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INTRODUÇÃO

Houve uma época em que a palavra do médico era lei e ninguém ousaria contestar seus
procedimentos no diagnóstico e tratamento de um paciente. Tudo que o médico fazia era tido
como certo, indispensável e necessário – era como se a medicina fosse um sacerdócio. As
pessoas tinham a convicção de que ele estava sempre lançando mão de todos os recursos da
medicina, que eram ainda bastante limitados. E, quando o tratamento não trazia os resultados
esperados, advindo até a morte do paciente, as pessoas compreendiam que aquilo só podia ter
sido obra do destino, apesar do esforço e dedicação do médico.

Mesmo o destaque social que era dado à profissão médica sempre deixou a
responsabilidade do médico numa posição delicada, principalmente porque o contrato de
prestação de serviços médicos tinha como característica fundamental a sua pessoalidade.
Assim, como ensina FRADERA1 “Era o „médico de família‟, o médico de cabeceira, que,
durante décadas, dispensava cuidados, às vezes, a três gerações de um mesmo clã familiar”.

No século XX, com a massificação das relações sociais, a prestação “pessoal” do


atendimento médico ficou muito restrita a uma minoria elitizada, que ainda podia manter o
“médico de família”. Em geral, o surgimento dos grandes hospitais e centros de saúde
transformou essa relação, somado ao fato do próprio avanço da medicina, que levou a leva a
cada dia uma especialização maior dos profissionais.

Essa evolução da ciência em geral e da medicina em particular trouxe diversas


alterações na realidade do médico. As pesquisas, as descobertas, as novas técnicas e
instrumentos cada vez mais complexos e sofisticados foram aumentando os poderes do
médico na prevenção e na cura das doenças. Aquele sacerdócio dos tempos antigos adquiriu
maiores responsabilidades, ocasionando, por conseqüência, maiores infortúnios, que antes
eram atribuídos ao destino.

1
FRADERA, Vera Maria Jacob de. Responsabilidade civil dos médicos. In.: Ajuris, p. 116.
1
Hoje, os médicos conhecem cada vez menos seus pacientes, aumentando a
responsabilidade pelos diagnósticos, pois a nova medicina, que aumenta as possibilidades de
cura, também propicia uma nova gama de possibilidade de danos, com “conseqüências muito
mais graves do que aquelas que advinham da utilização dos métodos mais antigos e
tradicionais de tratamento e cirurgia”.2

Da absoluta irresponsabilidade jurídica, o médico passou a ser alvo de investigações e


desconfiaças, chegando aos processos jurídicos, muitos por conseqüência de má formação
universitária, pelo desinteresse dos recém-formados em cursar especializações e ainda pela
falta de atualização dos profissionais mais antigos, no que diz respeito aos avanços da
medicina.

Por isso, desde o começo do século passado, a jurisprudência francesa tem se


monstrado preocupada com a imunidade jurídica dos médicos, imputando-lhes
responsabilidade quando sua imperícia resultasse evidente e não apenas quando houvesse
intencionalidade do dano ou inteções criminosas.

Mesmo que a medicina tenha alcançado alto grau de desenvolvimento nos dias de
hoje, ela não consegue recuperar funções vitais do corpo humano, órgãos e a própria vida,
bens maiores do homem. A relevância reside também na constante interveção deste
profissional, que é cada vez mais exigido, diante da amplitude e profundidade que assumem
as informações sobre o complexo funcionamento e organização do corpo humano.

Apesar de todos os avanços científicos e tecnológicos, a medicina ainda é limitada. O


homem também tem seus próprios limites – e são variáveis em cada indivíduo. Conhecer os
limites é fundamental para a prevenção de erros na medicina. O objetivo em se estudar este
tema está em compreender o que é responsabilidade civil na área médica, compreendendo as
diferentes variáveis ligadas ao tema como erro, dano, imperícia e outros.

O trabalho apresentado é um levantamento bibliográfico a partir de obras de autores


conhecidos na área de responsabilidade civil do médico, tais como GIOSTRI, MATIELO,
FADERA, BLOISE e KFOURI NETO, sendo que se inicia delimitando o erro médico para,

2
FRADERA, op. cit., p. 119.
2
em seguida, discutir os problemas decorrentes do erro médico, tratando, principalmente, da
responsabilidade médica e civil.

3
4
CAPÍTULO I

RESPONSABILIDADE MÉDICA

Antes de discorrer sobre o erro médico, é interessante verificar quando se iniciou essa
preocupação tão debatida atualmente. SILVA3 comenta sobre Hammurábi (1728-1686 a.C.),
rei da Suméria considerado o responsável pela implantação do direito e da ordem em seu país
e motivo fundamental da unidade de seu reino.

Esse rei criou o Código de Hammurábi, “uma das mais antigas coleções de leis da
Antigüidade oriental, legando-nos textos referentes às lesões corporais (arts. 196 a 214) e aos
erros médicos (arts. 218 e 219), crimes puníveis com a pena do talião”.4

Também Hipócrates (460 a.C.), grego considerado o pai da medicina, conceituava a


imperícia em seu livro “A lei”, como “uma má qualidade, uma má garantia para os que a
possuem; sem alcançar confiança nem satisfação, engendra timidez e temeridade; a primeira
descobre a falta de energia, a segunda a ignorância”.5

Alguns séculos mais tarde, o médico pessoal do Papa Inocêncio X – Paolo Zacchia6
(1584-1659) – publicou a obra “Quaestiones médico-legales”, cujo último volume dum total
de seis era dedicado ao estudo de erros médicos e a respectiva punição legal.

Após apresentar esses três personagens que viveram em diferentes épocas, muito
distantes entre si, verifica-se que a preocupação com o tema “erro médico” praticamente
nasceu com a própria medicina, mas parece que hoje, mais do que nunca, ouve-se falar em
erro médico, principalmente porque, segundo GIOSTRI, “a veiculação da imprensa falada
escrita e televisada dá-se de maneira ostensiva, prejudicial à classe, já que os acertos, mesmo
sendo a maioria, não recebem igual divulgação”7 Quer dizer, os médicos são apontados como

3
SILVA, Francisco R. M. Moraes. Erros médicos: doutrina e conseqüências ético-legais. In.: Arquivos do
Conselho Regional de Medicina do Paraná. v. 7. n. 26. Curitiba, abr-jun/1990, p. 74.
4
SILVA, op. cit., p. 74.
5
SILVA, op. cit., p. 74.
6
Considerado, segundo SILVA, o pai da medicina legal.
7
GIOSTRI, Hildegard T. Erro Médico e condições de trabalho. In.: Arquivos do Conselho Regional de
Medicina do Paraná. v. 13, n. 49. Curitiba, jan. – mar/1995, p. 1.
5
culpados mas, entre os acusadores, são poucos os que se precocupam em determinar as causas
que levaram aquele profissional a cometer o erro médico – qual sua real responsabilidade na
ação que desencadeou no erro.

Para isso, este capítulo estuda a responsabilidade e no que ela se baseia para, em
seguida, examinar o erro, seus tipos e características, bem como a diferença entre o erro
médico propriamente dito e a má prática da profissão.

1.1. Responsabilidade Civil

O progresso técnico que a atividade médica vem sofrendo ao longo do tempo, se por
um lado aumentou a expectativa de vida humana e deu mais segurança ao trabalho do médico,
por outro lado acarretou a este um maior grau de responsabilidade civil.

O art. 159 do Código Civil determina: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária,
negligência ou imprudência violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar
o dano”8. É a fundamentação da responsabilidade civil.

A classificação de MONTEIRO9 leva em consideração o aspecto delituoso da


responsabilidade e classifica da seguinte forma:

I – Como delito civil o ato praticado sem direito com intuito de


prejudicar, causando dano. Evidencia o dolo, a intenção de
prejudicar, ensejando ao julgador a aplicabilidade de norma
penal, além da civil.
II – e o quase-delito, como segundo caso, sendo aquele em que o
agente pratica o ato, causando dano, sem o ânimo de prejudicar.

8
Citado por BLOISE, Walter. A responsabilidade civil e o dano médico: legislação, jurisprudência, seguros e o
dano médico. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 8.
9
MONTEIRO, Washington de Barros, citado por BLOISE, op. cit., p. 9.
6
Seguindo o pensamento de MONTEIRO, BLOISE10 conclui que surgem duas
situações distintas:

I – a responsabilidade penal, quando houver o animus de


prejudicar – a intenção de causar danos é premissa básica para se
aplicar a lei, além do dispositivo de responsabilidade civil.
II – a responsabilidade civil, quando houver imprudência ou
negligência, e a noção de culpa se correlacionam com o evento.

Segundo GIOSTRI11, a responsabilidade civil “deriva da responsabilidade moral,


ainda que esta seja um valor cambiante já que varia segundo os conceitos individual e social”.
BLOISE12 diz que “todo dano ou prejuízo, imposto ao particular, afeta o equilíbrio social, e é
nisso que se funda a responsabilidade civil. Sendo resposta a vítima na situação anterior ao
ato, estará desfeito o desequilíbrio sofrido”

MATIELO13 expõe o tema responsabilidade civil de maneira muito interessante, e que mostra
as dificuldades de se julgar o possível dano:

Ao indivíduo é dado agir, em sentido amplo, da forma como


melhor lhe indicar o próprio discernimento, em juízo de vontade
que extrapola as previsões legais e independe das mesmas. Pode
inclusive contrariar o ordenamento jurídico na amplitude
desejada, valorando diferentemente das normas legais os fatos e
eventos. Mas, ainda que inexista a normatização a regular o caso,
o homem é sempre responsável por toda e qualquer conduta que
adotar, ao menos em termos morais e de prestação de contas à
consciência [...] Se frente à sociedade recebe sempre a reprimenda
moral quando afronta a ordem jurídica, perante esta sucede que
será obrigado a reparar os danos porventura ocasionados, fruto
da necessidade de manutenção plena da viabilidade da vida
comunitária.

MATIELO14 apresenta uma fórmula que expressa a responsabilidade civil:

10
BLOISE, op. cit., p. 9.
11
GIOSTRI, op. cit., p. 2.
12
BLOISE, op. cit., p. 9.
13
MATIELO, Fabrício Z. Responsabilidade civil do médico. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1998, pp. 11-12.
7
CONDUTA ILEGÍTIMA + RESULTADO LESIVO + NEXO CAUSAL = RESPONSABILIDADE
CIVIL

O que se entende, após essa breve exposição, é que toda e qualquer manisfestação de
atividade humana traz em si a conotação de responsabilidade . Mesmo se fundamentando
distintamente de acordo com os costumes de época e tendo suas variáveis determinadas pela
ideologia social dominante, o fim se mostra idêntico, ou seja, busca-se a manutenção do
equilíbrio social ou a restauração do equilíbrio rompido.

A atividade profissional do médico – como o de outras profissões chamadas liberais –


está inserida no tipo de responsabilidade subjetiva contratual15, mas há autores que a tratam
como extracontratual ou aquiliana.

1.1.1. Responsabilidade subjetiva contratual:

O estudo da responsabilidade civil, tradicionalmente, obedece a uma divisão conforme


a fonte do dever violado, dividindo-se basicamente em responsabilidade contratual ou
extracontratual, conforme o ato contrário a direito viole uma obrigação contratual ou
extracontratual ou um dever geral.

Esta divisão tem uma origem histórico-ideológica16, em virtude da compreensão de


que as fontes das obrigações são essencialmente a Lei e o contrato. Conforme a fonte da regra
seria o tipo de responsabilidade. Sempre que alguém viole um direito de crédito (ilícito
relativo)17, está sujeito a responsabilidade extracontratual.

14
MATIELO, op. cit., p. 17.
15
De acordo com GIOSTRI, op. cit., p. 2.
16
Segundo KELSEN, Da teoria geral do direito do estado. p. 84.
17
PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de direito privado. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974, p.
193.
8
Embora em algumas situações de emergência a prestação dos serviços médicos não se
realize por meio de um contrato, a regra é que a responsabilidade dos profissionais da
medicina seja contratual.

Apesar da discussão sobre a real existência de dois regimes de responsabilidade e das


diferenças possíveis de apontar, no caso em questão a diferença básica está em que na
responsabilidade contratual basta ao autor de uma demanda provar a existência de um dano
pelo inadimplemento de um contrato ou pelo seu mau adimplemento. Por outro lado, na
responsabilidade extracontratual, cabe ao credor provar, além de um dano, que há um nexo de
causalidade entre uma conduta (de culpa) do devedor e tal dano. Em outras palavras, a prova
da culpa é ônus do cliente, da vítima.

Esta diferença, de grande significado geral, fica prejudicada na responsabilização do


médico. Praticamente toda doutrina sobre o assunto afirma pela contratualidade desta
responsabilidade, o que entende-se discussão inútil18.

A inutilidade da discussão está em que, sendo conteúdo da prestação do médico um


agir diligentemente, dentro de determinados padrões técnicos, e não a obtenção de
determinado resultado, a prova do dano não poderá ser feita pela comprovação de um
resultado insatisfatório, no caso de um agravamento de problema de saúde ou até a morte,
pois tal resultado está para além da prestação e das próprias possibilidades do profissional, eis
que dependem de uma série de fatores externos. Em virtude disto, a prova do dano passará
necessariamente pela avaliação da conduta do profissional, verificando se agiu de forma
prudente, diligente e com a perícia exigível para a situação.

Por isso, afirma-se tradicionalmente que a responsabilidade médica é de ordem


extracontratual, pois compete ao cliente provar a negligência, imperícia ou imprudência
médica, enfim, que não tenha cumprido com seus deveres19. Trata-se de uma conseqüência de
ser sua obrigação de meio, e não de sua classificação como contratual ou extracontratual.

18
A jurisprudência é clara em não admitir presunção de culpa na responsabilidade do profissional médico: “cabe
ao médico tratar o doente com zelo e diligência, com todos os recursos de sua profissão para curar o mal, mas
sem se obrigar a fazê-lo, de tal modo que o resultado final não pode ser cobrado ou exigido”. 7ª Câmara Cível do
TSJP, Ap. Civ. 177-280-1/8, In.: Revista dos Tribunais n. 694, 1993.
19
DIAS, José de A. Da responsabilidade civil. v. 1. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 283
9
Apesar de certa irrelevância da discussão, o critério utilizado pela doutrina para
responsabilidade é considerar a responsabilidade médica contratual, mesmo quando há
gratuidade no atendimento, e extracontratual quando o dano resulte da negativa de
atendimento ou perante terceiros20, apesar do Código Civil brasileiro conter disposição
referente a responsabilidade extracontratual21.

AGUIAR DIAS22 entende que, a despeito de o Código Civil ter tratado o assunto entre
os dispositivos que dizem respeito à responsabilidade aquiliana, considera aquela como
contratual, no que é acompanhamento por inúmeros outros autores.

Como já citado, sendo contratual, ela baseia-se sobre o contrato do tipo “de meio”,
onde o médico tem a obrigação de oferecer a seu paciente todos os meios disponíveis para
atingir a sua cura e que está baseado no cumprimento de atos resultantes das próprias forças
físicas ou intelectuais do médico, ou seja, “o limite de sua prestação obrigacional encontra-se
naquilo que ele, devedor, pode fazer em conformidade com seu estado físico e mental”23.

O médico é responsável não só pelo que fez, mas também pelo que deixou de fazer;
pelo que disse e pelo que deixou de dizer; pela oportunidade que escolheu para não fazer
quando deveria – ou poderia – ter feito – por isso, a responsabilidade subjetiva. Mas, isso
significa que ele será sempre culpado quando um objetivo não for atingido ou o resultado não
for o esperado? É o que pensa a maioria das pessoas; basta verificar o aumento do número de
ações de indenizações responsabilizando médicos por insucessos, nem sempre frutos de erros.

A responsabilidade subjetiva, para BLOISE24, é aquela em que se fundamenta a teoria


clássica e tradicional de culpa, que pressupõe: “a) culpa lato sensu, que abrange o dolo; e b)
culpa stricto sensu, que se caracteriza pela violação de um dever o qual o agente podia
conhecer e acatar ou prevenir”. Pela prática desses atos, acarretando prejuízo a terceiros,
advém a obrigação de indenizar. Três fatores se correlacionam:

a) a existência de um dano contra o direito;

20
DIAS, FRADERO, entre outros.
21
Art. 1545. Os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são obrigados a satisfazer o dono,
sempre que da imprudência, negligência ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de servir
ou ferimento.
22
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 10 ed. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 253.
23
GIOSTRI, op. cit., p. 3.
24
BLOISE, op. cit., p. 83.
10
b) a relação de causalidade entre o dano e o fato imputável ao
agente; e
c) a culpa do agente, agindo com dolo ou culpa, que é a culpa por
negligência, imprudência ou imperícia25.

Segundo a natureza e extensão da culpa, MONTEIRO26 distingue as seguintes:

I – Culpa lata ou grave: é a falta imprópria ao comum dos


homens;
II – Culpa leve: é a falta evitável com atenção ordinária;
III – Culpa levíssima: é a falta só evitável com atenção
extraordinária, com especial habilidade ou conhecimento singular;
a culpa lata é assemelhada ao dolo;
IV – a) Culpa contratual: é a violação de determinação dever
inerente a um contrato;
b) Culpa extracontratual ou aquiliana: é a resultante da
violação do dever fundado em princípio geral de direito, por
respeito à pessoa e bens alheios;
V – a) Culpa in eligendo: é a que provém da má seleção do
empregado ou respresentante; admissão de empregado sem as
aptidões necessárias;
b) Culpa in vigilando: é a oriunda da ausência de fiscalização
do empregador quanto à coisa ou de seus empregados;
VI – a) Culpa in committendo: é quando o agente pratica um ato
positivo;
b) Culpa in omittendo: é quando decorre de sua abstenção;
c) Culpa in custodiendo: é quando decorre da falta de cautela
ou atenção em torno de algum objeto, animal ou de alguma pessoa,
sob os cuidados do agente;
VII – a) Culpa in abstrato: é quando o agente se afasta do zelo e
diligência que costuma empregar no trato de seus negócios;
b) Culpa in concreto: é quando o seu reconhecimento
depende do exame de cada ato, ou cada fato, segundo as suas
particularidades.

O ato médico pode se consistir numa ação ou numa inação culposa. A ação se
constituirá em conduta positiva imperita ou imprudente no desenvolvimento de sua atividade
profissional, enquadrável dentro dos parâmetros comuns da responsabilidade. O aspecto
negativo, a inação, poderá se constituir tanto em negligência do diagnosticar ou numa

25
BLOISE, op. cit., p. 83
26
MONTEIRO, Washington de Barros, citado por BLOISE, op. cit., p. 83.
11
intervenção sobre a saúde de um paciente, causando-lhe um dano27, como numa violação de
deveres éticos mais fortes, quando estiver caracterizada a omissão de socorro, penalizada no
art. 135 do Código Penal brasileiro28.

1.1.2. Conceito da obrigação do médico

Assim como o advogado, o médico não se comprete com um resultado, mas a prestar
sua assistência, de forma diligente, prudente e atenciosa.

Não compete ao médico restituir a saúde de seu paciente, objetivo que não íntegra sua
prestação, mas utilizar sua técnica e seus conhecimentos da melhor forma possível, para
atingie este objetivo. Em virtude disso, a obrigação do médico é uma obrigação de meio e não
de resultado.

Estas duas modalidades de obrigação compreendem a existência de uma bipartição no


conteúdo dos deveres possíveis de uma relação jurídica obrigacional. O dever pode ser um
elemento de natureza objetiva, através de uma prestação que por si só é satisfeita de uma
necessidade econômico-social, independente de ter esta prestação sido realizada com muito
ou com pouco esforço do devedor, como é típico das obrigações de dar, de restituir e de fazer
fungíveis, como pode ser de natureza subjetiva, próprio das obrigações de fazer infungíveis,
consistindo na exigência de comportamento do devedor em direção a um determinado
resultado. Neste caso, a obrigação é de um esforço pessoal em direção a si próprio,
desvinculado da finalidade econômico-social, que a prestação pretende atingir.

27
“Comete homicídio culposo e não omissão de socorro o médico plantonista que, negligenciando no
atendimento do paciente, com o qual manteve contato, limitando-se a receitar-lhe medicamento por intermédio
da enfermaria, contribui eficazmente para sua morte”. DELMANTO, Celso. Código penal comentado. 2 ed. São
Paulo: Renovar, 1988, p. 259.
28
“Configura o crime deste art. 135 a conduta do médico que recusa assistência a doente grave, a pretexto da
falta de pagamento de honorário ou da inexistência de convênio [...] Comete omissão de socorro o médico que
alega estar de folga quando quando não há outro médico na cidade [...], ou que exige depósito prévio para tratar
de ferido sem recursos [...]”. DELMANTO, Celso, p. 259.
12
Enquanto na obrigação de resultado a imputação da responsabilidade depende do
resultado econômico-social determinado contratualmente, na obrigação de meio, depende da
honestidade e diligência do devedor na realização da prestação.

Assim, da mesma forma que a obrigação de prestar uma coisa, por exemplo a entrega
de um pão, tem como objeto da prestação a efetiva entrega do pão e não que aquele pão tem
mate a fome de alguém, na obrigação de meio o objeto da prestação consiste somente no
fazer, independente de satisfazer uma necessidade da vida. De qualquer forma, esta divisão
não é rígida, pois mesmo as obrigações consideradas de resultado deixam fora do conteúdo
da prestação a sastisfação de alguma necessidade da vida.

Assim, o advogado e o médico se obrigam a prestar serviços, devendo eles agir com
diligência e cuidado no sentido de atingir a finalidade pretendida pelo cliente. Não se obrigam
ao resultado.

Mesmo que no contrato de prestação de serviços estes profissionais se vinculem a uma


prestação mais ampla, incluindo um resultado positivo da sua ação, não farão nascer uma
obrigação válida, pois os resultados não dependem somente da vontade e do esforço dos
profissionais, estando, muitas vezes, em relação de dependência maior com fatores externos à
relação.

Isso significa dizer que não é ínsita ao exercício da atividade médica e advocatícia a
assunção de riscos. Neste sentido foi feliz o Código de Defesa do Consumidor, em seu
parágrafo 4º, art. 14, ao excluir de seu regime de responsabilidade objetiva os profissionais
liberais.

A imputação de uma responsabilidade objetiva a advogados e médicos significa a


inviabilização do exercício dessas profissões, na medida em que só são chamados a intervir
em situações duvidosas e arriscadas. Quando o exercício do direito é pacífico ou quando não
há risco contra a saúde dos sujeitos, a intervenção tanto do médico como do advogado é rara.

Isto fica claro quando o resultado pretendido – a cura – é inatingível, por exemplo, no
diagnóstico e tratamento da AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), de grande
parte das doenças do coração, câncer e, inclusive, gripe.

13
Por isso, faz-se necessária a exposição do que seja a culpabilidade do médico, porque
o fato dele ser responsável por seus atos não significa, necessariamente, que ele é culpado.
Para que ele seja responsabilizado, se faz necessário que de sua parte tenha havido a culpa.

CAPÍTULO II

A CULPA

A imperícia médica, avaliada como um agir em desconformidade com a melhor


“aquisição da ciência”29, também não pode se constituir em presunção de culpa. A avaliação
do desempenho do profissional deve realizar-se dentro de parâmetros concretos e não
hipotéticos. Só será exigível do médico a utilização da melhor técnica possível de ser
executada nas condições reais que se apresentam, bem como a responsabilização pelo
desconhecimento das melhores “aquisições da ciência” dependerá do grau de especialização
do profissional e de sua conduta ética perante o cliente30.

É dever ético não só do médico como de todo e qualquer profissional que recomende
um especialista ou alguém que entenda melhor de certa matéria, quando seu conhecimento
não alcançar a complexidade do problema.

Em geral, a procura do médico ocorre em situações de emergência, nas quais a


negativa no atendimento se constitui em violação maior do que a própria imperícia. Porém,

29
DIAS, J. A Op. cit., p. 284.
30
FRADERO, em seu art. 127-128, faz ressalva quanto ao médico do interior, que não pode ser responsabilizado
por não acompanhar os avanços da medicina. Porém, a idéia de interior nos dias de hoje está relativizada. Muitas
vezes os centros de especialização localizam-se no interior, bem como o desenvolvimento dos meios de
comunicação e transporte não permitem essa desculpa.
14
para delimitação do que pode se constituir em conduta culposa do médico, é necessário que se
verifique objetivamente quais são seus deveres perante o cliente.

Para a responsabilização há necessidade de que o médico tenha desprezado ou


ignorado seus deveres. A doutrina mais antiga e parte da jurisprudência entendiam que a culpa
deve ser grave, não ensejando a responsabilização a culpa leve, para que não haja
inviabilização e imobilização do profissional. Mas, sem sombra de dúvida, atualmente a
posição dos tribunais e de toda a doutrina é de responsabilizar toda a falta que atende contra a
integridade física ou a vida humana. Não se pode, nos dias de hoje, com o desenvolvimento
extraordinário da medicina, continuar tolerando a perda de vidas pela imperícia médica, muito
menos pela negligência ou imprudência.

O dever médico pode ser agrupado em três ordens: dever de informação e


aconselhamento, dever de assistência constante e dever de prudência.

a) Dever de informar: o dever de informação se biparte em dever geral imposto a todos


aqueles que celebram um contato, que é o de informação, e no dever específico de
aconselhamento.

O dever geral de informação está relacionado com a necessidade do médico, ao tratar


com seu cliente numa fase pré-contratual, de estabelecer as condições contratuais para
utilização de seus serviços, como, por exemplo, o preço da consulta, os convênios com que
trabalha, sua especialidade e todos aqueles elementos necessários à decisão do cliente em
contratar ou não. Além disso, quanto à consulta, que é execução de sua prestação, deve
realizá-la de forma que o cliente possa compreender o que se passa com sua saúde, utilizando
vocabulário compreensível e claro.

Apesar da inexistência de limites absolutos sobre o que seja informar e aconselhar,


entende-se que o aconselhamento já é a transmissão de um conteúdo de informações sobre o
próprio tratamento e estado de saúde do paciente, inclusive pesando os riscos a que irá se
submeter.

O médico tem o dever de recomendar qual é a melhor solução para resolver


determinado problema, se o simples repouso ou uma intervenção cirúrgica, inclusive nos
casos em que há maiores riscos à saúde ou à vida, salientando esse aspecto. Não significa,
15
porém, que deve o profissional abalar psíquica e emotivamente o seu cliente, pois “a ausência
de pormenores técnicos não impede mostre sumariamente os riscos do tratamento
aconselhado; a necessidade de salvaguardar o moral não deve ser superestimada em relação
de saber para onde o conduzem”31.

De qualquer forma, se a prudência recomenda que o paciente não receba todas as


informações sobre seu problema, o médico deve informar aos familiares que tenham
ascendência sobre o doente.

Consistirá também o dever de aconselhamento o deve de indicar, quando necessário,


um especialista no problema apresentado pelo paciente, quando não o for.

b) Dever de assistência e perícia: o dever de assistência imposto ao médico não decorre


somente da relação contratual estabelecida, mas se constitui num imperativo ético imposto
a todos profissionais da área.

É dever de prestar com a maior correção e diligência possível, atendendo aos


chamados e mantendo-se constantemente informado sobre as condições reais de seu paciente.

Isto não significa que deva o médico ficar de plantão ao lado do leito de todos os seus
clientes, mas trabalhar de forma que sempre possa, em tempo hábil, colher as informações
necessárias para suas intervenções técnicas. Em outras palavras, pode-se dizer que o
atendimento a uma clientela extremamente grande, sem que haja elementos humanos e
técnicos para tal, pode, em algumas situações, configurar o abandono, levando à
responsabilização.

Isto é comum na sociedade brasileira, no atendimento médico da saúde pública, na


qual contrapõe-se a carência de recursos humanos e materiais e, por outro lado, uma extensa
fila de doentes, que são “atendidos” em segundos pelo médico de plantão. Nestes casos, é
difícil responsabilizar o profissional, que encontra-se aprisionado naquela realidade, mas sem
dúvida, na ocorrência de danos pela falta de assistência e abandono deve o estabelecimento
público ser responsabilizado pela violação de tal dever.

31
DIAS, J. A. Op. cit., p. 286.
16
Poderá o médico deixar de atender, mas não abandonar. Para tanto, deverá comunicar
o paciente e seus familiares, preferencialmente com a motivação do ato, restituindo-lhes os
honorários recebidos pelos serviços não prestados. O abandono caracteriza-se pela situação de
desinformação e não-assistência, enquanto que para o paciente há a expectativa constante de
que está por vir a “visita” médica.

O dever de assistência inclui o dever de vigilância sobre aqueles pacientes que possam
causar a si mesmos danos, principalmente naqueles afetados por doenças mentais, ou em
doentes que utilizem medicamentos capazes de provocar alucinações ou até mesmo
depressões, necessárias muitas vezes para combater a própria dor. Também integra a
vigilância nos períodos pré e pós-operatório, fases em que o atendimento deve ser constante,
evitando-se assim danos por motivos facilmente afastáveis.

c) Dever de prudência: consiste na ação do médico de acordo com a pauta da boa-fé. Não
obstante o atendimento médico não surja de um contrato, não pode ele realizar tratamento
arriscado ou operação que oferece grandes riscos sem a autorização do cliente ou de seus
familiares, após a exposição de todos os riscos que envolvem a situação.

Não pode o profissional abusar de sua situação de superioridade técnica para decidir
sobre a conduta da vida de seus clientes.

É claro que em situações de extrema emergência este dever assume outra conotação, a
de atender sem a fixação de condições. Assim, naqueles casos em que a gravidade de uma
situação exige uma intervenção imediata, sob risco de vida, função ou órgão de paciente sem
condições de consentir. Em geral, estando presente o consentimento do paciente, mesmo que
tácito, o médico não pode ser responsabilizado pelos riscos naturais a determinada
intervenção cirúrgica ou da utilização de certa meditação, exceto quando verificar-se a
ocorrência de erro grave ou desrespeito a outro dever. Porém, assumirá riscos se através de
sua superioridade escolher arbitrariamente a condução do tratamento, expondo o paciente a
riscos muitas vezes injustificados, ou, se justificados, que não seriam assumidos.

Junto a este dever de prudência pode-se acrescentar o dever de aperfeiçoamento


constante. Não basta ao médico o pleno domínio das matérias que lhe foram ensinadas no
curso de medicina, que lhe habilitou ao exercício da profissão. Há necessidade de que

17
acompanhe as técnicas médicas32 que se desenvolvam sem cessar, contemporâneas a cada um
de seus atos, condição para a intervenção sobre o corpo humano.

Resumindo, no que diz respeito à obrigação do médico, entende-se que:

a) seu objeto de contrato não é a cura, mas a prestação de serviços e cuidados


conscienciosos de acordo com os avanços científicos e tecnológicos;

b) nada o obriga a restituir a saúde a um paciente, mas a conduzir-se com toda a


diligência para atingir, dentro das possibilidades, aquele objetivo;

c) o profissional só será responsabilizado pelo insucesso se ficar cabalmente provado


que ocorreu dano ao paciente e que tal se deu em conseqüência de erro, imperícia,
imprudência ou negligência de sua parte.

Portanto, pode-se concluir que a responsabilidade subjetiva sempre pressupõe a


existência de culpa, ou seja, que tenha havido a violação de um direito que o médico podia
conhecer e acatar. Nesse contexto, “pode-se enquadrar a culpa como falta de diligência na
observância da norma de conduta e é, justamente, tal falta de diligência, de prevenção, de
cuidado que dá vida aos elementos essenciais que caracterizam a culpa, ou seja, a imperícia, a
imprudência e a negligência”33.

2.1. Imperícia, Imprudência, Negligência

DIAS34 ensina a distinção que delimita a imperícia, a imprudência e a negligência. Diz


que imperícia é a falta de habilidade para praticar determinados atos que exigem certos
conhecimentos. A imprudência consiste na precipitação, no procedimento sem cautela, em
contradição com as normas do procedimento sensato. A negligência é a omissão daquilo que

32
Segundo FRADERA, V. M. J.: “um conjunto de procedimentos bem definidos e transmissíveis, destinados a
produzir certos resultados que se considerem úteis”. Op. cit., p. 121-122.
33
GIOSTRI, op. cit., p. 4.
34
DIAS, op.cit., p. 120.
18
razoavelmente se faz; é a inobservância das normas que ordenam agir com atenção,
capacidade, solicitude e discernimento; é algo que se deixou de fazer.

Se o médico agiu com culpa e houve a ocorrência do dano, resta provar que entre o seu
agir e o resultado danoso houve realmente um nexo causal.

2.2. Nexo Causal

Segundo GIOSTRI35, nexo de causalidade “é a relação que se estabelece entre a ação e


a causa de agir, de tal forma que o resultado final só pode ser imputado a quem lhe deu causa,
ou seja, consiste no fato de o dano ter surgido de um ato ou de uma omissão”.

Para FRANÇA36, “o nexo é a relação entre a causa e o efeito, um elo entre o dano e o
ato. Se o dano apontado é a própria continuação incontrolada do estado mórbido, por seu
curso irremediável e progressivo, não há o que falar de culpa médica”.

Quer dizer, inexistirá a responsabilidade do médico se ficar comprovada a inexistência


de nexo causal ou se ficar provada a concorrência de atos de terceiros, força maior ou culpa
do próprio paciente.

Sendo o nexo causal essencial na determinação da responsabilidade civil, às vezes


torna-se particularmente difícil pesar os fatores que conduziram ao dano, seja porque são
imperceptíveis à primeira análise, seja por haver vários eventos que fazem surgir a
necessidade de uma investigação mais profunda. Quando são várias as causas que levaram ao
dano, busca-se aquela que decisivamente levou ao prejuízo, ainda que não tenha sido a última,
cronologicamente, a se realizar.

35
GIOSTRI, op. cit., p. 5.
36
FRANÇA, Genival V. de. Erro médico – um enfoque político. In.: Arquivos do Conselho Regional de
Medicina do Paraná. v. 7, n. 27. Curitiba, jul. – set/1990.
19
Por exemplo: quando um médico deixa de inspecionar a cavidade abdominal do
paciente após a cirurgia, nela esquecendo uma agulha que vem a provocar infecção e óbito, a
conduta negligente foi, sem dúvida, a causa do desencadeamento do evento lesivo. Assim, se
a infecção funcionou como patologia determinante da morte, o fator decisivo na produção da
moléstia foi o objeto (a agulha) negligentemente deixado no organismo. No caso apresentado,
a influência da conduta negligente do médico foi a causa do dano final (o óbito), mas há
hipóteses em que a averiguação nem sempre é tão simples.

Opostamente ao exemplo dado, o resultado danoso muitas vezes advém de causas


desvinculadas da atuação do médico. Por exemplo, o próprio paciente pode dar causa ao dano,
através de comportamento incompatível com o tratamento, como a recusa de ingerir os
medicamentos recomendados, insistência em desrespeitar a ordem de guardar repouso
prescrito pelo médico, et., situações que eximem o médico do dever de reparar o prejuízo,
caso ocorra.

2.3. A Perícia

SANTOS37 define perícia como sendo “o meio pelo qual, no processo, pessoas
entendidas, e sob compromisso, verificam fatos interessantes à causa, transmitindo ao juiz o
respectivo parecer”.

Através da perícia, o perito leva ao processo conclusões acerca do entendimento


imediato das partes e, em especial, do julgador, pois depende de investigações de natureza
técnica capazes de fornecer subsídios concretos para a solução da lide. Segundo MATIELO 38,
“os especialistas têm mais amplas condições de dizer da existência ou não de relação de causa
e efeito, imediata ou mediata, entre o resultado lesivo e a conduta do profissional,

37
SANTOS, Moacyr A Primeiras linhas de direito processual civil. v. 2. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 474.
38
MATIELO, op. cit., p. 172.
20
estabelecendo, destarte, a indispensável conexão que faz emergir a responsabilidade civil do
autor dos danos”.

A figura do perito é de vital importância, pois, ao julgar um erro médico, o juiz –


estando em território estranho ao seu conhecimento – depende do perito para apoiar seu
julgamento.

Entretanto, segundo GIOSTRI39, o que se tem observado ultimamente é um


endurecimento por parte dos julgadores, “como uma espécie de defesa frente ao dito
corporativismo da classe médica, também conhecido como esprit de corps, ou conspiração do
silêncio”. Hoje, o que se vê no Código de Ética (1988) é um maior equilíbrio entre os
interessetes da classe médica e os do paciente e da sociedade, perdendo assim o caráter
nitidamente medicocentrista dos códigos predecessores.

Mas, mesmo assim, os muitos anos de corporativismo e solidariedade da classe médica


têm colaborado para que a justiça, muitas vezes, tendencie seu julgamento, configurando-se
um erro – não de médico – mas de magistrado.

MADIA, citado por SILVA40, faz recomendações referentes aos limites da perícia,
quando se trata de erro profissional, e são as seguintes:

1) julgar o caso sem espírito de corpo (corporativo);


2) indagar todas as condições do fato, se este foi a única e
imediata causa do dano;
3) considerar a incerteza do colega atuante, antes de que o cursor
ulterior da enfermidade e a investigação judicial esclareçam os
pontos obscuros;
4) estabelecer a existência de erro grosseiro ou omissão de
medidas às mais elementares;
5) assegurar-se de que o médico podia usar plenamente suas
habilidades e conhecimentos ou se por acaso encontrava-se
sozinho, cansado, no meio da noite, sem ajuda necessária de
assistentes e instrumental, sem condições ambientais favoráveis
e com o dever de praticar de urgência uma operação;
6) cercar-se da maior prudência antes de expressar sua opinião.

39
GIOSTRI, op. cit., p. 5.
40
SILVA, op. cit., p. 81.
21
CAPÍTULO III

O ERRO

A expressão “erro” pode encerrar uma variada gama de sentidos que são diferentes
entre si, mas que o cidadão comum costuma englobar a todos, indistintamente, dentro do
universo do erro, o que não só dificulta situações como pode trazer conseqüências desastrosas.

Exemplificando, pode-se tornar expressões tais como falha, lapso, omissão, equívoco,
negligência, desatenção, descuido, imperícia, esquecimento, inexatidão, imprudência e todas
elas estarão, dentro do entendimento da maioria, englobadas pelo termo “erro” ainda que
diferentes entre si em valor, sentido e gravidade.

O próprio erro tem em si as suas variantes: de caráter voluntário ou involuntário,


surgido em função de risco ou de dificuldade maior ou menor e até o erro honesto ou
escusável. E é exatamente essa gama de diferentes possibilidades e situações que deve ser
levada em conta no momento da análise de um erro médico; entretanto, o que se tem visto –
auxiliado de perto pela mídia – é o conceito ser tomado num sentido global pelo uso
inadequado e generalizado da própria expressão “erro”.

3.1. Conceito de Erro Médico

22
Na opinião de GIOSTRI41, erro médico pode ser entendido como “o mau resultado ou
o resultado adverso decorrente de uma ação ou da omissão do médico. Conforme já frisado,
ele pode ocorrer por imperícia, imprudência ou negligência, e a participação do médico será
sempre culposa e não dolosa”.

FRANÇA42 diz que o erro médico, “quase sempre por culpa, é decorrente de uma
forma atípica e inadequada de conduta profissional. Supõe uma inobservância de regras
técnicas, capaz de produzir um dano à vida ou à saúde do paciente, e de ser caracterizada
como imperícia, imprudência ou negligência, no exercício da atividade médica”. Coloca o
autor que, mesmo diante do erro consumado, deve-se levar em conta as condições do
atendimento, a necessidade da ação e a moderação dos meios empregados.

BLOISE43 cita exemplos de erro médico, sob o ponto de vista de vários autores:

SALVATIER cita o diagnóstico leviano ou inexato, diante de


sintomas contrários aos apresentados pelo paciente com sua
moléstia;
PULLIDO cita o tratamento como fratura, de ferida causada pela
introdução de um estilhaço de madeira na perna do paciente;
LALOU dá o exemplo da mulher que se encontra grávida, e o
médico trata-a como portadora de fibroma e opera-a, causando-
lhe a morte;
DIAS enumera o caso de expor o doente a riscos que podiam ser
evitados, como inúteis ou dispensáveis para o restabelecimento; o
de proceder a operação não urgente, sem o instrumento
necessário; o de continuar tratamento ou manter aparelho que
provoque perturbações anormais no doente; o de atar um membro
muito forte e demoradamente, provocando a gangrena; a
modificação, sem razão plausível, de tratamento rigorosamente
definido; de omitir as normas de higiene e assepsia ou as
precauções aconselhadas pela natureza da moléstia, como a
difteria, o tétano e outras, que exigem imediata mediação
imunizante, ou os cuidados posteriores às intervenções cirúrgicas
ou requeridas pelo de certos aparelhos; de formular a receita com
letra ilegível, dando margem ao engano do farmacêutico ao aviá-
la; de ministrar remédio tóxico sem cuidar de investigar as
incompatibilidades e intolerâncias, salvo se o doente é de uma
excessiva suscetibilidade e o médico tenha recomendado a
suspensão do tratamento, caso se manifestassem sintomas
alarmantes; a aplicação demasiado prolongada de tratamento

41
GIOSTRI, op. cit., p. 6.
42
FRANÇA, op. cit., p. 148
43
BLOISE, op. cit., p. 93.
23
radiológico, quando o estado da ciência não mais permitira
ignorar as emissões parasitárias decorrentes dele; o esquecimento
de corpo estranho no organismo do paciente, salvo quando se deva
à rapidez requerida pela intervenção; a conservação de aparelho
destinado a reduzir fratura ou luxação, não obstante protesto do
doente, quando possa ser aquele removido sem inconveniente.

Na Antiguidade, entendia-se ser a doença a expressão material do pecado ou a


expressão somática da culpa. O curandeiro (ou mago), ungido pelo poder divino, dispunha do
poder de cura e, até hoje, por tradição, deduz-se que aquele que pode curar também absolve o
pecado e a culpa. Tal pensamento ainda existe nas camadas sociais mais simples – por
exemplo, de que o médico não fica doente e nem erra no processo de cura.

Então, no plano geral, observa-se que tanto para o leigo como para a sociedade mal-
informada o médico tem um poder sem limites, ou ao menos deveria tê-lo. Essa, talvez, seja
uma razão para que o erro médico suscite tanta discussão, principalmente no que diz respeito
às motivações e circuntâncias de sua efetivação.

O erro médico existe; é palpável em certas ocasiões. É a mais dolorosa experiência na


vida de um profissional e o mais dramático resultado na esperança de um paciente, mesmo
sabendo-se que a culpa nem sempre é de responsabilidade pessoal do médico.

Assim, FRANÇA44, diz que o erro médico é de ordem pessoal ou de ordem estrutural.

“É estritamente de ordem pessoal quando o ato lesivo se deu, na ação ou na omissão


médica, por despreparo técnico ou intelectual, por grosseiro descaso ou por motivos
ocasionais”. Ninguém desconhece as falhas existentes na formação médica. Falta no Brasil
estimular uma política no sentido de uma ampla revisão de critérios adotados na formação
médica, saber que tipo de profissional se quer e qual o seu perfil em relação com a realidade
social nacional, estipular uma proposta séria na capacitação docente e na sua justa
remuneração, e dotar as faculdades de medicina – principalmente as públicas – de orçamentos
compatíveis com as suas necessidades.

44
FRANÇA, op. cit., p. 151.
24
Há ainda aqueles médicos que, mesmo qualificados e com certa experiência, são
irresponsáveis, descomprometidos com sua profissão, que manipulam os pacientes em busca
de interesses particulares.

Com relação ao erro estrutural, há que se falar sobre o sistema de saúde brasileiro.

3.1.1. A Situação da Saúde no Brasil

Entre os diversos problemas do Brasil na atualidade, encontra-se a saúde, aliada à


situação de transição pela qual passa o país com problemas políticos, sociais, financeiros,
econômicos entre outros.

Para que se possa entender como a assistência médica no Brasil chegou até a situação
dos dias de hoje, é preciso retroceder até 1930, quando ocorreram mudanças de caráter
relevante.

Até 1930 se contava com uma assistência médica com características liberais; “crescia
o papel desempenhado pelo profissional liberal em seus consultórios”45.

Com a industrialização e urbanização, ocorridas no período da Revolução de 1930,


houve um aumento relevante da classe operária que se negava a ser atendida como indigentes,
passando a receber assistência médica dos Institutos de Aposentadorias e Pensões, Assistência
Estatal, porém em caráter complementar utilizando-se do montante de dinheiro que sobrava
das contas dos benefícios, pensões e aposentadorias para cobrir estes gastos.

O médico passa, então, de profissional liberal e assalariado, perdendo a liberdade de


fixar seus honorários e submetendo-se a trabalhar sob as condições que lhe eram oferecidas,
os clientes ao mesmo tempo sujeitavam-se a serem atendidos em lotes numerados perdendo
então a intimidade com o médico.

25
Em novembro de 1966, os Institutos de Aposentadorias e Pensões foram absorvidos
pelo então criado INPS. Esta medida, se por um aspecto foi avançada para a época,
permitindo que milhões de brasileiros tivessem acesso à assistência médica e também
ampliando o mercado de trabalho para os prestadores de serviços médicos-assistenciais, por
outro lado, foi de cunho centralizador e serviu ainda mais para reduzir o liberalismo técnico
do médico, tornando-se assim um gigante de difícil administração vindo com o tempo
mostrar-se ineficiente sobre vários aspectos, tanto do lado dos assistidos, como também para
as organizações hospitalares, e para os médicos. Sem contar na ineficiência e corrupção
dentro das mais variadas instâncias do governo.

Em 1977, o Governo procedeu à massificação da assistência médica com a criação do


Ministério da Previdência e Assistência Social e do INAMPS (Instituto Nacional de
Assistência Médica da Previdência Social). Esta medida, dentre outras mudanças, acabou com
a pejorativa figura do indigente ao estender o direito à assistência médica a qualquer pessoa,
dispensando até o cartão de identificação, mas não acrescentou um centavo sequer às verbas
do INAMPS.

Porém, o exercício do direito a assistência médica para todos, na sua plenitude, só


ocorreu a partir do ano de 1989, quando a transferência do controle da área previdenciária e
da assistência médica transferiu-se para o controle do Ministério da Saúde em cumprimento à
Constituição de 1988.

Durante anos de desafio de construir um sistema de atenção à saúde que fosse público,
de qualidade e organizado em nível nacional, uniu trabalhadores de saúde, organizações
populares, partidos políticos e sindicatos, na elaboração de uma proposta que garantisse o
acesso a serviços de saúde, proporcionando proteção, promoção e recuperação da saúde da
população. Em 1986 realizou-se a 8ª Conferência Nacional de Saúde, onde foi apresentada e
aprovada a proposta do Sistema Único de Saúde (SUS).

A efetivação do Sistema Único de Saúde ocorreu em 1988, com base no artigo 198 da
Constituição Federal, com o obetivo de garantir o atendimento a qualquer pessoa, nos
hospitais conveniados ou cadastrados, sem necessidade de qualquer desembolso por parte do

45
MORAES, Irany Novah. O mal da saúde no Brasil. p. 82.
26
cliente. Nesse sistema de saúde todos devem ser tratados igualmente, cada um de acordo com
suas necessidades, tendo a sáude atenção integral.

O Sistema Único de Saúde é composto “pelo conjunto de ações e serviços de saúde,


que são prestados pelos órgãos e instituições pública federais, estaduais e municipais, da
administração direta e indireta, e também pelas fundações mantidas pelo Poder Público” 46.
Participam também do Sistema Único de Saúde as instituições federais, estaduais e
municipais, no controle da qualidade, na realização de pesquisas e produção de insumos como
medicamentos, sangue e hemoderivados. Sendo que, em caráter complementar, poderá haver
participado da iniciativa privada.

Este sistema acaba tolhendo a liberdade individual na escolha do médico e do hospital


que lhe prestarão atendimento, quando impessoalidade nos relcacionamentos e uma difícil
avaliação por parte do cidadão. Cria uma elitização no atendimento, recebendo uma qualidade
e atenção maior quem pode pagar particularmente, ou ser atendido através de convênios de
iniciativa privada, ferindo a Constituição.

Segundo o artigo 196 da Constituição: “saúde é direito da todos e dever do Estado,


garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doenças e
de outros agravos e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção,
proteção e recuperação”47.

Nesse artigo compreende-se que ao Estado cabe a organização e administração da


saúde, através de políticas sociais e econômicas, de modo que a sociedade tenha direito a um
serviço com qualidade e de condições a todos.

A população deve estar ciente que o atendimento médico em hospitais ou postos de


saúde não constitui nenhum favor, e sim que os mesmos são pagos através de impostos.
Portanto, qualquer cidadão pode e deve exigir um atendimento de qualidade e respeito. Com a
situação atual da saúde brasileira, quem mais sofre é a população carente, pobre, sem
recursos, que em breve não encontrará leitos em hospitais públicos que hoje já são
insuficientes.

46
CARVALHO, Guido Ivan de, & SANTOS, Lenir, Sistema único de saúde – comentários à lei orgânica da
saúde (lei 8.080/90 e lei 8.142/90). p. 62.
47
CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA. P. 102.
27
3.1.2. Os médicos no Brasil

De acordo com MACHADO48, a medicina é uma das profissões mais complexas dos
últimos tempos, não só porque possui um corpo de conhecimento técnico científico sólido e
complexo, mas porque conquistou um exclusivo e inviolável mercado de trabalho e
normalmente detém uma clientela fiel que busca freqüentemente seus serviços.

Decorrente disso, a profissão assegurou para si o monopólio dos serviços médicos,


dando certa independência econômica e técnica ao médico (principalmente se comparar essa
categoria com outras existentes no Brasil), além do prestígio e do status social. A seguir se
verá em que contexto está inserido o médico brasileiro.

Segundo pesquisa da FIOCRUZ49, o Brasil ocupa o 8º lugar na economia mundial,


sendo o país mais populoso da América Latina, totalizando 153.725.670 habitantes, onde as
capitais possuem 24,0% da população do país e 76,0% concentram-se nos demais municípios.
Devido à composição sócio-demográfica, os estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas

48
Resumo elaborado a partir da pesquisa Perfil dos Médicos no Brasil, elaborado pela equipe de pesquisadores
da Fiocruz, sob a coordenação de Maria Helena Machado, Doutora em Sociologia e pesquisadora da Escola
Nacional de Saúde Pública – Fio Cruz. Apresentado no livro Os médicos no Brasil – um retrato da realidade,
organido por MACHADO, Maria H. 1997, pp. 220-221.
49
Disponível na Internet. http//www.fiocruz.org.br. 24/05/2000.
28
Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Bahia refletem na estrutura do sistema de saúde
como um todo e, conseqüentemente, na composição do Perfil dos Médicos no Brasil50.

Os dados a seguir fazem parte desta pesquisa, onde os médicos totalizam 183.052
profissionais, equivalendo à relação de 3,28 médicos para um contingente de 1.000 habitantes
nas capitais e 0,53 médicos por 1.000 habitantes do interios dos estados. A profissão é
predominantemente masculina (67,3%).

O Brasil confirma a característica “jovem” da profissão, ou seja, 63,8% têm menos de


45 anos de idade; o contingente com mais de 60 anos soma apenas 8,6%. A tradição da
profissão (que passa de pai para filho) é reforçada com os altos índices de parentesco entre os
médicos. Sugerindo uma “linhagem médica”, observa-se que no país 48,2% possuem parentes
diretos (consangüíneos) que também são médicos.

A franca deterioração dos rendimentos médicos ocorrida nestes anos devido aos vários
planos econômicos nacionais tem contribuído para uma certa inibição não só da participação
em encontros científicos, como também no acesso direto às inovações técnico-científicas
ocorridas na medicina através de publicações científicas internacionais. No Brasil, por
exemplo, 13,7% têm assinatura nestas modalidades de divulgação médica. Buscando
equacionar as necessidades pessoais por aprimoramento constante que o ofício da medicina
exige e às reais condições – pouco favoráveis – para iniciativas individuais (por exemplo,
autofinanciamento), os médicos aderem fortemente às sociedades científicas médicas, o que
representa no Brasil 98,3%.

Das sessenta e cinco especialidades reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina


como especialidades médicas, dez se sobressaem no mercado de serviços médicos no Brasil,
São elas: Pediatria (13,4%); Ginecologia e Obstetrícia (11,8%); Medicina Interna (8,0%);
Cirurgia Geral (5,5%); Anestesiologia (5,2%); Cardiologia (4,8%); Ortopedia e
Traumatologia (3,7%); Oftalmologia (3,6%); Psiquiatria (3,3%) e Medicina Geral e
Comunitária (2,6%). Estas dez especialidades no país englobam inovações técnico-científicas
ocorridas na medicina através de publicações científicas internacionais. No Brasil, por
exemplo, 13,7% têm assinatura nestas modalidades de divulgação médica. Buscando

50
Pesquisa realizada pela FIOCRUZ em 1998, nos estados brasileiros citados, e divulgada através da Internet em
1999.
29
equacionar as necessidades pessoais por aprimoramento constante que o ofício da medicina
exige e às reais condições – pouco favoráveis – para iniciativas individuais (por exemplo,
autofinanciamento), os médicos aderem fortemente às sociedades científicas médicas, o que
representa no Brasil 98,3%.

Das sessenta e cinco especialidades reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina


como especialidades médicas, dez se sobressaem no mercado de serviços médicos no Brasil.
São elas: Pediatria (13,4%); Ginecologia e Obstetrícia (11,8%); Medicina Interna (8,0%);
Cirurgia Geral (5,5%); Anestesiologia (5,2%); Cardiologia (4,8%); Ortopedia e
Traumatologia (3,7%); Oftalmologia (3,6%); Psiquiatria (3,3%) e Medicina Geral e
Comunitária (2,6%). Estas dez especialidades no país englobam 62,1% do total de médicos
que atuam neste mercado.

Em números, o mercado de trabalho médico no Brasil tem a seguinte estrutura: 69,7%


dos médicos têm atividade no setor público (seja na esfera federal, estadual ou municipal);
59,3% trabalham no setor privado. Além disso, no Brasil, 74,7% exercem atividade liberal
em seus consultórios privados. Salienta-se que no Brasil, 75,6% dos médicos têm até três
atividades de 24,4% apresentam-se com quatro ou mais atividades profissionais médicas; quer
dizer, os rendimentos conseguidos com uma só atividade não são suficientes, principalmente
se o médico trabalhar no setor público. O consultório destaca-se como a modalidade de
trabalho que mais se vincula à tradicional condição de profissional liberal. Mas, entre 75% e
90% do médicos brasileiros declaram depender diretamente dos convênios com empresas de
saúde, medicina de grupo, cooperativas médicas, entre outros, para a manutenção de seus
consultórios em funcionamento.

Em um país pobre e das dimensões continentais como o Brasil, o sistema de saúde


integrou ao setor público um expressivo contingente dos profissionais da medicina que
prestam serviços em hospitais, ambulatórios, postos de saúde do Estado ou em
estabelecimentos privados conveniados para prestação daquela assistência. A atividade
médica, nos dias de hoje está muito ligada à estrutura estatal ou credenciada.

E qual é a situação atual do sistema de saúde brasileiro? A saúde e a assistência


pública aos doentes encontram-se às portas do colapso total. A rede hospitalar dependente da
União, dos Estados e dos Municípios atingiu o mais baixo dos níveis de sua história. A
30
constante falta de recursos para investir no setor tem levado ao sucateamento do sistema de
assistência e proteção da saúde, descumprindo os preceitos constitucionais que ditam como
dever do Estado defender e proteger a saúde do indivíduo51. Soma-se a essa situação a
condição de pobreza da maioria da população brasileira, mais vulnerável às doenças,
agregando-se ainda a tal quadro o aviltamento dos honorários médicos pagos diretamente pelo
Estado ou repassados por meio de convênios com entidades assistenciais.

O descrédito no serviço público de saúde, o sucateamento do setor é uma realidade


concreta, palpável para cada um dos milhões de brasileiros que vivem na fronteira difusa entre
a pobreza e a miséria. Uma parcela significativa da nação que com o seu trabalho constrói a
riqueza nacional e que não tem acesso aos frutos dessa riqueza, sem direito à educação, ao
lazer, à segurança, à previdência social digna e principalmente à saúde. Para estes e para os
assalariados em geral, para quem se oferece um serviço público de saúde escasso em recursos,
tais como o aparelho de raios-X que não funciona, necessitando de reparos; seringas
descartáveis que são reaproveitadas em vários pacientes; falta de medicação necessária na
farmácia do hospital, ambulatório, posto ou unidade de saúde; ausência de instrumental
adequado para se proporcionar o mínimo de segurança ao doente.

Em resumo, o perfil do mercado de trabalho médico hoje é: serviços médicos


especializados, atividade em consultório dependente de convênios, salários com renda mensal
inferior a US$ 1.500. Esse universo aponta para um perfil que necessita de políticas próprias
para a corporação:

 Valorizar seu trabalho;

 Traçar adequados programas de capacitação e recapacitação profissionais;

 Fixar o médico em centros urbanos menores;

 Estimular as especialidades básicas;

 Valorizar e reintegrar o seu status social.

51
Constituição Federativa do Brasil, 1988. Título VIII – Da Ordem Social, cap. II, seção II, arts. 196 a 200. Pp.
102-103.
31
Tais medidas representam uma resposta à crise em que a profissão se encontra,
colocando em risco não só esses profissionais, como o que eles representam no contexto do
sistema de saúde brasileiro.

3.2. Erro de diagnóstico e erro de tratamento

Ao manter contato inicial com o paciente, cabe ao médico, tanto quanto possível,
realizar a anamnese que, segundo MATIELO52, “é o estudo preliminar da sintomatologia e
evolução de uma doença até o instante da primeira observação efetiva feita pelo médico”. A
anamnese é o procedimento através do qual o paciente – ou alguém responsável por ele –
informa ao médico sobre seus sintomas, tempo em que isso ocorreu, bem como a incidência
de casos daquela doença na família, modo de vida, possíveis alergias e tudo mais que possa
auxiliar na pesquisa médica para solucionar o problema apresentado pelo paciente.

A partir da anamnese o médico faz o diagnóstico da doença e prescreve o tratamento.


Diagnóstico e tratamento são passíveis de erro médico.

3.2.1 Erro de diagnóstico

O diagnóstico é o momento no qual se informa ao paciente qual é a doença ou mal que


lhe afeta, após buscar junto a este as informações necessárias para tanto. Contribuem para a
formação do diagnóstico, além da sintomatologia e de sua análise, a aplicação dos

52
MATIELO, op. cit., p. 96.
32
conhecimentos teóricos e práticos do médico, associada aos indicadores científicos ditados
pelo avanço da modernidade na medicina. O diagnóstico de uma enfermidade talvez seja o
momento mais importante da intervenção médica, pois um erro neste momento poderá
comprometer não só a possibilidade da cura, como também poderá trazer danos não
previsíveis para aquela situação.

A responsabilização por erro no diagnóstico induzirá a responsabilização se este for


grosseiro ou se a especialidade do profissional impor a este o conhecimento de determinada
situação.

Este erro de diagnóstico tem duas faces: a primeira é a não-identificação de doença,


que, se tratada em sua origem, é curável, mas depois de certo tempo não, eliminando a
possibilidade, a chance de não-doença; a segunda é o diagnóstico de doença evidentemente
inexistente ou distinta, causando danos diretos ao paciente.

3.2.2 Erro de tratamento

O tratamento consiste em fase posterior ao diagnóstico, na qual o médico utiliza


distintos meios “para conservar a vida, melhorar a saúde ou aliviar a dor”53.

Nesta fase, o dever de prudência e de assistência deve ser redobrado, pois é o


momento da execução do diagnóstico, momento em que se realizam as intervenções sobre o
corpo do paciente, seja através de cirurgias, massagens ou farmacoterapia. Consistirá erro no
tratamento não apenas o erro na execução de uma cirurgia, por exemplo, mas também o
descuido com elementos secundários que possam trazer prejuízo. Assim é o problema da

33
infecção hospitalar, provocada pela falta de higiene e descuido na utilização dos
equipamentos.

Consistirá em motivo para responsabilização o esquecimento de equipamento dentro


do corpo humano, utilização de medicamento sem o cuidado de perquirir de possíveis alergias
ao paciente, formulação de receita ilegível que leve o farmacêutico a entregar medicamento
errado.

Será na fase do tratamento que a perícia médica será avaliada de foram objetiva, pois
se muitas vezes o grau de desenvolvimento da medicina não permite diagnóstico adequado,
no tratamento o médico deve estar constantemente verificando as reações às suas
intervenções, tirando a prova da correção de seu diagnóstico.

3.3 A Cirurgia Estética

A cirurgia estética historicamente se constitui numa exceção à idéia de que a obrigação


do médico é apenas de prestar meios adequados, de ser diligente e perito. A sua prestação é
maior, atingindo um determinado resultado.

Esta característica da cirurgia estética se deve ao fato de que a motivação moral para
sua realização, embora seja socialmente aceita, não tenha a mesma relevância da intervenção
para o salvamento de vidas ou para a eliminação da dor.

A questão é extremamente delicada na medida em que na generalidade das vezes a


cirurgia estética tem como objeto a pessoa sã, sem nenhuma enfermidade, não podendo a
intervenção cirúrgica alterar este quadro. Porém, independente da perícia médica, existem
riscos sempre que haja uma intervenção sobre o corpo humano, mesmo que o paciente
apresente boa saúde.

53
DIAS, J. A Op. cit., p. 297.
34
Para ilustrar a questão, interessante é o caso narrado por DIAS 54, no qual uma jovem
senhora procura um médico para eliminar gorduras excessivas existentes em suas pernas. Na
cirurgia o médico, além da gordura, retirou extensa massa muscular em apenas uma das
pernas, numa operação cujos contornos foram extremamente complicados. Ainda pela
dificuldade de sutura do tecido, pela extrema contração dos músculos, a perna da paciente foi
enfaixada com bandagens, somente retiradas após três dias da cirurgia, quando um cheiro
característico de gangrena surgiu. Ao final de três semanas não restou outra alternativa que a
amputação da perna.

Em procedimento judicial, a sentença considerou o cirurgião responsável pelos danos


com fundamento da desnecessidade moral da cirurgia, bem como na sua inutilidade perante a
saúde da operada, além de outras considerações sobre a sua negligência em verificar as reais
condições da paciente.

Mas a cirurgia estética não pode ser tratada num só plano, pois pode, além de ter a
finalidade de alterar a aparência humana, ter a de restauração, de reparação, situação na qual
altera-se o conteúdo da obrigação médica.

Apesar de nos dois casos a conduta médica ter como pauta um padrão comum, a
situação que se apresenta impõe à cirurgia meramente estética o alargamento do conteúdo de
sua prestação.

Enquanto na cirurgia de reparação o médico busca restaura a aparência do paciente em


virtude deste ter sido acometido por moléstia deformadora ou acidente, partindo de um estado
doentio para uma melhora, na cirurgia meramente estética, com a finalidade de mudar a
aparência, o médico tem como objeto um paciente em perfeitas condições de saúde, não
podendo alterar essa realidade.

Diz FRADERA55: “Se o médico não tiver condições de assegurar ao paciente de uma
cirurgia puramente estética o resultado almejado, deverá abster-se de realizar o ato cirúrgico.
Em se tratando dessa especialidade, portanto, os deveres de informação e de vigilância têm
sua observância exigida de forma rigorosa”.

54
DIAS, J. A Da responsabilidade civil. v. 12, p. 305-307.
55
FRADERA, Vera M. J., Op. cit., p. 121.
35
Isso não significa que moralmente seja condenável a cirurgia estética. Pelo contrário,
é a valorização da beleza e da vaidade como bens inerentes à experiência humana que busca-
se preservar nesses casos, com regras mais rígidas de responsabilidade.

Muitas vezes, principalmente para o público feminino, o próprio sentido da existência


está na realização afetiva que, diante dos instintos humanos, possui uma clara ligação com a
aparência física. É causa de doenças psicológicas uma má aparência física, considerando má
aquela que foge dos padrões estéticos determinados pela sociedade.

Porém, se por um lado a beleza é importante, muito mais é a saúde do corpo, motivo
pelo qual, ao pesar os bens em questão, deve o médico esteticista aumentar sua vigilância e
seus cuidados para não provocar danos ou criar demasiados riscos onde não existem. Se os
riscos forem maiores do que o bem em questão, deverá o médico recusar-se a operar. Se
numa cirurgia para prolongamento da vida ou melhoramento da saúde vale a pena suportar
certos riscos, no caso da cirurgia estética estes riscos devem ser menores, pois o bem
almejado não é a cura ou a vida, mas sim a aparência.

3.4 A Prova da culpa e os casos de exclusão de responsabilidade

3.4.1 A prova da culpa

A prova de que o médico não informou suficientemente o paciente sobre os riscos de


uma operação, ou não lhe aconselhou suficientemente é algo difícil, pois a relação médico-
paciente tem natureza confidencial, “sem testemunhas, sem documentos, a não ser a receita na

36
qual são prescritos determinados medicamentos”56. Da mesma forma, é impossível obter
colaboração daqueles que desenvolvem seus trabalhos junto ao médico. De outros médicos
há solidariedade, pois também poderão estar em situação idêntica, bem como de outros
profissionais, que agem sob o comando dos médicos, dos quais depende o emprego e
sobrevivência.

Este silêncio leva, inclusive, a que se atribua aos médicos a pecha de “máfia de
branco”57.

Apesar de não se poder generalizar esta afirmação, é certo que o corporativismo


profissional é muito grande entre os profissionais da medicina. Assim, quando determinado
processo depende de conhecimentos técnicos recorre-se a outro profissional da área, para
identificar quais deveres foram descumpridos, principalmente quando se cogita a falta de
imperícia. “Este, membro da mesma classe profissional, será apenas relativamente sincero em
sua apreciação a respeito da conduta de seu colega”58.

Por isso, na avaliação da prova não pode o julgador esperar provas diretas e absolutas
para sua responsabilização, pois será sobre indícios e evidências lógicas que deverá formar
seu convencimento. Sobre este aspecto é ainda importante referir que embora seja um
fornecedor, as regras referentes à responsabilização civil do médico são as do Código Civil e
não do Código de Defesa do Consumidor, para disposição expressa sua. O art. 14, § 4º,
menciona que a responsabilidade dos profissionais liberais é subjetiva, fundada na culpa.

Não obstante a isto vigem as demais disposições do CDC, entre elas o art. 6º, VIII, que
determina como direito do consumidor “a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com
inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for
verossímil a alegação, ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de
experiência”. Isso significa que mesmo havendo a necessidade da verificação da culpa do
profissional, em circunstâncias nas quais o paciente não tem as mesmas condições do
profissional para produzir a prova, tal ônus deve ser invertido, aliado a situações onde é
verossímil sua alegação, bastando uma cognição superficial.

56
FRADERA, V. M. J. Op. cit., p. 124.
57
DIAS, J. A Op. cit., p. 312.
58
FRADERA, V. M. J. Op. cit., p. 124.
37
Mais do que isto, NERY JUNIOR59 entende que quando tratar-se de obrigação de
resultado, o critério para verificação da responsabilidade não está limitado pelo art. 14, § 4º,
submetendo o profissional às regras da responsabilidade objetiva.

3.4.2 Exclusão da responsabilidade

Não suscitará responsabilidade quando entre a ação do médico e o resultado morte, ou


agravamento da enfermidade, não existir um nexo de causalidade. Só será responsável o
médico que, agindo culposamente, provocar danos. Por se tratar de uma obrigação de meios,
a indenização será possível quando o médico, no caso concreto, descumprir seus deveres.

Porém, se intervir outro fato na cadeia causal, como a ocorrência de nova enfermidade
ou a manifestação de sintomas antes não aparentes, surge um problema para a
responsabilização. A solução oferada pela jurisprudência francesa60 é a de que, mesmo
quando haja interferência de “predisposições mórbidas da vítima”, não há motivo para
diminuição de responsabilidade, devendo a indenização ser integral por ser a obrigação de
meio e não de resultado.

Quando, apesar de alertado, o paciente assume determinado risco, que é próprio de


certas intervenções, também não se pode imputar responsabilidade ao médico.

Cumprindo o dever de informar, mesmo que o risco seja grande, inclusive igual à
possibilidade de recuperação, não será o médico responsabilizado se o resultado que busca
atingir seja o de afastar um mal maior, como, por exemplo, a morte. Nestes casos, deverá o
profissional pesar os vens que estão em jogo e avaliar com grande cuidado os rumos a serem
seguidos. Se for necessário, deverá precaver-se com o auxílio de colegas que endossem sua
opção.

59
NERY JUNIOR, Nelson. Os princípios gerais do código de defesa do consumidor. In.: Revista do Direito do
Consumidor. n. 3, p. 56.
60
FRADERA, V. M. J. Op. cit., p. 129.
38
CAPÍTULO IV

PROBLEMAS ESPECÍFICOS DO DANO MÉDICO

4.1. A perda de uma chance e a responsabilidade médica

A perda de uma chance é um tipo de dano. Surge quando pela intervenção do


profissional o paciente perde a possibilidade de se ver livre de determinada enfermidade. Em
outras palavras, “concretiza-se a perda de uma chance quando determinado acontecimento
não ocorreu, mas poderia ter ocorrido, por si mesmo ou atravé de intervenção de terceiro. O
evento teria sido possível, mas a atuação do médico tornou-se impossível, provocou a perda
de uma chance”61.

CHABAS62, questiona sobre a aplicação das mesmas condições de verificação da


responsabilidade civil do médico pela perda de uma chance. Considera que o caso de quando
à ação do médico provoca diretamente a morte, e que a morte seja uma decorrência de fatos
externos à ação do médico, será responsável se sua intervenção sobre tal doença em
determinado momento pudesse significar a chance de sobrevida, em virtude de que há provas
técnicas de sucesso no tratamento de doenças iniciais. Por outro lado, estando configurada
uma enfermidade e o profissional atua de forma a pôr por terra todas as possibilidades de
recuperação, sua intervenção culposa não será sobre um risco de sobreviver, mas sobre a
chance de recuperação, devendo por isso indenizar o dano. No Brasil, a perda de uma chance
não tem sido indenizada, exceto em alguns casos específicos, por alguns tribunais.

4.1.1. Jurisprudência sobre a perda de uma chance

61
FRADERA, V. M. J. Op. cit., p. 130.
62
CHABAS, F., p. 2. Texto datilografado, pertencente a FRADERA.
39
O Acórdão Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul é inédito ao reconhecer a perda
de uma chance como fator de responsabilidade civil do médico63. Tratou-se de caso em que o
paciente possuía número baixo de espermatozóides, motivo pelo qual foi realizada cirurgia, de
caráter eletivo e não urgente, que teve como resultado final a morte. A responsabilização do
médico se deveu a que a cirurgia foi realizada prematuramente, pois embora o número de
espermatozóides do paciente fosse baixo, através da inseminação artificial a fecundação era
uma possibilidade. Além disso, o paciente estava casado há apenas uma semana. Também
errou o médico ao dar alta ao paciente que se encontrava febril. Com o agravamento da febre
e outros sintomas surgidos após a cirurgia, o médico se restringiu a atender o paciente por
telefone recomendando o uso de antipirético e termõmetro. Voltando para o hospital, o
paciente foi para a Unidade de Tratamento Intensivo, vindo a falecer devido a um quadro
septicemia. Ainda como elemento importante, considerou-se que a vítima concorreu para que
o evento acontecesse, por Ter insistido em voltar para casa, motivo pelo qual houve redução
no valor da indenização. “Liberando o paciente e retardando seu reingresso na instituição
hospitalar, o apelante fê-lo perder chance razoável de sobreviver, embora a virulência
estatística da doença64.

No mesmo sentido já julgou o Tribunal de Alçada de Minas Gerais a condenar médico


e hospital por ter eliminado as chances de sobrevivência de feto, ao abandonarem a gestante.
Se ela fosse atendida a tempo, haveria possibilidade de realização de cesariana e
sobrevivência do feto. Pelo atendimento tardio, a criança veio a falecer. “Nesta mesma linha,
a teoria francesa da perda de uma chance admite a culpa do médico sempre que sua omissão
ou erro tenha comprometido as chances de vida ou integridade do paciente. A
responsabilidade do médico, então, independeria da comprovação do nexo causal entre a
culpa e dano, pois que, à luz dessa teoria , a culpa é precisamente não ter dado todas as
oportunidades (chances) ao paciente65.

63
Ap. Civ. 592.020.846, 1ª Câm. Cív. In.: RJTJRS n. 158, p. 214.
64
Idem.
65
Ap. Civ. 153.433-8, 3ª Cãm. Cív. In.: Revista do Direito do Consumidor. n. 9, pp. 152-153.
40
4.2. O dano moral e estético

Entende parte da jurisprudência que o dano moral, provocado por erro médico, é
indenizável quando estiver presente o dolo.

O Tribunal de Justiça de São Paulo entende que só é indenizável o dano moral quando
“o ilícito resulte de ato doloso, em que a carga de repercussão ou de perturbação nas relações
psíquicas, na tranqüilidade , nos sentimentos e nos afetos de uma pessoa, se reflita como
decorrência da repulsa ao ato intencional do autor do crime66.

Apesar disso, entende-se que não existe motivo jurídico para não indenizar o dano
moral decorrente de mera conduta culposa. No caso da responsabilidade civil do médico, a
possibilidade destes danos é maior, principalmente considerando que o dano moral tem por
objeto a dor física e emocional, sempre quando há ação culposa do médico. Havendo dano
provocado por conduta culpável, deve ser indenizado, mesmo que de ordem moral.

Já o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e grande parte dos tribunais do país têm
entendimento diverso, admitindo a indenização por dano moral.

A preocupação com a estética também não está condicinada com a cirurgia estética.
Mesmo a intervenção médica recuperadora deve se preocupar com o resultado estético. Por
isso, é também indenizável o dano estético provocado pela perícia médica, comum naqueles
casos em que há amputação de um membro ou deformação facial. As situações que ensejam a
indenização por danos estéticos são muitas. Mesmo quando há a possibilidade de utilização de
prótese ou de recurso que diminua a extensão do dano moral ou estético, deve ser
indenizado67

Também deve indenizar o médico que, realizando cirurgia de natureza “mastológica”,


sobre os seus de paciente, mesmo que para retirar possível câncer, deve ser capacitado na área
da cirurgia plástica para evitar aleijão68. Resulta disto que. em alguns casos, existe uma

66
Ap. 181.514-1/1, 4ª Câm. Cív. In.: Revista dos Tribunais. N. 704, 1994.
67
Ap. Civ. 593.044.209, 6ª Câm. Cív. Porto Alegre. In.: RJTJRS, n. 160, p. 403.
68
TJST. Ap. Civ. 129.946-1, 2ª Câm. Cív. In.: Revista do Direito do Consumidor. n. 11, p. 176.
41
obrigação de resultado quando, embora essencialmente de meio, determinado resultado seja
previsível.

4.3. A indisponibilidade da vida e saúde humana e o problema do


consentimento

4.3.1. Experiência sobre seres humanos

Consistirá em abuso do poder a intervenção médica quando não houver autorização do


paciente. Porém, mesmo que haja autorização do paciente, não poderá o profissional utilizar
tratamentos ou intervenções cujos riscos sejam desproporcionais às vantagens.

É pacífico que o corpo humano é indisponível juricamente, assim como o são todos os
direitos da personalidade. Não excluirá sua responsabilização a alegação de sua atuação
“desinteressada”69.

Em hipótese alguma poderá o médico transformar o ser humano em cobaia, mesmo


com sua concordância. O limite desta regra está em dois aspectos.

Primeiro, que é permitido ao médico inovar quando a situação lhe impuser, seja pela
emergência, pela carência dos materiais e medicamentos utilizáveis tradicionalmente ou
quando a sua intervenção não seja potencialmente mais prejudicial que a inação. Neste
sentido, também deve-se ressaltar que o avanço da ciência está na possibilidade de inovação.
Mas esta inovação deve estar dentro de condições de segurança mínima e inserida dentro de
uma perspectiva de estudos e não na aleatoriedade e empirismo individual.

69
DIAS, J. A Op. cit., p. 290.
42
Sem dúvida, também o médico será responsabilizado por violação de deveres legais,
como o de divulgação de segredo profissional, ou a violação à Lei 3.268/57, que é seu código
de ética, ou então de violação de normas como a que proíbe o aborto e outras.

4.3.2. Intervenções contra o consentimento do paciente

A regra é que o médico, sempre que o tratamento apresentar algum risco, deve
consultar o paciente é necessário, mas o paciente se nega a recebê-lo, pondo em risco sua
integridade física e em muitos casos sua própria vida. Qual deve ser a postura do médico?

A doutrina ensina que, estando o paciente consciente dos riscos e de sua decisão, o
médico deverá se abster. DIAS diz: “a operação sem consentimento equivale a agressão [...] o
caso de um paciente que teve a perna esmagada e recusou, terminantemente, consentir na
amputação necessária, sobrevindo-lhe a morte, em conseqüência de gangrena gasosa. Os
médicos que propuseram a operação não podiam proceder de outro modo, em face da
comprovada lucidez que manifestara o paciente, ao rejeitar a intervenção cirúrgica70.

Não se pode concordar que esta seja a melhor solução. Se é certo que o consentimento
do paciente é fundamental, pois o destino da vida das pessoas cabe a si, também é certo que a
sociedade moderna não tolera o auto-flagelo e o suicídio, consistindo numa figura anti-
jurídica, porque também anti-social. Se não há penalização para o suicídio é muito mais pela
impossibilidade do que por condescendência moral.

Mais forte que o dever de atender a vontade do paciente, é o compromisso do médico


com a vida e o seu dever de prestar socorro a quem necessita71.

70
DIAS, J. A Op. cit., p. 290.
71
Código Penal Brasileiro, art. 146, § 3º, I: “Não se compreendem na disposição deste artigo: I – a intervenção
médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente
perigo de vida”.
43
Neste sentido, LUDWIG decidiu sobre caso em que familiares de paciente opunham-
se à transfusão de sangue em situação de iminente perigo de vida, por motivos religiosos:

Uma paciente [...] em estado de saúde precário, com


anemia, deficiência renal, infecção e outras patologias
correlatas, em conseqüência de parto por cesariana, com
hemorragia, negava-se, terminantemente, assim como seu
marido e demais familiares, a se submeter a uma transfusão
de sangue, o que segundo declarações médicas e exames
realizados por uma junta médica, era necessário, sob pena
de morte iminente [...] a paciente a sua família opunham-se
à transfusão por motivos religiosos, vez que professavam a
religião Testemunhas de Jeová72.

Fundamenta a decisão de autorizar os médicos a realizarem tal transfusão com base em


que a defesa do bem vida não depende de consentimento, pois indisponível. Se constitui em
excludente de tipicidade tal conduta, na medida em que visa evitar o suicídio73.

Sob o ponto de vista da responsabilidade civil, a questão é delicada, pois embora o


dever do médico seja o de preservar a vida, sua atuação nem sempre é suficiente para tanto.
De qualquer forma, configurada uma situação emergencial e de perigo, o elemento “vontade”
e autorização fica relativizado. Primeiro, pelo compromisso do médico com a vida e, em
segundo lugar, que em situações de emergência, o paciente e as pessoas envolvidas com ele
nem sempre possuem as melhores condições psicológicas para decidir sobre a conduta da
ação médica.

Numa possível ação de responsabilidade, a avaliação da conduta do profissional deve


ser restringir à análise da culpa diante das circunstâncias concretas que se lhe apresentam de
urgência e perigo. Por exemplo, no caso da transfusão de sangue, cita o TJRS que, em caso de
dúvida, o profissional deve seguir a melhor orientação que tiver, não cabendo ao Judiciário
dirimir dúvida. Existindo dúvida, deve seguir a literatura médica

72
LUDWIG, A A Opor-se a transfusão de sangue, ante iminente perigo de vida, por motivos religiosos. In.:
Direito em Debate. n. 3. Ijuí: Universidade de Ijuí, 1993. p. 116.
73
LUDWIG, A A Op. cit., p. 117.
44
[...] O Judiciário não serve para diminuir os riscos da profissão
médica ou da atividade hospitalar. Se a transfusão de sangue for
tida como imprescindível, conforme sólida literatura médico-
científica, deve ser concretizada, se para salvar a vida do paciente,
mesmo contra a vontade das Testemunhas de Jeová, mas desde que
haja urgência e perigo iminente da vida [...] Religiões devem
preservar a vida, e não exterminá-las74.

4.4. A responsabilidade do médico pelo fato de terceiro e pelo fato coisa

4.4.1. Danos causados por enfermeiros

Aqueles danos causados por prepostos, pelos enfermeiros ou outros empregados do


estabelecimento hospitalar são de sua responsabilidade. Se o dano for causado por enfermeiro
do hospital do qual o médico apenas se utiliza para tratamento de seus doentes, surge o
problema de saber de quem é a responsabilidade: do hospital ou do médico.

DIAS75 indica ser do médico, pois é dele a responsabilidade do paciente, pela


vinculação existente na transmissão das ordens técnicas, de exclusiva competência deste,
configurando a subordinação. Porém, nos dias atuais, não se pode ter dúvida que a
responsabilidade pela prestação dos serviços hospitalares é dirigida ao próprio hospital e não
ao profissional liberal que eventualmente ocupe suas dependências. Mais do que isto, em se
tratando de dano provocado por terceiros, que não o médico, a responsabilidade será objetiva,
não perquirindo-se culpa.

74
Ap. Cív. 595.000.373, 6ª Câm. Cív. RJTJRS 171, p. 384.
75
DIAS, J. A Op. cit., p. 293.
45
4.4.2. A substituição entre profissionais: danos causados pelo anestesista

A anestesia tem sido um dos maiores motivos de causa de óbito por erro médico. O
cuidado, neste sentido, deve ser redobrado, imputando-se ao anestesista o mesmo conjunto de
deveres que ao cirurgião. “Jamais deve o risco da anestesia ser maior que o risco da operação,
isto é, em operações de menor importância é desaconselhável aplicar anestesias gerais,
convindo, sempre que possível, guardar a proporção ou relação direta entre a anestesia e a
importância da operação”76.

Não pode recair sobre o médico a responsabilidade dos atos do anestesista, embora
haja forte tendência dos juristas em entenderem este sentido. Neste âmbito, é importante a
noção de que, nos dias atuais, a atuação conjunta, a formação de equipes para realização de
cirurgias é algo indispensável, motivo pelo qual atribuir responsabilidade ao cirurgião dos
atos autônomos dos demais é extremamente difícil. A responsabilidade de um profissional
pela intervenção de outro, pela característica da liberalidade, só existirá se houver a
preposição de um profissional sobre outro, quando um age sob direção de outro. Nos demais
casos, a responsabilidade de cada um é autônoma na sua esfera de atuação.

Acórdão do TJRS77 condena não só o anestesista, como a empresa que transportou


tubos de oxigênio; a empresa engarrafadora por colocar CO2 em tubos verdes, destinados a
O2, conforme recomendação da ABNT e o hospital por ser responsável por seus empregados,
e a empresa por entregar no hospital tubo de gás carbônico, sabido que ali não era usado.

76
Idem, p. 295.
46
4.4.3. A responsabilidade dos estabelecimentos hospitalares

O abandono do paciente em hospital enseja a responsabilização tanto do médico


quanto do hospital, que são solidários em prestar atendimento constante. Deve o hospital
manter plantonista que possa atender emergências e situações nas quais o médico particular
não possa atender.

No mesmo sentido, a jurisprudência mineira condenou hospital por abandonar


paciente, “que perdeu a chance da vida e da integridade”, de forma solidária com a médica de
plantão.

O hospital responde pelos atos de seus prepostos, independente de receberem


remuneração da previdência social.

O STJ tem reconhecido responsabilidade objetiva do Estado por danos causados pelos
profissionais liberais que desenvolvem atividades em seus estabelecimentos, em
conformidade com o art. 37, § 6º, da Constituição: “Responde o Estado por dano causado pelo
anestesista, mesmo que o médico não tenha sido imprudente, negligente ou imperito, desde
que tenha ocorrido nexo entre o ato lesivo e o dano”.

4.4.4. Danos causados por equipamentos

A responsabilidade por equipamentos, principalmente numa sociedade cuja medicina é


toda baseada em instrumentos, principalmente a cirúrgica, é tema de relevância. O melhor
ensinamento é que o responsável pela coisa será o responsável. Existindo dano injusto, deve

77
RJTJRS 138, p. 201.
47
ele ser indenizado. Se determinado equipamento oferece risco na sua utilização, deve sempre
o profissional atender destes riscos e redobrar seus cuidados na utilização.

Mas, independente disso, o equipamento em utilização não é causa de dano sem a


intervenção do médico, motivo pelo qual considera-se como responsabilidade pessoal do
médico todo o dano provocado por coisas durante o tratamento, seja cirúrgico ou não.

Porém, se o dano surge de defeito no equipamento, imperceptível ao médico, este será


o responsável por tais danos. Se possível ao médico perceber o mau funcionamento do
aparelho, sua responsabilização também é pertinente.

Já se o dano provocado pela coisa não ocorreu no efetivo tratamento, mas durante o
tratamento em estabelecimento hospitalar, as regras incidentes são outras, relativas à
responsabilidade pelo da coisa, regida pelas regras do Direiot Civil e do Direito do
Consumidor.

CONCLUSÃO

O erro médico é hoje assunto comentado e detatido cotidianamente, com a culpa


recaindo sobre esses profissionais sem que, de uma maneira geral, sejam avaliadas as causas.

A responsabilidade médica, aumentada pelo avanço científico e tecnológico, é tratada


em códigos, leis e pela jurisprudência. A responsabilidade civil deriva de uma manifestação
de atividade e tem por escopo a manutenção ou restauro do equilíbrio social.

A obrigação do médico é considerada de meio e pessoal, ficando na dependência de


suas forças físicas e mentais e dos meios disponíveis para o tratamento do paciente. O médico
será responsabilizado quando agir com culpa (imperícia, imprudência, negligência) e que

48
desta tenha havido um dano ao paciente. Existindo entre o dano e o ato um nexo de
causalidade.

Imprudência é procedimento sem cautela. Imperícia é falta de habilidade para praticar


atos que exigem certo conhecimento. Negligência é inobservância das normas que norteiam a
conduta normal do indivíduo. E nexo causal é a relação estabelecida entre a ação e o resultado
final.

A expressão erro engloba, para o cidadão comum, uma gama muito variada de
situações que diferem entre si em valor, sentido e gravidade. Especificamente o erro médico é
o mau resultado advindo de uma ação ou omissão daquele profissional.

O tema do erro médico é relativamente novo, ao menos perante a idade da medicina e


da responsabilidade civil; portanto, deve ser atentamente estudado, não só pelos profissionais
ligados à defesa do consumidor, como ao próprio fornecedor do serviço médico.

Percebe-se que é grande desinformação entre os profissionais da área médica, tanto no


sentido de ignorar a possibilidade de responsabilização como na de achar que, com o avanço
da matéria nos tribunais, sua atividade será inviabilizada.

O centro da questão está na forma como a comunicação é estabelecida entre cliente e


profissional médico, bem como as formas de adaptação entre a linguagem técnica do domínio
médico com a necessidade de informações do paciente. Uma vez que o médico informe
adequadamente seu cliente sobre os possíveis rumos de um tratamento, as características de
sua patologia ou de sua organicidade, dada a conhecer por linguagem simples e precisa,
poderá dormir tranquilo.

Em geral, o cumprimento dos deveres de informação pode ser executado através de


atos extremamente simples. Basta que, ao receitar, apresentar diagnóstico ou interpretar
exames, o faça por escrito, em letra legível ou impressa.

O dever de informar não se esgota por aí, mas seguindo este caminho, da
transparência, fazendo valer a confiança que sempre é depositada pelo paciente quando
procura um profissional, danos e conflitos serão evitados.

49
Para o direito em si, o desenvolvimento desta matéria é necessidade que deriva do
aumento da complexidade das relações sociais e da própria transformação que o mundo está
vivendo.

Se, no começo do século XIX, a malha contratual que formava grande parte das
relações, estava ligada à troca de mercadorias – via compra e venda – no final do século XX
os homens estão organizados sobre uma malha contratual cuja maior parte dos contratos são
prestações de serviços.

Tais serviços são essenciais não só para o funcionamento do mecanismo social, como
também representam uma nova forma de organização econômica e social, com distribuição de
papéis aos sujeitos sociais absolutamente distinta daquela de cem ou duzentos anos atrás. À
esta realidade deverá o jurista estar atento

50
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLOISE, Walter. A responsabilidade civil e o dano médico: legislação, jurisprudência,


seguros e o dano médico. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

CARVALHO, Guido Ivan de. & SANTOS, Lenir. Sistema único de saúde – comentários à
lei orgânica da saúde (lei 8.080/90 e lei 8.142/90). 2ª ed. São Paulo: Hucitec, 1995.

CHABAS, F. Texto datilografado.

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