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Lupicínio Iñiguez 2
1 Programa de Pós-graduação
This paper analyzes a storytelling workshop, an Este artigo analisa uma oficina de contadores
em Saúde Coletiva,
Universidade do Vale do
intervention based on the referential elements of de histórias realizada no Centro Ecumênico
Rio dos Sinos, oral narratives, held at an NGO in São Leopoldo, de Assessoria e Capacitação de São Leopoldo
São Leopoldo, Brasil. Rio Grande do Sul State, Brazil. The workshop (CECA-SL), uma organização não governamen-
2 Departamento de
Psicología Social,
was divided into three different stages: narration tal sediada na região do Vale do Rio dos Sinos,
Universidad Autónoma of a story with a focus on gender violence, a dis- no Rio Grande do Sul (Meneghel SN, Farina O.
de Barcelona, Barcelona, cussion based on the narrative, and an activity Histórias de Resistência de Mulheres. Projeto de
España.
with body painting. The theoretical framework pesquisa apresentado ao Programa de Pós-gra-
Correspondência was based on discursive practices, and when duação em Saúde Coletiva, Universidade do Vale
S. N. Meneghel
workshop participants’ discourse was assessed, do Rio dos Sinos; 2003). Esta oficina surgiu com
Programa de Pós-graduação
em Saúde Coletiva, at least two interpretive repertories were identi- base em uma proposta de contar histórias, em
Universidade do Vale do Rio fied: one based on the gender category and the um grupo voluntário constituído por professores
dos Sinos.
other on everyday life and recollections from e alunos dos cursos de Psicologia e de Comuni-
Av. Unisinos 950,
São Leopoldo, RS participants’ life stories. There was also consider- cação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
93022-000, Brasil. able variety in the arguments, manifested in the (UNISINOS). O principal objetivo do grupo era
meneghel@unisinos.br
contradictions and incongruence permeating the o de contar histórias em diferentes coletivos. A
smeneghel@hotmail.com
discourse. Narratives used as tools to work with estratégia de contar histórias transformou-se em
abused women (especially for public health in- tema de pesquisa, e foram realizadas várias ofici-
terventions) have received little attention thus nas de narrativas no período 2002-2004. Oficinas
far. In the current study, stories were analyzed as foram consideradas dispositivos de trabalho, de-
possible strategies to deal with gender inequali- terminados pelas práticas histórico-sociais, que
ties, a powerful analytical tool for evaluating buscam reforçar a autonomia dos participantes
public health actions. por meio da reflexão crítica e da reinvenção do
cotidiano 1,2. Atividades coletivas fundamenta-
Discursive Practices; Narratives; Gender das em referenciais participativos como os da
pesquisa ação 3,4,5 e os da educação libertadora 6
as oficinas estimulam a construção de estratégias
de resistência, por meio da crítica, da dialogici-
dade e da arte. Não se trata de grupos terapêuti-
cos ou psicoterápicos, embora, em muitas situa-
finalização da resposta do outro. Enunciados são rupções, ou seja, todos os aspectos relacionados
elos na cadeia de comunicação e não devem ser à modulação e construção de elocuções durante
descontextualizados, pois, ao tirar uma sentença o diálogo. Incluir a variabilidade em uma análise
do enunciado que lhe dá suporte, roubamos-lhe significa respeitar a polissemia dos discursos, ao
o sentido 51. invés de homogeneizá-los ou reduzi-los 43,46,47.
o de gênero, constituído pelo jargão de traba- do marido, os filhos também passam a apanhá,
lho utilizado tanto pelos educadores populares, né, isso vai passando, de pai pra filho, e mesmo
quanto pelos pesquisadores. O outro repertório assim elas não conseguem passá prôs filho, educá
que atravessou as oficinas foi o linguajar do dia a de uma outra forma do sofrimento que elas tive-
dia, das narrativas pessoais, das experiências de ram” (Urânia). Essa forma de entender a violên-
vida. De qualquer maneira, não podemos deixar cia perpetrada contra as mulheres, atualmente
de assinalar que a escolha desses repertórios é percebida como relacional, constituiu uma das
uma construção dos pesquisadores, ou seja, ela incoerências no discurso das oficineiras.
não se pretende definitiva, não significa que se No repertório de gênero, foram incluídas as
tenha descoberto uma verdade ou que outros ca- alusões identitárias presentes nos enunciados
minhos de interpretação não sejam possíveis. dos educadores populares: as referências à ONG,
O repertório de gênero foi partilhado por to- aos programas desenvolvidos na entidade, às ex-
do o grupo, tanto pela equipe da pesquisa quanto periências com o Movimento de Alfabetização
pelos oficineiros. De certo modo, podemos dizer (MOVA) e às capacitações de Promotoras Legais
que constituiu uma garantia de que um tema co- Populares (PLP), desenvolvidos na instituição. Os
mum aproximava pesquisadores e educadores oficineiros se percebem como grupo possuidor
populares. Tal repertório expressa o jargão de tra- de uma identidade coletiva, construída em 25
balho, o repertório “técnico/empiricista” deno- anos de trabalho de educação popular, ligado a
minado por Gilbert & Mulkay 44 ao abrir a caixa uma vertente religiosa de esquerda, amplamente
de Pandora da produção científica ocidental e reconhecida e respeitada na região.
averiguar que os cientistas utilizam dois tipos de Em relação à posição dos falantes, observa-
repertório, um técnico e outro cotidiano, em que mos que os coordenadores, tanto da pesquisa
os fatos, muitas vezes, são ajustados para se ade- quanto da ONG, falaram em primeiro lugar. As
quarem ao modelo científico. mulheres foram construindo a argumentação e
Nos últimos anos, gênero tem sido uma ca- fazendo referências umas às outras, por meio do
tegoria presente nos discursos de militantes relato de experiências de trabalho, evidencian-
de movimentos sociais, implicando a adesão a do a construção coletiva do discurso 53, na qual
ações propositivas contra as violências. O movi- vários falantes formulam um enunciado coope-
mento feminista atribuiu à ideologia patriarcal rativamente.
a manutenção das desigualdades sociais ligadas Outro repertório usado nas oficinas foi o coti-
a gênero, por meio do reforço ao binarismo se- diano, o da linguagem comum, constituído pelas
xo/gênero, valendo-se de uma lógica dicotômica conversas do dia a dia e pelas experiências pes-
cuja função principal é produzir hierarquias de soais. Nos enunciados marcados pela cotidiani-
desigualdade 12. Atualmente, no Brasil, gênero é dade, notamos o uso de grande quantidade de
uma categoria considerada progressista tanto na dícticos 54 na primeira pessoa do singular ou na
Universidade quanto nas ONG; todos os falantes segunda pessoa, porém se referindo a si mesmos,
usaram o discurso de gênero, num momento ou como nas expressões: “tu sente que...”, “tu sabe
noutro da oficina, fazendo questão de ressaltar a que...”.
adesão a ele. Para falar das violências que atravessam as
Ao se posicionar criticamente em relação ao vidas tanto das oficineiras quanto das mulheres
sexismo/machismo, as mulheres afirmaram que atendidas por elas nas comunidades, elas usa-
são obrigadas a: “abdicar de si mesmas, não ter ram as metáforas de “marcas e roubo da pele”,
projetos, se desviar do seu rumo, abrir mão de suas ambas extraídas da história “Pele de Foca”. As-
coisas, cederem às vontades do homem, serem as sim, elas afirmaram: “eu vou falar das minhas
únicas a ter responsabilidade com os filhos, viver marcas, é preciso que a gente se exponha” (Mel-
em clausura, largar as pessoas que tu quer bem pêmone). Nas narrativas biográficas, às vezes a
para levar uma vida que não é a tua, abrir mão violência de gênero era colocada fora, no “outro”,
dos teus interesses em função do outro, sentir pena às vezes, a violência estava dentro e aparecia nos
do outro” (Clio, Urânia, Terpsícore). A violência fragmentos das histórias de vida e das violências
foi definida por elas como: “sofrer, apanhar, ser sofridas. As mulheres contaram episódios de vio-
espancada, apanhar do marido” (Clio, Urânia, lência ligados às suas trajetórias pessoais e afir-
Terpsícore) e foram incluídas no repertório de gê- maram que a violência de gênero acontece em
nero. A violência foi descrita como um compor- qualquer classe social, escolaridade ou raça: “a
tamento natural, uma norma transmitida de pais gente percebe muito isso nas mulheres [o roubo
para filhos, dentro de um padrão de transmissi- da pele], e não interessa o nível de escolaridade”
bilidade – “nas casa que a gente visita tem uma (Clio). Neste depoimento, a narradora mostra a
regra (...) começa a sofrê, apanhá, sê espancada violência como um fenômeno que pode suce-
pelo pai e aí casa cedo, tem filho cedo e apanha der a qualquer mulher, inclusive às participantes
pelo cuidado dos filhos, cimentando a perma- ou seja, o quanto a realidade é discursivamen-
nência na relação violenta. te construída 33. Esta perspectiva potencializa a
Uma contradição que nos surpreendeu foi a compreensão do mundo e das interações sociais,
nossa, enquanto grupo de contadores de histó- constitui ferramenta de trabalho poderosa para
rias. Ficamos perplexos ao constatar o quanto intervir na saúde da população e enfrentar as de-
fomos contraditórios, à medida que a proposta sigualdades, incluindo as de gênero.
formulada no projeto de pesquisa Histórias de As práticas discursivas, em especial a verten-
Resistência de Mulheres era a de democratização te foucaultiana, mostram que os jogos de poder
do conhecimento e a intervenção foi organiza- estão implicados na construção dos saberes e
da de modo tradicional. Queríamos fazer um na produção de verdades normatizadas, encar-
trabalho fundamentado nos princípios de dia- regadas de julgar, classificar, controlar, vigiar e
logicidade expressos por Freire 6, realizar uma determinar modos de viver e de morrer. Ainda,
intervenção cooperativa na qual romperíamos segundo Foucault, não há poder sem resistên-
com a pretensa superioridade do pesquisador cia 64. Divisar os jogos de poder, contrapostos às
como “aquele que sabe” e com as posturas auto- resistências, permite questionar as práticas de
ritárias das práticas em educação e saúde. Mas, saúde encarregadas de submeter, mas também
em vários momentos predominou a diretividade perceber a possibilidade de nos colocarmos a
da tarefa, ainda que tenham ocorrido momentos serviço da população e ajudar a edificar “barrica-
de crítica e de mudança. Billig 60, falando sobre a das” 65 de resistência.
natureza dilemática do discurso, mostra o quan- Quando inventamos o grupo de contadores
to as manifestações de poder nos embaraçam e de histórias, pensávamos que ele poderia cons-
como muitas vezes exacerbamos desnecessaria- tituir um dispositivo para alavancar mudanças e
mente o igualitarismo. agenciar estratégias de resistência às violências.
O humor apareceu em brincadeiras e jogos De fato, as histórias contadas em grupo trazem
de linguagem, facilitado pelas características de à tona experiências de vulnerabilidade, como a
plasticidade que as oficinas proporcionam. A iro- doença, a morte, a exclusão social, a violência.
nia é uma ferramenta poderosa que se concretiza Ao compartilhar essas experiências, os partici-
dando um significado oposto à literalidade das pantes, em um primeiro momento, rememoram
palavras. É um recurso que questiona e solapa os a história pessoal, depois reconstituem essa his-
discursos dominantes. Contar histórias produz tória do ponto de vista do presente, e por fim,
prazer, tanto em ouvir quanto em contar. Além falam sobre as estratégias de resistência e enfren-
disso, o humor, a ironia e o riso são poderosos tamento usadas no cotidiano, tornando-as, de
dispositivos para dissolver as convenções e atuar certa maneira, coletivas.
como armas mortais contra os jogos de poder, Fazer pesquisa com enfoque participativo
necessários na agenda política da psicologia so- nos aproxima dos analistas críticos do discurso,
cial e nas intervenções sociais 61,62. cujas agendas de investigação estão focalizadas
em questões socialmente relevantes, com o obje-
tivo de usar o conhecimento como suporte para a
Finalizando a história... ação política e para a conquista de mudanças so-
ciais 66. Esta perspectiva ressalta os efeitos sociais
No percurso dessa pesquisa, exploramos pos- dos discursos, isto é, o quanto eles reproduzem,
sibilidades narrativas, fomentamos parcerias, mantém, reforçam e, inclusive, questionam a or-
construímos algumas estratégias de resistência dem social. Entender os discursos como práticas
e nos deparamos com os nossos próprios limites. sociais significa encarar a existência de relações
Trabalhamos com repertórios interpretativos, dialéticas entre eventos discursivos socialmente
entendendo-os como estratagemas que os falan- construídos e estruturas sociais discursivamente
tes usam na linguagem em ação, sabendo que marcadas 42.
eles dão conta de apenas parte dos significados Acreditávamos, e ainda acreditamos, que
das interações 63. Também trabalhamos com os grupos de mulheres contando histórias podem
aspectos contraditórios dos discursos, sabendo resistir a situações de violência, reconstruir su-
que eles contêm a sua negação e que as contradi- as histórias de vida e organizar-se em padrões
ções apontam possibilidades de mudança. diferentes aos propugnados pela sociedade
A utilização da análise das práticas discur- ocidental. Contar histórias é um dispositivo de
sivas para avaliar oficinas em educação, saúde agenciamento de subjetividades fluidas, per-
e gênero constituiu uma aproximação fecunda meáveis, nômades, em um exercício de práticas
entre a psicologia social e a saúde coletiva. A psi- subversivas 12,67 e de resolução coletiva de pro-
cologia discursiva tem evidenciado os aspectos blemas 20,32.
construtivos da linguagem na interação social,
Resumo Colaboradores
Este artigo analisa uma oficina de contadores de his- S. N. Meneghel e L. Iñiguez participaram da revisão de
tórias, uma intervenção fundamentada nos referen- literatura, elaboração da metodologia, análise dos re-
ciais das narrativas orais, que ocorreu em uma orga- sultados e redação do artigo final.
nização não governamental sediada no Município
de São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil. A oficina
foi construída em três momentos, compreendendo: a Agradecimentos
narração de uma história com o foco em violência de
gênero, a discussão da narrativa e a realização de pin- Ao apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoa-
turas corporais. O referencial usado foi o das práticas mento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela bolsa
discursivas e, nas falas dos oficineiros, foram identifi- (CAPES Bex 1455-05-2) concedida a Stela Nazareth Me-
cados pelo menos dois repertórios interpretativos: um neghel, durante a realização do estágio pós-doutoral no
deles pautado na categoria gênero e o outro, ancorado curso de Doutorado de Psicologia Social, Universidade
na cotidianidade e na rememoração das histórias de Autônoma de Barcelona, sob a orientação de Lupicínio
vida dos participantes. Além dos repertórios, ressalta- Iñiguez Rueda.
mos a variabilidade manifesta nas contradições e nas A autora agradece a acolhida e as facilidades disponi-
incongruências que permearam os diálogos presentes bilizadas em todos os momentos e por todo o grupo de
nas argumentações. As narrativas, enquanto ferra- professores e funcionários do Doutorado de Psicologia
mentas para trabalhar com mulheres em situação de Social, Universidade Autônoma de Barcelona.
violência, têm sido pouco exploradas, sobretudo como
possibilidade de intervenção em saúde coletiva. Nesta
pesquisa, as histórias foram analisadas como possíveis
estratégias para enfrentar as desigualdades de gênero,
mostrando-se uma ferramenta analítica poderosa pa-
ra avaliar ações de saúde coletiva.
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