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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE NACIONAL DE DIREITO

JÚLIA ALMEIDA DE AZEVEDO

O DIREITO COMO PERPETUADOR DE DESIGUALDADES SOCIAIS NA


SOCIEDADE CAPITALISTA

Rio de Janeiro
2023
JÚLIA ALMEIDA DE AZEVEDO - DRE: 123500737

O DIREITO COMO PERPETUADOR DE DESIGUALDADES SOCIAIS NA


SOCIEDADE CAPITALISTA

Trabalho avaliativo apresentado à disciplina de


Métodos e Técnicas da Pesquisa Sócio Jurídica
da Universidade Federal do Rio de Janeiro sob
a orientação da professora Fernanda Cavalcanti
Costa.

Rio de Janeiro
2023
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 3
2 A NECROPOLÍTICA E O DIREITO............................................................................. 5
3 O DIREITO E A CEGUEIRA DE COR ......................................................................... 6
4 METODOLOGIA ............................................................................................................. 7
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 8
REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 9
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1 INTRODUÇÃO

A ordem das coisas nem sempre foi da forma que conhecemos, mas caminharam
historicamente até atingirem o grau em que se encontram. É claro, que herdamos fatores
sociais desse processo evolutivo, principalmente se analisarmos sob o ponto de vista de
classes. Ainda temos presentes as vontades de classes dominantes que impuseram suas
condições durante esta caminhada.

Sob essa perspectiva, a necessidade de uma organização social, que regulasse os


domínios e as desigualdades que sempre estiveram presentes na sociedade e se acentuou com
o advento da produção num viés econômico, para além da ideia de troca. Quando um vínculo
entre os indivíduos foi cristalizado em torno do produto e do capital, gerando uma cadeia de
consequências, como a coisificação das relações, isto é, a objetificação do homem e a
diminuição de sua personalidade à uma mera ponte para alcançar o objetivo almejado e o
evidente crescimento da divisão de classes, da exploração e das desigualdades sociais.

Em seu livro Teoria Geral do Direito e Marxismo, Pachukanis faz menção ao Direito
como um legitimador das classes burguesas, que necessitam justamente desses poderes para
a vigência das desigualdades que os privilegia:
O estado jurídico é uma miragem que muito convém a burguesia, uma vez que substitui
a ideologia religiosa em decomposição e esconde aos olhos das massas o domínio da
burguesia. A essência do poder do estado como uma violência organizada de uma
classe da sociedade sobre as outras (PACHUKANIS, 1988).

Nessa conjuntura, Marx analisa o direito como um mecanismo protetor e perpetuador


de uma sociedade capitalista, regulando e contribuindo para a ascensão dessa: “De cada vez que
o desenvolvimento da indústria e do comércio criou novas formas de troca, por exemplo,
companhias de seguro e outras, o direito viu-se regularmente obrigado a integrá-las nos modos
de aquisição da propriedade” (Marx; Engels, 1999, p. 59). Essa é sem dúvida, uma herança da
dominação de um grupo sobre o outro, que está presente desde os primórdios de nossa
sociedade e é hoje solidificada por instituições de direito.

E como, afinal, o direito e as instituições estatais perpetuam essas desigualdades? O


direito como agente escolhe quem será protegido por seu regimento ao aplicar de forma desigual
as leis. O tratamento judicial não atinge da mesma forma uma pessoa cuja vida possui uma
“relevância” social dentro dessa engrenagem capitalista (que leva em consideração a classe
social e econômica, a raça, o prestígio social decorrente do emprego, o gênero, e principalmente
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a raça), e uma pessoa cuja vida não possui importância para esse ordenamento, a não ser como
mero interesse de apropriação como um maquinário para alcançar o lucro a partir da exploração.
Além disso, o direito contribui para as desigualdades sociais ao se abster de políticas
sociais que realmente visem a diminuição dessas disparidades e ao não garantir efetivamente os
direitos sociais, que apesar de serem estabelecidos por lei não passam de declarações meramente
formais, que não atingem a totalidade dos indivíduos. Seguindo consequentemente o histórico
de desequilíbrio e excluindo as classes que desde sempre foram excluídas, e continuarão sendo
enquanto for de interesse de um grupo essa exclusão.

Desprotegidas estatalmente, a exploração dessas classes se torna mais fácil. A


exposição desses grupos à pobreza, à fome e à outros cenários que ferem a dignidade humana
prevista formalmente, os levam à submissão à condições de trabalho degradantes, obviamente
por salários que não os sustentam nem os dá a perspectiva de ascensão social, submetendo
também seus ascendentes a esse ciclo de exclusão, e proporcionando às classes
dominantes o enriquecimento às suas custas.

A renúncia de direitos sociais que deveriam ser garantidos materialmente para a


sociedade faz parte da legitimação dessa estrutura, deixa a sociedade exposta às
desigualdades e à exploração consciente, segundo Fontes (2018, p. 88), é a: “imposição -
mais ou menos violenta - de uma lógica da vida social pautada na supressão de meios de
existência ao lado da mercantilização crescente dos elementos necessários à vida [...]”.

Dessa forma, é inegável que o Direito é fundamental para a perduração das


desigualdades que contribuem para a concentração de riquezas, produzidas às custas de uma
classe explorada, na mão de poucos. A deterioração de sistemas públicos responsáveis por
garantir os direitos previstos na jurisdição, como a saúde e a educação básica, juntamente
com a ausência de políticas públicas refletem que não é de interesse jurídico e estatal o fim
da estrutura social da forma que é. O direito e as classes dominantes se beneficiam das
disparidades sociais, não sendo benéfico para essas alterarem o rumo da realidade.

A extinção ou redução de direitos e de políticas sociais pela via legal contribui, na


verdade, para ampliar processos de mercantilização, uma vez que reduz e reorienta
a utilização do fundo público. A privação de direitos como contraface da
extinção/redução de direitos termina alimentando a acumulação, reduz o custo com a
proteção social e disponibiliza mais força de trabalho para o capital. As estratégias de
redistribuição por transferências monetárias terminam sendo a política central de
garantia de acesso a um mínimo rendimento, cada vez mais reduzido, para assegurar
o consumo e desse modo renovar o próprio processo de reprodução ampliada da
superpopulação relativa (BOSCHETTI, 2018, p. 4).
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2 A NECROPOLÍTICA E O DIREITO

Assim fica concluído que certas pessoas nascem com o privilégio de serem protegidas
estatalmente, fato que é uma herança histórica, e que outras nascem sem esse privilégio. O “não
privilégio” daquele que é visto como “o outro”. Nesse viés, o poder de determinar quem vai
sobreviver e quem vai morrer é nominado por Achille Mbembe como Necropolítica.

A expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade


de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver
constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Exercitar a soberania
é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e
manifestação de poder (MBEMBE, 2016, p. 123).

A necropolítica fica muito clara, principalmente em realidades como a brasileira, na qual


as desigualdades se fazem extremamente presentes, juntamente com as instituições basilares
que as legitimam. Quando observamos que o Estado, a polícia e o direito possuem um perfil
específico de pessoas que devem morrem, que são prejudicadas por um sistema carcerário
degradante, que são assassinadas deliberadamente e não criteriosamente por operações policiais
chacinarias ou por “engano” durante situações rotineiras, a necropolítica se concretiza
materialmente. Essa atinge, de maneira muito explícita, os grupos específicos mencionados
anteriormente, excluídos estrategicamente da esfera social.
A construção de um estereótipo para esses grupos é também perpetuada, por exemplo,
como a relação indevida de que todo sujeito preto é bandido e de que “bandido bom é bandido
morto”. Ambas as falsas noções de realidade, que são perpetuadas por agentes que aplicam o
direito, apenas contribuem para a exclusão ainda maior desses indivíduos e para uma concepção
de poder de tirar a vida de alguém, como demonstra a seguinte pesquisa realizada pelo
Datafolha e publicada no site JusBrasil:

Uma pesquisa divulgada nesta quarta-feira (2/11) pelo Fórum Brasileiro de Segurança
Pública aponta que cerca de 60% dos brasileiros concordam com a frase “bandido bom
é bandido morto”. Os que discordam da afirmação representam 34% dos
entrevistados, e 6% disseram não ter opinião formada (JUSBRASIL, 2016).

Assim, o direito ao não adotar medidas que vão contra esse cenário contribui para o
poder de escolha de quem deve morrer, para a eliminação dos excluídos considerados sem valor.
O maior exemplo dessa realidade são as operações policiais que resultam em mortes de
inocentes, que claramente não ferem ou afetam o estado ou o direito. A morte de Agatha Félix
é um exemplo claro da aplicação da necropolítica, criança negra de 8 anos que cumpria o perfil
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de pessoas que estão submetidos à necropolítica das ações policiais. Segundo matéria publicada
pelo BBC NEWS Brasil “A menina de oito anos foi atingida por tiros nas costas enquanto estava
dentro de uma kombi, no Complexo do Alemão, conjunto de favelas na zona norte do Rio”.

De acordo com denúncia do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, o policial


militar Rodrigo José de Matos Soares estava em serviço quando atirou de fuzil contra
duas pessoas que estavam em uma moto por achar que se tratavam de integrantes do
tráfico de drogas local (BBC News Brasil, 2020).

Se confere a necropolítica visto que segue um padrão, pessoas negras e periféricas


inocentes são executadas constantemente, e é alegado posteriormente que a morte se deu por
“acidente” ou por “engano”, mas isso apenas revela o poder de escolha de quem morre e da
visão estereotipada que esses profissionais do Estado carregam. Assim, a manutenção das
desigualdades e da exclusão social, legitimada e perpetuada planejadamente pelo direito que
protege e representa as classes dominantes, se relaciona com a necropolítica. Submete esses
grupos à condição de “mortos-vivos” com a criação de locais de terror proporcionados pela
invasão de forças armadas e do uso deliberado de armas de fogo, com a sujeição da vida de
indivíduos à uma morte pré-determinada antes mesmo do nascimento, definida por aqueles que
detêm o poder a partir de seus interesses.

3 O DIREITO E A CEGUEIRA DE COR

Color blindness ou “cegueira da cor” é o conceito que se refere à ideia de neutralidade,


da invisibilidade racial dentro da sociedade e das instituições estatais. A crítica contra essa
corrente de pensamento se dá porque através do argumento de neutralidade racial o Direito
ignora as desigualdades raciais que se mostram evidentes. É a divulgação da falsa ideia de
democracia racial. Não existe uma neutralidade racial, o racismo está e sempre esteve presente,
e o direito escolhe legitima-lo ao ignora-lo e ao não julga-lo devidamente.

O daltonismo racial possui como composição da sua concepção o fato de que todos
são vistos igualmente. Todos são percebidos dentro da sociedade, entretanto, o fato de
todos serem vistos igualmente impõe um desdobramento perigoso: a ignorância quanto
ao conceito de raça, dentro de uma sociedade solidamente racista (Alexander, 2017).

Através da apropriação desse conceito, o direito provoca a manutenção das


desigualdades raciais naturalizando casos de racismo, e só julgando aqueles extremamente
reprováveis socialmente, que são poucos, dado a forte presença do racismo na ordem social.
Fica evidente, portanto, que o direito encobre o racismo e não possui pretensão de ir
contra à realidade de que pessoas pretas estão em constante perigo de morte por forças estatais
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tomadas pelo racismo e pelas desigualdades sociais presentes. Essa legitimação do racismo
pelas esferas jurídicas foi mencionada pela escritora comunista Ângela Davis, em seu livro
“Mulheres, raça e classe”, no qual a mesma contesta as ações descomedidas cometidas por
classes dominantes e que são protegidas pelo direito:

Parece que homens da classe capitalista e seus parceiros de classe média são imunes
aos processos judiciais porque cometem suas agressões sexuais com a mesma
autoridade incontestada que legitima suas agressões diárias contra o trabalho e a
dignidade de trabalhadoras e trabalhadores (DAVIS, 1981, p. 201).

Assim, fica clara a abordagem de neutralidade racial por parte do Estado quando não
julgam casos, que claramente são motivados pelo racismo, como fruto de preconceitos raciais
enraizados. Casos como o de Fernando Silva dos Santos, homem negro acusado de roubar em
loja, são exemplos disso. A vítima desse caso tinha acabado de comprar uma mochila na loja e
foi julgado como criminoso por segurança, como o mesmo explica em entrevista publicada pelo
G1:
“Eu tinha comprado a mochila aqui dentro, e ele [um segurança] dizendo que eu tinha
roubado um par de tênis aqui dentro. Quando eles abriram, que não viram nada, que
não tinham nada, só meu par de tênis e as minhas roupas, eles ficaram desesperados
porque viram que eu não tinha roubado nada lá dentro. E eu falei: ‘É porque eu sou
preto?’” (G1, 2021).

Segundo a notícia do portal de notícias do globo, o boletim emitido na Delegacia para o


acontecimento foi o de constrangimento ilegal. A análise desses casos nos permite evidenciar
que apropriado do conceito de cegueira de cor, o direito escolhe fazer “vista grossa” e ignorar
o racismo que fundamenta essas condutas, o que apenas contribui para a permanência dessas
atitudes, visto que há a consciência de impunidade em torno das mesmas.

4 METODOLOGIA

A respeito das técnicas e métodos da pesquisa, foi utilizada a revisão bibliográfica, um


processo de levantamento, análise e descrição de publicações científicas de uma determinada
área do conhecimento. Foram utilizados documentos de caráter secundária para fundamentar e
auxiliar a pesquisa.
A pesquisa orientou-se essencialmente pela abordagem do jurista Gustavo Siqueira
(2020), que em seu livro, Pequeno Manual de Metodologia da Pesquisa Jurídica, faz menção à
importância da análise de aspectos menos explícitos dentro de um caso específico, para que se
possa ocorrer a compreensão dos fenômenos em tordo do mesmo. Segundo Gustavo Siqueira
(2020), o estudante de direito deve estar atento aos diversos fenômenos que, muitas vezes, não
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são percebidos ou descritos por processos oficiais.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após essa pesquisa, é possível entender um pouco mais acerca da estrutura social e como
o direito, na sua face conservadora e burguesa, possui um papel fulcral dentro dessa
engrenagem. Engrenagem presente desde o início de nossa sociedade, em que sempre houve a
dominação de um grupo sobre o outro. Fica claro também que o enriquecimento de uma classe
e o empobrecimento de outra são fatos que estão intrinsicamente relacionados, uma vez que as
péssimas condições de vida proporcionadas estrategicamente pelo Estado para certos grupos
facilitam uma exploração que gerará o enriquecimentos dos interessados envolvidos.
Ademais, ficou claro após a análise feita os mecanismos utilizados pelo direito, como a
neutralidade racial e a necropolítica, que legitimam e perpetuam as disparidades sociais que,
como foi dito anteriormente, são benéficas para essas classes dominantes que se apoderam
dessas desigualdades para gerar proveito próprio, não sendo portanto interessante mudar o atual
cenário.
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REFERÊNCIAS

"Bandido bom é bandido morto", dizem 60% dos brasileiros. Jusbrasil, 2016. Disponível em:
https://www.jusbrasil.com.br/noticias/bandido-bom-e-bandidomorto-dizem-60-dos-
brasileiros/401711699

MBEMBE, Achille. Necropolítica, Arte & Ensaios – Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, n. 32,


dezembro/2016, p. 123.

ALEXANDER, Michelle. A Nova Segregação: racismo e encarceramento em massa. São


Paulo: Boitempo, 2017.

ASSIS, Marselha Silvério, Direito e estado sob a óptica de Karl Marx. Revista Sociologia
Jurídica. - ISSN: 1809-2721. Disponível em:

BBC News Brasil, 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-52731882

BOSCHETTI, I., Supressão de direitos no capitalismo: uma forma contemporânea de


expropriação? In: BOSCHETTI, I. (org.). Expropriação e direitos no capitalismo São Paulo:
Cortez, 2018.

Caso João Pedro: quatro crianças foram mortas em operações policiais no Rio no último ano.

FONTES, V. A transformação dos meios de existência em capital - expropriações, mercado


e propriedade. In: BOSCHETTI, Ivanete (org.). Expropriação e direitos no capitalismo. São
Paulo: Cortez, 2018. p. 17-61

G1, 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/11/21/homem-


denuncia-racismo-ao-ser-acusado-de-roubo-emloja-da-baixada-fluminense.ghtml

Homem denuncia racismo ao ser acusado de roubo em loja da Baixada Fluminense.

http://www.sociologiajuridica.net.br/numero10/234-assis-marselha-silverio-dedireitoeestado-
sob-a-optica-de-karl-marx Acesso em 09 de Junho de 2015.

MARX, Karl Heinrich (1818-1883); ENGELS, Friedrich (1820-1895). A ideologia alemã; Ed.
Ridendo Castigat Mares, 1999.

PACHUKANIS, E. B., Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988.

SIQUEIRA, Gustavo. Pequeno Manual de Metodologia da Pesquisa Jurídica: Ou Roteiro


de Pesquisa Para Estudantes de Direito. Belo Horizonte: Instituto pazes, 2021.

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