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A remoralização da saúde em tempos de pandemia:

REFLEXÕES NA PANDEMIA
Uma esperança para o SUS
Roberta Corôa
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

O
crescimento diário do número de doentes e de óbitos decorrentes do contágio pelo novo
coronavírus está “colapsando” sistemas de saúde, serviços funerários, economias e
lembrando ao mundo que todos os países dependem de sistemas de proteção social. Na
verdade, momentos anteriores de crise global já sinalizavam que a provisão de direitos básicos e
universais não é tão somente uma expressão de solidariedade, mas também uma questão
fundamental para a manutenção dos países e da saúde das populações. Lembremo-nos, por
exemplo, das mudanças no Estado liberal no pós-crise de 1929 e nos pós-guerras, com impactos
na reestruturação das políticas sociais em todos os países capitalistas.
Apoiadas na crença de que só caberiam na modernidade crises de natureza bélica ou econômica,
tendo alcançado a ciência a capacidade de domar qualquer “praga natural”, as principais potências do
mundo se resguardaram ao longo dos dois últimos séculos e no começo deste aumentando seu poder
de destruição, de segurança, de produção e de consumo. O que se deu, como todos já sabemos, às
custas da manutenção de relações desiguais e da mercadorização dos serviços sociais. Nenhum Estado,
portanto, sustentou ou preparou o seu sistema de saúde como um aparato efetivo de proteção social.
As atrocidades cometidas no sistema privado americano já foram tema de documentário1 e o
mundo conheceu o estado de calamidade da saúde do país com a tentativa de implantação do
Obamacare2. Quanto à Europa, os seus sistemas de saúde deixaram, há algum tempo, de ser referência
de serviço gratuito de qualidade, o que se verifica no aumento dos gastos com a saúde privada no
continente3. O fato é que o mundo não esperava que a próxima ameaça global chegasse por meio de
um vírus, na forma de uma pandemia, e a crise evidenciou que hoje existem apenas resquícios de
sistemas de saúde universais, partes agonizantes do que restou do ideal de bem-estar social.
No Brasil, a pandemia de Covid-19 está lembrando ao brasileiro da importância do Sistema Único
de Saúde (SUS). Diariamente, a equipe do Ministério da Saúde faz um pronunciamento, vestida com
coletes do SUS, reforçando o fato de que todos estamos sob o comando das ações do Ministério e
dependentes dos leitos públicos para a gestão da pandemia. Aquele que sempre pôde pagar por serviços
de saúde, em meio à possibilidade do colapso geral dos serviços de tipo público e privado, convive com
a ameaça real de que o seu plano não seja garantia de atendimento. Dessa forma, todos os cidadãos são
potenciais dependentes do Estado, que, por meio do SUS, deve dar conta igualmente de qualquer
brasileiro. Ao mesmo tempo, a situação traz à tona o desprestígio do sistema junto à população, cuja
utilização aparece como um pesadelo para aquele que sempre pode pagar pelo cuidado privado.

DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social – Rio de Janeiro – Reflexões da Pandemia 2020 – pp. 1-14
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Em termos morais, a forma como a crise da Covid-19 afeta os sistemas de saúde denuncia no
mundo inteiro o desbotamento da saúde como um direito universal e faz emergir no interior das
populações a urgência de reparação, não somente na forma de discurso, mas, sobretudo, por meio
de dados, imagens e perdas pessoais. No Brasil, a pandemia traz a iminência da materialização de
um ambiente distópico4, de colapso de um sistema público de saúde já cotidianamente colapsado,
e suas consequências alargam, na qualidade de provas, a crítica feita ao tratamento da saúde como
bem de consumo. A situação denunciada é resultado de anos de parceria público-privada na
estruturação da oferta de serviços de saúde no país, com o progressivo abandono do projeto —
nunca efetivamente realizado — de consolidação de um modelo de proteção social universal. É
dessa forma que passamos a ter contato diário com o desequilíbrio e a possibilidade de redefinição
do pacto social que, em 1988, deu origem ao SUS.
O mais breve passar de olhos sobre as mídias captará mensagens fazendo referência à
responsabilidade do Estado de garantir o acesso de todos aos serviços de saúde, a curvas
epidemiológicas que retratam o aumento no número de casos e mortes e ao papel desempenhado
pelas instituições privadas de saúde no acolhimento dos enfermos. Temos em tela, então, a
configuração de um cenário para a pandemia. Trata-se de uma situação em que o Estado, como
representante da sociedade e gestor epidemiológico, e o setor privado de saúde apresentam-se
ambos como atores e, longe de ser uma situação neutra, está instaurado um ambiente de disputa.
A proposta deste texto é mostrar de que forma a chegada do novo coronavírus ao Brasil
instaurou um ambiente de denúncia, no qual as diferentes noções de saúde como bem comum5
mobilizadas no pacto de criação do Sistema Único de Saúde vem à tona e são reavaliadas. De
forma otimista, afirmarei que, em meio à perturbação da situação antes estabilizada, surge a
possibilidade de rearranjo do compromisso feito pelo Estado em favor da manutenção do SUS,
dependente de um trabalho de remoralização da saúde como direito universal e recurso necessário
à manutenção do funcionamento do país.

O pacto da criação do SUS

Sem dúvida, a criação do SUS é fruto de um contexto de luta pela redemocratização do país e
de construção da cidadania por meio da conquista de direitos sociais e políticos. Na conformação
de sistemas universais de saúde, a premissa da universalidade do acesso surge atrelada à afirmação
de direitos naturais aos homens na sociedade moderna. Dessa forma, o direito de cada indivíduo de
usufruir de cuidados adequados de saúde é um dos termos do contrato social6, devendo ser garantido
pelo conjunto da sociedade organizada na forma do Estado. Foi a representação da saúde como um
direito humano (e portando universal) que, historicamente, fundamentou a construção dos sistemas
de saúde na Europa e no Brasil, dando origem a modelos nos quais a solidariedade, materializada
no financiamento por contribuições sociais, assume a forma de uma característica societária
normativa e de condição para a oferta de saúde à população.

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Nesse desenho, temos uma moralização da saúde individual como um direito7. Essa pauta emerge
na forma de um bem comum a partir da organização de grupos da sociedade — trabalhadores no caso
europeu; militantes do Movimento da Reforma Sanitária no caso brasileiro —, que afirmaram que
todos os indivíduos devem ter acesso aos cuidados de saúde e apostaram na solidariedade como
princípio necessário à manutenção desse acesso. Em outras palavras, como bem comum, a saúde deve
ser usufruída por todos e, estando a solidariedade na base dessa relação, todos são responsáveis por isso.
Sendo o Estado a própria expressão da vontade geral, deve ser ele então o responsável pela manutenção
desse bem, que surge na forma de um direito. Entendendo uma questão moral como a da gestão de um
bem (WERNECK, 2012), com essa fórmula desvendamos em termos morais a máxima do SUS
presente na Constituição, de que “a saúde é um direito de todos e dever do Estado” (BRASIL, 1988).
Contudo, há uma segunda dimensão do Estado que sustenta sua participação no pacto de
criação do SUS. Não se trata mais somente de um corpo encarnado pela vontade geral, mas da
imagem de um soberano capaz de coordenar as ações individuais e garantir a segurança de seu povo
e o funcionamento do país. Em outra metáfora, o Estado adotaria a forma do gestor de uma
indústria, que deveria garantir o bom funcionamento de cada setor, de cada máquina, de cada
funcionário, para que seu negócio continuasse rentável. Na vida real, o Estado precisa se ocupar dos
problemas de saúde das populações para manter o funcionamento do país, e, no caso do controle
de epidemias, dispõe da epidemiologia como instrumento para tal. Como disciplina, a
epidemiologia é o conhecimento capaz de, entre outas coisas, mensurar, o mais próximo possível
da realidade, as incidências das enfermidades na população. Já como braço do Estado na elaboração
de políticas públicas, ela organiza ações coordenadas de controle da saúde das populações, visando
à manutenção de níveis aceitáveis de doenças entre os indivíduos. No Brasil, a associação entre o
Estado gestor e a epidemiologia é fixada no dispositivo da saúde pública, que pautou a participação
do Estado na oferta de cuidados de saúde até a criação do SUS e foi a ele incorporada.
O ponto é que o papel do Estado no pacto social que deu origem ao SUS não se deu apenas
no sentindo da manutenção de um direito, e teve lugar também um trabalho de moralização da
saúde como recurso necessário à manutenção do país8. Ora, todos já ouvimos falar da vacinação
compulsória imposta pelo prefeito do Rio de Janeiro, no início do século XX, aos habitantes da
cidade, tendo em vista a modernização. Ou mesmo sobre o Jeca Tatu, personagem caipira criado
por Monteiro Lobato, acometido por doenças em decorrência de seus péssimos hábitos de
higiene, e que foi apropriado pelo Estado desenvolvimentista da década de 1930 como o retrato
do brasileiro interiorano que precisava de intervenções sanitárias para caminhar junto ao Brasil
que crescia. Lembremos mesmo que, antes da criação do SUS, as ações do Estado no que dizia
respeito à saúde eram de tipo “campanhista”, ou seja, organizadas tendo em vista atuações
específicas de combate a um problema, estando sempre no horizonte o objetivo de deixar a
população brasileira em condições mínimas de sustentar a inserção do país no cenário econômico
global. Dessa forma, a saúde é um bem comum na medida em que é um recurso caro a todos os
indivíduos para cumprir suas funções dentro de um sistema, nesse caso, o país.

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O trabalho de moralização da saúde como direito e de moralização da saúde como recurso é


sintetizado e estabilizado com a criação do dispositivo da saúde coletiva e seus desdobramentos
como disciplina, ações e instituições9 (associações nacionais de pesquisadores, cursos de pós-
graduação e, mais recentemente, graduações), que a partir da década de 1980 passam a estar na
linha de frente da criação do SUS. Expressão de um compromisso entre sociedade e Estado, a
saúde coletiva é nutrida por uma noção ampliada de saúde, em que pesam todos os aspectos
relativos ao bem-estar do ser humano. Ademais, ela se apropria da categoria determinantes sociais
da saúde10, que, de um lado, acolhe a evidência de que a saúde individual é uma expressão das
condições econômicas, psicológicas e sociais nas quais se acham os indivíduos na sociedade,
sendo dependente da manutenção de direitos básicos universais como um todo; e, de outro,
incorpora a ideia de que a manutenção dos níveis aceitáveis de saúde da população, ou seja, a
manutenção da saúde como recurso, é dependente da construção de ambientes e relações
saudáveis para os indivíduos. É dessa forma que a universalidade do acesso aos serviços de saúde
é instituída a partir da criação do SUS, ao mesmo tempo como um valor, uma diretriz e uma meta
a ser alcançada majoritariamente por meio do financiamento do Estado. A realização desse
compromisso na oferta de serviços de saúde seria característica de um Estado ideal de bem-estar
social. Contudo, não foi esse o caso. Vejamos.
Os muitos anos anteriores à criação do SUS foram caracterizados pela falta de ações
centralizadas a partir do Estado para a garantia da saúde dos indivíduos. Em linhas gerais, o
Ministério da Saúde sempre foi responsável pelo combate de ameaças específicas, de caráter
localizado ou epidêmico, como a malária, a cólera, a desnutrição etc. Já as corporações
profissionais, por meio das caixas de aposentadorias e pensões, e pelo atendimento ambulatorial
e hospitalar para os trabalhadores formais. E os que não eram nem empregados e não tinham
condições para pagar por serviços privados eram dependentes de hospitais filantrópicos ou dos
poucos hospitais públicos, que funcionavam em péssimas condições. Em virtude da lacuna
deixada por essa configuração na oferta de serviços de saúde, a partir da década de 1970 o mercado
de seguros de saúde e de complexos médicos industriais passou a crescer significativamente no
Brasil, sendo o Estado, ao mesmo tempo, financiador e cliente desses serviços. Ou seja, o
investimento na área da saúde era feito pela concessão de créditos a essas empresas, o que deixava
os serviços públicos descobertos e levava o Ministério da Saúde a adquirir máquinas, adicionar
leitos e adotar procedimentos para dar conta da parcela da população mais pobre sem cobertura
alguma. Tudo isso fez com o setor de venda de serviços de saúde se constituísse como uma parte
importante a ser considerada no pacto de criação do SUS.
Quando o sistema foi, então, criado, o complexo médico industrial da saúde privada já
era forte o suficiente para não ser ignorado, tanto em termos econômicos quanto em termos
da assistência prestada a uma parcela significativa da população. Simplesmente, não era
possível romper com o mercado da saúde privada, o compromisso da saúde coletiva não tinha
nem força política nem recursos para tal. Os grandes empresários do setor já controlavam
parte dos próprios serviços de saúde ofertados pelo Estado, além de não haver orçamento

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suficiente destinado ao SUS que tornasse o sistema capaz de cobrir toda a população,
incluindo aqueles indivíduos que já pagavam por seus serviços de saúde. Foi preciso negociar,
conceder, e o pacto definitivo fora firmado com o arranjo dos valores oriundos das
concepções de saúde como direito, recurso e bem de consumo.
No âmbito do mercado, impera o trabalho de moralização da saúde como um bem de
consumo11, que ganha status de bem comum na medida em que seria bom para todos que seja
possível comprá-la. Nesse nicho, os indivíduos não são iguais e é superior aquele que melhor pode
pagar pelos serviços de saúde, o que gera a corrida das empresas pela oferta cada vez mais
diferenciada e “exclusiva” de seus serviços, a fim de captar aqueles com condições de investir altas
quantias na garantia de sua saúde. Contudo, é importante salientar que um dado fundamental
para a manutenção da saúde como bem de mercado é a condição de que esses serviços se
apresentem como um recurso escasso. E isso se relaciona diretamente com o papel exercido pelo
Estado em sua oferta: ele deve deixar de ofertar serviços de saúde suficientes em número e
qualidade para que a venda de cuidados de saúde se torne atrativa. Dessa forma, em virtude da
necessidade de incorporação do mercado, o compromisso entre sociedade e Estado, estabilizado
no dispositivo da saúde coletiva, não pode operar em sua máxima potência.
O compromisso firmado entre a sociedade, o Estado e o mercado encontra-se
estabilizado na lei de criação do SUS (BRASIL, 1990). Ainda que com a manutenção da
universalidade do acesso à saúde como valor, a legislação que dispõe sobre a implementação
do sistema define que a cobertura universal dos serviços de saúde deverá ser alcançada a partir
da articulação entre as iniciativas pública e privada. Isso significou a instituição de um modelo
de provisão de serviços de saúde que tinha como base o pagamento do Estado às empresas
por leitos, procedimentos etc. e o financiamento direto do setor privado por meio do repasse
de recursos destinados à saúde pública para as instituições de saúde suplementar.

O desbotamento do pacto inicial e a supremacia da saúde como bem de consumo

Nos anos que se seguiram à consolidação do pacto inicial do SUS foi possível observar um
enfraquecimento progressivo das ações relacionadas à manutenção do dispositivo da saúde
coletiva na base da organização da oferta de serviços de saúde, vis-à-vis a ampliação do trabalho
de moralização da saúde como bem de consumo. Esse movimento pode ser verificado em
análises já realizadas12 sobre a focalização das políticas púbicas de saúde a partir da década de
1990, em que o Estado passou a ofertar um piso de serviços básicos e de pouco custo à
população mais pobre, visando corresponder aos indicadores mundiais impostos como
condição para o investimento do capital internacional e a concessão de empréstimos de
agências internacionais, como o Banco Mundial ou o Fundo Monetário Internacional (FMI);
os dados sobre o aumento progressivo do investimento público no setor de saúde suplementar;
e o crescimento colossal do número de empresas privadas de saúde e de seus clientes.

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É inegável que a criação do SUS ampliou a oferta de saúde para milhões de brasileiros e também
é evidente que o número de serviços públicos e gratuitos cresceu nas últimas duas décadas. A última
Pesquisa Nacional de Saúde, realizada em 2013, mostrou que 71,2% da população obteve
atendimento no sistema13. Contudo, é preciso estar atento à forma como se deu tal expansão. Por
exemplo, o aumento da cobertura de saúde foi impulsionado pela descentralização e municipalização
da gestão, mas apoiado nos processos de terceirização e publicização, que transferiram
progressivamente atividades antes do Estado para organizações privadas (TEIXEIRA et al., 2012).
O compromisso da saúde coletiva conseguiu de fato firmar seus valores na lei de criação do
sistema, que define os princípios de universalidade, equidade e integralidade da atenção e as
diretrizes de descentralização, regionalização, hierarquização e participação social (BRASIL, 1990).
Expressões do trabalho da saúde como direito, o princípio da universalidade determina que todos
os cidadãos, sem qualquer tipo de discriminação, têm direito às ações e aos serviços públicos de
saúde; o princípio da integralidade afirma que a saúde deve atender à condição integral do ser
humano, o que significa considerá-lo em seu contexto psicossocial, cultural etc.; e o princípio da
equidade pauta que os atendimentos aos indivíduos devem ser priorizados de forma a oferecer mais
a quem mais precisa e menos a quem requer menos cuidados (MATTA, 2009; PINHEIRO, 2009;
ESCOREL, 2009). Já as diretrizes de descentralização, regionalização e hierarquização pressupõem
que os recursos e a responsabilidade pelos serviços sejam repassados aos estados e municípios, que
o cuidado seja organizado segundo as necessidades de cada território e que as diferentes unidades
de saúde formem uma rede integrada de serviços de baixa, média e alta complexidades.
Apesar disso, os cenários global e local colocados para a expansão do SUS não foram
favoráveis à manutenção dos dispositivos de garantia universal da saúde. Em nível global, as
grandes potências buscavam no capitalismo um consenso sobre a diminuição do Estado e a
demanda por políticas sociais, necessárias à sobrevivência do próprio modo de produção. E era
esse também o momento da expansão dos referenciais da reestruturação produtiva, que buscava
a racionalização da produção e o aumento da lucratividade com a definição de novas diretrizes
para a gestão, relacionados à flexibilização da produção e das relações de trabalho. A conjunção
dos dois movimentos foi condensada em uma ideologia14 que ergueu o próprio Estado como uma
empresa reestruturada nos moldes flexíveis, com consequências para os sistemas de saúde no
sentido do desbotamento do compromisso firmado para a oferta universal de serviços à população
e do fomento do trabalho de moralização da saúde como bem de consumo.
No Brasil, a reforma gerencial do Estado brasileiro, promovida durante o governo Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002), registrou em documentos e ações15 a reconfiguração do pacto
inicial do SUS. Houve um afinamento entre Estado e mercado, no qual o primeiro emergiu muito
mais como empresa e muito menos como “expressão da vontade de todos”, renunciando ao papel
de executor e prestador único de serviços sociais e se mantendo apenas como formulador e
regulador de políticas. É por meio dessa reforma que, nos serviços públicos de saúde, se fizeram
presentes as orientações neoliberais e as diretrizes para o trabalho oriundas do padrão de
acumulação flexível (CORÔA, 2015). Sintetizando nas palavras de Rizzotto (2000), a reforma

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gerencial tinha implícito um projeto de mudança cultural no setor saúde, que pretendia: a
construção do cidadão cada vez menos como paciente e cada vez mais como cliente e agente
participante do setor; a organização de um sistema nacional privado, devidamente
regulamentado; o funcionamento competitivo no interior do subsistema público e entre os
subsistemas públicos e privados, para estimular a melhoria da qualidade e a diminuição dos
gastos; a elaboração de um sólido sistema de acompanhamento, controle e avaliação de ações e
serviços; e a adoção de uma prática gestora desconcentrada e descentralizada.
Dessa forma, a expansão SUS se deu marcada por uma racionalização dos serviços, que
deveriam operar o máximo possível com o mínimo de gastos, o que significava a oferta restrita às
populações extremamente vulneráveis e ao tratamento de doenças que pesassem nos indicadores.
Houve também a deturpação dos sentidos das diretrizes de descentralização e participação social, que
fez com que a política de saúde adotada assumisse cada vez mais características de um
comunitarismo, com a transferência de responsabilidades para os governos locais
(OBSERVATÓRIO DOS TÉCNICOS DE SAÚDE, 2006), que se organizaram de forma desigual,
precária e com ampla incorporação de empresas privadas na oferta de saúde. Os anos que se seguiram
à criação do SUS foram cruciais para o desbotamento de seu pacto inicial, com o enfraquecimento
do princípio da universalidade e a segmentação do acesso à saúde na sociedade brasileira.
Como se não fosse suficiente, em um passado mais recente, novas reformas significaram uma
ainda maior ampliação da participação privada no financiamento, na oferta e na organização da saúde
em países com sistemas universais (CORDILHA e LAVINA, 2018; FERREIRA e MENDES, 2018).
Tanto no Brasil quanto na Europa são identificados macroprocessos de origem transnacional
relacionados às transformações nas concepções de saúde e de universalidade difundidas por atores
centrais no âmbito da saúde global. Trata-se de um movimento no qual agências transnacionais de
grande força, como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Banco Mundial, associam cada vez
mais a universalidade do acesso à saúde à cobertura universal de saúde (universal health coverage, UHC)
em detrimento de sistema universal de saúde (universal health system, UHS), um noção que já se
encontra impressa em resoluções das Nações Unidas (GIOVANELLA et al., 2018; SENGUPTA, 2013).
Enquanto a premissa de um sistema universal pressupõe um arranjo no qual os serviços
de saúde devem ser ofertados e mantidos sob os imperativos e constrangimentos da saúde
como bem comum na qualidade de direito universal, a categoria de cobertura universal se
relaciona com a ideia de proteção financeira, na qual a função do Estado passa a ser subsidiar
e gerenciar à demanda por serviços. Ou seja, o esforço conjunto dos países deve operar no
sentido da implementação de medidas que permitam que cada indivíduo seja capaz de pagar
pelos seus tratamentos de saúde. Nesse contexto, a forma dos seguros parece ser uma das mais
eficientes, uma vez que reduz os gastos out of pocket, que são as despesas ocasionadas por
emergências de saúde e pelo tratamento de doenças inesperadas, responsáveis por grande parte
de mobilizações excessivas de recursos com a saúde. Identifica-se, mais uma vez, uma dinâmica
na qual o acesso aos serviços de saúde é desbotado como um direito inalienável e passa a operar
como algo passível de compra e venda e, portanto, de precificação.

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A noção de UHC reafirma a substituição das ações coletivas de caráter universalista por políticas
sociais de cunho seletivo e focalizado. Alguns autores16 já caracterizaram a redução da participação
do Estado na oferta de serviços de saúde para a população como um processo de mercadorização ou
financeirização da saúde que, além de aumentar significativamente o número de seguros particulares,
afeta os contornos morais da saúde como direito. Uma vez podendo ser comprada e, portanto,
precificada, a saúde ganha a forma de uma mercadoria e, nos últimos anos, as reformas no sentido
na UHC significaram a atualização do trabalho de moralização da saúde como um bem de consumo.
Em 2017, no Brasil, o movimento global impactou na reformulação da Política Nacional de
Atenção Básica à Saúde17 (PNAB). De forma paradoxal, ao mesmo tempo que milhões de
brasileiros se tornavam dependentes do SUS18 graças à crise econômica enfrentada pelo país, um
novo documento foi aprovado e nele são identificadas medidas que caminham a passos largos no
sentido da segmentação da oferta de serviços de saúde no país. O projeto de revisão da PNAB
define que a cobertura integral do território, bem como a relação ideal entre trabalhadores e
população abrangida, deverá ser cumprida somente em localidades classificadas como vulneráveis
e propõe uma carteira mínima de serviços de acordo com as especificidades locais. Dessa forma,
há uma intenção explícita de relativizar a cobertura da atenção e de que o SUS seja destinado
somente aos pobres e não para todos, em uma “projeção na qual uma parte da população estaria
destinada a compor o mercado de consumo privado e segmentado dos planos de saúde, em
detrimento da universalidade como princípio” (FONSECA e MOROSINI, 2017, p. 2).
Como já pontuado anteriormente, para que a expansão privada tivesse lugar seria necessário
que uma das partes que firmaram o compromisso que deu origem ao SUS recuasse. Nesse caso, ao
longo dos anos, o Estado perdeu sua grandeza como expressão da vontade geral, deixando de operar
a favor da saúde como direito de todos e passando a gerir a oferta de saúde em benefício dos poucos
que gozavam de sua compra e dos poucos que enriqueciam com a sua venda. Nesse processo de
desbotamento do pacto inicial, a sociedade emergiu não mais reunida em solidariedade, mas
segmentada em, de um lado, um grupo de miseráveis necessitados e, de outro, um de clientes.

A pandemia como momento de denúncia e uma possível reafirmação do pacto do SUS

Uma abordagem sustentada pelo pragmatismo é bastante útil para se pensar


sociologicamente a pandemia de Covid-19 a partir do conceito de crise, definido como um
processo de ruptura com determinada ordem social. Nesse caso, o exercício teórico é observar o
compromisso firmado na criação do SUS, bem como os seus ajustes ao longo dos anos, como uma
gramática de ação mobilizada pelos indivíduos e pelo próprio Estado na busca e na oferta por
serviços de saúde. Entendendo que a pandemia instaura no Brasil um ambiente de crise, o
interessante é perceber de que forma surgem rupturas e possibilidades no trabalho de moralização
da saúde nas formas de bem comum que até então sustentavam tal gramática. Ao questionar a

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ordem vigente, a partir da evidência de fatos que explicitam a falência do modelo de provisão de
serviços de saúde adotado, a pandemia emerge igualmente como momento de denúncia.
Da falha pragmática, explicitada no mau funcionamento das coisas, emerge a possibilidade
de um novo julgamento por parte dos indivíduos, com a redefinição da concepção de saúde nos
termos do que efetivamente funciona. Vivemos um momento de (des)esperança que recoloca a
solidariedade e a participação do Estado no centro da resolução dos problemas sociais, o que pode
incrementar o trabalho de moralização da saúde como direito universal e de reconstrução do
Estado como “vontade geral” e gestor epidemiológico. Nesse contexto, a denúncia tem como alvo
a falha da parceria entre Estado e mercado na estruturação da oferta dos serviços de saúde e, dado
o caráter global da pandemia, já é naturalmente construída em generalidade.
No escopo do pragmatismo clássico19, momentos de crise são definidos como momentos nos
quais uma crença, um conjunto de regras para a ação, encontra obstáculos para se manter. E isso
se deve ao fato de que, como um conjunto coerente de proposições sobre a realidade, a crença
perde utilidade diante de novos elementos de uma dada situação ou da metamorfose no
funcionamento e na forma dos antigos. A crise se instaura com o momento de ruptura de uma
crença, antes operada na forma de ação pelos indivíduos. E, dado o desconforto do estado de
incerteza provocado, os impele à mobilização de competências no sentido da definição da nova
situação. Uma crise passa a exigir dos atores o esforço de formulação de uma nova crença ou
ajuste da antiga, o que é feito graças a um processo investigativo (DEWEY, 1960[1938], 1974) que
busca recolocar o conjunto da experiência em um sistema explicativo coerente.
Já na abordagem pragmática da sociologia da crítica20, a crise emerge igualmente como um
momento de ruptura, dessa vez qualificada como momento crítico (BOLTANSKI e THÉVENOT,
1999). Agora, uma forma de bem comum, antes mobilizada como gramática de efetivação da ação
em uma dada situação, passa a ser apontada como injusta pelos atores, que se veem obrigados a falar
sobre o assunto. Ao realizarem suas críticas, eles devem lançar mão de uma competência moral, de
natureza ao mesmo tempo metafísica e pragmática, ao demonstrarem conhecimento sobre as
formas de bem comum envolvidas na disputa e apoiarem essas exposições em generalidade no
conjunto de seres, coisas e dispositivos que se acham envolvidos nas circunstâncias, nas situações
reais em que tem lugar a ação problemática. A pandemia de Covid-19 instaura no Brasil uma
disputa, na forma de controvérsia, na qual está em jogo a redefinição do acordo legítimo que,
como gramática, deverá pautar as ações de oferta e busca por serviços de saúde da população. Em
outras palavras, neste momento, está em ação um trabalho de remoralização da saúde como bem
comum, no qual uma parte da sociedade denuncia os problemas ocasionados pela presença da
lógica do mercado na provisão de serviços de saúde e clama pela consideração da saúde como
“um direito de todos e dever do Estado”, aos moldes do pacto da saúde coletiva firmado na lei de
criação do SUS. Refiro-me a discursos de intelectuais, comunicadores e mesmo anônimos que
ganham visibilidade nas mídias sociais no contexto da pandemia, e cujo conteúdo chama atenção
para a importância do SUS, para as consequências da falta de investimento público no sistema e
para a necessidade de reconstrução de um modelo de proteção social21.

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Trata-se de uma denúncia de injustiça, na qual se aponta que uma determinada gramática de
ação não está sendo justa tendo em vista o caráter da situação. Evidentemente, podemos opor a
esse argumento o fato de que, desde sempre, uma parcela da população realizou críticas
consistentes à mercadorização dos serviços sociais e ao abandono das funções do Estado no que
diz respeito à manutenção dos direitos básicos. Contudo, o momento atual se mostra diferente,
justamente em função da natureza da crise. Temos em tela uma crise sanitária, mas cuja amplitude
sem precedentes coloca em evidência o esgotamento dos diversos tipos de recursos disponíveis da
sociedade e, no caso do brasileiro, a ausência mesmo de qualquer reserva de recursos capaz de
minimizar os impactos da crise ou de dispositivos efetivos de proteção social. O diagnóstico desse
caos coloca imediatamente em destaque a falha dos acordos seguidos até então para a gestão do
país. Em um texto recente sobre as críticas jocosas no contexto da pandemia nesta mesma série
especial, Werneck (2020) mostrou como as expressões diretas de insatisfação com governo
ganham destaque no contexto da pandemia, por meio de piadas com a figura do presidente, que
perde a sua força tanto como representante cívico quanto como gestor eficiente. Em todos os
casos, são críticas que têm como objeto o tratamento presente e local que vem sendo dispensando
à saúde. Dada sua grande proporção, a crise do novo coronavírus alimenta uma crítica social que
se diferencia de todas as anteriores graças a sua adesão em massa e à força das provas que mobiliza.
Em primeiro lugar, as provas mobilizadas na justificação da crítica social no contexto da
pandemia já nascem embebidas em generalidade, elas trazem à tona um descompasso caótico no
funcionamento das coisas que afeta diretamente cada membro da sociedade. Ao mesmo tempo,
as condições para o reparo do desajuste causado pela Covid-19, no mundo pragmático, ligam-se
naturalmente a gramáticas associadas à construção de laços de solidariedade entre os indivíduos
e à intervenção do Estado em setores funcionais da sociedade, como o epidemiológico, o
econômico etc. Nesse cenário, a saúde emerge como direito universal genuíno quando, diante da
iminência do colapso do sistema de saúde, existe uma cobrança direta pela ação tanto da sociedade
quanto do Estado no sentido de não deixar simplesmente as pessoas adoecerem ou morrerem. As
provas que circulam no ambiente da pandemia denunciam que não é mais possível manter a saúde
das populações entregue à iniciativa privada e ao interesse individual. Elas tornam explícitas que
o pacto com o mercado gera o benefício apenas de poucos. E é esse, justamente, o maior confronto
promovido, uma vez que a crise do novo coronavírus afeta e mobiliza igualmente todos.
São exemplares dessas provas os dados circulantes (EXAME, 13/03/2020) que registram a
desproporção de leitos hospitalares entre instituições públicas e privadas, que atendendo apenas
pouco mais de 20% da população contam com mais da metade dos leitos disponíveis; a falha inicial
nas notificações dos casos de Covid-19 na rede privada de saúde; e, especialmente, a baixa adesão
ao isolamento voluntário. Tudo isso tem levado ao fortalecimento das instituições do Estado que,
nesse caso, retoma emergencialmente o papel de principal provedor e gestor dos serviços de saúde,
com a liberação e criação de novos leitos nos hospitais públicos e a construção de hospitais de
campanha; a formulação de uma plataforma que submete a rede privada aos protocolos e
metodologias de notificação do Ministério da Saúde; e a promulgação de decretos de afastamento.

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Já a solidariedade pode ser verificada mais diretamente como regra de ação por meio das expressões
e mensagens circulantes especialmente nas mídias sociais, sintetizadas na forma do “venceremos
essa guerra juntos”, “se cada um fizer a sua parte” ou “o importante é não transmitir”, e que fazem
referência aos imperativos de que é preciso, pelo bem de todos, que todos lavem as suas mãos,
mantenham distância uns dos outros, fiquem em casa e não façam estoque de produtos etc.
A gramática de ação demandada pela pandemia recoloca a saúde como direito universal
no centro das obrigações da sociedade e do Estado. Quando tudo isso acabar, bilhões de reais
em recursos antes nunca investidos terão sido injetados no SUS, milhares de profissionais de
saúde terão sido recrutados pelo sistema e milhares de equipamentos hospitalares (de
respiradores a edifícios) nele terão sido inseridos e pessoas que nunca antes precisaram de
atendimento público terão gozado do direito universal à saúde, ou mesmo, dada a crise
econômica que se instala, dele dependerão. Mas vale lembrar, como pontuou o pragmatista
John Dewey (1998), para que o processo investigativo instaurado em uma crise ganhe
dimensões universais em uma comunidade é necessário que haja comunicação. No mais, a
validade de uma crença se apoia sempre em sua utilidade em lidar com a experiência e é preciso
que as pessoas reconheçam a importância do SUS no enfrentamento da pandemia. Em todos os
casos, está colocado um cenário profícuo para a formulação de um novo pacto.

Notas

1
Refiro-me ao documentário Sicko: SOS saúde, de 2007, do cineasta americano Michael Moore.
2
Obamacare é como ficou conhecida a lei federal americana Patient Protection and Affordable Care Act, promulgada em
2010, que regulamenta a cobrança dos planos de saúde privados e estabelece diretrizes para a expansão da cobertura de
saúde através da contratação de seguros no país.
3
Ver Ferreira e Mendes (2018).
4
Para Talone (2015) uma distopia realizada ocorre na vida social quando, na situação, os atores adotam como gramática
de efetivação da ação a idealização do pior mundo possível. Trata-se do par oposto das utopias identificadas por Boltanski
(1990) em obras clássicas da filosofia política, que surgem como metafísicas morais para a realização da ação no mundo
ocidental moderno.
5
Neste artigo, a categoria de bem comum é extraída do modelo das economias da grandeza (EG), de Boltanski e Thévenot
(2020[1991]). A partir de achados de pesquisas empíricas sintetizados abstratamente por obras clássicas da filosofia
política, os autores identificaram um número limitado de formas de bem comum mobilizadas pelos atores para justificar
seus acordos nas situações ocorridas nas sociedades modernas. Um valor toma a forma de um bem comum na medida
em que pautar ações tendo como referência seus imperativos e constrangimentos é equivalentemente bom para todos
aqueles envolvidos nas situações em que se encontra ativo. Contudo, sob a regência desse valor, imbuído da qualidade
de um princípio de equivalência, os entes de uma situação não se encontram em igualdade absoluta: os grandes são
aqueles que, em suas posições e funcionamentos, mais se assemelham ao ideal postulado, sendo esses também os que
mais desfrutam de seus benefícios; e os pequenos são os que dele mais se distanciam e, portanto, recebem bonança na
medida em que são abarcados pelos grandes (que conquistam, com isso, a legitimidade de sua posição).
6
Referência à terminologia de Jean-Jacques Rousseau (1978[1875]) para designar o acordo entre os indivíduos que dá
origem ao Estado.
7
Ainda no modelo das EG, uma noção de saúde como direito operaria no âmbito de uma cité cívica, que traz como bem
comum formas que expressam a vontade geral e pauta relações de solidariedade entre os seres envolvidos na situação
na qual se encontra ativa.

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Já uma noção de saúde como recurso, no escopo do modelo da EG, operaria no interior de uma cité industrial, que traz
como bem comum formas que expressam eficiência e pauta relações de funcionalidade entre os seres envolvidos na
situação na qual se encontra ativa.
9
Aqui, novamente me inspiro no modelo da EG, que prevê a formação de compromissos entre diferentes cités no caso de
não ser possível chegar a um acordo tendo como referência apenas uma forma de bem comum, esses compromissos são
estabilizados na forma de dispositivos compósitos, que reúnem em um mesmo agenciamento seres de diferentes
mundos. Ademais, os autores pontuam que o funcionamento do Estado moderno está pautado em um compromisso
entre as grandezas cívica e industrial, caracterizando uma cité coletiva (BOLTANSKI e THÉVENOT, 2020[1991]). Dessa forma,
o dispositivo da saúde coletiva carregaria em si uma generalização acerca da noção de saúde tendo como referência esse
compromisso. Cabe ressaltar que o termo “saúde coletiva” não foi alcunhado por mim, mas é uma área de conhecimento
e de atuação multidisciplinar, que tem como objeto a saúde dos indivíduos e das populações e é resultado do trabalho
de construção de profissionais da saúde, intelectuais e militantes, no contexto da Reforma Sanitária Brasileira.
10
Segundo a OMS, os determinantes sociais da saúde dizem respeito às condições de vida e trabalho de um indivíduo,
sejam elas culturais, econômicas, psicológicas etc.
11
Uma noção de saúde como bem de consumo, no escopo do modelo da EG, operaria no interior de uma cité mercantil,
que traz como bem comum formas que expressam o interesse individual pelas coisas e pauta relações de competição e
troca entre os seres envolvidos na situação na qual se encontra ativa.
12
Para o tema da focalização das políticas de saúde ver Rizzotto (2000). Para os dados sobre financiamento e aumento dos
planos privados ver o Mapa Assistencial da Saúde Suplementar (ANS, 2019) e Saldiva e Veras (2018).
13
Disponível (on-line) em https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/justica-e-seguranca/9160-pesquisa-nacional-de-
saude.html?=&t=o-que-e
14
Em trabalho anterior (CORÔA, 2015), apoiada nos trabalhos de Sennet (2006), Linhart (2007) e Boltanski e Chiapello
(2009), investiguei o conjunto de valores e práticas para a gestão do trabalho que surgiu no seio da empresa capitalista a
partir da década de 1980 e discuti sua interface com o trabalho e a educação no SUS.
15
Ver Brasil (1995, 1999).
16
Ver Cordilha e Lavinas (2018) e Ferreira e Mendes (2018).
17
Disponível (on-line) em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html
18
Segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), entre 2016 e 2019, mais de 3 milhões de pessoas
deixaram de pagar os seus planos de saúde. Disponível (on-line) em: https://www.ans.gov.br/perfil-do-setor/dados-gerais
19
Tradição filosófica americana que tem como principais autores Charles Sanders Peirce, William James, John Dewey e
George Herbert Mead.
20
Conjunto de contribuições da sociologia pragmática estabelecida na França a partir do trabalho conjunto de Luc
Boltanski e Laurent Thévenot (2020[1991]) e da consequente fundação do antigo Groupe de Sociologie Politique et
Morale (GSPM) na École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), em Paris, unindo pesquisadores como Michel
Pollak, Nicolas Dodier e Nathalie Heinich, e que ganha destaque com a construção do modelo das economias das
grandezas (EG) pelos dois fundadores e que se qualifica como um modelo de competências dos atores em estabelecer
julgamentos, críticas e justificações na vida social. Para um manifesto dessa corrente, ver Boltanski (2016[1990]).
21
Alguns exemplares dessas expressões são a fala da jornalista Maria Cristina Fernandes no programa Roda Viva exibido
pela TV Cultura em 6 de abril de 2020 (disponível [on-line] em: https://tvcultura.com.br/playlists/46_roda-viva-ultimos-
programas.html), o episódio do programa Greg News intitulado “Estoque”, disponibilizado pela HBO Brasil no YouTube
(disponível [on-line] em: https://www.youtube.com/watch?v=mowAgWSpWY8), a fala da professora Ligia Bahia, do
Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ, sobre a importância do SUS para o enfrentamento da crise do
coronavírus, transmitida pelo podcast Canal IE – UFRJ (disponível [on-line] em:
https://open.spotify.com/episode/1vjRrMREFQiK1pbywexjqf?si=vcXF9EmJRxag_95_THHBag) e as publicações que
viralizaram nas redes sociais com a frase “I love SUS” e “Defenda o SUS”.

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Brasil, 13 de março de 2020. Disponível (on-line) em: https://exame.abril.com.br/brasil/mais-
procurado-sus-tem-apenas-44-dos-leitos-de-uti-do-pais

ROBERTA CORÔA (roberta.coroa@gmail.com) é


doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil).
É mestre pelo PPGSA/UFRJ e bacharel em ciências
sociais pela UFRJ.

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