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Mais Médicos triplica as vagas de

residência em medicina de família,


mas dois terços delas estão ociosas
Estudo mostra que a área mais carente de médicos é a
primeira opção de menos de 2% dos recém-formados;
série do G1 mostra o impacto do Mais Médicos na
formação em medicina.
Por Elida Oliveira e Ana Carolina Moreno, G1
03/12/2018 08h25 Atualizado há um minuto

2013-2018: G1 mostra o impacto do Mais Médico na formação em medicina no Brasil


— Foto: Arte/G1

O programa Mais Médicos, criado em 2013 para suprir o déficit de profissionais


na saúde pública e mudar a formação da área, ainda não conseguiu cumprir
uma de suas propostas: a de atrair o médico recém-formado para a atenção
básica. Dados de um levantamento divulgado no início do ano mostram que a
medicina de família e comunidade, especialidade que capacita para o trabalho
das vagas do Mais Médicos, é a primeira opção de menos de 2% dos recém-
formados.
Uma das consequências dessa falta de interesse é que, em 2017, cerca de
dois terços das vagas de residência oferecidas na área não foram preenchidas,
segundo um cruzamento de dados do G1 entre os resultados do estudo e
números oficiais divulgados pelo Ministério da Educação.
Coordenado por um professor da Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo (FMUSP), o estudo "Demografia Médica no Brasil 2018" ouviu 4.601
médicos formados entre 2014 e 2015. Para esta pergunta sobre residência,
3.441 apontaram suas preferências e somente 58 médicos recém-formados
(1,68%) disseram que queriam se especializar em medicina de família.
No início do Mais Médicos, a medicina de família representava apenas 6,2%
das vagas de residência. Segundo dados obtidos pelo G1 junto ao MEC, desde
2013, o número de vagas autorizadas mais que triplicou: foi de 991 vagas
anuais em 2013 para 3.587 em 2018.
Passados mais de cinco anos desde o anúncio do programa, o G1analisa, em
uma série de três reportagens entre o domingo (2) e a terça-feira (4), o impacto
da iniciativa na formação de médicos no Brasil.
 Parte 1: o impacto do Mais Médicos nas novas vagas de medicina
 Parte 2: Mais Médicos triplica as vagas de residência em medicina de família, mas
dois terços delas estão ociosas
 Tudo sobre o Mais Médicos

Médico do programa Mais Médicos durante atendimento — Foto: Karina


Zambrana/Ascom/MS

A formação médica no Brasil


Após passar pela graduação, que dura seis anos, o médico recém-formado
pode optar por seguir para a residência médica, se especializar na área
acadêmica, com cursos de mestrado e doutorado voltado a pesquisas, ou atuar
imediatamente como médico – nesse último caso, o Brasil segue caminho
contrário a muitos países, como o Canadá, que só permitem que um médico
trabalhe sem supervisão após a conclusão da residência.
O estudo sobre a demografia médica mostra que fazer a residência é a opção
de 2.579 entrevistados (80,2% dos 3.463 que responderam a esta pergunta).
No entanto, entre as 23 residências com acesso direto para os graduados, a
formação específica em medicina de família é a 12ª mais apontada como
primeira opção pelos 3.441 entrevistados.
Perfil dos médicos recém-formados no Brasil indica que medicina de família não é
prioridade — Foto: Karina Almeida/G1

O que faz o médico de família?


A medicina de família e comunidade atua na área de atenção básica de saúde,
que é quando a população é acompanhada por um médico que atua como
"coordenador" do cuidado do paciente, e tem uma visão completa da saúde
dele. É atualmente a área prioritária que levou à criação do Mais Médicos,
porque é uma das que mais precisa de expansão de profissionais.
Ao mesmo tempo em que foi anunciado para contratar médicos formados no
exterior para preencher esse demanda em caráter emergencial, o Mais
Médicos também pretendeu repensar a formação de médicos no Brasil e
resolver o problema de forma permanente.
Depois que a medida provisória do Mais Médicos foi publicada, em julho de
2013, a comissão de especialistas do Ministério da Educação (MEC) se reuniu
para propor caminhos para executar a reforma. A sugestão, que consta na ata
de uma reunião realizada em 25 de julho daquele ano, foi uma expansão
ousada do número de vagas de residência em medicina de família.
"Estratégias deverão ser desenvolvidas para o fortalecimento da Residência
Médica em Medicina de Família e Comunidade, devendo, até 2017, as vagas para
essa especialidade representarem 40% das vagas totais de Residência Médica
oferecidas", diz a ata da comissão de especialistas no ensino médico do MEC sobre
o programa Mais Médicos.
Nathan Mendes, professor do Departamento de Clínica Médica da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explica que a meta de 40%
está de acordo com o atual consenso internacional, que indica a necessidade
de que de 30% a 50% de todos os médicos de um país serem especialistas em
medicina da família.
"O Brasil tem cerca de 6 mil médicos de família e comunidade no Brasil.
Somente para a assistência, ele precisaria de 40 mil a 45 mil médicos", afirmou
ele.
Feira da Saúde oferece atendimentos médicos gratuitos no Pateo do Colégio, em São
Paulo — Foto: Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas

Número de vagas triplicou


No início do Mais Médicos, a medicina de família representava apenas 6,2%
das vagas de residência. Segundo dados obtidos pelo G1 junto ao MEC, desde
2013, o número de vagas autorizadas quase triplicaram: foram de 991 vagas
anuais em 2013 para 3.587 em 2018.
O número parece expressivo, mas o espaço ocupado pela medicina da família
nas vagas de residências médicas autorizadas só chegou a 13,8% em 2018.
As estratégias, durante o período, tiveram resultado limitado.
Proporcionalmente, se em 2017 foram abertas 24.807 vagas em residências
médicas no país, o número de vagas da residência em medicina de família
deveria ter sido de mais de 9,9 mil, para poder cumprir a meta. No entanto, só
3.214 foram autorizadas. Ao G1, o Ministério da Educação explicou que a
expansão esbarrou em problemas estruturais e que as metas estão sendo
reavaliadas (leia mais abaixo).
Mais médicos e a expansão de vagas em residência médica (geral) e em medicina da
família — Foto: Karina Almeida/G1

Vagas ociosas
Cármino Souza, professor de medicina há 40 anos na Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp) e presidente do Conselho de Secretários Municipais
de Saúde do Estado de São Paulo (Cosems-SP), afirma que não só a
expansão não ocorreu no ritmo esperado e necessário para cumprir a
demanda, como também os programas não foram capazes de atrair médicos
suficientes para ocupar as vagas.
Se forem analisadas as vagas de fato preenchidas, o cenário é pior: segundo o
estudo, só 1.043 estavam ocupadas por um residente de primeiro ano, o que
significa uma taxa de ociosidade de cerca de dois terços.
Medicina de família: oferta é maior do que a demanda
Cruzamento de dados mostra o total de vagas oferecidas e preenchidas em 2017
VAGAS AUTORIZADAS PELO MEC (2017): 3.214VAGAS PREENCHIDAS
(2017): 1.043
Fonte: MEC e FMUSP ('Demografia Médica 2018')
Especialidade desvalorizada
Nathan Mendes, da UFMG, afirma que um dos problemas por trás dessa falta
de interesse é o fato de que os médicos de família não são valorizados
socialmente.
"Alguns países já conseguiram esse êxito da valorização social da medicina de
saúde e dos profissionais que nela trabalham. Não só médicos, mas
enfermeiros, biomédicos, e outros profissionais, da psicologia, da fisioterapia."
Segundo ele, outros países adotaram uma série de estratégias para atrair os
egressos das faculdades de medicina à especialidade, como um complemento
financeiro na bolsa de residência e privilégios salariais para quem decide seguir
nessa área.
No Brasil, algumas estratégias incluem bônus na nota da prova de residência
para os estudantes que atuaram na atenção básica. Mas, segundo Mendes e
Nildo Alves Batista, presidente da Associação Brasileira de Educação Médica
(Abem), a iniciativa teve efeito limitado porque, após o cumprimento da carga
horária mínima na atenção básica, os médicos usam o bônus para serem
aprovados em programas de residência de outras especialidades, e
abandonam a área.
Cármino Souza explica que muitas pessoas consideram a medicina de família
menos complexa que outras especialidades, mas que isso é um mito.
"O generalista [de medicina da família] tem que ter bons conhecimentos de muita
coisa para saber diagnosticar. Uma coisa é formar um médico voltado à atenção
básica, a outra é ter uma formação dentro do ambiente hospitalar, com muitas
especialidades" - Cármino Souza, presidente do Cosems-SP
Além do atendimento habitual, postos de saúde fazem outros tipos de programa, como
um mutirão para atendimento de pessoas com suspeita de dengue realizado por uma
UBS na Brasilândia, periferia da Capital paulista, na época de um surto em 2015 —
Foto: Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo/Arquivo

Demanda no mercado
Já Mendes lembra ainda que, no Brasil, há espaço para absorver todos os
novos especialistas em medicina de família, não só nos postos de saúde, mas
também em outros cargos.
O motivo, segundo ele, é o aumento da percepção, com base em pesquisas,
de que a atenção primária de saúde, quando é o centro do atendimento ao
público, torna o sistema de saúde mais eficaz e econômico. Por isso, até os
planos de saúde têm aderido a programas coordenados por médicos de
família.
"Nos últimos dez anos, a saúde suplementar tem comprado a ideia de que a
atenção primária em saúde agrega muito em valor, porque evita que muitos
especialistas focais atendam a mesma pessoa, mas cuidando só de órgãos, com um
olhar fragmentado das pessoas" - Nathan Mendes, professor da UFMG
Problemas estruturais
Arthur Danila, ex-presidente da Associação Nacional dos Médicos Residentes
(ANMR), ressalta que, além da demanda por profissionais e do interesse dos
estudantes, a meta de 40% das vagas de residência em medicina da família
está longe de ser cumprida porque também enfrenta problemas de
infraestrutura.
"Só aumentou para 13,8% porque, possivelmente, não conseguiram encontrar
estrutura mínima [espaço físico e professores supervisores preparados] para
expandir mais do que isso", disse ele.
Ao G1, o MEC explicou que "o tema está sendo rediscutido tanto no MEC
quanto no contexto do Mais Médicos".
Segundo o ministério, "a residência médica é uma formação em serviço, o que
significa dizer que é o momento em que há a necessidade da prática médica
sob supervisão, com atendimento real a pacientes da rede pública. Assim, a
prática médica está diretamente associada à infraestrutura do sistema de
saúde e da rede de assistência, cujas dificuldades e barreiras também afetam a
formação ou permanência dos residentes nos programas".
A nota diz, ainda, que a moratória imposta pelo MEC para novos cursos de
medicina vigora "enquanto o MEC busca políticas de atração para combater a
ociosidade das vagas de residência atualmente oferecidas".
Postos de saúde sem médicos, como esse em Americana (SP), são uma realidade
comum em muitos municípios brasileiros — Foto: Reprodução/EPTV

De acordo com Danila, a falta de estrutura não é só um impedimento para a


oferta do programa, mas também para a atração de candidatos.
Os dados da "Demografia Médica no Brasil 2018" mostram que as condições
de trabalho são consideradas por 84% dos recém-formados como critério
importante para permanecer em um local de trabalho. A porcentagem é mais
alta inclusive que o salário, citado por 63,1% dos entrevistados (a pergunta
permitia mais de uma resposta).
"Isso significa que os médicos não estão se sentindo atraídos para ir para essa área
porque, possivelmente, não encontram estrutura e não acham que vão ter
condições de trabalho e aprendizagem adequadas. Não adianta abrir um montão
de vagas se já tem ociosidade nestas vagas que estão abertas" - Arthur Danila, ex-
presidente da ANMR
Universalização da residência médica
O problema estrutural, porém, não é exclusivo da residência de medicina de
família. Segundo os dados do MEC, entre 2013 e 2017 o número de vagas
autorizadas por ano subiu de 15.960 para 24.807, o que representa uma
ampliação de 8.847 vagas.
Já os números do Censo Superior da Educação mostram que, nesse mesmo
período, o número de concluintes de medicina subiu menos, de 16.425 para
17.130. No entanto, esta expansão ainda é alvo de críticas.
"Estes números mascaram a realidade", diz Danila. Se em 2013 havia 16.425
concluintes em medicina, segundo o MEC, e um total de 15.960 vagas
autorizadas em residência, isso não significa que todos os concluintes teriam
acesso a estas oportunidades. Isso acontece porque, mesmo que o número de
vagas das residências seja maior do que o número de concluintes, vários
programas não podem ser acessados diretamente pelo recém-formado porque
exigem que outras residências sejam feitas antes.
"Há especialidades de acesso direto e outras que precisam ser feitas em duas
etapas", explica Danila. "Se eu quiser me especializar em endocrinologia, ela [a
residência] só pode ser feita depois de dois anos de residência em clínica
médica, e após ser aprovado em uma prova."
Nathan Mendes, professor da UFMG, lembra ainda que a expansão das vagas
em residência tem que seguir as necessidades epidemiológicas da população
brasileira.
"Se você deixa isso solto, pode causar graves distorções, como ter excesso de
alguma habilidade e poucos especialistas em outra área."
MAIS MÉDICOS E A FORMAÇÃO PROFISSIONAL NO
BRASIL
 Só 20% das vagas criadas em cursos de medicina atendem critérios do Mais Médicos
 Dois terços das vagas em residência de medicina de família estão ociosas
 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

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