
“Num minuto!” E Haig quase caiu ao desempoleirar-se, precipite, da banqueta.
— Então já são dez e catorze?
Não esperou resposta. O piso parecia fugir-lhe aos pés enquanto rumava para a porta. Era perto.
Podia fazê-lo; podia fazê-lo realmente. Súbito, por muito que lhe oscilassem as pernas, ficou como
se nada houvesse bebido: a mente se lhe aclarou. Depois, sabe-se que trens nunca partem
exatamente no horário. Sempre há alguns instantes de atraso, e quando Walter disse “num minuto”
com certeza quis dizer três, ou dois, ou mesmo quatro. Sempre era uma chance.
Desabou nos degraus, mas tornou a erguer-se, e prosseguiu; só perdera alguns segundos na queda.
Passou pelo guichê (bilhete comprasse-o no trem), as portas do fundo, a plataforma, as cancelas, e
eis, a passos poucos — inexoráveis passos — de si, a rubra luz de cauda de um trem que já partia. A
dez passos, cem passos. Sumindo, longe.
O chefe da estação, em pé na plataforma, a observar o comboio que se ia, decerto ouviu os passos
de Haig, pois disse-lhe por sobre o ombro:
— Pena que o perdesse. Era o último.
Haig, dando de chofre com o lado engraçado do episódio, começou a rir-se. Era ridículo demais
para levar-se a sério, a estreitura de margem por que perdera aquele trem. Demais, outro haveria.
Agora era esperar até...
— A que hora sai o primeiro amanhã?
— O senhor não compreendeu — disse o homem, que só agora se virava, e Haig lhe pôde ver o
rosto contra o céu em fogo, enquanto zonzo ouvia. — Esse foi o último trem.
INOCORRÊNCIA

Embora não tivesse meios de o saber, Lorenz Kane estava a caminho da própria destruição desde
que atropelara a mocinha de bicicleta. Seu colapso propriamente dito poderia ter-se verificado em
qualquer lugar, a qualquer tempo; mas quis o acaso que ocorresse atrás dos bastidores de um teatro
de revistas, numa noite de setembro último.
Pela terceira vez em uma única semana assistia ele à atuação de Queenie Quinn, stripper do show;
coisa, aliás, digna de se ver. Só de roupa azul-clara, com três pequeninas pontas de cintas
estrategicamente situadas, Queenie, loira, alta e concebida segundo os moldes de qualquer coisa
realmente do outro mundo, acabara justamente de encerrar sua última apresentação da noite e
desaparecia pela coxia, quando Kane encasquetou que a representação daquele número, entre as
quatro paredes de seu apartamento de solteiro, não só havia de lhe dar maior prazer que uma
apresentação pública, como ademais conduziria, indubitavelmente, a prazeres ainda maiores. E,
desde que agora estava justamente tendo início o número final, em que Queenie, como estrela que
se preze, não precisava aparecer, aquela lhe pareceu ocasião mais que propícia para falar com ela a
fim de obter uma entrevista particular.
Saiu, pois, do teatro e dirigiu-se, ao fim de um beco, para a entrada dos atores. Uma nota de cinco
dólares convenceu o porteiro a deixá-lo entrar e, um minuto depois, achara e já batia à porta de um
camarim, decorada com uma estrela dourada. Uma voz respondeu de dentro: — Que é? — Mas ele
não era tão tolo que fizesse propostas através de portas fechadas; e de teatro conhecia o bastante
para já trazer engatilhada a única pergunta capaz de fazê-lo passar por alguém que estivesse ligado
ao show business e coberto de legítimas razões para esperar vê-la.
— Você está decente? — perguntou.
— Peraí — respondeu ela, logo autorizando-lhe entrada.
Ao entrar achou-a em pé, encarando-o, metida num roupão vermelho que lhe realçava
espetacularmente os olhos azuis e os cabelos loiros. Fez-lhe uma inclinação de corpo, apresentou-se
e passou aos detalhes da proposta a que viera.
Estava preparado para alguma relutância ou mesmo recusa inicial, e dispunha-se a exprimir sua
persuasão, se necessário, até em quatro cifras; o que na certa seria mais do que ela estava habituada
a ver por semana (mais até, possivelmente, do que conseguia levantar por mês) num teatrinho como
aquele. O caso é que em vez de ouvi-lo sensatamente, ela se pôs a berrar por todos os foles, qual
megera, o que já por si era ofensivo; e, não satisfeita, ainda levou a inconveniência ao ponto de
incorrer no gravíssimo equívoco de, dando um passo à frente, aplicar-lhe um sonoro sopapo na
bochecha. Que, aliás, doeu.
Ele perdeu a cabeça; afastou-se um passo dela, sacou do revólver e disparou-lhe bem no peito.
Depois deixou o teatro e apanhou um táxi que o levou a seu apartamento. Tomou alguns tragos, para
abonançar os nervos compreensivelmente encrespados, e enfiou-se na cama. Ressonava pesa-
damente quando, pouco depois de meia-noite, chegava a polícia que o prendia por homicídio.
Podia-se lá entender aquilo?
Mortimer Mearson, que possível se não indubitavelmente era o melhor criminologista do local,
voltava para a sede de seu clube, na manha seguinte, após uma partida matinal de golfe, quando deu
com o recado que o esperava, convidando-o a chamar a Juíza Amanda Hayes quanto antes.
Obedeceu na hora.
— Bom dia, meretíssima — começou. — Alguma coisa pra mim?
— Sim, Morty. Se estiver de folga o resto da manhã e puder dar um pulo até aqui, vai me poupar a
inconveniência de entrar no assunto por telefone.
— Estarei aí numa hora — prometeu ele. — E cumpriu a promessa.
— Bom dia de novo, meritíssima — saudou. — Agora digne-se tomar bastante fôlego e me dizer
com toda a clareza o que é que tem pra mim.
— Um caso, se quiser. Resumindo, um fulano foi preso por homicídio na outra noite.
Recusa-se a fazer qualquer declaração até consultar um advogado, que ainda não tem. Diz nunca ter
estado em apuros com a lei antes e, assim sendo, não chegou ainda a conhecer advogados. Pediu ao
chefe a recomendação de algum e ele me passou a espiga.
Mearson suspirou fundo.
— Outro caso grátis. Bem, já deve ser tempo de eu pegar um abacaxi desses. Vai me indicar?
— Calminha aí, rapaz — freou-o a Juíza Hayes. — Nada de caso grátis. O fulano em questão não é
rico, mas vai bem de vida. É alguém famoso por toda a cidade, um bon vivant capaz de pagar os
honorários que você quiser pedir, dentro do razoável. Não que os seus estejam dentro do razoável,
mas isso é aí com vocês dois, caso ele o aceite como representante.
— E esse saco de virtudes, na certa inocente e caluniado, atende por qual nome?
— Lorenz Kane. Deve ser-lhe familiar, se você lê colunistas sociais.
— Soa bem. Deve ser inocente. Hummm... Não li os jornais da manhã. A quem dizem que matou?
Sabe os detalhes?
— Trata-se de uma grande bomba, caro Morty — suspirou a juíza. — Acho que não há outra saída a
não ser alegando insanidade. A vítima é uma tal Queenie Quinn (nome artístico, o verdadeiro logo
vem à luz) uma stripper do “Majestic”. Estrela do show de lá. Algumas pessoas viram Kane no
auditório durante o último número dela e o viram sair logo depois, quando encerravam o número
final. O porteiro identificou o acusado e admite. . . humm. . . tê-lo admitido no lugar. Conhecia-o
de vista, e isso explica como a polícia o achou. Ele passou pelo porteiro de novo, ao sair, poucos
minutos depois. Nesse ínterim, muita gente ouviu um tiro. Pouco depois do espetáculo, Miss Quinn
foi achada morta, baleada, no camarim.
— Hummm — murmurou Mearson. — É apenas a palavra dele contra a do porteiro. Vai ser
sopa. É fácil provar que o porteiro não somente é um mentiroso patológico como ainda por cima
tem uma ficha mais comprida que o braço da justiça.
— Sem dúvida, Morty. Mas, tendo em vista a relativa proeminência do acusado, a polícia muniu-se
de um mandado de busca e outro de prisão por suspeita de homicídio, antes de deitar mão nele.
Acharam, no terno que ele estava usando, um revólver de calibre trinta e dois com um cartucho
detonado. Miss Quinn foi morta com uma bala de revólver desse calibre. O mesmíssimo, segundo
os peritos em balística aí do nosso departamento de polícia, que dispararam um tiro experimental e,
com microscópio e tudo mais, fizeram as devidas comparações entre a bala deles e a que matou
Miss Quinn.
— Humm e outra vez humm — murmurou Mearson. — E a senhora me diz que esse Kane não fez
nenhuma declaração, salvo pra dizer que não faria declarações antes de consultar um advogado de
sua escolha?
— Exato, a não ser uma observação estranhíssima que fez logo que foi acordado e preso. Os dois
policiais que efetuaram a prisão a ouviram e suas declarações coincidem, palavra por palavra, uma
com a outra. Disse ele: “Minha nossa, então ela devia ser real!” Que acha que isto quer dizer?
— Não faço a mínima, excelentíssima. Mas se ele me aceitar pra advogá-lo, prometo perguntar. Por
ora, não sei se devo agradecer-lhe a indicação ou amaldiçoá-la por me passar uma batata quente.
— Você até que gosta de batatas quentes, Morty. E depois, há os honorários. Mas pra poupar-lhe
trabalho inútil, devo dizer que não adianta pensar em fiança nem tentar pedido de habeas-corpus. O
promotor entrou de sola na questão, assim que recebeu o relatório balístico. A acusação é homicídio
em primeiríssimo. Eles não precisam de mais nada pra instaurar o processo e estão prontos pra ir a
juízo tão logo consigam enfiá-lo no caso. Que está esperando?
— Nada — respondeu Mearson, e se foi.

Um guarda trouxe Lorenz Kane para o gabinete de consultas e ali o deixou, em companhia de
Mortimer Mearson. Este apresentou-se e ambos se deram as mãos. Kane, na opinião do advogado,
parecia calmíssimo e muito mais intrigado que aflito. Comprido e de boa cara, andava pelos
quarenta e estava com ótima aparência, apesar de uma noite de prisão celular. Dava a impressão de
ser desses tipos que sempre sabem conservar a aparência impecável em qualquer parte, mesmo uma
semana depois que seus carregadores os tenham desertado em pleno safári, novecentas milhas
Congo acima, levando todos os seus pertences.
— Sim, Mr. Mearson. Ficarei feliz em tê-lo como advogado. Já ouvi falar no senhor e li a respeito
de defesas que tez. Não sei mesmo por que não me lembrei do seu nome eu mesmo, em lugar de
pedir uma recomendação. Agora quer ouvir minha historia antes de me aceitar como cliente... ou
já me aceitou, para o melhor e para o pior?
— Para o melhor e para o pior — respondeu Mearson, — até que... — Mas calou-se: “até que a
morte nos separe” dificilmente seria frase própria para usar junto a alguém que ja estava, com toda
certeza, à beira da cadeira elétrica.
Mas Kane sorriu e encarregou-se de acabar a frase. Excelente — disse depois. — Vamos nos sentar,
então. — E encheram as duas cadeiras que ali havia. — Já que ao que parece vamos nos ver um
bocado durante algum tempo, comecemos nossas relações na base do tratamento pelo primeiro
nome. Só não rne chame de Lorenz, mas de Larry.
— Pode me chamar de Morty — disse Mearson. — E agora quero ouvir os detalhes da sua história.
Mas, primeiro, duas perguntinhas rápidas. Você é...?
— Peraí — interrompeu-o Kane. — Tenho uma perguntinha rápida antes das suas duas rápidas
perguntinhas. Tem certeza absoluta que não andaram semeando microfones por aqui? Que o nosso
papo é particular mesmo”?
— Tenho — respondeu o advogado. — Agora vamos à minha primeira pergunta. Você é culpado?
— Perfeitamente.
— Os guardas que o prenderam dizem que antes de começar a estrilar você disse: “Minha nossa,
então ela devia ser real!” E verdade? E, se é, que quis dizer com isso?
— Eu estava atordoado na hora, e não consigo lembrar... Mas devo ter dito qualquer coisa parecida,
porque era nisso exatamente que eu estava pensando. Agora, o que eu quis dizer... é coisa que não
posso responder logo. O único modo de fazê-lo entender a coisa é começar a contar tudo desde o
princípio.
— Está bem. Vamos lá. E não se afobe. Não precisamos liquidar a história toda numa assentada.
Posso empatar o julgamento por três meses... Ou mais, se necessário.
— A história até que não é longa. Começou (e não me peça um sujeito pra esse verbo) há cinco
anos e meio, no princípio de abril. Perto das duas e meia da madrugada de terça-feira, dia três, para
ser quanto possível exato. Eu tinha estado numa festa em Armand Village, norte da cidade, e
voltava pra casa. Eu...
— Não leve a mal minhas interrupções, mas é que eu quero ver se obtenho uma visão completa do
quadro à medida que se desenrola. Estava dirigindo algum automóvel? Sozinho?
Eu estava dirigindo o meu Jaguar e não havia ninguém comigo.
— Sóbrio? Correndo muito?
— Ia sóbrio. Deixei a festa relativamente cedo. . . Estava meio morta. .. E sentia levemente os
efeitos dos drinks que tinha tomado. Mas, duma hora pra outra senti fome... Devo ter esquecido
de jantar... E parei numa hospedaria. Tomei um coquetel enquanto esperava, mas depois devorei
um bife grande, com todo o acompanhamento, e ainda bebi várias xícaras de café. Depois disso,
nada de drinks. Eu até diria que, ao sair dali, estava mais sóbrio que de costume, se é que me
entende. Depois, por uma meia hora rodei de capota arriada, pra tomar a fresca da noite.
Resumindo, eu estava mais sóbrio do que agora (e olhe que não tomei nada desde pouco antes da
meia-noite). Eu...
— Espere um pouco — interveio Mearson, que sacava do bolso traseiro um frasco prateado, que
passou para o cliente, por cima da mesa, explicando: — uma lembrancinha dos tempos da
Proibição. Às vezes banco o são-bernardo de clientes recém-encarcerados, que ainda não tenham
tido tempo de providenciar a importação do mais necessário.
— Ahhh, Mortizinho! — exclamou Kane, fora de si de alegria. — Já pode dobrar os honorários,
você bem merece por serviços prestados além e acima do dever. — E sorveu um comprido trago.
— Onde estávamos? — perguntou depois. — Ah, já me lembro. Pois estava completamente sóbrio.
Se corria? Tecnicamente, apenas. Ia para o Sul, pela Vine Street, a umas quadras de Rostov...
— Perto da Quadragésima Quarta Delegacia.
— Exato. Fica bem ali. É zona pra vinte e cinco milhas, mas eu dava quarenta. Também, eram duas
e meia da madruga e não se via nem sombra de tráfego! Só a proverbial velhinha de Pasadena seria
capaz de ir mais devagar que isso!
— Ela não estaria fora tão tarde. Mas vá contando.
— Então, de uma hora pra outra, me sai de um beco uma fulaninha de bicicleta, enchendo o pé no
pedal. E bem na minha frente! Eu só a avistei num relance e logo enfiei o pé no breque, com toda a
força. Era uma adolescente, de dezesseis ou dezessete anos. Tinha cabelos ruivos e usava um
lenço escuro na cabeça. Estava vestida com uma malha verde-clara e calças bege, próprias pra peda-
lar. A bicicleta era vermelha...
— Deu pra notar tudo isso de relance?
— Deu. Ainda posso visualizar a cena com toda clareza. E (isto eu nunca vou esquecer) logo antes
da batida, ela se virou e me encarou de frente, com uns olhos amedrontados atrás dos óculos de
tartaruga.
“O pé que eu tinha no pedal do breque, nesse instante já estava encostado na tábua, e o danado do
carro começava a patinhar, sem saber se batia ou se virava. Mas o caso é que por muito rápidas que
sejam as reações da gente (e as minhas são bem rápidas), não se pode simplesmente diminuir a
marcha, em poucos metros, quando se vai a quarenta milhas por hora. Eu ainda devia estar a mais
de trinta, quando bati nela. . . Foi uma pancada tremenda.
“Depois... o carro passou-lhe por cima, as rodas da frente e também as de trás. Só foi começar a
obedecer ao freio uns dez metros além do ponto da batida.
“À minha frente, através do pára-brisa, pude ver as luzes da delegacia, uma quadra mais à frente.
Saí do carro e abalei pra lá. Nem olhei pra trás; eu não queria nem olhar pra trás! A menina já devia
estar mais que morta, àquela altura; eu não tinha a menor dúvida disso.
“Voei pela delegacia adentro e depois de alguns segundos já me achei coerente bastante pra fazer o
primeiro esforço no sentido de explanar a ocorrência. Dois dos bacanas da cidade saíram de lá
comigo e eu os guiei até o local do acidente. Saí correndo como tinha chegado, mas eles só
aceleraram o passo; daí que também diminuí a marcha, porque não queria ser o primeiro a chegar
lá. Bem, chegamos e então...”
— Sei — disse o advogado. — Lá já não havia nem moça nem bicicleta.
Kane sacudiu a cabeça, num lento gesto de assentimento.
— Lá estava o Jaguar, atravessado na rua. Faróis da frente acesos. A chave de ignição ainda estava
no lugar, mas o motor estava parado. Por trás dele via-se a marca da derrapagem, que se estendia
por mais de dez metros a começar de uns quatro metros antes do beco.
“E é essa a história toda. Nem sombra de garota nem de bicicleta. Nem um pingo de sangue. Nem
um pedacinho de metal retorcido. Nenhuma amassadura ou arranhão na frente do carro. Pensaram
que eu estivesse maluco, e não era pra menos. Na opinião deles o meu estado era tão grave que nem
me deixaram tornar a pôr a mão no carro, nem só pra tirá-lo do meio da rua; um deles se incumbiu
disso (e por nada deste mundo quis me devolver a chave); daí me levaram de volta à delegacia pra
me interrogar.
“Passei lá o resto da noite. Decerto eu podia ter telefonado a algum amigo pra pedir que me
arranjasse advogado e me libertasse mediante fiança, mas ainda estava abalado demais pra pensar
nisso. Acho que estava abalado demais até pra querer sair ou ter alguma idéia de aonde ir ou do que
fazer comigo lá fora. Só queria ficar sozinho e pensar; depois do interrogatório, tive justamente a
oportunidade de fazer isso mesmo. Não me jogaram no depósito de bêbedos. Acho que eu estava
bem vestido demais, tinha uma identidade que os impressionou bastante a ponto de convencê-los
que, biruta ou não, eu era um cidadão solvível que merecia ser tratado com luvas de pelica em vez
de cassetete. O caso é que tinham vaga uma cela unitária onde me trancaram, e eu fiquei feliz de
poder, enfim, me entregar aos meus pensamentos. Nem mesmo tentei dormir.
“Na manhã seguinte mandaram um caça-cabeça da polícia ir bater um papo comigo. Só que aí eu já
tinha esfriado o bastante pra compreender que, fosse como fosse, a polícia não me iria valer de nada
e quanto antes eu me livrasse deles melhor. Então decidi tapear o médico, fazendo um bom
abatimento na história toda. Cortei os efeitos dramáticos, como o rangido da bicicleta ao ser
colhida; abri mão de sensações cinéticas, não disse que senti o impacto; enfim, vendi a história
como uma pura e repentina alucinação visual passageira. Ele se convenceu logo, e me deixaram
sair.”
Kane neste ponto deteve-se o tempo suficiente para mais um trago e logo perguntou: —
Compreendendo até aqui? E, quer acredite quer não, tem alguma pergunta a respeito do que eu disse
até agora?
— Só uma — respondeu o advogado. — Você está ou tem condições de estar absolutamente certo
de que essa sua experiência com a polícia da Quadragésima Quarta Delegacia foi objetivamente real
e pode ser comprovada? Por outra, se essa história chega ao tribunal e tivermos que alegar
insanidade, poderei contar com esses dois guardas que falaram com você e com esse psiquiatra da
polícia como testemunhas?
Kane sorriu de viés ao responder:
— Pra mim, minha experiência com a polícia foi tão real e objetiva quanto o atropelamento. Pelo
menos, você pode investigar isso. Veja se o caso foi registrado e se eles se lembram dele. Morou?
— Morei. Vá em frente.
— De modo que a polícia ficou convencida que eu tinha tido uma alucinação. Eu é que não me
convenci disso, de jeito nenhum. Fui a uma garagem, fiz erguerem o Jaguar e dei uma boa olhada
em baixo dele, como também na frente. Nenhum sinal. Bem, estava certo então; o caso não tinha
ocorrido, no que dizia respeito ao carro.
“Depois disso, quis saber se alguma garota com aquelas características, viva ou morta, teria saído de
bicicleta aquela noite. Gastei milhares de dólares com uma agência de detetives particulares,
fazendo-os investigar aquelas redondezas e uma boa área em redor, com pente fino, a fim de
descobrir se alguma menina parecida com aquela existia ou teria alguma vez existido, com ou sem
bicicleta vermelha. Descobriram algumas menininhas, mas dei jeito de examiná-las uma por uma, e
nada feito.
“Depois, tendo inquirido bem por aí, escolhi um caça-cabeça pra mim mesmo e comecei
tratamento. Tem fama de ser o melhor da cidade, e não há dúvida de que é o mais caro. Consultei-o
durante dois meses. Foi um furo n’água. Não cheguei a saber o que ele achava que tinha acontecido;
não havia meio de fazê-lo falar! Sabe como são os psicanalistas; eles querem que você fale, se
analise e depois lhes conte o que havia de errado com você; então você papagueia um pouco mais
sobre o caso e se declara curado, com o que eles concordam e o mandam ir com Deus. Não há nada
de mal nisso, se o seu subconsciente estiver por dentro da situação e não alterar depois o veredicto.
Mas o meu subconsciente estava totalmente de pernas pro ar; então decidi que estava perdendo
tempo e me dei alta.
“Nesse ínterim já tinha me entendido com uns amigos que procurei pra saber o que achavam, e um
deles (professor de filosofia na universidade) começou a falar sobre ontologia, o que me levou a ler
sobre o assunto e achar uma pista. Pra ser franco, pensei que fosse bem mais que uma pista; achei
que tinha dado com a resposta. Até a noite passada. Porque daí em diante me convenci que estava
enganado ao menos em parte.”
— Ontologia... — disse Mearson. — A palavra me é vagamente familiar; quer me refrescar a
memória?
— Vou citar o Webster, edição integral, sem expurgos: “ontologia é a ciência do ser ou da realidade;
ramo do saber que investiga a natureza do ser, como tal, bem como suas relações e propriedades
essenciais”.
Kane consultou o relógio de pulso e disse:
— Mas isso já é ir longe demais só pra dizer o que é que eu achava. Estou começando a me cansar
desse papo e na certa você mais ainda de me ouvir. Vamos deixar o resto pra amanhã?
— Boa idéia, Larry — disse o advogado, erguendo-se.
Kane apanhou o frasco prateado e acabou de enxugar-lhe o conteúdo.
— Vai bancar o são-bernardo outra vez? — perguntou ao devolvê-lo.

— Fui até a Quadragésima Quarta — declarou Mearson no dia seguinte. — O incidente que
me descreveu está nos registros. E eu falei com um daqueles guardas que foram com você até a
cena do... humm... até o carro. O depoimento que prestou à polícia sobre o caso foi real, quanto a
isso não há dúvida.
— Vou recomeçar do ponto em que parei — disse Kane. — Ontologia, estudo da natureza da
realidade. Lendo sobre isso topei com o solipsismo, que nos vem dos gregos. É a crença em que o
universo inteiro é obra da imaginação da gente; da minha imaginação, no meu caso. Segundo ela, eu
próprio sou a única realidade concreta, e todas as coisas e todas as outras pessoas só existem na
minha mente.
Mearson fez uma careta e perguntou:
— Então, a menina de bicicleta, que, para princípio de conversa, só tinha existência imaginária,
deixou de existir... humm, retroativamente, como a partir do momento em que você a matou? E não
deixou traço algum de jamais ter existido, salvo uma lembrança em sua mente?
— Essa possibilidade me ocorreu, e eu decidi fazer uma coisa que a comprovasse ou desmentisse.
Especificando, decidi cometer um assassinato experimental para ver o que acontecia.
— M-mas, Larry, assassinatos acontecem todo dia, e as vítimas não desaparecem retroativamente,
sem deixar sinal de alguma vez terem existido de verdade!
— Sei, mas não sou eu que as mato — respondeu Kane a sério. — E se o universo é produto da
minha imaginação, esse detalhe faz muita diferença. A garota da bicicleta foi a primeira pessoa que
eu matei.
Mearson suspirou. — Então você decidiu pôr à prova essa teoria, cometendo um assassínio
deliberado? Baleando Queenie Quinn. Mas por que ela não...?
— Não, não, não — interrompeu Kane. — Cometi outro, antes disso, há mais ou menos um mês.
Um homem. Não adianta dizer-lhe o nome nem nada sobre ele, porque, como a ciclista, ele
também, de um instante pra outro, passou a nunca ter existido.
“Mas é claro que eu não sabia que seria assim, de modo que não o matei abertamente, como fiz
depois com a stripper. Tomei precauções a fim de que, se o corpo fosse achado, não pudessem me
prender como autor do crime.
“Mas depois de matá-lo, bem... revelou-se que ele nunca tinha existido, e eu vi nisso a confirmação
da teoria. Depois, passei a carregar um revólver comigo, achando que podia matar impunemente
quando bem me desse na veneta... e que isso não teria a mínima importância; nem mesmo seria
imoral, pois quem quer que eu matasse sempre seria alguém que não existia de modo algum salvo
na minha mente.”
— Humm — murmurou Mearson.
— Normalmente, Morty — prosseguiu Kane, — sou bastante calmo. A noite passada foi a primeira
vez que usei o revólver. Quando aquela danada me bateu, foi pra valer: um bom gancho de direita.
Na hora fiquei cego, e a reação foi automática: puxei da arma e eis aí.
— Humm — tornou o advogado. — E Queenie Quinn, como se veio a saber depois, era real e aí
está você preso por homicídio. Isso não liquida essa teoria do solipsismo?
Kane fez uma careta. — Claro que a modifica bastante. Tenho meditado muito desde que fui preso,
e eis o que concluí: se Queenie era real (e é óbvio que era), então eu não era, como provavelmente
não sou, a única pessoa real existente. Há, portanto, pessoas reais e pessoas irreais; umas só existem
na imaginação das outras.
“Quantas, não sei. Talvez poucas, talvez milhares ou até milhões. A minha amostragem (três
pessoas, das quais uma se revelou real) é muito pequena para ser significativa.”
— Mas por quê? Qual a razão dessa dualidade?
— Não tenho a mínima idéia. — E Kane fez uma careta. — Já refleti muito e me ocorreram
algumas explicações, mas não passam de conjeturas. Parece conspiração... Mas conspiração contra
quem? Ou contra o quê? E não é possível que toda gente real esteja envolvida nela, porque eu não
estou.
Nesse ponto sorriu sem vontade. — Tive um sonho maluco sobre isso, a outra noite; um desses
sonhos confusos, todo misturado, que a gente não pode contar por falta de continuidade; só uma
série de impressões. Algo sobre uma conspiração e um arquivo da realidade que registrava os
nomes de todas as pessoas reais e as conservava reais. E (um enigma pra você) a realidade era, na
verdade, uma cadeia de companhias de realidade, que porém não eram conhecidas como tais, uma
em cada cidade. Mas é claro que elas também operavam em estado real, como um front. E. . . Xi, é
confuso demais até pra tentar contar!
“Bem, Morty, é isso. Aposto que vai dizer que a minha única defesa é a alegação de insanidade. E
tem toda razão porque, desgraçado de mim, se não estou maluco então sou assassino. Primeiro grau
e sem atenuantes. Não é isso?
— É — respondeu Mearson, que após rabiscar alguma coisa com um lápis dourado, tornou a
erguer os olhos para o cliente. — O psiquiatra que consultou. . . o nome dele não seria Galbraith?
Kane negou com um gesto de cabeça.
— Ótimo. O Dr. Galbraith é um amigo meu e o melhor psiquiatra forense da cidade, talvez do país
inteiro. Já trabalhou comigo numa dúzia de casos, e vencemos todos. Eu gostaria de ouvir a
opinião dele antes de começar a planejar esta defesa. Promete falar com ele com toda franqueza,
se vier vê-lo?
— Claro. Humm... Quer pedir-lhe um favor por mim?
— Que é?
— Passe o frasco pra ele e mande trazer cheio. Você não calcula como isso quase transforma em
prazer essas entrevistas.

O intercomunicador da mesa de Mortimer Mearson soou e ele apertou um botão que deu passagem
à voz da secretária:
— O Dr. Galbraith quer vê-lo.
Mearson mandou fazê-lo entrar logo.
— Oi, Doutor! — saudou-o. — Sente-se e conte tudo.
Galbraith obedeceu e acendeu um cigarro antes de falar. — Por algum tempo me pareceu intrigante
— começou depois. — Não achei a resposta até me enfronhar no passado clínico desse rapaz. Aos
vinte e dois anos de idade, jogando pólo, ele deu um tombo e levou uma pancada na cabeça, com
um taco. Isso determinou uma concussão grave e posteriormente amnésia. Total, no princípio; mas
acabou recuperando a lembrança completa de sua vida até a primeira fase da adolescência. Porém,
subsistia um grande vácuo entre esse tempo e a ocasião do tombo.
— Puxa, bem o período da lavagem cerebral!
— Exato. Ele tem alguns vislumbres... Como o sonho que contou bem demonstra. Podia ser
reabilitado... Mas acho que agora é tarde demais. Se ao menos o tivéssemos pego antes de cometer
um crime abertamente. . . Não podemos agora correr o risco de pôr a história dele no registro, nem
como defesa de insanidade mental.
— Está bem — disse Mearson. — Vou fazer a chamada agora. Depois, terei de ir vê-lo de novo.
Detesto isso, mas tem que ser feito.
E apertou um botão do intercomunicador: — Dorothy, ligue para Mr. Hodge, da Companhia de
Realidade de Midland. Assim que atenderem, transfira para a minha linha particular.
Galbraith saiu, enquanto Mearson aguardava, e, momentos depois, um dos telefones estridulou.
Colheu o receptor: — Hodge? — perguntou. — Merson falando. Seu telefone é seguro?... Ótimo.
Código oitenta e quatro. Remova imediatamente a ficha de Lorenz Kane... L-o-r-e-n-z K-a-n-e... do
arquivo da realidade. .. Isso mesmo, é necessário; trata-se de uma emergência. Amanhã apresento o
relatório.
Dizendo isso desligou, extraiu uma pistola de uma gaveta e tomou um táxi que o levou ao tribunal.
Obteve permissão para ver o cliente e, tão logo Kane passou pela porta (não havia motivo para
esperar mais), matou-o a tiros. Então aguardou aquele minuto que os corpos sempre levam para
desaparecer de todo e depois subiu à sala da Juíza Hayes a fim de faver uma última verificação.
— Oi, meritíssima — saudou ao entrar. — Alguém, não faz muito, andou me falando sobre um tal
Lorenz Kane, mas não me lembro quem foi. Terá sido a senhora?
— Não, Morty; nunca ouvi esse nome antes.
— Então deve ter sido outra pessoa. Obrigado, excelência. Até mais ver.

BATIDAS À PORTA

Há uma deliciosa historiazinha de horror que se resume em duas únicas sentenças:


O último homem da Terra estava sentado a sós numa sala. De repente ouviu baterem à porta.. .
Duas sentenças e uma elipse expressa por reticências. É claro que o horror não está na história, mas
na elipse, na implicação: que bateu à porta? Confrontada com o desconhecido, a mente humana
sempre concebe algo vagamente horrível.
O certo, porém, é que não o era, absolutamente.

O último homem da Terra — do universo, aliás — estava sentado numa sala, a sós. Era uma sala
muito peculiar, e ele se detinha justamente a estudar as razões de tal peculiaridade. A conclusão que
tirou não chegou a horrorizá-lo, mas aborreceu-o bastante.
Walter Phelan, professor adjunto de Antropologia na Universidade de Nathan, até dois dias atrás,
quando a Universidade de Nathan deixara de existir, não era homem de se horrorizar com pouca
coisa. Não que fosse alguma figura heróica; nem por sonhos. Era delgado de estatura e tinha
temperamento brando. Nada para se olhar duas vezes, e ele o sabia muito bem.
Não que sua aparência o inquietasse agora. Na verdade, naquele preciso instante, não havia muito
sentimento nele. Abstraidamente, sabia que dois dias antes, no espaço de uma só hora, o gênero
humano fora destruído, exceto ele e, em alguma parte, uma mulher. Fato, aliás, que não lhe
interessava nem um pouco. Na certa nunca a veria, e isto pouco se lhe dava.
Quase não pensava em mulheres, desde a morte de Martha, ano e meio atrás. Não que ela não fosse
boa esposa, apesar de algo mandona. Sim, amara-a; de um modo fundo e sossegado. Só estava com
quarenta anos agora, e vinha viúvo desde os trinta e oito, mas. . . Bem, simplesmente não tornara a
pensar em mulheres. Sua vida passou a ser os seus livros, os que lia e os que escrevia. Agora já não
faria sentido escrevê-los, mas tinha o resto da vida para ler.
Na verdade, não seria mau ter companhia, mas ele se arranjaria sozinho mesmo. Talvez, ao fim de
algum tempo, recebesse a visita ocasional de um dos Zans, se bem isso fosse coisa algo difícil de
imaginar. O pensamento deles era tão estranho ao seu que seria quase impossível encontrarem
alguma base comum para uma troca de idéias. Eram inteligentes em certo sentido, mas isso também
se pode dizer das formigas. Nenhum homem conseguiu jamais estabelecer comunicação com uma
formiga. Pensou nos Zans como superformigas, apesar de não se parecerem com elas. E teve a
suspeita de que eles encaravam a espécie humana do mesmo modo como a espécie humana sempre
considerara as formigas comuns. De fato, o que tinham feito à Terra era comparável ao que os
homens sempre fizeram aos formigueiros, só que foram bem mais eficientes.
Mas deram-lhe muitos livros; nesse ponto, até que tinham sido gentis: atenderam-no, tão logo lhes
fez saber o que queria. E isso fez ele no momento em que compreendeu que estava destinado a
passar o resto da vida sozinho naquela sala. O resto da vida ou, como os Zans estramboticamente o
tinham expresso, pa-ra sem-pre.
Até mesmo os espíritos brilhantes, e era inegável que os Zans eram brilhantes, têm lá as suas
idiossincrasias. Os Zans tinham aprendido inglês terrestre em questão de horas, porém persistiam
em separar as sílabas. Mas estamos divagando.
Então bateram à porta.
Aí o leitor já tem tudo, exceto os três pontinhos, a elipse. Vou completar a sentença para mostrar
que não houve nada de horrível.
Walter Phelan respondeu: — Entre — e a porta se abriu. Claro que era apenas um Zan. Igualzinho
ao outro; se havia algo que os distinguisse um do outro, Walter não sabia o que fosse. Tinham pouco
mais de um metro de altura e não se pareciam com nada deste mundo; isto é, com nada que
houvesse na Terra antes da chegada deles.
— Olá, George — disse Walter. Quando percebeu que nenhum deles tinha nome, decidiu chamar
todos de George, coisa com que os Zans não pareciam se importar.
— O-lá, Wal-ter — respondeu o Zan. Era um ritual, as batidas à porta, depois aquela saudação.
Walter aguardou.
— Pon-to um — disse o Zan. — Do-ra-van-te vo-cê, por fa-vor, sen-ta-rá com a ca-dei-ra vol-ta-
da pa-ra o ou-tro la-do.
— Compreendido — disse Walter. — Aquela parede lisa é transparente para fora, não é?
— E-la é trans-pa-ren-te.
— Eu sabia — suspirou Phelan. Uma parede nua, toda branca, sem uma única peça de mobiliário
encostada! E feita de material diferente das outras. Se eu teimar em ficar de costas para ela, que
farão vocês? Matar-me-ão, por acaso? perguntou esperançoso.
— Ti-rar-lhe-e-mos os li-vros.
— Está bem, George; você me pegou. Vou ficar de frente para o outro lado sempre que me sentar ali
e ler. Quantos outros animais além de mim existem neste zoológico de vocês?
— Du-zen-tos e de-zes-seis. Walter meneou a cabeça.
— Não está completo, George. Qualquer zoológico de segunda classe tem mais espécimes que
isso. . . Ou teria, se tivesse restado algum. Fomos colhidos ao acaso?
— Sim. Se-ria im-pos-sí-vel co-lher e-xem-pla-res de to-das as es-pé-cies. Ma-cho e fê-me-a de u-
ma cen-te-na de ti-pos.
— Como vocês os alimentam? Os carnívoros, quero dizer.
— Fa-ze-mos a-li-men-to sin-té-ti-co.
— Bem bolado. E a flora? Também fizeram uma coleção de vegetais?
— A flo-ra não re-a-ge a vi-bra-ções. Con-ti-nu-a cres-cen-do li-vre-men-te.
— Que ótimo. Não deram duro nela como fizeram com a fauna. Bem, George, você
começou dizendo “ponto um”, o que me leva a crer que há um ponto dois emboscado em alguma
parte. O que é?
— Há al-go que não en-ten-de-mos. Dois dos ou-tros a-ni-mais dor-mem e não que-rem a-cor-dar.
E es-tão fri-os.
— Acontece nos melhores zoos, George. Provavelmente não há nada de errado com eles, além de
estarem mortos.
— Mor-tos? Quer di-zer pa-ra-dos. Mas na-da os pa-rou. Ca-da um de-les es-ta-va so-zi-nho.
Walter, intrigado, fixava o Zan.
— Está me dizendo, George, que vocês não sabem o que seja morte natural?
— A mor-te o-cor-re quan-do um ser é ma-ta-do, im-pe-di-do de con-ti-nu-ar a vi-ver.
Walter Phelan pestanejou.
— Que idade tem você, George? — perguntou.
— De-zes-seis... Vo-cê não co-nhe-ce a pa-la-vra. Seu pla-ne-ta deu a vol-ta em tor-no de seu sol
cer-ca de se-te mil ve-zes. A-in-da sou jo-vem.
Walter assobiou.
— Um bebê em armas! — e meditou intensamente durante alguns momentos. — Ouça, George,
você tem algo a aprender sobre este nosso planeta. Há uma fulana por aí que não costuma dar as
caras lá pelo lugar de onde você veio. Uma velha encapuçada, com uma foice numa mão e uma
ampulheta na outra. Essas vibrações de vocês não a mataram.
— Quem é e-la?
— Pode chamá-la de Implacável Ceifeira, George. A Velha Morte. Nossa gente e nossos animais
vivem até que ela, a Morte, lhes faz parar o coração.
“— Foi e-la que pa-rou as du-as cri-a-tu-ras? Se-rá que vai pa-rar ou-tras a-in-da?
Walter abriu a boca para responder, mas logo a fechou de novo. Algo na voz do Zan indicava que
haveria um esgar de preocupação em seu rosto, se ele dispusesse de um rosto reconhecível como tal.
— Que acha de me levar até esses animais que não querem acordar — perguntou Walter. — Seria
contra o regulamento?
— Ve-nha — respondeu o Zan.
E essa foi a tarde do segundo dia. Na manhã seguinte os Zans voltaram, vários deles. Começaram a
remover os livros e a mobília de Walter Phelan. Quando terminaram, removeram-no também a ele.
Logo Walter deu por si ocupando um aposento maior, a uns cem passos do primeiro.
Sentou-se e esperou. Quando ouviu baterem à porta, adivinhou o que seria. Erguendo-se
polidamente, respondeu: — Entre.
Um Zan abriu a porta e pôs-se de lado. Então uma mulher entrou.
Walter inclinou-se ligeiramente. — Walter Phelan — disse, — caso George não lhe tenha dito o
meu nome. George procura ser educado, mas não conhece todos os nossos costumes.
A recém-chegada parecia calma; ele ficou contente ao notar isso.
— Meu nome é Grace Evans, Mr. Phelan — disse ela. — De que se trata? Por que me trouxeram
aqui?
Walter estudava-a enquanto a ouvia. Era alta (pelo menos tão alta quanto ele) e bem proporcionada.
Parecia mal ter cruzado a casa dos trinta; aproximadamente a idade que Martha teria. Também
aparentava a mesma confiança e serenidade que ele sempre apreciara na outra, muito embora isso
de algum modo contrastasse com a sua própria informalidade sossegada. Resumindo, achou-a
realmente parecidíssima com Martha.
— Acho que bem pode adivinhar por que foi trazida aqui, mas vamos um pouco mais atrás —
respondeu ele, por fim. — Já está a par do que houve no mundo?
— Se eu sei que eles.. . exterminaram toda gente?
— Sim. Queira sentar-se. Sabe como fizeram isso?
Ela se deixou afundar numa confortável poltrona próxima, antes de responder.
— Não, não sei ao certo. Não que isto importe, não é?
— Nem tanto; mas aí vai a história, segundo o que pude apurar em conversa com um deles e
juntando depois os pedaços. Não são numerosos... Aqui, ao menos. Não sei quantos deles possa
haver no lugar de onde vieram, não sei onde, mas, com certeza, fora do sistema solar. Já viu a nave
espacial deles?
— Vi. Grande como uma montanha.
— Quase. Bem, essa nave está equipada para emitir certo tipo de vibração (é assim que eles a
chamam na nossa língua, mas imagino que seja algo mais parecido com ondas de rádio do que com
vibração sonora) que destrói toda vida animal. A nave propriamente dita, está isolada desse tipo de
vibração. Não sei se o seu raio de ação é amplo bastante para extinguir de uma vez toda a vida do
planeta, ou se tiveram que voar em círculos sobre a Terra enquanto emitiam essas ondas assassinas.
Mas com isso mataram tudo, instantaneamente e, espero eu, sem causar dor. A única razão por que
nós, e os outros duzentos e tantos animais deste zoológico, fomos poupados é que estávamos
abrigados no interior da nave. Fomos colhidos como espécimes. Já sabia que isto aqui é um zoo,
não?
— Eu... suspeitava.
— As paredes da frente são transparentes para fora. Os Zans revelaram muita argúcia no arranjar o
interior de cada cubículo de modo a fazê-lo parecer o habitai natural da criatura que encerra. Esses
cubículos, como este em que estamos, são construídos de plástico; os Zans têm uma máquina capaz
de construí-los em poucos minutos. Se a Terra tivesse uma máquina e um processo semelhantes,
teríamos resolvido todo o nosso problema habitacional. Enfim, não temos mais nenhum problema
habitacional agora. E imagino que o gênero humano, especificamente, eu e você, podemos parar de
nos preocupar com a bomba-h ou com a próxima guerra. Não há dúvida, os Zans solucionaram um
bocado de problemas para nós.
Diante dessa observação, Grace Evans sorriu amarelo.
— Mais um caso em que a operação foi um sucesso só que o paciente morreu. Tudo foi muito
confuso. O senhor se lembra de ter sido capturado? Eu não. Fui dormir à noite e acordei numa jaula
dentro da espaçonave.
— Também não me lembro — disse Walter. — Meu palpite é que usaram as tais ondas
primeiramente contra nós, mas em baixa intensidade, apenas para nos pôr fora de combate. Depois
vagaram por aí, catando amostras para o seu zoo, mais ou menos ao acaso. Quando obtiveram
quantos queriam, ou quantos cabiam na nave, ligaram a coisa para valer. Aí está. E só ontem
ficaram sabendo que cometeram um grave erro superestimando-nos. Pensavam que fôssemos
imortais como eles.
— Que fôssemos... o quê?
— Eles podem ser assassinados, mas não conhecem isso de morte natural. Ao menos não
conheciam até o dia de ontem, quando dois de nós morreram.
— Dois de... Oh!
— Sim, dois animais deste zoo. Duas espécies inapelavelmente extintas para sempre. E pelo modo
como os Zans medem o tempo, o membro restante de cada espécie tem só mais alguns minutos de
vida pela frente. Pensavam que tinham obtido espécimes permanentes. — Quer dizer que eles não
sabiam que somos criaturas de vida curta?
— Isso mesmo — respondeu Walter. — Um deles ainda é jovem com a idade de sete mil anos,
segundo me disse. Por falar nisso, são bissexuais, mas decerto se acasalam a cada dez mil anos ou
por aí. Quando souberam ontem quão ridiculamente curta é a expectativa de vida que nós
animais terrestres temos, devem ter tido um grande choque. Seja como for, decidiram reorganizar o
zoológico em função disso. Dispondo-nos de dois em dois, em lugar de de um em um. Crêem
que coletivamente possamos durar mais que individualmente.
— Oh! — Grace Evans se ergueu, exibindo um leve rubor na face. — Se o senhor pensa... Se eles
pensam... — E dirigiu-se para a porta.
— Deve estar trancada — informou Walter Phelan calmamente.
— Mas não se preocupe. Talvez eles pensem, mas eu não. Não precisa dizer que não me
aceitaria nem que eu fosse o último homem no mundo. Seria redundante, nas circunstâncias.
— Mas irão eles nos manter juntos, trancafiados, neste quarto pequeno?
— Não é tão pequeno assim; nós nos arranjaremos. Posso dormir muito bem numa dessas
estofadíssimas poltronas. E não pense que não concordo plenamente com você, minha cara. Pondo
de parte considerações de ordem pessoal, o mínimo que posso fazer pela espécie humana é deixar
que se extinga conosco. Não valeria a pena perpetuá-la só para o fim de ser exibida num zoológico.
À vista disso, ela lhe disse um “obrigada” quase inaudível e o rubor fugia-lhe do rosto. Agora havia
fúria em seus olhos, mas Walter sabia que não era contra ele. Lá com os olhos faiscando daquele
jeito, fazia-se ainda mais parecida com Martha, notava ele que, sorrindo-lhe, disse:
— Do contrário...
Ela se ergueu da poltrona e, por um momento, ele pensou que fosse estapeá-lo. Mas tornou a
afundar-se no assento, exausta.
— Se o senhor fosse homem, estaria pensando num modo de.. Disse que eles podem ser
assassinados? — E a voz dela exprimia amargura.
— Os Zans? Sem dúvida. Andei estudando-os. Parecem tremendamente diferentes de nós, mas creio
que têm aproximadamente o mesmo metabolismo, o mesmo tipo de sistema circulatório e prova-
velmente o mesmo tipo de aparelho digestivo. Acho que qualquer coisa capaz de matar um de nós
poderia acabar com qualquer deles.
— Mas o senhor disse...
— Claro que há diferenças. Qualquer que seja o fator que envelheça o homem, isso eles
não têm. Ou talvez tenham alguma glândula que o homem não possui, algo capaz de renovar as
células. Mais do que de sete em sete anos, quero dizer.
Agora ela se esquecera de sua fúria anterior. Inclinou-se ansiosa para a frente.
— Deve ser isso. Mas acho que não sentem dor. Ele contava que assim fosse.
— Por que diz isso, minha cara?
— Eu estiquei um pedaço de arame que achei na mesa do meu cubículo, entre os umbrais da porta,
de tal modo que o Zan tropeçasse nele e caísse. Assim foi, e o arame o cortou na perna.
— Viu correr algum sangue vermelho?
— Vi, mas me pareceu que ele nem se importou com isso. Não se enfureceu nem nada.
Simplesmente retirou o arame do lugar. Quando voltou, depois, poucas horas mais tarde, o corte
tinha desaparecido. Bem, quase. Do ferimento só restava um sinalzinho, que aliás me serviu para
identificar o Zan: era o mesmo.
Walter Phelan balançou a cabeça vagarosamente.
— Eles não se enfureceriam, claro. Não têm emoções. Se chegássemos a matar um deles os outros
talvez nem mesmo nos castigassem por isso. Apenas passariam a entregar-nos o alimento através de
alçapões e se manteriam distantes de nós, tratando-nos como os homens tratariam um animal de zoo
que tivesse liquidado alguém. Com certeza só dariam jeito de que não pudéssemos suprimir mais
nenhum outro de seus membros.
— Quantos são?
— Uns duzentos, acho — respondeu Walter; — só nesta nave. Mas na certa haverá muito mais no
lugar de onde vieram. Tenho entretanto o palpite de que isto aqui é só uma espécie de tropa de
choque, enviada com a missão específica de desocupar o planeta e prepará-lo para a ocupação Zan.
— A verdade é que eles fizeram um bom...
Bateram à porta e Walter Phelan respondeu que entrassem. Um Zan abriu a porta e deteve-se na
soleira.
— Ola, George — saudou Walter.
— O-lá, Wal-ter. — O ritual de sempre. Seria o mesmo Zan?
— Que há?
— Ou-tra cri-a-tu-ra dor-me e não quer a-cor-dar. Pe-que-na e fel-pu-da, cha-ma-da do-ni-nha.
Walter encolheu os ombros.
— Acontece, George. É a morte. Já expliquei isso.
— Pi-or a-in-da: um Zan mor-reu. De ma-nhã.
— Acha pior? — E Walter fitou afavelmente o interlocutor. — Bem, George, você precisa ir se
acostumando com isso, se pretende ficar por aqui.
O Zan permaneceu parado, em pé, sem responder. Por fim, Walter quebrou o silêncio:
— Bem?
— Quan-to à do-ni-nha, vo-cê a-con-se-lha a mes-ma coisa? Walter tornou a dar de ombros.
— Na certa não vai adiantar nada; mas, enfim, por que não?
E o Zan saiu.
Walter conseguiu ouvir-lhe os passos que se afastavam.
— É capaz de dar certo, Martha — disse depois a sorrir.
— Mar...? Meu nome é Grace, Mr. Phelan. E o que é capaz de dar certo?
— Meu nome é Walter, Grace. Já pode ir se acostumando com ele. O caso é que você
me recorda Martha, minha esposa. Morreu há um par de anos.
— Lamento. Mas o que é capaz de dar certo? E sobre que é que estava falando com aquele Zan?
— Saberemos amanhã — respondeu ele, e Grace não lhe arrancou mais palavra.
Esse foi o terceiro dia da estada dos Zans na Terra. O dia subseqüente foi o último.
Era quase meio-dia quando um deles apareceu-lhes. Após o ritual, deteve-se em pé na soleira, com
um ar mais esquisito do que nunca. Seria interessante descrevê-lo, mas não tenho palavras.
— Nós va-mos em-bo-ra — informou ele.— Nosso con-se-lho se re-u-niu e de-ci-di-ram.
— Morreu mais alguém de vocês?
— A noi-te pas-sa-da. Es-te é pla-ne-ta de mor-te. Walter concordou.
— Vocês tiveram o seu quinhão. Mesmo assim, levam sobre nós a vantagem de ainda terem no
planeta duzentos e treze membros vivos da sua espécie, a qual deve bem totalizar aí alguns bilhões
de indivíduos por esse espaço afora. Não se apressem, pois.
— Há al-gu-ma coi-sa que pos-sa-mos fa-zer?
— Sim. Podem se apressar. E também podem deixar nossa porta destrancada, mas não a dos outros.
Nós cuidaremos deles.
O Zan esboçou um assentimento e se foi. Grace Evans estava em pé, de olhos brilhantes.
— Como?... O quê?... — perguntava.
— Depois — advertiu Walter. — Primeiro quero ouvir o ruído da partida deles. É um som que não
quero esquecer nunca.
O som se fez ouvir em poucos minutos, e Walter Phelan, tomando consciência da grande tensão em
que estava, se deixou afundar numa poltrona e relaxou.
— No Jardim do Éden também havia uma cobra, Grace — explicou ele depois em voz baixa, —
que nos meteu numa grande embrulhada. Mas a deste jardim nos tirou do nosso apuro, de modo que
o mal que a primeira nos fez foi compensado pela outra. Refiro-me à companheira da cobra que
morreu anteontem. Era uma cascavel.
— Quer dizer que ela matou os dois Zans? Mas... Walter fez que sim.
— Eles eram como criancinhas na floresta. Quando me levaram para ver as primeiras criaturas que
“dormiam e não queriam acordar”, e constatei que uma delas era uma cascavel, tive uma idéia. Era
bem possível, pensei eu, que os animais venenosos fossem coisa exclusiva aqui da Terra e que os
Zans nada soubessem a respeito deles. Talvez também o seu metabolismo fosse semelhante ao
nosso apenas o suficiente para que o veneno os matasse. Enfim, eu não tinha nada a perder
tentando. E ambos os talvezes se revelaram certos.
— E como conseguiu que uma cascavel viva... Walter Phelan arreganhou os dentes e respondeu:
— Expliquei-lhes o que era isso de afeição. Eles não sabiam. Mas, como descobri, eles estavam
interessados em preservar o remanescente de cada espécie pelo maior prazo possível, a fim de
fotografá-lo e catalogá-lo. Informei-lhes que a bicha morreria imediatamente devido à perda da
companheira, a não ser que tivesse afeição e carinho constantemente.
“E mostrei-lhes como fazer, servindo-me do pato, que era a outra criatura que tinha perdido seu par.
Por sorte, o bicho era manso e não tive dificuldade em erguê-lo ao colo, encostá-lo ao peito e afagá-
lo. Depois deixei que cuidassem dele. E da cascavel.”
Walter, nesse ponto, ergueu-se e se espreguiçou; depois tornou a sentar em posição mais cômoda.
— Bem — tornou a dizer, — temos um mundo inteiro para planejar. Precisamos tirar os animais da
arca. Antes, porém, temos de meditar e decidir algumas coisas. Os herbívoros selvagens podemos
soltar logo. Os domésticos é melhor que se conservem onde estão; nós cuidaremos deles, pois nos
são úteis. Quanto aos carnívoros, os predadores... Bem, temos que tomar uma decisão. Que,
infelizmente, lhes será, acho eu, desfavorável. A menos que encontremos e aprendamos a operar a
maquinaria que os Zans utilizavam para fazer alimento sintético.
E olhou para ela.
— E há também a espécie humana. Precisamos tomar uma decisão sobre ela. Decisão
importantíssima.
O rosto de Grace ia-se fazendo róseo outra vez, como na véspera. Então, ela se firmou na poltrona e
sentenciou:
— Não.
Mas ele nem pareceu ouvi-la.
— Tem sido uma bela espécie até aqui. Terá de ser recomeçada, se decidirmos recomeçá-la; talvez
isso só fosse um recuo para cobrar fôlego; podemos juntar livros para ela e conservar intacta a
maioria dos conhecimentos; ao menos, os de maior importância. Podemos...
E interrompeu-se, vendo que Grace se erguia e rumava para a porta. Exatamente como Martha
reagiria, pensou ele, nos tempos em que ainda a cortejava, antes de se casarem.
— Reflita melhor no caso, minha cara — acrescentou; — não há pressa. Mas volte.
A porta bateu com estrondo. Ele esperou sentado, considerando todas as coisas que precisavam ser
feitas tão logo começasse a fazê-las, mas sem pressa de pôr mãos à obra.
Algum tempo depois, ouviu os passos dela, hesitantes, que se aproximavam.
Então deu um leve sorriso. Vêem, vocês? Não foi horrível, de fato?
O último homem da Terra estava, pois, sentado numa sala, a sós, quando ouviu baterem à porta...

OBEDIÊNCIA

Num planetinha de uma pálida e longínqua estrela que não se avista da Terra, situada no outro
extremo da Galáxia, cinco vezes mais longe do que o homem jamais conseguiu penetrar no espaço,
há uma estátua de um homem da Terra. É de metal precioso e, com suas dez polegadas de altura,
enorme e primorosamente executada.
Está coberta de percevejos...

Eles faziam a ronda habitual no Setor 1534, muito além de Sírio, a vários parsecs do Sol. A nave era
de tipo comum, destinada a explorações e para dois tripulantes, que servia a todo patrulhamento
fora do sistema. O Capitão May e o Tenente Ross jogavam xadrez quando o alarme soou.
— Reajuste-o, Don — disse o capitão, — enquanto eu penso numa defesa. — Nem ergueu os olhos
do tabuleiro; sabia que não podia ser mais que um meteoro. Não havia naves naquele setor. O
homem já penetrara mil parsecs no espaço e ainda não tinha encontrado nenhuma forma de vida
alienígena que fosse sequer inteligente bastante para se comunicar, quanto mais para construir
espaçonaves.
Ross também não se ergueu; apenas voltou-se na cadeira, em direção do painel de instrumentos e da
tela. Levantou os olhos despreocupadamente e faltou-lhe o fôlego quando avistou uma nave na tela.
Recobrou-se da surpresa apenas o suficiente para exclamar “Cap!”, com o que o tabuleiro foi ao
chão e May logo olhava sobre o ombro do outro.
Podia ouvir-lhe a respiração e depois a voz, que disse: — Atire, Don!
— Mas é um cruzador classe Rochester! Um dos nossos! Não sei o que possa estar fazendo aqui,
mas não podemos...
— Olhe de novo!
Don Ross não podia olhar de novo, pois ainda não tinha deixado de olhar a primeira vez; mas
entendeu logo o que May queria dizer. Não era bem um Rochester, apesar de muito semelhante.
Havia algo de estranho naquela nave. Algo? Ela toda era alienígena; uma imitação estrangeira de
um Rochester. E as mãos do tenente acorreram para o botão de tiro, quase antes mesmo de sentir, a
pleno, o impacto da descoberta.
De dedo no botão, olhou para os mostradores do Picar e do Monold. Estavam no zero.
— Está nos despistando, Cap — declarou. — Não podemos ter idéia da distância em que está, nem
do seu tamanho ou massa!
O Capitão May, com o rosto pálido, fez sinal de que entendia.
Dentro da cabeça de Don Ross, um pensamento disse: “Acalmem-se, homens; não somos
inimigos.”
Ross virou-se e fixou May no rosto.
— Sim — disse este, — também captei isso. É telepatia.
Então Ross pôs-se a blasfemar:
— Se eles fossem telepatas...
— Disparar, Don. Visual.
Ross premiu o botão. Um lampejo de energia encheu a tela e, ao extinguir-se, não havia nenhum
destroço de espaçonave...

O Almirante Sutherland deu as costas para o mapa celeste que cobria a parede e fitou-os, com mau
humor, de sob espessas sobrancelhas. Disse: — Não estou interessado em seu relatório, May. Vocês
dois passaram no psicógrafo; extraímos de suas mentes todos os detalhes do encontro. Nossos
lógicos os analisaram. Vocês estão aqui por razões de disciplina. Sabe, Capitão May, qual é a
penalidade reservada a atos de desobediência?
May respondeu em posição de sentido, “Sim, senhor”.
— E qual é?
— Morte, senhor.
— E a que ordem desobedeceu?
— À Ordem Geral 1390, secção 12.a. Da prioridade. Qualquer nave terrestre, militar ou não, deve
destruir imediatamente qualquer nave estranha que encontre, tão logo a aviste. Caso não possa fazê-
lo, deverá precipitar-se espaço afora, em direção nunca exatamente oposta à da Terra, e seguir tal
rota até esgotar-se-lhe o combustível.
— E qual a razão disso, Capitão?... Só pergunto para ver se o senhor sabe. Não que seja
importante, de modo algum, nem mesmo necessário, que entenda as razões de nenhuma ordem.
— Perfeitamente, senhor. É para que a nave alienígena não tenha meios de saber, ou deduzir
da nossa rota, a localização do Sol e da Terra.
— Todavia, o senhor desobedeceu essa regra, Capitão. Não tinha certeza de ter destruído a
espaçonave estranha. Que tem a depor em sua defesa?
— Achei que a medida não era necessária, senhor. A nave não me pareceu hostil. Além disso, eles já
deviam conhecer a nossa base, pois nos chamaram de “homens”.
— Bobagem! A mensagem telepática foi emitida por uma mente alienígena, mas foi captada por
vocês. Suas mentes, por si sós, traduziram a mensagem na nossa terminologia. Não é certo
necessariamente que ele conhecesse o ponto de origem de vocês; nem mesmo devia saber que eram
humanos.
O Tenente Ross nada tinha que falar, mas, ainda assim, perguntou, “Então, senhor, não se admite
que fossem amistosos?”
A isso o almirante replicou: “Onde foi que recebeu treinamento militar, Tenente? O senhor parece se
esquecer do ponto mais importante dos nossos planos de defesa; a razão de estarmos patrulhando o
espaço, há já quatrocentos anos, à espreita de formas alienígenas de vida. Todo alienígena é
inimigo. Mesmo que fosse amistoso no dia de hoje, como saber se ainda o seria no ano que vem ou
daqui a cem anos? E um inimigo potencial é sempre inimigo. Quanto antes o destruirmos mais
segura estará a Terra.”
“Examine a história militar do mundo! Ela prova isto, se não provar outra coisa. Lembre-se de
Roma! Para pôr-se a seguro, não permitiu vizinhos poderosos. E Alexandre Magno! Napoleão!”
— Senhor — disse-lhe o Capitão May, — estou sentenciado à morte?
— Sem dúvida.
— Nesse caso, também posso falar. Onde está Roma agora? Em que deu o império de
Alexandre ou Napoleão? E onde está a Alemanha nazista? E o Tiranossaurus Rex?
— Quem?
— Um predecessor do homem e o mais robusto dos dinossauros. O nome significa “rei dos lagartos
tiranos”. Ele também encarava toda outra criatura como inimiga. E onde está ele agora?
— É só isso o que tem a dizer, Capitão?
— Sim, senhor.
— Então fingirei que não ouvi nada. Raciocínio enganoso, sentimental. O senhor não está
sentenciado à morte, Capitão. Apenas afirmei que estava para ver o que o senhor diria e até onde
iria. Não é por algum tolo humanitarismo que lhe fazemos mercê; ocorre que achou-se em seu
benefício uma circunstância verdadeiramente atenuante.
— Posso saber qual seja ela, senhor?
— O alienígena foi destruído. Nossos técnicos e lógicos descobriram isto. Seu Picar e Monold
funcionaram devidamente. O único motivo de não terem registrado o acontecimento é que a nave
estranha era pequena demais. Esses instrumentos podem detectar um meteoro de até cinco libras. A
nave em questão era menor que isto.
— Menor?...
— Claro. Vocês imaginavam a vida extraterrena segundo o modelo de vocês mesmos. Não há razão
por que devesse ser assim. Poderia até mesmo ser submicroscópica; pequena demais para poder ser
vista. Essa nave deve ter estabelecido contacto com vocês deliberadamente, a poucos metros de
distância. E o disparo que deram, a essa distância, destruiu-a por completo. Daí que não sobrassem
destroços visíveis.
Sorriu e continuou: “Meus cumprimentos, Tenente Ross; foi um tiro magnífico. É claro que, no
futuro, os disparos visuais não serão mais necessários. Os detectores e calculadores de todos os
tipos de naves estão sendo adaptados para detectar e indicar, de imediato, objetos até os mais
diminutos.”
— Obrigado, senhor — respondeu Ross. — Mas não acha que o fato de a nave que avistamos
(tivesse ela que tamanho fosse) ser uma imitação de nossos Rochester seja prova de que os
alienígenas já sabem muito mais sobre nós do que nós sobre eles; inclusive, provavelmente, a
localização do nosso planeta natal? E que, sendo eles hostis, foi a pequenez da sua espaçonave o
que os impediu até agora de aviar-nos do sistema?
— Possivelmente. Ou ambas as coisas são verdadeiras ou nenhuma o é. É óbvio que, a não ser por
sua faculdade telepática, são bem inferiores a nós tecnicamente. Se assim não fora, não iriam
copiar o modelo das nossas espaçonaves. Devem ter lido a mente de alguns engenheiros nossos.
Mas, mesmo admitindo isso tudo, ainda é possível que não conheçam a localização do Sol.
Coordenadas espaciais seriam muito difíceis de traduzir, e a palavra Sol, por si só, não poderia
significar nada para eles. Até mesmo sua descrição aproximada quadraria a milhares de outras
estrelas. Seja como for, compete--nos descobri-los e dar cabo deles antes que eles nos encontrem.
Todas as unidades no espaço estão de sobreaviso, à espreita deles; e estão equipadas com
instrumentos especiais para detectar objetos mínimos. Estamos em guerra. Mas talvez seja
redundante dizer isso, já que sempre estamos em guerra com criaturas alienígenas.
— Sim, senhor.
— É só, senhores. Podem ir.
No corredor fora, dois guardas armados, que aguardavam, assumiram posição junto ao Capitão May
a fim de escoltá-lo.
— Não diga nada, Don — apressou-se o capitão a dizer. — Eu já esperava isto. Não esqueça que eu
desobedeci a uma ordem importante. E não esqueça, também, que o almirante só disse que eu não
estava condenado à morte. Não se envolva nisto.
Mãos cerradas, lábios comprimidos, Don Ross observava os guardas levarem o amigo. Sabia que
May estava certo; não havia nada que pudesse fazer, salvo meter-se em complicações ainda maiores
que aquela em que May já estava envolvido, e piorar as coisas para ambos.
Caminhou, quase às cegas, rumo à saída do Edifício do Almirantado; saiu e arranjou modo de logo
embriagar-se; mas isso de nada adiantou.
Tinha as duas semanas habituais de licença, antes de apresentar-se para receber novas ordens, e
entendeu que seria melhor recompor o espírito durante esse período. Foi a um psiquiatra e se deixou
fazer desembuchar grande parte da amargura e sentimento de rebeldia que o sufocavam.
Tornou aos livros de escola e se fez impregnar da necessidade de obediência estrita e cega à
autoridade militar, da necessidade de vigilância incessante sobre espécies alienígenas e da
necessidade imperiosa do extermínio de ditas espécies tão depressa fossem encontradas.
Consegui! Já lhe parecia inconcebível ter crido alguma vez que se pudesse perdoar inteiro ao
Capitão May o deslize de desobedecer a uma ordem, fosse por que fosse. Causava-lhe mesmo
escândalo a simples lembrança de que ele próprio chegara a aplaudir tal crime. É óbvio que,
tecnicamente, estava isento de culpa; May estava no comando da nave, e a decisão de voltar para a
base, em vez de atirar pelo espaço adentro, no rumo da morte, partira dele. Na qualidade de
subordinado, Ross não comungava de culpa. Entretanto, como pessoa apenas, a consciência agora o
acusava de nem ao menos ter tentado demover May da sua loucura.
O que seria da Corporação Espacial sem o primado da obediência? Como redimir-se daquilo que
agora considerava um seu desleixo e delito?
Durante o termo de sua licença ele assistiu avidamente ao telejornal e, desse modo, soube que, em
vários outros setores do espaço, mais quatro naus alienígenas tinham sido avistadas e exterminadas.
Graças aos aperfeiçoados instrumentos de detecção, todas tinham sido destruídas prontamente; não
tinha havido mais comunicação alguma após o primeiro contacto.
E Ross, voluntariamente, decidiu pôr termo à licença, com quatro dias de antecipação. Voltou ao
Edifício do Almirantado e requisitou audiência com o Almirante Sutherland. Riram-lhe na cara,
naturalmente; mas já esperava por isso. Então fez que uma breve mensagem verbal chegasse aos
ouvidos daquele potentado. Apenas isto: “Sei de um plano capaz de nos levar à localização do
planeta natal dos inimigos, sem nenhum risco para nós”.
Estava bem, que entrasse.
Ross entrou, deteve-se rígido ante a mesa do superior, e falou: “Senhor, os alienígenas têm
procurado entrar em contacto conosco. Não têm conseguido, pois nós os destruímos ao primeiro
olhar, antes mesmo que possam emitir um pensamento completo. Se lhes permitirmos
comunicarem-se conosco, haverá uma chance de que, por descuido ou não, nos dêem a localização
de seu planeta nativo.”
A isto o almirante retrucou, às secas: “E, fosse que dessem ou não, sempre poderiam descobrir-nos,
simplesmente seguindo a nossa nave.”
— Meu plano prevê isso, senhor. Proponho que me enviem ao mesmo setor onde foi estabelecido o
primeiro contacto; só que, desta vez, numa nave de um só tripulante, desarmada. Seja o fato ampla-
mente divulgado, a fim de que todo homem no espaço se inteire da situação, isto é, de que parti, em
nave inerme, com a missão de estabelecer contacto com os inimigos. Tenho para mim que a
notícia chegará até eles. Podem captar pensamentos a longa distância, apesar de só poderem emiti-
los (ao menos no que toca às mentes terrenas) a distâncias curtíssimas.
— De onde concluiu isso, Tenente? Bem, não importa; o que o senhor está dizendo coincide com
aquilo que ouvi dos nossos lógicos. Dizem eles que o fato de terem furtado nossa ciência (como no
caso de copiarem e reproduzir, em escala reduzida, nossos veículos espaciais), antes de termos
tomado conhecimento da existência deles, prova que têm capacidade de ler pensamentos a... bem, a
certa distância.
— Isso mesmo, senhor. Conto que se a notícia da minha missão for levada ao conhecimento de toda
a nossa frota, também chegará fatalmente ao conhecimento de nossos inimigos. E, sabendo que
minha nave não porta armas, eles entrarão em contacto. Eu, de minha parte, verei o que têm a dizer,
e a mensagem deles talvez inclua uma pista capaz de nos levar à localização do seu planeta de
origem.
Respondeu o Almirante Sutherland: “Caso em que esse planeta não duraria mais de vinte e quatro
horas. Mas o que me diz da hipótese contrária, Tenente? Refiro-me à possibilidade de o senhor vir a
ser seguido por eles de volta à Terra.
— Não temos nada a perder, senhor. Só retornarei se descobrir que eles já conhecem nossa
localização. Com a faculdade telepática que têm, acredito que já a conheçam, e que o motivo de não
nos terem atacado é não serem hostis ou serem demasiadamente fracos. Seja como for, ao
entenderem-se comigo, eles não negarão que a conhecem se a conhecerem. Por que o fariam? Nisso
talvez até reconheçam a possível vantagem de uma negociação. E se, mentindo, afirmarem conhecê-
la... bem, eu não aceitarei apenas a palavra deles; exigirei provas.
O Almirante Sutherland, que o fixava sem pestanejar, disse em resposta: “Filho, é uma brilhante
idéia. Uma idéia que talvez lhe custe a vida, mas... por outro lado, se voltar à Terra com informes
sobre o ponto de origem dos inimigos, você estará transformado no herói da espécie. É provável que
me tire o emprego. Para ser franco, sinto-me tentado a furtar-lhe a idéia e fazer pessoalmente essa
viagem.”
— Sua vida é muito preciosa, senhor. A minha pode ser dada em sacrifício. De resto, é meu dever
dispor dela. Não estou à cata de honrarias. Trago uma culpa na consciência da qual preciso me
redimir. Era meu dever ao menos tentar impedir que o Capitão May desobedecesse àquela ordem. E
se o tivesse feito, quando a isso me chamava o dever, agora não estaria vivo aqui. Devíamos ter-nos
atirado espaço afora, já que não sabíamos ao certo se tínhamos destruído aquela nave inimiga.
Nesse ponto o almirante limpou a garganta. “Não foi culpa sua, filho. Num caso como aquele a
responsabilidade recai exclusivamente na pessoa do comandante da unidade. Mas compreendo
perfeitamente o que quer dizer. Sente que desobedeceu, em espírito, de vez que concordou, na
ocasião, com aquilo que o Capitão May decidiu fazer. Está bem; o que passou passou, e esta sua
sugestão já chegaria para redimi-lo, ainda que não seja escolhido para tripular a nave de contacto.”
— Mas, poderei, senhor?
— Pode, Tenente. . . Aliás, Capitão.
— Obrigado, senhor.
— Terá uma nave pronta em três dias. Podíamos prepará-la em menor prazo, mas esse é o tempo
necessário para o boato da nossa “negociação” ser divulgado por toda a frota. Mas fique bem claro
que não poderá, em caso algum, desviar-se por conta própria das limitações que se impôs.
— Perfeitamente, senhor. A menos que os alienígenas já conheçam a nossa localização, e o
provem cabalmente, não regressarei. Em vez disso, me lançarei no espaço exterior, ao encontro da
morte. Dou-lhe disso minha palavra, senhor.
— Ótimo, Capitão Ross.

A nave de um só tripulante librava próxima do centro do Setor 1534, muito além de Sírio. Nenhuma
outra unidade patrulhava o setor.
O Capitão Don Ross permanecia sentado em seu lugar, aguardando tranqüilamente os
acontecimentos. Olhava para um visor e esperava, atento, que alguma voz lhe falasse na mente.
Ouviu-a não fazia ainda bem três horas que esperava. “Saudações, Donross”, disseram-lhe, ao
mesmo em que avistou cinco espaçonavezinhas no visor. Seu Monold indicava que cada uma
pesava menos de uma onça.
Respondeu, pois: “Devo falar em voz alta ou só preciso pensar?”
— Não faz diferença. Pode falar se quiser concentrar-se em algum pensamento em particular, mas
antes permaneça em silêncio alguns instantes.
Após meio minuto Ross pensou ter distinguido o eco de um suspiro em sua mente. A seguir:
“Desculpe, mas receio que esse contacto não trará benefícios a nenhum de nós. É que não
conhecemos a localização de seu planeta natal, Donross. Talvez pudéssemos ter descoberto isso,
mas não estávamos interessados em fazê-lo. Não somos hostis e, conhecendo a mentalidade dos
terráqueos que chegamos a conhecer, também não ousamos ser amistosos. Assim sendo, você
nunca poderá, sem desobedecer ordens, regressar para dizer isto aos seus superiores.
Don Ross cerrou os olhos por um instante. Então aquilo era o fim; não havia razão de continuarem
palestrando. Dera sua palavra ao Almirante Sutherland de que obedeceria à risca as instruções.
— Isso mesmo — tornou-lhe a voz. — Nós dois estamos condenados, Donross, e já não importa o
que lhe contemos. Nós não conseguimos romper o cerco das espaçonaves de vocês; perdemos me-
tade da nossa espécie tentando-o.
— Metade! Quer dizer.. .!?
— Isso mesmo. Só éramos mil ao todo. Construímos dez naves; cada qual capaz de comportar cem
de nós. Cinco foram destruídas por vocês terráqueos; restaram apenas estas cinco que está vendo,
com toda a nossa espécie. Mesmo sabendo que vai morrer, estará interessado em ouvir nossa
história?
A isso ele respondeu com um aceno afirmativo, esquecendo-se de que não podiam vê-lo; mas seu
assentimento mental devia poder ser captado.
— Somos uma espécie antiga, mais que a de vocês. Nosso lar é (ou era) um planetinha do
companheiro obscuro de Sírio; tem só cem milhas de diâmetro. Suas naves ainda não o
descobriram, mas isso é só uma questão de tempo. Temos sido criaturas inteligentes desde muitos e
muitos milênios, mas nunca nos dedicamos à navegação espacial. Não havia necessidade e nós
não tínhamos essa ambição.
“Há vinte anos dos anos de vocês, uma espaçonave terrestre passou perto do nosso planeta e
captamos os pensamentos de sua tripulação. Desse modo soubemos que nossa única segurança,
nossa única chance de sobreviver era fugir de imediato para os limites longínquos da Galáxia.
Deduzimos, daqueles pensamentos, que cedo ou tarde acabaríamos descobertos, mesmo que não
deixássemos o planeta, e que seríamos exterminados assim que nos descobrissem.
— E nem pensaram em reagir em defesa própria?
— Não. Mesmo que quiséssemos, não poderíamos; e nós não queríamos. É-nos impossível matar.
Mesmo que a nossa sobrevivência dependesse da morte de um só homem terráqueo, ou mesmo de
alguma criatura inferior, nós não poderíamos causar essa morte.
“Isso vocês não conseguem entender. Epa!... Estou notando que você entende. Você não se parece
com os outros homens, Donross! Mas, voltemos à nossa história. Nós nos apropriamos dos detalhes
científicos da navegação espacial lendo as mentes dos tripulantes daquela nave, e os adaptamos à
nossa diminuta escala.
“Construímos dez naves; o bastante para transportar toda a nossa espécie. Mas verificamos que
não podemos atravessar suas patrulhas. Cinco de nosso veículos o tentaram, e foram
destruídos.”
Don Ross disse, soturnamente: “E eu fui responsável por um quinto desse holocausto: destruí uma
de suas naves.”
— Você apenas obedeceu ordens. Não se amofine. A obediência está quase tão fundamente
enraizada em vocês quanto a aversão pelo assassínio o está em nós. Aquele primeiro contacto, com
a nave em que você estava, foi deliberado; tínhamos que nos certificar de que vocês nos
destruiriam tão logo nos avistassem.
“Mas, desde então, uma de cada vez, quatro das nossas naves restantes tentaram atravessar o
cerco e foram destruídas. Trouxemos todas as restantes para aqui, quando soubemos que você
vinha desarmado e com o fito de estabelecer contacto conosco.
“Porém, mesmo que, em desobediência às ordens que recebeu, você voltasse para a Terra, seja
onde for que ela se situe, a fim de informar seus superiores do que acabamos de lhe dizer, nem
assim eles expediriam ordens para nos deixarem passar. Ainda há poucos terráqueos como você.
Talvez em futuras eras, por ocasião da chegada do homem ao extremo da Galáxia, haja outros.
Mas agora as chances de conseguirmos, nem que seja uma só de nossas naves, romper esse cerco é
remota.
“Adeus, Donross... Que estranha emoção é essa em sua mente e que vem a ser essa convulsão de
músculos? Não consigo interpretá-los. Mas, espere aí... É o resultado do seu reconhecimento de
algo incongruente. Entretanto, o pensamento ê complexo demais, muito confuso... Que significa?”
Por fim, Don Ross conseguiu reprimir sua gargalhada convulsa: “Ouça, amiguinho alienígena
incapaz de matar — respondeu ele, — vou resolver o problema de vocês. Darei jeito de que
ultrapassem nosso cerco e alcancem o lugar de segurança que procuram. O gozado, porém, é o
modo como hei de fazer isso. Obedecendo minhas ordens e rumando para a minha própria perdição.
Vou lançar-me no espaço exterior, onde terei de morrer. Vocês, todos vocês, podem vir comigo e
viver lá. Irão de carona. Suas navezinhas não serão vistas pelos detectores da patrulha, se estiverem
em contacto com a minha nave. E há mais; a gravidade da minha espaçonave os manterá junto a
mim, de modo que só precisarão começar a consumir combustível quando já estiverem bem para lá
da zona patrulhada e já fora do alcance dos detectores da patrulha. O meu combustível dá para
percorrermos, pelo menos, uns cem mil parsecs.”
Houve uma longa pausa, antes que a voz dissesse, na mente de Don Ross: “Obrigado”.
Fragilmente. Suavíssimamente.
Então ele aguardou que as cinco espaçonavezinhas desaparecessem de seu visor e logo ouviu-lhe os
cinco ruidozinhos indicativos de que já estavam em contacto com a sua nave. Tornou a rir, nesse
ponto, e em estrita obediência às ordens que tinha, partiu para o espaço desconhecido, em direção
da morte.

***
Num planetinha de uma pálida e longínqua estrela que da Terra não se avista, situada no outro
extremo da Galáxia, cinco vezes mais além do que o homem jamais conseguiu adentrar o espaço, há
a estátua de um terrestre. Enorme, com suas dez polegadas de altura, e primorosamente executada.
Está coberta de percevejos, mas eles têm o direito de assim cobri-la, pois a erigiram; e a honram. A
obra é de metal muito duro. Num mundo sem ar, decerto está fadada a durar sempre Ou. pelo
menos, até que os homens o descubram e destruam. Salvo, é claro, se na ocasião eles já tiverem
mudado muito.

O AGENTE COMISSIONÁRIO

Estou morto de medo. Não só porque amanhã é o grande dia, o dia em que deverei passar por uma
pequena porta verde e descobrir, por mim mesmo, como cheira o cianureto. Não é isso o que me
atemoriza. Quero mesmo morrer. Mas...
Tudo começou quando me encontrei com Roscoe, mas antes deixem-me fazer um breve esboço do
que era eu A.R. — Antes de Roscoe.
Eu era jovem, razoavelmente bem-parecido, apesar de meus traços rudes; razoavelmente inteligente
e bem-educado. Na ocasião, meu nome era Bill Wheeler. E eu era um pretenso ator
cinematrográfico, ou de televisão, que já vinha tentando a sorte por mais de cinco anos, sem ainda
ter conseguido sequer a chance de fazer um comercial local, muito menos uma “ponta” em filmes
de categoria B. Ganhava o meu sustento trabalhando, das seis da tarde às duas da madrugada, como
garçom num drive-in de Santa Mônica.
A razão de ter escolhido aquele emprego era que me deixava livre o período diurno para ir de
ônibus até Hollywood e ficar nos escritórios de agentes e nos estúdios à espreita de uma
oportunidade. Mas, na noite em que tudo começou, quando a minha sorte sofreu uma reviravolta
repentina, eu já tinha praticamente desistido. Fazia quase uma semana inteira que não aparecia em
Hollywood. Andara repousando e bronzeando-me pelas praias, pensando às direitas no futuro,
tentando decidir para qual espécie de trabalho nascera eu ou que emprego poderia arranjar que me
garantisse um estilo de vida capaz de dar-me ao menos alguma satisfação. Até aquela data, comigo
era ser autor ou nada; e o abandono dessa antiga esperança exigiu drásticos reajustes na minha
maneira de pensar.
Minha sorte começou a mudar numa tarde, às seis em ponto; hora, aliás, em que deveria apresentar-
me para o trabalho no drive-in, não fosse aquela a minha noite de folga. Deu-se no Olimpic
Boulevard, nas proximidades de Fourth Street, em Santa Mônica.
Achei uma carteira. Só continha trinta e cinco dólares em espécie, mas tinha também vários cartões
de crédito, entre os quais o do “Diner’s Club”, o “Carte Blanche”, o “International” etc.
Dirigi-me para o bar mais chegado, a fim de tomar um drink e meditar um pouco.
Nunca tinha feito nada seriamente desonesto na vida, mas decidi que aquele achado, bem no nadir
da minha existência até então, era sinal bastante, da parte de Alguém ou de Algo, que aquela noite
estava destinada a ser a mais grandiosa da minha vida, bem como a mais decisiva.
Sabia que não seria seguro utilizar os cartões indefinidamente, mas decerto não haveria perigo em
utilizá-los uma só tarde e noite. Encomendaria um esplêndido jantar, regado de boa bebida, depois
iria para um hotel elegante, onde convocaria uma call girl etc. (Bem sei eu que call girls não
honram cartões de crédito, mas eu poderia usar tais cartões para converter cheques em dinheiro
sonante em todos os lugares em que parasse, e haveria de parar no maior número deles antes que a
noite atingisse aquela fase em que se começa a pensar em call girls.)
Com um mínimo de sorte, ao fim da noite já teria levantado boa soma. Usaria ainda um cartão de
crédito, pela última vez, na manhã seguinte, a fim de obter uma passagem aérea e assim poder
recomeçar vida nova em alguma outra parte, fazendo qualquer outra coisa. Poderia experimentar
tudo, menos arte dramática. Isso, nunca mais... A não ser algum dia, depois que o gosto amargo do
meu fracasso como profissional se tivesse dissipado de todo, só em representações de amadores, e
apenas por distração.
Pus-me a traçar meus planos cuidadosamente, pois o tempo era curto.
Comecei por indagar do garçom se me faria o obséquio de telefonar chamando um táxi. Tomei-o e
dei o endereço ao motorista. Em meu apartamento, durante meia hora, pratiquei a assinatura dos
cartões até ser capaz de imitá-la de memória e com perfeição. Enquanto me aprontava, chamei outro
táxi. Disse ao chofer que me levasse à agência mais próxima em que pudesse alugar um carro.
Pensava num Cadillac e fiquei algo desapontado quando tive de me contentar com um Chrysler;
mas isso não importava realmente, já que era improvável que alguém o visse além de empregados
de estacionamentos.
Disse ao homem, como pretendia dizer a um bocado de gente antes que a noite findasse, que tinha
comigo pouco dinheiro em espécie e que se ele dispusesse de um cheque em branco eu apreciaria
preenchê-lo e dar-lho a converter por dinheiro sonante, qualquer que fosse a quantia. Claro que eu
tinha vários documentos de identidade, inclusive, felizmente, uma licença de motorista, para
corroborar os cartões de crédito. Ele olhou na registradora, trocou-me um cheque por cinqüenta
dólares, e estava iniciada a minha carreira de crimes.
Começava a sentir fome, de modo que, passando por Wilshire, fui para Hollywood; tendo feito as
manobras necessárias, dirigi-me para o estacionamento do Derby, e entrei. As mesas estavam todas
tomadas, e o maitre d’hôtel disse-me que esperasse quinze ou vinte minutos por uma vaga.
Respondi que estava muito bem e que me procurassem no bar assim que houvesse mesa disponível.
E enveredei para o bar.
Empoleirei-me no único tamborete vago em frente ao balcão e dei tento de que a meu lado havia um
indivíduo obviamente só; do outro lado dele havia um casal todo absorto numa palestra que não o
incluía. Miúdo e muito bem trajado, tinha cabeleira rala porém regular, quase totalmente branca, e
usava um bigodezinho de igual cor. Todavia, o rosado da face e a lisura da pele sugeriam que fosse
mais jovem do que cabelo e bigode o fariam crer. Com toda certeza não seriam mais que alguns
segundos que estava defronte ao balcão, pois não lhe vi bebida à frente.
De certo modo foi o garçom quem nos apresentou um ao outro. Supondo que estávamos juntos,
anotou e aviou nossos pedidos como se fossem um só e depois perguntou se queríamos contas
separadas. O Janota, antecipando-se a mim, voltou-se para o meu lado e perguntou se lhe faria a
honra de tomar um drink em sua companhia e à sua custa. Agradeci e aceitei; tocamos os copos e
começamos a conversar.
Ao que recordo, não utilizamos o estado do tempo como gambito inicial, mas detivemo-nos no
segundo assunto da ordem de preferência em Los Angeles durante o verão, ou seja, as chances
que acaso os Dodgers teriam de sagrarem-se campeões.
Na qualidade de ator — ou, vá lá, de ex-pretenso-ator — sempre me interessei por sotaques; e o
dele intrigava-me particularmente. Era o inglês de Oxford, apenas com um leve toque libanês,
temperado ocasionalmente de picantes hollywoodismos, que lhe saíam puros ou de mistura com
fragmentos do jargão bebop. Quando eu o citar, nem por sonhos tentarei reproduzir-lhe o acento.
Gostei dele e ele pareceu apreciar-me. Logo de saída, sem ao menos estarmos formalmente
apresentados, passamos a nos tratar pelo primeiro nome. Que eu o chamasse Roscoe, disse-me. De
minha parte, autorizei-o a chamar-me de Jerry, e não Bill, porque J era a primeira inicial de J. R.
Burger, o nome nos cartões de que momentaneamente eu me servia; já decidira que, se Roscoe
ainda não tivesse jantado, eu o convidaria a jantar comigo. Nas circunstâncias, dois jantares não me
sairiam mais caro que um.
Após o basebol, assunto sobre o qual nenhum de nós entendia muito, os filmes entraram na pauta da
conversação. Sim, dizia-me, estava envolvido na indústria. Não ativamente no momento, mas tinha
investimentos em várias produções independentes e em dois shows de televisão. Até três anos atrás
já produzira ou dirigira perto de uma dúzia de fitas; as primeiras, em Londres; o resto, aqui. Acaso
seria eu ator? Tanto parecia e falava como se o fosse!
Não me perguntem por que, súbito achei-me contando-lhe toda a amarga verdade sobre meu
fracasso; mas, por incrível que fosse, não o fazia amargurado, mas a rir, dando-o como coisa
engraçada. E, inacreditavelmente, acabei achando que o era de fato. Eu só estava meio alegre
quando veio um garçom perguntar-me se eu não seria o cavalheiro à espera de mesa. Respondi que
sim; convidei Roscoe a jantar comigo, e ele aceitou.
Fizemos o pedido e, enquanto comíamos, encarreguei-me de conduzir a conversação pela sua maior
parte. É óbvio que tive de alterar o fim da história para explicar a relativa prosperidade que
aparentava desfrutar no momento, mas não foi difícil; apenas inventei uma herançazinha que me
rendera a morte de certo tio, declarando ter aprendido a lição e assegurando-lhe que não despejaria
o legado num saco sem fundos, como viera fazendo nos últimos anos com tudo o que me vinha
parar às mãos. Voltaria para minha cidade natal e arranjaria um emprego sensato.
O garçom passou por nós, deixando a conta. Virei-a, para acrescê-la de generosa gorjeta, e pus-lhe
um cartão de crédito em cima. Gostei que Roscoe não insistisse em pagar a despesa ou em rachá-la
em duas. Eu queria pôr à prova a eficiência do cartão e ver logo se trocava um cheque. Mais para
preencher um claro da conversa, referi a Roscoe que estava sem trocados e perguntei-lhe se fazia
idéia da quantia máxima que o Derby se permitiria converter-me em espécie.
— Para que amolá-los, meu velho? — respondeu ele. — Sempre levo comigo uma boa soma em
trocados. Quinhentos serve?
Procurei não parecer eufórico ao responder que sim. Não contava obter do estabelecimento mais
que simples fração daquilo; na certa dariam algum crédito a cartões de crédito, mas não tanto.
Quando o garçom veio recolher a conta e o cartão, pedi-lhe que me visse um cheque em branco, o
que ele fez. Enquanto eu o preenchia contra o banco do cabeçalho, Roscoe extraiu um porta-notas
dourado que parecia só abarcar cédulas de cem (de que havia bem umas doze) e das quais separou-
me cinco.
Em troca, passei-lhe o cheque. Ele relanceou os olhos sobre o papel e arqueou ligeiramente as
sobrancelhas. “Jerry”, disse ele, “eu já tencionava convidá-lo a vir até meu apartamento para
batermos um papo, mas agora tenho dobradas razões para isso. Ao que parece, temos o mesmo
nome. Ou terá encontrado a carteira que perdi esta tarde em Santa Mônica?
Oh meu Deus, oh meu Deus, oh meu Deus! Sim, sei agora que aquilo foi mais que mera
coincidência — numa cidade do tamanho de Los Angeles! — mas em que outro lugar eu poderia ter
pensado em me meter, na ocasião? O homem nem ao menos tinha me seguido até o Derby; já estava
lá quando cheguei!
Durante uns agres instantes considerei se já não me seria mais que oportuno chamar nos
calcanhares; afinal, ele não conhecia meu verdadeiro nome; se me raspasse logo, estaria salvo.
Todavia, pareceu-me que se começasse a correr e ele gritasse “Pega ladrão!”, ao menos meia dúzia
de garçons estaria em condições de me deitar as mãos em cima ou de me passar uma rasteira.
Ele continuou a dizer, calmamente: “As iniciais J. R. são de Josué Roscoe; daí, bem pode ver que
escolhi o menor dos males. Agora, veja se não banca o tolo. Posso estar em posição de lhe fazer
uma interessante proposta. Está pronto?”
Ergueu-se e eu aquiesci, mudamente, imitando-o. Imaginava que raio de proposta ele poderia ter em
mente. Não parecia homossexual, mas se o era, eu saberia haver-me com ele.
Segui-o em direção da saída e, claro que por pura coincidência, havia uma viatura policial, com dois
guardas dentro, estacionada logo ao fim da área de carga e descarga. Deu um dólar ao porteiro (miu-
dezas como essa ele as conservava avulsas num bolso, só as cédulas realmente graúdas é que iam
para o porta-notas de ouro) e pediu-lhe um táxi. Cheguei quase a abrir a boca para informar que
tinha um carro estacionado logo adiante, mas recuei a tempo, decidido a manter a caverna fechada
até ver em que davam as coisas.
Entramos no táxi e ele forneceu ao motorista um endereço em La Cienga. Não conversou durante o
percurso; de minha parte, pus-me a fazer cálculos mentais. Podia restituir quase tudo. Com os meus
vinte e cinco mangos, bem entendido. A conta do restaurante tinha sido, gorjeta inclusa, doze pratas.
Podia devolver o Crysler logo, que não teria rodado mais que vinte milhas e duas ou três horas, e
ainda poderia me utilizar dos bons ofícios daqueles mesmíssimos cinqüenta dólares obtidos contra o
cheque frio para resgatar o dito cheque. Em sendo-me permitido, confessaria tudo, tintim por tintim,
e encaminharia a conversa para os lados da restituição.
O táxi freou diante de um bem-apanhado edifício de apartamentos. Seria ainda simples coincidência
haver outra viatura policial estacionada do outro lado da rua? De qualquer modo, já me decidira a
ouvi-lo e depois cantar-lhe a minha própria canção; só empreenderia fuga aberta quando tudo o
mais falhasse.
Subimos num elevador automático para o quarto andar, onde, com uma chave, ele abriu a porta que
nos passou para o living de um confortável apartamento de solteiro. Seis eram os seus cômodos,
conforme verificação posterior. Mas não havia criados residentes, pois o homem apreciava
isolamento. Fez um gesto, indicando-me o sofá e foi até um barzinho ao canto. “Conhaque?”
Fiz que sim e logo disparei a argumentar em favor da restituição de tudo, enquanto ele despejava
conhaque em duas taças. Cruzou a sala de volta e entregou-me uma delas.
— Poupe-me os detalhes sórdidos, Jer. . . Oh, é esse mesmo o seu primeiro nome, afinal? Ou você o
escolheu para justificar a primeira inicial dos cartões?
— É Bill — confessei eu. — William Trent. — Nada de fornecer o verdadeiro sobrenome até
certificar-me de que não seria perigoso fazê-lo; quanto ao primeiro, não arriscava nada com
decliná-lo.
Alegrou-me que tomasse assento à minha frente em vez de abancar-se ao meu lado no mesmo sofá.
— Nomezinho vulgar — disse ele. — Com esse seu cabelo vermelho creio que Brick lhe assentaria
melhor. Que acha? Brick Brannon. Gosta?
Fiz que sim, que muito até. Depois, o homem podia me dar o nome que fosse, contanto que não
chamasse a polícia nem me fizesse propostas indecentes.
— À sua saúde, Brick — disse ele, erguendo a taça. — Agora, quanto à história que me contou, até
onde é verdadeira?
— Toda ela é, se substituir a herança pela sua carteira.
O homem depôs a taça sobre um móvel, atravessou a sala no rumo de uma escrivaninha e de lá
extraiu um script mimeografado. Procurou uma passagem no texto, enquanto recruzava o aposento
em minha direção, e entregou-mo aberto.
— Leia as falas de Philippe nessa e nas três páginas seguintes. É um madeireiro rústico e
analfabeto, com sotaque canadense, e muito apaixonado pela própria esposa. Mas durante esta cena
de discussão ele a agride feito louco. Leia primeiro em voz baixa e depois interprete. Nas falas da
esposa basta fazer uma pausa.
Li o texto todo para mim mesmo e depois tentei interpretá-lo. A seguir ele me disse que localizasse,
umas dez páginas adiante, certa outra cena e lesse o papel de uma segunda personagem, e depois de
uma terceira, instruindo-me sempre sobre elas em como falavam e quais fossem suas relações com
as outras personagens que tomavam parte ou eram referidas na cena.
Terminada a terceira leitura, ele fez de cabeça um gesto de aprovação e mandou-me largar o
manuscrito e tornar ao conhaque. Depois de um trago sentenciou:
— Está muito bem, você ê um ator. Só lhe tem faltado um bom começo. Em dois anos posso fazer
de você um astro, se me deixar empresariá-lo.
— Em troca de quê? — perguntei, imaginando se o homem não seria doido.
— De dez por cento — respondeu. — Mas do total bruto... e por debaixo da mesa. É que não sou
agente acreditado, e você vai precisar de um, ao qual pagará outros dez por cento, a quem deixará o
encargo dos pequenos detalhes, redação de contratos e tudo mais. O meu papel tem que ser
desempenhado atrás dos bastidores.
— Para mim está ótimo — respondi. — Só que até hoje não consegui despertar o interesse de um
bom agente. Que tenho de fazer sobre o caso?
— Disso cuidarei eu. Você só terá que dar a ele outros dez por cento da quantia bruta, porque ele
não deverá saber (como ninguém, aliás) desse nosso trato. A comissão dele representará uma
dedução normal; mas a minha não, porque será feita em segredo. De acordo?
— Perfeitamente — respondi. Até já pensara muitas vezes, em desespero de causa, em seduzir
algum agente com vinte e até cinqüenta por cento, em troca de um bom empurrão; chegara mesmo a
tentá-lo com vários daqueles com quem conseguira falar, mas nada adiantara. — Mais alguma
condição?
— Só uma. Como não haverá nada documentado entre nós, espero, por sua honra, que não me
passe para trás depois que eu o tiver “feito”. Eis como faremos a coisa: qualquer de nós poderá can-
celar este acordo em qualquer tempo durante o seu primeiro ano de vigência. Mas se nesse prazo
(estando eu a operar fora de cena, quer você reconheça ou não a minha delicada mão italiana
naquilo que acontecer) seu rendimento bruto atingir vinte e cinco mil dólares ou mais, então o
nosso trato se tornará perpétuo e irrevogável. De acordo?
— Perfeitamente — repeti eu, que como ator ainda não conseguira fazer nem cem dólares e para
quem vinte e cinco mil parecia uma cifra impossível.
Mesmo que ele estivesse maluco, eu nada perderia em concordar; e acresce que o homem não
tencionava me fazer prender. O que me lembrou de devolver-lhe a carteira.
— Agora — disse-lhe eu, — passemos às restituições... Ele suspirou e interrompeu-me:
— Está bem; mas nada de detalhes. Conte tudo que fez depois que achou a carteira.
Obedeci e a depus sobre a mesa. Ele a apanhou, extraiu-lhe todo o dinheiro que ainda tinha e levou-
a ao bolso.
— Quer dizer que — tornou ele — quinhentos e trinta e cinco disso é meu. Aceite o restante como
empréstimo; poderá me pagar daqui a um mês, aproximadamente. Devolva o carro alugado e trate
de recuperar o cheque de cinqüenta dólares que passou. Esqueça o outro assinado no Derby: aquele
jantar fica por minha conta. Não me volte ao drive-in. Alugue um quarto ou apartamento esta
mesma noite em Hollywood. Essa sua roupa não é má, mas se for a melhor que tiver compre outra
amanhã e mais os outros acessórios que precisar. Oh, um blusão de couro, preto, e jeans, se já não
os tem.
— Blusão de couro? — estranhei. — Por quê?
— Não se incomode com porquês. Um momento. — E tornando a puxar pelo mesmo maço de
notas, separou oito dentre as de cem que tinham ficado. Entregou-mas dizendo: — Deve-me
mais oitocentos. É para um carro; você precisa ter com que andar por aí. Vai ter que ir a Universal
City, e a Culver City: a indústria não está toda concentrada em Hollywood. Gaste aí uns
quinhentos com uma máquina usada. Em poucos meses você terá meios de adquirir um carro novo
em folha.
“Que mais? Oh, sim; Bill Trent é seu verdadeiro nome, afinal?”
— É Bill Wheeler.
— Bem, então era; agora é Brick Brannon. É só; telefone amanhã, logo no princípio da tarde. Meu
número está na lista. — Nesse ponto o homenzinho arreganhou um sorriso, acrescentando: —
E você não iria esquecer meu nome, já que o andou assinando por aí.
Tive uma noite cheia, conquanto muito diversa da que planejara. Tomei um táxi de volta ao Derby;
lá apanhei o Chrysler, devolvi-o em Santa Mônica e resgatei o meu próprio cheque, inventando a
história de que tinha superestimado meu saldo bancário e, como quer que fosse, já levantara noutra
parte a quantia de que precisava. Felizmente aquela agência de aluguéis ficava num trecho do
Boulevard de Santa Mônica onde havia muitos estabelecimentos em que, mesmo à noite, se podia
adquirir um carro velho; de modo que deixei as malas no escritório da agência e saí à cata do carro
que seria meu. Logo achei justamente o que queria; um Rambler de quinhentos dólares. Após uma
volta experimental pelo quarteirão, pechinchando consegui abater-lhe o preço para quatrocentos e
cinqüenta dólares, sem dar nenhuma outra coisa como parte do pagamento, de sorte que levei-o na
hora.
Apanhei minhas malas e regressei motorizado para Hollywood. Como ainda fosse cedo, percorri a
Sunset Strip atrás de um apartamento. Achei um e fui examiná-lo. Por cento e cinqüenta dólares
mensais eu tinha um lar, direito a estacionamento, acesso a piscina e até mesmo serviço telefônico
via painel de distribuição. E ainda era cedo, comparativamente à noitada que eu planejara passar,
mas achei-me mortalmente cansado e me recolhi logo que acabei de desfazer as malas. Natural seria
que estivesse excitado demais para dormir, mas ferrei no sono assim que me vi na cama.
Na manhã seguinte fui até o Hollywood Boulevard, comprei um bom terno, embora já pronto, e
algumas outras coisas. Até a droga do blusão de couro, sem nem mesmo saber por quê? Já tinha
vários pares de jeans. De volta, tomei um banho de piscina e fui almoçar do outro lado da rua;
depois liguei para Roscoe.
— Bravos — exultou ele. — Conhece um agente chamado Ray Ramspaugh?
— Já ouvi falar — respondi reverente. Era o maior de todos os empresários; o maior e o melhor. Só
agenciava uns poucos clientes, escolhidos a dedo. Nem por sonhos eu chegara a ter a pretensão de
ao menos vê-lo.
— Você tem uma entrevista com ele para as duas horas. Não falte.
— Não faltarei — prometi. — Devo telefonar de novo, depois, para contar o resultado?
— Já conheço o resultado — respondeu, e acrescentou: — Brick, daqui em diante só deve me
telefonar quando receber algum cheque. Então marcaremos encontro, aqui ou em qualquer outro
lugar, e você me dará a minha comissão.
Fui ao escritório de Ramspaugh, em South Vernon Drive, na hora aprazada e não tive que esperar
nem um minuto. A secretária dele logo me fez entrar.
O homem foi direto ao assunto:
— Roscoe diz que você é um dos bons e eu aceito a palavra dele. Eis um contrato já pronto. É do
tipo comum, mas quero que leia antes de assinar. Vá fazer isso lá fora, enquanto eu passo uns
telefonemas.
Era um contrato impresso, e de bom grado eu o assinaria em confiança, mas era óbvio que o
homem queria ficar só enquanto fizesse os telefonemas. Levei, pois, o documento para a sala da
secretária e pus-me a lê-lo; li-o todo, inclusive as letrinhas mais miúdas, e só então assinei. A
secretária, tendo-se comunicado com o patrão via intercomunicador, informou-me que ele estava
pronto para me receber de volta e que, portanto, eu tivesse a bondade de entrar; o que eu fiz.
— Creio que já tenho algo para você — começou ele. — É papel pequeno; mas terá que fazer
alguns até conquistar crédito. É uma tomada única numa nova série que começaram a rodar em
Revue. O elenco já estava completo, mas o rapaz que tinham para a cena em questão sofreu um
acidente automobilístico esta manhã e está incapacitado. Eles precisam de você com urgência. Pode
estar lá ali por volta das três?
Fiz um mudo assentimento.
— Ótimo então. Procure Ted Crowther. Oh, para evitar perda de tempo já convinha ir vestido para
a filmagem. Você vai fazer um adolescente transviado, desses que procuram imitar o Marlon
Brando de The Wild One. Tem algum blusão de couro preto? E jeans?
Engoli em seco e assenti de novo.
— Vista-os. E ande depressa. Estamos a caminho do sucesso.
Esse foi o modo como me fizeram ator, e por muito tempo estive ocupado demais para indagar-me
como Roscoe pudera saber, desde a véspera, que naquele dia o meu ingresso na carreira de ator pro-
fissional seria facilitado se eu já tivesse um blusão de couro pronto para uso. Pois quando ele fizera
a sugestão, o acidente que incapacitou o ator originalmente designado para aquele papel ainda não
tinha ocorrido.
Mas acho que sei por que ele me falou sobre o blusão. A não ser para conseguir-me um papel, de
saída e sem perguntas, pelas mãos de um grande agente — coisa já por si milagrosa —, a “leve mão
italiana” de Roscoe raramente aparecia. Obtinha todos os meus papéis através de Ramspaugh, e dir-
se-ia que eu e ele estávamos fazendo tudo sozinhos. Aquela primeiríssima vez, como a querer
provar-me alguma coisa, Roscoe fez sentir sua mão. Queria dar-me em que pensar.
Mas não tive muito tempo para isso, e, decerto, não o suficiente para amedrontar-me. Estava
ocupado demais. Eram pequenos papéis, a princípio; em alguns casos, pontas apenas; mas tantos
quantos eu pudesse fazer. E assim foi que, por volta do fim do ano estava sendo preparado para
representar papéis de apoio, sólidos e importantes. Talvez pudesse ter feito mais dinheiro, não fosse
que vez por outra Ramspaugh me recusasse papéis rendosos em favor de outros mais baratos. Não
me queria transformado em “tipo”. Também não me deixava figurar em shows seriados em que, por
força de contrato, eu tivesse que fazer eternamente a mesma coisa.
Ainda assim, cheguei a totalizar um pouco mais de cinqüenta mil aquele ano, o dobro da cifra que
tornaria irrevogável o meu acordo com Roscoe, que, desse modo, irrevogável ficou. Após as duas
reduções de dez por cento, uma deduzível dos impostos e a outra não, além dos próprios impostos,
ainda me ficavam em caixa pouco mais de quinhentos dólares por semana; também possuía um
Jaguar, um fino guarda-roupa e um excelente apartamento.
Ano seguinte, a soma dobrou. Meu líquido subiu para mil dólares semanais, donde se vê que,
enquadrado agora numa faixa de tributação superior, eu já tinha mais que duplicado meu
rendimento bruto. Confiavam-me agora um número cada vez maior de papéis de apoio; meu nome
já era bastante conhecido, a ponto de minhas participações em séries televisadas serem como de
“astro convidado”; enfim, cheguei mesmo a representar papéis principais em vários shows
antológicos.
No entanto, durante aquele ano aconteceu algo que me fez lembrar a presciência de Roscoe, se era
isso o que era, e que me revelou uma nova faceta da nossa relação, que eu nem supunha que jamais
ele considerasse existente.
Não é este o episódio, mas terei de narrá-lo a modo de preliminar: passei uma semana em Las Vegas
para filmar uns exteriores. Normalmente não jogo, mas certa noite fui a um dos cassinos, comprei
mil dólares de fichas e encostei-me a uma mesa de dados. Iniciando a cem dólares a aposta, tanto a
sorte me bafejou que logo estava apostando a máxima quantia permissível: quinhentos dólares o
lance. Ganhei até pouco mais de vinte mil, depois entrei a perder. Assim que me vi reduzido a onze
mil, e ainda com o lucro líquido de dez mil, abandonei o jogo. Quando regressei, fui ver Roscoe a
fim de lhes passar os dez por cento de meus rendimentos de ator, auferidos desde a última vez que o
vira. Ele conferiu a soma que lhe dei e reclamou um milhar mais, lembrando os dez mil extras que a
sorte me ganhara em Las Vegas. Entreguei, sem discutir, a quantia exigida.
Eu nem pensara em tapeá-lo; apenas nunca supus que ao dizer dez por cento de tudo ele quisesse
realmente dizer de tudo. Não pairava nenhum mistério sobre o modo como ele viera a ter notícia da
minha sorte; vários outros membros da companhia cinematográfica tinham estado à mesa de dados
comigo.
Foi o episódio seguinte a este o que me intrigou, e logo verão por quê. Voltamos a Las Vegas, uma
semana depois, para fazer algumas refilmagens. De novo, me pus a jogar um pouco — por que não,
se ainda estava por cima? — e dessa vez perdi quatrocentos mil dólares. Mas, como a sorte dessa
vez não me sorrisse, não fiquei muito num só lugar; percorri toda a extensão da Strip e visitei mais
de dez cassinos. Não havia ninguém comigo, de modo que ninguém além de mim poderia saber o
total de minhas perdas. Não obstante, logo que vi Roscoe e lhe passei o quinhão a que tinha direito,
ele o contou e devolveu-me quatrocentos dólares! Muito justo; se tinha parte nos lucros, como não
comungaria também das perdas? Entretanto, como raios viera ele a saber daquilo?
Enfim, já aí tinha eu outra pista do que ele quisera dizer com dez por cento de tudo. Mas a grande
surpresa veio mesmo quando me casei. Exato, adivinharam; mas tenho de explicar como aconteceu.
No princípio do meu terceiro ano de profissional, fui designado para estrelar pela primeira vez um
importante filme, a cinco mil por semana. Na verdade, co-estrelar; minha co-estrela era uma bela e
jovem atriz em ascensão, chamada Lorna Howard. Durante o ensaio de umas cenas, antes de
iniciarem as filmagens, estando eu e Lorna na sala do produtor, este último teve uma súbita idéia.
— Ouçam, crianças — disse-nos, — é só uma sugestão mas vocês dois são solteiros e livres. Se se
casassem (um com o outro, bem entendido), poderíamos fazer um bocado de barulho em torno do
caso. O que seria uma mão na roda para o filme e para a carreira de vocês. — E concluiu com um
sorriso amarelo: — Poderia ser encarado como casamento de conveniência, claro.
Arqueei a sobrancelha para Lorna. “Pode ser?”, perguntei.
E ela também arqueou uma sobrancelha em resposta. “Pode, dependendo do que o senhor entenda
por conveniência.”
De modo que casamos.
Encarando a coisa retrospectivamente, mal posso compreender e menos ainda explicar, por que tirei
tão pouco partido das oportunidades cada vez maiores que tive com as mulheres, nos dois primeiros
anos da minha ascensão meteórica. Oh, não que bancasse o celibatário. Mas os casos que tive foram
relativamente poucos e sem importância para mim. Pudera; andava sempre ocupado! No fim de um
dia de trabalho, achava-me sempre esgotado e com ódio até da idéia de ter que levantar cedo na
manhã seguinte para recomeçar tudo de novo. Às vezes passava semanas a fio sem nem pensar em
mulheres.
Disso me arrancou aquele casamento. Eu e Lorna não nos amávamos, é certo; mas ela era tão
concupiscente quanto bonita, de sorte que o matrimônio revelou-se mais do que conveniente.
Durante algum tempo, divertimo-nos à beça. Ficara implícito entre nós que cada qual se manteria
moralmente livre e que, visto não haver amor, tampouco haveria ciúmes. De minha parte, não tirei
vantagem disso; mas logo compreendi que já eu só não lhe bastava, pois ela estava tendo um caso
paralelo. Durante dez por cento do tempo, como verifiquei depois, ao descobrir quem era o outro.
Eu não tinha motivos morais de queixa, mas aquilo me tirou todo o encanto das coisas; ela o notou
e separamo-nos. Após o lançamento da fita, lá foi ela ao Reno providenciar um discreto divórcio.
Aliás, sem nenhuma despesa da minha parte; nossos rendimentos eram iguais, mas ela tinha sobre
mim a vantagem de possuir capitais mais opulentos. Todavia, se eu tivesse de correr com as custas
do divórcio ou que atender a pensões alimentícias, tenho para mim que seria reembolsado em dez
por cento de tudo. Por esse tempo destinaram-me outro papel de astro (e desta feita a cifra do que
ganhei foi realmente astronômica), quando repentinamente notei algo. A partir de certo nível de
rendimento, eu começava a perder dinheiro ao perceber mais. A maioria das pessoas não dá por
isso, e eu decerto nem o notaria, mas quando a porção tributável do rendimento da gente ultrapassa
os duzentos mil, no caso de se ser solteiro, tem-se de pagar noventa e um por cento de tudo daí para
cima, ficando-se só com os nove por cento restantes: menos, é claro, o imposto de renda. De modo
que, com dez por cento da minha receita bruta escoando-se para as mãos de Roscoe “por debaixo da
mesa” e, conseguintemente, não dedutíveis, eu perdia dinheiro sempre que o total de meus emo-
lumentos desbordasse o limite dos duzentos mil dólares. Se então chegasse a fazer meio milhão
bruto num só ano, era o começo da falência! Cumpria então nunca me tornar um astro de primeira
grandeza.
Mas ainda não foi isso o que me decidiu a matar Roscoe — único meio, aliás, de revogar um acordo
irrevogável. Já não sentia a mesma avidez fosse por dinheiro ou por maior glória, e, embora essa
perspectiva não me fizesse nada feliz, eu poderia perfeitamente imitar o exemplo de outros,
impondo-me o limite de um filme por ano. Ramspaugh é que não gostaria nada da idéia, mas teria
que engoli-la.
Afinal, o que precipitou as coisas foi eu me apaixonar. Súbito, por completo, com os dois pés e pela
primeira vez, fadada, aliás, a ser única, na minha vida. Não tinha nada de atriz nem jamais pensara
em se tornar isso, chamava-se Bessie Evans e trabalhava na Columbia como script girl. Tanto que
nos vimos e logo nos apaixonamos com igual flama e ímpeto.
Urgia livrar-me de Roscoe. Dessa vez eu queria mais que um simples caso amoroso; queria casar-
me em definitivo e para sempre. Só que não poderia fazê-lo, ou, fosse como fosse, não queria fazê-
lo, enquanto Roscoe vivesse. Se ele tentasse me açambarcar dez por cento daquele matrimônio, eu
iria ter que matá-lo de todo jeito. De modo que não era mal já ir adiantando o expediente.
Não pude explicar a Bessie o motivo de não desposá-la de imediato, é claro; simplesmente pedi que
confiasse em mim, o que ela fez. E enquanto traçava planos para dar cabo de Roscoe e libertar-me,
escondi-a num pequeno apartamento em Burbank, sob nome falso. Víamo-nos com a raridade que
nos permitia nosso ardor mútuo, e quando isto se dava, eu tomava todas as precauções para não ser
seguido até ela.
Não vou agora perder-me nas minudências do plano que concebi para tirar a vida de Roscoe. Baste
dizer que arranjei um revólver inidentificável e bem assim uma réplica da chave do apartamento
dele. De resto, tratei de disfarçar-me à perfeição, para que, mesmo sendo visto entrar no prédio ou
andando pelas redondezas, não fosse jamais reconhecido nem identificado.
Certa madrugada, às três em ponto, utilizei-me daquela chave. De arma em punho, atravessei a sala,
silenciosamente, e abri-lhe a porta que passava para o quarto. Lá só havia luz bastante para me
deixar vê-lo soerguer-se na cama em reação ao ruído que eu fizera ao entrar. Seis disparos o
puseram de novo ao comprido sobre o leito.
Eu logo teria abalado dali, não fosse ter ouvido, no súbito silêncio que se fez após o ruído das
detonações, algo como o cuidadoso cerrar-se de uma janela, da cozinha talvez, onde lembrei-me,
então, havia efetivamente uma janela que abria para a escada de incêndios.
Então, uma suspeita tão horrível quanto súbita me fez acender a luz do quarto, e confirmou-se. Não
era de Roscoe o vulto solitário que na penumbra eu distinguira sobre a cama. Era de Bessie, que
momentaneamente se achava só. Por que seria que nunca nem remotamente me ocorrera que dez
por cento de tudo não significava apenas da renda ou do casamento?
De certo modo eu já morri ali mesmo. Mas, fosse como fosse, decidi morrer, e se tivesse ficado uma
bala no revólver eu provavelmente a enterraria nos miolos. Em vez disso, telefonei à polícia.
Quando vieram, eu já chegara à conclusão de que podia perfeitamente deixá-los incumbidos de me
fazerem asfixiar na câmara de gás.
Recusei-me a dar à língua, para que aí algum advogado de má morte não achasse nisso ocasião de
apresentar, em meu favor e à minha revelia, uma alegação de insanidade mental. Para evitar isso,
quando por fim me obtiveram um advogado e tive de falar-lhe, enchi-o de mentiras que o fizeram
crer que já tinha as bases para uma boa defesa; e tanto o tapeei que acabei por induzi-lo a pôr-me no
banco das testemunhas. Isto feito, só precisei obter do promotor que me arrasasse até o pó na
reinquirição, de modo que não me pairassem dúvidas de que seria condenado à morte.
Roscoe desapareceu de vista e até agora não deu sinal de si. Como o crime foi perpetrado no
apartamento dele, a polícia quis localizá-lo para interrogatório, mas, visto como não era peça
imprescindível ao processo, deram-lhe de mão.
Mas esteja ele onde estiver agora, o certo é que nosso acordo é “permanente e irrevogável”, e isso
explica por que estou com medo; tanto que mal tenho pregado olhos nas últimas noites.
Que há de ser dez por cento da morte? Acaso um décimo de mim permanecerá com vida? Um
décimo de consciência a vagar pela eternidade sombria? Ou voltarei a viver e a penar de novo um
em cada dez dias, ou anos? E sob que forma? Ou então, se esse Roscoe for quem começo a
suspeitar que seja, que fará com dez por cento de uma alma?
Só sei que amanhã vou descobrir, e que estou morto de medo.

AILUROFOBIA

Desde que se conhecia por gente, Hilary Morgan tinha ailurofobia, que é, nem mais nem menos, o
medo mórbido de gatos.
E, como sói acontecer com fobias, a sua não obedecia à voz da razão. Procurava convencer-se a si
mesmo, no que era secundado por sinceros e leais amigos, de que não havia sombra de motivo para
se temer um tão inofensivo animal. Claro que gatos sempre podem arranhar pessoas, e o fazem vez
por outra; mas nem de longe chegavam a ser potencialmente tão perigosos quanto os cães. Qualquer
cachorro, mesmo o mais franzino vira-lata, é capaz de levar-nos um bom pedaço de pele numa
dentada, ao passo que um dos grandes pode até matar-nos. Mas, gatos? Bah!

Entretanto, Hilary apreciava cães e tremia dos gatos; de absolutamente todos os gatos. Se avistava
algum na rua, ainda a vinte passos de si, encolhia-se todo e tratava de transferir-se para o outro lado,
mesmo ao risco, se necessário, de fazer-se atropelar. E caso não houvesse outro meio de evitar o
temido encontro, simplesmente girava nos calcanhares e arrepiava caminho.
Seja dito que nenhum de seus amigos possuía gatos; e ele mesmo jamais aceitava um primeiro
convite para ir à casa de alguém, sem primeiro averiguar miudamente se não teriam, emboscado por
lá, algum animal de confissão felina. Valia-se de tais circunlóquios sempre que tinha de referir-se ao
bicho, pois sua índole repelia até mesmo esta abstração que é a palavra cat (gato, em inglês) e bem
assim qualquer vocábulo em cuja composição entrasse essa ominosa sílaba. E era assim que
jamais visitara o melhor clube noturno de Albany (onde morava) por ter este o nome de Catamaran
Club, e empalidecia, transido de terror, quando lhe acontecia ouvir nos escritórios da MacReady
Noil Company (em que trabalhava) alguma observação felina. Evitava amizade e mesmo contacto
com quem quer que se chamasse Tom ou Félix; jamais lia catálogos; um simples gatilho avulso lhe
infundiria mais terror que qualquer arma que se lhe apontasse e considerava sua suprema fortuna o
não ter nascido católico, circunstância, ademais, que o isentava do estudo do catececismo.
Tal era o homem. Mas, pondo-lhe de lado a fobia, com todos os vários inconvenientes e incômodos
que causava, Hilary Morgan vivia e amava normalmente. Em plena casa dos trinta, ainda era soltei-
ro; mas estava longe de celibatário. Na verdade, podia-se até dizer que era bem o contrário disso, se
é que tal palavra admite algum contrário. Babava-se por mulheres e, felizmente, atraía-as; assim
sendo, tinha uma porção de gat. . . Mas eis aí um termo que nem por sonho ele pensaria em associar
com suas namoradas.
Enfim, tudo bem considerado, podia-se afirmar que, apesar das inibições e irritações determinadas
por sua ailurofobia, Hilary não deixava de ser feliz. E por certo tudo continuaria assim, não fosse
acontecerem-lhe duas coisas em seu trigésimo quinto ano de existência.
Apaixonou-se, cataclísmica e irreparavelmente, pela jovem mais bela de quantas já tinham desfilado
diante de seus olhos cúpidos. E a morte súbita de um tio rico não o meteu na posse de quantia
inferior a cinqüenta mil dólares.
A qualquer destas duas coisas, aparentemente maravilhosas, ele teria podido perfeitamente
sobreviver, mas foi a combinação delas o que o levou a sucumbir. Claro que, nas circunstâncias,
apressou-se ele em propor casamento à bem-amada, que, claro também, depressa o aceitou, a mãos
ambas e sem pestanejos. Não pela herança, mas porque o seu amor, profundo quanto fosse, era
correspondido em igual medida e com tanto maior ardor. Nem se viu da parte dela qualquer
intenção de rodeá-lo com arapucas destinadas a apressarem-no no rumo do altar. Se era certo que
sua noiva tinha algum defeito, não seria mais que um leve toque de mania. Ninfomania, aliás. Mas
essa era a melhor de todas as possíveis manias; ao menos no que tocava a Hilary, em quem até se
podia dizer que não faltava certo toque de satiríase. E que melhor cura para um mal que a
complementação do seu contrário?
Sim, senhores, Hilary Morgan estava felicíssimo com a noiva e herança que lhe calharam. E
todavia, a conjunção desses dois fatores responsáveis por seu tão subido contentamento determinou-
lhe pura e simplesmente a ruína total.
A noiva, que o queria todo para si, física como mentalmente, persuadiu-o a expender parte do
legado — tanto quanto fosse necessário, o que, conforme salientava, nunca seria mais que uns
poucos milhares de dólares — com os serviços de um bom caça-cabeça que lhe curasse de vez
aquela ailurofobia. Deu-se que o psiquiatra escolhido fosse mesmo dos bons. Em apenas uma
dezena de sessões desnudou-lhe o passado regressivamente até a idade de três anos, tempo em que
seu pavor dos gatos era ainda mais acentuado.
A lembrança consciente de Hilary nunca iria mais longe que isto. Tudo o que conscientemente sabia
de suas experiências anteriores àquela idade, e isso por ouvir dizer, era que a mãe lhe morrera de
parto e, em conseqüência, passara ele aos cuidados de uma série de amas, até a época em que o pai
tornou a casar, ocasião em que contava três anos.
A fim de ampliar-lhe o âmbito da lembrança consciente, o médico apelou para a hipnose a fim de
produzir o comum fenômeno de regressão, ou seja, a reversão de mente e memória de molde que o
paciente reviva e relate as experiências que teve num passado já esquecido por sua mente cônscia.
Enfiando-o em transe profundo, o alienista conseguiu carrear--lhe a memória de volta aos dois anos
e meio. Ocasião em que seu pai o presenteara com um gatinho, dizendo: — Para você, filhote. Está
vendo? Um “mimi”!
O que só bastara a que Hilary se rachasse de berrar, então como agora, fazendo seus gritos
lancinantes reboarem pelo consultório. O médico apressou-se a despertá-lo; explicou-lhe o ocorrido
e encerrou a sessão desse dia, afirmando estarem próximos da solução e que provavelmente já a
sessão seguinte atiraria luzes sobre o trauma que o fizera gritar de horror à vista de um simples
gatinho.
Na sessão seguinte o terapeuta tornou a metê-lo em fundo estado hipnótico, fazendo-o regredir
ainda mais. Quando Hilary, em sua mente e memória, atingiu regressivamente a idade de dois anos,
reviveu e relatou outro episódio cuja lembrança o fez berrar de novo.
Dessa vez o médico o arrancou do transe ainda mais depressa, exibiu um sorriso e declarou:
— Por fim desvendamos a experiência traumática que o levou a ter medo de gatos. Não vai mais
temê-los doravante.
“Quando o senhor contava dois anos, tinha uma babá que acabou por revelar-se perigosamente
psicótica. Certa manhã, confinado em seu chiqueirinho, o senhor tanto chorou que a levou a ficar
furiosa de uma fúria simplesmente homicida. A mulher pegou duma faca e atacou-o, com a intenção
visível de matá-lo. Por sorte seu pai, que estava no cômodo vizinho e o ouviu gritar dum desespero
que como quer que fosse subia de ponto com a aproximação da ama, apareceu em tempo de
subjugá-la e salvar-lhe a vida. Posteriormente, a mulher foi mandada para uma manicômio judicial.”
— Mas — acudiu Hilary, sem entender; — o que tem isso a ver com o meu medo de... humm... do
animal que temo?
— O nome dessa sua antiga babá era Mimi. Quando, seis meses depois, seu pai lhe deu o
gatinho, chamando-o “mimi”, sua mente associou o animalzinho com a experiência horrivelmente
traumática que tinha tido com a homicida de igual nome, o que o fez gritar.
“Agora, porém, que reviveu essa lembrança e conhecendo a verdade sobre o que aconteceu, o
senhor já não sentirá medo de gatos. Está curada a sua ailurofobia. Vou lhe provar isto agora
mesmo. Prevendo o sucesso da sessão de hoje, providenciei para que minha secretária nos trouxesse
um gato, o dela, aqui para o consultório. Ela o deixou num cesto de vime, onde o senhor não o
pudesse ver ao cruzar a sala de espera. Vou dizer-lhe que já pode trazê-lo até nós. . . e verá o senhor
que não sentirá medo algum. Vai mesmo gostar dele pois é um belo animal, e talvez até queira
afagá-lo.”
Dizendo o que, empolgou o telefone de sobre a mesa e mandou vir a secretária.
— Espero que não se engane, Doutor — disse Hilary, grave e apreensivo. — Se é mesmo esse o
caso, parece que a minha mente fez uma absurda transferência... Será esta a palavra certa? Talvez
“associação” fosse mais precisa... Seja como for, já me vai parecendo que nunca deveria ter medo
de gatos, afinal. Deveria antes ter medo de...
A porta abriu-se e a bela secretária entrou, trazendo um gatinho ao colo. Hilary Morgan voltou-se
para ela, viu-a e... disparou a berrar.
Não mais por causa do gato, porém.
Claro que também podia curar-se de ginecofobia — medo mórbido de mulheres — por meio de
catarse, se a catastrófica subitaneidade com que se compenetrara da verdadeira categoria de seu mal
não o tivesse catapultado numa catatonia catabólica. e, ao depois, no profundo estado cataléptico
que perdurou até o momento de após breve repouso no catafalco, ser ele enfim sepultado numa
catacumba na localidade de Catskills.

EINE KLEINE NACHTMUSIK

(Em colaboração com Carl Onspaugh)

Seu nome era Dooley Hanks e ele era um de nós; circunstância por meio da qual indico que era
meio paranóico e meio esquizofrênico, mas era, sobretudo, um biruta que trazia na castanha uma
idéia fixa, uma obsessão. A saber, que algum dia haveria de encontrar o Som que andara procurando
toda a vida, ou pelo menos desde vinte anos, a partir da adolescência, quando comprara uma
clarineta e aprendera a soprar por ela alguma coisa. Seja dito que não passava de músico medíocre,
mas a clarineta era sua ferramenta de trabalho e meio pelo qual pudera viajar mundo em busca do
Som por todos os continentes. Tocava dia aqui, dia ali, e tão depressa juntasse alguns dólares, libras,
dracmas ou rublos punha-se de caminho até o dinheiro acabar; então endireitava para a cidade mais
próxima, à cata de novo emprego.
Não fazia idéia de como seria o Som, mas contava reconhecê-lo tanto que o ouvisse. Três vezes
chegou a pensar que o descobrira. A primeira foi na Austrália, quando por primeiro ouviu uma placa
vibratória. Depois, em Calcutá, acreditou tê-lo achado no ruído de uma gaita de foles que um
encantador de serpentes ventilava. E, por fim, na parte ocidental de Nairobi, pareceu-lhe ouvi-lo na
combinação do garganteado da hiena com o rugir do leão. A um segundo exame, porém, o som da
placa vibratória se revelava mero arruído, a gaita de foles, comprada ao faquir por vinte rúpias,
vinha à luz como simples instrumento de palheta, roufenho aliás e dos mais rudes, de tessitura
limitadíssima e sem nem mesmo contar com uma escala cromática; enquanto que o outro e último
som resolvia-se em nada mais que desengraçados rugires de leão e gargalhares de hiena, nunca,
nem por sombra, o Som!
Na verdade, Dooley Hanks possuía um raro e superior talento que lhe poderia render até mais que a
clarineta: um notável dom para línguas. Sabia-as às dezenas e falava-as todas com fluência,
idiomaticamente e sem vestígio de acento. Algumas semanas em qualquer país era quanto lhe
bastava para dominar a língua local e praticá-la com o denodo de nativo. Nunca, porém,
experimentara tirar vantagem disso, nem o faria jamais. Medíocre clarinetista que fosse, a clarineta
era a sua paixão.
Por esse tempo, a língua que vinha justamente de subjugar era o alemão, nem mais nem menos,
assimilada em apenas três semanas, prazo durante o qual integrara um conjunto que se apresentava
num barzinho noturno de Hanover, cidade da Alemanha ocidental. E todo o dinheiro que lhe
acontecesse ter nos bolsos seria em marcos. Ao fim de um dia de longa jornada, acrescida ademais
de um demorado percurso que fizera de carona num Volkswagen, deu ele consigo, à luz da lua, nos
bancos do Rio Weser. Usava sua roupa viageira, enquanto o traje de trabalho, o melhor que tinha,
lhe ia num bornal que trazia às costas. O estojo da clarineta, jamais confiado a malas nem bornais,
levava-o na mão.
Presa de seu demônio e sentindo, a súbitas, um excitamento que devia e só podia ser o
pressentimento de que enfim estava efetivamente a pique de surpreender o Som, pôs-se a tremer da
cabeça aos pés. Nunca antes sentira aquele palpite com tanta veemência; nem mesmo relativamente
aos leões e às hienas, ocasião em que mais perto estivera da descoberta.
Mas onde? Ali mesmo, na água? Na próxima cidade? Sim, nunca mais longe que a cidade próxima,
tal a força do pressentimento que agora o fazia trepidar. E, como já à beira da loucura, compreendeu
de relance que enlouqueceria se não o encontrasse logo. Talvez até já estivesse meio tantã, pensava,
contemplando a fito aquela água luarenta. Senão quando, algo lhe irrompe à superfície, despede uns
silenciosos reflexos prateados e perde-se novamente ao fundo. Dooley a olhar fixo o ponto em que
pareceu vê-lo nas águas. Peixe? Não ouvira ruído algum, nenhum espadanar. Mão? De uma sereia,
quem sabe, vinha a montante do Mar do Norte, a acenar-lhe um convite? Venha, a água está ótima;
parecia dizer. (Impossível, pois fazia frio.)
Quiçá algum espírito das águas? Ou aí alguma Virgem do Reno deslocada para Weser? E seria
mesmo um sinal? Dooley, sentindo-se arrepiar à simples sugestão de certo pensamento, deteve-se à
borda do rio e imaginou como seria se, ... entrando a passo pela água, deixasse as emoções do
momento transfundirem-se em canção pela clarineta, e ir reclinando a cabeça, à medida que as
águas se fizessem mais e mais profundas, de jeito que o instrumento ainda lhe ficasse à tona, en-
quanto ele Dooley já estivesse imerso, e o pavilhão do instrumento fosse o último a submergir. E
que dizer do som, qualquer que fosse, produzido pela borbulhante massa líquida a cerrar-se sobre
eles ambos. Sobre ele, primeiro; depois sobre a clarineta. E acudia-lhe à lembrança a velha história,
a que antes dedicara um desprezo iconoclasta mas agora se inclinava a admitir por verdadeira, de
que alguém ao afogar-se revê, num relance, o desenrolar de toda a sua vida como num gran finale
do viver. Que montagem maluca a sua não daria! E com que inspirava haveria de gorgolejar as
últimas clarinadas! Que miscelânea louca, toda sua existência atormentada, selvagem, docemente
triste, turbilhonando diante de seus olhos, no insigne instante em que seus pulmões expelissem o
final alento, transfeito em nota, a última, e ele então inalasse aquela água fria, escura...
Sentindo-se falto de ar como por antecipação, um calafrio lhe percorreu o corpo, ao passo que seus
dedos tremiam, tal a garra com que apertavam a caixa amachucada do instrumento.
Mas não, disse consigo. Quem iria ouvir? Quem iria saber? Era importante que ouvissem. Quando
não, sua pesquisa, sua descoberta, toda sua vida teria sido vã. A imortalidade não podia percorrer do
solitário conhecimento que alguém tivesse da própria grandeza. E de que adiantaria o Som, se lhe
acarretasse morte em lugar de imortalidade?
Um canal sem saída. Outro. Talvez a cidade próxima. A próxima, sem dúvida. Voltava-lhe o
pressentimento. Como pudera chegar ao ponto de pensar em afogar-se!? Para encontrar o Som, até
mataria se necessário; nunca, porém, a si mesmo. Isso tiraria todo sentido à coisa.
Sentindo-se como quem só por um fiapo escapara da morte, ele se virou e afastou-se do rio,
voltando para a estrada que o margeava, de onde rumou para as luzes da cidade próxima. Embora
não tivesse sangue índio nas veias, ao que soubesse, andava feito índio, levando um pé bem
defronte ao outro, como se estivesse sobre o arame. E silenciosamente, ou tão silenciosamente
quanto lho permitiam as botinas de excursionista, cujo ruído amortecia com a peculiaridade do
andar, ia rápido porque ainda mal anoitecera e teria tempo de sobra, após registrar-se num hotel e
livrar-se do bornal, para explorar a cidade durante algum tempo antes que o nevoeiro que já come-
çava a se acumular tomasse conta de tudo.
O fio por que escapara ao suicídio no Rio Weser ainda o inquietava. Já tivera o mesmo impulso
antes, mas não tão forte. A última vez fora em Nova Iorque, no topo do Empire State Building, mais
de cem andares acima do solo. Era um dia límpido e luminoso, e a magia da vista o fascinava.
Repentinamente vira-se presa da mesma exultação insana, certo de que um clarão inspirador pusera
fim à sua busca, metendo-lhe entre os dedos o objetivo mesmo de sua vida. Só precisava tirar a
clarineta do estojo e armá-la. A visão mágica se revelaria nas primeiras notas, ainda claras, que
tirasse, e as cabeças dos outros apreciadores da paisagem se voltariam para ele, atônitas. Depois, a
nota contrastante, quando mergulhasse no espaço, bem como as outras, chorosas, suspirantes,
gemidas, durante o tempo que levasse na queda; a melodia exótica inspirada pela vista, colorida e
cada vez mais próxima, da rua, do passeio e do povo, que num misto de horror e de fascínio, o
observasse, a ele Dooley Hanks, a ouvir-lhe o Som, no instante que criasse, em soberbo fortíssimo,
o gran finale do seu maior solo — a nota rouca final, produzida quando seu corpo se chocasse, por
fim, contra a calçada, e carne, sangue e ossos, fundindo-se no concreto, lhe forçassem a última e
gloriosa expulsão de ar pelo instrumento um instante antes de ele se apartar de seus dedos mortos.
Mas salvara-se recuando a tempo e correndo para o elevador.
Não queria morrer. Tinha que lembrar-se disso constantemente. Mas nenhum outro preço que
precisasse pagar seria demasiado.
Ei-lo já em plena cidade. Numa parte antiga, com suas ruas escuras e estreitas ladeadas de edifícios
velhos. O nevoeiro enrolava-se sobre o rio, qual gigantesca serpente, crescendo e espessando-se por
sobre a ruas, obstruindo a visão. Ainda assim avistou no outro lado daquela rua, toda calçada com
pedras redondas, um luminoso, Unter den Linden. Nome pretensioso para tão pequeno hotel. Mas
parecia barato, que era o que contava. E barato era realmente, de modo que após obter quarto logo
subiu para desfazer-se da bagagem. Por um momento pensou em vestir o melhor terno, mas recuou
da idéia. Não iria procurar emprego; disso trataria no dia seguinte. Mas a clarineta levaria, claro;
como sempre. Tinha esperanças de achar algum lugar freqüentado por músicos e obter que o
convidassem a reunir-se a eles. Claro então que lhes perguntaria qual o melhor meio de arranjar um
bico no lugar. O simples ato de carregar uma caixa de instrumento constitui-se por si só numa
apresentação automática entre os músicos. Na Alemanha como em qualquer parte.
Passando pela portaria, ao sair, pediu ao atendente — figura que lhe pareceu tão velha quanto a
própria hospedaria — orientações que o levassem ao centro da cidade, aos lugares quentes. Já outra
vez de fora, dispunha-se a seguir o rumo indicado, mas tão torcidas eram as ruas e denso o nevoeiro
que em pouco se viu perdido, não mais acertando sequer com o rumo de onde viera. Daí que se
pusesse a errar sem rumo, e, poucos quarteirões adiante, achou-se numa região lúgubre. Seu caráter
lúgubre, sem causa aparente, desalentou-o e, num instante de pânico, pôs-se a correr querendo
deixar quanto antes o distrito. Mas logo estacou, farejando música no ar... Sim, um leve rumor
musical, feérico e obsedante, que, após detê-lo largo tempo a ouvir, arrastou-o pela rua ensombrada,
à cata do seu ponto de origem. Seria um só instrumento tocado; de palheta e que não soava
exatamente como clarineta nem oboé. O som alteou-se e logo se abafou de novo. Em vão procurava
Dooley uma luz, um movimento, algum indício da sua fonte. Voltou-se a fim de desfazer caminho,
andando agora em pontas de pés, e a música não tardou a fazer-se mais alta. Alguns passos mais, e
diminuiu de novo. Desfez os passos dados a mais e deteve-se a examinar aquele edifício sombrio e
taciturno que tinha diante de si. Não lhe viu luz em janela alguma. Mas achava-se agora totalmente
envolvido pela música... Não viria de baixo, de sob a calçada?
Deu um passo para o prédio e viu o que antes lhe escapara. Paralela ao frontispício, desimpedida e
sem grade protetora alguma, havia uma escadinha de pedra, já bastante carcomida, que descia para
um porão. Debaixo, a uma débil luz amarela, entrevia-se uma porta por cuja espessura a música era
coada. E vozes; podia ouvi-las agora.
Desceu os degraus com cautela e, diante da entrada, hesitou. Devia antes bater, ou simplesmente
entrar? Apesar de não ter visto nenhum luminoso, seria aquele um lugar público? Algum tão conhe-
cido dos habitués que já dispensasse letreiros? Ou uma festinha particular em que o tivessem por
intruso?
Resolveu deixar que a porta mesma respondesse, pela circunstância de estar ou não fechada. Levou
a mão ao trinco, este cedeu ao toque e ele entrou.
Recebeu-o a mesma música, abraçando-o ternamente. O lugar parecia público, uma adega de vinho.
No extremo de um vasto salão havia três grandes tonéis com torneiras. Havia também mesas e
gente, homens e mulheres, sentada. Todos com copos de vinho diante de si. Não se viam em parte
alguma canecos de cerveja; na certa serviam só vinho ali. Algumas pessoas o olharam, mas sem
interesse e de modo algum com o olhar que se atira a intrusos; logo, não seria uma reunião privada.
O músico — que só havia um — num ângulo afastado do recinto, sentava-se num tamborete. Ali o
ar espessava-se de fumo, e os olhos de Dooley, recém-chegados do nevoeiro fora, mal notaram
diferença; de onde estava não saberia dizer se o instrumento empunhado pelo musicista seria
clarineta, oboé ou nem uma nem outra coisa. Seus ouvidos também não puderam elucidar a questão,
nem mesmo agora de mais perto.
Cerrou a porta atrás de si e, desviando-se das mesas ocupadas, pôs-se a procurar lugar vago tão
perto do músico quanto possível. Achou uma mesa não longe e sentou-se. Pôs-se então a estudar
aquele instrumento, com os olhos e com os ouvidos. Parecia familiar. Já vira outro igual, ou quase,
em algum lugar, mas onde?
— Ja, mein Herr? — sussurraram-lhe e ele se voltou. Um garçom pequeno e gordo, em calças de
couro, ao seu lado. — Zin-fandel. Borgonha. Riesling.
Dooley, que não entendia nem curava de vinhos, escolheu um dos três oferecidos e, quando o
homem se afastou abafando os passos, empilhou sobre a mesa alguns marcos para não mais ter de
interromper-se.
Depois tornou a estudar aquele instrumento, tentando não ouvi-lo para poder concentrar-se melhor.
Quando já vira algo parecido? Tinha aproximadamente o comprimento da sua clarineta, mas o
pavilhão era mais amplo e mais aberto. Seria feito de uma só peça, tanto quanto podia notar, e de
madeira preciosa de cor escura que sugeria nogueira ou mogno, muito bem polida aliás. Tinha
orifícios para o dedilhado e só contava três chaves; duas na base que lhe acrescentavam dois
semitons ao registro baixo, e outra em cima, reservada ao polegar, que devia ser para mudança de
registros.
Dooley fechou os olhos e de bom grado teria fechado as orelhas se pudesse, para tentar lembrar
onde já vira coisa semelhante. Onde?
A lembrança veio gradual. Um museu em alguma parte. Nova Iorque talvez, onde nascera e crescera
e de que saíra só aos vinte e quatro anos, pois aquela lembrança era mais antiga que isso e lhe vinha
dos idos da adolescência. Museu de Ciências Naturais? Bem, não importava. O caso é que havia
uma sala, ou várias, e vitrinas com instrumentos músicos expostos, antigos e medievais: viole da
gamba e viole d’amore, sacabuxas, flautas de Pã e de ponta, alaúdes, pífaros, tambores. Uma dessas
vitrinas só continha charamelas e hautboys, ambos precursores do oboé moderno. E o instrumento
que agora ouvia era precisamente um hautboy. Do qual a charamela se distingue por ter uma
embocadura globular que acomoda as palhetas no interior mas embaixo; o hautboy estava um passo
entre a charamela e o oboé. E também passara por vários estágios evolutivos, desde a ausência total
de chaves, quando só tinha orifícios para dedear, até conquistar uma meia dúzia delas. E, sim
senhor, havia também uma versão de três chaves, idêntica àquele instrumento, só que de madeira
mais clara. Sim, fora na adolescência, nos inícios dela, que o vira, ainda calouro na escola
secundária. Apenas começava a interessar-se por música e ainda não tinha adquirido o primeiro
instrumento; nem bem se decidira quanto ao que queria tocar. Esse o motivo por que os
instrumentos antigos e sua história o fascinaram por breve tempo. Havia um livro sobre o assunto,
na biblioteca da escola, que lera. Tinha lido que — santo Deus! — lera que o hautboy tinha som
áspero no registro baixo e era estridente nas notas altas! Pura mentira, a ser típico o instrumento que
agora ouvia. A sonoridade que tinha era suavíssima em todos os registros; seu timbre era rico e
cheio, infinitamente mais agradável que o esganiçado do oboé. Melhor mesmo que o da clarineta,
que só no registro baixo se lhe aproximaria.
E Dooley Hanks soube com certeza que tinha de obter um instrumento como aquele, e que o
obteria, custasse o que custasse.
Já com essa decisão assentada no espírito, e a música ainda a afagá-lo como uma mulher e a excitá-
lo como jamais mulher alguma o fizera, Dooley abriu os olhos. E, como quer que se inclinasse para
diante em sua concentração, a primeira coisa que viu ao reabri-los foi a enorme taça cheia de um
vinho rubro que lhe tinham posto diante. Ergueu-o da mesa e, olhando-lhe por cima, procurou os
olhos do musicista; então alçou-o, num brinde silencioso, e despejou-o goela abaixo dum
só trago.
Quando, após beber, baixou a cabeça — o vinho lhe soubera inesperadamente bem — o músico
girara um pouco sobre o assento e confrontava agora o outro lado. Bem, isso ao menos lhe dava
ocasião de estudá-lo. Era alto, porém magro e até se diria quebradiço. Sua idade era indefinível;
entre quarenta e sessenta anos, nada mais específico. Tinha um quê de esmolambado; o sobretudo
puído brigava com as calças balofas e ainda mais com o berrante cachecol de estrias vermelhas e
amarelas que lhe pendia frouxo do pescoço descarnado, onde um pomo proeminente se agitava toda
vez que o homem descansava de tocar. De muito que a cabeleira desgrenhada exigia corte; seu rosto
era seco e contraído, e tinha olhos de um azul tão claro que se diriam vazios de alma. Só os dedos
traziam a marca do músico consumado; longos, esguios, espirituais, dançando, agílimos, ao ritmo
da maravilhosa música que criavam.
Depois, com um acorde final de agudos que espantaram Dooley por situarem-se, no mínimo, meia
oitava acima do que supunha ele fosse o registro mais agudo do instrumento, e ainda de mistura
com a rica ressonância dos graves, a música cessou.
Fez-se um silêncio aturdido por alguns segundos e logo os aplausos desabaram. Dooley aplaudiu até
que as mãos lhe ardessem. O músico, olhando frontalmente para o público, nem pareceu notar. Em
menos de trinta segundos tornou a levar o instrumento aos lábios e os aplausos cessaram, de golpe,
com a primeira nota que se ouviu.
Dooley sentiu que o tocavam de leve no ombro e voltou-se. O garçom estava de volta; dessa vez
nem mesmo sussurrou, apenas arqueou interrogativamente as sobrancelhas. Quando de novo se foi,
levando a taça vazia, Dooley teve ocasião de tornar a fechar os olhos para concentrar-se na música.
Música? Isso mesmo, aquilo era música; mas de um tipo especial, que nunca ouvira antes. Ou seria
um misto de todo tipo de música, antiga e moderna, jazz e clássica, uma miscelânea magistral de
paradoxos — com o que talvez quisesse dizer “opostos” — agridoce, a um tempo gélida e fogosa, a
sugerir brisas suaves e furacões irosos, amor e ódio de uma vez.
E como da outra feita que abrira os olhos, lá estava a taça, cheia de novo, à sua frente. Desta vez
decidiu degustar o vinho lentamente.
Como era que tinha ignorado vinhos durante toda a vida? Oh, é claro que bebera copos ocasionais,
mas nunca provara nada como aquele vinho. Ou seria a música o que lhe dava sabor?
A música parou e, com os outros, ele tornou a aplaudir de todo coração. Agora o executante, que
descia do tamborete, apenas tomou ciência dos aplausos com uma inclinação breve e nervosa
dirigida ao público; depois, sobraçando o instrumento, cruzou rápido o salão; sem passar por
Dooley, infelizmente, que, voltando-se, acompanhava com os olhos o percurso que, no seu andar
vergado, o outro fazia. Sentou-se enfim numa mesa minúscula, que seria unitária pois só tinha uma
cadeira a entestar com a parede oposta. Dooley por instantes resolveu a idéia de transferir para lá a
sua própria cadeira, mas decidiu não fazê-lo. Estava claro que o fulano queria ficar sozinho, ou não
teria escolhido aquela mesa em particular.
Olhou em torno, procurando os olhos do pequeno garçom e, quando os viu, fez-lhe um aceno.
Quando o homem se aproximou, encomendou uma taça para o musicista, pedindo ainda que lhe
passasse o convite para vir ocupar sua mesa, esclarecendo que também era músico e desejaria
conhecê-lo.
— Não creio que aceite — tornou o garçom. — Outros já tentaram isso, e ele sempre recusou
polidamente. Quanto ao vinho, não precisa se incomodar; costumamos passar o chapéu várias vezes
em favor dele. Agora mesmo vamos fazer isso. O senhor pode contribuir desse modo, caso queira.
— E quero — respondeu Dooley. — Mas, mesmo assim, leve uma taça de vinho pra ele e transmita
o meu recado, por favor.
— Ja, mein Herr.
O garçom colheu um marco adiantado, foi a um dos tonéis, encheu uma taça e levou-a para o
músico. Dooley observou-o depor o vinho sobre a mesa do homem e, enquanto falava, apontá-lo.
Para desfazer toda possível dúvida, Dooley se ergueu e fez uma leve inclinação de corpo no rumo
deles.
O músico, erguendo-se, retribuiu-lhe a inclinação com outra ainda mais funda. Logo, porém,
retornou à sua própria mesa em que sentou, do que inferiu o outro que aquela sua primeira investida
malograra. Ora, não faltaria ocasião nem noites. Assim sendo, só um pouco contrariado, voltou a
sentar-se e tomou mais outro sorvo de seu vinho. Ora viva, mesmo desacompanhado da música, ou
só com as impressões que dela lhe ficaram, no espírito, ainda achou que o vinho era maravilhoso.
Lá vinha o chapéu, “em favor do músico”, passado por um fleumático burguês. Dooley, que não lhe
viu dentro notas de superior calibre e não querendo se fazer notado, atirou-lhe dois marcos que
deduziu da pequena pilha erguida sobre a mesa.
Depois viu um casal que deixava uma mesa para dois, situada bem em frente do tamborete que o
músico ocupava para tocar. Ah, vinha bem a calhar. Açodadamente terminou o drink e, recolhendo o
troco e a clarineta, transladou-se para aquela mesa, enquanto o casal se retirava. Dali não só poderia
ver e ouvir melhor, como ainda era aquele o ponto ideal para interceptar o instrumentista arredio,
atacando-lhe um convite especial após a execução próxima. Nisso pensando, em vez de pôr a
clarineta no chão, descansou-a sobre a mesa, de modo que ficasse bem à vista do outro, como para
inteirá-lo de que não só eram ambos músicos, o que podia não significar nada, como ademais
estavam ligados por uma afinidade instrumental, já que também o seu instrumento era de palheta.
Minutos depois, achou ocasião de acenar por outra taça. Quando o garçom a trouxe, falou:
— Pelo que vejo, o nosso amigo recusou meu convite. Pode-se saber o nome dele?
— Otto, mein Herr.
— Otto de quê? Não tem sobrenome?
O garçom pestanejava ao responder:
— Perguntei isso a ele, certa vez. “Niemand”, ele respondeu. Otto Niemand.
Dooley sorriu àquilo. Niemand, conforme sabia, significava “ninguém” em alemão.
— Quanto tempo faz que toca aqui?
— Oh, só tocou esta noite. Viaja sempre. Esta noite é a primeira em que o vemos depois de quase
um ano. Quando aparece, e só por uma noite; nós o deixamos tocar e passamos o chapéu em
favor dele. Não costumamos ter música aqui; isto é só uma adega de vinho.
Dooley franziu o cenho. Urgia entender-se com o homem aquela mesma noite, então.
— Apenas uma adega de vinho — repetia o homenzinho. — Mas também servimos sanduíches,
caso esteja com fome. Presunto, Knackwursl ou queijo...
Dooley, que não estava prestando atenção, atalhou-o:
— Quanto ainda demora pra ele voltar a tocar? De quanto é este intervalo?
— Oh, hoje ele não toca mais. Há um minuto, enquanto eu lhe trazia o vinho, eu o vi sair. Talvez
não tornemos a vê-lo por um longo...
A essa altura Dooley já deitara a mão no estojo da clarineta e corria desabalado para a saída,
desviando-se das mesas. Passou a porta, que deixou escancarada após si e, galgando a escadinha de
pedra, ganhou o passeio. O nevoeiro já não estava tão denso como antes, salvo em alguns trechos.
Mas em direção alguma via ele niemand. Então imobilizou-se para ouvir melhor. Só o que podia
distinguir por instantes eram ruídos que lhe vinham da adega; mas logo alguém felizmente fechou a
porta que ele deixara aberta e, no silêncio que se fez, ele pensou, por um segundo, distinguir um
ruído de passos à sua direita, dos lados de que ele próprio viera.
Nada perderia em seguir aquela direção. Havia uma curva, depois seria a esquina. Deteve-se, de
novo, a ouvir. Pensou surpreender de novo aquele mesmo som de passos que lhe chegavam da
esquina. Correu para lá, pois. Meia quadra adiante, divisou um vulto à sua frente, porém afastado
demais para ser reconhecível. Mas alto e magro, felizmente. Podia bem ser o músico. Correndo ao
lado do vulto, amortecidas pela névoa, via luzes móveis e ruído de tráfego.
Aquele devia ser o trecho a partir de onde se perdera ao tentar seguir a orientação que o atendente
do hotel lhe tinha dado.
Estava reduzida para um quarto de quadra a distância que os separava; abriu a boca para chamar a
atenção do vulto que seguia, mas achou que ventava demais contra si para ser ouvido. Já agora não
corria. Não havia mais perigo de perder o homem, tão próximos estavam. Sustando o fôlego,
reduziu ainda mais a distância que os separava.
Só estava a alguns metros do homem — que, felizmente, era o músico — e encompridava o passo
na intenção de emparelhar com ele e lhe falar, quando o outro, tendo transposto a guia da calçada,
pôs-se a atravessar a rua em diagonal. Senão quando, um veículo em alta velocidade, dirigido
decerto por um motorista ébrio, dobrou a esquina atrás deles, cambaleou momentaneamente e
depois endireitou para cima do músico inadvertido. Em súbita ação reflexa, Dooley, que jamais
tivera um gesto heróico na vida, saltou à rua e empurrou o musicista, livrando-o assim de ser
atropelado. Com o ímpeto, ambos caíram, Dooley escarranchado sobre o outro, atitude que
sustentou, com o fôlego preso, fazendo as vezes de escudo, enquanto o veículo passava raspando
por eles. Depois ergueu a cabeça ainda em tempo de ver-lhe os faróis traseiros desaparecerem névoa
adentro, uma quadra além.
Dooley sentia o coração pulsar ruidosamente nos ouvidos, quando por fim rolou para um lado;
liberto ficou o músico, e ambos se ergueram lentamente.
— Passou perto?
Dooley respondeu que sim e, após engolir em seco, disse:
— Raspando.
O músico tirou o instrumento de sob o casaco e examinou-o:
— Não quebrou — disse.
Dooley, porém, notando que estava de mãos vazias, voltou-se, à procura da clarineta. Achou-a logo.
Devia tê-la soltado antes da arremetida. Duas rodas do carro, dianteira e traseira, lhe tinham passado
em cima, pois estava esmagada nos dois extremos. A caixa e as partes componentes do instrumento
estavam destroçadas; um lixo inútil. Dedilhou-a alguns instantes e depois jogou-a na sarjeta. O
outro aproximou-se.
— Uma pena — disse com brandura. — Perder um instrumento é como perder um amigo.
Dooley não respondeu. Teve antes uma idéia, e tratou de parecer mais triste do que em verdade
estava. A perda da clarineta representava um prejuízo, mas não era irremediável. Ainda tinha o bas-
tante para adquirir um usado — não tão bom, é certo — com o qual, trabalhando duro e
economizando por algum tempo, poderia reunir o necessário para comprar outro, tão bom quanto o
perdido. Aquele custara-lhe trezentos. Dólares, não marcos. Arranjaria outro e estava acabado. No
momento, porém, estava muitíssimo interessado em adquirir o hautboy daquele músico alemão, ou
outro igualzinho. Trezentos dólares — não marcos — era uma ninharia em comparação com o que
estava disposto a desembolsar pelo instrumento. E se o sujeito se sentisse responsável pelo ocorrido
e lhe oferecesse...
— A culpa foi minha — disse-lhe. — Eu devia ter sido mais prudente. Gostaria de poder comprar-
lhe um novo... Era uma clarineta, não?
— Era — disse Dooley, procurando parecer que estava à beira do desespero e não da maior
descoberta de sua vida. — O que não tem remédio, remediado está — filosofou. — Vamos a alguma
parte tomar um drink e bater um papo?
— Ao meu quarto — respondeu o alemão. Tenho vinho lá. Não seremos incomodados e poderei
tocar uma ou duas canções que não executo em público. Já que também é músico... — E riu-se. —
Eine Kleine Nachtmusik, não é mesmo? Um pouquinho de música noturna... mas não a de Mozart
agora; a minha própria.
Dooley, procurando ocultar a exultação que a idéia lhe causava, limitou-se a aquiescer só de cabeça,
como se não se importasse realmente. — Tá legal, Otto Niemand. Meu nome é Dooley Hanks.
O músico riu ao responder:
— Pode me chamar de Otto, Dooley. Não uso sobrenome; Niemand é o que costumo
impingir a quem insiste em que eu deva ter um. Mas, venha, não é longe.
E não era realmente; só um quarteirão abaixo, na travessa seguinte. O músico fez meia volta diante
de uma casa velha e sem luzes. Abriu-lhe a porta da frente com a chave, a seguir, com uma
lanterninha de bolso iluminou a escada larga e nua por que subiram. A casa, explicava ele ao
subirem, estava vazia e destinada à demolição; daí que não houvesse eletricidade. Mas o
proprietário lhe passara a chave e dera-lhe permissão de ocupá-la enquanto ainda permanecia em
pé; havia algumas peças de mobiliário aqui e ali, e ele se ajeitara no lugar. Gostava de habitar
sozinho uma casa, dado que assim podia tocar a qualquer hora da noite, sem perturbar o sono de
ninguém.
Abriu a porta de um quarto e entrou. Dooley esperou na soleira enquanto o outro acendia o lampião
de cima do aparador, e depois também entrou. Além daquela peça, só havia uma cadeira comum,
outra de balanço e uma cama de solteiro.
— Sente aí, Dooley — disse o músico. — A cama é mais confortável que essa outra cadeira. Se
vou tocar para nós, prefiro a de balanço. — Dizendo isso, extraiu dois copos e uma garrafa da
primeira gaveta do aparador. — Vejo que me enganei. Pensei que era vinho o que eu tinha aqui, e é
conhaque. Mas é melhor, não acha?
— Se é! — confirmou Dooley com ênfase. — Mal podia reprimir o desejo de logo pedir licença
para experimentar o hautboy, mas achou melhor esperar pelos efeitos do conhaque. Sentou-se, pois,
na cama.
O alemão passou-lhe às mãos um grande copo; voltou-se para o aparador, pegou o seu próprio e,
com o instrumento na outra mão, dirigiu-se para sua cadeira predileta. Ergueu o copo:
— À música, Dooley! — brindou.
— À Nachtmusik — disse Dooley, antes de sorver um bom gole. Queimava como fogo, mas era
conhaque do bom. Já sem poder esperar mais, disse: — Otto, posso dar uma olhada nesse seu
instrumento? E um hautboy, não é mesmo?
— De fato. Pouca gente seria capaz de reconhecê-lo; nem músicos. Mas vai me desculpar, Dooley,
que eu não o deixe pegá-lo. Nem tocar nele, se era essa sua intenção. Desculpe, mas assim são as
coisas, meu caro.
Dooley fez que compreendia e tentou não parecer aborrecido. A noite apenas começava, pensou
consigo; mais um ou outro copo daqueles podia amaciá-lo. Nesse ínterim ele bem podia descobrir o
mais que pudesse.
— É coisa autêntica?... Isto é, medieval? Ou será uma reprodução moderna?
— Eu mesmo o fiz, à mão. Por puro gosto. Mas, amigo, contente-se com a clarineta, ouça o que eu
lhe digo. E acima de tudo não me venha encomendar outro instrumento igual a este; eu não poderia
atendê-lo. Não tenho pego em ferramentas nem manejado um torno já faz anos. Na certa perdi a
prática. Sabe lidar com ferramentas, também?
Dooley abanou a cabeça:
— Não sei nem pregar um prego. Mas onde eu poderia achar um idêntico ao seu?
O músico encolheu os ombros em resposta:
— A maioria só se acha em museus, e não está à venda. Você pode achar algumas coleções
particulares e adquirir o seu a preço exorbitante; pode bem ser que ainda o ache utilizável. Mas,
amigo, banque o esperto e fique na clarineta. É um conselho que lhe dou calorosamente.
Dooley Hanks não pôde dizer o que pensava e calou-se.
— Amanhã trataremos de arranjar uma nova clarineta para você — tornou o músico. — Por esta
noite esqueçamos isso. E esqueça o seu desejo de obter um hautboy, e também a vontade de
experimentar este aqui; isso mesmo, sei perfeitamente que só pediu para pegá-lo, mas você seria
capaz de pegá-lo nas mãos sem logo querer chegá-lo à boca? Bebamos um pouco mais, depois
tocarei para nós. Prosit!
E tornaram a beber. O músico pediu a Dooley que lhe contasse algo sobre si mesmo, e Dooley o
atendeu. Contou tudo o que importava, à exceção do que importava mais que tudo: sua obsessão e o
fato de que estava quase resolvido a matar por ela, se não houvesse outro jeito.
Não havia pressa, pensava Dooley; tinha toda a noite pela frente. Falou, pois, e beberam. Estava no
meio do terceiro copo, que também seria o último, pois a garrafa acabara, quando deu por si já sem
condições de continuar falando e, conseqüentemente, houve um silêncio entre eles.
Após um risinho malicioso, o músico terminou a bebida, depôs o copo e empolgou, com as duas
mãos, o instrumento.
— Dooley. . . que me diz de umas garotas?
Dooley, num súbito, achou-se um tanto embriagado. Mas assim mesmo riu.
— Grande! — respondeu. — Um quarto cheinho delas. Loiras, morenas e ruivas. — Depois, não
podendo sofrer que um bicho-d’água o batesse em matéria de resistência à bebida, deu cabo do
resto do conhaque que ainda lhe ficara no copo e reclinou-se para trás, sobre a cama, apoiando a
cabeça e os ombros na parede. — Mande vir as garotas, Otto.
O alemão anuiu e começou a tocar. Súbito, o encanto pungente e obsedante da melodia que ouvira
por último na adega retornava. Mas o tom era outro. Cadenciada, sensual. Tão bela que doía, e
Dooley pensou, num ímpeto de ferocidade: “O desgraçado está tocando no meu instrumento; meu,
em paga da clarineta que perdi. E quase decidiu-se a levantar e fazer algo a respeito, pois o ciúme e
a inveja queimavam-no qual chama viva.
Mas antes que se pudesse mover, percebeu aos poucos que outro som lhe chegava de alguma parte,
acima ou abaixo da música. Parecia provir de fora, da calçada embaixo. Era um ágil toque-toque,
direitinho como ruído de sapatos com salto alto! Mais perto agora. Eram saltos altos realmente.
Vários! Sobre as tábuas do assoalho, primeiro, depois sobre a escada, e logo, em perfeita harmonia
com a música, ouviu um suave tap-tap à porta. Enevoado, Dooley virou a cabeça no rumo da porta,
viu-a abrir-se, e o quarto encher-se de garotas que o rodearam, engolfando-o no seu calor físico e
perfumes exóticos. Dooley firmou a vista, jubiloso, mal podendo crer no que via. Mas, se era
alguma ilusão, que fosse; contanto que... Estendeu as mãos e... Sim senhor, além de vistas também
podiam ser tocadas. Havia-as morenas com olhos castanhos, loiras de olhos verdes e ruivas de olhos
negros. E, também, morenas de olhos azuis, loiras com olhos castanhos e ruivas de olhos verdes.
Uma coleção vária e sortida; miúdas, esculturais, todas bonitas.
Fosse como fosse, a claridade do lampião pareceu diminuir sem extinguir-se de todo, e a música,
agora mais selvagem, parecia provir de alguma outra parte, como se o executante já não estivesse
mais ali. E Dooley pensou que isto seria muita bondade dele. Logo estava se regalando com as
recém-chegadas, passando de uma para outra, como um menino num armazém de confeitos. Ou
como um romano em plena orgia, só que os romanos nunca a tiveram tão boa. Nem mesmo os
deuses do Monte Olimpo.
Por fim, completamente extenuado, reclinou-se na cama e, rodeado de corpos femininos, suaves e
fragrantes, adormeceu.
Depois despertou; sóbria, súbita e completamente, sem saber quanto dormira. O aposento estava
frio agora; talvez por isso acordasse. Abriu os olhos e viu que estava desacompanhado na cama, e o
lampião de novo (ou ainda?) ardia normalmente. Também o músico estava lá, notou, tendo erguido
a cabeça; ressonava na cadeira de balanço. E ainda agarrava-se com firmeza ao instrumento, aquele
comprido cachecol de listras vermelhas e amarelas a rodear-lhe o pescoço magro; a cabeça tombada
para trás, contra o espaldar da cadeira.
Aquilo teria realmente acontecido? Ou a música o teria feito adormecer, e ele apenas sonhasse as
garotas? Logo afastou o pensamento; pouco importava. O que importava, tudo o que importava, era
não sair dali sem aquele hautboy. Mas teria de matar para isso?
Sim teria. Caso se limitasse a furtá-lo, enquanto o alemão dormisse, não teria chance de sair do país
com ele. Otto lhe sabia até mesmo o verdadeiro nome, tal como se achava escrito em seu
passaporte, de modo que o esperaria na fronteira. Ao passo que, deixando após si um homem morto,
numa casa abandonada, talvez se passassem semanas ou meses antes de encontrarem o corpo; e até
lá ele já estaria a salvo, em seu próprio país. Depois disso, qualquer prova que surgisse contra ele,
até mesmo a posse do instrumento, seria frágil demais para conduzir a uma extradição sua para a
Europa. Bastava dizer que Otto lhe tinha dado o instrumento em paga da clarineta que perdera ao
salvar-lhe a vida. Não tinha como dar provas disso, mas também ninguém podia provar coisa
alguma em contrário.
Rápido e silencioso, ergueu-se da cama, dirigiu-se, em bicos de pés, para o músico adormecido na
cadeira e deteve-se a mirá-lo. Seria fácil; tudo estava preparado. O cachecol, já estava no pescoço,
com as pontas soltas cruzadas no peito. Dooley, pé ante pé, contornou a cadeira, agarrou com
firmeza as duas pontas do cachecol e puxou-as, cruzadas, com toda a força. E sustentou essa atitude.
O músico devia ser mais idoso e frágil do que julgara. A resistência que opôs foi das mais débeis. E
até morrendo segurava o instrumento com uma das mãos, enquanto só com a outra em vão
agadanhava o cachecol. Morreu logo.
Dooley primeiramente auscultou-lhe o peito, apenas para certificar-se de que morrera, depois
desprendeu-lhe os dedos mortos do instrumento e, ele em pessoa, segurou-o por fim.
As mãos lhe tremiam de ansiedade. Quando haveria de poder soprá-lo sem riscos? Não no hotel,
bem no meio da noite, acordando outros hóspedes e chamando a atenção de todos sobre si.
Ora, ali mesmo, àquela mesma hora, a casa vazia havia de proporcionar a melhor e mais segura
oportunidade, que em longo tempo lhe depararia antes de deixar o país e pôr-se a seguro. Aquela
mesma noite e lugar, antes de começar a apagar as impressões digitais de tudo em que pudesse ter
tocado e outros mais indícios reveladores de sua presença que pudesse encontrar ou imaginar. Ali
mesmo; mas baixo, para não despertar a vizinhança; não se desse que fossem capazes de distinguir
suas primeiras tentativas canhestras do toque do dono original do instrumento.
Tocasse baixo então; no início, ao menos. E tratasse de parar, logo que produzisse guinchos
recalcitrantes ou outros ruídos desagradáveis, como tão fácil é acontecer, quando os instrumentos
ainda não estão plenamente dominados pelo executante. Ele, porém, tinha o estranho
pressentimento de que isso não lhe iria acontecer. Já antes aprendera a haver-se com palhetas
duplas; certa feita, em Nova Iorque, repartira um apartamento com um oboísta e valera-se da
circunstância para experimentar-lhe o instrumento, pois tinha intenção de também adquirir o seu e
fazerem dupla. Por fim, desistira da idéia, por preferir tocar em pequenos conjuntos, onde oboés não
têm cabida. Mas, e o dedilhado? Baixando os olhos, verificou que seus dedos recaíam sobre os
orifícios ou pousavam nas chaves com naturalidade. Moveu-os e viu que iniciavam, como por si
sós, uma breve dança. Sustou-os e, com admiração, levou o instrumento aos lábios, soprando-lhe
dentro levemente. Produziu-se, numa tonalidade média, um som puro, claro e suave. Uma nota tão
rica e vibrante como qualquer tocada por Otto. Cautelosamente, ergueu um dedo, depois outro, e
deu consigo iniciando um escala diatônica. Então procurou esquecer-se dos dedos, soltando-os, e só
pensar na escala. Todas as notas eram igualmente puras. Pensou a escala em outra clave e pôs-se a
tocar, a seguir desferiu um arpeggio. Não conhecia o dedilhado, mas seus dedos sim.
Podia tocá-lo, e queria.
Mas por que não colocar-se mais a cômodo, pensou, apesar da crescente excitação. Voltou em
direção da cama e estendeu-se em cruz sobre ela, como antes, cabeça e ombros recostados na
parede. Tornou a levar o instrumento à boca e tocou-o, agora livremente, sem se preocupar em
abafar-lhe o som. Caso o ouvissem, pensariam na certa que era Otto, e já estariam acostumados a
ouvi-lo altas horas.
Lembrou-se de algumas canções que ouvira na adega, e seus dedos as executaram. Em êxtase,
Dooley se relaxou e tocou como nunca tocara em clarineta. Da mesma forma, como quando Otto
tocava, surpreendia-o aquela sonoridade rica e límpida, muito parecida com o registro chalumeau
da clarineta, mas que se estendia até os agudos.
Mil sons fundiam-se num só, enquanto executava. Novamente a suave melodia de paradoxos, preto
e branco fundidos no belo e radioso tom cinza de uma música obsedante.
Depois, sem transição aparente, achou-se executando uma canção estranha, que jamais ouvira. Mas,
sabia por instinto que ela pertencia àquele maravilhoso instrumento. Uma melodia como para
convidar, como a chamar, tal a que Otto executara quando as garotas, reais ou imaginárias, lhes
vieram toque-tocantes ao encontro. Mas estava diferente agora... Teria em si mesma algo de sinistro
em lugar de sensual.
Mas era bela e ele já não podia, ainda querendo, sustar a dança dos dedos, a que insuflava vida com
o próprio fôlego.
Depois, acima ou abaixo da música, distinguiu outro som. Não o toque-toque de saltos altos desta
vez, mas algo rascante e rastejante, como milhares de pequeninas garras. Súbito, viu-os brotarem de
múltiplos buracos no assoalho, que antes não notara, dispararem para a cama e saltaram-lhe em
cima. Num átimo, tudo voltou a cair nos eixos e, com um esforço que seria o último de sua vida,
Dooley arrancou dos lábios aquele instrumento maldito e abriu a boca na intenção de gritar. Mas já
estava completamente envolvido e dominado: havia-os grandes, castanhos, pequenos, magros,
pretos... E antes que grito algum lhe saísse da garganta o rato preto e maior, a que os outros
seguiam, saltando, cravou-lhe os dentes afiados na ponta da língua, travando-a. E aquela boca a que
já todo grito era impossível, após breve gorgolejo emudeceu para sempre.
E o bulício do banquete estendeu-se pela noite adentro, na cidade de Hamelin.

SÍRIO NADA

Alegremente, extraía eu as últimas moedas de nossos caça-níqueis e contava-as, enquanto Ma


escriturava as quantias no livrinho vermelho à medida que as ouvia de mim. Que belas cifras!
Sim, fizéramos uma boa jornada pelos dois planetas de Sírio, Tor e Freda. Especialmente por Freda.
Essas duas pequenas colônias da Terra ardem por qualquer tipo de divertimento, e acontece que,
para o pessoal de lá, dinheiro não significa nada. Fizeram fila para entrar em nossas barracas e
empurrar suas moedazinhas para dentro de nossas máquinas — tanto que, apesar do elevadíssimo
custo da viagem, saíramo-nos muito bem.
Realmente, como eram confortadoras aquelas cifras que Ma contabilizava. Claro que cometeria
erros ao somá-las, mas Ellen depressa os corrigiria quando a outra por fim desistisse. Ellen é boa
com números. E mesmo sem eles, se é que me não fica mal dizê-lo de minha própria filha. Seja
como for, os méritos disso cabem a Ma e não a mim, que tenho a compleição aproximada de um
rebocador espacial.
Empurrei a caixa que continha os frutos da Corrida de Foguetes e ergui os olhos.
— Ma... — começava eu a dizer, quando a porta da cabine do piloto arreganhou-se e John Lane
apareceu e se deteve empertigado. Ellen, também à mesa e confrontada com Ma, descansou o livro
que lia e também ergueu os olhos. Ela era toda olhos, e eles brilhavam.
Johnny fez a rígida saudação regulamentar que se espera de piloto para capitão. Sempre me irritou o
raio daquele gesto, mas não podia dispensá-lo, de vez que o regulamento o impõe.
— Objeto pela proa, Capitão Wherry — disse-me.
— Objeto? — estranhei. — Que tipo de objeto?
É que da voz e do rosto de Johnny nunca se podia deduzir nada. A politécnica da Cidade de Marte
treina-os para serem uns caras-de-pau, e Johnny graduara-se na base do magna cum laude. É bom
rapaz; só que noticiaria o fim do mundo no mesmo tom com que anunciaria o jantar, estivesse nas
atribuições de um piloto anunciar jantares.
— Parece-me um planeta, senhor — foi tudo o que disse. Levava tempo perceber-lhe o sentido das
palavras.
— Planeta? — indaguei sem brilho, enquanto o fixava com os olhos, tentando surpreender-lhe
algum sinal de embriaguez ou coisa assim. Não fazia objeções a que visse lá os seus planetas
mesmo sóbrio, mas era que se aquele rapaz chegasse a desenrijar-se a ponto de se permitir alguns
goles, o álcool na certa lhe diluiria um pouco do engomamento da espinha. Aí então eu teria com
quem bater um bom papo. Acaba tornando-se deprimente sair pelo espaço afora em companhia de
apenas duas mulheres e um graduado da Politécnica, que, ademais, teima em obedecer à risca tudo
quanto é regra.
— Um planeta, senhor. Um objeto de dimensões planetárias, diria eu. Diâmetro, cerca de três
mil milhas; distância, dois milhões; curso, aparentemente uma órbita próxima da estrela Sírio A.
— Johnny — respondi-lhe, — estamos na órbita de Tor, que é Sírio I, o que quer dizer que é o
primeiro planeta de Sírio; onde, nisso tudo, você vê lugar para algum outro planeta? É
alguma caçoada?
— Eu o convido a olhar o visor por si mesmo, senhor, e a fazer uma verificação nos meus cálculos
— replicou-me ele, entesando-se ainda mais.
Ergui-me obediente, e lá fui eu com destino à cabine do piloto. Admito que havia mesmo um disco
bem no centro do visor de proa. Quanto a conferir-lhe os cálculos, seria pura perda de tempo. Aqui
a minha matemática só dá mesmo para contar moedas ganhas. De modo que de bom grado aceitei-
lhe os cálculos pela verdade.
— Johnny — quase gritei, — descobrimos um novo planeta! Não é extraordinário?
— É, senhor — comentou ele, sem entusiasmo.
Seria extraordinário, mas não tanto. Explico-me; não fazia muito que o sistema de Sírio estava
sendo colonizado, de forma que não era assim tão surpreendente que um planetinha de três
milhas ainda não tivesse sido notado. Especialmente quando sua órbita fosse tão excêntrica, como
se viu depois que era.
A cabine do piloto só comportava dois, de sorte que Ma e Ellen ficaram à porta e eu me afastei para
um lado a fim de que elas também pudessem ver o disco no visor.
— Quanto leva pra chegarmos lá, Johnny? — quis Ma saber.
— Em duas horas chegaremos ao ponto do nosso curso mais próximo dele, Mrs. Wherry —
respondeu. — Cerca de meio milhão de milhas então nos separarão.
— Mesmo? — admirei-me.
— A menos, senhor, que ache aconselhável alterar nosso curso para alargar essa distância.
Limpei a garganta e, tendo olhado para Ma e para Ellen, entendi que por elas estaria bem e, pois,
disse:
— Johnny, o que nós vamos fazer é diminuir essa distância. Sempre quis ver um planeta ainda
virgem. Vamos aterrar, mesmo que tenhamos de usar máscaras de oxigênio para poder sair da
nave.
— Perfeitamente, senhor — respondeu ele fazendo-me continência; mas tenho para mim que
lhe surpreendi nos olhos uma faiscazinha de reprovação. Se assim era, não lhe faltariam motivos. A
gente nunca sabe em que boa vai se meter quando se dirige para territórios virgens no espaço
exterior. Uma carga de tendas de armar e caça-níqueis não é bem o equipamento próprio para se
fazer explorações, não é?
Mas, que querem, o Perfeito Piloto jamais discute ordens recebidas. Assim é que o velhaco se
sentou e pôs-se a dedilhar as teclas da calculadora; à vista do que, o deixamos.
— Ma — disse eu depois, — sinto-me como xingado de bobo.
— E se não foi, bem que merecia — tornou-me ela e, quando por fim deslindei essa resposta, ri-lhe
amarelo e dirigi os olhos para Ellen.
Mas ela não estava olhando para mim. Exibia novamente aquele olhar esgazeado, alheio. O que,
notando eu, tive ganas de voltar à cabine e dar um pescoção em Johnny só para ver se o despertava.
— Ouça, querida — comecei, — esse Johnny...
Mas algo me queimou a face e soube logo que era Ma olhando-me, o que me decidiu a calar.
Arranjei um baralho e pratiquei paciência até aterrarmos.
Johnny irrompeu da cabine, fazendo continência.
— Feito, senhor — declarou. — Atmosfera, um sobre dezesseis, segundo o indicador.
— E que — perguntou Ellen — significa isso em miúdos?
— Que é respirável, Miss Wherry. Tem mais nitrogênio e menos oxigênio que a da Terra, mas,
ainda assim, decididamente respirável.
O jovem era a prudência personificada, se era!, quando dava para precisar as coisas.
— Nesse caso, que estamos esperando? — eu quis saber.
— Ordens suas, senhor.
— Bolas para as minhas ordens, Johnny! Abra a porta e vamos em frente.
E a porta foi aberta. Johnny foi o primeiro a desembarcar, ainda afivelando às costas um par de
lança-chamas. O resto de nós seguia-o de perto.
Fora estava fresco, mas não chegava a fazer frio. A paisagem era igualzinha à de Tor, com seus
montes cinzentos, desnudos e ondulantes, de argila batida. E comportava vida vegetal, como se
inferia de uns arbustos estrambóticos de cor parda.
Ergui os olhos para me informar do tempo, e verifiquei que Sírio estava quase no zênite, o que
traduzido quer dizer que Johnny nos fizera aterrar em cheio no lado diurno do planeta.
— Tem alguma idéia, Johnny — perguntei, — de qual seja o período de rotação deste planeta?
— Só tive tempo de verificar isso muito por alto, senhor, e apurei que seria de vinte e uma horas e
dezessete minutos.
Por alto, dissera ele!
— É bastante bom pra nós — interveio Ma; — deixa-nos a tarde inteira pra passear. Que estamos
esperando?
— A cerimônia, Ma — informei-lhe. — Cumpre-nos dar nome ao lugar, não é? Onde foi que enfiou
aquela garrafa de champanha reservada para o meu aniversário? Calculo que esta seja ocasião
mais importante.
Ela deu a resposta e eu fui atrás da garrafa e de copos.
— Quanto ao nome, tem alguma sugestão, Johnny? Você o viu primeiro.
— Não, senhor.
— O problema — ponderei eu — é que Tor e Freda agora ficam com nomes errados. Explico-me:
Tor é Sírio I e Freda é Sírio II; como, porém, esta órbita é mais interior que a deles ambos, resulta
que deveriam chamar-se respectivamente II e III. A menos que intitulemos o planeta de Sírio 0. Vale
dizer, Sírio Nada.
Ellen sorriu e creio mesmo que Johnny o teria feito, não achasse ele tão indecoroso fazê-lo.
Mas Ma fez uma carranca.
— William — começou ela, e teria prosseguido por aí afora, se algo não acontecesse depressa.
Uma coisa espiou-nos por trás da crista de um monte próximo. Ma, que era a única voltada para
esse lado, disparou um grito e agarrou-se a mim. Todos nos viramos e vimos.
A cabeça lembrava uma avestruz, só que seria maior que um elefante. Também tinha um colarinho
em roda do fino pescoço, de onde sobressaía uma gravata borboleta com bolinhas azuis; e usava
chapéu. No chapéu, que era de um amarelo reluzente, vinha espetada uma comprida pluma roxa. A
coisa olhou-nos por alguns instantes, pestanejou zombeteiramente e depois tornou a recolher a
cabeça.
Nenhum de nós disse nada durante um minuto, ao fim do qual respirei fundo.
— Isso — falei então — já é levar meio longe o gosto pela esculhambação. Planeta — bradei sem
mais delongas, — eu te nomeio “Sírio Nada”.
E, inclinando-me, assentei o gargalo da garrafa contra o cocuruto de um monte, cuja argila,
entretanto, mal registrou o golpe. Está dito, não se quebrou. Passei os olhos em torno, à procura de
alguma rocha. Não vi nenhuma.
Só então é que puxei o saca-rolhas do bolso. Todos tomamos um gole, menos Johnny, que mal se
permitiu um sorvozinho simbólico, pois não bebia nem fumava. De minha parte, tratei de me
garantir um bom golaço. A seguir, gotejei sobre a terra uma breve libação e apressei-me a arrolhar
de novo o frasco. Algo me dizia que eu precisava mais daquela champanha que o planeta. Havia
whiskey à beça na nave e mesmo um pouco daquele veneno marciano de cor verde, mas champanha
era só aquela.
— Bem — suspirei, — aqui vamos nós. Dei com os olhos de Johnny e este falou:
— Acha prudente, tendo em vista haver... habitantes?
— Habitantes? — exclamei. — Johnny, fosse o que fosse aquilo que espichou a cabeça por trás do
monte, habitante é que não era. E caso apareça de novo, dou-lhe uma garrafada.
Mesmo assim, antes de nos pormos em marcha dei um pulo até o Chitterling e apanhei outro par de
lança-chamas. Meti um deles na cinta e passei o outro a Ellen que, seja dito, tem melhor pontaria
que eu. Ma não acertaria a parede lateral de um prédio de administração com uma pistola
pulverizadora, de modo que ficou mesmo sem arma.
Partimos, pois. E, como por consenso geral, endireitamos para o lado contrário àquele em que
avistáramos o não-sei-que-seja. Todos os montes pareciam o mesmo, para princípio de conversa, e
assim que passamos o primeiro, perdemos o Chitterling de vista. Mas, como Johnny a cada passo
consultasse sua bússola de pulso, deduzi que saberia trazer-nos de volta.
Nada aconteceu pelo espaço de três montes, ao fim do qual Ma se manifestou, dizendo:
— Olhem. E olhamos.
A vinte passos de nós, para a esquerda, avistamos um arbusto purpurino, que era de onde nos
chegava um zumbido. Aproximamo-nos mais e vimos que o ruído era produzido por uma porção de
bichos que voejavam em roda da moita. Seriam pássaros, à primeira vista. Já à segunda notava-se
que suas asas não se moviam. O que não lhes impedia nem mesmo embaraçava o vôo ruidoso.
Tentei examinar-lhes a cabeça, mas onde a cabeça lhes deveria estar só havia um como borrão. E
circular.
— Eles têm propulsores — esganiçou Ma; — parecem os aviões de antigamente.
E pareciam mesmo.
Olhei para Johnny, Johnny olhou para mim e fomos nos aproximando mais e mais do arbusto. Mas
aqueles pássaros ou o que fossem fugiram, rápidos, tão logo deram pela coisa. Embrenharam-se
para o meio da terra e em pouco já não se podiam ver.
Pusemo-nos a caminho de novo, em silêncio. Ellen alcançou-me e passamos a caminhar lado a lado.
Só estávamos adiantados o bastante para não ser ouvidos; do que ela se valeu, dizendo-me:
— Pá.
E dado que não fosse adiante, perguntei: — Que é, filha?
— Nada — respondeu ela, algo tristonha. — Deixe pra lá.
De modo que logo me vi enfronhado no assunto. Só não achei o que respondesse e tive ímpetos de
amaldiçoar a Politécnica de Marte. Mas de que adiantaria? A Politécnica de Marte é boa demais
para o seu próprio bem, e digo o mesmo de seus graduados fanáticos. Se bem que alguns deles,
depois de passar uns doze anos fora, conseguem recuperar certo grau de flexibilidade.
Mas não fazia tanto tempo assim que Johnny se formara; uns dois anos apenas. A oportunidade de
pilotar o Chitterling tinha sido um bom começo para ele, é claro, como primeira ocupação. Alguns
anos conosco e já estaria qualificado para choferar coisa maior. E isso aconteceria muito mais
depressa do que se tivesse iniciado carreira como oficial menor em alguma nave de maior porte.
O problema é que era bem-apanhado e não sabia. Não sabia nada que não tivessem ensinado na Poli
e tudo o que lhe tinham ensinado lá era matemática, astronavegação, como bater continência e não
como não batê-las.
— Ellen — comecei eu, — não...
— Não o quê, Pá?
— Humm.. Nada, nada. Deixe pra lá.
Eu mal chegara a dizê-lo, mas, súbito, ela me sorriu e eu a ela e tudo acabou como se tivéssemos
esgotado por completo a questão. Verdade é que não chegamos a nada; mas também não
chegaríamos mesmo falando, se é que me faço entender.
Nesse ponto atingimos o topo de uma pequena elevação e paramos, porque bem à nossa frente
apareceu a extremidade lisa de uma rodovia pavimentada.
Uma rua, nada menos. Plastiempedrada e tão comum como as que se vêem em qualquer canto da
Terra; com meio-fio, calçada, sarjeta e a linha de tráfego pintada ao centro. Só que vinha a dar em
nada, onde estávamos, e ponto a partir do qual se estendia, pelo menos, até a crista seguinte. E não
havia sinal de casas, veículos nem criaturas por perto.
Olhei para Ellen, Ellen olhou para mim e ambos olhamos para Ma e Johnny Lane, que acabava
justamente de alcançar-nos.
— Que é isso aí, Johnny? — perguntei-lhe.
— Parece ser uma rua, senhor — foi a elucidativa resposta que obtive.
O jovem deu com o olhar que eu lhe atirava e enrubesceu um pouco. A seguir agachou-se para fazer
um exame mais detido. Ao reerguer-se trazia surpresa ainda maior nos olhos. O que notando eu,
apressei-me a perguntar:
— Então, que é? Glacê de caramelo?
— É Permaplast, senhor. Não somos os descobridores do planeta, pois esse nome é marca registrada
de um produto da Terra.
— Humm — resmunguei. — E não poderiam os nativos daqui ter descoberto o mesmo processo de
fabricação? Talvez tivessem à mão os mesmos ingredientes.
— Perfeitamente, senhor. Mas é que as pedras trazem a marca impressa, como pode ver de mais
perto.
— E os nativos não poderiam...? — Calei logo, compreendendo a tolice do que ia dizer. Mas, que
querem, é duro pensar que se descobriu um planeta novo em folha e dar de cara com
paralelepípedos terráqueos logo na primeira rua em que se entra. — Mas, que está fazendo essa rua
aí, afinal de contas? — só quis eu saber.
— Há um jeito de ficarmos sabendo — interveio Ma sensatamente. — Seguindo-a. Pra que
ficarmos aqui parados?
De modo que nos pusemos a caminho — em chão bem melhor, agora — e da elevação seguinte
avistamos um edifício. De dois andares, vermelho e com um letreiro que dizia “Bon-Ton
Restaurant” em caracteres alfarrábicos.
— Quero ser...! — comecei, tomando impulso, e logo Ma tapou-me a boca, no que andou bem
porque o que eu tencionava dizer não seria de todo adequado. Lá estava o prédio, olhando-nos de
uma curva da estrada, uns cem passos adiante.
Apressei-me e fui o primeiro a chegar. Abri a porta, na fiúza de entrar, mas estaquei na soleira. O
edifício carecia de interiores. Aquilo era apenas uma frente falsa, como de um cenário para filme;
conseqüentemente, através da porta só se viam aqueles mesmos montes ondulantes.
Tomei ciência de um suspiro junto a mim, que não me era familiar. E dei-me conta de que nunca
antes tinha ouvido Johnny Lane suspirar. Não foi, pois, sem esforço que transferi o olhar para o
rosto dele. E pensei comigo “pobre Ellen”. Isto porque o coitado do rapaz estava visivelmente
prostrado.
E bem em tempo, talvez graças a ter olhado para Johnny, consegui lembrar que já beiro os
cinqüenta e sou feliz no casamento. Pelo que travei do braço de Ma e disse:
— Sam, que lugar. . . Digo, que planeta é este?
Sam voltou-se para trás e apresentou-nos:
— Miss Ambers — disse ele, — estes são uns velhos amigos meus acabados de chegar. Mrs.
Wherry, esta é Miss Ambers, a atriz de cinema.
Depois, completando as apresentações, levou-a primeiro a Ellen, passou por mim e acabou em
Johnny. Ma e Ellen mostraram-se bastante polidas. Eu, por mim, devo ter demonstrado bem o
contrário, dando a entender que não vira a mão estendida de Miss Ambers. Velho que seja, tenho o
palpite de que me esqueceria de soltá-la se a agarrasse. Esse o tipo da mulher.
Mas Johnny é que realmente se esqueceu de largá-la.
— Pop, seu velho pirata — dizia-me Sam, — que anda fazendo por aqui? Pensei que nunca
deixasse as colônias e nem me passava pela mente que você algum dia viesse a dar as caras num
decore cinematográfico.
— Decore cinematográfico? — As coisas começavam a fazer sentido, ou quase.
— Isso mesmo. Planetary Cinema Inc. Sou consultor técnico sobre cenas de diversões
públicas. Eles queriam umas tomadas interiores de uma barraca de caça-níqueis, então eu
desencaixotei meu velho equipamento e montei-o aqui. Todo o resto do pessoal está agora lá do
outro lado, na base militar.
Apenas começava a se fazer luz em mim.
— E aquela frente de restaurante, lá na estrada? É um decore? — inquiri.
— Claro, e a estrada também. Eles não precisavam dela, mas tinham de filmar-lhe a construção pra
uma seqüência.
— Oh — prossegui eu. — E a avestruz de gravata borboleta mais aqueles passarinhos dotados de
propulsores? Não podiam ser propulsores cinematográficos. Ou podiam? Ouvi dizer que a Planetary
Cinema faz coisas impossíveis.
Sam abanou a cabeça, sem responder logo, depois disse:
— Neca. Você deve ter visto uma parte da fauna local. Há alguma por aí; não tanta que incomode.
— Escute aqui, Sam Heideman — interveio Ma; — se este planeta já foi descoberto por alguém,
como é que nunca ouvimos falar nele? Quanto tempo faz que foi descoberto e que quer dizer tudo
isto?
Sam sorriu ao responder:
— Um sujeito chamado Wilkins foi o autor da descoberta; isso há dez anos. Participou o achado ao
Conselho, mas antes que a coisa fosse divulgada, a Planetary Cinema soube da história e propôs ao
Conselho alugar o planeta a um preço astronômico, com a condição de que tudo ficasse em segredo.
Como não há nenhum mineral nem nada de valor por aqui e o solo não presta pra nada, o Conselho
aceitou os termos da proposta.
— Mas por que o segredo?
— Pra evitar visitantes curiosos e distrações à companhia, além de fazer uma surpresa aos
competidores. Todas as grandes companhias de cinema se espionam umas às outras para se
roubarem idéias. Aqui eles têm todo o espaço que quiserem para trabalhar em paz e em segredo.
— Que farão, agora que descobrimos esse segredo? — perguntei.
— Na certa vocês serão tratados como reis enquanto ficarem por aqui e os homens tratarão de
persuadi-lo a ser discreto. É quase certo que isso já lhe valeu um passe gratuito e vitalício para todas
as casas de espetáculos da Planetary Cinema.
Dizendo o que, foi até um gabinete e voltou trazendo uma bandeja com garrafas e copos em cima.
Ma e Ellen recusaram, mas eu e Sam tomamos duas cada um e a coisa era boa. Johnny e Miss
Ambers estavam do outro lado, num canto da tenda, sussurrando-se gravemente, de modo que não
os incomodamos, tanto mais que eu já dissera a Sam que Johnny não bebia.
O rapaz ainda segurava a mão da atriz e fitava-a nos olhos, como um cãozinho doente. Notei que
Ellen se virara, de molde a não ver a cena. Senti muito por ela, mas não havia nada que eu pudesse
fazer. Enfim, o acontecível acontece. E se não fosse por Ma...
Mas, notando que Ma se impacientava, eu disse que seria melhor voltarmos à nave e nos vestir mais
a capricho, já que iríamos ser tratados como reis. Depois podíamos trazê-la para mais perto.
Calculei que podíamos passar alguns dias em Sírio Nada. Sam rachou-se de rir ao ouvir como
tínhamos nomeado o planeta, após termos visto uma amostra da fauna local.
Depois eu gentilmente arranquei Johnny da estrela e conduzi-o para fora. Não foi fácil. Havia um
atordoamento, uma expressão de beatitude em seu rosto, e esquecera mesmo de fazer continência
quando lhe dirigi a palavra. Também não me chamara de “senhor”. Na verdade, não falara nada.
Nem ninguém de nós o fez, estrada acima.
Algo me palpitava na mente e não pude descobrir o que fosse. Havia algo errado, algo que não fazia
sentido.
Ma também estava aborrecida. Por fim, ouvi-a dizer:
— Pop, se eles querem mesmo conservar em segredo a existência deste lugar, será que não seriam
capazes de... humm... ?
— Não, não seriam — respondi, meio respondão. Mas não era aquilo o que me preocupava.
Baixei os olhos para a estrada nova e perfeita; havia nela algo que não gostei. Cruzei-a em diagonal,
até a guia, de onde continuei em linha reta, examinando a argila cinzenta do outro lado, mas nada
havia para se ver exceto outros orifícios e insetos como os que havia nos fundos do “Bon-Ton
Restaurant”.
Talvez não fossem baratas, a não ser que viessem com a companhia de cinema. Para fins práticos,
porém, podiam perfeitamente ser consideradas baratas. Isto é, se se pode dizer que baratas tenham
alguma finalidade prática. E ainda não se podia ignorar o fato de que não tivessem gravata,
propulsores ou penas. Eram apenas umas baratas comuns.
Saí fora do pavimento e, ladeando-o, tentei pisar uma ou duas; mas elas se esquivavam e metiam-se
em suas tocas. Velozes e vivazes.
Tornei a ganhar a rodovia e pus-me a caminhar ao lado de Ma, que perguntou:
— Que estava fazendo?
— Nada — respondi-lhe.
Ellen caminhava do outro lado de Ma, com uma expressão de estudada indiferença no rosto. Eu
podia calcular o que estava pensando e queria que houvesse algo que se pudesse fazer a respeito. Só
me ocorreu a idéia de passar uns tempos na Terra, após aquela jornada, e dar-lhe ocasião de
conhecer outros rapazes que a fizessem esquecer Johnny. Podia até encontrar um de que gostasse.
Johnny caminhava conosco, ainda mergulhado em seu transe. Caíra direitinho, e de improviso,
como sempre acontece a rapazes como ele. Talvez não fosse amor; só uma fascinação momentânea;
mas o fato é que naquele momento ele nem sabia em que planeta estava.
Transpúnhamos agora a primeira colina, e logo já não podíamos ser avistados da tenda de Sam.
— Pop, você viu alguma câmara cinematográfica por aí? — indagou Ma, de inopino.
— Não, mas esses troços custam caro; eles não as deixam instaladas por aí quando não estejam
sendo utilizadas.
À nossa frente surgiu a frente daquele restaurante. Ficava gozado de perfil. Nada à vista senão
aquilo, a estrada e os montes cinzentos.
Não havia nenhuma barata sobre a rua, e eu me dei conta de que ainda não vira nenhuma em cima
do pavimento. Parecia que nunca subiam para ele nem o atravessavam. E para que uma barata havia
de querer atravessar a rua? Para alcançar o outro lado?
Ainda algo me latejava na mente, algo que ainda fazia menos sentido que o resto.
Ia-se tornando cada vez mais forte e me fazendo tão maluco quanto ele próprio. Desejei tomar outro
gole. Sírio tombava no horizonte, mas ainda fazia bastante calor. Cheguei mesmo a desejar um gole
d’água.
Ma também parecia cansada.
— Vamos parar e descansar um pouco — comandei eu; — já fizemos quase metade do caminho.
Paramos. Bem em frente do Bon-Ton; ergui os olhos para a tabuleta e sorri amarelo.
— Johnny, quer entrar e pedir o jantar para nós? — gracejei. Após a continência, ele respondeu:
— Perfeitamente, senhor. — E pôs-se em marcha para a porta. Logo corou e fez alto. Dei uma
risada, mas abstive-me de maiores comentários.
Ma e Ellen estavam sentadas sobre a guia daquele trecho pavimentado.
Tornei a transpor a porta do falso restaurante e constatei que nada tinha se alterado desde a última
vez que eu lá estivera. Liso que nem vidro, por trás. A mesma barata (corto o pescoço se não seria a
mesma) ainda estava sentada ou em pé, como queiram, junto da mesma toca.
Saudei-a com um efusivo “olá”, que, entretanto, ela ignorou; pelo que tentei esmagá-la, mas a
danada foi mais rápida que eu. Percebi algo engraçado. Ela disparara para a toca no mesmo instante
em que eu tinha resolvido esmagá-la, antes mesmo que eu tivesse movido um só músculo!
Voltei a passar para a frente daquela frente e recostei-me. Era formidável para isso. Extraí um
charuto do bolso e começava a acendê-lo quando o fósforo me caiu dos dedos. Quase dei com o que
havia de errado em tudo aquilo.
Refiro-me a Sam Heideman.
— Ma — então falei, — Sam Heideman já não tinha... morrido?
Tanto bastou para que, num súbito, já não me achasse recostado àquela parede, que sumira, mas
estava, antes, estatelado no chão.
Ouvi Ma e Ellen lançarem o seu grito cada uma.
Ergui-me do chão argiloso. Ma e Ellen faziam o mesmo, pois, com o desaparecimento da guia em
que estavam, tinham ambas desabado ao solo sentadas. Johnny estava o seu tanto embatucado à
vista do fato, algo extraordinário, de a estrada desaparecer debaixo de seus pés fazendo-o ceder
algumas polegadas.
E eis que já não havia sinal de estrada ou restaurante. Só se viam os montes cinzentos e ondulosos.
E, isso mesmo, as baratas continuavam lá.
O tombo me doera e eu estava com raiva. Urgia descarregá-la em alguém e só tinha baratas
disponíveis. Elas não haviam desaparecido como o resto. Dei nova arremetida contra a mais
próxima, e falhei de novo. Dessa vez me ficou cristalinamente claro que ela se antecipara ao meu
gesto.
Ellen olhou para onde a estrada devia estar, depois para onde devia estar o restaurante e, a seguir,
para trás no rumo de onde vínhamos, como a imaginar se a tenda da Penny Arcade ainda estaria lá.
— Não está — eu disse.
Ma perguntou:
— Não está o quê?
— Não está lá — expliquei.
Ma faiscou os olhos sobre mim, antes de explodir:
— O que não está onde?
— A tenda — tornei, meio agastado. — A companhia de cinema. Tudo! E, sobretudo, Sam
Heideman. Há cinco anos, na cidade Lua, soubemos que tinha morrido. De modo que ele não estava
lá. Nem nada daquilo tudo. E no instante em que compreendi isto, eles tiraram tudo de sob nós.
— Eles? Quem é “eles”?
— Quer dizer “quem são eles”? — corrigi, mas o olhar com que Ma me olhou fez-me tremer. —
Não falemos mais aqui — continuei. — Primeiro tratemos de voltar para a nave quanto antes. É
capaz de nos guiar até ela, Johnny, mesmo sem a rua para orientação?
Ele fez que sim, deu ao diabo a continência e esqueceu-se do “senhor”. Então partimos em silêncio.
Não me preocupava que Johnny nos conduzisse de volta; ele estivera bem até entrarmos na tenda,
viera estudando o curso com a bússola de pulso.
Depois de passarmos o ponto em que a estrada terminaria, ficou mais fácil, porque já podíamos
seguir o nosso próprio rastro impresso em argila. Transpusemos a elevação do arbusto purpúreo e
dos pássaros a propulsão, agora sem pássaros nem arbustos.
Mas o Chatterling ainda estava lá, felizmente. Avistamo-lo desde a última elevação que
transpusemos e parecia intacto. Era como a vista do lar da gente; impressão que nos fez apertar o
passo.
Abri-lhe a porta e me afastei para o lado, a fim de que Ma e Ellen entrassem primeiro. Ma só estava
com um pé dentro, quando ouvimos uma voz que dizia:
— Adeus!
— Adeus — respondi. — E para sempre.
Empurrei Ma para dentro; quanto antes saíssemos dali, melhor. Entretanto, a voz nos disse ainda:
— Esperem! — E tinha em si mesma algo que efetivamente nos fez esperar. — Queremos explicar-
lhes algo para que não se vejam tentados a voltar aqui no futuro.
Eu não tinha nem ainda a mais pálida intenção de algum dia regressar àquele misérrimo planeta,
mas ainda assim repliquei, danado da vida:
— Por que não?
— Porque a civilização de vocês é incompatível com a nossa. Estudamos suas mentes para chegar
a sabê-lo. Projetamos imagens baseados nas imagens que encontramos na mente de vocês, para o
fim de estudar sua reação a elas. Nossas primeiras imagens, nossas primeiras projeções de
pensamentos, saíram meio confusas. Mas compreendemos a mentalidade de vocês no instante em
que chegaram ao termo do passeio que deram. E pudemos projetar outros seres semelhantes a
vocês.
— Sam Heideman vá lá — tornei eu, — mas e aquela da... humm... mulher? Não podia ter sido
achada na mente de nenhum de nós, já que não a conhecíamos!
— Isso foi uma montagem, algo que vocês chamariam de idealização. Mas isso não vem ao caso.
Ao estudá-los, apuramos que sua civilização diz respeito a coisas, ao passo que a nossa diz respeito
a pensamentos. Portanto, nada temos para oferecer uns aos outros. Um intercâmbio não nos traria
nenhum bem, ao passo que até poderia ser perigoso. Nosso planeta não conta com recursos
materiais que interessem à sua espécie.
Nada opus a isso, espraiando um derradeiro olhar por aquela monótona argila ondulante que não me
parecia capaz de produzir outra coisa que não fossem arbustos feiosos e bizarros. Não parecia
prestar para mais nada. Quanto a minérios, nem pedregulho eu vi.
— Tem toda a razão — repliquei. — Qualquer planeta que não dê mais que arbustos e baratas não
nos interessa mesmo. Assim sendo. . . — E nesse instante tive um estalo. — Epa! Espere aí; deve
haver algo além disso, se não, com quem estarei falando?
— Está falando — respondeu a voz — com o que chama de baratas, o que, aliás, sugere outro ponto
em que se afirma a nossa incompatibilidade. Para ser mais precisa, está falando com uma voz
ideoprojetada, mas somos nós que a projetamos. E deixe-me tornar clara uma coisa: fisicamente
vocês são mais repugnantes para nós do que nós para vocês.
Baixei os olhos e vi-as, eram três, prontas para enfiarem-se nas tocas ao menor gesto meu.
Já dentro da nave outra vez, eu disse a Johnny que desse à partida com destino à Terra.
Ele me prestou continência, respondeu que “sim, senhor”, meteu-se na cabine do piloto e fechou a
porta. Não tornou a sair de lá enquanto não estivéssemos em rota automática, Sírio a definhar às
nossas costas.
Ellen tinha se recolhido ao camarote. Eu e Ma jogávamos cartas.
— Posso considerar-me dispensado, senhor? — perguntou Johnny, e rumou empertigado para o
alojamento quando me ouviu dizer que “claro!”.
Alguns momentos depois, eu e Ma também nos recolhemos. E logo começamos a ouvir ruídos
estranhos. Levantei-me para investigar e investiguei.
Logo voltei sorrindo.
— Está tudo em ordem, Ma — relatei. — É Johnny Lane, bêbedo como uma cabra! — E, no ardor
do meu entusiasmo, despedi-lhe um tabefe nos fundilhos.
— Ui! — gemeu ela. — Seu grandessíssimo filho da mãe! — É que não tinha se refeito da queda
ainda. — Que há de mais que Johnny esteja bêbedo? Você está também?
— Não — admiti, talvez com tristeza. — Mas, Ma, considere que ele me mandou para o inferno. E
sem nem mesmo fazer continência! A mim, o proprietário da nave!
Ma limitava-se a fitar-me sem entender. As mulheres às vezes são atiladas mas, em compensação,
outras vezes são lindamente obtusas.
— É que ele não vai se embriagar sempre — expliquei eu. — Estamos vivendo uma ocasião
especial. Você não entende o que aconteceu ao orgulho e à dignidade dele?
— Quer dizer que porque aquilo que... ?
— Por ter-se apaixonado pela ideoprojeção de uma barata — concluí o esclarecimento. — Ou, pelo
menos, ele assim pensa. Tem de embriagar-se uma vez para passar a borracha em cima disso; e
daqui por diante, depois que voltar à sobriedade, será humano. Aposto o que for nisto. E também
aposto que, uma vez humanizado, ele vai prestar mais atenção a Ellen e notar que é bonita. Aposto
que estará caidinho por ela antes mesmo de chegarmos à Terra. Vou arranjar uma garrafa e
beberemos a isso. E a Sírio Nada!
Ao menos uma vez na vida acertei em cheio. Johnny e Ellen ficaram noivos quando ainda nem
estávamos próximos bastante da Terra para começar a desacelerar.

O NOVATO

— Papa, seres humanos são reais?


— Credo, filho; nem isso se aprende nas aulas de Astarote? Então pra que é que lhes pago dez B. T.
U. por semestre?
— Astarote fala nisso, Papa. Mas não dá pra entender muita coisa do que ele diz.
— Humm-m-m... Astarote é mesmo um tanto ou quanto... Bem, que foi que ele disse?
— Que eles são e nós não somos; que só existimos porque eles acreditam em nós; que somos
apenas entidades fic... fic... não-sei-quê. ..
— Fictícias.
— Isso, Papaiê! Entidades fictícias produzidas pela imaginação deles.
— E onde é que está a dificuldade? Isso não resolve sua dúvida?
— Ora, Pá; se não somos reais, por que então estamos aqui? Como podemos...?
— Tá legal, guri; acho que posso dispor de um tempinho tentando explicar isso pra você. Mas antes
de mais nada não se deixe amolar por questõezinhas como essa. São puramente acadêmicas.
— Que quer dizer “acadêmico”?
— Algo que não interessa de verdade. Coisa que a gente tem de aprender só pra não acabar
ignorante como essas dríades cretinas. O que você deve mesmo levar a sério e tem de estudar com
afinco, são aquelas lições de Lebalome e Marduk.
— Quer dizer magia vermelha, possessão e...?
— Isso mesmo. Especialmente magia vermelha, que é o seu campo, visto ser você um
elemento ígneo, compreendeu? Mas voltando a esse troço de realidade, há dois tipos de... humm...
troços: mente e matéria. Está mais claro agora?
— Tá, Pá.
— Bem, a mente é muito mais excelsa que a matéria, é ou não é? Constitui um plano superior de
existência. Agora, coisas como pedras e... humm... como pedras, são matéria pura; esse é o tipo de
existência mais pé-de-chinelo que existe. Os seres humanos estão como que a meio caminho das
duas. Eles fazem parte de ambas. Seus corpos são materiais como as pedras, e, todavia, têm mentes
que os governam. Isso os coloca no centro da escala, em matéria de importância, compreendido até
aqui?
— Acho que sim, Pá; só que. . .
— Não interrompa, menino!... Depois, vem a mais sublime forma de existência que é... humm... a
nossa. Elementos da natureza, deuses e mitos de toda espécie; fadas, sereias, sacis e lobisomens. . .
Enfim, todo esse mundaréu de entidades que se vê por aqui; somos superiores.
— Mas, se não somos nem reais, como...?
— Silêncio aí! Somos superiores porque somos pensamento puro, compreendeu agora? Nossa
substância é puramente mental, guri. Assim como os seres humanos evoluíram a começar da
matéria impensante, nós evoluímos a partir deles. Eles nos conceberam. Morou?
— Sei não, Pá. E se eles deixarem de acreditar em nós?
— Nunca o farão... completamente. Sempre haverá entre eles alguns que crêem, e isso é quanto
basta. Claro que quanto maior números deles crer em nós, tanto mais fortes seremos
individualmente. Veja, por exemplo, esses rapazes antigos como Ammon-Ra e Bel-Marduk; estão
assim fracotes e mirradinhos porque não têm verdadeiros seguidores hoje em dia. E eram
grandes. Lembro-me de quando Bel-Marduk media seu peso em harpias. Agora, olhe só para ele!
Anda de bengala. E Thor, então! Rapaz, você precisava ouvi-lo no meio de uma baderna, apenas há
alguns séculos!
— Mas, Papa, e quando ninguém mais acreditar neles? Aí eles morrem?
— Hum-m-m... Teoricamente, sim. Mas há uma coisa que nos salva. Existem seres humanos
capazes de crer em tudo. Ou, pelo menos, que não chegam realmente a descrer de nada. Esse grupo
é uma espécie de núcleo que mantém as coisas juntas, coesas, no lugar. Por mais desacreditada que
uma crença esteja, sempre se mantém de pé graças a umas pitadas de dúvida.
— Mas, Papa, e se eles conceberem uma nova entidade mitológica? Ela passaria a existir aqui entre
nós?
— Mas claro, guri! Foi assim que todos viemos parar aqui, num ou noutro tempo. Veja só esses
“poltergeists”, por exemplo. São uns adventícios. E todo esse ectoplasma que flutua por aí, é coisa
nova. E... bem, veja esse enorme garoto que é Paul Bunyan; não faz mais de um século que anda
por aqui; não é mais velho que você. E uma batelada de outros. Claro é que primeiro precisam ser
invocados para poderem dar as caras aqui; mas isso sempre acaba acontecendo, mais dia, menos
dia.
— Puxa, Pá, ‘brigado. O senhor é muito mais fácil de entender que Astarote. Ele tem mania de usar
palavras difíceis como “transmogrificação”, “super-realização” e por aí afora.
— Tá bem, guri; agora vá brincar lá fora. E não me volte pra casa com aqueles
hidroelementozinhos, hem! Isto aqui fica que é só vapor e a gente não enxerga mais nada! Além do
mais, estou esperando uma visita importantíssima.
— Quem, Papa?
— Darveth, o maioral dos gênios do fogo. O chefão em pessoa.
Por isso quero que você vá lá pra fora brincar.
— Ah, Pá; eu não posso...?
— Que esperança; ele quer conversar comigo sobre coisa muito importante. Ele pôs um ser humano
sob seu poder, e isso é assunto melindroso.
— Que quer dizer? Que vai fazer com ele?
— Induzi-lo a provocar incêndios lá por cima, é claro. O que Darveth pretende fazer com esse rapaz
é qualquer coisa de notável. Diz que ainda vai ser melhor que Nero e a vaca de Mrs. O’Leary
juntos. Sim senhor, coisa graúda desta vez.
— Xi, e eu posso ver?
— Mais tarde, com certeza. Não há nada para ver por ora. O rapaz ainda não passa de um bebê. Mas
Darveth é previdente. Em pequeno torce-se o pepino, diz o ditado. Vai levar anos trabalhá-lo; em
compensação, terminada a obra, vai ser quente!
— E aí eu posso olhar?
— Claro que sim. Agora vá brincar... E não chegue perto daqueles gigantes de gelo!
— Tá, Pá.

***
Levou vinte e dois anos para ser pego. Conseguiu esquivar-se todo esse tempo, mas por fim — ca-
ta-pimba!
Oh, a tendência sempre houve em estado latente, desde que Wally Smith era bebê; desde... Ora,
desde que ele se lembrava. Desde que se pusera em pé nas rechonchudas perninhas, com as mãos
presas a duas travessas do cercado, e observara o pai tomar um fósforo, riscá-lo na sola do sapato e
chegar lume ao cachimbo.
Gozadas aquelas nuvens de fumaça que o velho tirava. Eram e logo não eram mais; como fantasmas
branquicentos. Entretanto, isso só lhe parecia moderadamente interessante.
O que o fazia realmente arregalar os olhos, amplos, redondos e admirativos, era a chama.
Aquela coisa que dançava na cabeça do fósforo. Fulgurante. Em perpétua mutação de forma.
Espanto amarelo-rubro-anil. Mágica beleza!
Uma de suas mãozinhas roliças grudava-se à travessa do cercadinho e a outra estendia-se para a
flama.
— Dá, dá — pedia.
E o pai, segurando o fósforo a uma distância livre de riscos, sorria-lhe na sua orgulhosa e cega
condição de pai, jamais nada suspeitando.
— Bonito, hem, filhote? Mas não pode botar o dedinho, senão queima.
Sim, Wally, fogo queima.
Wally Smith já sabia um bocado de coisas a respeito do fogo, quando entrou para a escola. Sabia
que queimava. Aprendera-o por experiência. Que achara dolorosa, mas não amarga. A marca do
braço não o deixava esquecer. A cicatriz branca que aparecia sempre que arregaçava a manga.
Marcara-o também de outro modo. Nos olhos.
Aquilo também lhe acontecera em tenra infância. O Sol, o Sol glorioso, o criminoso Sol.
Observava-o também quando a mãe o pusera no cercado fora da casa. Fitou-o com uma
fascinação que quase o deixou sem fôlego, até doerem-lhe os olhos. Interrompeu-se, para esfregá-
los e tornou a olhá-lo tão logo pôde outra vez, estendendo para ele os bracinhos. Sabia que seria
fogo, chama, coisa idêntica à que dançava à ponta dos fósforos do pai. O fogo. Adorava-o.
Daí que, ainda criança, usasse óculos. Condenado à eterna miopia, as lentes eram espessíssimas.
O pessoal da junta de alistamento dera uma olhada no calibre delas e nem mais o deixaram fazer
exame médico algum. Carimbaram-no isento e o mandaram de volta a casa.
Foi duro, pois ele queria ser incorporado. Assistira a uma fita de atualidades que mostrava os novos
lança-chamas do exército. Se tão-somente chegasse a manobrar um deles...!
Mas esse desejo era subconsciente; o rapaz não sabia ser essa a principal razão por que desejava
tanto ver-se dentro do uniforme. Isso foi no outono de 41, quando ainda não estávamos em guerra.
Depois, passado dezembro, o mesmo motivo ainda estava entre as razões de querer sentar praça,
mas não era a mais forte. Wally Smith era bom patriota; e isso ainda valia mais que chegar a ser
bom piromaníaco.
Enfim, venceu a piromania. Ou pensou que a tivesse vencido. O mais que dela subsistisse, estaria
sepultado fundo nalguma região da mente que ele encerrara debaixo de um categórico non plus
ultra.
Aquele seu ardor por um lança-chamas, entretanto, perturbou-o um bocado. Aí deu-se aquilo de
Pearl Harbor e Wally Smith acareou-se consigo mesmo a fim de descobrir se seria só patriotismo o
que lhe inspirava o desejo de liquidar japoneses, ou se aquele ardor pelo lança-chamas tinha parte
nisso.
Enquanto meditava no problema, as coisas esquentaram nas Filipinas e os nipônicos se transladaram
de Malaia para Singapura; já havia balsas em forma de U para desembarque de artilharia pesada,
como lança-chamas e... etc. e, tudo bem considerado, começou a parecer-lhe que seu país o
necessitava. Instalou-se nele uma tal ânsia de lutar que o levou a nem fazer maior cabedal de que
fosse ou não fruto de pirômanos impulsos — era, acima de tudo, patriotismo. Caso assim
entendesse, poderia, ao depois, submetê-la a uma análise psiquiátrica em regra.
Tentou três postos de recrutamento, e foi recusado por todos. Então a fábrica em que trabalhava
mudou a natureza de suas atividades e... Mas receio que esteja antecipando as coisas.
Quando o infante Wally Smith contava sete anos, arrastaram-no ao psiquiatra.
— Exato — confirmou o médico, — piromania é o que é. Ou, quando não, uma tendência bastante
acentuada para isso.
— E... humm... qual a causa, Doutor?
Todos já devem ter visto esse psiquiatra várias vezes estampado em anúncios de fermento. O certo é
que vinha identificado — talvez corretamente — como um famoso especialista de Viena. Lembram-
se de quando apareceu por aí aquela enorme fila de famosos especialistas de Viena que advogavam
o consumo de fermento para tudo, desde depravação moral até unha encravada? Mas claro que isso
foi antes que os nazistas passassem o rolo compressor em cima da Áustria e o sangue começasse a
correr que nem vinho. Bem, façam uma imagem mental composta da dinastia vienense do fermento
e terão uma idéia de como o tal psiquiatra era impressionante.
— E... humm... qual a causa, Doutor?
— Instabilidade emocional, Mr. Smith. Piromania não quer dizer loucura, entenda isto. Desde que
permaneça... humm... sob controle. É uma neurose compulsiva, resultante de instabilidade emocio-
nal. Quanto às razões de uma neurose assumir essa via de expressão, de preferência a qualquer
outra, explica-se pelo fato de que alguma vez na infância o paciente teria sofrido um trauma
psíquico que. . .
— Um quê, Doutor?
— Trauma. Um abalo da psique... que vem a ser a mente. Decerto, no caso de piromania, o
sofrimento causado por uma séria queimadura. Já ouviu o velho adágio, Mr. Smith: “Criança uma
vez queimada não se chega a fogo”?
E nesse ponto o médico riu, condescendente, e agitou a vara de condão... digo, o pincenez preso a
um fio de seda preta, num gesto de exorcismo.
— A verdade — prosseguiu — é justamente o contrário. A criança uma vez queimada adora fogo.
Uma vez o jovem Wally se terá queimado, Mr. Smith?
— Ora, sim, Doutor. Na idade de quatro anos ele se apoderou de uns fósforos...
Ali estava a cicatriz, bem à vista, era seu braço, Doutor. Não notara ainda? E com certeza criança
uma vez queimada adora fogo; ou não se teria queimado, para princípio de conversa.
O clínico não perguntou pelos eventuais sintomas anteriores à primeira queimadura, mas, também,
só iria censurá-lo, caso a Mr. Smith tivesse ocorrido enumerá-los. Afirmara que tal atração pelo
fogo é perfeitamente normal e que só atinge proporções de anormalidade após o episódio da
primeira queima. E quando um psiquiatra se lança na trilha dos traumas, consegue logo explicar tais
discrepanciazinhas sem maiores dificuldades.
De modo que o médico, após encontrar a causa, curou-o. Ponto final.
— Agora, Darveth?
— Não ainda, vou esperar mais.
— Mas seria interessante ver aquela escola ser destruída pelo fogo. Não seria difícil ateá-lo e as
escadas de incêndio não são lá essas coisas.
— Neca. Ainda vou esperar mais.
— Quer dizer que vamos ter coisa melhor que isso mais para diante?
— Justamente.
— Tem certeza de que até lá ele não vai se libertar?
— Libertar-se, esse aí?!

— Hora de levantar, Wally.


— Tá bem, Mãe.
Sentou-se na cama, cabeleira desgrenhada, e levou a mão em direção dos óculos. Então disse:
— Mãe, tive um daqueles sonhos, outra vez. A criatura toda de fogo conversando com uma outra
parecida mas menor. O assunto era o prédio da escola e...
— Wally, o médico o proibiu de falar nesses sonhos. A não ser com ele. É que ao falar sobre eles
você os imprime na mente, recorda-os e medita a respeito; o que o leva de novo a sonhá-los.
Entende, filho?
— Sim, mas por que não posso contá-los à senhora?
— Porque são ordens do médico, Wally. Vamos, diga o que fez ontem na escola. Outro cem de
aritmética?
É óbvio que o psiquiatra se interessou muitíssimo por aqueles sonhos; sonhos, aliás, são o passadio
dessa gente. Só os achou confusos e desconexos. E não era para menos. Imaginem um garotinho de
sete anos tentando contar o enredo de um filme que viu! Uma embrulhada era o que era.
— ... e daí a enorme coisa amarela como que... bom, acho que não estava muito nessa hora. Depois
o grandalhão, que era maior que o outro e mais vermelho também, dizia pra ele alguma coisa de
fisgar e libertar, daí...
Ali sentado na beiradinha do sofá, fitando o médico através de suas lentes grossas, retorcia as mãos
e arregalava os olhos ao narrar. Só não se fazia entender.
— Meu rapaz, quando for dormir hoje à noite, procure pensar em alguma coisa agradável. Algo de
que você goste mesmo muito, como por exemplo... humm...
— Uma grande fogueira!
— Não! Eu estava pensando em qualquer coisa como jogar bola ou andar de patins!
Passaram a vigiá-lo atentamente. Afastaram-no sobretudo de fósforos e fogo Seus pais substituíram
o fogão a gás que tinham em casa por um elétrico que estava acima de suas posses. E considerando
no perigo dos fósforos, seu pai chegou mesmo a deixar o hábito do fumo; de modo que, com a
economia do tabaco, pagou o fogão e manteve-se o equilíbrio orçamentário da família.
Isso mesmo estava curado, sem a mais mínima dúvida. O psiquiatra ficou com os louros da proeza,
não menos que com os lucros. Dissessem o que dissessem, os sintomas visíveis mais perigosos
desapareceram. Ainda tinha fascínio pelo fogo, mas qual o garoto que não se deixa empolgar por
bombas de incêndio?
Cresceu e ficou taludo. Alto, apesar de um tanto desagradável à vista. A compleição ideal de um
cestobolista (jogador de basquete), só que os maus olhos não lhe permitiam jogar.
Não fumava e, após uma ou outra experiência, decretou que tampouco beberia. A bebida tendia a
debilitar a barreira daquele non plus ultra com que interditara um perigoso desvão da mente. Certa
noite quase saíra a tacar fogo na fábrica, em que trabalhava fazia pouco como encarregado de
expedição. Por um triz!

— Agora, Darveth?
— Ainda não.
— Mas, para que esperar mais tempo? O edifício é dos grandes, feito de madeira e está em ruínas!
Considere que é uma fábrica de celulóide! E celulóide... Já viu celulóide arder, não já, Darveth?
— Já, e é bonito. Porém...
— Acha que ainda teremos coisa melhor pela frente?
— Não acho, sei.

Wally Smith levantou-se com uma terrível ressaca, na manhã seguinte, e deu com uma caixa de
fósforos num de seus bolsos. Não estava ali quando começara a beber na véspera, e também não se
lembrava quando nem de onde a pegara.
Mas sentiu tremeliques só de pensar que a tinha comprado. E a simples consideração no que podia
ter em mente quando a enfiara no bolso convizinhou-o da histeria. Sabia que estivera a pique de
fazer alguma, e tinha idéia do que fosse.
Assentou, pois, consigo nunca mais beber em circunstância alguma. Sem a bebida para atrapalhar,
contava poder dominar-se. Desde que pudesse dominar a mente consciente, não seria um pirômano,
de jeito nenhum, ora essa! Pois então o psiquiatra já não o tinha curado na infância? Claro que
tinha!
Mas, mesmo assim, começava a exibir um olhar obsessivo. Que felizmente quase não aparecia,
graças aos óculos. Mas Dot conseguira notá-lo. Dot Wendler, sua garota.
E embora Dot não o soubesse, aquela noite viu desabar outra tragédia em sua vida, pois Wally
estivera a ponto de propor-lhe casamento; agora, porém...
Seria justo, matutava ele, pedir a uma fulana como Dot que o desposasse, em tais circunstâncias?
Quase decidiu deixar de vê-la e parar de torturar-se. Mas, qual! isso ele não podia fazer. Continuou,
pois, a encontrá-la mas não lhe fez proposta alguma. Não atou nem desatou.
E veio aquele 7 de setembro de 1941; na manhã de 9 ele tentou alistar-se, em três juntas, e viu-se
recusado por unanimidade.
Daí que Dot envidasse esforços por consolá-lo, conquanto, no fundo, estivesse contente.
— Mas, Wally, estou certa que a fábrica onde você trabalha vai se pôr a serviço da defesa. Todas as
outras estão fazendo isso! Então você será útil do mesmo modo. O país precisa de armas e... muni-
ções e matéria-prima, tanto quanto de soldados. Além do mais... — Ia dizer que também era ocasião
de o jovem assentar a vida e desposá-la, mas claro que não disse nada; tinha graça!
No começo de janeiro viu-se que ela estava certa. Dispensaram-no do trabalho por algum tempo até
a fábrica passar pelas mudanças necessárias. Duas semanas foi o que nisso se levou. A primeira foi
das mais felizes, pois Dot estava de licença, e andaram juntos por todo canto. A licença dela não era
remunerada; a jovem a tirara só para estar com ele; mas não lhe contou isso, claro.
Depois, ao fim das duas ditas semanas, ele foi convidado a reassumir seu posto e funções. Fizeram a
mudança com rapidez extrema; uma indústria de produtos químicos não requer mais mudanças e
reaparelhamentos que uma de metais.
Passavam agora a nitratar tolueno. Ao tolueno assim tratado chamamos trinitrotolueno, caso haja
tempo. Quando não, TNT designa-o igualmente bem.

— Agora, Darveth?
— Agora!

Ao meio-dia, Wally não sabia dizer o que havia de errado consigo, mas viu que já não estava tão em
forma mentalmente. Estava mal e piorava.
Saiu para a plataforma de carga e descarga, em frente de um ramal ferroviário, e sentou-se para
almoçar. Havia uns doze vagões ali e dez homens esfalfavam-se em plena hora de almoço para des-
carregar um deles. Coisas que vinham em sacos aparentemente pesados.
— Que é isso aí? — gritou Wally a um dos homens.
— Cimento. Pra proteção contra o fogo.
— Ah — disse Wally. — E quando vão começar as obras?
O homem depôs o saco e passou pela testa as costas de uma mão encardida.
— Amanhã. Sabe como eles fazem? — perguntou sorridente. — Derrubam uma parede por vez e
despejam outra de cimento no lugar. E a todo vapor.
— Hum-m-m — murmurou Wally. — Todos esses carros estão carregados de cimento?
— Não, só este aqui. Os outros só têm produtos químicos e coisas assim. Arre, eu vou me sentir
bem melhor quando esse troço acabar. Isso fica pior que o Black Tom na última guerra se acontecer
alguma coisa errada na semana. Só o que está aí nesses carros, se explodisse, dava pra botar fogo
até naquelas refinarias do outro lado da linha do trem. E sabe o que tem lá do outro lado?
— Sei — disse Wally. — Verdade que puseram lá muitos guardas e tudo, mas...
— Mas... — tornou o homem. — Vá lá que a gente precise de munições com urgência, mas esse
negócio anda muito concentrado por aqui. Não é lugar pra se brincar com trinitro, seja como for.
Tão perto do resto do material! Se essa usina fosse pelos ares, mesmo com toda a precaução que
estão tomando, isso iria desencadear uma série de... — Mas nesse ponto o homem viu de perto o
rosto e a expressão de Wally Smith. — ... Bom, acho que já é prever desgraças demais. Não espalhe
o que eu disse aí da usina.
Wally tranqüilizou-o com um solene aceno de cabeça.
O operário inclinou-se para reerguer o saco, mas mudou de idéia, dizendo ainda:
— Precauções eles estão tomando, mas algum espião desgraçado podia perder a guerra por nós.
Com um pouco de sorte. Digo, se esse negócio se espalhar por aí; a quantidade desses troços aí é
suficiente pra... bom, pra chacoalhar tudo daqui até o Pacífico, rapaz!
— E — interveio Wally — na certa muita gente morreria.
— Ora gente! Podia ser que umas mil pessoas morressem, e daí? Mais que isso vai de embrulho
todo dia só na frente russa! Mas, Wally, puxa vida! eu acho que falo demais!
Levou o saco de cimento às costas e entrou no edifício.
Wally acabou de engolir o almoço, com ar meditativo, amassou o papel que o envolvia e lançou-o
na lata de refugos. Passou os olhos pelo relógio de pulso e viu que ainda tinha dez minutos. Tornou
a sentar-se na borda da plataforma.
Sabia o que devia fazer: pedir a conta. Mesmo que houvesse uma chance em um milhão de que...
Mas não haveria chance, nem em um milhão. Raios, dizia-se, estava curado ou não? Estava, claro
que estava. E precisavam dele ali; ele era importante, de certo modo.
Mas, olhe aqui, só por precaução convinha ir ver aquele psiquiatra outra vez. O sujeito ainda estava
na cidade. Conte a história toda e ouça o que ele disser. Se aconselhar a pedir a conta...
E podia ligar para ele agora mesmo, lá do escritório; marcando consulta para esta mesma noite. Mas
não, pelo telefone do escritório não podia ser. Havia um telefone no pátio, que funcionava à base de
moedas. Teria algum níquel? Sim, logo se lembrou que tinha.
Ergueu-se, espetou dois dedos no bolsinho dos trocados e extraiu-lhe as moedas. Só quatro pennies,
quando antes havia um níquel inteiro?! Foi ao outro bolso em que sentiu a mão como paralisar-se.
Seus dedos tocaram em papelão; e papelão em forma de caixa de fósforos. Mal ousando respirar,
deixou que os dedos explorassem aquele objeto estranho em seu bolso. Não havia dúvida, era
mesmo uma caixa de fósforos de segurança, cheia, e ainda havia outra debaixo dela! E não
custavam um penny duas caixas... o penny daquele níquel do qual só lhe ficara em troco quatro
cents?
Mas não as tinha posto ali. Jamais comprava nem carregava fósforos. Ele não tinha...
Ou teria?
É que agora se lembrava da coisa esquisita que lhe acontecera pela manhã, quando viera a caminho
do trabalho. Aquela sensação engraçada que sentiu quando, com surpresa, se viu na esquina das ruas
Grant e Wheeler, um quarteirão além da fábrica; e nem se lembrava de tê-lo percorrido.
Estava ficando distraído, dissera-se. Sonhando acordado. Mas havia lojas ao longo daquela quadra,
lojas das que vendem fósforos!
A gente podia se distrair a ponto de andar um quarteirão a mais, mas podia-se lá efetuar uma
compra, uma compra que podia ter conseqüências as mais funestas, sem nem mesmo dar por isso?
E se podia comprar fósforos inconscientemente, como não haveria de poder usá-los?
Talvez isso acontecesse antes mesmo de poder dar o fora dali!
Rápido, Wally, enquanto ainda sabe o que faz, enquanto ainda pode...
Extraiu as caixinhas do bolso e fê-las correr para o interior da lata de refugos.
Depois, com passo apressado, uma expressão dura no rosto pálido, tornou para dentro do edifício,
desceu o longo corredor que acabava na expedição e entrou.
— Mr. Davis, eu me demito — declarou.
O homem calvo olhou-o desde a escrivaninha, com uma leve expressão de surpresa na face.
— Wally, o que foi? Aconteceu alguma coisa ou... Você está bem?
Wally, procurando recompor-se e parecer natural, disse:
— Eu... só vim pedir a minha conta, Mr. Davis. Não posso explicar mais. — E voltou-se como para
sair.
— Mas, Wally, você não pode fazer isso. Se já estamos com falta de pessoal! E você conhece o seu
departamento. Levaria semanas treinar alguém para substituí-lo. Você tem que nos dar aviso prévio!
Uma semana, no mínimo; pra podermos arranjar outro que...
— Não. Eu paro por aqui mesmo. Preciso...
— Mas... Ora, Wally, isso é deserção. Você é necessário aqui. Isto aqui é tão importante quanto... a
frente de Bataan. Esta fábrica é tão importante quanto uma frota inteira de navios no Pacífico. Você
sabe o que fazemos aqui. E... Por que essa demissão?
— Eu... Eu só estou pedindo a conta, mais nada.
O homem calvo ergueu-se de trás da escrivaninha, com uma expressão dura no olhar. Era um pouco
mais baixo que Wally, mas nesse momento parecia maior.
— Você tem que me dizer o que está por trás disso — falou ele, — senão eu... — E já dava volta à
mesa, com os punhos cerrados.
Wally recuou um passo, dizendo:
— Ouça, Mr. Davis, o senhor não compreenderia. Não é que eu queira sair. Mas preciso!

— Ei, quedê o Darveth? Tragam Darveth aqui!


— Ele está lá do outro lado, batendo um papo com Apoio. O grego está vendo se o convence a
deixar o páreo, porque a Grécia está do lado da América e deseja que os aliados ganhem, mas é que
Apoio e o resto deles todos não têm força nem pra...
— Psiu! quieto aí!... Ei, Darveth!
— Eu!
— Aquele seu piromaníaco! Ele está querendo falar. Se ele fizer isso vão trancá-lo num
manicômio e então ele não poderia mais...
— Bico calado; já morei.
— Urra! Quer dizer que você vai soltar. . .?
— Psiu! Quero me concentrar. Ahá, fisguei-o.

— Escute, Mr. Davis, eu... eu não quis dizer o que disse. Estava com uma dor de cabeça muito
grande; não conseguia nem pensar direito e não sabia o que estava dizendo. Eu só estava querendo
dizer alguma coisa que me ajudasse a sair daqui logo...
— Ah, bom, isso é diferente, Wally. Mas por que pedir demissão só por causa de uma dor de
cabeça? Perfeitamente, largue agora e vá consultar seu médico. Mas trate de voltar... hoje, amanhã
ou na semana que vem. Assim que esteja bom de novo. Rapaz, não se pede demissão só para ir pra
casa por motivo de doença!
— Está bem, Mr. Davis. Desculpe se dei essa impressão. Não podia nem pensar direito. Volto logo
que puder. Talvez hoje mesmo.
Muito bem, Wally, você o driblou direitinho. Diga-lhe que irá ver um médico, isso lhe será pretexto
para uma escapada. Para comprar fósforos, pois já não pode recuperar os que jogou fora. Não, sem
chamar atenção.
Você vai sair e obter mais fósforos; e já sabe o que fará depois com eles; não, Wally? Vai sacrificar
umas mil vidas, vários bilhões de dólares em materiais e um tempo que seria precioso para o pro-
grama de armamento, mas vai ser uma bonita fogueira, Wally. Todo o céu se tornará vermelho que
nem sangue!
Diga a ele...
— Ouça, Mr. Davis, já tive dessas dores de cabeça antes. São doloridas pra valer enquanto duram,
mas passam em poucas horas.
Olhe, posso voltar às cinco e trabalhar quatro horas pra compensar minha saída. De acordo?
— Claro, ué... Se estiver se sentindo bem na ocasião. Estamos atrasados, e qualquer horinha que
você puder acrescentar já ajuda.
— Obrigado, Mr. Davis. Até logo.

— Belo trabalho, Darveth! E de noite ainda será melhor.


— De noite sempre é melhor.
— Rapaz! Hei de ficar acordado pra ver. Lembra-se de Chicago? E de Black Tom? E de Roma?
— Isto vai ser superior a tudo.
— Mas esses gregos, Hermes, Ulisses e a corja toda, será que não vão se juntar contra nós pra tentar
impedir...? Pode ser até que aliciem algumas personagens lendárias de outras terras. Previu isso,
Darveth?
— Bah! ninguém bota suficiente fé nesses palhaços pra terem algum poder. Posso acabar com
todos eles com um pé nas costas. E veja quem pode nos ajudar, se for preciso: Siegfried, Sugimoto
e toda essa turma.
— Sem contar os romanos.
— Os romanos? Não, eles não têm interesse nesta guerra. Não vão muito com a cara do Mussolini.
Mas, não; não vamos ter problemas. Qualquer dos meus pequenos daria conta de toda
essa caterva.
— Ótimo então. Reserve-me lugar entre as numeradas, Darveth.

A noite foi estranha. Às sete em ponto, quando já fazia duas horas que voltara ao trabalho,
começava a escurecer. E, para Wally Smith, escuridão era coisa estranha.
Sabia, com apenas parte da mente, que estava trabalhando como sempre trabalhava. Sabia que
conversava e gracejava com os companheiros de turma. Homens que conhecia bem, pois já muitas
vezes trabalhara em companhia deles, em horas extras que fizera.
Seu corpo trabalhava sem intervenção da vontade. Apanhava o que devia apanhar e punha onde
tinha de ser posto, preenchia fichas, memorandos e notas de entrega. Era como se suas mãos
trabalhassem automaticamente e sua voz falasse por si mesma.
Havia outra parte de Wally Smith, que devia ser a sua parte real. Parecia estar-lhe a alguma
distância mais atrás, vigiando-lhe os movimentos do corpo e ouvindo-lhe a voz falar. Um Wally
Smith à beira de um abismo de horror. E agora já sabia. Caíra a barreira e ele já sabia tudo sobre
Darveth.
E sabia que às nove horas, quando saísse do edifício, passaria pelo lugar onde deixara aquele monte
de refugos altamente inflamáveis; algo capaz de pegar fogo à menor faísca, cujas chamas subiriam
alto e comunicariam fogo à parede de trás antes mesmo que alguém notasse. E atrás daquela
parede!...
Só havia ainda duas coisas que tinha de fazer. Desligar o sistema de irrigação automática e riscar
um fósforo.
Um fósforo de chama amarela, depois o inferno rubro de um fogo devastador! Um verdadeiro
holocausto! Fogo que não se apagasse, uma vez encetado. Edifício após edifício transfeitos em
chamas rubras; corpos carbonizados, homens, já mortos ou aturdidos pelas explosões sucessivas,
sendo fritos num inferno flamejante!
Um embrulho, a mente de Wally Smith! Visões de pesadelos, familiares, como lembrados de sonhos
da infância. Seres fantásticos que nunca pudera identificar, em criança. Mas agora sabia, vagamente
ao menos, quem e que eram eles. Figuras mitológicas e lendárias. Entidades inexistentes.
Mas aquilo existia, de algum modo, no plano daquele pesadelo.
Chegava mesmo a ouvi-los; não as vozes, mas os pensamentos expressos sem nenhuma linguagem.
Às vezes nomes, que eram os mesmos em qualquer língua. Muitas e muitas vezes o nome Darveth;
e era um ser de fogo, chamado Darveth, que o estava induzindo a fazer o que ele estava fazendo e o
que ainda iria fazer.
Via, ouvia e sentia, num horror indescritível, enquanto suas mãos preenchiam notas de expedição e
sua voz dizia casuais graçolas aos companheiros em torno.
Olhou para o relógio. Faltando um minuto para as nove!
Wally Smith bocejou.
— Bem — disse ele, — aposto que vou dormir como uma pedra esta noite. Até à vista, rapazes.
Caminhou em direção do relógio de ponto, enfiou o cartão na fenda e bateu.
Pôs o chapéu e o sobretudo e dirigiu-se para a saída. Já estava fora do campo de visão dos outros e
também não podia ser visto pelo guarda da portaria. Seus movimentos subitamente se tornaram
furtivos. Andava como uma pantera, quando se esgueirou por uma porta. Ali já estava tudo pronto.
Ei-lo a pegar do fósforo e ferir lume. A chama! Como a primeira que jamais vira, bailaricando no
extremo dum palito. Quando seus dedinhos rechonchudos, na passada infância, se tinham estirado a
procura daquilo que o pai sorridente segurava. Aquela coisa que luzia, sem forma fixa; espanto
amarelo-rubro-anil, mágica beleza. A chama.
Espere até pegar bem, até estar bem viva, para não se apagar com a inclinação de seu corpo. Uma
chama é coisa delicada no princípio.
— Não! — bradou-lhe outra parte da mente. — Não faça isso, Wally, não faça..
Mas não pode parar agora, Wally, já não pode “não fazer”, porque Darveth, o gênio do fogo, está
com as rédeas na mão. Ele e mais forte que você, Wally; mais forte que qualquer daqueles seres
naquele mundo de pesadelo que você esteve contemplando. Grite por socorro, Wally; de nada
adiantará.
Clame por qualquer deles. Grite ao velho Moloch; ele nem o ouvirá. Também ele está querendo
apreciar o espetáculo, como a maioria. Mas não todos. Thor saiu de banda; não está lá muito feliz
com o que vai acontecer; é lutador mas não tão grande que se possa medir com Darveth. Como,
aliás, ninguém ali-
Dançam o rei do fogo e todos os seres ígneos. Uma dança dervixe. Outros acompanham com os
olhos. Presente também está Zeus, de brancas barbas, ao lado de alguém com cabeça de crocodilo.
E Dagon a cavalgar Cila. Todas as criaturas que alguma vez os homens conceberam.
Mas nenhuma delas o socorrerá, Wally. Você está só. E agora trate de inclinar-se com o fósforo
entre os dedos. Proteja a flama com a palma da outra mão, pode vir alguma corrente de ar da porta.
Tolo, não é, Wally? Ser levado a fazer isso por uma criatura irreal, que só existe por ser pensada!
Você está louco, Wally. Louco. Ou não estará? O pensamento não é coisa tão real como qualquer
coisa? Que é você mais que pensamento incutido em um naco de barro?
Grite por socorro, Wally, Deve haver alguém capaz de socorrê-lo em alguma parte. Clame, vamos;
não com a garganta nem com os lábios, que neste instante não são seus, mas com a mente! Clame a
alguém por socorro, a alguém do outro lado. Alguém que detenha Darveth. Alguém que não esteja
do lado dele. SIM! Isso mesmo! GRITE!

***
De como chegou a casa, uma hora depois, Wally nunca pôde se lembrar bem. Só recordava que o
céu estava escuro e pintalgado de estrelas; nada daquele planejado escarlate de holocausto. Mal
sentia a queimadura no polegar e indicador. Deixara o fósforo consumír-se até a flama lamber-lhe a
pele.
A proprietária do lugar em que morava saudou-o, sentada numa cadeira de balanço no frio alpendre,
assim que o viu chegar.
— De volta tão cedo, Wally?
— Cedo?
— Pois então, ué! Você não tinha dito, de manhã, que ia se encontrar com aquela sua namorada?
Pensei que jantava na cidade e de lá ia direto pra casa dela.
Wally, lembrando-se com terror, correu para o telefone. Após um minuto de ansiosa espera, ouviu a
voz que atendia:
— Wally, que houve? Estou esperando você desde...
— Desculpe, Dot... Precisei trabalhar até tarde e não tive ocasião de telefonar avisando. Posso
ir vê-la agora? E quer casar comigo duma vez?
— Se eu...! Que foi que disse, Wally?
— Querida, tudo está nos eixos agora. Quer casar comigo, ou não?
— Ora, essa é a maior... Venha aqui que eu respondo, Wally. Mas que história é essa de que tudo
está nos eixos agora?
— É que.. . Ora, eu já dou um pulo até aí e explico tudo.
Mas sua razão voltou a assentar no espaço das seis quadras que teve de fazer, e, por conseguinte,
não contou o que realmente houvera. Ideou uma história, capaz de justificar o que já deixara dito, e
que a convencesse. Assim se fazem os bons maridos, e Wally Smith estava pronto para ser o melhor
de todos, em lhe surgindo oportunidade. Que surgiu.

— Papa.
— Psiu, filho!
— Por quê, Pá? Que está fazendo aí embaixo da cama?
— Chhh! Oh, está bem, mas fale baixo! Ele ainda está por aí em alguma parte, acho eu.
— Quem, Pá?
— O novato, esse tal que... Você conseguiu dormir com todo aquele banze da noite passada? O
maior sururu que já houve por aqui em dezessete séculos!
— Xi, Papa, uma briga de verdade?! Quem ganhou?
— O novato. Deu um pontapé em Darveth que o mandou longe (até agora não voltou); depois um
grupo de amigos de Darveth se juntou contra ele, e ele pôs tudo pra correr. Agora deve estar
andando lá por fora e...
— Atrás de mais alguém pra bater, Pá?
— Sei lá; além do arranca-rabo que teve com a gangue de Darveth e o próprio, ele não começou
briga com mais ninguém até o presente instante. Aposto que ele caiu em cima de Darveth por ter
sido invocado pelo ser humano que o chefe andava obcecando lá por cima.
— Mas por que o senhor está se escondendo, Pa?
— Ora, por quê!... Porque... Bem, filho, qualquer um vê que sou um elemento do fogo; daí ele
pode cismar que sou amigo de Darveth e até que tudo se acalme não quero correr riscos. Entendeu?
Rapaz, deve haver gente à beça, lá em cima, botando fé nesse fulano, pra fazê-lo assim tão
forte! O que ele fez com o Darveth...!
— Qual o nome dele, Papa? É mítico, lendário ou o quê?
— Isso não sei, filho. E, por mim, vou esperar que outro pergunte.
— Vou dar uma olhada através da cortina, Papa, depois de diminuir meu brilho até o mínimo.
— Ei, espere, não! Venha já...! Oh, está bem, mas cuidado. Dá pra vê-lo?
— Sim; aposto que é ele. Não parece nada perigoso, mas...
— Mas não facilite, rapaz. Nem quero chegar perto da janela pra olhar; sou mais brilhante, e ele me
veria. No escuro da outra noite não pude vê-lo muito bem. Como e ele a luz do dia?
— Não parece perigoso, Papa. Tem um cavanhaque branco, é comprido e magricela; usa calças
com listras vermelhas e brancas enfiadas dentro das botas. E uma cartola; azul e com estrelas
brancas. Vermelho, branco e azul, no todo. Tem algum significado Pá?
— A julgar pelo que houve aqui a noite passada, filho, com certeza. Mas eu é que não saio daqui
debaixo pra perguntar!

DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS

Abril, 11 — Não sei se o que sinto é choque, medo ou espanto ante a possibilidade de as normas
serem outras do lado de lá do vidro. Sempre me pareceu que moralidade fosse uma constante. E
deve ser; dois conjuntos de normas não seria justo. O censor lá deles deu uma cochilada; só pode ter
sido isso.
Talvez não importe a circunstância de que isso se desse durante um Western. Eu fazia Whitey Grant,
delegado de West Pecos; bom cavaleiro, grande lutador, herói das redondezas. Uma quadrilha de
bandidos veio à cidade à minha procura, pistoleiros mesmo, e como todo mundo na localidade
temia enfrentá-los, tive de cuidar deles sozinho. Blake Burke, o chefe dos fora-da-lei, me disse
depois (eu só tive que pô-lo fora de combate, não precisei matá-lo), através das grades, que tinha
achado a coisa meio parecida com Matar ou Morrer, e talvez fosse, mas que importa? Matar ou
Morrer é apenas uma fita de cinema, e que mal há em que a vida imite a ficção?
Mas foi antes disso, enquanto ainda estávamos “no ar”, que me aconteceu dar uma olhada através
do vidro (que às vezes também chamamos “tela”) naquele outro mundo. A gente só tem ocasião de
fazê-lo quando encara a tela de frente. Nas vezes relativamente raras em que surge tal oportunidade,
temos alguns vislumbres desse outro mundo; um mundo em que as pessoas também existem, gente
como nós, que, de preferência a fazer coisas ou correr aventuras, simplesmente sentam-se e olham-
nos através da tela. Por alguma razão que para mim é um mistério (um dentre muitos), não nos é
dado ver duas noites a mesma pessoa ou o mesmo grupo contemplar-nos desse outro mundo. Nisso
pensava eu, a outra noite, quando espiei o outro lado. Na sala que me foi dado ver, havia um jovem
casal sentado.
Estavam juntinhos num sofá; muito juntos, a uns dez passos de mim; e beijando-se. Bem,
permitimos beijos aqui, ocasionalmente; porém’, breves e castos. E aquele não parecia nem uma
nem outra coisa. Estavam simplesmente enroscados um no outro, sustentando, extáticos, o que tinha
todo o jeito de ser um beijo apaixonado; com implicações eróticas, aliás. Três vezes os vi, e
sustentavam a mesma atitude.
Por ocasião da terceira vez que relanceei os olhos sobre eles, ainda se beijavam, e no mínimo vinte
segundos já tinham decorrido. Vi-me forçado a desviar os olhos da tela; era demais. Vinte segundos
de beijo; e isso por baixo, pois devia ter sido mais! Se contarmos que começaram antes da minha
primeira espiada e ainda continuaram depois da última. Vinte segundos cravados! Que raio de
censores serão esses do lado de lá, tão desatentos!?
E quem serão esses patrocinadores que permitem uma censura tão frouxa?
Quando o Western acabou, o vidro se tornou novamente opaco e, por conseguinte, ficamos outra
vez entregues ao nosso próprio mundo. Desejei então comentar o caso com Black Burke e, de fato,
batemos um bom papo através das grades, mas decidi não tocar no assunto. Na certa Burke logo
será enforcado após o julgamento de amanhã. Encara com bravura a situação, é verdade, mas por
que iria eu agravá-lo com mais aborrecimentos? Bandido ou não, no fundo não é má pessoa; baste-
lhe a preocupação do próprio enforcamento!

Abril, 15 — Agora estou profundamente abalado. Tornou a acontecer, a noite passada. E ainda foi
pior! Dessa vez decididamente foi um choque.
Durante as poucas noites que transcorreram entre aquela primeira vez e esta que digo ter sido pior,
tenho tido até receio de olhar lá para fora outra vez. Tenho-me abstido de encarar o vidro, o mais
que posso. Mas nas raras ocasiões que o vi, não dei com nada de impróprio. Uma sala diferente
cada vez; nunca, porém, com um casal a sós, em flagrante violação do Código. Apenas gente
sentada em roda, olhando-nos e comportando-se bem. Crianças, às vezes. O trivial.
Mas a noite passada!
Chocante é o que foi. Um casal jovem outra vez; não o mesmo, é claro, e a sala também era outra.
Nesta não havia sofá algum; só duas enormes poltronas estofadíssimas. E os dois estavam sentados
na mesma poltrona; ela no colo dele.
Ao primeiro olhar, foi só isso o que vi. Eu era um médico, a situação no hospital era febricitante, e
eu me esfalfava correndo de emergência para emergência na sagrada missão de salvar vidas. Mas já
bem próximo do The End (que assim se chama o instante da entrada do último comercial, em que já
não se pode ver nem ser visto através da tela), estava eu ministrando alguns conselhos paternais a
um médico mais moço, quando, desviando-se dele, meus olhos incidiram na tela, ou no outro lado
dela, e tornei a vê-los.
Ou eles tinham se mexido ou eu agora notava algo que não vira da primeira vez. Oh, sim, estavam
olhando para o vídeo e não se beijavam. Porém!
A mocinha usava short shorts, vale dizer, shorts escassíssimos; e ele trazia a mão sobre aquela parte
da perna dela que se situa acima do joelho. E nem ao menos se pode dizer que apenas a descansasse
ali, pois movia-a levemente, acariciando-a! Que raio de antro de iniqüidades será isso aí fora, para
permitir tal coisa? Um homem acariciando a perna nua de uma mulher! Ora, qualquer um em nosso
mundo estremeceria à simples idéia de semelhante coisa.
É o fim do mundo! Agora mesmo estremeço, só de pensar.
Onde está essa censura, afinal?!
Haverá, que mal pergunte, alguma diferença, imperceptível para mim, entre estes nossos dois
mundos? Sabe-se que o desconhecido amedronta-nos. E, pois, estou com medo. E tiririca!

Abril, 22 — Uma semana inteira se passou depois do segundo daqueles dois inquietantes episódios,
e comecei a cobrar ânimo. Passei a acreditar que os dois casos de violação do Código por mim
testemunhados seriam exemplos isolados de indecência; coisas acontecidas por descuido.
Mas a noite passada eu vi ou, antes, ouvi, desta caixa, algo que representa a mais impudente e
descarada afronta a uma seção completamente diversa do Código.
Antes de descrevê-la, talvez convenha explicar algo sobre o fenômeno da “audição”. É que
raríssimamente ouvimos sons provenientes do mundo exterior. Serão débeis demais para atravessar
o vidro, talvez nossos próprios diálogos os abafem, ou quiçá isso se deva à música que tocam
durante as seqüências mudas. (Sempre me intrigou a origem de tal música, pois, a não ser em
trechos rodados em clubes noturnos, salões de dança e coisas assim, nunca se vê nem sombra de
orquestra por perto; enfim, esse será outro mistério que a nós não nos é dado penetrar.) Mas para
que se ouçam realmente sons distintos provenientes do outro mundo, é preciso que várias
circunstâncias se combinem. E visto está que isso só é possível ocorrer durante seqüências em que
reine silêncio absoluto, em que não haja nem música. E, mesmo então, só podem ser ouvidos por
um de nós de cada vez, pois tem-se de estar bem perto do vidro. (Tomada a que chamamos “Tight
close-up”.) Sob condições assim ideais, um de nós pode distinguir alguma frase rota eventual ou
mesmo uma sentença inteira proferida do exterior.
A noite passada, essas circunstâncias se combinaram e prevaleceram por instantes;
conseqüentemente, distingui uma sentença completa, além de ter podido ver quem a pronunciava e
ouvia. Era um casal comum, de meia-idade, sentado (a decorosa distância um do outro) num sofá,
de frente para mim. O homem disse — e estou seguro de que o ouvi perfeitamente bem, porque
falou alto, como se a mulher fosse um tanto surda: “- - - -, querida; isso aí é horroroso.
Vamos desligar essa - - - - - e ir até a esquina tomar uma cerveja?”
A primeira das duas palavras que substituí por tracinhos é um nome próprio de que seria
perfeitamente legítimo lançar-se mão com a devida reverência e em contexto próprio. Mas o certo é
que ambas essas ressalvas foram frontalmente ignoradas. Já o segundo vocábulo omitido era
positivamente profano.
Estou, pois, profundamente acabrunhado.

Abril, 30 — Não há nenhuma razão para acrescentar novas anotações às que eu já vinha assentando
ultimamente. Mal chego a gravá-las no papel e por certo hei de jogar fora esta página, assim que a
tiver acabado. Escrevo simplesmente porque tenho de estar a escrever, e nada se me dá que seja isto
ou outra coisa ainda com menos nexo.
É que estou escrevendo “no vídeo”, como o chamamos. Esta noite sou um repórter abancado em
frente a uma máquina de escrever, na seção do noticiário local.
Entretanto, a minha participação ativa na aventura já acabou; ora só estou atuando como elemento
de fundo. Tudo o que me more fazer é parecer ocupado e continuar batendo. Exímio datilógrafo que
sou, sei apropriadamente utilizar-me de todos os dedos, e, assim sendo, escuso-me de olhar as
teclas. Circunstância essa que me permite ter alguns vislumbres ocasionais do outro mundo. Assim
é que me vejo diante de um jovem casal, a sós, de novo. O “cenário” deles é um quarto de casal, e
salta aos olhos que são marido e mulher, pois nos assistem de suas camas. “Camas”, claro, no
plural.
Folgo em ver que observam o Código, o qual permite que casais de esposos apareçam dialogando
em camas gêmeas, razoavelmente apartadas, mas veda-lhes, compreensivelmente, aparecerem
juntos em cima de uma cama de casal; dado que, por mais afastados entre si que se deitassem, no
conjunto a coisa toda sempre seria claramente sugestiva.
Limito-me a despedir outra olhadela. Ao que tudo indica, não estão muito interessados no que se
passa aqui no vídeo. Conversam, de preferência. É óbvio que não distingo o que se dizem; ainda
quando houvesse silêncio absoluto do lado de cá, eu estaria afastado demais para ouvi-los. Mas ele
lhe faz uma pergunta que ela responde, sorridente, com um aceno afirmativo.
Senão quando, ela afasta as cobertas de sobre si e, girando os pés para fora, ergue-se do leito.
Nua é o que está.
Céus, como o permitis?! É impossível. Em nosso mundo não existe isso de mulheres nuas. Não
pode simplesmente existir.
Ei-la em pé, e já não consigo arrancar os olhos dessa visão impossivelmente bela, encantadoramente
impossível. Com o rabo do olho, noto que também ele atirou as cobertas para um lado e acha-se
igualmente nu em pêlo. Acena-lhe, e por breve momento ela se detém, dando uma risada, enquanto
o contempla e se deixa contemplar.
Algo estranho, coisa que nunca senti antes, algo que nem mesmo supus fosse possível, começa
acontecer com os meus lombos. Tento desviar o olhar, mas não consigo.
Ela percorre com dois passos o vão entre as camas e estira-se ao lado dele. Súbito, ei-lo que a beija
e acaricia. E agora...
Onde é que nós estamos!
Então é verdade! Não há censura para eles; podem fazer e fazem tudo aquilo que em nosso mundo
só podemos sugerir vagamente como fatos ocorridos fora de cena. Como podem eles estar isentos
quando nós não estamos? Isso é cruel. Nega-se-nos o direito de igualdade e de nascer.
Deixem-me sair daqui! EU QUERO SAIR!
Socorro, SOCORRO!
DEIXEM-ME SAIR!
DEIXEM-ME SAIR DESTA CAIXA MALDITA!

ALGO VERDE

O enorme sol era rubro contra o fundo violeta do céu. Ao fim de uma planura de cor castanha,
pontilhada de arbustos de igual cor, começava a floresta vermelha.
McGarry caminhou preguiçosamente até ela. Era difícil e perigoso embrenhar-se naquela mataria,
porém tinha que fazê-lo. Já o fizera mais de mil vezes; aquela seria apenas mais uma.
Disse ele: — Aqui vamos nós, Dorothy. Tudo pronto?
O bichinho de cinco patas que lhe descansava sobre a espádua não respondeu; nunca o fazia, aliás.
Não sabia falar, mas era bom ouvinte. E sempre era companhia. Seu tamanho e peso faziam que o
portador curiosamente o sentisse como uma mão que lhe pesasse ao ombro.
Estava com Dorothy já fazia... quanto tempo? Quatro anos aproximadamente. Chegara lá já fazia
cinco, num cálculo aproximado, e isto fora um ano antes de encontrá-la. Fosse como fosse, decidiu
que Dorothy pertencia ao belo sexo, ainda que para isso não tinha melhor razão que o modo feminil
como parecia ajeitar-se-lhe ao ombro.
— Dorothy — tornou ele, — acho bom a gente se preparar para barulho. Pode haver leões ou tigres
por lá.
Soltou a aba do coldre e descansou a mão na coronha da pistola solar, pronto para um saque rápido.
E pela milésima vez bendisse a boa fortuna que lhe permitira salvar dos escombros de seu veículo
espacial aquela pistola, única arma que se podia dizer prática em todas as situações, que nunca
precisava ser municiada, e, pois, dispensava o uso de cartucheiras. Absorvia energia solar. Depois
era só puxar o gatilho. Fosse uma arma de qualquer outro tipo, e ele não teria sobrevivido nem
mesmo um ano em Kruger III.
Dito e feito; mal chegara à orla da floresta vermelha, avistou um leão. Nada parecido com nenhum
leão terrestre, é claro. Aquele era de cor magenta-brilhante, apenas visível em meio aos arbustos
purpurinos em redor. Tinha oito patas, todas desprovidas de juntas e tão flexíveis e vigorosas como
tromba de elefante; a cabeça era coberta de escamas, e o bico igualzinho ao do tucano.
McGarry chamava-o leão. Tinha todo o direito de chamá-lo assim como de qualquer outra forma,
pois o animal ainda não tinha sido classificado. Ou, se tinha, a pessoa que o fizera nunca voltara à
Terra para dar notícia da flora e fauna de Kruger III. Só uma espaçonave aterrara ali antes da de
McGarry, segundo constava, e o piloto não regressara para contar a história. Procurava-a agora;
vinha fazendo uma busca sistemática em todos os cinco anos que estivera no planeta.
Se a encontrasse, era possível — remotamente, mas era — que ainda tivesse aproveitáveis alguns
dos aparelhos transistorizados que tinham sido destruídos, em seu próprio veículo, por ocasião da
queda que sofrera. E se os tivesse bastantes, poderia voltar para a Terra.
Deteve-se a dez passos da orla da floresta vermelha e, com a pistola solar visou os arbustos atrás
dos quais o leão se abaixara. Puxou o gatilho e produziu-se um lampejo verde brilhante, breve mas
bonito! E eis que os arbustos já não estavam mais lá, nem o leão.
McGarry deu um risadinha.
— Viu só, Dorothy? De cor verde; cor inexistente neste seu maldito planeta vermelho. A mais bela
cor do universo, Dorothy. O verde! E eu aqui sei de um mundo quase todo dessa cor; é para lá que
vamos; nós dois. Claro que vamos. É o meu mundo, o lugar mais bonito que há, Dorothy. Você vai
adorar.
Voltou-se e olhou atrás, para além da planura castanha juncada de arbustos de igual cor, o céu
violáceo por cima, o sol carmesim. O sol de Kruger, invariavelmente carmesim, que nunca se põe
na face diurna do planeta; este tem uma face eternamente voltada para o seu sol, assim como a Lua
tem sempre o mesmo lado voltado para a Terra.
Aqui não anoitece jamais, salvo para quem cruzasse a zona crepuscular em direção da parte
noturna, que é fria demais para sustentar a vida. Neca de estações. Temperatura uniforme, sem
variação; nada de ventos nem tempestades.
Refletiu pela milésima vez, ou milionésima, em que não seria mau planeta de se habitar se tão-
somente tivesse em cima de si alguma outra coisa verde além do lampejo eventual de sua pistola. A
atmosfera era respirável, uma temperatura moderada que ia mais ou menos de 0o, próximo à zona de
sombra, até 30°, no ponto diretamente abaixo do sol. Bastante alimento; e ele até já aprendera por
experiência quais as plantas ou animais comestíveis e quais os que lhe faziam mal. De tudo quanto
provara nada se revelara positivamente venenoso.
De fato, um belo mundo. Àquela altura já se acostumara com ser o único habitante inteligente do
planeta. Dorothy tinha sua utilidade: uma criatura a que podia falar, mesmo que não respondesse.
Só que — oh, céus! — como queria ver um mundo verde outra vez!
A Terra. Único planeta do universo já conhecido onde predominava o verde; onde a clorofila servia
de base à vida vegetal.
Outros planetas, mesmo do sistema solar, vizinhos da Terra, não tinham mais a oferecer que estrias
verdoengas em rochas raras, eventuais formazinhas de vida, de um matiz que se poderia, querendo,
considerar como verde acastanhado. Arre, que a gente podia passar anos e anos em qualquer planeta
que não fosse a Terra, em qualquer parte do cosmo, sem nunca ver nada de verde.
McGarry suspirou. Estivera a pensar só consigo, mas agora passava a fazê-lo em voz alta, dirigindo-
se a Dorothy. Dorothy não ligava.
— Mas é isso, Dorothy — dizia. — O único planeta em que vale a pena viver: a Terra! Campos
verdejantes, viçosos gramados, árvores verdes. Pois, Dorothy, nunca mais hei de deixá-lo, depois
que tiver conseguido voltar. Vou construir uma cabana bem no meio do mato, entre árvores; não
frondosas demais, senão não cresceria relva embaixo. Relva verde. Pintarei a cabana de verde
também, Dorothy. Até isso, de verde, temos por lá: pigmento!
Suspirava e olhava a floresta vermelha que tinha à frente.
— O que foi que perguntou, Dorothy?
Ela não perguntara nada; apenas ele fazia de conta que ela lhe respondia; expediente destinado a
prevenir a loucura.
— Se pretendo casar quando tiver voltado? Foi isso? Meditou alguns momentos, antes de
responder.
— Bem, talvez, Dorothy. Talvez sim e talvez não. Seu nome foi tirado do de uma mulher lá da
Terra. Com quem eu ia casar. Mas cinco anos é muito tempo, Dorothy. Já fui dado por desaparecido
e presumivelmente morto. Não sei se ela esperou tanto. Se sim, bem, então sim, Dorothy.
“E se não, é o que quer saber? Bem, não sei. Não vamos nos amolar com isso até que voltemos,
hem? Mas é claro que, se eu pudesse descobrir uma mulher verde, nem que de verde só tivesse o
cabelo, eu a amaria até eu próprio ficar verde. Mas o caso é que na Terra quase tudo é verde, menos
as mulheres.”
Sorriu ao dizê-lo e, de pistola em punho, embrenhou-se na floresta, que era vermelha e nada tinha
de verde, exceto o lampejo ocasional de sua arma.
Coisa engraçada. Na Terra o lampejo de tais pistolas era violeta. Mas ali, debaixo de um sol
vermelho, saía verde. A explicação, porém, é simples. As pistolas solares absorvem energia da
estrela mais próxima, e o lampejo que produzem ao ser disparadas é sempre da cor complementar à
da sua fonte de alimentação. Absorvendo energia do Sol, que é uma estrela amarela, disparavam
violeta. Se a energia lhes vinha de Kruger, estrela vermelha, o tiro saía verde.
E essa circunstância, pensava, era o que, além da companhia de Dorothy, ainda lhe mantinha o juízo
no lugar. Um lampejo verde, várias vezes ao dia. Algo verde que lhe mantivesse viva a lembrança
dessa cor. Que lhe conservasse a aptidão dos olhos para distingui-la, caso a visse de novo.
Aquilo afinal se revelava uma florestazinha à-toa, tão minúscula quanto qualquer outra de Kruger
III. Uma entre tantas, que pareciam incontáveis. Talvez milhões; Kruger III era maior que Júpiter.
Só que menos denso, o que lhe fazia a gravidade tolerável. Com efeito, a gente precisaria ter mais
que uma vida para percorrê-lo todo. Sabia disso, mas não se detinha a refletir no caso. Como
também não se detinha a pensar que a nave que procurava podia ter caído na face noturna do
planeta, no seu lado frio. Ou da mesma forma que não se permitia duvidar de que, uma vez
localizada a nave, encontraria todos os transistores necessários à reparação do seu próprio veículo.
O trecho de floresta não chegava a ter uma milha quadrada, mas ele tinha que dormir uma vez e
comer várias vezes antes de terminá-lo. Matou outros dois leões e um tigre. Quando acabou a
travessia, passou a caminhar ao redor das árvores maiores fazendo-lhes um talho circular na sua
parte mais exterior, a fim de marcá-las para não repetir a busca. As árvores eram chochas; com um
canivete podia aparar- lhes a madeira vermelha até o cerne róseo, com a mesma facilidade com que
descascaria uma batata.
Depois disso, tornou a meter-se pela monotonia de outra planura castanha; desta vez com a pistola
solar exposta, a fim de recarregar.
— Nada ainda, Dorothy. Talvez na próxima, lá adiante, perto do horizonte. Pode estar lá.
Céu violeta, sol rubro, planura acastanhada.
— As verdes colinas da Terra, Dorothy. Ah, como você gostaria delas!
A interminável planura acastanhada. O céu invariavelmente violeta.
Teria ouvido algum som proveniente lá do alto? Impossível! Nunca ouvira. Mas ergueu a cabeça,
mesmo assim, e viu.
Um minúsculo pontinho negro contra o céu, movendo-se. Uma espaçonave! Só podia ser. Não havia
pássaros em Kruger III. Depois, pássaros não despedem jatos flamejantes pela cauda...
Já sabia o que fazer; meditara um milhão de vezes no melhor modo de sinalizar para uma
espaçonave, se chegasse a avistar alguma. Ergueu a pistola, voltando-a para o ar violáceo, e
comprimiu o gatilho. Não seria grande o lampejo que produzia, considerando a distância da nave,
mas era verde! Se apenas o piloto estivesse atento a olhar, ou se chegasse a vê-lo antes de perder-se
na distância, decerto não deixaria de notar um lampejo verde num mundo sem nenhuma outra coisa
dessa cor.
Tornou a apertar o gatilho.
E o piloto avistou-o. Desligou e tornou a ligar os jatos do veículo por três vezes — a resposta
convencional a um pedido de socorro — e entrou a voar em círculos.
McGarry permanecia trêmulo no lugar. Após tão longa espera, um súbito desfecho. Levou a mão ao
ombro esquerdo e tocou no animalzinho de cinco patas que ao contacto de seus dedos, como ao de
seu ombro nu, tanto lhe parecia a mão de uma mulher.
— Dorothy — disse, — é... — Mas faltaram-lhe palavras.
O veículo agora se aproximava, à procura de lugar em que aterrasse. McGarry passou os olhos
sobre si e sentiu-se subitamente envergonhado. Tinha o corpo todo nu, com exceção da cintura, em
que trazia um cinturão do qual pendia um coldre, um canivete e outras coisas. Estava sujo, e na
certa cheiraria mal, ainda que ele próprio nada sentisse. E, sob o encardido da pele, seu corpo
parecia delgado e desgastado, quase velho; mas isso, é claro, se devia a deficiências alimentares;
alguns meses de alimentação adequada, de boa alimentação terrestre, e estaria em forma outra vez.
A Terra! As verdejantes colinas da Terra!
Corria agora, tropeçando às vezes, na sua ansiedade, em direção do local em que a nave estava
aterrando. Agora via que o veículo não comportava mais que uma pessoa, como o seu. Mas isso não
tinha importância; comportaria dois, numa emergência; ao menos até um planeta mais próximo,
onde pudesse achar transporte que o reconduzisse à Terra. Aos montes, campos e vales verdes.
Durante a corrida ora rezava, ora blasfemava. Lágrimas lhe rolavam pelas barbas abaixo.
Lá estava ele, à espera, quando a porta se abriu e um jovem alto e magro, que envergava o uniforme
da Patrulha Espacial, saiu para fora.
— Vai me levar de volta? — gritou.
— Claro — respondeu o jovem, calmamente. — Faz tempo que está aqui?
— Cinco anos! — McGarry notou que estava gritando, mas não podia evitar.
— Puxa! — admirou-se o outro. — Eu sou o Tenente Archer. Está claro que vou levá-lo de volta,
homem; assim que meus escapamentos tenham esfriado o bastante. Posso levá-lo até Cartago, em
Aldebarã II; lá pode tomar uma nave para qualquer parte. Precisa de alguma coisa agora? Comida?
Água?
McGarry abanou a cabeça, sem responder palavra. Comida, água; que importava isso agora?
Os verdes montes da Terra! Voltaria a vê-los! Era isso o que importava, nada mais. Tão longa
espera, para um desfecho tão repentino! Viu oscilar o céu violeta, e logo fazer-se negro, quando lhe
bambearam as pernas.
Estava deitado no chão; o jovem piloto equilibrou-lhe um frasco nos lábios e ele sorveu um
comprido gole do líquido ardente que continha. Ergueu meio corpo e já se sentia melhor.
Relanceou os olhos em torno, como para certificar-se de que o veículo espacial ainda estava ali; viu
que estava, e isto o fez sentir-se ótimo.
— Ânimo, Veterano — disse-lhe o rapaz; — partimos em meia hora. Em seis já estará em Cartago.
Que tal conversar até ficar em forma outra vez? Quer me contar como foi que tudo aconteceu?
Sentaram-se à sombra de um arbusto castanho, e McGarry contou tudo. A sua busca, que já durava
cinco anos, da outra nave que, segundo tinha lido, caíra no planeta e que podia ter intactas as peças
que necessitava para reparar o seu próprio veículo. Aquela longa busca. Também sobre Dorothy
empoleirada em seu ombro e de como fora boa ouvinte.
Mas, fosse como fosse, o rosto do Tenente Archer se alterava à medida que McGarry discorria.
Fazia-se ainda mais solene, mais compassivo.
— Veterano — perguntou com brandura, — em que ano chegou aqui?
McGarry já ia percebendo tudo. Como ter noção de tempo, num planeta cujo sol e estações nunca se
alteram? Um planeta onde dia e verão são eternos...
Respondeu lisamente:
— Cheguei aqui no ano 2242. Errei por quanto, Tenente? Qual a minha idade?... Pensei que
estivesse com trinta.
— Estamos em 2272, McGarry. Faz trinta anos que você está aqui. Tem cinqüenta e cinco anos
agora. Mas não se inquiete demais com isso. A ciência médica fez progressos. Ainda tem uma
longa vida pela frente.
— Cinqüenta e cinco — murmurava McGarry; — trinta anos!
O tenente considerou-o, apiedado, e depois disse:
— Quer ouvir logo tudo; o resto das más notícias? A lista é longa. Não sou nenhum psicólogo, mas
acho que talvez lhe seja melhor saber tudo agora de uma só vez, enquanto ainda pode contrabalan-
çá-las com o fato de poder regressar para casa. Pode suportar isso, McGarry?
Não podia haver nada pior do que aquilo que já sabia. O fato de que trinta anos de sua vida tinham
se perdido ali. Claro que podia suportar o que mais viesse, fosse o que fosse, desde que já voltava
para a Terra, a verdejante Terra.
Fitou o céu violeta, o vermelho sol, a planura acastanhada e respondeu sem vacilar:
— Posso. Desembuche.
— Você se arranjou muito bem, considerando que esteve aqui por trinta anos, McGarry. Foi uma
sorte ter pensado que a espaço-nave de Marley tivesse caído aqui em Kruger III; ela caiu em Kruger
IV. Nunca a teria achado aqui, mas a busca, como diz, conservou--lhe... razoavelmente o juízo. —
Fez uma pausa solene, e sua voz estava mais suave quando tornou a falar. — Não há nada em seu
ombro, McGarry. Dorothy é produto da sua imaginação. Mas não se inquiete com isso; essa ilusão
específica na certa preveniu o colapso total.
McGarry ergueu a mão direita e tocou o ombro e nada mais.
— Caramba — exclamou Archer, — é extraordinário que a não ser por isso você esteja bem.
Trinta anos de solidão; é praticamente um milagre. E se a ilusão perdurar, apesar de eu lhe ter dito
que é ilusão, algum psiquiatra lá de Cartago ou Marte pode pô-lo em forma outra vez num instante.
A isso McGarry replicou, melancólico:
— Não perdura. Já se desfez. E eu nem mesmo estou certo, Tenente, de que alguma vez chegasse
realmente a crer em Dorothy. Acho que a criei de propósito, como um pretexto para conversar, a fim
de manter-me lúcido. Ela era... como a mão de uma mulher. Já lhe disse isso?
— Já. Quer ouvir o resto agora, McGarry?
McGarry fixou-lhe o olhar.
— Resto? Que pode haver de resto? Tenho cinqüenta e cinco anos em vez de trinta. Levei trinta
anos, desde os meus vinte e cinco, na busca de uma espaçonave que nunca encontrei, pois está em
outro planeta. Estive maluco (em certo sentido apenas) pela maior parte desse tempo. Mas nada
disso me importa, agora que posso voltar para a Terra.
Nesse ponto o Tenente Archer abanou lentamente a cabeça.
— Não para a Terra, amigo. Para Marte, pode ser; Marte com seus belos montes castanhos e
amarelos. Ou, se não faz caso do calor, para Vênus, o roxo Vênus. Menos para a Terra, McGarry.
Ninguém mais vive lá.
— A Terra... foi destruída? Eu não...!
— Destruída não foi. Ainda está inteira, só que preta e estéril; uma pelota queimada, nada mais. Foi
a guerra com os arcturianos, vinte anos atrás. Eles golpearam primeiro e acertaram a Terra. Aca-
bamos com eles; foram exterminados, mas a Terra já estava perdida antes que começássemos.
Lamento, mas você terá que escolher outro lugar.
— A Terra destruída! — murmurou McGarry; e não havia expressão em sua voz. Nenhuma.
— Exato, Veterano — tornou Archer, afável. — Mas Marte não é tão mau assim. Você se
acostuma. É o centro do sistema solar agora, e há três bilhões de terráqueos nele. Não tem o verde
da Terra, é certo, mas não é tão mau.
— Destruída — tornou McGarry a murmurar, sem expressão.
— Ainda bem que encara a coisa com essa serenidade — disse Archer. — Deve ter representado um
grande golpe pra você. Bem, acho que já podemos ir andando. Os tubos já devem ter esfriado. Vou
verificar.
Ergueu-se e caminhou para a pequena nave.
A pistola de McGarry deslizou para fora do coldre. McGarry disparou contra Archer e este passou a
não existir. McGarry ergueu-se e rumou para o pequeno veículo. Apontou-lhe a arma e premiu o
gatilho. Parte da nave foi consumida. Seis disparos mais, e desapareceu por completo. Os pequenos
átomos que tinham sido a nave e o Tenente Archer da Patrulha Espacial deviam estar dançando no
ar, porém eram invisíveis.
McGarry tornou a enfiar a arma no coldre e pôs-se a andar em direção da nesga de floresta que
vermelhava no horizonte.
Levou a mão ao ombro, apalpou Dorothy e percebeu que ela estava ali, como sempre estivera nos
quatro anos dentre os cinco que já durava sua estada em Kruger III. Lembrava-lhe, à mão e ao
ombro nu, o toque de uma mulher.
— Não se preocupe, Dorothy — disse ele. — Havemos de encontrá-lo. Talvez na próxima floresta.
E quando o encontrarmos...
Estava próximo da orla do bosque nesse momento, o bosque vermelho, quando um tigre avançou
correndo para ele. Tigre lilás, de seis patas e com uma cabeça semelhante a barrica. McGarry apon-
tou-lhe a pistola solar e disparou. Houve um lampejo verde brilhante, breve mas bonito — ah, tão
bonito — e o tigre desapareceu.
McGarry sorriu baixinho.
— Viu só, Dorothy? Verde; a cor que quase não se acha em nenhum planeta exceto aquele para
onde vamos. O único planeta verde do sistema; de onde eu vim. Você vai adorá-lo.
— Sei que vou, Mac — foi a resposta. Aquela voz gutural era-lhe muito familiar; tanto quanto a sua
própria; sempre lhe respondia. Ele estendeu o braço e apalpou-a sobre o ombro nu. Como parecia
uma mão feminina!
Virou-se e olhou para trás, além da planura castanha pontilhada de arbustos de igual cor, o céu
violeta por cima, o rubro sol. E riu de tudo aquilo. Não um riso louco, mas suave. Aquilo tudo não
importava, porque logo acharia a espaçonave e poderia voltar para a Terra.
Para os montes, campos e vales verdes e verdes. Uma vez mais, deu umas palmadinhas na mão que
tinha ao ombro, falou-lhe e ouviu-a responder.
Depois, pistola à mão, embrenhou-se na floresta vermelha.

***

FIM

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