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VINCENT VAN GOGH

A ARTE E A VIDA I :

“A Arte é o homem adicionado à natureza que ele


traz à luz, é a realidade, a verdade, mas com um
significado, a que o artista dá expressão...”

Esta afirmação de Van Gogh contem os elementos que predominam, não


só na sua pintura, mas que condicionam o seu conceito de Arte, em termos
mais gerais e não apenas da sua subjectividade criadora.

Encontrando a sua verdadeira expressão pictural bastante tarde, soube


contudo, a partir de então, dar uma imagem original e inédita da realidade,
da sua realidade mesmo.

A nossa vida é uma realidade terrível e nós


deambulamos no infinito.

Arte, para Van Gogh é passagem e impregnação da religião, moral, tábua


de salvação pessoal, a própria vida.

Eu quis exprimir na Arte algo de luta pela vida.

Mas a arte é também um modo de chamar a atenção das pessoas, de melhor


fazer sentir a sua suprema necessidade de comunicar e expressar o que o
cerca. Procura temas da própria vida que surpreende e vivencia na sua
existência. Capta miséria e pobreza. Estabelece um profundo elo de
ligação entre as figuras e o meio ambiente, e fundamentalmente consigo
mesmo através das suas telas.

...Desenho para lhes chamar a atenção para o que


vale a pena e se não vê todos os dias.
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Este é o seu propósito imediato e assumido. Caracteriza o carácter ideal e
mais adequado para um pintor.

...Para a nossa suja tarefa de pintores são


necessários homens com mãos e estômagos de
operários e com gostos mais simples. São também
precisos temperamentos mais ternos e mais
caridosos.

OS RETRATOS:

Muitos dos seus auto-retratos foram permutados com outros pintores como
Émile Bernard e Paul Gauguin. Era um apologista desta troca de quadros,
que pensava seria extremamente proveitosa e profícua.

Realizou vários retratos em que se reflecte a sua interioridade, as suas


vivências dramáticas e exageradas com uma intensidade definitiva e vital.
Neles há uma proximidade entre a realidade a que aspira e a abstracção em
que se pressente.
Através dos retratos pretende ressurgir e exteriorizar o interior, a essência
do ser, assim como desejava fixar e transpor não só a essência
circunstancial mas a estruturante dos objectos.

O retrato é a introspecção extrospectiva; pintar-se é um exercício de


conhecer-se a si mesmo; é multiplicar a sua existência, é integrar-se no
mundo imaginário da arte.

A vida dos retratos dos outros é projectado na sua imagem dos auto-
retratos, em si mesmo. Pintando-se pode atingir a sua essência e a sua
aparência, conjugar e conciliar (?) o interior e o exterior.

Pintar as figuras humanas emociona-o muito, e dá-lhe a sensação de um


contacto com a eternidade.
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A PINTURA I :

A pintura reveste-se aqui dum cumprimento de uma missão, é um


empenhamento de teor missionário que lhe falta assumir, é mesmo uma
vocação que implicitamente exige uma dádiva e renúncia.

A arte usufrui necessariamente de uma vertente extraordinariamente


humanitária que reflecte a própria alma do artista e a sua condição de vida
para os outros. Sobretudo será fundamental que os artistas dispam a sua
pretensiosidade e enfatuamento e desçam até à natureza estruturante, que
se constituam na arte que pretendem construir.

A arte dá origem à concepção de uma experiência que lhe permite


estabelecer uma nova relação entre si mesmo e o mundo.

Acompanhando esta atitude antropológica e existencial da pintura, que se


traduz em figuras que parecem talhadas em madeira (Femme au bonnet
rouge - 1885), Van Gogh procura também uma via para atingir a meta que
transcende a realidade factual em que está submerso.

Van Gogh assume-se como uma espécie de consciência do mundo. A vida


é algo de profundamente aterrorizador, a consciencialização da passagem
do tempo uma angústia que o assusta:

Caminhamos depressa, mas não se distingue


nenhum objecto de muito perto, e sobretudo não
vemos a locomotiva.

O social, o mundo são considerados como obstáculos, são sempre


manifestação duma ruptura, que contudo o obriga a perceber o que deverá
ser o seu caminho.
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A ARTE E A VIDA II:

A arte é Natureza. É realidade, é verdade, mas com


um significado, uma concepção, um carácter, que só
o artista pode exprimir, desvendando o mistério.

Van Gogh pretende exprimir não apenas a captação de um determinado


momento, mas a própria realidade, na sua condição de existência “eterna”,
duradoira, renovável.

A sua pintura transmite o sentimento daquele que sofre, o seu sentir será
simultaneamente aquilo que pinta. Este é o lema da verdadeira pintura para
Van Gogh : pintar o que sente, sentir o que pinta. Ultrapassa o desejo de
apreender o que apenas “vê”, para se preocupar com sua essência
fundamental e indispensável.

Vai tentar atingir a essência dos objectos e dos seres. É a procura da alma
independente da beleza do seu modelo. Desde as figuras dos camponeses
até às suas botas ou às cadeiras representadas (a do próprio pintor e a do
amigo Gauguin) , as suas telas tentam sempre apelam à alma imortal dos
seus modelos, através das vibrações radiantes da cor (utilização
subjectiva), da luz (interna) e da sua peculiar pincelada.

Mas, para além da essência das coisas que representa, presentifica a sua
própria essência de artista, de homem e talvez mesmo de “louco”. Dá às
suas obras parte da sua vida, das suas experiências sensoriais e psíquicas.
São fundamentalmente algo de seu, muito profundo que transparece nas
pinturas, deixando emergir toda a força das suas pulsões mais básicas.
Lutando contra a incompreensão que provoca nas pessoas, continuará
contudo, sem pre a criar novas figurações temáticas, dentro de uma
simbologia muito característica, coincidência última da sua personalidade.
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A LUZ, O SOL = DEUS:

Na sua busca plástica da luz, quis identificá-la com Deus. Deus é a


personificação do absoluto. Deus é inerente, desde o início das suas obras,
até à altura da sua própria morte. Num primeiro momento está presente
como uma ideia necessária, urgente mesmo, é sua causa próxima;
posteriormente, mesmo que tal não se mostre como tão evidente, estará
contudo sempre implícita esta necessidade e urgência de Deus.

O sol é para Van Gogh o que já era para Platão: o símbolo do absoluto. É
através da arte que pretende atingir este absoluto. A via será através da luz,
via que deve ultrapassar os factos terrestres até sol, ao cimo, ao cume. O
sol é a fonte da luz, entendendo-se aqui a luz como metáfora da verdade.

Há portanto uma aproximação entre os sentimentos estéticos e os


religiosos. A sua fé esgota-se integralmente na arte. É pois uma religião
estética, tirada da profundidade de si mesmo. O mundo estético é aquele
que o pode satisfazer. O real é caótico, doloroso, é o sofrimento. O seu
envolvimento é fora do mundo, o seu compromisso está para além do real.
É através da “arte” que pode filtrar o real, que se situa no prolongamento
do amor e da religião.

Num exílio (in) voluntário relativamente aos outros pintores, Van Gogh
descobrirá um pouco tarde, o que poderia e onde poderia ter inserido a sua
obra, no que concerne um possível linha artística e estética. Este facto
contribuiu contudo, e sem dúvida, para um percurso pessoal, mais
individualizado, e proporcionou um desenvolvimento das suas procuras e
respostas plásticas que preanunciou aquilo que viria a seguir, a ser a noa
expressividade da pintura europeia.

Será então impressionista, pontilhista, realista, expressionista conforme se


possa abordar, em termos de rotulação a linguagem e a natureza da sua
obra plástica. No fundo, e isso será porventura aquilo que realmente pode
importar, é ele própria e as suas opções acima das limitações impostas
pelas linhas determinantes das correntes ou dos estilos.
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Durante toda a sua vida manteve uma constância em relação aos seus
“ídolos”da pintura, às suas preferências em arte: Delacroix, (cuja teoria da
cor se reveste da máxima importância), Rembrandt, Rubens, Monticelli,
Millet...

A COR:

Le vrai dessin c’est de modeler avec la couleur.


(...)
Le peintre de l’avenir c’est un coloriste comme il n’y
en a pas encore eu.
(...)
J’ai cherché avec le rouge et le vert à peindre les
terribles passions humaines.

La couleur est par elle même déjà quelque chose.

A cor assume para Van Gogh, como já se esboçou anteriormente, uma


força e necessidade catártica que se extravaza na utilização específica que
dela faz. Carrega uma força imensa, possui uma intensidade e uma
dramaticidade extremas. O colorido, a luz e a sua determinação ulterior nas
formas constituem-se de forma muito particular. Tornar-se-ão não só uma
maneira de pintar, mas entidades como que de condição metafísica, mesmo
teológicas, do domínio do sagrada e não apenas do mítico.

Toda esta abordagem e utilização tão pessoal das condições constitutivas e


concepcionais de pintura sofrem uma evolução à medida que se torna mais
perigosa e dramática a intensidade da sua interioridade real no quotidiano.
Cor e luz são então uma obsessão, não apenas reflexos de obsessões, um
desejo cada vez maior e desesperado para encontrar a formula acertada de
representação exterior das vivências e percepções interiorizadas; de
transpor para a pintura as suas condições pessoais e factuais.
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Os temas que aborda com maior frequência, a partir de certa altura,
reflectem e adequam-se a uma apropriação dessa mesma atracção pela cor
e pela luz: girassóis, ciprestes, auto-retratos, paisagens nocturnas e diurnas
intensas, mesmo os simples e comuns objectos do dia-a-dia e as naturezas-
mortas são tratados para conseguir essa condição simbólica. Veja-se Café
de Nuit, Nuit étoilée, Église d’Auvers, Chambre à Arles, La Chaise,
Tournessols, Intérieur de Restaurant, Le Pont de Courbevoie...

Em todas estas obras se denota a busca de uma claridade superior.

“Precisa-se de certa inspiração, de luz vinda do alto,


que não nos pertence, - para fazer estas coisas
belas. Quando pintava girassóis, procurava o
contrário deles e dizia: é o cipreste.”

A inspiração poderá aqui ser entendida como algo de exterior ao artista,


algo que pretende atingir, uma espécie de ascese, uma aproximação do
amor divino, que enriquece e possibilita as suas criações plásticas. Estas,
desenvolvem-se porque podem ser um meio de transformar o mundo, ou
pelo menos de modificar as suas relações com aquilo que o rodeia.

Pintura será sobretudo a condição da criação.

Posso passar muito bem sem Deus na pintura e na


vida, mas não posso (...), passar sem uma coisa,
que é mais forte do que eu, que é a minha
verdadeira vida : a força da criação.

A sua meta não é a beleza, que como sendo uma noção derivada, mas a
verdade. Chega mesmo a fazer coincidir a beleza com a verdade, num rasto
de uma tradição da Estética que porventura percorreu o tempo e a história:
...aquilo que é belo, verdadeiramente belo, é
igualmente verdadeiro.

A arte é uma via para encontrar a beleza, para organizar o caos. A beleza
transcende a banalidade da vida, vai dar um sentido à vida. Não é portanto
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a beleza externa, mas a beleza coincidente da aparência com a
interioridade.

A REALIDADE:

Primeiro Van Gogh pinta ao ar livre, quer sejam paisagens ou retratos.


Capta o que evoluciona naturalmente, seguindo o seu ritmo de vida, a
monotonia de uma existência.

...plongez-vous la tête la première dans la réalité...

Pareceria com esta afirmação que tendia para o Realismo, mas a verdade é
que falta-nos saber qual a realidade a que se refere, pois aquilo que
ambiciona mesmo é a verdade.

A verdade que ele procura e que se situa para além da linguagem ser-lhe-á
revelada através daquilo que fixa nas telas. Pretende assim captar o
permanente, ao contrário dos impressionistas que pretendiam fixar o
fugidio, o passageiro. A duração da sua permanência e simultaneamente o
intermediário entre si mesmo e o mundo parecem pois ser as suas obras.

A sua relação e apropriação do mundo foi sendo alterada ao longo da sua


vida. Se inicialmente se embrenhava na natureza para pintar, depois
começa a pintar de cor. Colhendo elementos da realidade, vai combiná-la
com outros detalhes que lhe vêm à memória. É a conjugação dos
elementos decorrentes da percepção visual presente, com as memórias
presentes em si. Mas é também um apelo da imaginação aliada à
sensibilidade.

Le peintre doit avoir imagination et sensibilité...

Relacionam-se assim as formas reais com aquelas da sua fantasia, através


da imaginação. Van Gogh procurando fixar na sua obra, todos os
elementos e situações que mais o atingiam emocionalmente, vai
transforma-los de acordo com a autenticidade ansiada da sua expressão.
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A PINTURA II :

Je me felicite de ne pas avoir appris à peindre.


J’aurais peut-être appris à passer devant un tel
effet...

Pretende assim uma pintura livre, independente das normas rígidas e


académicas. A sua ambição, foi de formar no sul de França, um grupo de
arte que trouxesse algo de novo à pintura. Nesse Arles, em que descobriu
realmente a sua verdadeira expressão. Aproveitando a luminosidade desse
sul produziu telas decisivas para a determinação da sua identidade
pictórica.

A sua pintura é um meio para comunicar não apenas com o público, mas
tinha um diálogo privilegiado com o seu irmão Théo que sempre o
encorajou. Nas suas cartas ao irmão manifesta sempre uma interrogação
constante quanto à sua evolução e aos seus progressos como pintor. Isto,
porque Van Gogh queria atingir sempre mais um degrau, nunca
considerando ter atingido o topo da escada.

Être artiste, comme toujours chercher sans jamais


trouver la perfection.

Assumiu uma obrigatoriedade, um dever para com a humanidade, tem de o


cumprir do modo mais perfeito. a sua obra tem uma razão de ser altruísta,
mas que parte de si e em função das suas necessidades de dádiva aos
outros, para se atingir a si.

A arte permite-lhe superar a solidão, é um, ideal supremo capaz de orientar


e justificar a sua vida.

Et puis il y a la Nature, l’Art et la Poésie. Si cela n’est


pas suffisant, qu’est-ce qui pourrait l’être.
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Arte é o seu modo de atingir o absoluto, de se separar do real, de se
aproximar do externamente do imaginário. É a ruptura entre estes dois
mundos. É um mundo que cria para si. É um modo de viver, de existir.

Le bien est lumiére placée à une si grande hauteur


qu’il semble naturel de ne pouvoir l’atteindre.

Bondade, luz, são alvos que persegue.

É possível que um dia, mais tarde, a humanidade se


veja tacada de uma nevrose colectiva, da doença de
São Vito, ou de outra coisa semelhante. É possível
que os homens, nessa época sejam todos artistas.

Fátima Lambert Alves de Sá – 1984


Mestrado em Filosofia Moderna e Contemporânea
Faculdade de Filosofia de Braga - UCP

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