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DIREITO CONSTITUCIONAL

Aula 17
Direito à saúde

Professor
Luís Henrique Linhares Zouein

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Introdução:

Interessante conceito de direito à saúde eu extraí da obra de André de


Carvalho Ramos que, inclusive, é banca do TRF-3. Para ele, “O direito à saúde assegura
a promoção do bem-estar físico, mental e social de um indivíduo, impondo ao Estado a
oferta de serviços públicos a todos para prevenir ou eliminar doenças e outros gravames.
O direito à saúde possui uma faceta individual e difusa, pois há o direito difuso de todos
de viver em um ambiente sadio, sem o risco de epidemias ou outros malefícios à saúde.”
Mesmo o leitor mais distraído já percebeu a amplitude do conceito do direito
à saúde. Quero fazer 3 principais destaques que são extraídos desse trecho do conceito
que eu acabei de mencionar. O primeiro deles demonstra que o direito à saúde não está
associado apenas a fatores biológicos: saúde tem uma dimensão biopsicossocial, porque
pressupõe bem estar físico, mental e social. Segundo destaque: o direito à saúde não
pressupõe apenas um tratamento quando há uma patologia, mas também a prevenção a
doenças. E o terceiro destaque é que o direito à saúde é um direito individual, mas também
é um direito da coletividade, tendo também um caráter difuso.

Direito à saúde como pressuposto do direito à vida:


O direito à saúde é um direito fundamental, autônomo, em espécie, ora
classificado de segunda geração, ora como um direito positivo e, portanto, prestacional.
Enfim, um direito social. Mas não há a menor dúvida de que o direito à saúde é um
pressuposto para o direito à vida. Aliás, em questões discursivas que pedem judicialização
do direito à saúde, esse é mais um importante recurso argumentativo, a tal ponto que
alguns autores chegam a falar que o direito à saúde é tão pressuposto e indissociável do
direito à vida que, ainda que ele não estivesse expressamente previsto na Constituição,
poderia ser exigido em face do Estado, justamente porque inserido dentro, também, do
direito à vida.

Fundamento constitucional:
O direito à saúde deve ser tido como um direito fundamental autônomo, que
encontra fundamentos constitucionais no art. 6º, que traz os direitos sociais em espécie,
menciona em seu rol (não exaustivo) o direito à saúde como um importante direito

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fundamental e é melhor regulamentado a partir do art. 196 da Constituição. Então, em
questões discursivas tem que mencionar o art. 196.
Do ponto de vista legal, a lei mais importante é a lei 8080, a Lei do SUS.
Alguns editais vêm trazendo o direito à saúde como matéria autônoma. Caso essa seja a
realidade do seu edital, a leitura da Lei 8080 é obrigatória. Em outros casos, ela é
recomendável.

Fundamento convencional:
Mas o direito à saúde não está apenas no direito interno. Também está
positivado no direito internacional. No sistema interamericano, o principal dispositivo
convencional que envolve o direito à saúde é o art. 10 do Protocolo de San Salvador:
1. Toda pessoa tem direito à saúde, entendida como o gozo do
mais alto nível de bem-estar físico, mental e social.
2. A fim de tornar efetivo o direito à saúde, os Estados Partes
comprometem-se a reconhecer a saúde como bem público e,
especialmente, a adotar as seguintes medidas para garantir este
direito:
a. Atendimento primário de saúde, entendendo-se como tal a
assistência médica essencial colocada ao alcance de todas as
pessoas e famílias da comunidade;
b. Extensão dos benefícios dos serviços de saúde a todas as
pessoas sujeitas à jurisdição do Estado;
c. Total imunização contra as principais doenças infecciosas;
d. Prevenção e tratamento das doenças endêmicas,
profissionais e de outra natureza;
e. Educação da população sobre prevenção e tratamento dos
problemas da saúde; e
f. Satisfação das necessidades de saúde dos grupos de mais
alto risco e que, por sua situação de pobreza, sejam mais
vulneráveis.

Caso Poblete Viltes vs. Chile:

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Por falar em sistema interamericano, o precedente da Corte IDH mais
importante sobre o direito à saúde é o caso Poblete Viltes vs. Chile. O Estado chileno foi
condenado em 2018 por violar o direito à saúde de uma pessoa idosa. Até então havia
dúvida e divergência sobre a aplicabilidade direta e imediata do direito à saúde no sistema
interamericano de direito humanos. Isso porque a CADH, em seu art. 26, fala em
implementação progressiva desses direitos. Desde o caso Poblete Viltes a Corte IDH vem
reconhecendo que é possível exigir, ao menos, prestações mínimas com relação ao direito
à saúde e condenar os Estados signatários em caso de violação deste mínimo, que
independe de eventual regulamentação progressiva.

Dimensões subjetiva e objetiva do direito à saúde:


O direito à saúde, assim como qualquer direito fundamental, tem uma
dimensão subjetiva e uma dimensão objetiva. Como dimensão objetiva, numa perspectiva
preponderantemente comunitária, o direito fundamental é tido como um valor em si, a ser
promovido e perseguido pela sociedade civil e pelo Estado. Já vimos a dimensão objetiva,
mas também não é demais lembrar que o direito à saúde também tem uma dimensão
subjetiva, numa perspectiva preponderantemente do indivíduo, em que o direito à saúde
é tido como um direito público subjetivo e em caso de violação pode ser exigido
judicialmente, diante de um ordenamento jurídico que consagra a inafastabilidade da
jurisdição.

Facetas positiva e negativa do direito à saúde:


Assim como todo e qualquer direito fundamental, o direito à saúde tem uma
faceta positiva, e essa é a mais conhecida, que é a exigência de prestações positivas por
parte do Estado: construir um hospital, fornecer medicamentos.
Mas o direito à saúde também tem uma faceta negativa: exige um não fazer
por parte do Estado. O Estado brasileiro, por exemplo, ao fornecer cloroquina para tratar
COVID sem nenhum embasamento científico, contra a segurança ou a efetividade, viola
a faceta negativa do direito à saúde, quando ele deveria se abster de fazer em dissonância
com a ciência.

1. Vacinação forçada vs. vacinação compulsória:

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Dentro desse contexto de facetas, de abstenção e facetas prestacionais, trago
as lições, novamente, de André de Carvalho Ramos. Para o autor:
“Do ponto de vista da faceta de abstenção, há o direito individual
de não ter sua saúde colocada em risco, bem como há o direito de
não ser obrigado – em geral – a receber um determinado
tratamento. Assim, a pessoa tem o direito à autodeterminação
sanitária, que consiste na faculdade de aceitar, recusar ou
interromper voluntariamente tratamentos médicos. Esse direito
exige que seja dada ao indivíduo toda a informação necessária,
para que a recusa ou o consentimento seja livre e esclarecido.
Excepcionalmente, o direito de recusa de tratamento pode ser
superado, em uma ponderação de direitos, com o direito à saúde
de outros, como se vê em casos de epidemias. Do ponto de vista
prestacional, o direito à saúde habilita a pessoa a exigir um
tratamento adequado por parte do Estado, podendo, inclusive,
pleitear tal serviço de saúde judicialmente.”1

Essa passagem da obra de André de Carvalho Ramos é da edição de 2020,


publicada em janeiro de 2020, portanto, anterior à pandemia. Mesmo antes da pandemia,
todos já defendiam a possibilidade, por exemplo, de vacinação compulsória, porque o
tema transborda o direito à saúde ou autonomia dos indivíduos em face de toda a
coletividade. Isso porque a vacinação, para que atinja seus índices de eficiência,
pressupõe que toda, ou pelo menos considerável parcela da população seja, igualmente,
vacinada.
Por isso, o STF, acertadamente, no informativo 1003, estabeleceu uma
distinção entre vacinação forçada e vacinação compulsória. Entendeu o Supremo
Tribunal Federal que a vacinação forçada é inconstitucional. A vacinação forçada seria
aquela por meio da força. Conservadores parecem acreditar que enfermeiros vão invadir
a casa das pessoas, amarrar elas na cadeira e vacinar a força. Evidentemente isso seria
inconstitucional e jamais foi defendido. Isso seria vacinação forçada. O que o

1
RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 890.

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ordenamento jurídico brasileiro há muito permite, que foi reforçado pelo STF é a
vacinação compulsória.
A vacinação compulsória consiste na vacinação obrigatória. Caso o indivíduo
não se vacine ele pode receber sanções. Ou ele pode ser estimulado a se vacinar por meio
de medidas coercitivas indiretas. Por exemplo, se o indivíduo não se vacinar pode ser,
eventualmente, multado. Ou se ele não se vacinar pode ser proibido de frequentar
determinados locais. A gente tem todos os debates sobre passaporte vacinal que tem sido
entendido como constitucional pelo poder judiciário nas mais diversas instâncias.
Vacinação compulsória não se confunde com vacinação forçada e a vacinação
compulsória é legítima e constitucional.
E mais, em outro julgamento também publicado no informativo 1003, o STF
entendeu que é ilegítima a recusa dos pais à vacinação compulsória do filho menor, por
motivo de convicção filosófica. O pai pode deixar de se vacinar: não vai poder frequentar
determinados locais, por exemplo; pode ser demitido por justa causa. Mas isso é um
problema dele, pelo menos a princípio. Agora, o filho não pode deixar de ser vacinado
porque o pai, em pleno 2022, é antivacina.

2. Aspectos teóricos e práticos sobre a judicialização do direito à saúde:

Visto isso, podemos avançar para o que efetivamente cai em todas as etapas
do certame de todas as carreiras: aspectos teóricos e práticos sobre a judicialização do
direito à saúde. Quando a gente fala em judicialização do direito à saúde, ainda mais a
judicialização individual, geralmente a gente pensa na Defensoria Pública ajuizando uma
demanda em favor de João ou de Maria e de um magistrado decidindo. Mas, é importante
destacar que o Ministério Público também tem legitimidade ativa para ajuizar uma ação
individual em favor de indivíduo certo e determinado, exigindo prestações de direito à
saúde: um medicamento, uma cirurgia, um tratamento. Isso porque se trata de um direito
fundamental, mais especificamente de um direito individual indisponível. Está tanto na
Constituição, quanto na Lei Orgânica do Ministério Público, Lei 8.625, a possibilidade
de atuar em favor de beneficiários individualizados no caso de direito individual
indisponível. Portanto, o MP também tem essa legitimidade ativa.

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Necessidade de prévio requerimento e exaurimento das vias administrativas?
Imaginem que um indivíduo te procura no seu gabinete. Maria tem um laudo
médico circunstanciado e ela precisa de um medicamento, essencial para sua vida digna,
ou uma cirurgia. Vocês, na qualidade de promotores de justiça ou de defensores públicos,
o que fariam? É preciso lembrar que a judicialização dificilmente será a primeira opção.
Aliás, prevalece na doutrina e na jurisprudência que, nesse caso, a judicialização como
primeira opção implica em ausência de condição de ação, mais especificamente, de
interesse de agir, porque não houve negativa administrativa ou extrajudicial. Por isso, os
senhores, primeiro, devem oficiar a Secretaria de Saúde, do Município, do Estado ou
mesmo da União, requerendo aquele tratamento, medicamento, cirurgia. Em havendo
negativa, surge o interesse de agir como condição da ação, para judicializar aquela
demanda envolvendo direito à saúde. Portanto, sobretudo em questões discursivas,
deixem claro pela primazia da solução extrajudicial da controvérsia.
Mas, claro, que há exceção, que se dá, sobretudo, em casos de urgência. Se o
enunciado te dá um contexto que a questão é de vida ou morte e que o indivíduo precisa
agora, vocês não vão expedir ofício à Secretaria para em 5 dias a Secretaria negar e depois
judicializar. Se você está num plantão de domingo, você vai judicializar de pronto, correr
no juiz, despachar, ligar para o oficial de justiça e tentar implementar o quanto antes
aquela decisão judicial. A negativa pode ser suprimida em caso de urgência, presente no
caso o interesse de agir.

Responsabilidade solidária e impossibilidade de chamamento a processo:


Judicializando a questão, em face de quem deve ser judicializada a demanda?
Prevalece com tranquilidade na jurisprudência, tanto do STF quanto do STJ, a
solidariedade dos entes políticos. Se extrai do art. 23 da Constituição a competência
comum da União, do DF, dos Estados e dos Municípios para prestar os serviços
envolvendo direito à saúde. Por isso, ao judicializar a questão, é possível processar todos
os entes políticos, isolada ou conjuntamente. Se os senhores estiverem na esfera estadual,
devem colocar, em regra, no polo passivo da demanda, Município e o Estado. Mas vai ser
muito comum que ou o Município ou o Estado chamem ao processo a União. O CPC traz
um instituto de intervenção de terceiros que é o chamamento ao processo, justamente em
casos que há uma obrigação solidária, como estamos no âmbito do direito à saúde. Mas

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mesmo os tribunais superiores entendem que o chamamento ao processo, nesse casso, é
medida meramente protelatória e, por isso, não admissível. Comumente, Municípios e
Estados chamam ao processo a União, única e exclusivamente, para deslocar a
competência para a Justiça Federal e, com isso, ganhar tempo, o que, em regra, não é
admitido. Veremos que tem algumas questões importantes envolvendo a necessidade da
União no polo passivo da demanda. Mas essa é a regra geral.
Todos aqueles debates na nossa aula de teoria geral dos direitos sociais devem
ser aqui aplicados. Debates sobre uma violação ou não da separação de poderes, o fato de
serem ou não, normas meramente programáticas, o custo dos direitos. Todo aquele
arcabouço teórico e argumentativo trabalhado na aula de teoria geral dos direitos sociais
deve ser aqui trazido.

Medicamentos de alto custo:


Mas no âmbito do direito à saúde, chamo atenção a questão dos
medicamentos de alto custo. Temos aqui o debate sempre entre o mínimo existencial e a
reserva do possível, como teremos também no âmbito do direito à educação.
Evidentemente limitações orçamentárias da Fazenda Pública não devem ser
desconsideradas, desde que objetivamente demonstradas. Mas, limitações orçamentárias,
a objeção da reserva do possível, não devem prevalecer quando diante do mínimo
existencial, um núcleo instransponível de dignidade, em que não é possível alegar a
ausência de recursos financeiros.
Esse debate se torna mais intenso quando falamos de medicamentos de alto
custo. Existem medicamentos, cirurgias, tratamentos ou o conjunto dos três, que custam
milhões e milhões de reais, sobretudo quando estamos diante de doenças raras ou
ultrarraras. O cidadão pode exigir um tratamento que custa 10 milhões de reais em face
da Fazenda Pública? Caso sim, pode exigir em face de quaisquer dos entes políticos? Há
um movimento jurisprudencial carente de melhor definição que parece isentar o
Município em caso de medicamentos de alto custo. Mas, mesmo o conceito de
medicamentos de alto custo também é carente de melhor definição. Em provas de
Defensoria Pública é preciso sempre defender a possibilidade de judicialização do direito
à saúde, ainda que de medicamentos de alto custo. Se os senhores estiverem em provas
de magistratura, saibam qual é a posição do seu examinador. A depender do caso

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concreto, pode-se exigir que a União seja colocada no polo passivo da demanda, ou ainda
reconhecer a possibilidade da objeção da reserva do possível.

Direito ao transporte como pressuposto para o exercício do direito à saúde:


Conforme já vimos, o direito à saúde tem uma dimensão biopsicossocial e
zonas e interseção com outros direitos fundamentais. Aliás, é preciso lembrar da
característica da unidade, indivisibilidade, e interdependência dos direitos fundamentais.
Atuei durante muito tempo em órgão com atribuição fazendária, comarca de
Itaperuna. Comumente, judicializava a questão do direito à saúde, que era a maior parte
dos processos. Eu colocava o Município de Itaperuna e o Estado do Rio de Janeiro no
polo passivo da demanda. Eventualmente, no curso do processo, o Estado alegava que
aquele tratamento era fornecido na Capital e até agendava a consulta para o assistido. Um
indivíduo hipossuficiente, tanto é que atendido pela Defensoria Pública, muitas vezes
idoso, em tempos de pandemia. O Estado fornecia o tratamento na Capital, mas não o
deslocamento, que era dificultoso e custoso para o indivíduo. Aí, eu exigia que a Fazenda
Pública, seja o Município, seja o Estado, fornecesse transporte como pressuposto para o
exercício do direito à saúde ou, se não, que fornecesse tratamento em localidade mais
próximas e os tribunais vêm reconhecendo que o direito ao transporte, eventualmente, é
pressuposto e, por isso, inserido no direito à saúde. É possível exigir os custos com o
deslocamento ou o fornecimento do próprio descolamento. Mas não apenas. É possível
exigir acessórios ou complementos ao tratamento ou mesmo aos medicamentos. Porque
o conceito de direito à saúde é ampliado e tem uma dimensão biopsicossocial, é possível
judicializar o direito à saúde e exigir na mesma demanda fraldas, leites especiais, quando
esses acessórios são conexos à patologia que levou à judicialização do processo. O TJRJ,
inclusive, tem uma súmula expressa nesse sentido.

Possibilidade de requerimento na rede privada:


Mas, imaginem, que judicializada a questão, não há a prestação do serviço no
SUS na localidade, ou ainda a decisão judicial é sistematicamente descumprida e aquele
medicamento/tratamento/cirurgia não é fornecido pelo poder público. É sempre possível
um pedido subsidiário ou mesmo incidental de que aquele tratamento, medicamento ou
cirurgia seja custeado pela Fazenda Pública na iniciativa privada. Na doutrina, por

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exemplo Dirley da Cunha Júnior, e na jurisprudência do STF, recentemente, o
informativo 1032. Geralmente, na prática, a parte requer constrição patrimonial, o
bloqueio de valores nas contas da Fazenda Pública, do Município, do Estado; é expedido
mandado de pagamento pelo Cartório ou aqueles valores são depositados na conta da
parte, que vai custear o tratamento, o medicamento ou a cirurgia e depois deve prestar
contas no processo.
Isso é perfeitamente possível e admitido pela jurisprudência, bem como pela
doutrina. Portanto, em questões discursiva e em provas orais, em peças, não se esqueçam
do pedido subsidiário de custeio de tratamento, medicamento ou cirurgia na iniciativa
privada.

3. Determinação pelo Poder Judiciário de fornecimento de medicamentos


não registrados pela ANVISA (STF):

Para que o medicamento seja vendido por uma farmácia ou mesmo fornecido
no SUS ele precisa de registro na ANVISA. A questão do registro na ANVISA foi muito
debatida nesse momento com a importação das vacinas e a ANVISA foi colocada como
uma protagonista nesse processo de vacinação em território brasileiro. É possível que o
poder judiciário determine que a Fazenda Pública forneça um medicamento não
registrado na ANVISA? No informativo 941, o STF fixou a primeira camada: o Estado
não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais, aqueles medicamentos
que ainda não têm a sua segurança ou efetividade atestados pela comunidade científica.
Mas, medicamento experimental não se confunde com medicamento sem
registro na ANVISA. É possível que o medicamento já esteja consagrado pela
comunidade científica, mas a nossa autarquia federal com atribuição ainda não registrou
o medicamento. Nesses casos, em regra, a Fazenda Pública não pode ser obrigada a
fornecer o medicamento sem registro na ANVISA. Isso porque o processo de
internalização de registro de medicamento na ANVISA tem importância gigantesca para
a saúde pública.
Mas não vai cair a regra na sua prova, vai cair a exceção. Excepcionalmente
é possível que a Fazenda Pública seja compelida a fornecer medicamento sem registro na
ANVISA, desde que preenchidos 3 requisitos cumulativos:

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1. Deve haver pedido de registro do medicamento na ANVISA, bem como
mora irrazoável por parte da agência reguladora em apreciar o pedido.

O próprio STF fixou exceção quanto a esse primeiro requisito. Existem


medicamentos que são órfãos, destinados a doenças raras e ultrarraras. Os medicamentos
órfãos são aqueles que já foram produzidos pela indústria farmacêutica, mas eles são
destinados a patologias tão raras, e geralmente nesse processo das agências reguladoras
mundo afora são tão caras, que não vale a pena, do ponto de vista financeiro, que eles
sejam registrados para a indústria farmacêutica. Mas ele já tem a sua segurança e
efetividade atestados pela comunidade científica. Nesses casos, como o fundamento é
essencialmente econômico, o STF dispensa o pedido de registro do medicamento no
Brasil.
2. O medicamento, apesar de ainda não registrado no Brasil, deve estar
registrado em agências de alto renome no exterior, como, por exemplo, a
FDA nos EUA;
3. Não pode existir um substituto terapêutico com registro no Brasil.

A grande questão que se coloca é a seguinte: eu acabei de mencionar que


todos os entes políticos são solidariamente responsáveis pela garantia do direito à saúde.
Mas, quando o medicamento não tem registro na ANVISA, o STF fixou a tese no sentido
de que essas ações devem ter, necessariamente, a União no polo passivo da demanda. Isso
não afasta a solidariedade. O Município e o Estado podem continuar no polo passivo da
demanda, mas obrigatoriamente a União deve constar no polo passivo, o que atrai a
competência da Justiça Federal e aos que estudam para Defensorias Públicas, a atribuição
da DPU. Problemão: a Justiça Federal não é capilarizada (interiorizada), menos ainda a
DPU. Muitos Municípios não têm DPU, não têm Justiça Federal, o que gera um grande
problema de acesso à justiça como pressuposto para o direito à saúde. Mas, de fato, isso
decorre de que a ausência de registro na ANVISA envolve uma omissão de uma autarquia
federal vinculada à União. Faz algum sentido.
O medicamento sem registro na ANVISA pode ser vendido numa farmácia,
ser fenecido pela rede D’OR, mas ele ainda não pode ser fornecido no SUS. Para que um
medicamento seja fornecido no SUS, ele precisa de registro na ANVISA, bem como estar

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incorporado aos atos normativos do SUS. Esses medicamentos incorporados são
chamados de medicamentos padronizados. Aqueles que não estão previstos nos atos
normativos do SUS são aqueles não padronizados.

4. Requisitos para a concessão judicial de medicamentos não previstos


pelo SUS (STJ):

O STJ enfrentou a seguinte questão no informativo 633: o poder judiciário


pode compelir a Fazenda Pública a fornecer medicamento, nesse segundo momento,
apesar de registrado na ANVISA não previsto em atos normativos do SUS? O STJ
entendeu que sim, desde que preenchidos os seguintes requisitos cumulativos:
1. A comprovação por meio de laudo médico fundamentado e
circunstanciado da imprescindibilidade daquele medicamento, bem como
da ineficácia daqueles incorporados aos atos normativos do SUS.
2. A incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito
– a hipossuficiência econômica, um requisito criticável, afinal de contas
vigora a universalidade do sistema de saúde. A princípio, não deveria
fazer diferença a capacidade econômica da parte;
3. Esses medicamentos devem estar registrados na ANVISA, observados os
usos autorizados pela agência.

Essa parte final foi acrescida pelo STJ à tese após embargos de declaração e
teve um objetivo muito específico: impedir, como regra geral, que o poder público seja
compelido a fornecer medicamentos com uso off label. E esse entendimento foi reforçado
no informativo 717 do STJ, que entendeu que, em regra, a Fazenda Pública não pode ser
obrigada a fornecer medicamento off label. Só para recapitular, medicamento off label é
aquele em que ele é prescrito para um uso diverso do previsto na bula. Com o passar do
tempo, é possível perceber que, um medicamento antes criado para uma finalidade, tem
outras tantas.
Ainda que o medicamento seja off label, ele pode ser, eventualmente,
fornecido pela Fazenda Pública, desde que seja autorizado expressamente pela ANVISA.
Cuidado com prova objetiva. O que eu estou falando aqui é que a Fazenda Pública, em

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regra, não pode ser compelida a fornecer medicamento para uso diverso da bula, salvo
autorização expressa da ANVISA.

Obrigação dos planos de saúde:


Quanto aos planos de saúde o entendimento do STJ é diverso. No informativo
632, entendeu que quanto aos planos de saúde deve prevalecer a prescrição do médico
assistente e o plano de saúde pode ser obrigado a fornecer medicamentos off label. Esse
entendimento é criticado por Thaísa Guerreiro, Defensora no Estado do Rio de Janeiro e
uma referência nacional na área, porque, em última análise, sem nenhum embasamento
normativo, o STJ protege de forma mais intensa clientes de plano de saúde do que aqueles
que dependem do SUS. E aqueles que dependem do SUS, em regra, estão em uma
situação de vulnerabilidade maior do que aqueles que têm condições de arcar com planos
de saúde.
Estou falando da tese fixada pelo STJ da possibilidade da Fazenda Pública
fornecer medicamentos não padronizados, não previstos em atos normativos do SUS. O
STJ modulou os efeitos da sua decisão: todas essas teses cumulativas só valem a partir de
4 de maio de 2018. Em regra, esses atos normativos do SUS são produzidos pelo
Ministério da Saúde. Mas, cuidado, porque o art. 19-P da Lei do SUS (Lei 8080) diz que
Estado e Municípios podem ter suas listas próprias e, inclusive, ampliar o rol de
medicamentos da lista produzida pelo Ministério da Saúde.
Quando falei dos medicamentos sem registro na ANVISA, disse que o STF
exige a presença da União no polo passivo da demanda. Eu não estou falando de
medicamento sem registro da ANVISA, mas de medicamentos não previstos em atos
normativos do SUS. De todo modo, nesse caso, a União precisa estar no polo passivo da
demanda? O STF, mais especificamente a sua 1ª Turma, tem decisões recentes, de 2022,
as Reclamações 49890 e 50414 e também numa decisão publicada no informativo 1052,
o STF entendeu que também aqui, a União deve encontrar no polo passivo da demanda.
Uma das principais premissas dos ministros é no sentido de que essas listas são
produzidas pelo Ministério da Saúde. Por isso, deveria a União constar no polo passivo
da demanda. A premissa é errada, porque todos os entes políticos podem ter as suas listas
e, comumente, têm. Por isso, divergindo da 1ª Turma do STF, o STJ, em decisão
publicada no informativo 734 de 2022, estabelece um distinguihing: uma coisa é

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medicamento sem registro na ANVISA e outra coisa é medicamento não previsto em atos
normativos do SUS. Quanto a estes (medicamentos não previstos em atos normativos do
SUS), não há necessidade de presença da União no polo passivo da demanda.
Esse tema, a princípio, não pode ser exigido em provas objetivas, a não ser
que numa maldade tremenda, seu examinador exija “de acordo com STJ”; “de acordo
com o STF”. Mas é um tema sensacional para cair em questões discursivas.

5. Produtos sem registro na Anvisa, mas com importação autorizada (STF):

Posteriormente, no informativo 1022 o STF ainda fixou mais uma tese.


Envolvendo medicamentos sem registros na ANVISA, mas que têm importação
autorizada e regulamentada pela agência reguladora. O caso concreto envolvia produtos
à base de canabidiol, que não são registrados, mas têm a importação autorizada. Aliás,
sobre a importação de produtos à base de canabidiol, a questão foi recentemente e
novamente regulamentada pela ANVISA por meio da Resolução RDC 660 de 30 de
março de 2022. A princípio não precisa ler, salvo se seu examinador tiver produção sobre
o assunto. Caso não, basta memorizar a tese fixada pelo STF nesse caso.
O caso concreto veio de São Paulo e uma mãe judicializou a questão exigindo
da Fazenda Pública medicamento à base de canabidiol porque o filho tinha modalidade
muito específica, de problemas neurológicos, como epilepsia, e se demonstrou que o
canabidiol era o medicamento mais eficiente para o caso concreto. Nesse caso, o STF
fixou a seguinte tese:
“Cabe ao Estado fornecer, em termos excepcionais,
medicamento que, embora não possua registro na Anvisa, tem
a sua importação autorizada pela agência de vigilância
sanitária, desde que [1] comprovada a incapacidade econômica
do paciente, [2] a imprescindibilidade clínica do tratamento, e [3]
a impossibilidade

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de substituição por outro similar constante das listas oficiais de
dispensação de medicamentos e os protocolos de intervenção
terapêutica do SUS.”2

À época, em 2021, o STF entendeu que a União não precisava estar no polo
passivo da demanda. Mas, com base no novo entendimento que eu acabei de mencionar,
a maior parte dos tribunais tem exigido a União no polo passivo nesses processos.

6. Planos de saúde e a posição do STJ quanto ao rol da ANS:

Pra gente fechar a aula de hoje, não há como não falar da decisão do STJ em
julgamento concluído em 08 de junho de 2022 pela 2ª Seção que, estudando direito à
saúde no âmbito dos planos de saúde, fixou a posição quanto ao rol da ANS. O Superior
Tribunal de Justiça entendeu que o rol da ANS de tratamentos que deve ser
obrigatoriamente custeados pelos planos de saúde, é um rol taxativo. Temos duas
posições: aqueles que defendiam o rol taxativo e aqueles que defendiam o rol
exemplificativo.
Nas redes sociais vimos a #roltaxativomata, e mata mesmo. Mas prevaleceu
o voto do Ministro Luís Felipe Salmão que defendeu que o rol é taxativo, seguido pela
maior parte dos ministros. Um rol taxativo com temperamentos. Por isso, é possível falar
que o STJ decidiu pela taxatividade mitigada, comportando, assim, exceções. Vamos ver
como os tribunais vão se comportar para apreciar essas questões.
As teses fixadas foram as seguintes:
1. O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar é, em regra,
taxativo;
2. A operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com
tratamento não constante do rol da ANS se existe, para a cura do paciente,
outro procedimento eficaz, efetivo e seguro já incorporado ao rol;
3. É possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo
contratual para a cobertura de procedimento extra rol;

2
STF. Plenário. RE 1165959/SP, Rel. Marco Aurélio, redator do acórdão Min. Alexandre de Moraes,
julgado em 18/6/2021 (Repercussão Geral – Tema 1161) (Info 1022).

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4. Não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol
da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento
indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que (i) não tenha
sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do
procedimento ao rol da saúde suplementar; (ii) haja comprovação da
eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; (iii) haja
recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como Conitec e
Natjus) e estrangeiros; e (iv) seja realizado, quando possível, o diálogo
interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise
técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do Rol de
Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da
competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a
ilegitimidade passiva ad causam da ANS.3

No momento que eu estou gravando a aula, os votos tanto do ministro


vencedor, Ministro Luís Felipe Salomão, como o voto divergente da ministra Nancy
Andrighi, não foram publicados. Mas meu compromisso com os senhores, claro, é
atualizar essas aulas com alguma frequência, sempre que houver mudança significativa
na base jurisprudencial ou normativa. Em havendo novidades sobre o assunto, irei
regravar essa aula e farei com todo o carinho do mundo.
Com isso, encerramos essa aula sobre direito à saúde.

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EREsp 1886929 e EREsp 1889704, da 2ª Seção, com julgamentos concluídos em 8 de junho de 2022.

ceiacadêmico.com.br

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