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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE DIREITO

CARMEM EMANUELLE, LEONARDO CARNEIRO, MARCELLE RABELLO,


MARIA LUIZA DE LEIRAS E MATHEUS SAMPAIO

PONTO 4 MARX (FONTE SECUNDÁRIA MIAILLE)


EM CONTEXTO COM A PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS

Trabalho apresentado para a avaliação da


disciplina de Sociologia e Direito I do
1°Período da graduação em direito pela
Universidade Federal Fluminense
ministrada pelo Professor Joaquim Leonel
de Rezende Alvim.

NITERÓI

2021
1. Introdução:

A pandemia global do Coronavírus atingiu o mundo logo no início de 2020 e,


mesmo com todos os olhos voltados para o seu “Ground 0” na província de Wuhan, na
China, esse vírus conseguiu escapar, fazendo com que, em apenas alguns meses, o globo
se tornasse vítima de seus ataques. Rapidamente, os líderes internacionais se depararam
com uma situação que nunca houvera acontecido, nem mesmo nos tempos da gripe
espanhola, logo após a primeira Guerra Mundial: o vírus se espalhando com tanta
velocidade e voracidade que populações inteiras estavam sob o risco de destruição.

Logo, um comunicado da OMS – Organização Mundial da Saúde - ditava que,


como ainda não haviam estudos sobre remédios ou possíveis vacinas contra a nova
doença, a recomendação dada era a de evitar as aglomerações e a vida pública de modo
geral, dando início ao temido “lockdown” 1, decretado no Brasil em 20 de abril de 2020,
dois meses após a primeira confirmação oficial da doença em um cidadão nacional. O
pretexto dado para defender esta decisão, além daquele relacionado à mitigação das
possibilidades de contaminação, foi o de dar tempo para o Sistema Único de Saúde – SUS
- se organizar de maneira que não houvesse uma sobrecarga; em outras palavras: o intuito
era de que a medida durasse algumas semanas, a fim de preparar os hospitais para os
casos que surgiriam. A realidade, todavia, foi bem pior. Quebras contínuas do isolamento
e o fato dele ter começado depois do carnaval - que ocorreu normalmente - fizeram com
que os números de infectados subissem rapidamente e o SUS fosse sobrecarregado. O
que deveria durar poucas semanas, então, foi estendido para seis meses e, à posteriori,
descobriu-se que duraria muito mais.

Com o imprevisto ocorrendo e o lockdown sendo mantido, diversos outros


problemas - além do enorme risco de contágio – surgiram, acarretados pela falta de
emprego, pela obrigatoriedade de se manter em casa, pelas necessidades de adaptar a
rotina às novas formas de sobreviver à pandemia etc. E foi sob essa perspectiva que se
tornou dever do Governo Federal, depois de meses de discussões e batalhas para alcançá-
lo, ajudar famílias mais pobres por meio da oferta de um auxílio financeiro emergencial

1
Conselho Nacional de Saúde - Proteção à vida: CNS debate importância de isolamento social e
lockdown. Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1176-protecao-a-vida-cns-
debate-importancia-de-isolamento-social-e-lockdown> Acesso em: 11/04/2020
de seiscentos reais mensais. Contudo, essa medida foi extremamente criticada pelas
classes mais ricas da sociedade, que viam o plano econômico como um enorme
desperdício financeiro, já que esta quantia, ofertada por um tempo indeterminado,
oferecida a uma enorme parcela da população, resultaria em um grande cheque que
supostamente seria pago pelos poderosos.

Com base nessas breves exposições, já é possível compreender a gravidade daquilo


que inicialmente foi denominado “gripezinha”, e é exatamente em cima de tal realidade
caótica que esse trabalho se debruçará, objetivando relacionar essa situação de
complicações com o funcionamento do Direito, a partir da visão do materialismo histórico
dialético, de Karl Heinrich Marx.

Esse estudo é baseado em três referências explicativas: a “formação social”, a


“contradição” e a “transformação”. Elas não serão detalhadas agora, pois isso será feito
adiante; porém, a interpretação do grupo, com base no que pode ser entendido a partir
desses pilares, é a de que o Direito está diretamente vinculado com a sociedade que o
sustenta, e, como a sociedade hodierna é marcada por uma formação social protagonizada
por contradições, conflitos e disputas, o Direito tende a manter e perpetuar esse cenário,
no qual a luta de classes é protagonista, luta essa responsável por corroborar
transformações que poderiam contribuir para um cenário mais justo, mas que, como será
exposto, não o faz.

Sendo assim, através da relação entre essa ótica com a situação pandêmica já
exposta em que se encontra o país, é possível observar claramente como as decisões da
elite são utilizadas para criar e alterar normas que afetam a parcela da sociedade que mais
depende da ajuda governamental. Desde o começo do alastramento da doença e da criação
do lockdown, por exemplo, é fácil lembrar de políticos e detentores de grandes fortunas
que apoiavam o abandono do isolamento, pouco levando em consideração a vida de
milhões de pessoas que correriam perigo; mais para frente, depois de muita luta para
convencer o Governo Federal a criar uma forma de assistencialismo para as pessoas mais
necessitadas não se exporem ao “Covid”, estes mesmos indivíduos poderosos começaram
a tentar legitimar a negação da ajuda. E é a partir da visão marxista que serão analisados
esses e mais tantos outros exemplos que revelam a utilização do poder em prol da
sobrevivência do status quo de uma classe dominante que não sabe o que é sofrer com as
consequências lamentáveis desse vírus tão cruel.
2. O Direito como produto da formação social e seu papel na pandemia:

Para o desenvolvimento desta análise, será considerada a premissa de que o


Direito não pode ser explicado nem por si mesmo (isolado do contexto em que se insere)
nem por apelo ao idealismo (como expressão da justiça). Portanto, a máxima utilizada é
a de que as relações jurídicas são um produto da sociedade. O autor cujo pensamento foi
selecionado para fornecer fundamentação conceitual a este estudo, Karl Marx, parte desse
princípio e busca explicar o lugar que o Direito ocupa no modo de produção da vida
social.

Segundo a visão de Marx, o sistema jurídico está inserido no contexto das


condições materiais da existência humana. Essa afirmação surge do conceito de
materialismo histórico dialético, que define o desenvolvimento da história de uma
sociedade como o resultado das relações voltadas para sua produção econômica. Para
Engels, “A concepção materialista da história de Marx ajuda a classe trabalhadora a
compreender essa condição de vida, demonstrando que todas as representações dos
homens – jurídicas, políticas, filosóficas, religiosas etc. – derivam, em última instância,
de suas condições econômicas de vida, de seu modo de produzir e trocar os produtos”.2

Considerando essa teoria, o pensamento marxista elucida que a base econômica


de uma sociedade – isto é, as relações de produção e o conjunto das forças produtivas
(matéria-prima, meios de produção e trabalhadores) – constituiriam aquilo que o autor
chama de estrutura. Sobre essa estrutura, existiria uma superestrutura que corresponderia
aos demais níveis de organização social que vão além do econômico, tais como o Direito,
a religião e a cultura. Essa superestrutura estaria ligada a uma reprodução ideológica da
configuração das relações estruturais, de maneira a agir como dispositivos que servem à
classe dominante para que ela se mantenha como tal.

A perspectiva de Marx possibilita, dessa forma, a conclusão de que o sistema


jurídico não é a expressão da vontade geral ou uma ferramenta de conciliação social, mas

2
O Direito é um instrumento de resolução de conflitos sociais ou de dominação de classe? Uma análise
de Karl Marx acerca do fenômeno jurídico. Disponível em:
<https://ambitojuridico.com.br/cadernos/filosofia/o-direito-e-um-instrumento-de-resolucao-de-conflitos-
sociais-ou-de-dominacao-de-classe-uma-analise-de-karl-marx-acerca-do-fenomeno-juridico/>. Acesso
em: 09/04/2021
sim um reflexo da realidade econômica que o define. Sendo assim, os direitos e deveres
são criados e assegurados apenas de acordo com os interesses daquele que estão no poder.

No entanto, essa reprodução das relações de dominação presentes na estrutura não


ocorre de maneira explícita no Direito: mesmo em sociedades nas quais há a garantia de
uma legislação em prol dos interesses coletivos, o sistema jurídico pode dar vantagem
aos grupos dominantes através de ações como a criação de entraves judiciais, decisões de
justiça baseadas em interpretações tendenciosas da lei e omissões, por exemplo.

Na realidade vivenciada pelo Brasil, o contexto da pandemia provocada pelo novo


coronavírus demonstra como a prática das normas estabelecidas pelo Direito pode
negligenciar o bem-estar geral da população. Primordialmente, deve-se ressaltar o que
estabelece o texto constitucional em relação ao direito à saúde:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido


mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco
de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. 3

Essa abordagem da Constituição Federal de 1988 reconhece a saúde como direito


social fundamental e responsabiliza o Estado por promover políticas públicas que
garantam a efetividade desse direito. Apesar disso, após mais de um ano de pandemia, a
sociedade brasileira parece ter se habituado a atingir por inúmeras vezes recordes de
mortos por Covid-19. No dia seis de abril de 2021, o país ultrapassou uma marca até então
registrada somente pelos Estados Unidos: mais de quatro mil mortos em um dia 4, e esse
é apenas um dos exemplos reveladores de uma ineficácia gestacional que tem se mostrado
tão letal quanto a doença.

É nesse cenário que se pode analisar uma concretização da crítica feita por Marx
ao Direito enquanto reflexo de relações econômicas: a priorização da defesa das
dinâmicas de funcionamento do capital em detrimento da proteção da saúde da população
contribui para que o Brasil seja o país que apresenta muitos dos piores índices da
pandemia.

3
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
4
Brasil bate marca de 4 mil mortes por Covid registradas em um dia pela 1ª vez e soma 337,6 mil na
pandemia. Disponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/04/06/brasil-bate-
marca-de-4-mil-mortes-por-covid-registrados-em-um-dia-e-soma-3376-mil-na-pandemia.ghtml>. Acesso
em: 09/04/2021
3. Contradição, transformação, luta de classes e pandemia:

Para seguir e aprofundar a análise sobre a COVID-19 no contexto brasileiro, é


importante compreender outros dois pontos cruciais do pensamento sobre o qual estamos
nos debruçando. Como foi anteriormente exposto, a concepção de Karl Marx sobre a
realidade se baseia no método do materialismo histórico dialético, o qual possui três
referências, denominadas “formação social”, “contradição” e “transformação”. A
primeira já foi devidamente abordada no tópico anterior, abrindo margem para uma
exposição acerca dos conceitos da contradição e da transformação, suas relações com o
Direito e como é possível enxergar a gravidade da pandemia partir desse ponto de vista.

Para Marx, toda formação social é contraditória, perpassada por disputas, sendo a
principal delas a luta de classes. Luta de classes consiste no antagonismo entre as classes
sociais: o grupo dos dominados (o proletariado) e a classe dominante (detentores dos
meios de produção). No que diz respeito ao âmbito jurídico, por ser um fenômeno social,
o Direito também é atravessado por contraposições. Estado e Direito - o qual Marx associa
a outras ciências, como a política e economia - não possuem um caráter harmônico,
tampouco visam garantir os interesses coletivos, conforme é defendido por Durkheim na
sua tese de coesão social5. Como já vimos, o Estado é a expressão legal dos interesses da
classe dominante; e o Direito, por sua vez, como regra de conduta coercitiva, nasce da
ideologia dessa classe, que é a classe burguesa6.

Quanto ao cenário pandêmico no qual o Brasil está inserido, a atuação do Estado


e do Direito, em teoria, deveria ser fundamental para minimizar as consequências dessa
problemática que, até então, ninguém consegue determinar quando findará. Entretanto,
ratificando tudo o que foi discorrido até então, o que observamos é o contraste existente
entre o impacto do coronavírus nas classes mais pobres e o impacto nas classes com maior
poder aquisitivo, refletindo sobre como o Estado e o Direito legitimam e agravam as
diferenças em vez de elaborar e providenciar soluções para elas.

Além disso, nessa análise das desigualdades existentes entre dominador e


dominado que possuem grande responsabilidade nas mazelas causadas pelo vírus, é
necessário entender, de forma conjunta, que os contrastes supracitados em muito

5
FERREIRA, Adriano. Durkheim e o Direito. Direito.Legal. Disponível em: <https://bit.ly/3s3Bmzo>
Acesso em: 08/04/2021.
6
DE ASSIS, Marselha Silvério. Direito, Estado e sociedade sob a óptica de Karl Marx. Jus.com.br,
2010. Disponível em: <https://bit.ly/3t7Epbi> Acesso em: 08/04/2021.
influenciam as transformações sofridas pela dupla Estado/Direito, afinal, sob a ótica na
qual estamos focados, entende-se que o motor útil da transformação histórica é
exatamente as disparidades de cunho classista.

Nesse sentido, em se tratando do âmbito nacional, é possível citar importantes


acontecimentos (transformações) impulsionados por graves descontentamentos
(contradições), como a abolição da escravidão, proveniente de resistência e renúncia à
vida7, proclamada em 1888 pelas mãos de uma princesa branca, que teve os seus reais
interesses elitistas completamente maquiados por um ato que foi transformado em
símbolo humanitário. Exemplo outro, temos o da luta feminina pelo direito ao voto 8,
possibilitado no Brasil apenas em 1932, no governo de Getúlio Dorneles Vargas, até hoje
equivocadamente lembrado como o protagonista deste histórico feito, quando, na
verdade, o então presidente foi o responsável unicamente por transformar em lei uma
batalha secular, árdua e encabeçada por mentes e corpos femininos. Além disso, também
é importante trazer à tona a questão dos trabalhadores, marcada, em toda a história do
país, por doídos gritos e embates em prol da denúncia contra a exploração e o abuso de
poder, atitudes essas posteriormente transformadas as leis trabalhistas9 sistematizadas na
CLT, novamente com a marca da assinatura de Vargas, responsável apenas por
normatizar uma batalha travada com base no suor e no sofrimento popular. Em teoria,
esse histórico nos possibilita até mesmo um suspiro de esperança em meio ao caos;
todavia, a prática nos mostra que de pouco vale a letra fria da lei quando a sua efetividade
prática inexiste. Na vida real, o que vemos atualmente é um Brasil no qual cidadãos
negros morrem todos os dias por conta da cor da pele, no qual as mulheres seguem
servindo às amarras das raízes sexistas e no qual se perpetua condições de trabalho que
são calcadas em pilares desiguais de exploração e injustiça social sobre os quais o
trabalhador pouco têm poder, tendo em vista que a necessidade de sobrevivência retira
do homem a possibilidade de escolher.

7
A luta esquecida dos negros pelo fim da escravidão. Disponível em:
<https://www.bbc.com/portuguese/resources/idt-sh/lutapelaabolicao> Acesso em: 08/04/2021
8
Voto feminino no Brasil completa 89 anos, mas representatividade ainda é desafio. Disponível em:
<https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2021/02/24/voto-feminino-no-brasil-completa-89-anos-mas-
representatividade-ainda-e-desafio> Acesso em: 08/04/2021
9
SINDICATO: NOSSA CASA, INSTRUMENTO DE LUTA E IDENTIDADE DE CLASSE.
Disponível em: <https://sindijus-ms.jusbrasil.com.br/noticias/2635309/sindicato-nossa-casa-instrumento-
de-luta-e-identidade-de-classe> Acesso em 08/04/2021
Os exemplos anteriormente expostos assim o foram na intenção de ilustrar o fato
de que, por trás da existência de direitos tão importantes, habitam seres humanos inquietos
com as injustiças e prontos para efetivar mudanças, mesmo quando as decisões estatal e
jurídica andam na contramão das conquistas populares e que cidadãos privilegiados
ganhem protagonismo. Da mesma maneira, foi também devido às emergências, aos
movimentos, aos atos de resistência e ao levantamento da voz da população que hoje
temos a garantia teórica de importantes direitos como saúde moradia, educação e
segurança, ainda que, infelizmente, as autoridades sigam se alimentando dos frutos que
nascem da luta: e isso se liga diretamente com o atual contexto.

O que vemos desde que o “Covid” chegou em território nacional é um quadro no


qual a desigualdade segue sendo a protagonista na “arte” de fazer com que a realidade em
nada se pareça com o que a legislação registra. Desigualdade essa que sempre foi um
problema no país e que, apesar de mais notória em alguns períodos do que em outros,
nunca deixou de existir. É essa desigualdade, materializada no poder exacerbado de
alguns e no silenciamento criminoso de outros, que exerce grande influência nos altos
números de mortes registrados na pandemia, afinal, ainda que o vírus não “escolha” o seu
alvo e qualquer um esteja sujeito a ser contaminado, poucos são os que possuem
condições de (i) permanecer em casa e evitar a contaminação e (ii) arcar com despesas do
tratamento em caso de contágio, visto que os hospitais públicos não comportam toda a
população que precisa de ajuda. Com dados atualizados até 18 de maio (2020), uma
equipe de pesquisadores avaliou cerca de 30 mil casos disponibilizados pelo Ministério
da Saúde e concluiu que, entre os brancos, 38% morreram e 62% se recuperaram. Já entre
os negros, a taxa de recuperação foi de apenas 55% em comparação com 45% de óbitos.
A desigualdade persiste quando se observam os casos com base na escolaridade, um
indicador relacionado com a renda (Fonte: Agência Senado). Quase um ano depois, em
abril de 2021, mostra-se mais escancarada a concentração de muito na mão de poucos: o
Brasil ganha 11 novos bilionários na lista da Forbes10 enquanto pela primeira vez em 17
anos, mais da metade da população não tem garantia de comida na mesa 11. Temos também

10
Ranking de bilionários da Forbes tem 11 ‘estreantes’ do Brasil. G1, 2021. Disponível em:
<https://glo.bo/2Q2YfWx> Acesso em: 08/04/2021.
11
Fome cresce e, pela 1ª vez em 17 anos, mais da metade da população não tem garantia de comida
na mesa. O Globo, 2021. Disponível em: <https://cutt.ly/4cX4UA0> Acesso em: 08/04/2021.
casos como a proposta do fim do auxílio emergencial 12, a falta de suporte à população
durante os decretos de “lockdown”, a irresponsabilidade com o uso de máscaras, a decisão
sobre o retorno ao ensino presencial13 e a inacreditável decisão da compra de vacinas por
empresários14, enquanto o Brasil é avaliado como responsável pela pior gestão da
pandemia entre 98 dos países analisados em uma pesquisa realizada pelo Lowy Institute,
publicada em janeiro de 202115.

Diante de quadros como esses, é importante que haja uma indagação sobre até que
ponto vale a garantia de saúde, moradia, educação e segurança, se as ações
governamentais, respaldadas pelo Direito e comandadas pelas mãos de poderosos, têm se
voltado, cada vez mais, para a efetivação de decisões antiéticas e desumanas, que anulam
quase que completamente as boas evoluções e conquistas ocorridas na história. E essa é
uma forma que temos de enxergar como o pensamento de Marx, ainda que sob perspectiva
da sociedade do século XIX, é capaz de explicar questões da realidade atual,
especificamente abordadas, nesse trabalho, com base nas problemáticas atreladas à luta
de classes e ao papel do Direito e do Estado na legitimação e na reprodução dos abismos
sociais.

4. Conclusão: Observações finais.


Com efeito, após os tópicos abordados por meio de uma perspectiva marxista,
fundamentada pela obra de Michel Miaille – Introdução crítica a direito16, conclui-se que
o objeto da reflexão de Marx consiste, portanto, em procurar através das diferenças entre
instâncias como é que se realiza a unidade de um modo de produção (MIAILLE, 1994
p.75), e que seu conjunto elabora a produção social da existência. Logo, a vida social
nunca é dada pela natureza, é sempre construída pelo ser humano, de modo que:

12
Fim do auxílio emergencial deixa o Brasil entre o medo da pandemia e do desemprego em 2021.
Disponível em: <https://brasil.elpais.com/economia/2020-12-21/fim-do-auxilio-emergencial-deixa-o-
brasil-entre-o-medo-da-pandemia-e-do-desemprego-em-2021.html> Acesso em: 08/04/2021
13
Professores criticam retomada de aulas presenciais e não descartam greve no RJ. Disponível em: <
https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2021/01/26/professores-criticam-retomada-de-aulas-presenciais-e-
nao-descartam-greve-no-rj> Acesso em: 08/04/2021
14
Compra de vacina por empresas: projeto de lei na Câmara enfraquece Anvisa e SUS, dizem
especialistas. Disponível em: < https://g1.globo.com/bemestar/vacina/noticia/2021/04/07/nova-lei-de-
compra-de-vacina-pela-iniciativa-privada-enfraquece-anvisa-e-e-inutil-a-vacinacao-nacional-dizem-
especialistas.ghtml > Acesso em: 08/04/2021
15
Covid Performance Index. Disponível em: <https://bit.ly/3s8s19S > Acesso em: 08/04/2021.
16
MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. 2a. edição. Lisboa: Ed. Estampa, 1994 (p.68-84).
O conjunto das relações de produção constitui a estrutura econômica
da sociedade (...) sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e
política à qual correspondem formas de consciência social
determinadas. (MIAILLE, 1994 p.71)

Desse modo, o Direito assume papel fundamental para estabelecer formas de


consciência social no contexto da pandemia. Porém, como destrinchado anteriormente
por essa pesquisa, grande parte do judiciário brasileiro não corresponde de forma assertiva
para o enfrentamento da crise de saúde pública. Pelo contrário, atua na contramão daquilo
que deveria ser seu papel fundamental nesse contexto. Como, por exemplo, a decisão
monocrática do ministro do Supremo Tribunal Federal Kassio Nunes Marques, que
liberava missas e cultos no período mais grave da pandemia 17, derrubada posteriormente.
Em segundo plano, cabe ressaltar a percepção da existência de um “apartheid
sanitário” em escalas globais. Esse cenário se estabelece através daquilo que o Intelectual
Marxista Vijay Prashad define como “nacionalismo vacinal”, em que o Norte Global, por
exemplo, com menos de 14% da população mundial, garantiu mais da metade do total
de vacinas previstas18 (PRASHAD, 2021), ou seja, a classe burguesa global
(dominantes), impõe sobre a classe dominada e subalternizada, majoritariamente
representada pela população do Sul global, uma política de acúmulo de vacinas.

No Brasil não é diferente. Através da chancela de parte do judiciário brasileiro, do


poder legislativo e executivo, no atual contexto pandêmico, o país ruma para uma política
de acúmulo de vacinas por parte da classe burguesa. Como por exemplo, através do
anteriormente referenciado Projeto de Lei 948/202119, conhecido como “PL da fura-fila”,
que significaria a institucionalização da política de eugenia, permitindo que na prática, se
crie um esquema privado de vacinação.

Depreende-se, assim, que o Direito brasileiro atua no processo de legitimação do


Estado enquanto indutor do processo de reprodução do capital, em conformidade com as
leis do mercado. O que reafirma a perspectiva defendida ao decorrer do trabalho de que
o Direito, como regra de conduta coercitiva, nasce da ideologia dessa classe, que é a classe
burguesa. Porém, reconhecer que a luta de classes é o motor da história, como abordado
no tópico anterior, é também reconhecer que há perspectivas diante desse contexto de

17
<O que diz a decisão de Nunes Marques que liberou missas e cultos religiosos na pandemia - BBC
News Brasil> Acesso em: 11/04/2021.
18
< Diálogos do Sul: Por que a vacina contra Covid-19 não está sendo fornecida a todas as pessoas
no mundo? (uol.com.br) > Acesso em: 10/04/2021.
19
Disponível em: < Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br)>
“caos pandêmico”. Daí ser necessário, em primeiro lugar, estudar com exatidão qual o
momento do processo de conjunto da produção que atinge, da maneira mais imediata e
mais vital, os interesses de cada classe (LUKÁCS, 1920). De modo que:

A vocação de uma classe à dominação significa que é possível, a


partir de seus interesses de classe, de sua consciência de classe,
organizar o conjunto da sociedade de conformidade com esses
interesses. E a seguinte, a questão que, em última instância, decide
toda luta de classes: que classe dispõe, no momento desejado, dessa
capacidade e dessa consciência de classe?20 (LUKÁCS, 1920)

Sendo assim, as perspectivas de alternativas ao “caos pandêmico”, podem ser


estabelecidas a partir da consciência de classe pela população dominada. De forma que
se estabeleça uma transformação consciente da sociedade:
Necessário que surgisse na consciência de classe a contradição
dialética entre o interesse imediato e o objetivo final, entre o momento
isolado e a totalidade. Porque o momento isolado no processo e a
situação concreta com suas exigências concretas são, em razão da sua
essência, imanentes à sociedade capitalista e submetidas a suas leis, à
sua estrutura econômica. Somente em se incorporando à visão de
conjunto de processo, em se vinculando ao objetivo final que eles
colocam concreta e conscientemente para além da sociedade
capitalista. (LUKÁCS, 1920)

De tal forma que a classe dominada e marginalizada não pode se conter com o
discurso do “novo normal” sem vislumbrar um conjunto de processo. Garantir, por
exemplo, interesses imediatos como um auxílio emergencial digno, aliado ao objetivo
final de não mais se omitir frente ao processo de auto expansão do capital, induzido por
um Estado indiferente à morte. Trata-se de conceber, portanto, o Direito como reconhecia
Luís Gama21, uma ferramenta dos Senhores, a qual é preciso saber manejar para, no
momento oportuno, volta-la contra o próprio Senhor (ALMEIDA, 2019).

20
LUKÁCS, Georg; História e consciência de classe. Ed. PCUS, 1960. Disponível em: < Consciencia de
Classe - index (marxists.org) > Acesso em: 11/04/2021.
21
ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019, p. 127-151.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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isolamento social e lockdown. Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/ultimas-
noticias-cns/1176-protecao-a-vida-cns-debate-importancia-de-isolamento-social-e-
lockdown> Acesso em: 11/04/2020
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classe? Uma análise de Karl Marx acerca do fenômeno jurídico. Disponível em:
<https://ambitojuridico.com.br/cadernos/filosofia/o-direito-e-um-instrumento-de-
resolucao-de-conflitos-sociais-ou-de-dominacao-de-classe-uma-analise-de-karl-marx-
acerca-do-fenomeno-juridico/>. Acesso em: 09/04/2021
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(planalto.gov.br). Acesso em 17/04/2021.
Brasil bate marca de 4 mil mortes por Covid registradas em um dia pela 1ª vez e
soma 337,6 mil na pandemia. Disponível em:
<https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/04/06/brasil-bate-marca-de-4-
mil-mortes-por-covid-registrados-em-um-dia-e-soma-3376-mil-na-pandemia.ghtml>.
Acesso em: 09/04/2021

FERREIRA, Adriano. Durkheim e o Direito. Direito.Legal. Disponível em:


<https://bit.ly/3s3Bmzo> Acesso em: 08/04/2021.

DE ASSIS, Marselha Silvério. Direito, Estado e sociedade sob a óptica de Karl Marx.
Jus.com.br, 2010. Disponível em: <https://bit.ly/3t7Epbi> Acesso em: 08/04/2021.

A luta esquecida dos negros pelo fim da escravidão. Disponível em:


<https://www.bbc.com/portuguese/resources/idt-sh/lutapelaabolicao> Acesso em:
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Voto feminino no Brasil completa 89 anos, mas representatividade ainda é desafio.
Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2021/02/24/voto-feminino-no-
brasil-completa-89-anos-mas-representatividade-ainda-e-desafio> Acesso em:
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SINDICATO: NOSSA CASA, INSTRUMENTO DE LUTA E IDENTIDADE DE
CLASSE. Disponível em: <https://sindijus-
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Ranking de bilionários da Forbes tem 11 ‘estreantes’ do Brasil. G1, 2021. Disponível


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Fome cresce e, pela 1ª vez em 17 anos, mais da metade da população não tem
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Compra de vacina por empresas: projeto de lei na Câmara enfraquece Anvisa e
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