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ESBOÇO DE UMA TEORIA DAS NULIDADES

ESBOÇO DE UMA TEORIA DAS NULIDADES

Revista de Processo | vol. 56 | p. 7 | Out / 1989DTR\1989\137

J. J. Calmon de Passos

Área do Direito: Civil; Processual

Sumário:

1. Não há como dissociar o direito da norma.1 A conduta, enquanto puro fato, em si


mesma, é neutra, mas suscetível de comportar significação, compreensão e conceituação
diversificadas.
Analisar-se o fato, em si mesmo, em sua pura materialidade e objetividade, a nenhuma
conclusão conduz no campo do direito. O fato só se jurisdiciza na medida em que é
compreendido sob a ótica de uma norma que se revista do caráter de norma jurídica.
Porque o fato foi colocado como suposto de uma conseqüência jurídica, ou ele mesmo é
esta conseqüência, segundo a prescrição normativa, é que é fato jurídico, fenômeno com
ingresso no mundo do direito.
Pouco importa seja a norma jurídica editada pelo Estado ou por outro centro de poder,
formulada para o caso concreto ou posta, com precedência, em termos de categorias
(prescrições de caráter geral) o que é relevante é a natureza jurídica dessa norma, em
relação à qual se faz o confronto do fato (conduta) que se pretende qualificar
juridicamente.
2. A norma jurídica, como norma posta por um centro de poder, com vistas a ordenar a
convivência social, é heterônoma. E apresenta, entre as normas heterônomas, uma nota
que a faz específica: sua particular impositividade. Ela é a única a dispor do que se
denomina de sanção institucionalizada. Com isso se quer dizer que ela é jurídica porque,
aquele que a invoca, tem a seu dispor instrumentos políticos (de poder) que permitem
fazê-la efetiva, ainda quando se faça necessária a violência contra o sujeito a suas
prescrições submetido. É essa impositividade, teoricamente inelutável, que dá à norma sua
juridicidade, porquanto do ponto de vista estrutural e formal, a norma jurídica em nada se
distingue das demais normas: é um juízo de dever ser.2
3. A norma jurídica diz respeito a relações bilaterais, relações entre sujeito e sujeito,
quando as liberdades desses sujeitos conflitam, por convergirem as vontades em termos
de interesse, na direção do mesmo bem. Assim, é no momento do conflito de interesses
(atual ou potencial) que o agir humano reclama qualificação jurídica, seja para
propiciar-lhe a solução, seja para preveni-lo. Em razão do conflito presente ou possível,
cumpre definir-se, heterônoma e impositivamente, que interesse deve prevalecer, em que
termos e em que limites essa prevalência é deferida e assegurada. E essa dicção, quando
presente a impositividade institucionalizada, é o jurídico.
Editando-se a norma jurídica para o caso concreto, a partir da compreensão social
predominante, ou construída a solução com inferência de um conjunto de normas postas,
com antecedência, em função daquela compreensão social predominante, empresta-se ao
fato significação jurídica, seja ao fato que configurou o conflito, seja ao fato que
impositivamente deve decorrer, como conseqüência, da decisão, isto é, da solução
oferecida mediante um juízo prescritivo.
Destarte, torna-se jurídico (ou é compreendido como jurídico) o fato precedente, porque
apropriado, por uma norma jurídica, como suposto, bem como pelo mesmo motivo se

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torna jurídico o fato subseqüente, como conseqüência. Não são, um e outro, em si


mesmos, fatos jurídicos. São fatos de homem, atos, conduta, agir humano, cuja
compreensão, na espécie e para o fim específico, se processou juridicamente (segundo a
técnica desse modo de compreensão da atividade humana).3
4. Do ponto de vista estrutural, como já afirmado, a norma jurídica é igual a todas as
outras normas: dado "A", deve ser "B". Dado "A" é o oposto, a conduta que, uma vez
afirmada em sua existência material, deve autorizar a conseqüência prevista (deve ser
"B"). A conseqüência "B", portanto, é prescrita em função do suposto "A". Somente ele
autoriza se tenha como realizável a conseqüência "B". Nenhum outro.
Essa conduta, indicada como suposto de determinada conseqüência jurídica, é o que se
denomina, na dogmática, de tipo ou fattispecie. Acontecimento ou acontecimentos, ato ou
atos, conduta ou condutas que a norma exige para que determinada conseqüência, que
prevê, seja exigível.
Conveniente, portanto, sob todos os aspectos, distinguir-se o ato do tipo, ou fattispecie. O
ato relaciona-se mais diretamente com o comportamento, enquanto o tipo se vincula,
também de modo mais estreito, com a juridicização do ato, com sua compreensão e
qualificação jurídica.
A vida humana é um contínuo de atividade. Do nascimento à morte, agimos. O tempo é um
sem fim, mas nós o fracionamos em segundos, minutos, horas, meses, anos, séculos etc.
E também segmentamos, de nosso nascimento à nossa morte, a nossa história.
Nossa atividade, vista como um todo e uma continuidade, não seria operacional,
desfavoreceria a compreensão. Donde o homem segmentá-la, como o faz com o tempo. E
os segmentos da atividade humana são os atos. Uma fração de nossa atividade, que
situamos entre um momento a quo (inicial) e um ad quem (final), tomados como
referência. Sair de casa com destino ao aeroporto, onde se deseja tomar um avião para o
Rio de Janeiro, é um ato, mas também é ato o que, nesse todo, significou o apresentar o
bilhete de passagem no box da empresa aérea, obtendo autorização de embarque, como
por igual o simples gesto de adeus com que nos despedimos do amigo que foi ao nosso
embarque. Tudo depende, para ser entendido como ato, do que se considerou como
momento inicial e momento final da segmentação do contínuo de nossa atividade.
Pois bem, quando um ato ou conjunto de atos corresponde a um suposto
jurídico-normativo, dizemos que esse ato ou esses atos são constitutivos de determinado
tipo, sem o que a conseqüência jurídica é exigível. Disso resulta poder afirmar-se que a
tipicidade é da essência mesma do jurídico.
5. Não sendo o direito algo materialmente existente, inserido no todo da natureza, com seu
existir dissociado ou dissociável do existir do homem, portanto algo em relação ao qual o
homem apenas pode tentar compreender as leis do seu ser, nominá-lo e conceituá-lo, é ele
um "construído" pelo homem, uma realidade situada neste universo que é exclusivo do
homem, o da cultura.
Direito é, pois, aquilo que como tal é posto pelos homens. E nem por ser resultado do
querer humano, é algo descartável, anárquico, indomesticável, condenado ao subjetivismo
e à irracionalidade. Antes, como tudo que diz respeito ao homem, e ao homem convivente,
é um fazer vocacionado para a racionalidade, conseqüentemente, para a realização da
melhor convivência humana. Mas, em que pese tudo isso, é algo que se vincula ao homem
e ao seu querer, no tocante a sua criação e a sua operacionalidade. Assim como as leis
naturais presidem à ordem natural, dão-lhe sentido, conteúdo e significação, assim
também as normas que os homens põem para sua convivência presidem à ordem social,
dão-lhe conteúdo, sentido e significação. E dentre essas normas, uma das que mais
significativamente moldam a vida social é a norma jurídica.
Não pretendemos dizer, com o afirmado, que o homem dá à sua vida social o sentido e o
conteúdo que bem lhe apraz. Ele é prisioneiro do meio físico em que habita e da herança

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cultural e biológica que carrega consigo, mas, assim limitado, ainda é um condenado a dar
sentido a seu viver, pois que a natureza o abandonou no mais significativo do seu existir.
Também não pretendemos afirmar que a ordem social seja resultante do capricho de
algum ou de alguns homens. Mesmo quando, patologicamente, se pretenda fazê-la fruto
do arbítrio de poucos, isso é fantasioso e fugaz. A ordem social constrói-se pelo confronto
diuturno dos muitos interesses que convergem e que conflitam, no intérmino labor de
procura da satisfação de necessidades, produzindo-se bens para atendê-las, no confronto
também diuturno, entre o homem e a natureza, que concede e nega, favorece e hostiliza.
O que afirmamos, e isso o fazemos com firme convicção, é que na ordem natural é
impossível identificar-se algo como jurídico, bem como na ordem social só uma particular
forma de compreensão da conduta é que dá ao fato sua qualificação jurídica. Destarte, o
jurídico não está no ser, no fato, na conduta, na coisa, sim na forma pela qual o homem
tenta compreender o seu agir, em sua dimensão social, com vistas a atender ao imperativo
de dar consciência à ordem social, à ordem da convivência humana, não submetida a leis
necessitantes, como acontece com a das abelhas e das formigas.
6. Assentado o que vem de ser exposto, poderemos dizer que assim como, mediante um
processo de "qualificação", se atribui, a determinado comportamento, certa conseqüência,
entendida como jurídica, assim também, e só assim, mediante um processo de
"desqualificação" (ou qualificação negativa) pode-se negar, a determinado
comportamento, a eficácia de produzir determinada conseqüência jurídica típica. Do
mesmo modo pelo qual se formaliza o esquema normativo "dado "A" deve ser "B",
constrói-se o esquema normativo "não dado "A" não deve ser "B", o que equivale a
afirmar-se que não tendo sido "A" não poderá ser "B", ou não será "B" porque não foi "A".
Dizemos, assim, que o suposto "A" tem aptidão para produzir o efeito "B", isto é, ele é
dotado de eficácia. Não ocorrendo o suposto "A", em princípio, excluída estará aquela
aptidão, existindo o que se denomina de ineficácia: o suposto verificado não tem aptidão
para autorizar a conseqüência pretendida.4
7. O que determina a ineficácia do suposto? A primeira resposta é que, a ele, suposto, falta
a "existência material". Afirmou-se como existente uma conduta que, historicamente,
como fato material, não ocorreu. Pretende-se que, dada a morte de João por José, haja um
homicídio e José seja condenado, mas a morte de José não ocorreu. Postula-se a
transferência do domínio relativamente a um bem, afirmando-se que José o vendeu a João,
mas em verdade "esse" fato jamais ocorreu. O bem não existe, p. ex., ou José não existe.
Vê-se, pois, que a primeira forma de desqualificação é a inexistência material do suposto.
Mas a inexistência pode não ser, em termos absolutos, de um fato material. Algo houve,
algo ocorreu, uma conduta efetivou-se, mas não é a conduta que a norma "aceita" como
suposto para a conseqüência invocada. Aqui, não se cuida de um "nada", ao qual também
nada pode ser imputado, mas algo - uma conduta cuja existência material é comprovável
- que não é, entretanto, a conduta (perfeita) prevista como suposto, normativamente. O
problema que se põe, nessas circunstâncias, portanto, não é de existência ou inexistência
material, sim de adequação ou inadequação do suposto.
8. Das considerações precedentes, retira-se a conclusão de que o relevante, no direito, é,
em verdade, a conseqüência pretendida como imputável a determinada conduta. O que se
postula em termos de direito? A condenação de José, com privação de sua liberdade, a
transferência do bem do patrimônio de José para João. É em função da conseqüência que
se analisa o suposto invocado. E o que se perquire é a adequação do suposto verificado
com o suposto invocado, para determinar-se sua aptidão ou inaptidão para produzir a
conseqüência pretendida.
O confronto entre o suposto materialmente provado como existente e o suposto
normativamente exigido é o que se coloca como objeto do estudo da tipicidade ou
atipicidade da conduta. Se o suposto, materialmente comprovado, corresponde ao
normativamente exigido (pouco importa que por uma norma pré-estabelecida, ou pela

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norma que o julgador constrói como apta para a disciplina do caso concreto) dizemos que
há adequação ou tipicidade, sendo deferível a conseqüência pretendida. Se não há essa
correspondência, há inadequação ou atipicidade.5
9. Seria extremamente simples (e isso pode ser ocorrido historicamente) construir-se a
regra de que, dada a atipicidade, ocorre a invalidade e conseqüente ineficácia. Se o
suposto (material) não corresponde ao suposto normativo, nega-se a conseqüência
pretendida. Mas, em verdade, assim não é, nem deve ser.
O direito é expressão de um querer humano. O elemento vontade, portanto, é indissociável
do direito. Nenhum fenômeno jurídico é possível divorciado do querer do homem, de sua
vontade. E é a vontade que opera o nexo entre o suposto e a conseqüência jurídica. A
relação entre um e outro não é de causalidade: dado "A" será "B", um inelutável, sim de
imputação: dado "A" deve ser (na dependência de uma vontade) "B", conseqüência,
portanto, que se submete, no seu ocorrer, à vontade do homem.
Num primeiro modo, ela relaciona o suposto à conseqüência abstraindo a vontade; opera
como se a vontade humana fosse irrelevante. Ainda quando se cuide de fato do homem
(ato, portanto, acontecimento no qual a vontade é relevante) o direito opera como se o
problema se situasse no mundo físico, reclamado, apenas, para a imputação, uma mera
relação de causalidade. Se o fato material "A" existiu e nele se envolveu, como agente, o
sujeito "X", a conseqüência lhe é imputada. Nada se perquire quanto à vontade desse
agente. E ainda quando a efetivação da conseqüência permaneça no âmbito do querer
humano, o querer que aqui opera é um querer que é a expressão da vontade do poder, ou
de sujeição a ele. Exemplo seria a responsabilidade objetiva e todo o campo dos chamados
atos-fatos jurídicos.
Um segundo modo de operar é aquele em que a conseqüência da conduta é posta
normativamente pelo direito objetivo, descartando-se, para sua definição, qualquer
participação da vontade do sujeito implicado, como agente, na situação de fato. Mas, esse
resultado objetivamente posto só é imputável ao sujeito que, agindo, estivesse no gozo de
suas faculdades mentais e praticando um ato querido, sem se exigir vínculo entre esse
querer e o resultado posto objetivamente como conseqüência para seu agir. A relação,
aqui, não é de mera causalidade. Pretende-se esteja alguém agindo no domínio e no
exercício de sua vontade (livre e mentalmente sã) mas não se reclama o direcionamento
necessário dessa vontade para a conseqüência juridicamente imputada à conduta. O
enlace é posto, também, pelo direito objetivo. Exemplo esclarecedor: quem está
construindo uma casa, não pretende, com esse seu agir, causar dano ao prédio vizinho,
mas se o seu atuar voluntário vem a causar dano ao vizinho, juridicamente lhe é imputável
a responsabilidade pela conseqüência. Aqui, estamos no campo do que a dogmática
denomina de ato jurídico em sentido estrito.6
Por fim, a ordem jurídica abdica de definir a conseqüência imputável à conduta, e deixa
essa definição à vontade dos próprios sujeitos envolvidos na situação qualificada como
suposto normativo. Cuida-se da vasta área reservada ao que se denomina de autonomia
privada. Aqui, exige-se não só uma vontade livre e mentalmente sã, mas também a
correspondência entre a conseqüência pretendida e a conseqüência pactuada, posta pela
vontade no exercício de sua autonomia. Esse querer particular se juridiciza e é incorporado
como um querer da própria ordem jurídica, do direito objetivo. Reclama-se, pois, não só a
vontade inicial, como a vontade do resultado. Estamos no campo dos denominados
negócios jurídicos.
10. Simetricamente a esses processos de qualificação jurídica, são construídos esquemas
de desqualificação.
No tocante aos atos-fatos, a desqualificação é um problema de inexistência material. Se o
suposto existe, materialmente, a conseqüência é imputável. Há eficácia. Não há porque se
falar em adequação ou inadequação do suposto. Tudo se exaure no âmbito da sua
existência ou inexistência material.

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No que diz respeito aos atos jurídicos em sentido estrito, assume particular relevo a
circunstância de que o resultado, a conseqüência foi posta como um problema de
determinação do direito objetivo, e é na direção desse resultado que se deve construir a
desqualificação. Não há, pois, razão justificadora do perquirir a "intenção" posta pela
vontade do sujeito agente. O direcionamento de sua vontade, no particular, é irrelevante.
Mas sua vontade (inicial) não o é. Assim, dois problemas devem ser equacionados: a
adequação ou inadequação do suposto para autorizar a imputação prevista
normativamente, e a existência da vontade inicial livre e mentalmente sã do agente.
Já no particular dos negócios jurídicos, um problema novo surge: o da adequação ou não
da conseqüência pretendida ao que foi querido pelas vontades pactuantes, no exercício de
sua autonomia. Não se cuida, aqui, de uma conseqüência prescrita pelo direito objetivo,
sim de conseqüência pretendida e de conseqüência posta pela vontade pactuante, em sua
autonomia. Nesse âmbito é que se opera a adequação. Três problemas, portanto, pedem
solução: a existência de uma vontade pactuante livre e sã; o exercício dessa vontade nos
limites que lhe foram traçados pelo direito objetivo; a adequação entre a conseqüência
pretendida e a conseqüência pactuada.
11. Tanto no que diz respeito aos atos jurídicos em sentido estrito, quanto no particular dos
negócios jurídicos, como visto, põe-se o problema da adequação entre o suposto (provado
ou invocado) e a conseqüência (prevista normativamente ou pactuada). Essa adequação
ou inadequação traz à baila o problema da tipicidade ou atipicidade do ato, correlativo ao
da sua validade ou invalidade. Ato típico (adequação existente) é ato válido,
conseqüentemente apto para produzir efeitos (determinar, impositivamente, a imputação
da conseqüência). No outro pólo, poderia ser construída a conclusão: ato atípico
(adequação inexistente) é ato inválido, conseqüentemente inapto para produzir efeitos
(autorizar a imputação da conseqüência impositivamente). Essa simetria, entretanto,
inexiste; e inexiste por motivos óbvios.7
Há uma esfera do jurídico em que as imputações efetivadas pelo direito objetivo atendem
ao que poderemos chamar, para dar-lhe uma denominação, de interesse social, interesse
público, ou interesses gerais, ou interesses indisponíveis etc. Nota específica: o indivíduo
se coloca numa posição de subordinação, considerado em segundo grau, no que diz
respeito a sua individualidade, sua vontade e seus interesses. Nesse campo, o resultado
previsto pelo direito objetivo é relevante e predominante. Por isso mesmo, prevalece sobre
a adequação ou inadequação do comportamento concreto ao comportamento prescrito.
Assim, a atipicidade (inadequação) não basta para a desqualificação. Ela é apenas
relevante em segundo grau. Primordialmente, atende-se ao resultado alcançado na prática
e ainda quando o ato se tenha consumado por forma não típica, a invalidade inexiste, não
é decretável nem reconhecível, em virtude da prevalência que a ordem jurídica empresta
ao resultado (conseqüência) por ela previsto, que tendo sido alcançado, não pode ser
descartado em favor da regularidade do suposto (tipicidade).
Disso se conclui que, no campo do direito público, bem como no âmbito das normas
cogentes, dos atos jurídicos em sentido estrito, a invalidade é correlacionada à
conseqüência antes que ao suposto normativo, falando-se, na espécie, em fungibilidade
das formas ou dos tipos. A ordem jurídica valida o comportamento atípico, tendo em vista
a sua adequada instrumentalidade prática para lograr o fim perseguido.
Campo fecundo dessa construção é o processo. Não só ele, como o direito administrativo.
Excluídos, em verdade, apenas, no âmbito do direito público, aqueles setores ou aquelas
situações em que a tipicidade se reveste do caráter de garantia individual, a exemplo do
que ocorre com o direito penal e com boa parte do direito tributário. Nessas circunstâncias,
o indivíduo liberta-se da sua posição de subordinação e quem é posto sob limitações é o
Poder, operando a rigidez formal como o mais seguro e excelente instrumento de sua
limitação. E isso ocorre com tal relevo que, inclusive, se projeta do campo do direito
material para o campo do direito processual respectivo. As nulidades no processo penal, p.
ex., sofrem acentuada influência do princípio da tipicidade do direito penal material e do

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entendimento do valor liberdade como sendo indisponível.


12. Último campo de análise é o de autonomia privada, aquele posto pelo direito objetivo
à disposição da vontade dos sujeitos de direito, como pessoas físicas ou como pessoas
jurídicas.
Aqui, também é colocado o problema da existência ou inexistência material do suposto,
bem como o de sua adequação ou inadequação (tipicidade). Nele também assume relevo,
e particular relevo, o problema da vontade livre e sã, mas aqui, como conseqüência da
ênfase que se dá à vontade privada, em sua intenção, é ela que prevalece.
Primeiro corolário dessa postura: se o resultado foi fruto da vontade privada, pode ela
reestipular a conseqüência, convalidando a atipicidade, afastar a relevância da
inadequação, retificando, ratificando, convalidando etc.
Segundo corolário: dada a relevância emprestada à vontade, os vícios que a afetam
repercutem de modo particular na adequação do suposto, inabilitando-o, se existentes, a
produzir as conseqüências jurídicas pactuadas. O vício da vontade se projeta sobre o
próprio resultado, inviabilizando-o.
A desqualificação, nesse campo, portanto, não atende a mera relação de causalidade entre
o suposto e a conseqüência (ato-fato) nem dá particular relevo à conseqüência posta pelo
direito objetivo (ato jurídico em sentido estrito) mas converge para a correspondência
entre o querido pela vontade dos sujeitos (autonomia privada) e o que pretenderam
imputar ao suposto como conseqüência. E porque essa conseqüência foi fruto da
determinação da vontade dos sujeitos, todo o problema da adequação ou inadequação se
exaure e se desenrola em torno e a partir dessa vontade privada manifestada ou declarada
no caso concreto.
13. Nos termos do exposto, vê-se que a inadequação é causa de invalidade, entendida
como uma desqualificação do suposto fático para a produção dos efeitos pretendidos.
Observou-se, entretanto, que o juízo sobre a inadequação do suposto não se realiza,
sempre, a partir das mesmas premissas e atendendo aos mesmos parâmetros. Se de
ato-fato se cuida, a inadequação se exaure em termos de existência ou inexistência
material do suposto. A rigor, nem mesmo de invalidade se pode cuidar na espécie.
Tratando-se de ato jurídico em sentido estrito, porque o resultado imputado ao suposto
independe da vontade dos sujeitos envolvidos na situação prevista como suposto, dá-se
prevalência ao resultado perseguido pela ordem jurídica. Se tal resultado é alcançado, o
problema da adequação ou inadequação do suposto é colocado em segundo plano,
entendendo-se que a situação material comprovada funcionou validamente como suposto,
na hipótese, sendo incorporada à ordem jurídica como se por ela prevista. A esse
fenômeno se reservou o nome de fungibilidade das formas ou dos tipos ou princípio da
finalidade da lei e do prejuízo.
No campo dos negócios jurídicos, assume particular relevo a vontade dos sujeitos
pactuantes. A adequação é entre o querido por essas vontades manifestadas ou
declaradas, constitutivamente, e o pretendido por um dos sujeitos como imputável àquele
suposto. Desarmonia havendo, ocorre invalidade, ainda quando se ressalve para os
sujeitos a retipificação do suposto ou sua retificação, excluído apenas o campo de
incidência de prescrições de direito objetivo que descartem, no particular, a atuação da
autonomia privada.
14. Nos itens precedentes, em várias oportunidades, mencionamos o problema da
adequação ou inadequação da situação materialmente comprovada ou invocada como
suposto normativo a que se associa a conseqüência postulada. Explicitaremos, agora, o
que entendemos por adequação.
O ato, como fragmento da continuidade que é a atividade do homem, de seu nascimento e
sua morte, reclama seja considerado o que antes dele ocorreu, como ato, o que a ele se
segue, o após, e o que é propriamente ele, ato considerado (sua estrutura executiva, o que

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se situa entre o momento a quo e o ad quem postos como limites ao ato). Quando se cuida
de ato jurídico, e o mesmo vale para o tipo (que nada mais é que um ato ou conjunto de
atos jurídicos, operando, no seu todo, como suposto de uma conseqüência jurídica
específica) denominamos de pressuposto ao que precede ao ato e é para ele juridicamente
relevante, condição ao que se segue, nas mesmas circunstâncias, e de requisitos a tudo
quanto integra a estrutura executiva do ato.
De outro lado, cumpre lembrar que o ato jurídico consubstancia, também, uma relação
entre sujeitos, tendo por objeto determinado bem, e objetiva-se por determinada forma.
Sujeitos, objeto e forma são, portanto, elementos essenciais a toda relação ou situação
jurídica que, em última análise, compõe-se de ou se traduz em ato ou atos jurídicos.
Correlacionando uma coisa e outra, fala-se em pressupostos subjetivos, objetivos e
formais, para se definir o que é exigido, com precedência, para que determinado ato se
tipifique ou se caracterize como ato jurídico específico. Se esses pressupostos são
atendidos, há adequação, nesse primeiro momento. Os sujeitos, o objeto e a forma são os
que a ordem jurídica reclama para que qualifique como suposto a realidade fática.
A adequação, entretanto, não se exaure aí. Reclama-se, ainda, a correspondência da
estrutura do ato material invocado ou comprovado com a estrutura material do ato
previsto normativamente. Havendo correspondência, há, também, adequação neste
segundo momento.
No comum das situações, pressupostos e requisitos bastam para integrar o tipo e, assim,
revestirem-no de eficácia, isto é, aptidão para produzir os resultados pretendidos. Há
situações, entretanto, menos correntes, em que a eficácia só acontece mediante a prática
de um ato ou ocorrência de um fato posterior o qual, sem se integrar na estrutura
executiva do ato, se insere, entretanto, no tipo, porque reclamado para que se tenha o
suposto como integralmente atendido. Nessa hipótese, a adequação só existe quando
verifica da a condição (o ato subseqüente, inserido no suposto para efeito de sua
adequação).8
15. Um exemplo favorecerá o entendimento de quanto foi exposto. Tomemos, para
análise, a sentença. Como ato, cumpre determinar o sujeito juridicamente autorizado a
praticá-lo. É o juiz. Eis aí um pressuposto subjetivo. Exige-se, ainda, que seja ele juiz
competente e compatível. Mais pressupostos objetivos. Se o sujeito que pratica o ato é
juiz, competente e compatível, há adequação subjetiva, ainda que parcial. Reclama-se, por
seu 'turno, que no outro pólo da relação jurídica exista um sujeito de direito que haja
provocado a atuação desse juiz, porque a postulação é essencial à adequação do ato
sentença. Sem esse outro sujeito e sem a postulação ou provocação impossível se falar em
adequação. Mas se reclama, por igual, que esse outro sujeito seja dotado de capacidade
processual e tenha postulado pela forma impositivamente prescrita em lei. E aqui temos
novos pressupostos subjetivos e formais. A par disso, exige a lei que a sentença contenha,
como estrutura, relatório, motivação e conclusão. E aqui já nos situamos não no que deve
preceder ao ato sentença, mas ao que é, estruturalmente, o ato sentença. Se o ato
sentença satisfaz a essas exigências, temos adequação quanto aos requisitos.
Atendido quanto reclamado em termos de pressupostos subjetivos, objetivos e formais e
atendida a estrutura executiva prescrita para o ato, temos sua adequação. Normalmente,
por força dessa perfeição, torna-se o ato eficaz, vale dizer, apto a produzir os efeitos que
lhe são específicos. No caso da sentença, entretanto, observa-se que a lei reclama um
outro ato, subseqüente a ela, que não lhe integra a estrutura executiva, para que os efeitos
que lhe são específicos possam ocorrer. E esse depois é a publicação (inserção da sentença
na série dos atos do procedimento e sua ciência àquele em cuja esfera jurídica vai incidir).
Publica da ela, é ato não apenas válido (adequação dos pressupostos e dos requisitos)
como eficaz, por ter ocorrido a condição que se lhe impôs para isso. Assim, com a
publicação, dá-se adequação plena do tipo. Mas. enquanto não publicada, há inadequação,
como haveria inadequação se desatendido algum requisito ou algum pressuposto.

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16. A reflexão doutrinária sobre os pressupostos levou-a a distinguir uma desqualificação


que é desqualificação por invalidade de outras desqualificações derivadas da inexistência
jurídica e da ineficácia. Analisemos, inicialmente, o problema da inexistência.
Percebe-se, facilmente, que se a situação de fato invocada como suposto e prescrita pela
norma não é comprovada materialmente, estamos diante de uma hipótese de inexistência
do suposto, não do ponto de vista jurídico, sim do ponto de vista fático. Inexistiu a morte,
pelo que não se pode falar em homicídio. Não existiu a venda, donde não se poder falar em
venda.
Diversamente ocorre quando de inexistência material não se cuida. Fatos foram
verificados, fatos foram comprovados como tendo existência material, mas esses fatos não
têm aptidão para corresponder ao suposto normativo. Não o reproduzem com exatidão,
mostram-se inadequados. Essa inadequação nem sempre se reveste do mesmo alcance.
Permaneçamos com o exemplo da sentença. A sentença dada por um juiz, mas carecendo
de motivação, e oferecida em face da postulação de alguém com capacidade de ser parte
e com capacidade processual, ou dada por juiz incompetente ou incompatível, é sentença
inválida, por atipicidade. E é sentença porque ato decisório de um juiz, praticado em face
de provocação de outro sujeito que é a parte. Havendo juiz, havendo quem juridicamente
reconhecível como parte, que haja provocado a atividade do magistrado, há sentença, por
mais defeituosa que ela seja, ou atípica.
Que dizer, entretanto, da sentença que fosse proferida, num processo, pelo escrivão do
feito, mesmo havendo provocação de quem revestido da capacidade de ser parte? Houve
provocação da parte, houve prática de atos processuais formalizando um procedimento,
houve tudo quanto, em parte, exige a lei, mas o ato decisório foi consumado por um sujeito
a quem a ordem jurídica recusa a prática do ato típico sentença. Assim, por força desse
defeito subjetivo, não há sentença, juridicamente ela é inexistente, porque falta sujeito
para o ato.
Essa reflexão nos leva a distinguir defeitos que simplesmente tornam o ato inválido de
defeitos que o tornam juridicamente inexistente. E aqui surge a necessidade, para bem
situar o problema das nulidades, de escoimá-la do que diz respeito à inexistência jurídica,
a reclamar uma teoria e uma disciplina diferenciada.
Como analisado antes, sujeitos, objeto e forma são essenciais à existência do jurídico, mas
nem todo sujeito, nem todo objeto, nem toda forma, sim o sujeito, a forma e o objeto
juridicamente qualificados como tais.
Se hoje dizemos que o nascer com vida importa a subjetividade jurídica, nem sempre foi
assim, nem, por igual, isso significa que a atribuição da subjetividade jurídica significa a
atribuição da capacidade de praticar todo e qualquer ato jurídico. Há atos para a prática
dos quais se requer uma "qualificação" jurídica específica. Por conseguinte, sem referência
à norma qualificadora, não se pode concluir sobre a aptidão do sujeito para a prática de
determinado ato.
Duas situações, no particular, podem ser diferenciadas. A primeira, referente aos que, por
terem nascido com vida, portadores, portanto, da condição de sujeito de direito, são, em
tese, aptos à prática de atos jurídicos em geral, salvo alguma restrição específica posta por
lei a essa aptidão. É o que se verifica com os inúmeros casos de inexistência de capacidade
de exercício e de legitimação. Tem-se a capacidade de direito, não se tem a capacidade de
exercício (genérica) ou a legitimação (incapacidade específica).
A segunda, é bem diversa. A condição de pessoa física ou jurídica, por si só, não habilita,
em tese, à prática do ato. Só quando à condição de sujeito de direito se soma uma outra
qualificação específica exigida pela ordem jurídica, é que se tem a subjetividade. Aqui, nem
falta a capacidade de agir nem se perquire da legitimação, falta a qualificação específica
que a ordem jurídica reclama para que o agente seja reconhecido como sujeito de direito,
na espécie.

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ESBOÇO DE UMA TEORIA DAS NULIDADES

Voltando a nosso exemplo. O ato sentença não é ato que se situa no âmbito daqueles que
podem ser praticados em razão de se ter a condição de sujeito de direito, sim ato cujo único
sujeito juridicamente reconhecido como apto para praticá-lo à aquele, ou são aqueles
portadores da especial qualificação que os tipifica como juiz. Daí porque o ato decisório do
juiz competente é sentença, por mais atípico que seja, mas o ato decisório do escrivão não
é sentença, por inexistência jurídica derivada da inexistência (jurídica) do sujeito.
Esse mesmo raciocínio pode ser feito no tocante ao objeto e à forma. Exemplo - compra e
venda de imóvel sem forma escrita é compra e venda inexistente: compra e venda de
pessoa humana é compra e venda inexistente.
No campo da inexistência, há invalidade, há ineficácia, há inadequação, mas de nulidade
não se cuida, sim de inexistência jurídica, ato nenhum não por desqualificação mas por
impossibilidade absoluta, intrínseca, de gerar conseqüências jurídicas.
17. Há necessidade, ainda, de distinguir a nulidade de uma outra situação que, embora
pertinente à invalidade, com a nulidade não se confunde.
Quando o tipo (fattispecie) é da categoria do procedimento,9 uma distinção nova se impõe.
Traduzindo-se o procedimento numa série de atos, direcionados para a obtenção de certo
resultado típico, há que considerar, na hipótese, tanto os pressupostos de cada ato do
procedimento, como a relação que entre eles possa existir. Isto feito, observou-se que
determinados pressupostos se revelaram presentes no tocante a todos os atos do
procedimento, pelo que sua falta ou irregularidade afeta não um ou alguns atos da série de
atos que integram o procedimento, mas o próprio procedimento como um todo. Essa
invalidade, assim abrangente, foi categorizada como inadmissibilidade, que se poderia
conceituar como a falta de aptidão do procedimento para ensejar alcançar-se seu resultado
típico, ou em outras palavras, mais específicas do processo jurisdicional, para ensejar o
exame do mérito.
É, portanto, a inadmissibilidade, ao lado da inexistência jurídica, também uma hipótese de
invalidade e de ineficácia que se não confunde com a nulidade. No terreno comum da
adequação ou inadequação, portanto, não se confundem, nem recebem o mesmo
tratamento teórico, nem levam às mesmas conseqüências práticas a nulidade, a
inexistência jurídica e a inadmissibilidade.
18. Feitas essas distinções, poderíamos, à guisa de conclusão, tentar uma definição
analítica do que seja nulidade. Ela é uma desqualificação procedida pela ordem jurídica, no
tocante a determinado suposto, por entendê-lo inapto para justificar a imposição da
conseqüência que lhe seria própria, inaptidão essa derivada da atipicidade relevante desse
suposto, vista essa relevância em consonância com o enlace que a mesma ordem jurídica
estabelece entre a vontade do sujeito agente e o resultado normativamente previsto.
Desqualificação, porque a nulidade não é algo ínsito à própria conduta juridicizada, sim o
resultado de um juízo prescritivo que retira, na espécie, a imputabilidade do suposto.
Essa desqualificação resulta da atipicidade do suposto, vale dizer, da verificação de que, no
tocante a ele, há falta ou irregularidades quanto aos seus pressupostos ou requisitos.
A atipicidade, entretanto, por si só, não acarreta a conseqüência da nulidade, porque a
desqualificação se opera mediante uma correlação entre a atipicidade do suposto e a
função que a ordem jurídica, na espécie, atribuiu à vontade do sujeito agente. Destarte,
cumpre distinguir uma atipicidade relevante de uma atipicidade irrelevante. E relevante
somente é aquela atipicidade que se reflete sobre a conseqüência normativamente
prevista, atendido o enlace que a ordem jurídica pôs entre a vontade do sujeito agente e a
conseqüência normativamente prescrita. Daí as três determinações que foram
precedentemente estudadas, tanto no pertinente aos atos-fatos jurídicos, quanto no que
diz respeito aos atos jurídicos em sentido estrito e aos negócios jurídicos.
19. Poderíamos, portanto, estabelecer os seguintes princípios diretores da disciplina das
nulidades.

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ESBOÇO DE UMA TEORIA DAS NULIDADES

No âmbito dos atos-fatos jurídicos, não há que se cogitar de nulidade, visto como, dada a
absoluta irrelevância da vontade do sujeito agente, só de existência ou inexistência
material do suposto se pode cuidar.
Quando de atos jurídicos em sentido estrito se trata, opera, decisivamente, a circunstância
de que a conseqüência é imputada ao suposto diretamente, por prescrição do direito
objetivo, prescindindo-se da adequação entre a vontade do sujeito a esse resultado.
Excluída do âmbito da vontade do sujeito é ela, conseqüência, em si mesma, que assume
relevância e é a partir dela que se desqualifica o suposto, por conseguinte se define sua
invalidade. Destarte, a inadequação (atipicidade) do suposto, por si só, não acarreta a
invalida de do ato, se a conseqüência objetivamente prevista pela norma ocorreu.
Teríamos, na espécie, uma atipicidade irrelevante, mera irregularidade, porque a
inadequação do suposto não foi suficiente para frustrar a conseqüência prescrita
normativamente na espécie. Houve, poderíamos dizer assim, inadequação do suposto mas
adequação da conseqüência. E porque é a conseqüência o que a ordem jurídica privilegia,
descarta-se a desqualificação do suposto. Opera, na espécie, o que se denomina de
fungibilidade das formas, ou fungibilidade dos tipos, ou princípio da finalidade da leiou do
prejuízo.
Se, ao contrário, o ato jurídico (em sentido amplo) é daqueles em que a relevância da
vontade dos sujeitos é posta em função da conseqüência (resultado) da conduta, isto é, se
estamos naquela situação em que a ordem jurídica facultou aos sujeitos definirem, eles
próprios, a conseqüência perseguida com sua conduta (negócio jurídico), a prevalência do
resultado deixa de ser um problema de exegese da norma de direito objetivo, para se fazer
um problema de exegese da norma posta pela vontade privada, nos limites que lhe traçou
a ordem jurídica. Se essa conseqüência querida não foi alcançada (sem esquecermos que
esse juízo, num primeiro momento, é dos interessados) a invalidade se impõe. Mas, aqui,
dada a relevância da vontade do sujeito agente, o problema da validade ou invalidade
quase que se exaure na análise e perquirição dessa vontade. E porque é ela que prevalece,
faculta-se, com largueza, a convalidação da inadequação pelos próprios sujeitos
interessados, os quais, tendo em vista seu interesse, em correlação com o resultado
alcançado, podem adequar o atípico que operou como suposto, fazendo-o suposto válido
da conseqüência alcançada. O que no ato jurídico em sentido estrito ocorre ex vi legis, aqui
se dá por força da vontade convergente dos sujeitos interessados.
20. Essas, nos parecem, são as diretrizes que nos permitirão solucionar todo e qualquer
problema de nulidade, interpretando-se os textos e construindo-se as soluções para os
casos concretos, com validade em todos os ramos do direito e tornando racional e claro um
problema que se tem qualificado de tormentoso e insuscetível de disciplina sistemática,
talvez porque, justamente, sempre se deu ênfase, no fenômeno, ao que era secundário,
relativo e instrumental.
O entendimento ora defendido é fruto de uma elaboração doutrinária que se processa no
sentido de deslocar a reflexão do jurista do lógico-formal para o existencial, libertando o
direito de seu pseudopurismo para fazê-lo uma técnica de construção de uma convivência
humana comprometida com a justiça.10
21. Atendidos os princípios acima enunciados, poderíamos testar seu acerto ou
atendibilidade, aplicando-os na exegese dos artigos que, no Código de Processo Civil
(LGL\1973\5), disciplinam as nulidades, bem como avaliar criticamente certos
posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais. Isso nos levaria a dar a este trabalho, um
simples esboço, uma extensão incompatível. Mas soaria suspeito fugirmos de um mínimo
de comprovação. Tentaremos fazê-lo.
Há um esforço doutrinário no sentido de distinguir, no campo do direito público, e daquela
esfera do direito em que operam os atos jurídicos em sentido estrito, uma nulidade que
seria absoluta de outra com a natureza de relativa, sem esquecer os que ainda tentam
subdivisões nessa dicotomia. Cuida-se, a nosso ver, de um falso posicionamento.

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ESBOÇO DE UMA TEORIA DAS NULIDADES

Como já salientado, o ponto nuclear da reflexão jurídica, no particular da validade ou


invalidade dos atos jurídicos (em sentido amplo) se desloca para a conseqüência, não para
o suposto, e tem apoio no enlace que a ordem jurídica estabelece entre a vontade do
sujeito agente e a conseqüência normativamente prescrita. Não há, pois, dessa
perspectiva, como distinguir nulidades. O ato é ou não ferido de atipicidade relevante. E se
o for, a certificação dessa atipicidade relevante operará, em termos de ineficácia, ex tunc
ou ex nunc, tendo em vista sempre aquela necessidade de preservar o alcance da
conseqüência objetivamente posta pela ordem jurídica. Dizer-se relativa a nulidade que
opera ex nunc e absoluta a que opera ex tunc seria um qualificar-se classificatoriamente a
posteriori para nada.
Afirma-se, também, que a classificação é pertinente, atendendo-se ao interesse em função
do qual é prescrita ou decretada a nulidade.
Se posta no interesse do sujeito, ela seria relativa. Em caso contrário, absoluta. Costumo
dizer a meus alunos que pago um prêmio de vulto a quem me indicar uma atipicidade que
se possa afirmar posta apenas no interesse do sujeito, em campo diverso daquele em que
opera a autonomia privada. No particular do processo, principalmente, jamais identifiquei
alguma, e aguardo ansiosamente que me seja revelada a primeira. Se os fins de justiça
postos pela ordem jurídica ao processo não são alcançados, toda atipicidade é relevante e
a omissão da parte, em denunciá-la, é impotente para afastar o prejuízo posto para o fim
público do processo; e se aqueles fins são atingidos, não há interesse da parte ou argüição
dela que legitime a decretação da nulidade do ato. De sorte que, em verdade, perdemo-nos
em discussões sobre o que é acessório, acidental e irrelevante, muitas vezes sacrificando,
por força desses exercícios tortuosos de dogmática jurídica formalista, o existencial,
incidindo, na prática, em decisões aberrantes, nas quais a vida é sacrifica da em nome de
coisa nenhuma, salvo um exercício de lógica formal no mundo da coisa nenhuma que é o
dos conceitos e das palavras, quando se dissociam do concreto do mundo vital.

1. Em 1959, concorrendo à Docência Livre na Faculdade de Direito da Universidade da


Bahia, defendi tese versando sobre a nulidade no processo civil. Fui honrado com a
presença, na banca examinadora, do Prof. Frederico Marques, que se revelou cordial,
cavalheiro e generoso, representando para o candidato, um desconhecido promotor
público, um fator de segurança em conjuntura que poderia ter sido adversa. Deu-me mais
que o merecido, inclusive escrevendo n'OEstado de S. Paulo a meu respeito, com uma
magnanimidade que me fez seu devedor sem remissão. Na homenagem que a Revista de
Processo lhe presta, para minha alegria e honra, fui convidado a colaborar. Com que
desvanecimento eu o faço. A Frederico Marques, criatura humana admirável,
amoravelmente talentoso, preso à vida por todos os seus cinco sentidos, de modo intenso
e pleno, dotado de um coração perdulário de afetividade, tudo é devido, justamente
porque, desprendido, nunca se afirma credor de coisa alguma. Para homenagear o querido
Mestre, retorno ao tema das nulidades, colocando, aqui, um esboço do que, hoje, 30 anos
decorridos, traduz o meu pensamento, árvore nascida daquela semente lançada ao solo
em 1959. Retornando ao tema, é como se, a cada proposição, atualizasse, no tempo,
aqueles momentos de ontem e a emoção então experimentada de sentir-me, tão
pequenino, diante de um Mestre já consagrado e vê-lo de braços abertos, mãos
estendidas, em postura sedutoramente acolhedora, convidando o que era frágil e
vulnerável a colocar-se sob a proteção de sua autoridade.

2. Nossa afirmativa não é a de que sua impositividade reside a juridicidade. É possível a


impositividade sem a juridicidade, bastaria lembrarmos a auto-tutela ou o uso da violência
a serviço dos próprios interesses. A juridicidade envolve outros componentes de caráter
valorativo, nela presente se faz, sempre, um componente político e econômico, dela é
ineliminável a dimensão ética. O que afirmamos, e o fazemos enfaticamente, é que sem a
impositividade não há juridicidade. O juízo que se mostraria adequado para revestir-se de
juridicidade só adquire tal qualidade quando provido de impositividade. E é desse consórcio
entre o que é prescrito e o que é imposto, ou do divórcio entre ambos que deriva o

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ESBOÇO DE UMA TEORIA DAS NULIDADES

problema da legalidade e da legitimidade, problema sempre em aberto e a pedir soluções


concretas.

3. Porque tem o homem de definir sua conduta em função de objetivos que se traçou é esse
objetivo perseguido que determina, decisivamente, a "compreensão" que o homem tem do
seu agir. Em razão disso, o mesmo fato (conduta) comporta compreensão diversificada e
dificilmente um fato (conduta) é suscetível apenas de uma só forma de compreensão. Se o
que predomina é o interesse na produção e circulação de bens para atendimento das
necessidades humanas, o enfoque econômico, mas esse mesmo fato (econômico) se for
posto na perspectiva de suas repercussões em termos de manutenção ou obtenção de
poder sobre outras pessoas, se reveste da qualidade de fato político, como será visto como
fato jurídico se analisado do ângulo de sua impositividade etc. E dessa realidade é que
resulta a impossibilidade de dissociar-se, na conduta, uma só de suas compreensões, como
se ela pudesse operar com independência das demais formas de compreensão que ela
permite. A par disso, gostaríamos de esclarecer que a nota da impositividade reclama, para
o direito, a existência de um centro de poder, capaz de assegurar essa impositividade. Isso
não significa, entretanto, seja o Estado o único centro de poder habilitado para tanto. A
história conheceu outros e ainda hoje se discute se outros centros de poder não convivem
com ele em nossa sociedade política. Lembraríamos, p. ex., a força impositiva dos
costumes. Mas para que essa força impositiva alcance a dimensão da juridicidade,
necessário se faz exista, na organização política, alguém ou alguma instituição à qual se
possa recorrer ou à qual se atribua ou reconheça poder de impor a prescrição normativa, o
valor socialmente predominante. Fala-se, ainda, em que o direito opera sem
impositividade, utilizando, ao invés, estímulos. São as chamadas sanções premiais, que
mereceram de Bobbio estudo de muito mérito. Data venia, vejo diferentemente. O
estímulo, puro e simples, jamais se reveste do caráter de juridicidade. A juridicidade só
existirá quando ao estímulo se associar a garantia de que o prêmio prometido será
impositivamente obtido. Promessa de prêmio sem garantia de sua obtenção é vã
promessa, que pode ter um componente moral ou até político, não jurídico.

4. Gostaria de distinguir, para evitar confusões, duas situações distintas. Pode a norma
prescrever que dado "A", deve ser "B" e, ocorrendo historicamente "A", "B" não venha a ser
implementado. Essa é uma conseqüência inevitável do sistema de produção do direito por
categorias, postas a priori. Essaé uma ineficácia diferente da ineficácia que deriva da
inadequação do suposto para produzir a conseqüência pretendida. Ali, estamos no campo
sociológico. Como fato, a prescrição normativa frustrou-se. Aqui, estamos no campo da
dogmática. O fato invocado ou comprovado não comporta a imposição da conseqüência
pretendida.

5. O que foi afirmado não significa acolhida da teoria da subsunção, crença ingênua de que
o julgador exercita uma atividade meramente lógico-formal. Em todo sistema jurídico em
que se não permite ao julgador construir, arbitrariamente, a solução para o caso concreto,
haverá sempre o problema da adequação do que ele tem como justo, para o caso posto
para seu julgamento, e a adequação desse justo ao socialmente predominante. Seja no
sistema da common law, seja no sistema da civil law, essa adequação ocorre. E é aqui que
o problema da tipicidade ou atipicidade se põe. Quando afirmo que o provado não autoriza
o deferimento do postulado, só poderei fazê-lo mostrando a inadequação do provado para
imputação do postulado em função do que prescreve a ordem jurídica. E essa operação é
a da afirmação ou negação da tipicidade do pressuposto provado ou invocado.

6. Ainda quando tenhamos exemplificado com o ato ilícito, não se exaure nesse campo o
universo dos atos jurídicos em sentido estrito. Lembraríamos, apenas, a situação que
decorre da incidência de uma prescrição tributária. Torno-me devedor do tributo com a só
ocorrência do fato gerador, sem que se reclame, de nenhum modo, o direcionamento de
minha vontade para o resultado normativamente prescrito.

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ESBOÇO DE UMA TEORIA DAS NULIDADES

7. Não estamos eliminando a distinção entre invalidade e ineficácia. Pode-se,


perfeitamente, afirmar válido um ato, atendendo a sua tipicidade, negando-se a ele
eficácia, por faltar a condição a que ela, eficácia, se associa, condição que integra o tipo,
mas não a estrutura executiva do ato. O problema da nulidade extrema-se, como veremos,
tanto da inexistência jurídica do ato quanto de sua pendência (ineficácia com validade).

8. A chamada condição extintiva em verdade nada tem de condição. É um fato extintivo em


tudo semelhante aos demais fatos extintivos juridicamente operantes. No particular, há
um estudo convincente de Giovanni Conso, I fatti giuridici Processuali Penali - Perfezione
ed Efficacia.

9. Sobre a fattispecie do tipo procedimento, ver, também, Giovanni Conso, ob. cit.

10. Seria impossível mencionar, aqui, todos os que vêm trabalhando o tema das nulidades
e favoreceram, com suas reflexões, uma renovação no entendimento dessa categoria
jurídica. Sem pretensão de ser exato e ser exaustivo, mencionaria, mais recentemente, os
trabalhos de Giovanni Conso, já referido, de Biagio de Giovanni, La Nullità nella Logica del
Diritto, de Pelingra, Le Nullità nel Processo Penale; mais remotamente, Carnelutti,
Instituciones, Pannaim, Le Sanzioni degli Atti Processuali Penali, Pontes de Miranda,
Comentários, para ficar nesses poucos, omitidos os muitos que não li e não conheço, ou
que, lidos, julguei, bem ou mal, terem em quase nada contribuído para essa renovação.

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