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A Crítica Teológica Da Religião - Barth e Bonhoeffer PDF
A Crítica Teológica Da Religião - Barth e Bonhoeffer PDF
2009
ADRIANI MILLI RODRIGUES
Orientação:
Prof. Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro
Agência de fomento:
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior
2009
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________
Presidente: Prof. Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro (UMESP)
_________________________________________________________
Examinador: Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet (UMESP)
_________________________________________________________
Examinador: Prof. Dr. Ronaldo Cavalcante (MACKENZIE)
A Ellen, com quem tenho compartilhado
a alegria de estudar
AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
The critique of religion is a recurrent theme on modern thought and appears even in
the theology of this period. In this context, the present study focus on the comparison
of the critique on religion in Karl Barth and Dietrich Bonheffer’s thought. Therefore,
the dissertation is organized in four main parts. Initially, it’s done a contextualization
of the western conception on religion and it’s modern critique, including the
theological ambit. Next, it’s describe the conception and the critiques of religion on
Barth and Bonhoeffer`s thought. Finally, a comparison it’s made between both
authors, on which delineate approximations and dissimilitudes of the critiques on
religion of this two theologians. In a broad way, these two critiques indicate
distortions of Christianity and proposals of restorations. As a key to comparison is
the perception that Barth criticize religion on the perspectives of revelation, whereas
Bonhoeffer makes his criticism on the perspective of life.
INTRODUÇÃO .................................................................................................. 01
CAPÍTULO 1
RELIGIÃO: CONCEITO E CRÍTICA ............................................................. 05
1.1. O conceito ocidental de religião e sua formulação moderna ............................ 05
1.2. Um panorama da crítica moderna da religião .................................................. 07
1.3. A crítica moderna da religião na teologia ....................................................... 12
1.3.1. Percurso bibliográfico e metodológico de Karl Barth .................................. 13
1.3.2. A crítica barthiana da religião na compreensão de seus comentaristas ......... 18
1.3.3. Percurso bibliográfico e metodológico de Dietrich Bonhoeffer .................... 23
1.3.4. A crítica bonhoefferiana da religião na compreensão de seus comentaristas 28
1.4. Resumo do capítulo ........................................................................................ 32
CAPÍTULO 2
A CRÍTICA DA RELIGIÃO EM KARL BARTH ............................................ 35
2.1. A crítica da religião em Carta aos Romanos .................................................. 35
2.1.1. A Religião e a Infinita diferença qualitativa entre Deus e o ser humano ....... 37
2.1.2. A Religião e a Circuncisão: a justificação de Abraão ................................... 43
2.1.3. A Religião e a Lei ....................................................................................... 49
2.1.3.1. O Limite da Religião ................................................................................. 49
2.1.3.2. O Significado da Religião ......................................................................... 52
2.1.3.3. A Realidade da Religião ............................................................................ 54
2.1.4. A Religião e a Igreja .................................................................................... 55
2.1.4.1. A tribulação da Igreja ................................................................................ 56
2.1.4.2. A culpa da Igreja ....................................................................................... 58
2.1.4.3. A esperança da Igreja ................................................................................ 59
2.2. A crítica da religião em Church Dogmatics ..................................................... 61
2.2.1. O problema da Religião na Teologia ............................................................ 62
2.2.2. Religião como ausência de Fé ...................................................................... 69
2.2.3. A verdadeira Religião .................................................................................. 77
2.3. Resumo do capítulo......................................................................................... 85
CAPÍTULO 3
A CRÍTICA DA RELIGIÃO EM DIETRICH BONHOEFFER ....................... 87
3.1. Fundamentação Teológica: até 1931 ............................................................... 87
3.1.1. Escritos do período de estudante (1923-1926) .............................................. 88
3.1.2. Dissertação Doutoral: Sanctorum Communio (1927) ................................... 89
3.1.3. Escritos pastorais: Barcelona (1928)............................................................. 92
3.1.4. Dissertação de Pós-doutorado: Act and Being (1930) ................................... 95
3.1.5. Estudos em Nova York: Union Theological Seminary (1930-1931) .............. 98
3.2. Aplicação Teológica: de 1932 a 1939 ............................................................ 100
3.2.1. Sermões em Berlim (1931-1933)................................................................ 101
3.2.2. Aula: A Essência da Igreja (1932).............................................................. 102
3.2.3. Aula: Venha a nós o teu Reino (1932) ........................................................ 103
3.2.4. Aula: Criação e Queda (1932-1933) .......................................................... 104
3.2.5. Aula: Cristologia (1933) ............................................................................ 107
3.2.6. Aula: A igreja visível no Novo Testamento (1935-1936) ............................. 109
3.2.7. Discipulado (1937) .................................................................................... 111
3.2.8. Segunda visita aos Estados Unidos (1939).................................................. 114
3.3. Fragmentação Teológica: de 1940 a 1945...................................................... 115
3.3.1. Ética (1939-1943) ...................................................................................... 115
3.3.2. Cartas da prisão (1943-1945) ..................................................................... 122
3.4. Resumo do capítulo....................................................................................... 137
CAPÍTULO 4
COMPARANDO A CRÍTICA DA RELIGIÃO:
KARL BARTH E DIETRICH BONHOEFFER .............................................. 140
4.1. Uma tentativa de síntese da crítica da religião em Karl Barth ........................ 140
4.1.1. A concepção barthiana de religião .............................................................. 141
4.1.2. Características e implicações da crítica barthiana da religião ...................... 143
4.2. Uma tentativa de síntese da crítica da religião em Dietrich Bonhoeffer ......... 146
4.2.1. A concepção bonhoefferiana de religião ..................................................... 147
4.2.2. Características e implicações da crítica bonhoefferiana da religião ............. 149
4.3. Aproximações e Distanciamentos da crítica da religião: Barth e Bonhoeffer . 153
4.3.1. A crítica bonhoefferiana em relação à crítica barthiana: antes de 1944 ....... 153
4.3.2. A crítica bonhoefferiana em relação à crítica barthiana: 1944 ..................... 156
4.3.2.1. Comparação das idéias gerais .................................................................. 156
4.3.2.2. Comparação das referências mútuas ........................................................ 159
4.4. Resumo do capítulo....................................................................................... 168
1
A escolha pela expressão “crítica da religião”, em lugar de “crítica à religião”, se justifica por dois
fatores: (1) esta é a expressão mais comumente usada pela literatura consultada; (2) o uso da
expressão “crítica à religião” traria, de certo modo, um sentido de simplesmente “falar contra a
religião”, ao passo que na expressão “crítica da religião” há uma noção mais séria e abrangente, que se
aproxima da idéia de análise e julgamento da religião.
2
2
Veja a evidente relação dialética entre os dois últimos tópicos desse texto, mesmo na tradução
convencional: “Religion as Unbelief” (a religião como descrença) e “True Religion” (a verdadeira
religião).
3
3
Marcus Tullius Cícero (106-43 a.C.) foi um estadista e escritor romano, e Titus Lucretius Carus (96-
55 a.C.) foi um poeta e filósofo romano que promoveu as idéias epicuristas.
4
Cf. Wilfred C. Smith, The Meaning and End of Religion. Minneapolis: Fortress Press, 1991, p. 23.
5
Veja em português: Lucrecio, Da natureza. Rio de Janeiro: Globo, 1962; M. T. Cícero, Da Natureza
dos Deuses. Lisboa: Nova Vega, 2004.
6
6
Veja em português: Santo Agostinho, A verdadeira religião. São Paulo: Paulinas, 1992.
7
W. Smith, The Meaning and End of Religion, op. cit., p. 29. Nessa dissertação, todas as traduções de
citações para o português seguem tradução livre.
8
Cf. Ibid., p. 31, 35.
9
Veja em português: João Calvino, As Institutas da Religião Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.
10
Hans Küng, Introdução: O debate sobre o conceito de religião, Concilium, 203, jan. 1986, p. 5.
Evidentemente, as indicações de que conceito de religião - no período anterior a modernidade - não se
identificava com a noção de um sistema de crenças não significam que o cristianismo desse período
não possuía suas crenças ou não prezasse pelo aspecto cognitivo e racional de sua fé. Tal conclusão
representaria uma aguda distorção histórica que desconsideraria o Escolasticismo Medieval, as
7
declarações doutrinárias dos Concílios da Igreja, e a própria noção de heresia tão presente nessa
época. A discussão presente neste capítulo enfatiza apenas que o conceito do termo “religião”, nessa
época, não estava, em primeira instância, associado à noção de um sistema de crenças.
11
Peter Harrison ressalta que a ênfase intelectualista do Iluminismo europeu produziu o conceito
moderno de “religiões”, que são compreendidas como diferentes “conjuntos de crenças propositadas
que poderiam ser imparcialmente comparadas e julgadas.” (P. Harrison, “Ciência” e “Religião”:
Construindo os Limites. Revista de Estudos da Religião, n. 1, 2007, p. 2).
12
Urbano Zilles, Filosofia da Religião. São Paulo: Paulinas, 1991, p 12.
8
13
Otto Maduro, Religião e luta de classes: quadro teórico para a análise de suas inter-relações na
América Latina. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 42.
14
Ibid.
15
Etienne A. Higuet, Teologia e Modernidade: introdução geral ao tema. Teologia e Modernidade.
São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p. 13.
16
Cf. Battista Mondin, Quem é Deus: elementos de teologia filosófica. São Paulo: Paulus, 2005, p. 82.
17
Hume fala sobre Deus e a religião, principalmente, em duas obras. Em The Natural History of
Religion (1757) ele ressalta que a origem da religião está enraizada nos interesses vitais do ser
humano, tais como a ânsia pela obtenção da felicidade, o temor da miséria e o medo da morte. Já em
Dialogues concerning Natural Religion (1779) ele busca refutar as principais argumentações usadas
para provar a existência de Deus. Veja em português veja: História natural da religião. São Paulo:
UNESP, 2005; Diálogos sobre a religião natural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
18
B. Mondin, Quem é Deus, op. cit., p. 84.
9
19
Feuerbach surgiu meteoricamente no cenário europeu entre as décadas de 1840 e 1850. Sua obra, A
Essência do Cristianismo (1841), tornou-se, inicialmente, o livro texto de um grupo de pensadores
revolucionários tais como Karl Marx e Friedrich Engels. Essa obra foi organizada em duas partes
principais: a primeira afirma a antropologia como verdadeira essência da religião, ao passo que a
segunda denuncia a teologia como falsa essência da religião. Sua tese central é de que a religião é
simplesmente antropologia: “o homem é o início da religião, o homem é o meio da religião, o homem
é o fim da religião” (Cf. A essência do cristianismo. Campinas: Papirus, 1997, p. 223). Feuerbach
também escreveu outras obras que discutiam acerca da religião, como por exemplo A Essência da
Religião (1846). Mas estas não tiveram a popularidade e o impacto da obra anterior. Para uma
compreensão mais ampla da interpretação religiosa no pensamento de Feuerbach veja Van Austin
Harvey, Feuerbach and the interpretation of religion. New York: Cambridge University, 1997.
20
Cf. Hugo Assmann e Mate Reyes, Introducción. In: Sobre la religion I: Karl Max Friedrich Engels.
Salamanca: Sigueme, 1979, p. 12.
21
Cf. Paul Ricoeur, Freud and Philosophy: an essay on interpretation. New Haven: Yale University
Press, 1970, p. 32-33.
22
John Glasse, Barth on Feuerbach. The Harvard Theological Review, v. 57, n. 2, abr. 1964, p. 69.
10
Feuerbach, por sua vez, a religião ocupava o lugar central: “nunca houve um
pensador em sua própria época tão preocupado e devotado à crítica da religião”.23
As noções feuerbachianas de projeção e alienação foram fundamentais para
as reflexões de Marx. Enquanto Feuerbach trabalhou apenas com a dimensão
individual e antropológica, Marx colocou estas questões na dimensão política e
socioeconômica. Embora não esteja interessado em elaborar uma teoria sistemática
da religião Marx indica que “a crítica da religião é a condição preliminar de toda a
crítica”. 24 Em sua visão a religião era (1) a teoria geral deste mundo (sua lógica sob
forma popular); (2) a sanção moral do mundo; e (3) sua consolação e justificação
universal. É através da religião que o ser humano se realiza na fantasia, quando este
não consegue se realizar concretamente no mundo, pois “a religião é o suspiro da
criatura oprimida, a alma de um mundo sem coração”.25 Nesse sentido, a religião
precisa ser abolida para que a felicidade ilusória do povo dê lugar à felicidade real. A
crítica da religião é necessária para destruir “as ilusões do homem para que ele pense,
aja, construa a sua realidade como homem sem ilusões chegado à idade da razão”.26
Já em Freud, há uma constante ênfase de que a religião é uma neurose
universal da humanidade.27 Seu argumento é de que a origem psíquica28 da religião
se situa nas ilusões e desejos da humanidade. Frente à esmagadora e indiferente força
da natureza, seguindo um protótipo infantil, o ser humano procura atribuir a ela um
caráter paterno (aqui surge a noção de Deus). Logo, a religião apresenta uma missão
tríplice: (1) “exorcizar os terrores da natureza”; (2) “reconciliar os homens com a
crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte”; e (3)
“compensá-los pelos sofrimentos e privações”.29 Entretanto, ao atingir o estágio de
“maioridade” o ser humano precisa abandonar a neurose infantil – a religião, pois
quanto maior “o número de homens a quem os tesouros do conhecimento se tornam
acessíveis, mais difundido é o afastamento da crença religiosa.”30
23
V. Harvey, Feuerbach and the interpretation of religion. op. cit., p. 3.
24
Karl Marx, Contribuición a la crítica de la filosofía del derecho de Hegel. In: H. Assmann e M.
Reyes, Sobre la religion I: Karl Max Friedrich Engels. op. cit., p. 93-94.
25
Ibid.
26
Ibid.
27
Michael Palmer, Freud e Jung: sobre a religião. São Paulo: Loyola, 2001, p. 27.
28
Freud reconhece que o conteúdo de sua crítica da religião não é inédito: “tudo o que fiz - e isso
constitui a única coisa nova em minha exposição - foi acrescentar uma base psicológica às críticas de
meus grandes predecessores” (O futuro de uma ilusão. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 111).
29
Ibid., p. 97.
30
Ibid., p. 113.
11
31
Giorgio Penzo, Friedrich Nietzsche (1844-1900): O divino como problematicidade. In: Giorgio
Penzo e Rosino Gibellini (Orgs.), Deus na filosofia do século XX. São Paulo: Loyola, 2002, p. 30.
32
Cf. Mauro Araujo de Sousa, A morte de Deus em Nietzsche: fim da metafísica? In: Jaci Maraschin
e Frederico Pieper Pires (Orgs.), Teologia e Pós-Modernidade: novas perspectivas em teologia e
filosofia da religião. São Paulo: Fonte Editorial, 2008, p. 87.
33
Cf. G. Penzo, Friedrich Nietzsche (1844-1900): O divino como problematicidade. op. cit., p. 30, 32.
34
Cf. Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência. São Paulo: Hemus, 1981, p. 125.
35
G. Penzo, Friedrich Nietzsche (1844-1900): O divino como problematicidade. op. cit., p. 32.
36
Cf. M. Sousa, A morte de Deus em Nietzsche: fim da metafísica? op. cit., p. 70-72, 85.
37
Friedrich Nietzsche, The Anti-Christ. Radford, VA: Wilder Publications, 2008, p. 50.
38
Para uma relevante contextualização e avaliação das críticas da religião em Feuerbach, Marx, Freud
e Nietzsche veja Hans Küng, Does God Exist?: an answer for today. New York: Vintage Books, 1981.
39
Aldo Natale Terrin, Em defesa da autonomia do estudo da religião. O sagrado off limits. São Paulo:
Loyola, 1998, p. 18.
12
40
O. Maduro, Religião e luta de classes, op. cit., p. 32.
41
Ibid.
42
W. Smith, The Meaning and End of Religion, op. cit., p. 131.
13
43
Suíço, Karl Barth (1886-1968) iniciou seus estudos teológicos com 15 anos em Berna. A seguir, ele
estudou nas universidades alemãs de Berlim, Marburg e Tübingen. Na Alemanha ele teve contato com
os célebres teólogos do último liberalismo teológico (H. Gunkel, A. Harnack e W. Herrmann).
44
Cf. Eberhard Busch, Karl Barth: His life from letters and autobiographical texts. Grand Rapids, MI:
William B. Eerdmans, 1994, p. 60-125. O manifesto produzido por 93 intelectuais alemães, que
incluía os nomes de seus antigos professores, dava suporte à política beligerante de Kaiser Guilherme
II, que levou a Alemanha a entrar na guerra em 1914.
45
A expressão “teologia da crise” apontava para duas situações: (1) a crise sócio-econômica e
cultural, em tempos de guerra; (2) a Palavra de Deus como juízo divino sobre a tentativa humana de
alcançar o sucesso pelas próprias forças. Por sua vez, a expressão “teologia dialética” enfatizava a
descontinuidade entre Deus e a criação, o evangelho e a cultura, em contraposição à teologia liberal
que tentava harmonizar Deus e o ser humano, fé e cultura.
46
Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX. São Paulo: ASTE, 1999,
p. 242-243.
14
mensagem cristã à sua geração. Contudo, nessa época Barth enfrentou uma crise
metodológica que fez com que ele abandonasse esse projeto de dogmática,
por ter-se convencido da impropriedade do método empregado até então.
A experiência vivida com o seu comentário de Romanos se repetia: uma
nova edição se fazia necessária, e ainda que Barth pudesse dizer
novamente aquilo que havia dito antes, já não podia fazê-lo da mesma
forma. [...] Barth concluiu, por fim, que teria de começar novamente,
libertando-se dos últimos restos de explicação e de justificação filosófico-
antropológicas para a investigação da doutrina cristã.47
47
Ricardo Quadros Gouvêa, Prefácio à 1ª edição brasileira. In: Karl Barth, Fé em busca de
compreensão: fides quaerens intellectum. São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 11.
48
Cf. Karl Barth, How my Mind has Changed. In: Walter Altmann (Org.), Dádiva e Louvor: artigos
selecionados. São Leopoldo: Sinodal, 1996, p. 410.
49
Veja Hans Urs von Balthasar, The Theology of Karl Barth: exposition and interpretation. San
Francisco: Ignatius Press, 1992.
50
K. Barth, Fé em busca de compreensão, op. cit., p. 19-20.
51
Há um esboço detalhado de toda a estrutura da Church Dogmatics em John D. Godsey, Karl Barth's
table talk. Scottish Journal of Theology Occasional Papers, n. 10, 1963. As datas aqui indicadas se
referem ao texto original em alemão. A tradução inglesa se deu entre 1936-1969.
15
O quinto e último volume, que não pôde ser escrito, falaria sobre a Redenção.
De forma específica, o capítulo número dois do primeiro volume trata da “Revelação
de Deus”. Este capítulo, por sua vez, subdivide-se em três seções: (1) “O Deus
triúno”, (2) “A Encarnação da Palavra” e (3) “O Derramamento do Espírito Santo”.
Justamente no contexto desta terceira seção está o §17 que se intitula, na versão
inglesa, “The Revelation of God as the Abolition of Religion”. Portanto, na Church
Dogmatics, este é o texto mais importante acerca da temática da crítica da religião.
Nesta última fase de sua teologia, Barth não ficou absorto na produção
bibliográfica, muito embora essa tenha sido o período mais profícuo de seus escritos.
Seu engajamento junto à comunidade remonta ao seu pastorado em Safenwil. Além
de ser socialista ele também ajudou as operárias de algumas fábricas têxteis a se
organizarem para conseguirem melhores condições de trabalho. Agora, no contexto
preliminar à Segunda Guerra mundial, a postura de Barth não foi diferente. Sua
oposição ao nazismo foi traduzida em práticas que levaram ao estabelecimento da
Igreja Confessante e à Declaração Teológica de Barmen. 52 O resultado não poderia
ser diferente: em 1935 Barth foi expulso da Alemanha. Ele decidiu, então, se
52
Veja uma descrição detalhada da atuação política de Barth contra o nazismo em Daniel Cornu, Karl
Barth: teólogo da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971.
16
estabelecer na Basiléia, sua cidade natal, onde prosseguiu sua atividade teológica, e
ampliou volumosamente a quantidade de seus escritos.
Tendo em vista o grande volume de produção bibliográfica53 de Barth, suas
obras podem ser classificadas em quatro grupos principais:
· Obras exegéticas – a mais importante foi Carta aos Romanos (2ª ed., 1922)
· Obras históricas – a mais significativa do ponto de vista metodológico foi o
livro sobre Anselmo, Fé em busca de Compreensão (1931); mas a mais
extensa foi Die Protestantische Theologie im XIX Jahrhundert54 (1947), que
pinta o quadro da teologia protestante no período Iluminista e retrata os
grandes teólogos do século XIX, de Schleiermacher a Ritschl.
· Obras dogmáticas – a mais importante foi Church Dogmatics.
· Obras políticas – vários escritos.
53
O levantamento bibliográfico completo de Karl Barth até dezembro de 1955 apontava 406 títulos.
(Cf. Battista Mondin, Os grandes teólogos do século vinte: os teólogos protestantes e ortodoxos. São
Paulo: Paulinas, 1987, p. 21)
54
Há uma tradução em inglês de onze capítulos desta obra, intitulada From Rousseau to Ritschl.
55
Cf. R. Gouvêa, Prefácio à 1ª edição brasileira, op. cit., p. 12
56
Cf. Karl Barth, A humanidade de Deus. In: Walter Altmann (Org.), op. cit., p. 389-405.
17
Nela, a divindade de Deus pode ser assim esboçada: a) Deus é Deus, e não é o
mundo; b) o mundo é mundo, e não é Deus: nenhuma via conduz o mundo a Deus; c)
o encontro de Deus com o mundo é krisis (juízo), e é um tocar o mundo de maneira
tangencial. Já a outra reviravolta, que é a 3ª fase de seu pensamento, foi em realidade
um movimento de retração em face à forte guinada da reviravolta anterior. Nela
Barth visava reconhecer a humanidade de Deus. Os textos que revelam essa retração
se encontram na Dogmática. Em comparação com o esboço anterior, esta reviravolta
é assim caracterizada: a) Deus é Deus, mas é Deus para o mundo: ao Deus que é o
totalmente Outro sucede a figura de Deus que se faz próximo do mundo; b) o mundo
é mundo, mas é um mundo amado por Deus: passa-se do conceito da infinita
diferença qualitativa aos conceitos de aliança, reconciliação, redenção; c) Deus
encontra o mundo em sua Palavra, em Jesus Cristo.57
Em alguns textos anteriores ao A humanidade de Deus, Barth já demonstrava
insatisfação acerca da maneira como sua teologia era retratada por outros. Esse
descontentamento é evidente nos prefácios escritos pelo teólogo suíço nas edições
alemã e inglesa da obra de Otto Weber acerca de sua Dogmática. 58 No prefácio da
edição alemã (1950) ele indica não apenas que muitos não estavam entendendo
devidamente suas idéias, mas que estes tiravam conclusões de sua teologia sem ler
seus escritos.59 No prefácio da edição inglesa (1952), ele expressa que a imagem que
muitos fazem dele não passa de caricaturas desenhadas de maneira apressada, e que
estas são rápida e precipitadamente aceitas, bem como reproduzidas
interminavelmente. Ele afirma que dificilmente se reconheceria nos rótulos de “neo-
ortodoxia”, “Deus como totalmente Outro”, “distinção infinitamente qualitativa de
Kierkegaard”, “condenação da cultura e da civilização”. Em seu desabafo, Barth
apela que as pessoas leiam os seus textos com maior atenção e amplitude, para que as
conclusões não sejam precipitadas e distorcidas.60
Tal compreensão e precaução metodológica são úteis na análise de Carta aos
Romanos (correspondente à 2ª fase) e na análise da Church Dogmatics
(correspondente à 3ª fase), a fim de encontrar similaridades e mudanças de conteúdo,
ênfase ou linguagem. Após um panorama geral do pensamento barthiano, seu método
57
Cf. Rosino Gibellini, A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2002, p. 30.
58
Cf. Otto Webber, Karl Barth's Church Dogmatics. Philadelphia: The Westminster Press, 1953.
59
Cf. Ibid., p. 9-10.
60
Cf. Ibid., p. 7.
18
61
P. Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX. op. cit., p. 243.
62
Ibid. Tillich contesta o rótulo de “teologia dialética” para o pensamento de Barth, especialmente na
sua relação entre revelação e religião: “Trata-se de um termo inadequado. Essa teologia, no seu início
profético, era paradoxal; depois se sobrenaturalizou. Mas nunca foi dialética. A dialética supõe um
progresso interno que vai de um estado a outro impulsionado por dinâmica própria.” (Ibid.)
19
nada que ver com a realidade humana não tem relevância para os problemas e
desafios humanos, e também tira da religião seu aspecto experimental e místico.63
Ao analisar o nascimento da teologia dialética, H. Zahrnt também comenta
sobre a crítica da religião: Barth decreta uma sentença de morte à história da religião
e à moralidade. Isso representa uma condenação do cristianismo. É neste ponto que a
eloqüente impaciência de Barth chega ao seu clímax e as comparações se tornam
mais agudas.64 De maneira específica, ele afirma que embora a crítica de Barth à
religião seja dirigida a todo e qualquer tipo de religião, seu principal ataque é contra
o cristianismo, contra a igreja: “O comentário fundamental de Barth sobre a religião,
que representa a culminação do pecado humano, é de alguma forma intensificado,
multiplicado quando ele chega à igreja.” 65 Zahrnat conclui que a Carta aos Romanos
pode ser considerada, em grande parte, um catálogo de defeitos eclesiais.
Por sua vez, J. Moltmann entende que, no contexto da crítica moderna da
religião, Barth indicou energicamente que não se pode identificar a fé com a religião.
A partir da compreensão dos profetas e os apóstolos, a fé bíblica tem adotado uma
atitude eminentemente crítica frente à religião, visto que o principal inimigo do ser
humano não é a incredulidade, mas a superstição, a idolatria e a auto-justificação.
Moltmann assevera que a crítica filosófico-moderna da religião era dirigida
fundamentalmente contra a religião da sociedade: o cristianismo burguês. Aliás,
Feuerbach, Marx, Freud e Nietzsche pouco sabiam das outras grandes religiões da
humanidade. Do mesmo modo, a crítica de Barth focalizava o cristianismo que havia
se tornado “religioso”, e não às outras religiões: a crítica barthiana não representa,
necessariamente, uma afronta ou intolerância às religiões não-cristãs.66
Editor da Church Dogmatics para a língua inglesa, T. Torrance comenta a
crítica da religião presente em Carta aos Romanos, ressaltando a profunda
concepção que Barth tinha do pecado, em virtude de suas leituras de Lutero e
Paulo.67 Nesse contexto, o pecado é visto como uma categoria essencialmente
religiosa, e é precisamente dentro da religião que o pecado toma a sua forma
63
Cf. Wilhelm Pauck, Barth's Religious Criticism of Religion. The Journal of Religion, v. 8, n. 3, jul.
1928, p. 453-477.
64
Cf. Heinz Zahrnt, The question of God: protestant theology in the twentieth century. New York:
Harvest Book, 1969, p. 34.
65
Ibid., p. 36.
66
Cf. Jürgen Moltmann. La Iglesia, fuerza del Espiritu: hacia una eclesiología mesiánica. Salamanca:
Ediciones Sigueme, 1978, p. 190-191.
67
Cf. Thomas F. Torrance, Karl Barth: an introduction to his early theology, 1910-1931. London:
SCM, 1962, p. 63.
20
68
Cf. Ibid., p. 65, 68.
69
Cf. Geoffrey W. Bromiley, An Introduction to the Theology of Karl Barth. Grand Rapids, MI:
William B. Eerdmans, 1979.
70
Ibid., p. 29.
71
Cf. Ibid., p. 29-30.
21
72
Cf. H. Küng, Does God Exist?, op. cit., p. 516.
73
Cf. H. Küng, Introdução: O debate sobre o conceito de religião, op. cit., p. 8.
74
Cf. Gary Dorrien, The Barthian Revolt in Modern Theology: theology without weapons. Louisville,
KY: Westminster John Knox Press, 2000, p. 3-5.
75
Ibid., p. 3.
22
76
Cf. Karl Barth, On Religion: the revelation of God as the Sublimation of Religion. Translated and
Introduced by Garret Green. London/New York: T&T Clark, 2006.
77
Cf. Garret Green, Challenging the Religious Studies Canon: Karl Barth's Theory of Religion. The
Journal of Religion, v. 75, n. 4, out. 1995, p. 475.
23
78
Cf. R. Gibellini, A Teologia do Século XX, op. cit., p. 106.
79
Érico João Hammes, Cristologia e Seguimento em Dietrich Bonhoeffer. Teocomunicação, v. 21, n.
94, 1991, p. 507. Na introdução de uma compilação de cartas e diários de Bonhoeffer, Alemany
afirma que “não é casual o fato de que o primeiro e mais forte impacto produzido pelo pensamento de
Dietrich Bonhoeffer ao ser conhecido além das fronteiras de seu país e de sua igreja, foi exercido
precisamente por um punhado de cartas.” (Dietrich Bonhoeffer, Redimidos para lo humano: cartas y
diarios [1924-1942]. In: José J. Alemany [Org.]. Salamanca: Sigueme, 1979, p. 11).
80
André Dumas, Dietrich Bonhoeffer: uma igreja para os não religiosos. In: André Dumas, Jean Bosc,
e Maurice Carrez (orgs.), Novas fronteiras da teologia: teólogos protestantes contemporâneos. São
Paulo: Duas Cidades, 1969, p. 101.
24
81
Eberhard Bethge, Dietrich Bonhoeffer: a biography. Minneapolis: Fortress Press, 2000, p. 82.
82
Na Alemanha, para que se tornar catedrático é preciso, normalmente, preencher dois pré-requisitos:
escrever outra tese após o doutorado (habilitação) e ser convidado pela Universidade.
83
R. Gibellini, A Teologia do Século XX. op. cit., p. 107.
84
Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 133.
25
Logos de Deus, ali onde se pergunta por Deus porque já se sabe quem é Deus”91.
Mas esta tarefa não estava sendo cumprida. A igreja não representava um lugar
privilegiado para se encontrar com Cristo. No contexto político alemão, ela se tornou
herética ao capitular ante a imposição discriminatória do nazismo, olvidando, o
senhorio exclusivo de Cristo.92
A constatação do fracasso da igreja já estava presente em 1932. Quando
participou do International Youth Conference na Suíça, seu tema foi: “A Igreja está
morta”. Seu argumento teve confirmação em 1933, quando Hitler assumiu o poder e
a Igreja evangélica oficial aceitou o parágrafo ariano que proibia a ordenação de
pastores de origem judaica. Com todos estes eventos, Bonhoeffer hesitou quanto ao
caminho que deveria escolher: “Poderia permanecer na Universidade. Mas a ciência
universitária lhe parecia agora um tanto fora de tempo. Poderia exercer o pastorado,
mas a igreja alemã aceitara o parágrafo ariano”93. É bem verdade que nessa época
floresceu a Igreja Confessante, que pretendia ser uma versão cristã não-nazista, mas
Bonhoeffer duvidava que ela pudesse extrapolar a linha intra-eclesiástica. 94 Por isso,
na segunda metade de 1933 ele aceitou o cargo de pastor na igreja alemã de Londres,
com um duplo propósito: “relacionar a Igreja Confessante alemã com o movimento
ecumênico e, ao mesmo tempo, obrigar o movimento ecumênico a viver em estado
de confissão e não apenas em estado de amizade inter-eclesiástica.”95
Mas em 1935, a pedido da Igreja Confessante, Bonhoeffer retornou à
Alemanha para assumir um clandestino seminário para pastores desta igreja, em
Finkenwald. O seminário esteve em funcionamento até 1937, quando foi fechado
pelo nazismo e Bonhoeffer foi proibido de ensinar ou publicar livros. No período em
que dirigiu o seminário, Bonhoeffer escreveu dois livros: Nachfolge (publicado em
1937 - traduzido para português como Discipulado) e Gemeinsames Leben
(publicado em 1939 - traduzido em português como Vida em Comunhão). Com
Nachfolge, que literalmente significa “seguimento”, a “cristologia acadêmica torna-
se cristologia prática”96. A tônica da obra é que o discipulado não se caracteriza pela
assimilação de um conteúdo doutrinário, mas pela obediência. Se no final do
91
Dietrich Bonhoeffer, Quien es y quien fue Jesucristo? Su historia y su misterio. Barcelona: Ariel,
1971, p. 17.
92
Cf. E. Hammes, Cristologia e Seguimento em Dietrich Bonhoeffer. op. cit., p. 499-500.
93
A. Dumas, Dietrich Bonhoeffer: uma igreja para os não religiosos. op. cit., p. 104.
94
Dumas explica que “a igreja confessante nunca se constituiu em igreja autônoma. Sempre foi um
movimento de confissão dentro das igrejas evangélicas alemãs.” (Ibid., p. 105)
95
Ibid.
96
R. Gibellini, A Teologia do Século XX. op. cit., p. 109.
27
primeiro período de sua vida, conforme retratavam Sanctorum Communio e Act and
Being, Bonhoeffer pressentia que a teologia não se fundamentava suficientemente na
igreja, no final da segunda etapa da vida, conforme retratava Discipulado, ele
“achava que a confissão da igreja não se preocupava o bastante com o mundo”.97
À medida que o contexto político alemão tornava-se cada vez mais
conturbado, e os mecanismos de correção social apresentavam-se impotentes,
Bonhoeffer convencia-se de que o pacifismo era uma postura ilegítima. Era
necessário viver a fé cristã na co-responsabilidade social e política, usando, até
mesmo, o recurso extremo da conspiração contra a autoridade totalitária. Logo, em
1938 Bonhoeffer iniciou seus contatos com a resistência alemã e quando a guerra se
iniciou em 1939, ele resolveu entrar para o serviço de contra-espionagem. Tais ações
o levaram a refletir demoradamente nas questões éticas. Assim, no período de contra-
espionagem (1939 a 1943) Bonhoeffer se dedicou à produção de Ética98. Acusado de
alta traição, Bonhoeffer foi preso em 5 de abril de 1943. No cárcere, ele manteve
intensa correspondência com a noiva, com os pais e com Bethge. A coletânea de
cartas da prisão, que abarca os anos de 1943 a 1945, apresenta idéias teológicas
fragmentárias e inacabadas, mas que constituem um importante legado da teologia
bonhoefferiana, apontando para o seu último estágio de amadurecimento teológico. É
nesse material que Bonhoeffer explicita as idéias do cristianismo arreligioso.
Estudada a partir do ponto de vista da continuidade, a teologia bonhoefferiana
deve ser entendida através do conjunto de suas obras. Uma leitura isolada de seus
textos pode levar a reduções ou distorções de suas idéias. Isso não representa, no
entanto, uma desconsideração das diversas etapas de evolução de seu pensamento.
Essa, talvez, seja uma forma equilibrada de reconhecer a continuidade e a novidade.
Em cada uma das etapas de seu pensamento um elemento novo é acrescentado aos
que já se encontram presentes anteriormente. O resultado é a ampliação do
significado de todos os elementos, antigos e novos.99 Segundo J. Godsey a teologia
de Bonhoeffer pode ser dividida em três fases: Fundamentação teológica, Aplicação
teológica e Fragmentação teológica. A primeira fase (1906-1931) corresponde à
produção acadêmica de Sanctorum Communio e Act and Being, a segunda (1932-
97
A. Dumas, Dietrich Bonhoeffer: uma igreja para os não religiosos. op. cit., p. 106.
98
Por causa de sua prisão, Bonhoeffer não conseguiu terminar esta obra (que considerava a grande
obra de sua vida). Ela foi editada, a partir de seus manuscritos, por Bethge em 1948.
99
Cf. Prócoro Velasques Filho, Uma Ética para os nossos dias: origem e evolução do pensamento
ético de Dietrich Bonhoeffer. São Bernardo do Campo, SP: Editeo, 1977, p. 18.
28
1939) compreende as obras de interpretação das Escrituras, tais como Creation and
Fall, Discipulado, Tentação e Vida em Comunhão e, finalmente, a terceira fase
(1940-1945) corresponde à produção fragmentada de Ética e as cartas da prisão.100
De forma geral, em termos metodológicos, a evolução de seu pensamento
compreende a relação entre cristologia e eclesiologia. Até 1931 a cristologia se
subordinava à eclesiologia. Contudo, a partir desta época a eclesiologia foi submetida
à cristologia, que assume a centralidade de sua teologia.101 Após um panorama geral
do percurso bibliográfico e metodológico de Bonhoeffer é importante sublinhar a sua
crítica da religião, a partir da perspectiva de alguns de seus comentaristas.
arreligiosa não representa uma ruptura em seu pensamento, mas está diretamente
relacionada com seu pensamento anterior. Nesse sentido, a compreensão cristológica
bonhoefferiana é a base para a construção de sua crítica da religião.104
O teólogo britânico J. Godsey foi um dos precursores na interpretação do
pensamento de Bonhoeffer no mundo de fala inglesa. Ele também entende o
cristianismo arreligioso como uma espécie de clímax da cristologia bonhoefferiana.
Godsey ressalta que todas as vezes que Bonhoeffer explica o seu conceito de
religião, ele se refere a um pensamento metafísico, interior, subjetivo e
individualista. Logo, a interpretação religiosa do cristianismo seria uma espécie de
sistema de verdades abstratas.105 Além disso, Godsey advoga que “o problema da
interpretação arreligiosa não é meramente hermenêutico, mas envolve toda a
existência da própria igreja. Ela não é uma interpretação que se preocupa com a
religião, mas com a vida.”106 Por isso, a interpretação dos conceitos bíblicos não
deveria ser feita numa linguagem metafísica ou psicológica, nem em termos de um
sistema de doutrinas abstratas, ou da experiência interna dos indivíduos, mas em
termos de um envolvimento responsável com a vida. Para Godsey, Bonhoeffer
focaliza a crítica da religião principalmente em termos da interpretação e linguagem
da psicologia ou psicoterapia e da filosofia existencialista.
No continente americano um dos principais intérpretes de Bonhoeffer é
Clifford J. Green. Para ele, “Bonhoeffer separa completamente o cristianismo e a
‘religião’.”107 Além disso, ele percebe uma diferenciação notável entre a
compreensão de religião em Barth e em Bonhoeffer. Enquanto Barth utiliza
categorias teológicas como “idolatria” e “auto-justificação” em sua crítica da
religião, Bonhoeffer aborda a religião de um modo mais antropológico, numa forma
específica da história. Desse modo, Bonhoeffer descreve maneiras particulares em
que pessoas “religiosas” se comportam na situação atual, ao invés de propor uma
teoria geral da religião. Logo, as razões para Bonhoeffer separar completamente o
cristianismo da religião apresentam diferenças em relação ao pensamento de Barth,
principalmente porque Bonhoeffer possui uma definição ou compreensão da religião
104
Cf. E. Bethge, Bonhoeffer's Christology and His “Religionless Christianity”. In: Peter Vornink II
(org.), Bonhoeffer in a World Come of Age, Philadelphia: Fortress Press, 1968, p. 46-72.
105
Cf. J. Godsey, The theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 249. Curiosamente, esse trabalho foi
escrito inicialmente como uma dissertação orientada por Karl Barth em 1958 (cf. Clifford J. Green,
Bonhoeffer: a theology of sociality. Grand Rapids / Cambridge: William B. Eerdmans, 1999, p. 11).
106
J. Godsey, The theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 264.
107
C. Green, Bonhoeffer, op. cit., p. 258.
30
Ele comenta que, em Bonhoeffer, “Jesus Cristo é único lugar onde se pode
ver Deus e o mundo como não separados”. Por isso, “o cristianismo não se pode
confundir com as religiões de mistério, que ensinam uma redenção bem longe da
terra. A igreja viverá, como Jesus Cristo, a responsabilidade do real até seu último
limite”111. Para Dumas, Bonhoeffer se preocupa mais do que Bultmann e Barth, com
os problemas que estão ligados à realidade, e não tanto com as questões relativas ao
conhecimento ou inteligibilidade, como aqueles. Desse modo, para fugir do risco do
limitado intelectualismo que ronda os que estão muito preocupados com as
categorias do saber, Bonhoeffer busca conceber uma eclesiologia a partir do mundo
não religioso. “A confissão sem imitação acaba em puro verbalismo idealista.”112
Por sua vez, H. Zahrnt percebe uma conexão entre a crítica da religião de
Barth e de Bonhoeffer. Para ele, Bonhoeffer assimilou a crítica barthiana que
distinguia de forma radical a religião humana da revelação divina. Contudo, o autor
entende que Bonhoeffer não ficou limitado a essa compreensão. Especialmente nas
cartas da prisão ele foi decisivamente além da crítica barthiana. Isso porque, na visão
de Zahrnt, Barth restringiu seu criticismo da religião ao campo da dogmática, mas
108
Cf. Ibid., p. 259.
109
André Dumas, Dietrich Bonhoeffer: uma igreja para os não religiosos. op. cit., p. 99.
110
Ibid., p. 99-100.
111
Ibid., p. 111.
112
Ibid., p. 114.
31
113
Cf. H. Zahrnt. The question of God. op. cit., p. 134.
114
Cf. Ibid., p. 157.
115
Cf. Ralf K. Wüstenberg, A theology of Life: Dietrich Bonhoeffer's religionless Christianity. Grand
Rapids, MI / Cambridge U.K.: William B. Eerdmans, 1998, p. xiv.
116
Cf. Gustavo Gutiérrez, Os limites da teologia moderna: um texto de Bonhoeffer. In: A força
histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 314-328.
32
117
Ibid., p. 317.
118
Ibid., p. 323-324.
33
119
Para esse prefácio, utilizamos a versão em inglês (Karl Barth, The Epistle to the Romans. London:
Oxford University Press, 1965, p. 7), pois a versão brasileira de Carta aos Romanos inclui apenas os
prefácios à 1ª, 5ª e 6ª edições.
120
Barth entende que a chave de compreensão dos temas bíblicos centrais não é histórica, mas
existencial: a queda de Adão não representa um evento histórico, segundo o qual a humanidade
atualmente sofre suas conseqüências, mas é um pecado transcendental; semelhantemente, a
justificação que Cristo trouxe ao mundo não se refere a uma data histórica, mas é ubíqua, perene e
transcendental (cf. K. Barth, Carta aos Romanos. São Paulo: Novo Século, 2005, p. 265). Do mesmo
modo, para ele, a visão escatológica do Novo Testamento não trata de uma noção temporal, nem se
alinha à visão de um fim do mundo catastrófico (cf. Ibid., p. 766). A ressurreição futura “alcança a
criatura que recebeu a graça, na totalidade de seu ser. [...] Este ‘futuro’ não tem o sentido vulgar de
tempo, como se devêssemos esperar por datas, para a sua efetivação; esse ‘futuro’ pode referir-se e de
fato envolve tanto o passado como o presente e o futuro.” (Ibid., 343). Por isso, Barth considera que
os temas bíblicos devem ser considerados, na melhor das hipóteses como parábolas, visto que as
palavras humanas são mera analogia (cf. Ibid., p. 766-767), pois se situam na ambigüidade da
realidade humana (cf. Ibid., p. 344). Este é o reconhecimento da “inadequação da fala humana para
expressar a verdade divina” (Ibid., p. 520).
36
121
Prefácio de K. Barth à 2ª edição, em inglês (The Epistle to the Romans. op. cit., p. 10).
122
Barth traça um paralelo direto entre este conceito kierkegaardiano, que promove a representação de
Deus em sua “sua total obscuridade” (K. Barth, Carta aos Romanos. op. cit., p. 148), e a ênfase dos
reformadores protestantes no “Deus absconditus”. Ele assevera que o cerne da Epístola aos Romanos
é que o Deus absconditus é o Deus revelatus em Jesus Cristo (cf. Ibid., p. 649). Embora não se possa
negar que Barth discute o Deus revelatus, é evidente na leitura de seu texto que há uma ênfase bem
maior no Deus absconditus, o Deus “desconhecido”.
123
Cf. Ibid., p. 16.
124
Ibid.
125
Ibid., p. 15. Grifo nosso.
37
126
Cf. Ibid., p. 28.
127
Para Barth, só é possível conhecer Deus a partir da revelação divina em Jesus Cristo (cf. Ibid., p.
30).
128
Cf. Ibid., p. 38.
129
Cf. Ibid., p. 39-40.
130
Cf. Ibid., p. 39.
38
A pessoa que opta pela fé decide “abrir mão de sua confiança na sabedoria, na
ciência, nas coisas certas e palpáveis do mundo e do conforto que este oferece, para
depender exclusivamente da graça de Deus” 136. Logo, as expressões “abrir mão” e
“dependência” indicam o que Barth tem em mente quando fala de fé. Para ele, a fé
genuína “é vacuidade; é a verdadeira fé que se curva perante o que nunca haveremos
de ser, ou haveremos de ter ou poderemos fazer.”137 Em outros termos, “a fé é a fonte
que promove no homem a vontade de esvaziar-se; a fé é a comovida persistência na
negação.”138 Novamente, Barth cita Lutero: “Só o preso é liberto, só o fraco é
robustecido, só o humilde é exaltado; só o que está vazio se farta; apenas o nada se
torna algo”139.
A partir dessa percepção, a fé se apresenta como uma realidade que “não é,
jamais, idêntica à ‘religiosidade’”140. A contraposição barthiana entre fé e religião
131
Cf. Ibid., p. 41-42.
132
Cf. Ibid., p. 44.
133
Ibid., p. 127.
134
Ibid., p. 147.
135
Ibid., p. 43.
136
Ibid., p. 163.
137
Ibid., p. 132.
138
Ibid., p. 48.
139
Ibid., p. 50.
140
Ibid., p. 45.
39
implica que “toda experiência religiosa que se apresentar como sendo mais do que
um vazio, que pretender ter conteúdo e traduzir a posse ou o gozo de Deus”141
constitui “uma traição a Deus. E o nascedouro do ‘Não-Deus’, o surgimento dos
ídolos [...] esquece-se o homem de que tudo o que é passageiro, embora seja em
semelhança, é apenas semelhança. A glória de Deus é trocada pela imagem de seres
perecíveis”142. Assim, Barth aponta que quando a religião pretende possuir um
conteúdo ou posse de Deus, há o nascimento do Não-Deus, isto é, o surgimento dos
ídolos. Tal abordagem indica uma noção paralela ao texto onde Barth distingue a
mensagem de Deus e a mensagem religiosa, que se caracteriza pela divinização do
ser humano. Este paralelo se torna mais nítido quando Barth destaca que
quando ignoramos [...] a separação que existe entre nós e Deus, é porque,
ou não temos compreensão de nosso estado por absoluta insensibilidade
espiritual e moral, ou é porque fazemos de Deus nosso igual, quer
trazendo-o ao nosso nível ou fazendo-os iguais a ele [...] Levanta-se a
meio caminho entre “cá e lá” entre nós e o totalmente outro, a neblina
[d]a opacidade religiosa na qual [...] se erigem acontecimentos humanos
animalescos em experiência divina.143
141
Ibid., p. 61.
142
Ibid., p. 62.
143
Ibid., p. 60-61.
144
Cf. Ibid., p. 61.
145
Cf. Ibid., p. 52.
146
Cf. Ibid., p. 53.
147
Ibid., p. 52.
40
148
Cf. Ibid., p. 55.
149
Cf. Ibid., p. 52.
150
Ibid., p. 64.
151
Ibid., p. 66.
152
Ibid., p. 75-76.
153
Cf. Ibid., p. 78.
154
Ibid., p. 83.
155
Ibid., p. 100.
156
Ibid., p. 102.
157
Ibid.
41
158
Cf. Ibid., p. 95.
159
Cf. Ibid., p. 125.
160
Ibid., p. 105.
161
Ibid., p. 129.
162
Cf. Ibid., p. 125.
163
Cf. Ibid., p. 129.
164
Ibid., p. 166.
165
Cf. Ibid., p. 98.
166
Ibid., p. 100.
42
167
Ibid., p. 101.
168
Cf. Ibid., p. 166.
169
Cf. Ibid., p. 50.
170
Ibid., p. 113.
171
Ibid., p. 116.
172
Cf. Ibid.
173
Cf. Ibid., p. 138. Barth explica que “na ira de Deus vemos a sua justiça; na crucificação vemos a
ressurreição; na morte, a vida; vemos o “Sim” contido em “Não” [...] no julgamento vemos o dia da
salvação que se aproxima” (Ibid., p. 245).
174
Ibid., p. 43.
175
Ibid., p. 119.
176
Cf. Ibid., p. 95.
43
quando toda pretensão humana é anulada, abatida por Deus; quando Deus dá o seu
“Não”, como resposta definitiva; quando a ira de Deus se torna inevitável; quando
Deus é reconhecido como Deus!”177 Nesse sentido, Barth salienta que a vacuidade da
experiência da fé se diferencia da religião: “os fiéis que perseveram em Deus,
perseveram no Reino de Deus somente se, e enquanto, perseverarem sem
preocupação da religiosidade” 178. Em sua concepção a religião precisa ser suprimida:
quando reconhecerem que Deus e somente ele tem razão; quando a sua
religião suprimir esta mesma religião; quando a sua piedade revelar a
inexistência dessa mesma piedade; quando sua sobranceria psicológica e
intelectual descer ao nível a que são rebaixadas todas as preeminências
humanas; quando os homens que galgaram os mais altos píncaros [da
glória e reputação humanas] percebem que todos são culpados perante
Deus [...] Só então Deus confirmará sua fidelidade ao homem que não se
deixou iludir pela infidelidade humana.179
177
Ibid., p. 106.
178
Ibid., p. 136.
179
Ibid., p. 133.
180
Ibid., p. 166.
181
Cf. Ibid., p. 184.
44
182
Ibid., p. 191.
183
Ibid., p. 187.
184
Ibid., p. 188.
185
Ibid.
186
Ibid., p. 167.
187
Ibid., p. 168.
188
Ibid., p. 197.
45
humano. Barth explica que, embora as obras de Abraão não sejam contabilizadas no
“Livro da Vida” (da justificação divina), certamente elas são registradas com mérito
no “Livro da História da Religião” que relaciona a dignidade e a glória dos grandes
homens, das nobres personalidades. Ademais, “é lícito e é útil que se proclame tudo
o que se puder dizer de verdadeiro, de bom, de glorioso, a respeito de Abraão e de
vultos iguais a ele”189. Esta atitude condiz com a “contabilidade humana”: “a honra e
a gratidão com que a humanidade homenageia Abraão e seus pares, não é favor, mas
retribuição justa; é o pagamento de uma dívida que a humanidade contrai com um e
com outros, em diferentes graus, no correr da história”190. Mas Barth acrescenta:
“porém, se nesta retribuição, Deus for inserido [...] não se trata do verdadeiro Deus,
mas do espírito deificado do próprio homem”191. Para ele, é preciso distinguir
adequadamente a contabilidade religiosa da contabilidade da fé, pois a fé apresenta
total distinção da religião:
descobrimos, na fé, a verdade de toda religião [...] todavia nenhures é ela
idêntica às realidades palpáveis, psicológicas e históricas das experiências
religiosas. A fé jamais se mescla, interfere, ou se confunde com o
desenvolvimento contínuo do ser humano, de suas possibilidades e suas
obras; nem se transforma em caminho, ou meio, no correr da vida
material, na vida eclesiástica, na religião192
189
Ibid., p. 188.
190
Ibid.
191
Ibid., p. 189.
192
Ibid., p. 197.
193
Cf. Ibid., p. 198.
194
Cf. Ibid., p. 199.
195
Ibid.
46
196
Ibid. Barth parece enxergar o batismo cristão de forma paralela à circuncisão judaica, pois ele fala
do batismo como “um fato do mundo aparente da religião” (Ibid., p. 294), um sinal “de insuficiência,
de vacuidade, de nulidade, de total desvalia” (Ibid., p. 297).
197
Cf. Ibid., p. 199.
198
Ibid.
199
Ibid.
200
Ibid., p. 198.
201
Ibid., p. 200.
202
Ibid., p. 198.
203
Esta noção parece evidente na afirmação de que Abraão “exibe uma religiosidade mais consciente,
moral mais pura e o resultado valoroso de uma fé heróica.” (Ibid., p. 183. Grifo nosso)
47
204
Ibid., p. 201. Na discussão de Barth há um nítido paralelo entre a circuncisão de Abraão e o
batismo cristão. Para ele, uma pessoa batizada - que tenha a mesma disposição de fé de Abraão - não
deve ser considerada meramente como religiosa, mas alguém que recebeu a graça de Deus. É bem
verdade que ela terá experiências religiosas: provavelmente pertencerá a alguma igreja, terá suas
crenças, manterá uma vida oração, e nutrirá um elevado comportamento ético-religioso. Numa
perspectiva histórica concreta, essa pessoa terá seu lugar no ambiente da religiosidade humana, e seu
tipo característica será compatível com os que são estudados e catalogados pela história e a psicologia
das religiões. Entretanto, todas essas características funcionam como sinais e testemunhas da graça
divina, e não um produto do poder da obediência humana que caracteriza a religião (Cf. Ibid., p. 326-
327).
205
Ibid., p. 201.
206
Ibid.
207
Ibid.
208
Ibid.
209
Ibid.
210
Ibid., p. 200.
48
O teólogo suíço acrescenta que, nesse caso, quando a religião pretende ser
mais que uma testemunha ou indicação do além - considerando-se uma realidade em
211
Ibid., p. 202.
212
Ibid.
213
Ibid., p. 203.
214
Cf. Ibid.
215
Ibid., p. 203-204. Barth sublinha que “toda religião, enquanto estiver do lado de cá, enquanto for
histórica, contemporânea, realidade palpável, está sujeita a essa regra, e dela não escapa a religião
legítima, sincera, profunda” (Ibid., p. 213).
49
si -, tal pretensão de grandeza absoluta que busca a semelhança com Deus “se traduz
em impiedade e injustiça que suscita a ira de Deus.”216 É no contexto dessa pretensão
religiosa que Barth destaca que “nenhuma atitude humana é mais duvidosa, mais
arriscada, mais sujeita à crítica, do que a religiosa”217.
É justamente onde estiverem as mãos postas; onde houver a sensação viva
da presença de Deus; onde se falar das coisas divinas e onde estiver a
pregação; onde houver a construção de templos e onde as obras forem
motivadas por ideais e razões as mais dignas; onde houver missão e
mensagem da ordem mais elevada; é aí, que domina o pecado [...] quando
não estiver presente, também, a maravilha, o milagre do perdão, quando o
temor do Senhor não estabelece a distância que medeia entre a criatura e o
Criador.218
216
Ibid., p. 213.
217
Ibid., p. 214.
218
Ibid.
219
Ibid., p. 218.
220
Ibid., p. 285.
50
profunda, mais pura e mais duradoura possibilidade”221 Isso significa que dentre
todas as atividades humanas, a religião possui “o sentido mais profundo, o mais puro;
entre todas as possibilidades humanas, é a religião que tem o maior poder vital e a
maior capacidade transformadora.”222 Nesse sentido, Barth enfatiza que é necessário
reconhecer “que o relacionamento com Deus tem também o seu lado humano,
subjetivo, histórico”223, ou seja, religioso. Aliás, é digno de apreciação o fato de que
“existem homens religiosos; que o caráter formado pela religião, o pensamento
inspirado nela, e as obras que ela motiva, se expressam em milhares de formas, obras
e frutos que entram para a história.”224 Em realidade, a religião também representa
uma das formas pelas quais Deus se vale para preparar o ser humano para que este se
converta e para “acompanhá-lo depois dessa mudança de rumo; é pela religião que
Deus leva o homem – consciente ou inconscientemente, a tomar uma posição.”225
Embora seja possível criticar algumas manifestações religiosas, esta será
“uma crítica relativa, e teremos que nos silenciar, embora também nossa aprovação
seja apenas relativa.”226 Essa aprovação relativa se dá porque - apesar de seu relativo
direito de reconhecimento, confissão e defesa -, a religião ainda constitui uma
“possibilidade humana, um aspecto histórico e real do homem, manifesto em seu
conteúdo psíquico, intelectual, moral e social e que é totalmente [inter-relacionada]
com o mundo e, portanto está também na penumbra do pecado e da morte.”227 Barth
salienta que “o respeito e a admiração que a religião merecer neste mundo não deve
obliterar a visão real de que qualquer absolutismo, transcendentalismo, e ligação
direta com Deus são ilusórios, fúteis, irreais”228. Assim, por ser humana, a religião é
considerada pelo autor uma possibilidade restrita, limitada, estreita e ineficaz.229
O teólogo suíço destaca que o véu da religiosidade está sobre toda a
humanidade, seja de forma mais densa para uns ou mais tênue para outros.230 “Como
seres humanos que somos, vivendo neste mundo, não podemos estar indenes à
influência religiosa.”231 Ele explica que a inevitável recordação humana de sua
221
Ibid., p. 284.
222
Ibid., p. 283.
223
Ibid., p. 282.
224
Ibid., p. 282-283.
225
Ibid., p. 283.
226
Ibid.
227
Ibid.
228
Cf. Ibid., p. 284.
229
Cf. Ibid., p. 355.
230
Cf. Ibid.
231
Ibid., p. 356.
51
ruptura com Deus cria experiências históricas e morais que impelem à religião.
Ademais, a própria graça divina acarreta tais experiências e, por isso, “não está
dissociada da religião, da moral, do eclesiasticismo e da dogmática que se
cristalizaram em torno dessas experiências.”232 Desse modo, a pretensa tentativa de
apresentar absoluta indiferença à religião, caracteriza uma empreitada imprudente e
pouco promissora, segundo o exemplo de Barth: “embora possamos passar de um
compartimento para outro, não poderemos sair da casa.”233 Todos os seres humanos
estão envolvidos nesta problemática da religião, nada se pode fazer para sair dessa
situação. Ainda assim, o autor aponta uma possível saída:
se estivermos mortos com Cristo, sepultados com ele, se, vistos desde a
cruz, já não pertencemos a este mundo mas ‘formos o que não somos’,
isto é, se houvermos, realmente, sido arrancados do jugo da lei, então já
não estamos presos às possibilidades que a religião oferece, nem às suas
exigências; então já estamos livres de toda e qualquer imposição
humana234
232
Ibid., p. 355.
233
Ibid., p. 356.
234
Ibid., p. 360.
235
Cf. Ibid., p. 365.
236
Cf. Ibid.
237
Ibid.
238
Cf. Ibid., p. 366.
52
“prisioneiros, todavia livres; como cegos, porém vendo”.239 À luz dessa possibilidade
impossível há o vislumbre do limite da religião. Segundo o autor, sua fronteira
extrema está na linha da morte, que “separa o campo das possibilidades humanas
daquilo que [só] é possível a Deus; é nessa linha que se faz a distinção entre a carne e
o espírito; entre a temporalidade e a eternidade”. 240 Ele acrescenta: “Ainda bem que a
religião tem de morrer. É em Deus que nos libertamos dela.”241 Barth explica que a
morte da religião ocorre no contexto da rendição e oferecimento de todas as
possibilidades humanas a Deus no Gólgota. A despeito de tudo o que a pessoa
religiosa seja, faça ou tenha, no Gólgota ela tributa somente a Deus a honra, o louvor
e a glória. Enquanto realidade histórico-espiritual que se projeta através da conduta
humana, a religião, vista a partir da cruz, é algo que precisa ser removido.242
Portanto, é na linha limite de todas as possibilidades religiosas que “terminam as
possibilidades humanas e começa a possibilidade de Deus”. 243 É ali na afirmação da
possibilidade impossível que “seremos religiosos como se não o fôssemos”.244
239
Ibid.
240
Ibid.
241
Ibid.
242
Cf. Ibid., p. 360.
243
Ibid., p. 368.
244
Ibid.
245
Ibid., p. 354.
246
Ibid., p. 372.
247
Barth define pecado da seguinte forma: “Pecado é um assalto a Deus. Este assalto se perpetua
sempre na ousada transposição da “linha da morte” que foi traçada ante nós [...] no endeusamento do
ser humano. Este assalto a Deus se dá quando erigimos o Deus deste mundo, o “Não-Deus” para
nosso Deus, na romântica suposição de que poderemos ter acesso direto a Deus, sem passar – como
ímpios e rebeldes que somos – pela porta estreita da morte” (Ibid., p. 261)
53
“religião é a atividade humana pela qual todas as suas demais possibilidades ficam,
notoriamente, expostas à luz de uma crise profunda, radical, que evidencia o pecado
e o torna real.”248 Desse modo, “quando desconsideramos a religião [...] então o
pecado já não tem destaque; a sua silhueta se perde por falta de pano de fundo”.249 A
religião não é o pecado, mas é através da religião que o pecado se torna evidente.
Pois é especialmente na religião que a criatura manifesta a sua rebelião contra
Deus.250 O teólogo suíço usa a queda humana para exemplificar esse princípio:
quando o ser humano estendeu sua mão à arvore do conhecimento para buscar aquilo
que não era (conhecedor do ‘Bem’ e do ‘Mal’ como Deus), ele encontrou sua própria
limitação, percebeu quem realmente era – seus olhos se abriram para enxergar sua
distância e distinção de Deus. Assim, Barth considera que esta foi uma experiência
religiosa. A prédica da serpente pôs a afirmação divina em dúvida – “certamente não
morrereis” -, ao propor uma espécie de ligação direta do ser humano com Deus.251
Através deste exemplo é possível perceber que o contraste existente entre
criatura e Criador, que é encoberto pelo pecado, somente se torna evidente na
religião.252 Nesse sentido, Barth entende que “quanto mais conseqüente for a nossa
religiosidade, quanto mais nos aprofundarmos nela, mais densa e mais profunda será,
sobre nós, a sombra da morte”.253 Para ele, ao atender à cobiça que está acima de
todas as cobiças (a religião) - o desejo de voltar à ligação direta com Deus que foi
perdida e alcançar a semelhança de Deus -, o ser humano percebe que no final de sua
maior possibilidade, ele está de mãos vazias e ainda mais afastado de Deus.254
Portanto, a religião representa “o ponto onde todas as possibilidades humanas [...]
ficam expostas à luz divina”,255 este é o seu significado.
É somente no homem religioso que vem à tona que o ser humano é carnal
e pecaminoso; que ele é um obstáculo a Deus, que está sob a ira divina. É
na religião que se revela a total insuficiência do saber humano, a sua
instabilidade, a sua absoluta superficialidade; é na religião que se
patenteia a fraqueza da vontade humana256
248
Ibid., p. 375.
249
Ibid.
250
Cf. Ibid., p. 380.
251
Cf. Ibid., p. 386-387.
252
Cf. Ibid., p. 388.
253
Ibid., p. 396.
254
Cf. Ibid., p. 397-398.
255
Ibid., p. 395.
256
Ibid., p. 285.
54
seu significado se expõe no poder que o pecado exerce sobre a humanidade, e sua
terrível realidade é a morte. Mas, no pensamento barthiano, é no contraste dessa
negatividade que se apresenta o “Homem Novo”, Jesus Cristo, aquele que está além
das possibilidades humanas, além do ser humano religioso.265 Portanto, estar “em
Cristo” é a condição de liberdade, a solução do enigma da vida humana que se sente
esmagada pela peso insuportável da religião.266
Pois estar “em Cristo” implica co-participação na supressão do ‘velho
homem’.267 Significa, dialeticamente, estar na interrogação de Cristo “e, por isso,
também em sua resposta; estar em seu “Não” e, portanto em seu “Sim”; em seu
pecado e, por isso, em sua justificação; em sua morte e, por isso, em sua vida.”268
Essa nova vida envolve a habitação do Espírito no ser humano, o que para Barth
representa a ressurreição:269 “O Espírito que recebemos ao sair da morte para a vida é
a supressão [da] duplicidade. A nova criatura, Cristo em nós, prevalece em sua
singularidade”.270 Para o autor, se a religião se caracteriza pela duplicidade - o
dualismo entre o ser humano interior (se compraz na lei divina) e exterior (se opõe à
lei divina), o além e o aquém, o ideal e o material -271 a nova criatura se caracteriza
pela singularidade. Esta é a realidade do ser humano que está em paz, adotado como
filho, redimido e liberto de todas as antinomias, uno em Deus.272
265
Cf. Ibid.
266
Cf. Ibid., p. 446.
267
Cf. Ibid., p. 428.
268
Ibid., p. 442.
269
Cf. Ibid., p. 456. A compreensão barthiana da ressurreição parece ser paradoxal. De um lado está a
declaração que denota a possibilidade da vida atual: a ressurreição “é um modo de ser, ter e de agir da
nova criatura que se relaciona com a maneira de ter, ser e agir da criatura velha” (Ibid., p. 354). De
outro, estão as afirmações de uma possibilidade que está além da vida atual: “Vemos o transcorrer da
nossa vida à sombra do Dia de Jesus Cristo, que ainda não raiou, mas está infinitamente próximo.”
(Ibid., p. 473); “o nosso tempo é o tempo do presente século e [...] a eternidade é o Dia de Jesus
Cristo, que não é ‘um’ dia mas o Dia de todos os dias e que existe desde antes, após e acima dos dias
de nossa vida” (Ibid., p. 483). É provável que esse paradoxo se alinhe à noção escatológica do “já” e
“não ainda”, que também pode ser percebido na discussão acerca do “Limite da Religião”.
270
Ibid., p. 464.
271
Cf. Ibid., p. 414.
272
Cf. Ibid., p. 505.
56
entre Israel, a igreja e o mundo religioso,273 pois ele entende a igreja como religião
organizada. 274 Dessa forma, é possível perceber que quando Barth discute sobre a
igreja, ele está, de fato, falando sobre a religião. Aliás, esta relação de identificação
se torna ainda mais evidente através da comparação de duas afirmações: o “mais
lindo pináculo das atividades humanas – a Religião [...] produz a ira de Deus”275; e
“no pináculo das possibilidades humanas, o ponto mais alto será sempre a torre da
Igreja”276. Assim como a abordagem barthiana da religião, em seu comentário sobre
a lei, está disposta em três partes - o limite, o significado e a realidade da religião -,
as considerações acerca da igreja estão organizadas em três etapas: a tribulação, a
culpa e a esperança da igreja.
273
Cf. Ibid., p. 515.
274
Cf. Ibid., p. 528.
275
Ibid., p. 328.
276
Ibid., p. 526.
277
Ibid., p. 516.
278
Ibid.
279
Ibid.
280
Ibid., p. 517.
281
Ibid.
57
Cristo. Nesse sentido, o autor salienta que aqueles que dela participam não objetivam
simplesmente a entrada no céu, mas almejam amar a Deus. A “entrada” no céu não é
pretendida em primeira instância, pois eles “já não confiam em seus dotes, seus bens
materiais, seu saber, seu estofo moral, sua espiritualidade, sua fé; não buscam nem
pedem recompensa, porque sabem que nada merecem.”282 Apenas vivem na
esperança, através da fé, crendo que somente Deus é poderoso para salvá-los.
Contudo, Barth reconhece que, de forma concreta, a igreja faz parte do
mundo humano e, por isso, é natural que ela caia repetidamente no pecado
fundamental, na “origem específica da queda do homem: o desejo de tornar-se igual
a Deus”.283 Aliás, “quanto mais a criatura tratar de seu relacionamento com o Criador
mais será o seu anseio de aproximar-se dele diretamente, contornando a cruz.”284 A
percepção dessa tendência natural permite, portanto, o reconhecimento de que “a
Igreja, sendo constituída por membros ainda sujeitos ao ‘corpo desta morte’, está em
natural oposição ao próprio Evangelho”.285 Nesse contexto, em linguagem figurada,
Barth indica que a tentativa de abandonar a igreja e entrar num bote salva-vidas para
fugir da catástrofe inevitável que lhe ameaça não faz qualquer sentido. Assim como
não há qualquer vantagem em se colocar como inimigo ou detrator dela. Para o
teólogo suíço, não é a troca ou o abandono da confissão religiosa que transforma o
ser humano, mas a graça dada por Deus.286
toda e qualquer polêmica anti-religiosa só tem sentido se o seu objetivo
for a afirmação de que só a Deus pertence a honra e jamais o polemista
[...] ao alçar a sua voz para lembrar a si mesmo e à Igreja da eternidade, o
Profeta [Paulo] prefere estar em todo instante do tempo presente com a
Igreja [...] no inferno, a estar com os pietistas [...] em um céu que não
existe. [...] Cristo está lá onde se reconhece inconsolavelmente que fomos
banidos de sua presença287
282
Ibid.
283
Ibid., p. 518.
284
Ibid.
285
Ibid., p. 523.
286
Cf. Ibid.
287
Ibid., p. 524.
288
Ibid., p. 525.
58
radical.”289 Assim, “a atividade Eclesiástico-Religiosa não pode ser evitada [... pois]
no presente século o relacionamento não-eclesiástico entre criatura e Deus é tão
impossível quanto a inocência paradisíaca.”290 Logo, Barth assevera: “não podemos
contornar a Igreja e [...] fora dela não podemos prosseguir”.291
Na visão barthiana, a tribulação da igreja ocorre precisamente na tensão
existente entre a sua perspectiva ideal, encontrada na sua vocação divina, e sua
realidade humana, natural e concreta. De acordo com sua realidade humana, a igreja
pretende “alcançar o cumprimento da promessa [divina] deste lado da existência e,
como tudo o que é humano, quer viver para sempre e triunfar.”292 Mas na perspectiva
de sua vocação divina, ela “precisa viver da promessa e diminuir sempre para que
[Cristo] cresça.”293 Contudo, embora essa tribulação seja a fonte de sua aflição, ela é
também a fonte da esperança da igreja.
289
Ibid.
290
Ibid., p. 521.
291
Ibid., p. 525.
292
Ibid., p. 536.
293
Ibid.
294
Ibid., p. 568.
295
Cf. Ibid.
59
ela nunca será a igreja de Deus, pois não conhece nem almeja o arrependimento.296
Por outro lado, a proposta da fé aponta a necessidade de a igreja “despertar e viver
[a] religião que seja [apenas] sinal e testemunho”.297 Barth enfatiza essa vacuidade
afirmando que é preciso “estar com as mãos vazias para agarrar aquilo que, na
realidade, somente mãos vazias podem segurar”.298
Deve-se enfatizar, no entanto, que a abordagem barthiana da culpa da igreja
não pode ser entendida como uma crítica puramente anti-eclesiástica ou anti-
religiosa. O autor deixa claro que “quando falamos da Igreja, falamos de nós
mesmos”,299 porque “fazemos parte desta Igreja culposa”.300 Assim, ao tratar da
culpa da igreja, “todos aqueles que levam o incontornável problema da Igreja a sério
tanto são acusados como acusadores.”301
296
Cf. Ibid., p. 571.
297
Ibid., p. 578.
298
Ibid., p. 586.
299
Ibid., p. 572.
300
Ibid., p. 573.
301
Ibid., p. 572.
302
Ibid., p. 642.
303
Cf. Ibid.
304
Ibid., p. 643.
305
Cf. Ibid., p. 646.
60
306
Em sua interpretação existencial, Barth não aplica aos termos “rejeição” e “eleição” uma noção
histórica que busque dissociar dois grupos de seres humanos, representados por gentios e judeus. Em
realidade, para Barth a eleição ou predestinação “é o segredo do ser humano e não desta ou daquela
pessoa” (Ibid., p. 538). Por isso, rejeição e eleição parecem funcionar de maneira dialética: “Deus é o
princípio e, por isso também o último. Deus rejeita, por isso também elege; Deus condena e por isso,
também agracia. Deus leva ao inferno e por isso também conduz para fora dele.” (Ibid., 606).
307
Cf. Ibid., p. 647. Em sua contraposição entre “Igreja de Esaú” e “Igreja de Jacó”, Barth enxerga na
primeira a igreja visível e conhecida, enquanto que a segunda se refere a uma igreja impossível (do
ponto de vista humano), invisível e desconhecida (cf. Ibid., p. 530). Mas conforme a nota anterior
explicita, Barth não procura categorizar historicamente dois tipos de igreja ou pessoas, mas vê aqui
uma relação dialética: “Jacó é o Esaú invisível e Esaú o visível Jacó” (Ibid., p. 538).
308
Ibid., p. 645.
309
Cf. Ibid.
310
Cf. Ibid., p. 645. Em sua discussão acerca da oposição entre “igreja” (religiosos) e “mundo”
(gentios, não-religiosos), Barth não entende que essas categorias devam ser interpretadas como
grandezas históricas, mas sim dialéticas. Portanto, no raciocínio dialético “Igreja” e “Mundo” são
mantidos unidos pela infinita diferença qualitativa entre Deus e o ser humano – “ali significa a
rejeição e aqui a eleição. Este vínculo torna [...] impossível dissociar a humanidade para formar os
dois respectivos grupos.” (Ibid., p. 624). A partir desse esclarecimento, é possível perceber que as
contínuas contraposições que caracterizam as discussões de Barth não devem ser interpretadas como
grandezas históricas: nova criatura/ velha criatura; eleição/rejeição; judeus/gentios. (cf. Ibid., p. 639).
Nessa teologia dialética, a figura de Jesus Cristo exerce o papel fundamental de síntese: “Enquanto a
temporalidade e a eternidade, retidão humana e Justiça divina, o ‘aquém’ e o ‘além’, são definitiva e
indubitavelmente separados entre si, em Jesus, também nele são eles unidos e unificados, em Deus”
(Ibid., p. 172).
311
Ibid., p. 645.
61
312
Ibid.
313
Ibid., p. 640.
314
Ibid., p. 648. Citação de Romanos 11:32. Há aqui uma direta conexão entre este axioma e o que
para Lutero representava o ponto central desta epístola e de toda a Escritura: “Porque não há distinção,
pois todos pecaram e carentes estão da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça,
mediante a redenção que há em Cristo Jesus” Romanos 3:22-24 (Ibid., p. 149).
62
religião como ausência de fé; e (3) a verdadeira religião. Este trabalho contemplará a
apresentação desse texto a partir de uma leitura comparada, em inglês, da tradução
convencional de Church Dogmatics e a nova tradução provida por Garrett Green em
On Religion.
315
Cf. Karl Barth, Church Dogmatics. I/2. Edinburgh: T&T Clark, 1956, p. 280.
316
Cf. Ibid.
317
Cf. Ibid.
318
Cf. Ibid.
63
319
Ibid., p. 282.
320
Cf. Ibid. Barth cita alguns exemplos: os Vedas para os hindus, Avesta para os persas, Tripitaka
para os budistas, Corão para os islâmicos e a Bíblia para os cristãos.
321
Cf. Ibid.
64
322
Cf. Ibid., p. 282-283.
323
David Friedrich Strauss (1808–1874) foi o teólogo alemão que ficou conhecido como pioneiro da
investigação histórica de Jesus.
324
Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 283.
325
Cf. Ibid., p. 283-284.
65
326
Cf. Ibid., p. 284.
327
Paul Anton de Lagard (1827-1891) foi um teólogo alemão, geralmente considerado anti-semita e
anti-capitalista. Para uma discussão geral da oposição entre a fé a religião na teologia veja John
Thornhill, Is religion the enemy of faith? Theological Studies, v. 45, 1984, p. 254-274.
328
Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 284.
329
Cf. Ibid., p. 285.
330
Barth indica que o problema já havia sido colocado na Idade Média por Claudius de Turin, John
Scot Erigena e Abelardo. Mas ele se tornou importante apenas depois do despontar da Renascença.
(Cf. Ibid., p. 284).
331
Barth destaca aqui os nomes de J. Gerhard, L. Hutters na ala luterana e Bucan, H. Alting,
Gomaruse Voetius, J. Coccejus na ala reformada (Cf. Ibid., p. 285).
66
332
Cf. Ibid., p. 287.
333
Cf. Ibid., p. 288.
334
Cf. Ibid., p. 289.
335
Cf. Ibid.
67
como a mais adequada resposta do mundo religioso por ser a religião da revelação,
merecendo, por isso, prioridade sobre as outras religiões. De maneira geral, expressa
Barth, eles não fizeram nenhum desvio notável da linha ortodoxa do século XVII.336
Mas o autor entende que, ao inverterem o ponto de partida da teologia, os
efeitos foram ganhando forma e força. A filosofia de Christian Wolff nivelou razão e
revelação. O racionalismo kantiano reduziu a religião natural à ética natural, e
praticamente anulou a revelação, que foi concebida como realização do poder moral
da razão. Inversamente, Schleiermacher tentou encontrar na religião (entendida como
sentimento) a essência da teologia, percebendo a revelação como uma impressão
particular que produz um sentimento particular, e então uma religião particular. Por
sua vez, na perspectiva de Hegel e Strauss a religião cristã e natural era apenas uma
forma preliminar, para ser sublimada dentro do conhecimento absoluto da filosofia.
Já em Feuerbach há espaço para a religião natural apenas como expressão ilusória
dos desejos do coração humano. Na análise da religião natural, E. Troeltsch procurou
comparar de forma apreciativa as várias religiões do mundo no contexto do
fenômeno da história universal das religiões, e chegou à conclusão de que o
Cristianismo é ainda relativamente a melhor religião.337
Para Barth, todos esses exemplos rápidos e gerais dão testemunho da invasão
da igreja e da teologia pela religião natural, algo que van Til e Buddeus nunca
poderiam ter sonhado. Mas, para o teólogo suíço, eles e a respectiva geração que os
acompanhou devem ser considerados como os pais da teologia Neoprotestante, um
caminho muito diferente daquele trilhado e indicado pela tradição da Reforma. 338
Portanto, na perspectiva barthiana da história da teologia, todos esses exemplos
traçados no parágrafo anterior são simples variações de um único tema introduzido
principalmente por van Til e Buddeus: não é a religião que deve ser entendida à luz
da revelação, mas a revelação entendida à luz da religião. Em realidade, para Barth,
todas as ênfases e tendências da teologia moderna podem ser reduzidas a esse
denominador comum. É por isso que ele chama o Neoprotestantismo de
“religionismo”.339
A partir de sua análise histórica, o teólogo suíço afirma que a teologia
protestante nunca teria praticado a inversão da relação entre revelação e religião se
336
Cf. Ibid., p. 289-290.
337
Cf. Ibid., p. 290.
338
Cf. Ibid.
339
Cf. Ibid., p. 291.
68
340
Cf. Ibid., p. 292.
341
Cf. Ibid., p. 293-294.
342
Cf. Ibid., p. 294.
343
Cf. Ibid., p. 294-295.
69
religião humana constitui um evento - que ainda deve ser completado. Em ambos
Deus é o sujeito do evento. Assim como no primeiro caso, o homem Jesus não existe
antecipadamente de forma abstrata, mas somente na unidade do evento cujo sujeito é
Deus, também no segundo caso o ser humano com sua religião deve ser visto
estritamente como o ser humano que segue a Deus, isto é, que é precedido por
Deus.344 Resumidamente, o que Barth procura estabelecer em sua discussão do
problema da religião na teologia é que:
em Sua revelação Deus está presente no meio do mundo da religião
humana. Mas é importante ver o que significa dizer que Deus está
presente. Esta é basicamente uma tarefa de re-estabelecer a ordem dos
conceitos revelação e religião de tal modo que a relação entre eles torne-
se compreensível novamente como idêntica ao evento entre Deus e o
homem no qual Deus é Deus – isto é, o Senhor do homem, que somente
ele julga, justifica e santifica – mas também que o homem é homem de
Deus – isto é, aceito e recebido por Deus através de sua severidade e
bondade. Lembrando a doutrina cristológica da encarnação, e aplicando-a
logicamente, nós falamos da revelação como a sublimação da religião.345
344
Cf. Ibid., p. 297.
345
Karl Barth, On Religion, op. cit., p. 52. A única diferença substancial entre a tradução deste
parágrafo feita por Green e o texto inglês tradicional é que o primeiro traduz “revelation as the
sublimation of religion”, enquanto que o outro traduz “revelation as the abolition of religion”. (Cf.
Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 297). Essa opção de tradução da Dogmática é praticamente
constante no texto. Green, no entanto, compreende que o termo alemão Aufhebung deve ser
compreendido à luz do pensamento dialético de Barth, que contempla a abolição mas também a
elevação. Portanto, a opção de tradução por “sublimação” assume uma noção mais abrangente daquilo
que Barth quer realmente expressar.
346
Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 297.
347
Provavelmente essa seja uma alusão à questão da essência (Wesen) da religião do século XIX,
expressa principalmente por L. Feuerbach em A Essência do Cristianismo e nas aulas de Adolf von
Harnack em 1900 sobre “A Essência do Cristianismo” (veja essa aula em A. Harnack, What Is
Christianity. New York: Harper & Row, 1957). Cf. nota 43 do tradutor em K. Barth, On Religion, op.
cit., p. 131.
70
348
Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 298.
349
Cf. K. Barth, On Religion, op. cit., p. 55. Green explica que o termo alemão utilizado por Barth
como chave para toda a discussão dessa seção é Unglaube. Este é o oposto do termo Glaube, que pode
ser traduzido como crença ou fé. A Church Dogmatics optou traduzi-lo como unbelief (incredulidade,
descrença). No entanto, o contexto do uso deste termo indica que Barth não está primariamente
pensando na religião em termos de falta de crenças, mas pela sua falta de fé (faithlessness). Cf. nota 3
do tradutor em Ibid., p. 134-135.
350
Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 300.
351
Ibid. Este é um trecho do sermão de Lutero sobre I Pedro 1:18 de 1523. Cf. Luther’s Works, vol.
30: The Catholic Epistles, ed. Jaroslav Pelikan. St. Louis: Concordia, 1967, p. 36-37.
352
Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 300-301.
71
353
Cf. Ibid., p. 301.
354
Cf. Ibid., p. 301-302.
355
Ibid., p. 302. Cf. J. Calvino, As Institutas da Religião Cristã, op. cit., 1. 11. 8.
356
K. Barth, On Religion, op. cit., p. 58.
72
357
K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 303. Cf. J. Calvino, As Institutas da Religião Cristã,
op. cit., 1. 4. 1.
358
Cf. Ibid.
359
Cf. K. Barth, On Religion, op. cit., p. 59. Green ressalta que esta sentença relaciona duas das idéias
mais importantes e controversas de Barth. A primeira delas é a de que, ao negar implicitamente que a
revelação ‘se prende’ à religião (knüpft ... an), ele está enfatizando novamente seu conhecido
argumento sobre o “ponto de contato” (Anknüpfungspunkt) para a revelação, de seu famoso debate
com Emil Brunner (para entender melhor essa discussão veja Garrett Green, Imagining God. Grand
Rapids, MI: Eerdmans, 1998, p. 29-33). A outra questão é mais uma vez o conceito de sublimação
(Aufhebung). Especificamente neste contexto o aspecto negativo da sublimação - a suspensão ou
mesmo abolição - parece ser privilegiado, mas para Barth o conceito é sempre dialético.
Curiosamente, nesse parágrafo Barth não apenas repete sua tese central - de que a revelação sublima a
religião - mas também declara explicitamente que a religião sublima a revelação. Cf. nota 11 do
tradutor em K. Barth, On Religion, op. cit., p. 135.
360
Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 307.
361
Cf. Ibid.
73
362
Cf. Ibid., p. 308.
363
Cf. Ibid.
364
Cf. Ibid., p. 308-309.
365
Cf. Ibid., p. 310. Essas idéias estão no sermão de Lutero sobre S. João 16:5-15 de 1545.
74
366
Cf. K. Barth, On Religion, op. cit., p. 71.
367
Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 314.
368
Cf. Ibid., p. 315.
75
religião funciona como a imagem no espelho, daquilo que o ser humano por si
mesmo é e tem. Logo, este quadro salienta a não necessidade e a fraqueza das
religiões.369
Então, no cenário histórico surge uma nova religião, que obviamente
apresenta uma nova imagem de Deus e uma nova lei. Esta é proclamada, aprovada,
alcança escopo histórico e se forma em lugar da velha religião. A autocontradição e a
impossibilidade da religião até então vigente se torna visível, por conta de mudanças
na existência humana, e sua morte é necessária para o surgimento de uma nova
religião. Em sua fraqueza e não necessidade, aquela religião se tornou duvidosa e a
sua lei opressiva. Mas essa crise religiosa transforma-se, em realidade, na busca de
uma nova religião.370
No entanto, essa nova rota religiosa, em certo ponto, se divide em duas
estradas chamadas misticismo e ateísmo. O misticismo caracteriza a libertação
humana da busca externa da satisfação das necessidades religiosas. Isso significa que
os místicos desejam internalizar e espiritualizar tudo o que foi ensinado e praticado
numa religião particular. Pois para eles, tudo o que for externo é mera imagem e
forma. Desse modo, o misticismo não ataca a religião aberta e diretamente. Ademais,
ele presume apresentar uma verdadeira amizade com Deus. Sua tarefa é fazer com
que a tradição religiosa testemunhe contra si mesma. Em conexão com esta tradição,
o misticismo irá afirmar aparentemente o oposto, clamando a liberdade somente para
esta interpretação da tradição, nunca a liberdade somente para abolir a tradição. Com
sua própria maneira, afirma Barth, o misticismo sinceramente ama a tradição, bem
como todo o seu sistema de religião externo. Assim, o autor questiona: o que seria o
misticismo sem sua contraparte do dogmatismo e da ética da tradição religiosa? O
que seria desmantelado, esvaziado, reduzido, negado, quando tal tradição religiosa
não mais existir? Para o Barth, o misticismo vive de sua contraparte.371
Semelhantemente, o ateísmo representa um movimento de negação da
tradição religiosa. Contudo, o teólogo suíço interpreta que, enquanto o movimento de
negação do misticismo é indireto e sutil, a atitude do ateísmo é aberta e direta. Ele
está em conflito aberto com a religião: ele ama a iconoclastia, a negação do dogma, a
emancipação moral. Nega a existência de Deus e validade da lei divina. Ele vive por
369
Cf. Ibid., p. 315-316.
370
Cf. Ibid., p. 317.
371
Cf. Ibid., p. 319-320.
76
e pelo não; só sabe como demolir. Barth considera que a força de sua lógica é mais
pujante que a do misticismo. Mas, de certo modo, sua intensidade é mais modesta.
Embora esteja contente em negar a Deus e sua lei, ele negligencia o fato de que fora
da religião também existem diferentes dogmas da verdade que podem a qualquer
momento se tornar religiosos. Nesse sentido, o ateísmo afirma a realidade da
natureza, história, cultura e moralidade humana. Estas são as autoridades e poderes
às quais o ateísmo tem o hábito de se aliar na luta contra a religião. Assim, o ateísmo
contrapõe a existência e a validade dessas autoridades à pretensa existência e
validade de Deus e sua lei. Mas afirmar tais autoridades, pondera Barth, o ateísmo se
expõe ao perigo de que também a partir delas surjam novas religiões, disfarçadas ou
não, que utilizam, portanto, o mesmo suporte que foi dado por ele. 372
De forma geral, para o autor, a crítica contra a religião praticada
principalmente pelo misticismo e ateísmo expõe as fraquezas e a necessidade relativa
da religião. Contudo, elas levam ou à prática das antigas religiões ou à formação de
novas formas religiosas. No caso do misticismo há uma notável combinação de
negação e afirmação religiosa. Já no ateísmo, sua negação não pode impedir novas
formas de religião, se é que ele não as esteja preparando a partir da legitimação de
autoridades que podem se tornar religiosas. Portanto, a religião tem demonstrado
extrema habilidade inerente frente aos desafios e críticas. Historicamente, Barth
constata que a morte de uma religião é causada pela vitória ou surgimento de outra
religião, e não necessariamente devido aos ataques do misticismo ou ateísmo.373
Contudo, na perspectiva do teólogo suíço a fraqueza e a necessidade relativa
da religião não são tão efetivamente fatais como parecem ser. Aliás, o misticismo e o
ateísmo não estão na posição de mostrar como e de que maneira poderia ser
diferente, porque sua existência está ligada à existência da religião. Sem religião não
há ateísmo nem misticismo. É ela que provê as fontes de subsistência dos
argumentos e esforços deles. Usando a ironia de Barth, eles se opõem à religião do
mesmo modo como a nascente de água se opõe à correnteza, ou a raiz à árvore, ou o
recém nascido do adulto crescido. Um suposto misticismo ou ateísmo puro não
representam a verdadeira crise da religião, porque eles mesmos se inserem no
“círculo mágico religioso”, expressa Barth. Nesse sentido, a crise real da religião só
pode vir de um lugar que esteja fora desse “círculo mágico”, ou seja, fora do ser
372
Cf. Ibid., p. 321.
373
Cf. Ibid., p. 323.
77
374
Cf. Ibid., p. 324-325.
375
Cf. Ibid., p. 325.
376
Cf. K. Barth, On Religion, op. cit., p. 85.
78
377
Barth fala aos cristãos que é necessário aplicar esse julgamento primeiramente, e de forma mais
penetrante, a si mesmos. A aplicação do julgamento aos outros, aos não cristãos, deve ser feito
somente à medida que os cristãos possam se reconhecer neles (Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2.
op. cit., p. 327).
378
Cf. Ibid., p. 326.
379
Cf. Ibid., p. 327.
380
Cf. Êxodo 32:1-10. No verso 5 Arão fala da “festa ao Senhor”.
381
Em especial, Barth destaca as figuras de Amós e Jeremias (Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2.
op. cit., p. 328-329).
382
Cf. S. João 18:10.
79
383
Cf. S. Mateus 18:1.
384
Cf. S. Marcos 10:37.
385
Cf. S. Mateus 8:26.
386
Cf. S. Marcos 9:19.
387
Cf. S. João 20:27.
388
Cf. Atos 5:1-10.
389
Cf. Atos 8:13-23.
390
Cf. II Coríntios 12:9-10.
391
Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 333.
392
Imperador romano que reinou entre 306-337 d.C. Em 312 ele se tornou cristão.
80
superior. Em um primeiro olhar, eles lutavam por uma causa perdida, mas a graça foi
suficiente para resistirem à pressão da perseguição. Contudo, em meio à forte pressão
do mundo pagão da Antigüidade tardia, os cristãos - especialmente os Apologistas e
os antigos Pais da igreja - foram tentados a afirmar a vantagem do Cristianismo em
relação às outras religiões da época.393 Uma espécie de competição das qualidades do
Cristianismo em relação às características das outras religiões: uma sabedoria mais
elevada, uma melhor moralidade, uma humanidade superior. Mas a despeito destas
falhas, Barth afirma que a graça de Jesus Cristo, que é a verdade do Cristianismo,
não esteve totalmente oculta nos ensinos e na proclamação da igreja desse período.394
Depois de Constantino, a noção de corpus christianum expressa na unidade
entre igreja e império foi a proposta aparentemente mais promissora feita ao
Cristianismo. Mas, se no período da igreja primitiva houve a tentação de
superioridade intelectual e moral do Cristianismo, agora havia também a tentação de
superioridade política. Aliás, Barth indaga: onde estava a mensagem da graça, como
a verdade do Cristianismo, nos dias das Cruzadas? Poderiam os não cristãos,
especialmente os judeus e islâmicos, encontrar na igreja da Idade Média um poder
verdadeiramente diferente daquele em que o ser humano quer demonstrar sua
superioridade diante de outros? Eles puderam ver na igreja o poder do evangelho que
humilha e abençoa todos os homens? Em que medida os oponentes da igreja
puderam perceber que as ações e atitudes dessa igreja objetivavam a glória de Deus,
e não a glória da própria igreja? O teólogo suíço ressalta que, de maneira geral, o
corpus christianum foi desleal à graça de Cristo, e uma orgulhosa busca de exaltação
própria.395
A chamada Modernidade, que se iniciou com as influências e tendências da
Renascença e da Idade Média tardia, se caracteriza pela dissolução da unidade entre
império e igreja. Barth salienta que, nesse novo período, o ser humano ocidental
pensa ter alcançado a maturidade, descobrindo-se capaz de seguir seu próprio
caminho. A política, as ciências, a sociedade e a arte estão aos seus pés. Ele não está
mais ligado à igreja, e nada mais parece sugerir que ele precisa ligar-se a ela
novamente. Em tais circunstâncias, o autor ressalta que, ao contrário das favoráveis
393
Barth salienta que na leitura dos apologistas do segundo e terceiro séculos há uma notável
impressão de justiça própria do Cristianismo frente às outras religiões, talvez como forma de
compensar espiritualmente a forte pressão externa que eles enfrentavam (Cf. K. Barth, Church
Dogmatics. I/2. op. cit., p. 333).
394
Cf. Ibid., p. 333-334.
395
Cf. Ibid., p. 334-335.
81
condições da Idade Média, a igreja cristã não podia mais impressionar a consciência
mundial, a não ser no contexto de uma sociedade religiosa. Assim, o Cristianismo
confinou-se à prestação de serviços para novo esplendor secular do ser humano
ocidental, provendo especificamente educação e ordem para essa nova sociedade. O
teólogo suíço sublinha que, ao fazer uma reconsideração de si mesmo e de suas
possibilidades nesta nova situação, o Cristianismo falhou em não se lembrar daquela
fraqueza na qual, mesmo sozinha, seria forte em todos os tempos. Ao invés disso, ele
reconheceu a auto-suficiência do ser humano moderno e se contentou em perguntar
como o Cristianismo poderia colaborar com ele.396
Para Barth, é neste contexto de auto-suficiência do ser humano moderno e da
subordinação do Cristianismo a seu serviço, que surge o conceito genérico de
religião, que também foi aceito pelo mundo não-cristão. Com a busca da “essência
do Cristianismo” este passou a ser comparado com as outras religiões, e
normalmente considerado como a base mais adequada para uma visão de mundo
coerente, para a manutenção da moralidade, para satisfazer as últimas necessidades
do ser humano. De modo geral, ele foi considerado a plataforma ideal para a
realização dos elevados ideais do ser humano moderno. Nesse terceiro estágio
histórico, pretendendo alcançar relevância e espaço, o Cristianismo entregou sua
verdadeira mensagem da graça às contínuas flutuações da cultura moderna. Nas
palavras de Barth, ela foi lançada de uma mão suja a outra, parecendo uma verdade
humana – em dado momento absolutista e autoritária, então individual e romântica,
depois liberal, nacional e até mesmo racial – mas nunca como a verdade divina que
julga e abençoa.397
A partir desses exemplos ao longo das eras, o que se torna visível é a tentativa
do Cristianismo de validar sua religião como sagrada em si mesma.398 Por isso, o
teólogo suíço questiona se essa seria realmente uma atitude condizente com as
características da verdadeira religião. Como resposta, ele se reporta à passagem
bíblica da luta de Jacó com Deus.399 Na interpretação barthiana, Jacó era um inimigo
da graça. Em meio à luta, Deus deslocou sua coxa. Embora não fosse derrotado por
Deus ele se tornou permanentemente enfraquecido pela ação divina. Nessa luta, Jacó
não queria se desprender de Deus até que fosse abençoado. E, de fato, ele recebeu a
396
Cf. Ibid., p. 335-336.
397
Cf. Ibid.
398
Cf. Ibid., p. 337.
399
Cf. Gênesis 32:22-32.
82
benção do enfraquecimento. Ao lutar com Deus, ao vê-lo face a face, Jacó chamou
aquele lugar de Peniel, porque ainda assim sua vida foi preservada. Em realidade, o
teólogo suíço salienta que é também em Peniel que a verdadeira religião cristã é
conhecida, o lugar onde o ser humano permanece totalmente oposto a Deus. Isso
significa que a verdade da religião cristã não é uma questão de verdade imanente da
religião em particular, mas unicamente uma realidade provida pela graça. Por isso,
Barth entende que a face histórica de uma religião da graça não é muito diferente das
outras religiões, pois ela é justificada e transformada em uma religião verdadeira
somente pela graça, nunca por seus próprios esforços.400
Desse modo, o autor destaca que entre as religiões somente uma coisa é
decisiva em relação à verdade ou falsidade: o nome de Jesus Cristo. É somente nesse
ponto que a igreja se torna forte. Essa é a verdade da religião cristã,401 pois a graça de
Deus é a mesma coisa que o nome de Jesus Cristo. Nele ocorre a revelação de Deus
entre os homens, a reconciliação do ser humano com Deus. Portanto, os participantes
da verdadeira religião não se elevam a nenhum degrau significante da história
religiosa, nem escapam da acusação divina da idolatria e justiça própria. Eles não
presumem possuir a religião verdadeira por si mesmos. Antes, Barth ressalta, eles
vivem da graça de Deus, que é o real agente que os eleva acima do nível da história
das religiões.402
Contudo, o teólogo suíço entende que a noção desse relacionamento entre o
nome de Jesus Cristo e a religião cristã necessita ser esclarecida através de quatro
perspectivas: criação, eleição, justificação e santificação. Em primeiro lugar, este
relacionamento tem que ver com um ato da criação divina. Isso significa que
unicamente este nome cria a religião cristã, não apenas do ponto de vista histórico,
mas também no sentido contemporâneo. Em outros termos, o autor tem em mente a
noção de creatio continua (criação contínua). Na visão barthiana, a religião cristã
nunca teria entrado na história sem o poder criativo do nome Jesus Cristo. De outro
modo, sem este nome, a igreja cristã perderia a substância e, portanto, sua capacidade
de viver. Com esse quadro em mente, Barth gosta de pensar na existência histórica
da igreja como um “anexo” da natureza humana de Jesus Cristo, segundo a analogia
400
Cf. Ibid., p. 338-339.
401
Cf. Ibid., p. 343.
402
Cf. Ibid., p. 345.
83
da igreja como corpo de Cristo, onde ele é a cabeça celestial que está ligada às
formas terrestres de seus membros.403
Em segundo lugar, o relacionamento entre o nome de Jesus Cristo e a religião
cristã tem que ver com um ato de divina eleição. O Cristianismo não possui, nem
nunca possuirá uma realidade própria. Em si mesmo ele é apenas uma mera
possibilidade humana entre muitas outras. Isso significa que ela não possui
absolutamente nada que possa indicar sua dignidade a fim de que ela seja escolhida
pelo nome de Jesus Cristo como religião verdadeira. Em realidade, essa escolha se
baseia na livre eleição divina, em sua infinita misericórdia. O teólogo suíço
acrescenta que assim como existe a creatio continua, também existe uma continua
electio (eleição contínua). Através dessa eleição imerecida, a igreja não representa
apenas uma sociedade religiosa qualquer, antes é o próprio corpo de Cristo. Para
Barth, o fato de a eleição fazer da religião cristã uma religião verdadeira, previne
toda e qualquer tentativa de procurar “provar” a superioridade do Cristianismo a
partir de um ponto de vista histórico.404
Em terceiro lugar, o relacionamento entre o nome de Jesus Cristo e a religião
cristã tem a ver com um ato de divina justificação, ou perdão dos pecados. No
contexto do julgamento feito pela revelação de Deus, todas as religiões são
declaradas idolatria e obras de justiça própria. Para entender melhor o que ocorre
com o Cristianismo nesse julgamento, Barth faz uso de uma analogia do sol e da
terra: quando o sol ilumina a terra, em uma parte da terra é dia e outra é noite. A terra
em si é a mesma em ambos os lugares. O dia nada tem a ver com a particularidade da
terra como tal, é fruto da atuação do sol. Do mesmo modo, quando a luz do
julgamento de Deus incide sobre o mundo da religião humana, para uma parte desse
mundo (a religião cristã) não é noite, mas dia; não é religião falsa, mas verdadeira.
Estimada em si mesma ela não passa de uma religião humana – idolatria, justiça
própria, ausência de fé, pecado. Portanto, a justificação só ocorre no nome de Jesus
Cristo.405
Em quarto lugar, o relacionamento entre o nome de Jesus Cristo e a religião
cristã tem que ver com o ato de santificação divina. Unicamente porque foi
justificada nesse nome a religião cristã se diferencia das outras religiões, pois
403
Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 346-348.
404
Cf. Ibid., p. 348-350.
405
Cf. Ibid., p. 352-355.
84
segundo Barth ela é formada e moldada por ele para trabalhar a seu serviço e torna-se
a manifestação histórica dos meios de sua revelação. Em linguagem figurada, o autor
enfatiza que embora a luz em si seja exclusivamente o nome de Jesus Cristo, ela
carrega o reflexo dessa luz. Nesse sentido, a religião cristã é diferenciada,
caracterizada de modo peculiar. Mesmo sendo uma religião como outras, à luz dessa
justificação, criação e eleição ela não pode ficar neutra, indiferente ou sem
significado. Por isso, Barth a considera um significante e eloqüente sinal ou
proclamação. Não pelas qualidades inerentes na religião humana, mas em virtude da
divina nomeação pela qual ela se torna um evento no meio do mundo da religião
humana. Assim, o teólogo suíço esclarece que ela toma parte na verdade somente na
medida em que aponta e proclama algo que não está em si mesma, mas no nome de
Jesus Cristo. Ela não possui nada de santo em si mesma. Mas ela se torna o espaço
sacramental criado pelo Espírito Santo, no qual Deus, cuja Palavra se tornou carne,
continua a falar através do sinal de sua revelação. Portanto, na perspectiva de Barth,
a igreja, a religião cristã ao ser santificada, constitui um sinal visível da revelação
divina, assim como no Antigo Testamento a lei representava um sinal da graça e
eleição de Yahweh, uma testemunha da aliança,406 e como no Novo Testamento, a
santificação da igreja é apresentada como o ministério da reconciliação divina, cujos
participantes refletem a glória de Deus. 407 Nesses termos, Barth assevera que
considerar a santificação significa levar a sério a fé e a obediência ao nome de Jesus
Cristo:
É perfeitamente verdadeiro que os cristãos são pecadores e que a igreja é
uma igreja de pecadores. Mas se eles são pecadores justificados [...] então
em virtude da mesma Palavra e Espírito que os justifica, eles também são
pecadores santificados. Ou seja, eles são colocados sob disciplina. São
colocados sob a ordem da revelação. Eles não são mais livres em toda a
sua pecaminosidade.408
406
Barth salienta que a aliança feita por Deus, em sua graça e eleição, com o povo de Israel teve uma
evidência, um selo visível que podia ser percebido tanto por Israel quanto pelas nações ao redor: a lei.
Evidentemente a aliança não teve lugar com o estabelecimento da lei, pois ela tomou lugar antes da
lei. Mas a aceitação e observância da lei foram a garantia recorrente de que esse povo era o povo da
aliança. Assim, a lei significou a santificação do povo - em resposta à graça de Yahweh -, a
conseqüência necessária da revelação da graça, a forma histórica inevitável da qual não podia se
separar. Em outros termos, a santificação significou sua separação visível enquanto nação histórica,
sua diferenciação e caracterização como povo de Deus (Cf. Ibid., p. 359).
407
Cf. Ibid., p. 358-360.
408
Ibid., p. 360.
85
409
Essa classificação já foi mencionada no primeiro capítulo dessa dissertação. Veja a estrutura do
comentário de J. Godsey da teologia de Bonhoeffer já no sumário de sua obra (especialmente os três
primeiros capítulos) em The theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit.
88
410
Cf. Carta aos pais (Tripoli, 9 de Abril de 1924) em Dietrich Bonhoeffer, The Young Bonhoeffer:
1918-1927. Dietrich Bonhoeffer Works (DBW) v. 9, Minneapolis: Augsburg Fortress, 2003, p. 118.
Em nota os editores explicam que a data correta é 9 de Maio (veja p. 116).
411
Ibid., p. 280.
412
Ibid., p. 280.
413
Ibid., p. 298.
414
Ibid., p. 300.
415
Cf. a nota 2 (sobre “psicologismo”) dos editores em Ibid.
416
A crítica ao conceito de a priori religioso reaparece em Act and Being e nas cartas da prisão. Cf. D.
Bonhoeffer, Act and Being. New York: Harper & Brothers, 1961, p. 46-47; D. Bonhoeffer,
Resistência e Submissão: cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo: Sinodal, 2003, p. 369-
370.
89
Naquele mesmo ano, Bonhoeffer pregou um sermão sobre Salmo 127:1 (“Se
o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam”) no qual afirmou
que Deus edifica a casa dando-nos a sua graça. “Quando Deus confirma a nós
mesmos e nossas ações, nosso trabalho [...], nosso empenho de melhorar nossa
economia, saúde, moralidade e religião.”419 É nítida aqui a ligação que Bonhoeffer
estabelece entre religião e moralidade sob um prisma aparentemente positivo.
Desse modo, até o ano de 1926 praticamente não existe crítica da religião nos
escritos de Bonhoeffer. Em certo sentido, a religião é vista por ele de maneira
favorável, que se relaciona com uma disposição de fé interior e uma postura moral,
assim como assume uma forma empírica através da igreja. Contudo, Bonhoeffer
prefere entender a religião na perspectiva da revelação, não da noção psicológica de
um a priori religioso na consciência humana.
417
Cf. nota 1 dos editores sobre “Joy” in Early Christianity: Commemorative Paper for Adolf von
Harnack, em D. Bonhoeffer, The Young Bonhoeffer, op. cit., p. 370.
418
Ibid., p. 381.
419
Ibid., p. 474.
90
420
D. Bonhoeffer, Sanctorum Communio: a theological Study of the Sociology of the Church. DBW
1, Minneapolis: Augsburg Fortress, 2009, p. 125.
421
Ibid., p. 126.
422
Ibid., p. 253.
423
Ibid., 107.
91
424
Cf. nota editorial 18 em Ibid., p. 159.
425
Cf. Ibid., p. 121, 198, 140-141.
426
Ibid., p. 140-141.
427
Ibid., p. 152.
428
Ibid., p. 153.
429
Ibid.
92
430
Cf. Dietrich Bonhoeffer, Barcelona, Berlin, New York: 1928-1931. DBW 10, Minneapolis:
Augsburg Fortress, 2008, p. 482.
431
Cf. Ibid., p. 497.
93
432
Ibid., p. 497.
433
Ibid., p. 336.
434
Ibid., p. 522-523.
94
de nossa vida espiritual, mas apenas se nossa vida for orientada a partir
dele435
435
Ibid., p. 342.
436
Cf. Ibid., p. 352.
437
Ibid., p. 353.
438
Ibid.
95
Cristo não trouxe uma nova religião, antes ele trouxe Deus. Por isso, os cristãos não
vivem da religião, mas da graça de Deus que vem a cada pessoa que esteja com o
coração aberto para recebê-la. Bonhoeffer conclui que “o presente de Cristo não é a
religião cristã, mas a graça e o amor de Deus que culminou na cruz.”439
Panoramicamente, em seu período pastoral em Barcelona, o teólogo alemão
discute sobre a religião enquanto qualidade humana, sobretudo ao lado da
moralidade. Ele também retrata a religião como busca da felicidade interior, o que se
aproxima de sua noção de satisfação dos desejos individuais. Tal percepção da
religião se contrasta com Deus e sua graça. Ademais, em suas aulas, Bonhoeffer em
certo momento menciona a religião numa perspectiva positiva, ao relacioná-la com a
fé e dependência de Deus, enquanto em outro momento afirma que a religião de
forma geral, inclusive o Cristianismo, é a pretensa e arrogante tentativa humana de
chegar a Deus.
439
Ibid., 358.
440
Cf. D. Bonhoeffer, Act and Being, op. cit., p. 41.
441
Cf. Ibid.
96
442
Cf. Ibid., p. 46.
443
Ibid.
444
Ibid., p. 132.
445
Ibid., p. 94.
446
Ibid., p. 156.
447
Cf. Ibid.
97
que ele chama de Deus é a sua propriedade, tendo em vista que o próprio ser humano
é seu criador e mestre.448 Certamente, essa consideração de Bonhoeffer se aproxima
daquilo que Barth fala da religião, especialmente em sua ênfase na prática idolátrica
do ser humano que se colocar como criador de Deus. Entretanto, Bonhoeffer conduz
essa discussão na perspectiva do individualismo.
Ao procurar enfatizar a distinção entre revelação e religião assim como fé e
religião, o teólogo alemão sublinha a pertinência teológica com que Barth reprova a
confusão que Schleiermacher faz entre religião e graça.449 Contudo, ele também
aponta o perigo da posição de Barth: procurar estabelecer no ato de crer, apenas, o
ponto em que se descobre a fé, apresentando assim o “desejo da fé”, por parte do ser
humano, apenas como um reflexo do ato da fé. De outro modo, Bonhoeffer entende
que a fé e o “desejo de fé” estão juntos no mesmo ato. O segundo não é um mero
reflexo do primeiro. A diferença, para Bonhoeffer, é de que a fé propriamente dita se
fundamenta na comunhão com Cristo.450 A partir dessa premissa, o teólogo alemão
compreende o relacionamento entre fé e religião de maneira diferente da percepção
do teólogo suíço. A atividade religiosa humana, nos termos do “desejo de fé”, se
relaciona com a fé dada por Deus a partir da comunhão com Cristo:
dentro da comunhão de Cristo a fé toma forma na religião, e então a
religião é aqui chamada de fé, pois quando eu olho para Cristo, eu posso e
devo dizer para minha consolação “Eu creio” – apenas para certamente
acrescentar, quando eu torno a olhar para mim mesmo, “ajuda-me na
minha falta de fé”. Toda oração, toda busca por Deus em sua Palavra,
toda adesão a sua promessa, toda súplica por sua graça, toda esperança na
cruz, todo esse reflexo é “religião”, “desejo de fé”; mas em comunhão
com Cristo, embora ainda seja obra humana, ela é a fé dada por Deus, fé
da vontade de Deus, que pode ser realmente encontrada pela misericórdia
de Deus.451
448
Cf. Ibid.
449
Cf. Ibid., p. 176.
450
Cf. Ibid., p. 175.
451
Ibid., p. 176.
452
Cf. Kurt Appel e Nicoletta Capozza, “Estar-aí-para-outros” como participação da realidade de
Cristo: sobre a eclesiologia de Dietrich Bonhoeffer. Teocomunicação, v. 36, n. 153, 2006, p. 586.
98
453
Cf. R. Wüstenberg, A theology of Life, op. cit., p. 5.
454
D. Bonhoeffer, Barcelona, Berlin, New York, op. cit., p. 461.
455
Ibid. Em nota os editores explicam que Bonhoeffer considera que a revelação de Deus em Jesus
Cristo constitui o “objeto” de todo o pensamento de um teólogo cristão (cf. nota 10).
456
Ibid.
99
Por sua vez, em seu relatório de um ano de estudos nos Estados Unidos
preparado para o escritório da federação da igreja alemã (órgão que subsidiou os seus
estudos no Union Theological Seminary), Bonhoeffer descreve sua percepção da
teologia e do estilo de vida da cultura norte-americana. Ele afirma que a chave para
essa compreensão foi o reconhecimento do conceito pragmático de verdade, que
permeia o pensamento norte-americano. Como conseqüência desse pragmatismo, há
naquele lugar “um entendimento da vida puramente individualista que oferece a
felicidade para cada indivíduo, mas contém muito pouco além disso.”461 O teólogo
alemão acrescenta que essa noção é corroborada pela história intelectual e política da
América retratada por Thomas C. Hall em The Religious Background of American
Culture.462 Segundo Bonhoeffer, a tese de Hall é de “que o protestantismo americano
457
Ibid., p. 467.
458
Ibid., p. 466.
459
Ibid., p. 468.
460
Ibid., p. 475.
461
Ibid., p. 312.
462
Cf. Ibid. Os editores explicam que embora Bonhoeffer cite esse título, ele de fato se referia a The
Religious Background of American Culture (cf. nota 24). Thomas Hall foi professor de história e
cultura norte-americana na Universidade de Göttingen na Alemanha. O livro foi publicado em 1930,
aproximadamente a época em que Bonhoeffer estava nos Estados Unidos. Cf. Thomas Cuming Hall,
The Religious Background of American Culture. Boston: Little, Brown, and Company, 1930.
100
463
D. Bonhoeffer, Barcelona, Berlin, New York, op. cit., p. 312.
464
Ibid., p. 316.
465
Cf. Ibid.
466
Ibid., p. 317.
467
Ibid.
468
R. Wüstenberg, A theology of Life, op. cit., p. 165 (nota 25).
101
469
Dietrich Bonhoeffer, Prédicas e alocuções. São Leopoldo: Sinodal, 2007, p. 8.
470
Ibid.
471
Ibid.
472
Ibid.
473
Ibid, p. 9.
474
Dietrich Bonhoeffer, Berlin: 1932-1933. DBW 12, Minneapolis: Augsburg Fortress, 2009, p. 474.
102
475
Ibid.
476
Dietrich Bonhoeffer, Creer y Vivir. Salamanca: Sigueme, 1974, p. 28.
477
Ibid.
478
Ibid., p. 29.
479
Ibid.
480
Ibid., p. 28.
103
481
Cf. Ibid., p. 32.
482
Ibid., p. 56.
483
Cf. Ibid., p. 58.
484
Ibid., p. 59.
485
Cf. Ibid.
486
Ibid., p. 60.
104
não cremos no reino de Deus”487. Bonhoeffer explica que no primeiro caso “nós
fugimos do mundo a partir do momento em que descobrimos o estratagema de
sermos religiosos, e inclusive cristãos”.488 No segundo, “[sucumbimos] à
secularização, entendida como secularização piedosa, cristã. Não aludimos ao
ateísmo nem à cultura bolchevista, mas à deposição cristã de Deus como senhor da
terra.”489 É possível notar na argumentação do teólogo alemão o perigo de dois
extremos do Cristianismo: distanciar-se do mundo ou acomodar-se ao mundo. Em
ambos os casos o cristão se esquece de que Deus é o senhor do mundo. Além disso, a
religião aparece ligada aos dois casos. No primeiro, o teólogo enfatiza a enganação
ou estratagema de “sermos religiosos”, enquanto que no segundo ele fala da
secularização, não em termos de ateísmo ou arreligiosidade, mas de piedade ou
religiosidade cristã. Além disso, este é mais um exemplo da abordagem
bonhoefferiana que procura evitar extremos. Em Sanctorum Communio ele deseja
escapar de duas compreensões da igreja que se contrapõem (comunidade
exclusivamente histórico-sociológica ou igreja como sinônimo de reino de Deus), e
em Act and Being ele quer evitar as noções extremas da revelação propostas pelo
transcendentalismo e pela ontologia. Aqui também ele aponta os extremos da fuga do
mundo e da acomodação ao mundo. De fato, em todas essas abordagens o tema da
religião se faz presente.
487
Ibid., p. 101.
488
Ibid.
489
Ibid., p. 102.
490
Cf. Dietrich Bonhoeffer, Creation and Fall: a Theological Interpretation of Genesis 1-3. New
York: Macmillan, 1976, p. 64. Essa versão segue a tradução publicada pela SCM Press em 1959. As
citações feitas nessa dissertação seguem essa tradução, simplesmente pela opção do uso do termo
“religião”.
105
491
Cf. Dietrich Bonhoeffer, Creation and Fall. DBW 3, Minneapolis: Augsburg Fortress, 2004, p. 103.
Essa versão segue a nova tradução publicada em 1997 pela Fortress Press para as Obras de
Bonhoeffer.
492
Cf. nota 1 em Ibid.
493
Dietrich Bonhoeffer, Creation and Fall. New York: Macmillan, 1976, p. 69.
494
Cf. Ibid., p. 67.
495
Ibid., p. 66.
496
Ibid., p. 67.
497
Ibid.
106
498
Ibid.
499
Cf. Ibid., p. 66.
500
Cf. Ibid., p. 68.
501
Ibid., p. 69.
502
Ibid., p. 73.
107
forma de religiosidade, na qual o ser humano se torna como Deus, se opondo a sua
Palavra, e praticando a desobediência com a aparência de obediência.
503
D. Bonhoeffer, Quien es y quien fue Jesucristo?, op. cit., p. 9.
504
Betghe explica que estava prevista uma terceira parte da obra, “O Cristo eterno”. No entanto, não
existem apontamentos dela, pois já havia terminado o semestre. Cf. nota 3 em Ibid., p. 88.
505
Cf. Ibid., p. 14.
506
Ibid.
108
507
Ibid., p. 16.
508
Ibid., p. 39.
509
Ibid., p. 40.
510
Cf. Ibid., p. 41-43.
511
Ibid., p. 20. Grifo nosso.
512
Ibid., p. 76.
109
513
Cf. Ibid., p. 53-59.
514
Ibid., p. 57. Ao utilizar a expressão “força persistente de sua consciência de Deus”, Bonhoeffer está
citando Schleiermacher em A Fé Cristã (“Der christliche Glaube”), §94.
515
Cf. Dietrich Bonhoeffer, A Testament to Freedom: the Essential Writings of Dietrich Bonhoeffer.
In: Geffrey B. Kelley (Org.). San Francisco: HarperSanFrancisco, 1995, p. 153.
516
Cf. Ibid., p. 154.
110
517
Ibid., p. 155.
518
Ibid.
519
Cf. Ibid.
520
Ibid.
521
Ibid.
522
Ibid.
523
Ibid.
524
Ibid.
525
Ibid.
111
526
Dietrich Bonhoeffer, Discipulado. São Leopoldo: Sinodal, 2004, p. 9.
527
Ibid., p. 76.
528
Ibid., p. 9.
529
Ibid., p. 10.
112
descobrir onde é que a graça pode ser conseguida mais barata.”530 Ele conseguiu
distinguir a diferença entre esses dois tipos de graça, ao notar que “mesmo nos
caminhos e obras mais piedosos, o ser humano não poderia subsistir perante Deus
porque, no fundo, procura-se sempre a si próprio.”531
Assim, a direta identificação entre a graça barata e a crítica da religião ocorre
justamente na descrição bonhoefferiana da vida de Lutero. Curiosamente, no trabalho
monográfico escrito em 1925 sobre os “Sentimentos de Lutero acerca de sua Obra”,
Bonhoeffer retratou positivamente a religiosidade de Lutero. Agora, no entanto,
também no contexto de Lutero, a religião parece ser negativamente considerada.
Aqui, a religião aparece em oposição ao discipulado.532 Enquanto o discipulado é
definido como um comprometimento com Cristo, o “conhecimento religioso geral da
graça ou do perdão” - associado, por exemplo, a um conceito de Cristo ou a um
sistema doutrinário – caracteriza-se como algo hostil ao discipulado.533 Assim, o
conhecimento religioso é identificado com a abstração que se opõe à atitude prática.
Nessa obra, Bonhoeffer também ressalta a noção de rompimento da relação
imediata com o mundo, como característica crucial do discipulado. Essa noção deriva
da concepção de que o discípulo só se relaciona diretamente com Jesus Cristo, e por
intermédio de Jesus, o mediador, ele pode se relacionar indiretamente com o mundo.
No chamado de Jesus, encontra-se já realizado o rompimento com as
circunstâncias naturais em que o ser humano vive. Não é o discípulo que
provoca esse rompimento, mas o próprio Cristo já o concretizou ao
pronunciar seu chamado. Cristo libertou o ser humano de sua relação
imediata com o mundo e o transportou para uma relação imediata consigo
mesmo.534
Em outros termos, o autor ressalta que “a pessoa que foi chamada por Jesus
aprende [...] que tem vivido iludida na sua relação com o mundo. Essa ilusão chama-
se ‘relação imediata’.”535 Com efeito, o teólogo alemão provê um exemplo bíblico
desse princípio – a experiência de Abraão -, e é precisamente nesse exemplo que a
religião é inserida na discussão. Bonhoeffer enfatiza que Abraão
aceita o chamado tal como foi pronunciado; não procura interpretá-lo ou
espiritualizá-lo; aceita a palavra de Deus e está pronto a obedecer. Contra
toda a relação imediata natural, contra toda relação imediata ética, contra
toda relação imediata religiosa, ele vai ser obediente à Palavra de Deus.
530
Ibid., p. 14.
531
Ibid.
532
Cf. R. Wüstenberg, A theology of Life, op. cit., p. 14-15.
533
Cf. D. Bonhoeffer, Discipulado, op. cit., p. 21.
534
Ibid., p. 51.
535
Ibid., p. 53.
113
536
Ibid., p. 55.
537
Ibid., p. 60.
538
Ibid.
539
Cf. Ibid.
540
Ibid., p. 158.
541
Ibid.
114
542
Ibid., p. 199.
543
Ibid.
544
Ibid., p. 200.
545
D. Bonhoeffer, Redimidos para lo humano, op. cit., p. 138.
546
Ibid.
547
Ibid.
548
Ibid., p. 138-139.
115
Por sua vez, no capítulo “Ética como formação”, escrito em 1940, o teólogo
alemão discute sobre a relação entre Deus e o mundo, a partir da perspectiva
cristológica de totalidade, não de separação: “quem olha para Jesus Cristo vê, de
fato, Deus e o mundo em um só; doravante não pode ver mais Deus sem o mundo,
nem o mundo sem Deus.”552 Essa noção encontra paralelo com a declaração
bonhefferiana acerca do postulado de totalidade e exclusividade de Cristo expresso
no texto “Igreja e Mundo” (escrito entre 1939 e 1940), que ressalta que em Cristo se
reúnem elementos que poderiam ser chamados de religiosos e seculares, por assim
549
Cf. Dietrich Bonhoeffer, Ética. São Leopoldo: Sinodal, 2005, p. 9-10.
550
Para a datação dos textos de Ética veja “Prefácio da sexta edição reorganizada” em Ibid., p. 11-12.
551
Ibid., p. 17.
552
Ibid., p. 44.
116
553
Ibid., p. 36.
554
Ibid., p. 51.
555
Ibid., p. 51-52.
117
herança romana, o dos alemães foi marcado pela herança helênica. Semelhantemente,
se a herança romana chegou ao século XX por meio da Igreja Católica Romana, o
acesso ao helenismo se dá pela Reforma, que fomentou o acesso às fontes gregas.556
Bonhoeffer também indica a relativa importância da Antigüidade na cultura
ocidental, especialmente em termos de educação e política, a partir de uma
perspectiva cristã. Nesse sentido, os humanistas da Europa ocidental procuraram
conciliar Antigüidade e Cristianismo. Por outro lado, “na Alemanha, a tensão, para
não dizer rompimento, entre Antiguidade e cristianismo foi muito sentida nesse amor
ao helenismo [...]. De Winkelmann a Nietzsche há aqui uma atualização
conscientemente anticristã da herança grega.”557 No ponto de vista bonhoefferiano,
esses dois tipos de relacionamento com Antigüidade proporcionam diferentes
compreensões da relação entre mundo natural e a graça divina: na Reforma há a
oposição entre elas, enquanto na herança romana há conciliação.558
A partir dessa contraposição, Bonhoeffer relata que a unidade cristã medieval
na Europa, sintetizado pelo termo corpus christianum, foi fragmentada pela Reforma.
Com efeito, essa não foi a intenção inicial de Lutero, mas por força das
circunstâncias este caminho tornou-se inevitável. Assim, o corpus christianum se
decompôs em seus dois principais componentes: o corpus Christi (a igreja) e o
mundo. Segundo a visão luterana estes são dois reinos distintos que não podem ser
confundidos, misturados nem separados. Aliás, Deus é senhor de ambos. Ele governa
o mundo através do ofício espiritual e da autoridade secular.559 Por sua vez, a
fragmentação do corpus christianum no período moderno foi acompanhada pelo
rápido início do processo de secularização. Para Bonhoeffer, no lado protestante
houve uma interpretação equivocada da doutrina dos dois reinos:
Exalta-se a Reforma como a libertação do ser humano no que diz respeito
a sua consciência, razão, cultura, como a justificação do mundano em si.
A fé bíblico-reformatória em Deus desdivinizava o mundo radicalmente.
Com isso, preparou–se o campo para o florescimento das ciências
racionais e empíricas, e, enquanto os cientistas dos séculos XVII e XVIII
ainda eram cristãos de fé, com o desaparecimento da fé em Deus só restou
um mundo racionalizado e mecanizado.560
556
Cf. Ibid.
557
Ibid.
558
Cf. Ibid.
559
Cf. Ibid., p. 57.
560
Ibid., p. 58.
118
561
Ibid.
562
Ibid.
563
Ibid.
564
Ibid.
565
Ibid.
566
Ibid., p. 59.
119
567
Ibid.
568
Ibid., p. 61.
569
Ibid.
570
Ibid.
120
sentido, uma reação à segunda, um protesto contra a impiedade devota que corrompe
as igrejas.571 Citando Lutero ele afirma que talvez Deus prefira “ouvir as
imprecações dos ímpios do que o aleluia dos piedosos.”572
Por isso, o autor declara em algumas páginas a confissão de culpa da igreja.
Aqui, a crítica da religião assume explicitamente a forma de crítica eclesiástica.
Todavia, ele entende a confissão como atitude fundamental para receber o perdão e a
justificação divina. Ademais, “a justificação do Ocidente apartado de Cristo está
unicamente na justificação divina da Igreja”573. Assim, ele aponta a quebra dos dez
mandamentos por parte da igreja, sua apostasia de Cristo. Nos termos
bonhoefferianos a igreja: (1) não tem sido suficientemente clara na pregação de Jesus
Cristo; (2) cometeu desvios e fez perigosas concessões; (3) usou mal o nome de
Cristo e passivamente assistiu a injustiça e a violência sob o manto do seu nome; (4)
desprezou o dia santo e esvaziou os seus cultos; (5) não teve coragem de proclamar a
dignidade divina dos pais contra auto-endeusamento da juventude; (6) viu a violência
brutal e arbitrária, o sofrimento físico e psíquico de inocentes, a opressão, ódio e
assassinato, sem erguer a voz em seu favor, nem achar caminhos para socorrê-los; (7)
não se opôs vigorosamente à licenciosidade sexual e ao escárnio da castidade; (8)
silenciosamente assistiu a corrupção dos poderosos e a exploração dos pobres; (9)
abandonou o caluniado a sua própria sorte sem mostrar o erro do caluniador; (10)
aspirou honrarias, posses e segurança, estimulando assim a cobiça das pessoas.574
Outro conceito importante presente nessa obra de Bonhoeffer, que se
relaciona indiretamente com a religião, é a ligação entre o que ele chama de “As
últimas e as penúltimas coisas”, escrito entre 1940-1941. Ao invés de utilizar pares
tradicionais tais como “natural-sobrenatural”, “sagrado-profano”, “cristão-secular”, o
teólogo alemão prefere usar as categorias “último-penúltimo”. Normalmente, os
pares tradicionais indicam uma concepção da realidade dividida em duas esferas,
provocando compreensões distorcidas da relação de Cristo e o mundo, enfatizando
ou a oposição excludente ou a autonomia de um em relação ao outro. No primeiro
caso, por exemplo, o mundo seria destruído por Cristo, enquanto que no outro ele
seria totalmente independente de Cristo, não afetado por ele.575 Mas no par escolhido
571
Cf. Ibid., p. 62.
572
Ibid.
573
Ibid., p. 68.
574
Cf. Ibid., p. 67
575
Cf. Ibid., p. 74-75.
121
576
Cf. Ibid., p. 78.
577
Cf. Ibid.
578
Cf. Ibid.
579
Cf. Ibid., p. 80.
580
Cf. Ibid.
581
Ibid., p. 111.
582
Ibid.
122
a Igreja só pode defender seu espaço próprio lutando não por ele, mas
pela salvação do mundo. Do contrário a Igreja se transforma em
“sociedade religiosa” que luta em causa própria e, com isso, deixou de ser
Igreja de Deus e do mundo. Assim, a primeira incumbência daqueles que
pertencem à Igreja de Deus não é ser algo para si mesmos, criar, por
exemplo, uma organização religiosa ou viver uma vida piedosa, mas ser
testemunhas de Jesus Cristo para o mundo.583
583
Ibid., p. 114.
584
D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 184. Em nota editorial há a descrição da
bênção matutina de Lutero: “Pela manhã, quando te levantares, podes benzer-te com o sinal da
sagrada cruz e dizer: Em nome do Pai, Filho e Espírito Santo! Amém.” (Ibid.)
585
Ibid.
123
586
Ibid., p. 369. Em suas aulas de cristologia, em 1933, a pergunta pelo “quem” era considerada uma
questão religiosa por excelência que pergunta pela transcendência.
587
Ibid.
588
Cf. Ibid.
589
Ibid., p. 369-370.
590
Cf. Ibid., p. 370.
124
591
Ibid.
592
Ibid.
593
Cf. Ibid., p. 370-371.
594
D. Bonhoeffer, Redimidos para lo humano, op. cit., p. 174.
595
D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 370.
596
Ibid., p. 370-371.
125
597
Ibid., p. 371.
598
Ibid.
599
Ibid.
600
Cf. Ibid., p. 371-372.
601
Cf. nota editorial 18 em Ibid., p. 372.
602
Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 881.
603
Cf. Ibid.
126
604
D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 372.
605
Ibid., p. 373.
606
Ibid.
607
Significa literalmente “o Deus que sai da máquina”. “No teatro da Antigüidade, tratava-se de uma
figura que aparecia ‘de repente’ com o auxílio de um dispositivo mecânico e resolvia problemas de
forma ‘sobrenatural’.” (Ibid., p. 373, nota editorial 24).
127
prefere falar de Deus no centro, não nos limites; na vida e no bem das pessoas, ao
invés da morte e da culpa. Isso é uma intuição daquilo que a linguagem não-religiosa
deve abordar. Aliás, para Bonhoeffer essa é a visão do Antigo Testamento: “Deus é
transcendente no centro de nossa vida. A igreja não está onde a capacidade humana
falha, nos limites, mas no centro da realidade. Isso está de acordo com o Antigo
Testamento, e neste sentido ainda lemos o NT muito pouco a partir do AT.”608
Na carta de 5.5.44 o teólogo alemão inicia sua discussão sobre a
arreligiosidade com um comentário a respeito do ensaio de Bultmann,
“Demitologização do Novo Testamento”. Ele considera que os ali chamados
conceitos mitológicos (milagre, ascensão, etc.) não podem ser separados dos
conceitos de Deus, fé, etc., como pretende Bultmann. Assim, Bonhoeffer ressalta que
“não se pode separar Deus e milagre [...] mas precisamos poder interpretar e
proclamar a ambos de forma ‘não religiosa’.”609 Ademais, o autor explica que falar
de maneira religiosa “significa falar por um lado de forma metafísica e, por outro, de
forma individualista. Ambas as formas não atinam nem com a mensagem bíblica
nem com o ser humano atual.”610 Como exemplo, ele utiliza a pergunta individualista
pela salvação da alma. Segundo o teólogo alemão, essa pergunta praticamente
desapareceu do cenário do século XX, sendo substituída por perguntas mais
relevantes. Além disso, ele assevera que essa pergunta também não é bíblica. A
salvação da alma não ocorre no Antigo Testamento, que possui como centro a justiça
e o reino de Deus na terra. O que está em pauta no pensamento bíblico “não é o além,
mas este mundo e como ele é criado, conservado, estruturado em leis, reconciliado e
renovado.”611 Mas ele não diz isso “no sentido antropocêntrico da teologia liberal,
mística, pietista e ética, mas no sentido bíblico da criação e da encarnação, da
crucificação e ressurreição de Jesus Cristo.”612
Nesse contexto, Bonhoeffer novamente elogia a iniciativa de Barth, por ser o
primeiro teólogo a encetar a crítica da religião. Mas o autor lamenta que o teólogo
suíço tenha substituído a religião pela “doutrina positivista da revelação”. Para o
teólogo alemão, a abordagem barthiana trata dos conceitos e doutrinas cristãs
(nascimento virginal, trindade, etc.) como igualmente necessárias e significativas
608
Ibid., p. 374.
609
Ibid., p. 379.
610
Ibid., p. 380.
611
Ibid.
612
Ibid.
128
para o todo, “o qual deve ser engolido por inteiro ou não é engolido de jeito nenhum.
Isso não é bíblico. Há níveis de conhecimento e níveis de importância; isto é, deve-se
restabelecer uma disciplina arcana por meio do qual os mistérios da fé cristã sejam
protegidos de profanação”613. Ao utilizar a disciplina arcana como uma espécie de
corretivo para o positivismo da revelação, estaria Bonhoeffer sugerindo que alguns
conceitos cristãos deveriam ficar restritos ao ambiente da igreja e outros serem mais
acessíveis para o mundo em geral? Com efeito, ele continua criticando o positivismo
barthiano da revelação ao enfatizar que, nesse pensamento, “no lugar da religião está
agora a igreja – o que em si é bíblico -, mas o mundo, de certa forma, é deixado por
sua própria conta e abandonado à sua própria sorte. Este é o erro.”614 Portanto, ele
critica Barth por não se preocupar suficientemente com o mundo. O teólogo alemão
também confessa que toda essa argumentação funcionou mais como um meio de
organização e esclarecimento próprio das suas idéias incipientes, e menos como um
meio de informação para a Bethge a respeito delas. Ademais, ele afirma estar
trabalhando com a interpretação arreligiosa dos conceitos de fé, penitência,
justificação, santificação e renascimento, a partir da perspectiva véterotestamentária
e de S. João 1:14 (“e a palavra se tornou carne”).615 Isso indica uma tentativa de
tornar tais conceitos mais concretos para o mundo arreligioso.
Em maio de 1944 Bonhoeffer escreveu algumas reflexões para o batismo de
Dietrich W.R. Bethge, o filho de Bethge que recebeu o seu nome. Já no final das
reflexões, o autor expressa que o significado de conceitos tais como renascimento e
Espírito Santo, reconciliação e redenção, cruz e ressurreição, amor ao inimigo, vida
em Cristo e seguimento de Cristo, ficou tão distante e difícil que “quase não ousamos
falar disso. Nas palavras e nos ritos tradicionais, intuímos algo bem novo e
revolucionário, sem poder ainda captá-lo ou expressá-lo”616. Portanto, o autor sugere
que a linguagem não-religiosa tem como ponto de partida as palavras e ritos
tradicionais da igreja. Quanto à constatação da distância e dificuldade de
compreensão dos conceitos cristãos, o teólogo alemão sublinha o fracasso da igreja,
“que nestes anos lutou apenas pela sua própria preservação como fosse um fim em si
mesma, [e] é incapaz de ser portadora da palavra reconciliadora e redentora para os
613
Ibid.
614
Ibid., p. 380-381.
615
Cf. Ibid., p. 381.
616
Ibid., p. 397.
129
seres humanos e para o mundo.”617 Essa descrição da igreja se encaixa naquilo que
Bonhoeffer chama em seus escritos anteriores de “comunidade religiosa”. Mais uma
vez, a razão do fracasso da linguagem religiosa é identificada primariamente com o
fracasso da igreja, não com a mudança do mundo em si. O teólogo alemão conclui
suas considerações ao sonhar e intuir que, quando Dietrich Bethge estiver crescido, a
igreja terá mudado bastante. Nessa mudança, a linguagem não-religiosa é retratada
como uma forma de expressão da Palavra de Deus que tem poder para libertar e
transformar as pessoas no mundo:
Não é de nossa alçada prever o dia – mas esse dia virá – no qual pessoas
serão novamente vocacionadas para expressar a palavra de Deus de tal
maneira que o mundo seja transformado e renovado por ela. Será uma
nova linguagem, talvez totalmente arreligiosa, mas libertadora como a
linguagem de Jesus, diante da qual as pessoas se assustam e, ainda assim,
são dominadas pelo seu poder, a linguagem de uma nova justiça e
verdade, a linguagem que proclama a paz de Deus com as pessoas e a
aproximação do seu reino.618
617
Ibid.
618
Ibid., p. 398.
619
Ibid.
620
Ibid.
621
Ibid., p. 414.
622
Em nota editorial há uma tradução de um trecho dessa obra alemã (Zum Weltbild der Physik, p.
112s): “Para Kepler, as descobertas positivas da ciência apontam para deus, enquanto que para
Newton são justamente suas lacunas que deixam espaço para Deus. Mas essas lacunas costumam ser
preenchidas no desenvolvimento posterior [...] Deus e os conceitos desbotados e semi-religiosos que
recentemente têm sido muitas vezes empregados em seu lugar assinalam sempre [...] pontos
inconclusos da ciência e, por essa razão, encontram-se, em vista do avanço do conhecimento, numa
constante e pouco honrosa retirada.” (Ibid., p. 415, nota 6). Nesse contexto, as idéias de Bonhoeffer
parecem se alinhar à posição de Kepler, em contraposição a Newton.
130
científico ao longo dos anos, cada vez mais Deus é deslocado para fora, encontrando-
se num “movimento de constante retirada”. O teólogo alemão não está preocupado
com uma possível ameaça do conhecimento científico sobre o entendimento de Deus,
antes sua crítica se situa na abordagem adotada pela igreja ao falar sobre Deus.
Ademais, ele entende que tanto em meio às limitações do conhecimento científico
como nas questões da morte, sofrimento e culpa, as “pessoas de todas as épocas
conseguiram resolver essas questões também sem Deus, e simplesmente não é
verdade que só o cristianismo tenha a solução para elas”623. Assim, o autor reafirma:
Deus tem que ser conhecido não apenas nos limites de nossas
possibilidades, mas no centro da vida; Deus quer ser conhecido na vida e
não apenas na morte, na saúde e na força e não apenas no sofrimento, na
ação e não apenas no pecado. [...] A partir do centro da vida certas
perguntas até mesmo caem por terra [... assim como suas] respostas624
623
Ibid.
624
Ibid., p. 415-416. Bonhoeffer está analogamente pensando nas questões inúteis levantadas pelos
amigos de Jó (Cf. Jó 27:12).
625
Ibid., p. 434. Em nota editorial há a indicação de que essas idéias derivam da leitura de
Weltanschauung und Analyse des Menschen seit Renaissance und Reformation (em português algo
como “Cosmovisão e Análise do ser humano desde a Renascença até a Reforma”) de Wilhelm Dilthey
(Cf. nota 10 em Ibid.)
131
626
Ibid., p. 435-436.
627
Ibid., p. 436.
628
Ibid.
629
Ibid.
630
Ibid., p. 437.
132
631
Ibid., p. 436.
632
Ibid., p. 437.
633
Ibid., p. 438.
634
Ibid.
635
Ibid., p. 439.
636
Ibid.
637
Ibid.
133
atingiu a maioridade, ele discorda do caminho adotado por eles. Por sua vez, embora
ele compartilhe com Barth e a Igreja Confessante o caminho adotado por eles na
crítica da religião, ele discorda da ausência de interpretação não-religiosa dos
conceitos teológicos. E, então, embora ele concorde com Bultmann na necessidade
de interpretação dos conceitos do Cristianismo, ele discorda da forma como ele
procurou interpretá-los.638
Na carta da 27.6.44, o teólogo alemão volta a tratar do tema da religião nos
termos do Antigo Testamento. À semelhança de sua ênfase na carta de 5.5.44 de que
a salvação individual da alma não é um assunto tratado no Antigo Testamento, aqui o
autor argumenta que “a fé no AT não é uma religião de redenção. Porém, o
cristianismo sempre é caracterizado como uma religião de redenção.”639 Ele também
afirma que o Antigo Testamento trata da libertação de Israel do Egito e também da
Babilônia em termos de “redenções históricas, isto é, aquém do limite da morte [...]
Israel é libertado do Egito para que possa viver diante de Deus na terra como seu
povo.”640 Por outro lado, as religiões que trabalham com a idéia de redenção,
inclusive o Cristianismo, enfatizam a superação do limite da morte através de uma
eternidade a-histórica. Nesse sentido são feitas interpretações metafísicas do Sheol e
do Hades. No entanto, a esperança cristã da ressurreição reforça a idéia de um ser
humano ligado à sua existência na terra, ao contrário da superação metafísica das
religiões da redenção. Assim, o cristão “não tem sempre [...] à disposição uma última
escapatória das tarefas e dificuldades terrenas para dentro da eternidade, mas tem de
degustar plenamente a vida terrena, assim como Cristo”.641 O teólogo alemão conclui
que essas noções de “redenção têm sua origem nas experiências limítrofes do ser
humano. Cristo, porém, toca o ser humano no centro da vida.”642 De fato, Bonhoeffer
evita a discussão cristã da vida após a morte, por se tratar de uma questão limite.
Ademais, ele associa essa discussão com o pensamento metafísico e faz um discurso
638
Com respeito a essa discussão teológica, Bethge enfatiza que, em Tegel, Bonhoeffer não contou
com qualquer biblioteca de teologia moderna. Isso significa que nesses escritos ele praticamente
dependeu apenas da memória. Logo, o estímulo para sua abordagem da teologia moderna não se
originou do desejo de combater os escritos desses teólogos, antes suas considerações emergiram
incidentalmente, à medida que ele ia avançando nas suas reflexões. Bethge informa, por exemplo, que
tudo o que Bonhoeffer conheceu de Tillich foi que havia sido publicado antes do período nazista.
Semelhantemente, Bethge entende que Bonhoeffer também não deu a atenção devida ao pensamento
de Bultmann. (Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 857-858)
639
D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 455.
640
Ibid.
641
Ibid.
642
Ibid.
134
643
Ibid., p. 459.
644
Ibid.
645
Ibid.
646
Ibid., p. 464.
647
Ibid.
648
Ibid., p. 466.
649
Na teologia, Herbert von Cherbury afirmou a suficiência da razão para o conhecimento religioso.
Na moral, Montaigne e Bodin estabeleceram regras de vida em lugar dos mandamentos. Na política,
Maquiavel separou a política da moral. Na filosofia, o deísmo de Descartes concebeu o mundo como
135
um mecanismo que funciona por si mesmo se a intervenção de Deus. Na física moderna, o caráter
infinito do mundo foi colocado em dúvida. Cf. Ibid., p. 484-486. Em nota os editores indicam que essa
perspectiva bonhoefferiana é fruto da influência de suas leituras de W. Dilthey.
650
Ibid., p. 488.
651
Ibid.
652
Ibid.
653
Ibid.
654
Ibid., p. 489.
655
Ibid.
656
Ibid., p. 491.
657
Cf. Ibid.
136
que chegou à maioridade é mais sem-Deus e, por isto mesmo, talvez esteja mais
próximo de Deus do que o mundo menor de idade”658.
Finalmente, em 3.8.44 (data segundo Bethge) Bonhoeffer escreveu o esboço
de uma obra que provavelmente exploraria em detalhes sua noção de cristianismo
arreligioso. A obra se dividiria em três blocos principais. O primeiro, intitulado
“Balanço do cristianismo”, discutiria: (1A) a maioridade do ser humano; (1B) a
arreligiosidade do ser humano que chegou à maioridade; (1C) igreja evangélica
(pietismo como última tentativa de preservar o cristianismo evangélico como
religião); ortodoxia luterana (tentativa de manter a igreja como agência de salvação);
igreja confessante (teologia da revelação; empenho pela “causa” da igreja, mas pouca
fé pessoal em Cristo; nenhum risco em favor dos outros); (1D) moral do povo. Na
seqüência, o segundo bloco “O que é a fé cristã de fato”, incluiria: (2A)
mundanalidade e Deus; (2B) quem é Deus? (a experiência de Jesus em favor dos
outros como transcendência; fé como participação neste ser de Jesus; relação com
Deus não como relação religiosa com um ser mais elevado, mas uma nova vida na
existência para os outros); (2C) interpretação dos conceitos bíblicos (criação, queda,
reconciliação, fé, nova vida, coisas últimas) a partir de 2B; (2D) Culto (seria descrito
posteriormente); (2E) e (2F) O que cremos de fato? (o problema do credo
apostólico). Já o último bloco, “Decorrências”, trabalharia com as implicações
eclesiológicas: igreja é “estar aí para os outros”; ela deve presentear todo o seu
patrimônio aos necessitados; os pastores devem viver exclusivamente de doações da
comunidade (podendo eventualmente exercer uma profissão secular); a igreja deve
reconhecer a importância do exemplo humano, e do seu exemplo.659
Embora esse esboço apresente as idéias de maneira pontual, Bonhoeffer
acrescenta e esclarece algumas questões relevantes em sua visão do cristianismo
arreligioso. Em primeiro lugar está sua crítica eclesiástica em “1C”. Nenhuma das
igrejas mencionadas (evangélica, luterana, confessante) se encaixa em seu conceito
de igreja, todas elas se aproximam do seu conceito de religião. Em segundo lugar
está seu conceito de Deus e cristão em “2B”. Ele define transcendência como Jesus
vivendo em função dos outros, e a fé e a relação com Deus como “existir para os
outros”, ao passo que a religião entende Deus como um ser mais elevado, distante.
Em terceiro lugar destaca-se sua compreensão de como funciona a igreja no
658
Ibid.
659
Cf. Ibid., p. 509-513.
137
660
Além dos autores que foram citados no primeiro capítulo - Garry Dorrien, The Barthian Revolt in
Modern Theology, op. cit. e Garret Green, Challenging the Religious Studies Canon: Karl Barth's
Theory of Religion, op. cit. - existem outros estudos que identificam a continuidade da estrutura do
pensamento dialético em Barth: Cf. Bruce L. McCormack, Karl Barth’s Critically Realistic
Dialectical Theology: Its Genesis and Development, 1909-1936. New York: Oxford University Press,
1997, p. 312; George Hunsinger, How to Read Karl Barth: The Shape of His Theology. New York:
Oxford University Press, 1993, p. 69; Graham Ward, Barth, Derrida and the Language of Theology.
Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 94; William Stacy Johnson, The Mystery of God:
Karl Barth and the Postmodern Foundations of Theology. Louisville, KY: Westminster John Knox,
1997, p. 31.
142
pressuposto calvinista finitum non est capax infiniti (o finito não é capaz de conter o
infinito).661 A partir desse pressuposto, Barth entende que Deus não pode ser
identificado com qualquer realidade no mundo e também não pode ser entendido
pela racionalidade humana, o que reforça a total dependência humana da revelação
divina e ressalta a distância entre Deus e o ser humano.
Nessa perspectiva, o teólogo suíço utiliza a doutrina cristológica da
encarnação como analogia para explicar como a revelação de Deus está presente no
mundo da religião, e indicar como se dá a relação entre revelação e religião. O que
ele deseja mostrar, com isso, é que a junção da revelação e da religião representa
uma unidade entre Deus e o ser humano, do mesmo modo que a encarnação de Jesus
Cristo, que no seu entendimento, é a unidade entre Deus e o ser humano. Ademais,
ele intenta indicar que, nessa unidade, o divino tem precedência sobre o humano.
Essa ênfase é importante no contexto da doutrina da justificação pela fé, pois desse
modo Deus se apresenta como senhor do ser humano, que julga, justifica e santifica,
ao passo que o ser humano é aceito e recebido por Deus. Contudo, outra implicação
desse pensamento é que a religião, enquanto realidade humana, só adquire real
sentido por meio da presença ou intervenção da revelação divina.
Portanto, no quadro maior da justificação pela fé, a religião em si representa
as obras e esforços humanos. De fato, Barth considera que na perspectiva humana a
religião representa o limite máximo da atividade humana, isto é, o clímax das suas
mais elevadas possibilidades, a atividade mais pura e poderosa para a transformação
humana. Além disso, ela representa o aspecto subjetivo e histórico do relacionamento
do ser humano com Deus. Todavia, a partir da ótica da revelação divina, a religião é
limitada e sujeita à morte, assim como todos os outros esforços humanos. Embora
Barth entenda que a religião em si não seja igual ao pecado, é através dela que o
pecado humano se torna evidente, visto que de maneira geral ela representa o esforço
humano de justificar a si mesmo. No contexto da justificação pela fé, a tentativa
humana de justificar-se pelas próprias obras caracteriza uma atitude de presunção e
rebelião contra Deus, que não reconhece a incapacidade humana.
Desse modo, se o conceito barthiano de religião se alinha panoramicamente à
noção de justificação pelas obras, é evidente que ela esteja em oposição à justificação
661
Veja como Barth defende o princípio calvinista finitum non est capax infiniti em contraposição à
noção luterana de communicatio idiomatum, em Karl Barth, An Introductory Essay. In: Ludwig
Feuerbach, The Essence of christianity. New York: Harper TorchBooks, 1957, p. xxiii-xxiv.
143
pela fé: a oposição do humano contra o divino, a oposição da piedade humana contra
a graça divina. Assim, a religião tende a se contrapor à revelação e à fé. Entretanto,
com todas essas características, Barth não entende que o ser humano deve abandonar
a religião. Aliás, na visão barthiana essa seria uma “possibilidade impossível”.
Enquanto o ser humano viver nesse mundo ele estará acompanhado de todas as
limitações que lhe são inerentes, e portanto sempre terá a religião. Nesse ponto, é
importante salientar a relação que Barth estabelece entre a igreja e a religião: a igreja
nada mais é do que a religião organizada. A despeito de o teológico suíço incluir
todas as religiões do mundo em seu conceito de religião, ele coloca uma ênfase maior
no cristianismo. É por isso que ele praticamente identifica a religião com a igreja.
Assim como Barth ressalta o caráter provisório da igreja, ele também afirma a
existência provisória da religião.662 Para ele, Deus determinou sua existência entre o
Alfa e o Ômega, o princípio e o fim. Considerando essa determinação divina, é
possível perceber que a religião, assim como a igreja, pode e deve assumir um papel
na relação entre Deus e o ser humano. Nesse sentido, a religião deve funcionar como
um “marco da fé” do relacionamento que Deus iniciou com o ser humano, figurando
meramente como um símbolo ou sinal, e não como base ou substância desse
relacionamento. Para Barth a religião precisa ser apenas um símbolo vazio e
provisório. Mas para chegar a esse ideal, no quadro da justificação pela fé, a religião
necessita ser “justificada”. Para entender essa questão é preciso ter uma compreensão
mais abrangente da crítica barthiana da religião.
662
Para uma compreensão mais ampla do conceito barthiano de provisoriedade da igreja veja Claudio
de Oliveira Ribeiro, A provisoriedade da igreja: uma contribuição da eclesiologia de Karl Barth ao
protestantismo brasileiro. Rio de Janeiro, 1994. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro; Cláudio de Oliveira Ribeiro, A provisoriedade da Igreja: uma contribuição
teológica de Karl Barth. Fragmentos de Cultura, IFITEG, v. 8, p. 443-470, 1998.
144
compreendida como crise ou juízo divino sobre tudo o que é humano, mas essa
crítica possui como contraponto a afirmação da religião, entendida como justificação
divina ou “sublimação” da religião.
Além de formular essa crítica baseado em seu próprio conceito de religião,
Barth também investe outra crítica ao conceito de religião mantido principalmente
pelo protestantismo moderno. Assim, o teólogo suíço critica o ponto de partida dessa
teologia, a saber, o uso da religião como paradigma para interpretar a revelação, que
acaba por considerar a revelação uma mera particularidade no universo da religião.
Na visão barthiana essa noção representa o abandono do reconhecimento do senhorio
de Cristo. Para ele, essa teologia se alinha ao paradigma antropocêntrico do mundo
moderno que procura enxergar o ser humano em sua autonomia e capacidade, em
detrimento da subordinação ao reino e senhorio de Cristo. De fato, essa noção de
religião representa para Barth uma evidência da negação da fé.
Com efeito, é no ponto da fé que há uma convergência entre a crítica
barthiana da religião feita a partir do conceito de religião do protestantismo moderno
e a partir do seu próprio conceito de religião: em ambos a religião se apresenta como
falta de fé. No primeiro caso, o protestantismo moderno procurou estabelecer um
conceito de “essência da religião”, buscando encontrar os traços e características
básicas do conceito genérico de religião, a fim de utilizá-lo como paradigma para
classificar as religiões específicas, à medida que elas apresentam tais características.
Contudo, Barth discorda de tal noção. Ele considera que todas as manifestações
religiosas em si estão no mesmo patamar. Todas elas se igualam por aquilo que não
possuem: a fé.
Barth percebe a ausência de fé da religião principalmente na sua contradição
à revelação de Deus. Isso significa que enquanto Deus se oferece e se apresenta ao
ser humano religioso, este procura se antecipar à revelação de Deus e conhecê-lo a
partir de sua própria perspectiva ou esforço. Como na visão de Barth essa
possibilidade de conhecimento divino inexiste, o que realmente o ser humano faz é
projetar um deus humano que esteja de acordo com os seus desejos. Isso representa
idolatria, pois o ser humano coloca no lugar de Deus um deus feito à sua própria
imagem e semelhança, isto é, coloca a si mesmo. Essa é uma tentativa de substituir a
ação divina pela obra humana, ou seja, uma tentativa de salvação pelas obras, não
pela fé na graça e na revelação de Deus em Jesus Cristo.
145
Logo, para Barth, o valor da religião não está nela, mas naquilo que ela
aponta ou simboliza. Nesse sentido, enquanto a religião não tiver a pretensão de ser
mais do que mera indicação ou testemunha da revelação, ela terá condições de
receber a justificação divina. Esse é o reconhecimento do limite humano, que
também é o lugar onde começa a possibilidade de Deus, a “possibilidade impossível”
de o ser humano ser religioso como se não fosse.
663
Os principais intérpretes da teologia de Dietrich Bonhoeffer assumem a continuidade de seu
pensamento: cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit.; J. Godsey, The theology of Dietrich
Bonhoeffer, op. cit.; C. Green, Bonhoeffer, op. cit.; R. Wüstenberg, A theology of Life, op. cit.; Andre
Dumas, Une Theologie de la realite: Dietrich Bonhoeffer. Geneve: Labor et Fides, c1968.
664
Como Wüstenberg conclui, “mesmo durante o estágio da teologia dialética, nós encontramos
elementos de um entendimento da religião que cronologicamente pertencem a um período anterior a
1927, e que portanto está sob a influência da teologia liberal. Declarações positivas, declarações de
crítica, e declarações sobre arreligiosidade não apenas seguem apenas uma linha evolutiva de
147
uma tendência tríplice em suas considerações da religião: antes de 1927 (seu tempo
de estudante) as referências à religião são positivas, de 1927 a 1944 há o predomínio
da crítica da religião, e em 1944 aparecem as discussões sobre a arreligiosidade.665
669
Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 855.
149
Nessa nova fase aparece pela primeira vez o tema da arreligiosidade. Ademais, nela é
exposta uma maior quantidade de características que são associadas à religião.
Muitas apresentam direta relação com características indicadas anteriormente, ao
passo que outras são desenvolvidas nesse novo período. Além disso, praticamente
não mais existem referências positivas à religião. Duas perspectivas fundamentam
sua concepção da religião nesse período, a saber, as perspectivas histórica e
antropológica.
Na primeira perspectiva, a religião é designada como característica básica de
um período histórico que estaria acabando. Considerando que as fases teológicas de
Bonhoeffer não são estabelecidas de maneira rígida e sistemática, já em 1939 ele
falava positivamente da possibilidade de as pessoas viverem sem religião. Assim, a
religião não constitui algo intrinsecamente antropológico, mas apenas o traço de um
determinado período do mundo ocidental. Por isso, o autor refere-se à religião como
uma “roupagem” histórica do cristianismo. Várias são as características dessa
roupagem: piedade, individualidade, consciência moral, pensamento metafísico,
interioridade, privilégio e parcialidade.
A partir da perspectiva antropológica, Bonhoeffer compreende que a religião
se fundamenta na fraqueza e infelicidade das pessoas, especialmente nas “situações
limite” (culpa, morte). Por isso, a abordagem religiosa procura falar de um Deus
poderoso que, de forma compensatória à fraqueza humana, resolve as questões que o
ser humano não pode resolver. Contudo, esse tipo de Deus (chamado de ex machina)
fica restrito às questões limite, pois nas situações em que o próprio ser humano pode
resolver os problemas - e essa capacidade humana vai aumentando cada vez mais no
mundo que “atingiu a maioridade” -, não há a necessidade de Deus. Assim, na
religião, Deus fica cada vez mais restrito aos limites da vida humana.
Tais características indicam a disfuncionalidade de um cristianismo que está
atrelado à religião. Essa disfuncionalidade pode ser mais bem compreendida a partir
da crítica bonhoefferiana da religião e suas implicações básicas.
670
Bethge ressalta que a discussão bonhoefferiana da arreligiosidade não é um fruto maduro, mas uma
tentativa ainda vaga. Considerando que essa discussão durou apenas cerca de um ano, ele explica que
nos livros anteriores havia um intervalo de três a quatro anos entre as primeiras idéias e o texto final, o
que permitia a maturação dos conceitos. No entanto, isso não diminui a validade das idéias sobre a
arreligiosidade apresentadas nas cartas da prisão, pois também no caso das obras anteriores as visões
iniciais eram sempre muito claras. Posteriormente as teses básicas eram substanciadas e exemplos
eram providos. Assim, a discussão da arreligiosidade nas cartas da prisão contém as idéias essenciais
do pensamento de Bonhoeffer. O seu ponto de partida já estava definido. (Cf. Ibid., p. 862-863)
671
Cf. Ibid., p. 854, 865-866.
151
672
Cf. Ibid., p. 866; C. Green, Bonhoeffer, op. cit., p. 252.
673
Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 867.
674
Cf. R. Wüstemberg, A Theology of Life, op. cit., p. 100, 145.
675
D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 491.
152
676
Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 875.
677
Cf. C. Green, Bonhoeffer, op. cit., p. 260, 263.
678
Cf. Ibid., p. 271.
679
Cf. Ibid., p. 272.
680
Cf. R. Wüstemberg, A Theology of Life, op. cit., p. 123.
153
cristãos busca retirar a tradicional abstração religiosa e trazê-los para a vida concreta.
Por sua vez, a implicação básica desse novo conceito de Deus fraco é que a igreja
também deve se tornar fraca. Como o Cristo da cruz se dedicou totalmente à vida
humana, a fé é interpretada como participação nos sofrimentos de Cristo expressa na
auto-entrega em favor dos outros (“existir para os outros”). Aliás, se a igreja é
“Cristo existindo como comunidade”; ela deve participar em seus sofrimentos, ela
deve enfraquecer. Nesse sentido, Bonhoeffer conclui que a igreja deve estar
destituída de qualquer posse ou poder - apenas “existir para os outros”.
681
O ano inicial se refere à Carta aos Romanos (2ª ed.), e o final à Church Dogmatics I/2.
682
O ano inicial se refere à redação de Sacntorum Communio, e o final às cartas da prisão.
683
R. Wüstemberg, A Theology of Life, op. cit., p. 97; Cf. John Godsey, Barth and Bonhoeffer: the
Basic Difference. Quarterly Review, n. 7, 1987, p. 21.
154
the Word of Man, publicado em alemão em 1924. De fato, o teólogo alemão não
apenas leu o material, mas também indicou a sua leitura e enviou cópias dele.684 Mas
como Wüstenberg explica, embora ele tenha citado Barth várias vezes nos escritos de
estudante, sobretudo entre 1925-1926, tais referências ao pensamento barthiano não
se relacionam à discussão da religião, mas às noções de revelação, escatologia e
pneumatologia.685 Aliás, como enfatizado anteriormente, antes de 1927 praticamente
não há crítica da religião em Bonhoeffer.
Todavia, já nesse período é possível perceber aproximações em relação à
crítica da religião em Barth, especialmente na sua oposição ao conceito a priori
religioso. Isso se alinha à visão barthiana da revelação que nega qualquer ponto de
contato no ser humano e, portanto, qualquer tentativa de teologia natural. Ademais,
há a identificação da religião com a moralidade e a compreensão de que a religião
toma forma através da igreja. Contudo, nesse período existem mais distanciamentos
em relação à Barth que aproximações, visto que há em Bonhoeffer uma visão
positiva da religião. Ele considera, por exemplo, a fé uma possessão religiosa e
coloca a revelação no mesmo nível da religião.
Entretanto, a partir de 1927, quando a crítica da religião aparece de maneira
direta nos escritos bonhoefferianos, as aproximações de Barth se tornam notáveis,
sobretudo na distinção entre religião e fé, religião e revelação. Em termos de
enfoque, há uma diferenciação entre eles devido às diferenças no ponto de partida de
suas respectivas teologias. A partir da revelação, Barth fala da religião
principalmente no contexto da atitude do ser humano em relação a Deus. Por outro
lado, a partir da eclesiologia e a ênfase na analogia relationis, Bonhoeffer, além de
falar da religião como oposição humana à Palavra de Deus também discute a religião
na perspectiva do relacionamento interpessoal. É nesse sentido que ele distingue a
igreja da comunidade religiosa, ao criticar a religião como satisfação de necessidades
individuais. Há aqui um distanciamento em relação a Barth, pois este fala da igreja
como forma empírica da religião e não considera a questão do individualismo em sua
crítica.
684
Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 73. Para uma descrição detalhada dos primeiros
contatos de Bonhoeffer com a teologia de Barth veja Ibid., p. 73-77. Já o primeiro texto
bonhoefferiano lido por Barth foi um artigo sobre Karl Heim, que Bonhoeffer enviou à Barth em 1932
(Cf. Ibid., p. 180). Para uma descrição detalhada sobre o relacionamento entre Barth e Bonhoeffer
(encontros, cartas e comentários teológicos mútuos) veja Ibid., p. 175-186; Andreas Pangritz, Karl
Barth in the theology of Dietrich Bonhoeffer. Grand Rapids, MI / Cambridge U.K.: William B.
Eerdmans, 2000, p. 15-70.
685
Cf. Wüstemberg, A Theology of Life, op. cit., p. 34.
155
686
Cf. Wüstemberg, A Theology of Life, op. cit., p. 60, 93; A. Pangritz, Karl Barth in the theology of
Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 93.
687
Cf. Ibid., p. 64.
158
indicando portanto que a religião também não é requisito nem garantia de salvação.
Ambos enfatizam que, assim como a circuncisão, a religião é um fenômeno
provisório. Entretanto, eles seguem caminhos diferentes na conclusão dessa análise.
Barth fala sobre a circuncisão e a religião como sinais vazios (sem mérito humano) e
provisórios que indicam a justificação divina. Assim como a circuncisão foi uma
prática provisória, a religião deve existir apenas no contexto histórico humano. No
mundo redimido por Cristo, que não se confunde com a realidade histórica, a
humanidade estará livre da religião. Por sua vez, Bonhoeffer fala da provisoriedade
da circuncisão e da religião numa perspectiva histórica, não numa visão de redenção
a-histórica. Nesse sentido, assim como a circuncisão, a religião não é mais
necessária. É nesse ponto que se insere sua interpretação do mundo adulto.
O teólogo alemão reconhece o processo de autonomia humana no contexto do
desenvolvimento do mundo moderno. Para ele, é a religião que insiste em não
admitir essa realidade, restringindo o senhorio de Cristo à parcialidade do
circunscrito espaço eclesiástico, da interioridade e individualidade humana, do
mundo abstrato e metafísico, da fraqueza e infelicidade humana (morte, culpa, etc.).
Assim, a oposição da religião à autonomia humana acaba se opondo também ao
senhorio de Cristo no mundo. Por sua vez, o raciocínio barthiano é distinto. Barth
discorda da noção de mundo adulto. Para ele, o mundo moderno “pensa” que chegou
à maturidade, mas “dia após dia [se] prova exatamente o contrário”.688 A pretensa
autonomia evidencia o endeusamento humano que se opõe ao senhorio de Cristo, e
isso é identificado como religião. Nesse sentido, a religião e a idéia de autonomia
humana se contrapõem ao senhorio de Cristo. É por isso que Barth fala da anulação
da religião somente em termos de justificação, que representa o despojamento
humano de qualquer sentimento presunçoso de autonomia ou independência, e o
reconhecimento de sua fragilidade e total dependência de Deus.
Diretamente ligadas às compreensões distintas acerca do mundo, estão as
diferentes concepções de Deus em relação ao ser humano. Na perspectiva do teólogo
suíço é necessário reconhecer a fraqueza humana e sua conseqüente necessidade do
Deus poderoso. Para Bonhoeffer, essa é uma concepção religiosa e equivocada de
Deus e do ser humano. Na sua visão é preciso reconhecer a força e autonomia da
688
K. Barth, A humanidade de Deus, op. cit., p. 401.
159
689
Cf. R. Wüstenberg, A theology of Life, op. cit., p. 60.
690
Essa é uma interessante interpretação de Benkt-Erik Benktson ressaltada por E. Bethge, Dietrich
Bonhoeffer, op. cit.. p. 77; A. Pangritz, Karl Barth in the theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p.
91-92; R. Wüstenberg, A theology of Life, op. cit., p. 31-32.
691
Cf. Karl Barth, The word of God and the word of man. New York: Harper and Row, 1957, p. 51-
96.
692
Ibid., p. 56.
160
religioso”.693 Separa Jesus da religião – “Jesus simplesmente não tem nada que ver
com religião”694 – e fala do seu senhorio na vida e no mundo em contraposição à
religião: Deus “não é uma forma da história religiosa, mas o Senhor de nossa vida, o
eterno Senhor do mundo”.695
No que diz respeito à crítica do “positivismo da revelação”, na carta de abril
Bonhoeffer menciona que Barth não aprofundou nem concluiu a crítica da religião,
mas deteve-se no “positivismo da revelação”. Por isso, não houve nenhum avanço
decisivo para as pessoas arreligiosas.696 Em maio é dito que, em sua crítica, Barth:
substitui a religião pelo positivismo da revelação; estabeleceu um mesmo nível de
importância para todas as doutrinas cristãs (ênfase no nascimento virginal e trindade)
afirmando uma lei da fé, um “pegar ou largar”, ao invés de proteger algumas delas
por meio da disciplina arcana; e colocou a igreja no lugar da religião, abandonando o
mundo à sua própria sorte.697 Por sua vez, na carta de junho o teólogo alemão ressalta
que em Carta aos Romanos (2ª ed.) Barth adequadamente afirmou Jesus contra a
religião, pneuma contra sarx (espírito contra a carne), na Dogmática capacitou a
igreja para a implementação dessa distinção. Contudo, Bonhoeffer conclui que seu
“positivismo da revelação” consiste na ausência de qualquer orientação concreta para
a interpretação não-religiosa dos conceitos teológicos.698
E. Busch indica que Barth só veio tomar conhecimento da crítica do
“positivismo da revelação” com a primeira publicação das cartas da prisão em 1951.
Devido ao enigma que, em certo sentido, elas representavam, surgiram interpretações
variadas e contraditórias. Mas a partir dali, o rótulo de “positivismo da revelação”
passou a ser usado contra Barth de inúmeras formas. Por isso, além de não
compreender o sentido nem o motivo dessa crítica de Bonhoeffer, Barth questionou
se a publicação dessas cartas foi algo realmente positivo.699
Na carta escrita em 1952 para o superintendente Herrenbnick,700 Barth
ressalta a surpresa que teve com as cartas de Bonhoeffer: “o que exatamente ele quis
dizer com o ‘positivismo da revelação’ que ele encontrou em mim? [...] como
693
Ibid., p. 70.
694
Ibid., p. 88.
695
Ibid., p. 74.
696
Cf. D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 370-371.
697
Cf. Ibid., p. 380.
698
Cf. Ibid., p. 438.
699
Cf. E. Busch, Karl Barth, op. cit., p. 381.
700
Karl Barth, From a Letter to Superintendent Herrenbnick. In: Ronald Gregor Smith (Org.), World
Come of Age, op. cit., p. 89-92.
161
701
Ibid., p. 90.
702
Cf. Ibid., p. 91.
703
Ibid., p. 90.
704
Cf. Karl Barth, To Rector Eberhard Bethge, Rensdorf near Neuwied. In: Jürgen Fangmeier, Hinrich
Stoevesandt (Orgs.). Karl Barth: Letters 1961-1968. Edinburgh: T&T Clark, 1981, p. 250-252.
705
Cf. Ibid.
162
706
Cf. Regin Prenter, Dietrich Bonhoeffer and Karl Barth's Positivism of Revelation. In: Ronald
Gregor Smith (Org.), World Come of Age, op. cit., p. 105.
707
Ibid., p. 106.
708
Ibid., p. 110.
163
existem apenas analogias, imagens, sinais, daquele ato. Assim, “a revelação de Deus
se torna temporal ou um fato apenas em analogia.”709
Finalmente, o universalismo representa a conseqüência lógica dos dois
conceitos anteriores: “se a realidade da revelação é negada na extensão do tempo e
ligada ao ato momentâneo da auto-revelação de Deus [...] cada decisão humana é
também análoga à eterna decisão de Deus”. 710 Essa perspectiva leva Barth à idéia de
predestinação ou salvação universal.711 Aliás, como enfatizado no segundo capítulo
dessa dissertação, ao falar de “igreja” e “mundo” o teólogo suíço não se refere a
grandezas históricas, ou seja, diferentes grupos de pessoas, mas sim a uma realidade
dialética (rejeição e eleição) de toda a humanidade.
De fato, Prenter entende que essas três características resumem o método
dialético de Barth que se apresenta, enquanto estrutura de pensamento, tanto em
Carta aos Romanos quanto em Church Dogmatics.712 Nesse sentido, já em Act and
Being, onde “aparecem os primeiros sinais da crítica à Barth”713, Bonhoeffer se opõe
precisamente ao atualismo barthiano. Ao mencionar que “Deus não é livre do
homem, mas para o homem”714 e que “Deus está aqui [...] não como não-objetividade
eterna [...] mas que pode ser captado na sua Palavra dentro da Igreja”715, o teólogo
alemão deseja afirmar que, no mundo, Deus não é apenas ato (como defende Barth),
mas possui existência no tempo, a saber, Cristo existindo em forma de igreja-
comunidade. Para Prenter, por trás do atualismo de Barth, Bonhoeffer suspeita que
exista um transcendentalismo que coloca Deus apenas na esfera da cognição, e não
da existência humana. Por isso, enquanto Barth se concentra na questão do ato e da
cognição716 da fé - a fé em busca de compreensão de Anselmo -, Bonhoeffer deseja
enfatizar a existência, e não apenas o ato, a ação, e não apenas a cognição.717 Parece
que o teólogo alemão quer dizer que a cognição da fé precisa levar à ação, e não ficar
709
Ibid., p. 115.
710
Ibid., p. 116.
711
Veja a ênfase que Barth coloca na “reconciliação universal” em A humanidade de Deus, texto que
funciona como revisão de sua teologia. Cf. K. Barth, A humanidade de Deus, op. cit., p. 403.
712
Cf. R. Prenter, Dietrich Bonhoeffer and Karl Barth's Positivism of Revelation, op. cit., p. 119.
713
Ernst Feil, The Theology of Dietrich Bonhoeffer. Minneapolis: Fortress Press, 2007, p. 170.
714
D. Bonhoeffer, Act and Being, op. cit., p. 90.
715
Ibid., p. 90-91.
716
A ênfase na relação entre fé e cognição leva Barth a interpretar o batismo cognitivamente e a se
opor ao batismo infantil. Cf. Karl Barth, The Teaching of the church regarding baptism. London:
SCM Press, 1965.
717
Cf. R. Prenter, Dietrich Bonhoeffer and Karl Barth's Positivism of Revelation, op. cit., p. 124, 128.
164
meramente no pensamento especulativo. Por isso, ele salienta que Deus não é Deus
em si (ênfase na cognição), mas Deus para o ser humano (ênfase na ação).
Nessa perspectiva, Prenter indica que provavelmente Bonhoeffer rotula como
positivismo da revelação a simples apresentação ao mundo dos conceitos bíblicos e
cristãos para uma mera aceitação cognitiva, sem mostrar claramente como eles se
relacionam com a existência, com a vida no mundo.718 Portanto, nesse contexto, o
teólogo alemão aponta em suas cartas que a crítica barthiana da religião não trouxe
ganho algum para as pessoas arreligiosas, ao invés disso criou uma “lei da fé”, um
“pegar ou largar”719, abandonando o mundo à sua própria sorte. Com efeito,
Bonhoeffer reconhece que nem todos os conceitos da fé podem ser diretamente
relacionados com vida concreta, e então, nesse caso, a disciplina arcana exerce papel
fundamental para preservar esses mistérios da fé da “profanação”.720 Nesse sentido,
Bonhoeffer critica o positivismo da revelação de Barth, que coloca todas as doutrinas
em um mesmo nível de importância, apresentando-as para a aceitação cognitiva, ao
invés de estabelecer níveis de importância através da disciplina arcana, para proteger
os mistérios.
Como tentativa de entender esse princípio, A. Pangritz ressalta que em suas
aulas sobre a teologia recente, no inverno de 1932/33, Bonhoeffer fez uma distinção
entre doutrina, proclamação, e confissão na igreja. Enquanto a doutrina e a
proclamação são apresentadas ao público, a confissão é um evento que ocorre apenas
na congregação, pois a confissão apresentada ao mundo é uma tentativa perigosa.721
Com efeito, parece haver um paralelo entre a proteção do mistério pela disciplina
arcana e a confissão que se restringe à igreja. Além disso, é interessante notar como
ele entende o estudo da Cristologia em termos de mistério a ser mantido: “a doutrina
de Cristo começa no silêncio [...] o silêncio ante o inefável [...] Falar de Cristo
significa calar, calar acerca de Cristo significa falar [...] falar dele no silencioso
âmbito da igreja. Nosso cultivo da cristologia que exercemos aqui no humilde
silêncio da comunidade sacramental e adoradora”.722 Logo, há uma distinção
718
Cf. Ibid., p. 94, 101, 105.
719
A. Pangritz explica que na carta de 5 de maio de 1944 a expressão literal em alemão é “coma,
pássaro, ou morra!” (Friss, Vogel, oder stirb!). Desse modo, Bonhoeffer estaria acusando Barth de
deixar os “pássaros” no mundo de fora da igreja “morrerem” se eles se recusarem a “comer”. Cf. A.
Pangritz, Karl Barth in the theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 139.
720
Cf. D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 380.
721
Cf. A. Pangritz, Karl Barth in the theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 100.
722
D. Bonhoeffer, Quien es y quien fue Jesucristo?, op. cit., p. 13.
165
Por meio dessa distinção entre Barth e Bonhoeffer, Pangritz pensa que o
teólogo alemão quer advertir o suíço acerca do perigo de falar demais na dogmática,
não respeitando o mistério.726 Nesse caso, provavelmente, ele não deseja priorizar o
elemento puramente cognitivo na interpretação doutrinária: ou elas são diretamente
relacionadas à vida (interpretação não-religiosa) ou o mistério delas é mantido
(disciplina arcana). Com efeito, a disciplina arcana é um elemento indispensável na
crítica bonhoefferiana da religião em 1944. Em um primeiro olhar, ela parece ser um
elemento contraditório, pois se a proposta da interpretação não-religiosa deseja evitar
a divisão de esferas, a disciplina arcana faz exatamente isso. Ela restringe certas
práticas e conhecimentos doutrinários ao ambiente eclesial. Mas para Bethge, a
disciplina arcana representa o contraponto necessário à interpretação não-religiosa.
Embora exista a ênfase na totalidade, o teólogo alemão não quer fazer da igreja e do
mundo a mesma coisa. Assim, a interpretação não-religiosa e a disciplina arcana são
meios de correção mútua: a disciplina arcana sem a interpretação não-religiosa
produziria um monasticismo litúrgico ou um gueto religioso, enquanto a
interpretação não-religiosa sem a disciplina arcana não passaria de um jogo
intelectual.727
723
Cf. Ibid., p. 14-19.
724
Cf. A. Pangritz, Karl Barth in the theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 106.
725
K. Barth, Church Dogmatics, I/2. op. cit., p. 181.
726
Cf. A. Pangritz, Karl Barth in the theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 114.
727
Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit.. p. 881, 844.
166
728
K. Barth, A humanidade de Deus, op. cit., p. 401.
729
K. Barth, How my Mind has Changed, op. cit., p. 411.
730
Cf. Ibid., p. 413-414.
731
K. Barth, A humanidade de Deus, op. cit., p. 393.
732
Cf. Ibid.
733
Cf. Ibid., p. 396.
167
734
Cf. D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 372.
735
Cf. K. Barth, From a Letter to Superintendent Herrenbnick, op. cit., p. 90-91; K. Barth, A
humanidade de Deus, op. cit., p. 401-402.
736
Cf. R. Prenter, Dietrich Bonhoeffer and Karl Barth's Positivism of Revelation, op. cit., p. 102.
737
Cf. D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 439.
738
Cf. Ibid., p. 381, 455-456.
739
Cf. Ibid., p. 374, 398, 489, 491, 512.
168
forma geral, o teólogo alemão indica que a interpretação não-religiosa dos conceitos
cristãos visa um engajamento na vida concreta, à luz da encarnação, que
evidentemente pode ser visualizado na sua própria biografia.
Desse modo, nota-se que enquanto Barth critica a religião na perspectiva da
revelação, Bonhoeffer faz sua crítica na perspectiva da vida. Enquanto Barth
contrapõe a religião à fé, entendendo esta última como postura principalmente
cognitiva diante de Deus, Bonhoeffer também contrapõe a religião à fé, mas
compreendendo a fé essencialmente como engajamento na totalidade da vida
concreta.
740
Cf. K. Barth, A humanidade de Deus, op. cit., p. 390-391.
172
algo que não deveria ter feito: o apoio à guerra. Logo, o foco da crítica barthiana é a
constatação da maldade humana. Por sua vez, Bonhoeffer se opõe ao individualismo
e pietismo da religiosidade. Mas, no contexto do impacto da segunda guerra, o
teólogo alemão radicaliza sua crítica da religião ao chegar à idéia de arreligiosidade,
principalmente porque a religião deixou de fazer algo que deveria ter feito: oposição
ao nazismo e interesse por suas vítimas. Desse modo, o foco de Bonhoeffer na sua
crítica é levar as pessoas a tomarem uma atitude, daí sua ênfase na autonomia e força
humana. Assim como Barth, ele ressalta a submissão humana à vontade de Deus,
mas essa submissão deve levar à resistência - atitude responsável contra iniciativas
ou poderes que desafiam o Senhorio de Cristo no mundo.
Associado ao contexto da guerra, outro paralelo emerge: o papel central da
cristologia (conforme o entendimento de Calcedônia) na crítica da religião. Em
Barth, a encarnação de Cristo serve como paradigma para a compreensão da relação
entre a revelação divina e a religião humana. Já em Bonhoeffer ela é o paradigma da
relação entre Deus e o mundo. Mas como reação à teologia antropocêntrica moderna,
Barth tende a enfatizar a divindade de Cristo, ao passo que Bonhoeffer, na sua
proposta de resistência, deseja enfatizar a humanidade de Jesus Cristo (sua
humilhação), o homem para outros. Por isso, a preocupação bonhoefferiana com o
penúltimo, com o mundo adulto, faz com que ele trabalhe mais com a idéia
cristológica da encarnação, seguindo a theologia crucis: “temos o exaltado
unicamente como crucificado, ao impecável como carregado com todas as culpas, ao
ressuscitado só como humilhado.”741 Sua theologia crucis indica a representação
vicária da igreja, enquanto presença de Cristo no mundo, que assume a
responsabilidade pelos outros. Por outro lado, a ênfase de Barth na justificação
divina faz com que ele se concentre no mundo reconciliado com Deus, o que para
Bonhoeffer representaria a idéia de último. Tal realidade, para Barth, só pode ser
vislumbrada como analogia ou parábola, um símbolo da realidade vindoura. Desse
modo, a idéia cristológica que se destaca é a ressurreição, a theologia gloriae: “nós
não temos apenas uma theologia crucis, mas uma theologia resurrectionis e,
portanto, uma theologia gloriae, ou seja, uma teologia da glória do novo homem
atualizado e introduzido em Jesus Cristo”.742 As respectivas ênfases cristológicas na
theologia crucis e theologia gloriae revelam a perspectiva com a qual estes teólogos
741
D. Bonhoeffer, Quien es y quien fue Jesucristo?, op. cit., p. 86.
742
Cf. Karl Barth, Church Dogmatics. IV/2. Edinburgh: T&T Clark, 1958, p. 355.
173
743
D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 43.
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