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Notícias da Favela

Notícias da Favela
Cristiane Ramalho

Patrocínio Apoio
Copyright ©2007 Cristiane Ramalho
COLEÇÃO TRAMAS URBANAS
curadoria
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA
consultoria
ECIO SALLES
projeto gráfico
CUBÍCULO

NOTICÍAS DA FAVELA
produção editorial
LARISSA DE MORAES e ROBSON CÂMARA
revisão
STEPHANIA MATOUSEK
revisão tipográfica
BRUNO DORIGATTI
curadoria de imagens
KITA PEDROZA e SANDRA DELGADO
assistência de curadoria
WALTER MESQUITA
fotos de capa
KITA PEDROZA

R135n
Ramalho, Cristiane
Notícias da favela / Cristiane Ramalho. - Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2007.
il. - (Tramas urbanas ; 1)
Anexos
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-86579-93-6
1. Viva Favela (Portal) - Rio de Janeiro (RJ). 2. Favelas - Rio de
Janeiro (RJ) - Recursos de redes de computadores. 3. Favelas - Aspectos
sociais - Rio de Janeiro (RJ). 4. Jornalismo eletrônico - Rio de Janeiro
(RJ). 5. Jornais comunitários - Rio de Janeiro (RJ). 6. Organizações
não-governamentais - Rio de Janeiro (RJ). 7. Movimentos sociais - Rio de
Janeiro (RJ). I. Título. II. Série.
07-2853. CDD: 070.43
CDU: 070.1:004.73
25.07.07 26.07.07 002858

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS


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Nas tantas periferias brasileiras – periferia urbana, peri-
feria social – se reforçam cada vez mais movimentos
culturais de todos os tipos. Os mais visíveis talvez sejam
os de alguns segmentos específicos: grupos musicais,
grupos cênicos, grupos dedicados às artes visuais. Mas
de idêntica importância, embora com menos visibilidade,
é a produção intelectual que cuida, além de questões
artísticas, de temas históricos, sociais ou políticos.
A coleção Tramas Urbanas faz, em seus dez volumes,
um consistente e instigante apanhado dessa produção
amplificada. E, ao mesmo tempo, abre janelas, estende
pontes, para um diálogo com artistas e intelectuais que
não são originários de favelas ou regiões periféricas dos
grandes centros urbanos. Seus organizadores se propõem
a divulgar o trabalho de intelectuais dessas comunidades
e que “pela primeira vez na nossa história, interpelam, a
partir de um ponto de vista local, alguns consensos ques-
tionáveis das elites intelectuais”.
A Petrobras, maior empresa brasileira e maior patroci-
nadora das artes e da cultura em nosso país, apóia essa
coleção de livros. Entendemos que é de nossa responsa-
bilidade social contribuir para a inclusão cultural e o for-
talecimento da cidadania que esse debate pode propiciar.
Desde a nossa criação, há pouco mais de meio século,
cumprimos rigorosamente nossa missão primordial, que
é a de contribuir para o desenvolvimento do Brasil. E lutar
para diminuir as distâncias sociais é um esforço impres-
cindível a qualquer país que se pretenda desenvolvido.
A Sven e Nina, minha alegria cotidiana.
A Walter (em memória), Diana e Claudia Ramalho, por tudo.
Aos correspondentes comunitários, por me ensinarem um
novo olhar sobre as favelas cariocas.
Agradecimentos

A grande culpada pela existência deste Notícias da favela é


Ilana Strozenberg, antropóloga e professora da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde o primeiro momento, ela
acreditou – e me fez acreditar – na importância deste registro.
Com sua animação contagiante, Ilana esteve presente ao longo
de todo o processo, trazendo sugestões iluminadas e questio-
nando pontos fracos. É dela, acima de tudo, o mérito de ter ide-
alizado uma pesquisa sobre o Viva Favela que se provaria vital
para a reconstrução de boa parte das histórias aqui relatadas.

Merecem crédito ainda os estudantes que realizaram as entre-


vistas na pesquisa coordenada por Ilana: Aletéia Maria da Silva,
Ana Carolina Alves, Beatriz Nascimento Lins de Oliveira, Clarissa
Peixoto, Carolina Andrade, Eric Macedo, Esther Medeiros, Fer-
nando Vannier, Gênis Fidélis, Luana Monçores de Lima, Luciano
Mello, Marcelo Pereira Garcia, Marília Assad de Oliveira, Rafael
Galdo, Renata Giannini, Raphael Bispo dos Santos, Simone
Cunha, Thiago Prado e Thiago Sabatinelli Rodrigues.

Gostaria, acima de tudo, de dividir os possíveis acertos desta publi-


cação com os correspondentes comunitários e jornalistas que tra-
balharam no projeto no período abordado (2001 a 2005) e que aqui
despontam como protagonistas, com suas narrativas e reportagens.
Meu agradecimento mais do que especial vai para a jornalista
Tetê Oliveira, companheira de todas as horas no Viva Favela, que
muito ajudou a construir a história do veículo – e a viabilizar o
seu registro – com suas sugestões certeiras, sua boa memória
e sua dedicação carinhosa.

Mais do que especial também é meu agradecimento a Heloisa


Buarque de Hollanda, diretora da Aeroplano Editora, pelas
sábias considerações e pela fé inabalável no projeto. É dela a
idéia de fugir de um relato teórico e frio, distante da realidade
que experimentamos no portal, e transformar Notícias da favela
numa grande reportagem sobre os bastidores do jornalismo
nas favelas cariocas. Meu carinho ainda para toda a equipe
da Aeroplano, aí incluída a revisora Stephania Matousek, pela
dedicação e gentileza.

Aos jornalistas André Trigueiro, Cristina Azevedo, Denise Ribeiro,


Flávio Pinheiro, Isabela Kasow, Marcelo Beraba, Marcelo Moreira,
Márcia Vieira, Marcos Sá Corrêa, Rafael Casé, Sergio Torres,
Oscar Valporto e Xico Vargas, minha gratidão por terem ajudado a
esclarecer aspectos importantes nesta narrativa. O mesmo vale
para Peter Lucas e Sandra Carvalho.

Acima de tudo, é impossível esquecer o papel desempenhado


pelas amigas e editoras de fotografia Kita Pedroza e Sandra
Delgado, ex-companheiras de Viva Favela, que, além das bem-
vindas sugestões ao texto, ainda se dispuseram a realizar a difi-
cílima seleção das fotos aqui apresentadas. Todo o meu carinho
a elas, e também ao fotógrafo Walter Mesquita, que deu grande
força na pesquisa desse material.

Por fim, uma dívida eterna com os amigos que tiveram a disposi-
ção de ler os originais e de trocar idéias: Atenéia Feijó, Christina
Vital, Fernando Ewerton, Regina Taccola, Silvia Leitão e Valéria
Propato. A Mônica Maia, um agradecimento especialíssimo pelas
contribuições inspiradas e pela infinita paciência.
Aos tantos amigos e familiares queridos que trouxeram motivação,
deixo um abraço apertado. Entre eles, Claudia e Diana Ramalho,
Helena Vasconcelos, Mariflor Rocha, Dieter, Heidi e Sven Hilbig.

Finalmente, agradeço a Rubem César Fernandes pela confiança


e apoio à idéia do livro, e aos amigos do Viva Rio que ajudaram
a viabilizar a experiência aqui relatada. Em especial, Adriana
Perusin e Maria Helena Moreira Alves, Marta Ramos, Mônica
Cavalcanti, Chris Magnavita e Adriana Lacerda.

Um agradecimento especial vai ainda para a Fundação Roberto


Marinho, que teve um papel fundamental na viabilização deste
livro. Toda a minha gratidão a José Roberto Marinho e a Hugo
Barreto, respectivamente presidente e secretário-geral da ins-
tituição, por sua aposta na importância desta publicação, bem
como a Luis Erlanger, diretor da Central Globo de Comunicação.
Decifra-me ou te devoro, diz a favela. A cidade, que não
consegue enfrentar a questão, é forçada a entregar seus filhos
à morte, dia após dia, por anos e anos.
Desesperada, a cidade chama os generais, mas eles falham
e também se assustam, pois a pergunta não cala e os jovens
militares são os primeiros a matar e a morrer.
Olha para mim, diz a favela. Ouve o meu som: quatro patas
pela manhã, duas à tarde, três à noite. É o enigma que os
correspondentes do Viva Favela estão a revelar.

Rubem César Fernandes

Mais do que nunca, o poder está ligado à comunicação.


Quanto mais informação circular, mais difícil será a
reprodução de autoritárias relações de poder. Mas como
interromper a perversa dinâmica que restringe o acesso às
informações e (re)produz exclusão cultural?

Regina Novaes
SUMÁRIO

12 Apresentação — Ilana Strozenberg


14 Introdução

Cap.01 O portal decola


22 Em busca de novos ângulos
30 Notícias além do front
38 Na boca do lobo

Cap.02 Batalhas (e alegrias) cotidianas


52 Memória resgatada
63 Com o pé na lama
71 Segunda é dia de festa

Cap.03 No rumo certo


82 Derrubando muros
94 Passarela de tábuas
103 Comando verde

Cap.04 Turbulência no ar
116 Repórter bom é repórter vivo
128 Um divisor de águas
138 Códigos de conduta

Cap.05 Favela em foco


150 Luz sobre o beco
162 A bomba de MV Bill
176 Do outro lado da tela

Cap.06 O avesso do gueto


186 Rede virtual
197 Jornalismo é coisa de ONG?
210 A semente estava lançada

214 Anexo 01 Matérias selecionadas


311 Anexo 02 Correio virtual
324 Anexo 03 Todos no mesmo barco

331 Referências bibliográficas


332 Sobre a autora
Apresentação

A primeira vez em que entrei numa favela foi pela tela do compu-
tador. Viva Favela! O nome no alto da página do portal criado pelo
Viva Rio parecia um convite. Aceitei. E, a cada click do mouse,
aquela visita virtual fazia com que me sentisse cada vez mais
próxima do cotidiano das favelas e de seus moradores.

Um cotidiano que contrastava fortemente com o que me era


dado conhecer através das notícias que, num contexto marcado
pelo acirramento da violência urbana – estávamos no início da
década de 2000 –, predominavam nos meios de comunicação.
Ao invés de criminalidade e perigo, cenas de uma sociabilidade
original, dinâmica e criativa; ao invés de pessoas fadadas a um
destino de carência e desesperança, personagens fascinantes,
empreendedores e cheios de histórias para contar.

Aquela diferença me conquistou e me intrigou ao mesmo tempo.


Ali, sem dúvida, alguma coisa inédita estava acontecendo no
campo do jornalismo. Inédita, em primeiro lugar, no que se refere
ao tipo de enfoque e informação veiculada: de espaço do estigma,
a favela se transformava em espaço de vida. Mas inédita também,
como percebi logo depois, na sua forma de produção. Com uma
equipe composta por jornalistas profissionais e correspondentes
comunitários, moradores de diferentes comunidades faveladas
do Rio de Janeiro, o Viva Favela estava implementando uma expe-
riência totalmente nova, em que relações de parceria e criação de
redes eram as palavras-chave.

Essa iniciativa precisava ser investigada. Movida por um inte-


resse que, como descobri posteriormente, era compartilhado
com outros estudiosos do campo da comunicação e das ciências
humanas e sociais (o Viva Favela foi tema de alguns trabalhos
universitários no Brasil e no exterior), reuni alguns alunos da
graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal
do Rio de Janeiro num laboratório e pesquisa e, juntos, busca-
mos conhecer um pouco mais sobre o funcionamento do site e
13

compreender melhor a sua proposta, o modo como era realizada,


seus sucessos e impasses. Tudo isso na perspectiva dos respon-
sáveis diretos pela sua criação e produção. Cristiane Ramalho,
que, na época, desempenhava a função de editora, mas integrava
o projeto praticamente desde o seu início, em 2001, foi nossa
anfitriã e mediadora junto à equipe do Viva Favela. A convicção
e, não seria exagero dizer, paixão com que realizava seu traba-
lho, jamais comprometeu a abertura com que falava e discutia
a esse respeito. Ou com que colaborava para que outras vozes,
mesmo que divergentes, fossem ouvidas.

No decorrer da pesquisa, acabamos parceiras. A oportunidade


e urgência de fazer o registro da experiência de implantação
do Viva Favela nos seus primeiros cinco anos de existência era
uma evidência para ambas. E, certamente, ninguém melhor
para escrever essa história do que a própria Cristiane. A sobrie-
dade com que lida com sua participação pessoal e profissional
no projeto, somada à sua sensibilidade e talento jornalístico, só
fazem tornar o seu relato mais fluente e vívido, levando o leitor a
participar da aventura, muitas vezes complexa, de fazer do jor-
nalismo um espaço em que a informação seja ao mesmo tempo
resultado e estímulo de trocas. Em que democracia e interativi-
dade não sejam meras palavras, mas práticas efetivas.

Ilana Strozenberg
PAULO CARDOSO, MORADOR DO CANTAGALO
Matéria: Vizinhos de toda hora
Viva Favela 18/04/2003
Crédito: Walter Mesquita
15

Introdução

Impossível entender o Rio de Janeiro sem conhecer a favela.


Mas quem realmente a conhece? Mais de um milhão de pes-
soas que vivem nela, com certeza. Fora isso, talvez um ou outro
cidadão, movido pela curiosidade ou por algum trabalho que
exija uma subida ao morro. E só. Em geral, é raríssimo encontrar
moradores do asfalto dispostos a fazer uma visitinha a essas
áreas, consideradas cada vez mais “de risco”. Não sabem o que
estão perdendo.

Para quem consegue vê-la de perto, a favela carioca é um dos


lugares mais intensos da cidade. E infinitamente mais interes-
sante do que o que se vê na imagem transmitida pela grande
mídia, que tende a cobrir majoritariamente fatos ligados à vio-
lência. Uma cobertura monocromática que levou um grupo de
líderes comunitários a sonhar, mais de uma década atrás, com
uma nova forma de se falar da favela.

Eles queriam uma abordagem mais precisa e menos precon-


ceituosa dessas áreas, e pediram ao Viva Rio (leia-se Rubem
César Fernandes, diretor-executivo dessa ONG) que articulasse
uma mudança nesse sentido. O desejo foi levado, em 1995, a
representantes dos três jornais de maior circulação na época,
no Rio de Janeiro: Walter Mattos (O Dia), João Roberto Marinho
(O Globo) e Kiko Brito (Jornal do Brasil), que se comprometeram
a ajudar na empreitada.

Seria preciso esperar até julho de 2001, no entanto, para conhecer


o Viva Favela – um portal criado pelo Viva Rio capaz de produzir
uma visão mais abrangente dessas comunidades e, para a sur-
presa de muitos, interferir na pauta da mídia tradicional. O segredo
estava na redação, formada por quinze moradores de favela – os
“correspondentes comunitários” – que atuavam como repórteres
e fotógrafos, sob a supervisão de jornalistas profissionais.
16 Notícias da Favela

A criação do portal coincide com a explosão da Internet, que


permite o surgimento de novos canais de comunicação imunes
aos aumentos no preço do papel, que tanto atemorizam a mídia
impressa. Coincide, também, com uma cobertura cada vez mais
limitada das favelas pela imprensa do Rio. Até a clássica repor-
tagem que sobe o morro no rastro das patamos começava a ficar
extremamente difícil. E as pautas de fôlego iam se tornando mais
raras. Nem sempre por falta de interesse, é verdade. Mas, acima
de tudo, por questões de segurança.

Uma cautela justificável quando se considera a ampliação do


domínio do narcotráfico sobre as favelas do Rio a partir da década
de 1990. O assassinato do jornalista Tim Lopes, da Rede Globo,
durante a apuração de uma matéria na favela da Grota, em meados
de 2002, funciona como um divisor de águas e impõe limites ainda
mais severos às equipes que cobrem essa área. Além da própria
Globo, vários outros veículos adotam regras rígidas para proteger
seus profissionais. Em 2004, a polêmica em torno das barreiras
de atuação dos jornalistas nas favelas se intensifica quando uma
jovem repórter da TV Band é ferida durante a cobertura de um
tiroteio aos pés do Dona Marta, na Zona Sul do Rio.

Esse panorama ajuda a transformar o Viva Favela numa das prin-


cipais fontes de informação sobre essas áreas. E o que parecia
impossível acontece. De repente, a grande mídia começa a ser
influenciada por um projeto de comunicação pequeno e indepen-
dente, criado e mantido por uma ONG. Com acesso a histórias e
personagens que só poderiam ser descobertos na própria favela
– ou por meio de fontes que os veículos tradicionais geralmente
não têm nos morros –, o portal oferecia aos jornalistas um atalho
seguro para chegar às comunidades do Rio.

Olhando pelo retrovisor, é certo que o projeto teve um caminho


acidentado. Mas conseguiu dar algumas tacadas certeiras. Entre
elas, o Caso Borel – um dos mais graves exemplos de violação
de direitos humanos no Brasil, ocorrido em 2003. Ao investigar
e dar publicidade a um e-mail que denunciava a execução de
Introdução 17

quatro trabalhadores da favela pela polícia, o Viva Favela fez


a história, que fora praticamente ignorada pela mídia, ganhar
repercussão nacional e internacional.

Nada mal para um projeto cujo arcabouço começara a ser dese-


nhado apenas três anos antes, a partir de conversas entre o
antropólogo Rubem César Fernandes e jornalistas experientes,
como Marcos Sá Corrêa. Foi provavelmente na conversa com
Marcos que surgiu a idéia de se criar uma redação formada por
correspondentes em favelas, sob inspiração do hoje extinto site
No. (2000-2002) – revista eletrônica pioneira com colaboradores
em vários pontos do país. Antes da virada para 2001, o portal já
começava a ganhar forma nas mãos dos jornalistas Xico Vargas,
fundador do Viva Favela, e Oscar Valporto, e do próprio Rubem
César. Mais alguns meses, e estaria no ar.

Um dos luxos do Viva Favela – e talvez seu maior pecado – foi


investir numa redação que chegou a ter quase trinta pessoas.
Um time difícil de financiar, especialmente para um veículo que
não tinha recursos próprios e precisava contar com patrocínios
para sobreviver. Um balanço do seu acervo, no entanto, faz pen-
sar que valeu a pena.

O portal investiu, por exemplo, na criação de quatro novos sites


nas áreas de memória, gênero, meio ambiente e apoio jurídico,
o que ampliou sua vocação para atuar como rede multiplicadora
de oportunidades para o morador de favela, fazendo pontes
entre diversos segmentos da sociedade. Também alcançou
credibilidade suficiente para se tornar fonte de pesquisa em
estudos acadêmicos.

Uma de suas maiores limitações era atingir o público de baixa


renda – seu alvo primordial – num país onde apenas 19,6% da
população têm computador e 66,7% nunca navegaram na Inter-
net, segundo dados de 2006 do Comitê Gestor da Internet no
Brasil (CGI.br). Aos poucos, no entanto, ele começava a chegar
às favelas, como provaram duas pesquisas realizadas pelo
Instituto Superior de Estudos da Religião (Iser). As cartas tam-
18 Notícias da Favela

bém eram um belo indicador de que o portal falava efetivamente


com esse público.

E, se os donos de empresas jornalísticas têm objetivos definidos


– embora nem sempre explícitos – em relação a seus veículos,
o Viva Rio também sempre teve os seus. A ONG respeitava os
critérios jornalísticos adotados pela redação. Mas nunca negou
que sua intenção era fazer do Viva Favela um veículo capaz de
desconstruir a imagem limitada, equivocada e distante que
grande parte da sociedade faz dessas comunidades. Sem com-
promisso com a lógica do mercado, o portal podia ainda dar aos
que vivem na favela uma rara oportunidade de se expressar.

O cotidiano na redação refletia essa liberdade. Nele, o clima era de


informalidade e aprendizado mútuo, sujeito a surpresas ocasio-
nais. Numa mesma semana, por exemplo, podia-se conviver com
a alegria barulhenta das modelos do projeto Lente dos Sonhos,
da Cidade de Deus; com uma videomaker norte-americana que
resolvera fazer um documentário sobre o projeto; ou com uma
rapper que tomava um cafezinho enquanto explicava por que o
hip-hop tem trânsito livre nas favelas cariocas e não se sujeita às
“fronteiras de facções”.

Dia da reunião de pauta, segunda-feira era quase sempre uma


festa. As sugestões revelavam a favela em suas várias dimen-
sões: cultural, social, econômica, histórica, humana.

De volta às suas comunidades, os correspondentes apuravam


e escreviam suas reportagens para entregá-las na reunião
seguinte. O que acontecia com eles entre uma semana e outra
é, em grande parte, a matéria-prima deste livro.

Havia também as más notícias, é claro. Elas circulavam, sobre-


tudo, nas conversas paralelas, já que os correspondentes privile-
giavam escancaradamente o lado não-violento e cor-de-rosa de
suas comunidades. Muito raramente aceitavam falar sobre vio-
lência. Para abordar o tema, foi preciso recorrer aos jornalistas
profissionais. Com garra e sem infra-estrutura, eles conseguiram
Introdução 19

mostrar que os moradores de favela são as maiores vítimas da


falta de segurança pública no Rio, com suas vidas acossadas
entre a ditadura do tráfico e a truculência da polícia.

No conjunto, as reportagens – tanto dos correspondentes quanto


dos jornalistas – traçavam um panorama singular. Uma riqueza
reforçada pelas mais de quarenta mil imagens produzidas pela
equipe de fotógrafos do portal. Elas formam um acervo único no
país. Um painel de cores, gentes, desejos e dores que leva à cer-
teza de que morro e asfalto são interdependentes, fazem parte
de uma mesma cidade.

O destino de um está irremediavelmente ligado ao do outro.


Mas, para gostar (ou detestar), é preciso conhecer. Foi o que fiz
de 2001 até 2005 – período relatado neste livro, quando viven-
ciei intensamente a evolução do Viva Favela. Como redatora, no
primeiro ano, e, posteriormente, como editora-chefe e coorde-
nadora do projeto. É essa experiência que procuro contar aqui,
com a certeza de ter testemunhado algo que merece registro e
que pode servir de modelo para iniciativas semelhantes. Com a
palavra, a favela.
Capítulo 1
21
Em busca de
novos ângulos

A vista para o mar é indevassável. E o silêncio (quase sempre)


garantido. Mas a vantagem de se morar no Caranguejo, pequena
favela fincada no topo do morro do Pavão-Pavãozinho, acaba aí.
De costas para a praia de Copacabana, o que se vê são pessoas
vivendo em casebres de estuque, num estado de miséria quase
absoluta. Uma hora de descida íngreme, e anos-luz de quali-
dade de vida, separam seus moradores de um dos bairros de
maior poder aquisitivo do país.

São habitantes de um Rio de Janeiro tão fora do mapa, que


até mesmo quem morou a vida inteira em seus arredores pode
nunca ter ouvido falar deles. Como Rita de Cássia, correspon-
dente do Viva Favela, que descobriu o lugar quando batia perna
pelo morro à procura de pautas.

Rita saiu devastada ao descobrir que as crianças ali mal sabem


o que é comida. Em muitas casas, não há cama ou mesa.
Em outras, falta banheiro e cozinha.

Em quase todas, produtos básicos de higiene, como sabonete e


fralda, são raríssimos. A correspondente, que mora no morro do
Cantagalo, geminado ao Pavão-Pavãozinho, numa confortável
casa de dois andares com vista para o mar de Ipanema, ficou
assustada com a descoberta. Para ela, vilas desse tipo só existiam
nas imagens distantes dos grotões do país que chegam pela TV.

22
Em busca de novos ângulos 23

“O contraste social não existe só quando a gente olha do morro


para baixo e vê os grandes prédios de Copacabana e Ipanema.
A gente tem isso dentro da própria comunidade”, comentaria
Rita, assombrada ao se perceber deslocada para o “status” de
elite do morro.

Não foi uma reportagem fácil. Até fechar a apuração, Rita voltou
ao topo do Caranguejo, a porção Brejo da Cruz1 de Copacabana,
umas cinco vezes. Uma caminhada pesadíssima, pontuada
por becos, ladeiras e escadarias de tirar o fôlego. Chegou a se
rebelar durante uma reunião de pauta: “Parei. Não subo mais!”,
decretou. Mas foi convencida a terminar a história, que mudaria
sua percepção da favela e de si mesma.

Escrita a matéria, a correspondente resolveu fazer um pequeno


mutirão no Cantagalo para levar roupas e alimentos aos vizi-
nhos. Também colocou o assunto em pauta na associação de
moradores. Filha do baiano João Pinto, prestigiado líder comu-
nitário, ela sempre tentou fugir da política. Porém, vira e mexe
está envolvida em alguma mobilização.

No programa que apresenta voluntariamente na rádio comuni-


tária do Cantagalo, a Panorama FM, é a Rita romântica que entra
em cena. Ali ela só toca músicas de flashback, pinçadas de sua
invejável coleção de LPs e CDs. A correspondente é do tipo que
adora ouvir desde clássicos até chorinho, passando por black
music e rap. Só não suporta as letras do funk “moderno”, “extre-
mamente infantis e sem conteúdo nenhum”, na sua avaliação.
Mesmo assim, meteu-se a pautar o tema, em meados de 2002.
Não sabia o tamanho da roubada em que estava se metendo.

1 Cidade nordestina que inspirou letra da composição homônima de Chico Buar-


que: “A novidade / Que tem no Brejo da Cruz / É a criançada / Se alimentar de luz /
(...) há milhões desses seres / Que se disfarçam tão bem / Que ninguém pergunta /
De onde essa gente vem / São (...) jardineiros / Guardas-noturnos (...) babás (...)”
24 Notícias da Favela

Naquele momento, o funk estava na primeira página dos jornais.


E acabou invadindo a nossa reunião de pauta, num raro caminho
inverso. Geralmente, o Viva Favela fugia do que já era manchete.
Dessa vez, no entanto, a notícia era uma bela pista para o portal
sair em busca de uma história inédita.

A bola fora levantada pela Secretaria Municipal de Saúde,


a partir de estatísticas coletadas entre pacientes atendidas
pelo serviço público. Segundo a repercussão da imprensa,
os médicos estavam preocupados com o aumento do número
de adolescentes grávidas que diziam desconhecer a paterni-
dade de seus filhos. Algumas admitiam fazer sexo com mais de
um rapaz numa mesma noite durante os bailes funk, entre uma
ou outra dança erótica, da qual participavam até sem calcinha,
numa roda-viva que acabava gerando filhos não programados.

O tema provocou intensa discussão entre os correspondentes, o


que era um bom indicador de que a pauta deveria render. Como
realmente rendeu. Rita não se limitou ao foco original e, depois
de muito apurar, mandou um texto quilométrico sobre o funk em
geral. A reportagem, na verdade, desdobrava-se em três assun-
tos: o “funk dos playboys”,2 a carreira dos MCs3 e a reação das
mulheres ao estilo musical – de longe, a melhor das três opções.

Nela, o que mais chamava a atenção era uma dona-de-casa de


31 anos que gostava de ir para a cama com o marido ouvindo
“Vai, Serginho” — o grande hit funk da época, que ultrapassara
os limites das favelas e invadira as festas dos bacanas da Zona
Sul carioca. Associado geralmente ao sexo sem compromisso
dos jovens nos bailes e becos, o funk era capaz de excitar
uma dona-de-casa balzaquiana na favela. Isso parecia novo.
De que forma as mulheres, tratadas nas letras como “cachor-
ras”, enxergavam-se, afinal? Rita teria de entrar em campo
novamente para aprender mais sobre a visão feminina do funk.

2 Como são chamados na favela os “mauricinhos” (rapazes bem comportados)


do asfalto.
3 Mestres de Cerimônia.
Em busca de novos ângulos 25

Boa repórter, ela conseguiu um punhado de ótimos depoimen-


tos. Entre eles, o de duas jovens que contavam, sem falsos
pudores, suas experiências sexuais em noites de baile. Eram
depoimentos levemente picantes, mas, acima de tudo, ingê-
nuos. Quando liguei para checar as aspas das moças, Rita con-
firmou cada vírgula.

Na reportagem, uma das jovens admitia que, na onda dos “casais


funkeiros”, já transara no beco com um antigo namorado, pai
de seus dois filhos. Dizia ainda que isso era uma coisa comum
entre suas amigas. A segunda adolescente contava que já vivera
“muitas aventuras” no beco com o namorado, com quem estava
havia oito anos, por causa do funk. Numa dessas, ficara grávida.
Pronta, a matéria foi entregue para Márcia Vieira, que acabara
de substituir Oscar Valporto no comando do Viva Favela. Márcia
gostou, mas achou que faltava o depoimento de um psicanalista
que pudesse ampliar a reflexão sobre o tema.

Fiz a entrevista com um psicanalista conceituado, que identifi-


cou nas meninas dos bailes funk traços do movimento feminista
que sacudiu a vida sexual das mulheres na década de 1970.
Porém, com vestígios contraditórios de machismo, que elas
incorporariam ao se identificarem com a “figura da cachorra”.
É como se, fora da maternidade, dizia o psicanalista, as mulhe-
res não tivessem valor.

Depois de publicada, a matéria (“No ritmo do desejo”) foi


impressa e colocada num lugar visível para que os moradores
sem Internet do Cantagalo e do Pavão-Pavãozinho pudes-
sem lê-la: o mural da sede de Ipanema do Espaço Criança
Esperança,4 projeto que atrai diariamente centenas de pessoas
das duas comunidades em busca de atividades educacionais,
culturais e esportivas.

4 O Criança Esperança tem quatro unidades próprias. A do Cantagalo / Pavão-


Pavãozinho foi a primeira a ser criada, em 2001, e atende a cerca de dois mil jovens.
26

VISTA DO CARANGUEJO,
NO ALTO DO PAVÃO-PAVÃOZINHO, EM COPACABANA
Matéria: Os esquecidos no topo
Viva Favela 16/04/2002
Crédito: Deise Lane
27
28 Notícias da Favela

Com uma vitrine daquelas, não demorou a ser lida no morro


e começar a produzir fofocas e mal-estar. As críticas chegaram
rápido aos ouvidos das duas jovens, que imediatamente se
deram conta do peso do que tinham dito. Para remediar a situ-
ação, elas queriam que a matéria fosse retirada do ar – embora
confirmassem cada vírgula do que disseram. Acompanhadas por
Rita, foram pessoalmente ao Viva Rio fazer o pedido, aos prantos.

Quando a bomba estourou, Márcia Vieira já não estava mais


na ONG. Em seu lugar, recém-chegada, estava Claudia Mattos.
Coube a ela apagar o incêndio. Após uma reunião de emergência
para discutir o assunto, a matéria foi finalmente “despublicada”.
O episódio mostrou que seria preciso multiplicar o cuidado
com o possível impacto das declarações feitas pelos entre-
vistados – quase sempre vizinhos e amigos de longa data dos
correspondentes. Muitas vezes, era melhor filtrar, e até excluir,
informações que fariam mais mal ao personagem do que bem à
matéria. Em último caso, a preservação da identidade poderia
ser também uma saída.

A história revelou, sobretudo, o quanto era difícil equilibrar o


exercício do jornalismo profissional com os efeitos que as repor-
tagens poderiam ter sobre o microcosmos de determinadas
favelas. Principalmente porque isso afetava diretamente o tra-
balho dos correspondentes – e podia abalar também a relação
de confiança que mantinham nas comunidades.

Em geral, os próprios correspondentes se encarregavam de


censurar as informações que conseguiam. Às vezes, erravam
a mão e era preciso colocá-los contra a parede para arrancar
dados preciosos que faltavam no texto – e que não poderiam
fazer qualquer mal. “Não quero ganhar meu salário às custas do
sofrimento de ninguém”, justificava Rita.

Como correspondente, seu maior desejo sempre foi conduzir


o leitor até o chão da favela, para que ele pudesse olhá-la de
forma diferente e visse como tudo é relativo. Nascida em maio
de 1964, Rita cresceu numa comunidade povoada por casebres
Em busca de novos ângulos 29

de madeira e estuque. Um morro cercado por muito verde – como


a maioria das favelas espalhadas pelas encostas do Rio era até
pouco tempo atrás. Do asfalto, era impossível avistar então as
casas do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho que hoje já despontam,
pairando sobre os prédios de Ipanema e Copacabana.
Notícias além
do front

Ninguém sabia exatamente o que seria um “correspondente


comunitário” quando o Viva Rio começou, no início de 2001, a
recrutar moradores em favelas cariocas para trabalhar no por-
tal. Mesmo assim, a notícia soava sedutora. Atraídos pela divul-
gação feita com a ajuda de rádios comunitárias e de projetos e
parceiros da ONG, os candidatos logo começaram a aparecer.
Tinham idades, experiências profissionais e expectativas varia-
das. Alguns buscavam uma fonte de renda, outros achavam que
seriam apenas voluntários.

Quem já tivesse trabalhado em algum veículo comunitário –


rádio, jornal ou TV – teria certa preferência. Mas, em alguns
lugares, era impossível contar com isso, simplesmente porque
não havia qualquer meio de comunicação local.

Antes de mais nada, os candidatos precisavam escrever uma


redação sobre a própria comunidade. Caso ela fosse aprovada,
teriam ainda de fazer uma entrevista na sede do Viva Rio. Logo
a pilha de redações se avolumou na mesa de Rosana Bensusan,
subeditora do Viva Favela e responsável pela organização do
processo. Rosana decidiu selecionar quatro ou cinco candida-
tos por favela. Porém, julgar apenas a qualidade dos textos não
ajudava muito. Não eram jornalistas profissionais e não tinham
a obrigação de escrever bem, pensou ela. Seria preciso adotar
um novo critério. Mas qual?

30
Notícias além do front 31

O estalo veio durante a entrevista com Bete Silva, do Complexo


do Alemão, que contou uma história sobre os velhos da comuni-
dade que não podiam sair de casa e só sobreviviam graças aos
vizinhos. Bete achava que o assunto poderia render uma pauta.
Rosana também gostou da história: “Vi que a solidariedade
era um fato marcante na favela, ao contrário do asfalto, onde
cada um conta com a sua família e olhe lá”.

Naquele momento, a jornalista percebeu que encontrar pes-


soas com sensibilidade para revelar sua própria comunidade
seria um bom diferencial. E foi isso que tentou detectar em
cada uma das dezenas de entrevistas que fez. O grande número
de candidatos era reflexo da rede do Viva Rio nas favelas e do
apoio das rádios comunitárias, contatadas pelo radialista Tião
Santos, que fez o meio de campo com os correspondentes na
fase inicial do portal. Mais tarde, ele coordenaria a Rede Viva
Favela de rádios comunitárias.

Depois de selecionados, os quinze correspondentes comuni-


tários – cinco de fotografia e dez de texto – foram obrigados
a passar por um processo de capacitação. Ao longo de uma
semana, aprenderam os fundamentos do jornalismo e fotojor-
nalismo – pauta, apuração, lead e sublead – e receberam dicas
de computação e Internet.

Era pouca munição, é verdade. Mas suficiente para mandá-los


de volta para suas comunidades em busca de boas pautas.
Em abril de 2001, o time já estava treinado e pronto para entrar
em campo. Antes disso, porém, seria preciso vencer um último
obstáculo: a desconfiança. Muitos foram atraídos pela popu-
laridade da “marca” Viva Rio, bem arraigada no Rio de Janeiro.
Mas ainda mantinham um pé atrás.

“A gente fica com muito receio porque não sabe onde está
pisando”, contaria depois Bete Silva, que, afinal, conquistara a
vaga de correspondente do Alemão. Ela só conhecia o Viva Rio “de
nome”, mas resolveu se candidatar porque gostou da proposta.
Morar em favela, para Bete, exige cuidado com o que se fala.
32

MORADORES CRIAM PEQUENOS OÁSIS


NAS LAJES DA ROCINHA
Matéria: Sem inveja do Piscinão
Viva Favela 01/02/2002
Crédito: Nando Dias
33
34 Notícias da Favela

Cuidado que não é tomado pelo jornalista dos meios tradi-


cionais, na avaliação da correspondente. “O repórter não se
importa com quem está ali, mas sim com a matéria dele. E isso
pode levar ao sensacionalismo e a uma visão deturpada. Por
isso, a comunidade não vê o repórter com bons olhos”, diz Bete.

Os correspondentes que começavam a entrar em campo


temiam, sobretudo, revelar histórias que os colocassem em
“posição de confronto” com a comunidade. Também não que-
riam ser obrigados a “contar coisas que fossem prejudicá-los”,
como lembra Rosana. Repetiam o tempo inteiro, por exemplo,
que não aceitariam falar sobre o tráfico.

Levou tempo até o projeto conquistar sua confiança. Quando


começaram a relaxar, ficou claro o quanto poderiam trazer de
novidade para o jornalismo carioca. Primeiro, porque tinham
um conhecimento profundo daquela realidade. E, ao contrário
dos repórteres “de fora”, podiam gastar dias e dias em busca
de uma boa pauta. Depois, porque não tinham as amarras de
um certo tipo de jornalismo comunitário que opera atrelado aos
interesses de grupos políticos, locais ou externos.

Ao pisar onde muito provavelmente nenhum jornalista pisara


antes, os correspondentes logo perceberam que tinham um
manancial de histórias inéditas nas mãos. Antes de começar
a garimpá-las, porém, eles precisavam aprender o que era uma
boa pauta. Para chegarem lá, ajudou bastante a garra com que
mergulhavam nas próprias comunidades. Contou também a
experiência da equipe da redação. Rosana, que coordenava
as reuniões de pauta, era uma das grandes estimuladoras do
grupo. Meiga, de sorriso largo, a jornalista orientava o time sem
cobranças extremas nesse difícil começo, o que certamente
facilitou a aprendizagem.

Rosana chegara ao Viva Rio quando o projeto Viva Favela sequer


tinha sala própria. Trocara um cargo na Rede TV! pelo portal e
estava feliz. Achava que essa era uma chance única de traba-
lhar em algo que “fizesse alguma diferença”. A jornalista conti-
Notícias além do front 35

nuaria a investir na formação dos correspondentes até sair da


ONG, em meados de 2002, quando se mudou para o telejornal da
Rede Globo “Bom-dia, Brasil”. Jamais esqueceria a experiência:
“Passei a ter um contato muito intenso e diário com pessoas
maravilhosas de várias comunidades. E me encantei muito por
elas”.

Com idades entre 18 e 47 anos, a equipe que vingou tinha um per-


fil bem heterogêneo. E era mesmo encantadora. No início, o fato
de morarem na favela era o grande ponto de convergência. Con-
tudo, logo descobririam que havia muito mais coisas em comum.

Todos sempre preferiram, por exemplo, mostrar “a favela


do bem”. Era uma forma de trabalhar uma imagem diferente
da que costumavam encontrar na mídia tradicional – e isso
coincidia com um dos objetivos do portal. Mas era também a
garantia de que não correriam risco ao andar pelas ruas com
uma máquina fotográfica ou um bloquinho e uma caneta. “Vocês
colocam o pé na favela e saem correndo. A gente continua lá.
Nós é que vamos ser chamados para o ‘desenrolo’1”, costuma-
vam dizer aos jornalistas, nas reuniões de pauta, sempre que
aparecia uma história mais quente para ser apurada.

E tinham razão. Era preciso não ultrapassar os limites de segu-


rança. Com o assassinato do jornalista Tim Lopes, em meados
de 2002, isso ficou ainda mais claro. Como veremos adiante,
o fato deixou toda a imprensa carioca, incluindo a equipe do
Viva Favela, sob tensão. Em especial, Bete Silva e o fotógrafo
Rodrigues Moura, moradores e correspondentes do Complexo
do Alemão, onde Tim foi morto.

Diante desse contexto, a cobertura da morte do jornalista pelo


Viva Favela – ainda sob a gestão de Claudia Mattos, que ficou
cerca de três meses à frente do portal – não foi nada fácil.
Mesmo assim, a equipe conseguiu produzir quatro ou cinco

1 Explicações que moradores eventualmente são obrigados a dar aos traficantes


sobre determinados fatos.
36 Notícias da Favela

reportagens. Elas traziam as impressões gerais dos moradores


diante da repercussão do assassinato. Alguns indagavam, em
depoimentos anônimos, por que outras vítimas inocentes do trá-
fico nas favelas não tinham a mesma atenção por parte da mídia
e das autoridades.

“Fico abismado quando vejo os bombeiros desenterrarem


vários esqueletos em busca de um, e tratar os outros com
descaso”, dizia um morador. “Milhares de pais, mães, irmãos
e familiares dentro das favelas sabem exatamente onde estão
os restos mortais de seus entes queridos e mesmo assim não
podem sequer passar perto”, completava outro. De toda a série,
a única reportagem assinada foi feita pelo repórter Dirley Fer-
nandes, que radiografou a situação em Vila Cruzeiro, na Penha
– onde acontecia o baile funk que Tim queria retratar. O jorna-
lista observou que os moradores estavam com medo e seguiam
“mais do que nunca a lei do silêncio”.

Mesmo assim, era possível notar que o traficante Elias Maluco,


que mais tarde seria acusado e preso pela morte de Tim, não
era “tão mal visto” por alguns na comunidade, apesar de todos
confirmarem sua fama de violento. Além de “resolver problemas
de moradores, para angariar simpatia”, segundo a reportagem,
ele dava “preferência para postos-chave em seu exército (...),
na Penha e no Alemão, a jovens recrutados no próprio local”.

Logo depois do assassinato, Bete Silva – que sempre circulara


pelo Alemão sem dar explicações – foi abordada de forma sutil.
A correspondente conta que estava no morro entrevistando
uma criança, quando um rapaz que vinha descendo parou para
perguntar se ela estava fazendo alguma reportagem. “Ele quis
saber se eu era repórter aí de fora. Eu disse que não, expliquei
qual era o objetivo do trabalho. Então, ele disse que estava tudo
bem. Até hoje eu não sei quem são eles, mas eles sabem quem
eu sou”, diz a correspondente, numa referência velada aos trafi-
cantes da comunidade.
Notícias além do front 37

Bete passou a evitar a palavra “repórter” ao se apresentar na


favela. Era correspondente comunitária e ponto. Do dia para a
noite, o fato de ser uma antiga e respeitada moradora do Ale-
mão, de ter sido professora de meio mundo na creche local e de
ainda ser chamada de “tia” por muito marmanjo parecia não ser
mais garantia de tranqüilidade.

“Depois do que houve (a morte do Tim), esse nome ficou muito


‘fichado’”, explica. Não era paranóia. Um dia, ela estava passando
e ouviu alguém gritar: “Olha lá o ‘tim lopes’”. Para o tráfico, Tim
virou sinônimo de “X-9”.2 Podia ser mera brincadeira, mas podia
também ser um aviso. “Quando eles estão com a cabeça meio
alta demais, a gente não sabe do que são capazes”, admite Bete.

Passado o susto, ela voltou a ter trânsito livre. “A gente sobe


morro, desce morro, vai para um canto, para outro. As pessoas
abrem as portas de suas casas para a gente entrar. Somos
muito bem recebidos. Essa é uma relação que não pode que-
brar”, dizia Bete, enquanto ainda era correspondente. Ela, no
entanto, jamais voltaria a acompanhar jornalistas da TV Globo
pela favela, como costumava fazer até a morte de Tim. Nem de
nenhuma outra emissora.

2  Informante da polícia.
Na boca
do lobo

Nascida na cidadezinha de Cruzeiro, em São Paulo, Elizabeth


Aparecida da Silva, a Bete, desembarcou com a família no Com-
plexo do Alemão aos sete anos de idade, em 1965. Viúva recente,
sua mãe decidira tentar a sorte no Rio de Janeiro, de onde saíra
para se casar. Com os cinco filhos, mudou-se de São Paulo
para o Rio a bordo de um caminhão, na base da carona, instalada
sob uma lona com seus poucos pertences, as crianças e o
cachorro Foguete.

Foram morar no barraco de madeira com dois cômodos da avó.


“Nunca tivemos boa vida, nunca sobrou”, lembra Bete. Em com-
pensação, ela cresceu livre, soltando pipa e brincando com suas
duas únicas bonecas, de pano. Era uma época em que se podia
ficar à vontade na favela: “Ali não subia carro, não tinha perigo
nenhum”, conta a correspondente, hoje casada pela segunda
vez, mãe de três filhos e com uma neta adolescente. Ela mora na
mesma casa há mais de 25 anos – mas fez significativas melho-
rias desde então: “Botei laje, botei piscina”... Botou também uma
biblioteca comunitária, que mantém as portas abertas a todos.

Quem conhece Bete sabe do que ela é capaz. E meio morro a


conhece. Por suas mãos passou boa parte da criançada do
Alemão. Primeiro, nas classes de alfabetização que ela montou
por conta própria em casa e que depois foram absorvidas pelo
antigo Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral). Depois,
na creche comunitária que criou e manteve, sem ganhar nenhum

38
Na boca do lobo 39

tostão. A obra seria incorporada mais tarde pela prefeitura, que


contrataria Bete como educadora.

A vivência nas creches do município faria da correspondente


uma especialista na alma das famílias do morro – e a ajudaria
a pautar excelentes matérias para o Viva Favela. Bete conseguia
como poucos radiografar as mudanças de comportamento e
a vida entre quatro paredes. Investiu em temas delicados, como
a intimidade forçada pela falta de espaço nas casas da comuni-
dade (“Na frente das crianças”). Porém, não fugiu dos explosivos,
como a invasão de antigos prédios comerciais abandonados na
favela (“Fábrica de gente”).

Um balanço da sua vasta produção revela histórias que mos-


tram, acima de tudo, um lado do Complexo do Alemão feito de
valores positivos, como a capacidade de resistência e a hones-
tidade dos moradores. Nessa linha, uma das mais interessantes
é “Que morro bão, sô”. Nela, conta como os migrantes mineiros
criaram um núcleo dentro da comunidade e continuam a viver
como se ainda estivessem na calmaria da zona rural, com fogão
à lenha e cigarro de palha.

A solidariedade aparece em reportagens como “Carro é para


essas coisas”, onde Bete mostra a obrigação dos que têm auto-
móvel no morro de ajudar os vizinhos na hora do aperto. Já em
“Boa vida de cachorro”, a correspondente derruba o senso comum
de que pobre não gasta dinheiro com animal de estimação. Ela
sacou uma bela pauta ainda em “Pago quando puder”, quando
mostra o trabalho dos “prestanistas” – modernos mascates que
circulam livremente por diversos morros do Rio comercializando
produtos à prestação, sem levar em conta as invisíveis fronteiras
das facções. Com eles, não é preciso dinheiro, cartão de crédito
ou talão de cheque. Basta a palavra do comprador.

Bete não gosta de falar de tráfico de drogas, mas deixa escapar


sua tristeza com a disseminação do consumo na comunidade.
Até bem pouco tempo atrás, lembra a correspondente, ninguém
40 Notícias da Favela

fumava maconha nem cheirava cocaína na frente dos moradores.


Especialmente dos mais velhos.

O risco de se perder um filho para o tráfico também era mínimo


– fosse por “trabalho” ou bala. Entretanto, ver adolescentes no
“movimento”1 virou coisa banal, para desespero de muitas mães.
Algumas simplesmente se conformavam, impotentes. Outras
acabavam sendo coniventes. Havia, porém, as muito raras, que
faziam de tudo para tirar o menino da “boca”.2 Bete conseguiu
convencer uma dessas mães a falar sobre isso.

Publicada numa série em homenagem ao Dia das Mães, em


maio de 2002, “Na boca do lobo” relata a desventura de Solange
Santos de Freitas. Uma dona-de-casa que não hesitou em subir
à boca-de-fumo de madrugada para tirar o filho de lá. A história
provava a capacidade do morador de se opor e de dialogar com
o tráfico de drogas.

Nas entrelinhas, mostrava que há chances de negociação com os


bandidos. E que, com alguma sorte e muita coragem, é possível
obter a “liberação” de um dos “soldados” do tráfico. Como acon-
teceu com Solange. Seu filho, porém, teimou e quis continuar. Só
aceitaria a interferência da mãe tempos depois, ao perceber o
risco que estava correndo.

A dona-de-casa viu um único jeito de salvar o rapaz: mandá-lo


para bem longe do Rio e das drogas. Ele ainda vive fora da
cidade. Mas não pode mais contar com a força da mãe: Solange
morreu em 2005, sem conseguir combater “uma doença dos
pulmões”, segundo Bete.

A correspondente produziria dezenas de matérias ao longo de


mais de três anos no portal. Até que a faculdade de serviço
social, que começara a cursar quando já participava do Viva
Favela, e mais a sobrecarga do trabalho na prefeitura derruba-
ram sua produtividade a quase zero.

1 Tráfico de drogas.
2 Boca-de-fumo (local de venda de drogas).
Na boca do lobo 41

E ela não teve mais como continuar. O esforço, entretanto, seria


recompensado: em fevereiro de 2006, Bete conquistaria seu
diploma universitário.

Em seu lugar, entraria Marta Oliveira, que continuou a levantar


boas histórias. Ex-agente de saúde, ela conhecia bem várias
áreas do Complexo do Alemão – e era bem conhecida também.
Isso a ajudaria a fazer matérias para quase todas as editorias.
Marta descobriu, por exemplo, Irlan dos Santos Silva, de 14 anos,
um bailarino que conquistara um prêmio mundial em Nova York,
depois que a família rifou aparelho de jantar e bicicleta para
financiar sua passagem.

A matéria com Irlan teve boa repercussão na grande imprensa,


assim como “Carinho no asfalto”, que contava a história de volun-
tários do morro que desciam para ajudar moradores de rua no
asfalto. Marta também tocou de leve, e sem querer, na questão
das “fronteiras invisíveis” da favela. A matéria “Comida quase
de graça” falava de uma cozinha comunitária que servia duzen-
tas quentinhas por dia, a cinqüenta centavos cada, num espaço
que era uma espécie de “zona neutra” por empregar moradores
de três comunidades do Alemão separadas por forte rivalidade
entre facções.

Na mesma época de Marta, entrou La Toy Jetson. Negro, magro,


sempre bem vestido, gay assumidíssimo e dono de um bom
humor contagiante, La Toy era irresistível. Apresentava o pro-
grama “Show do La Toy” na rádio comunitária Rayzes FM (105,9),
e levou ares novos para as reuniões de pauta, fazendo alguns
correspondentes reverem seus (pre)conceitos. Sabia tudo do
Complexo da Penha. Ainda precisava, no entanto, progredir
bastante na apuração e no texto.

Era óbvio que tanto La Toy quanto Marta deveriam ter aulas,
mesmo que básicas, de jornalismo e computação. Contudo, os
dois pegaram o bonde andando e foram aprendendo na marra.
Como boa parte da equipe, aliás.
42

O MINEIRO ODILON JOSÉ RIBEIRO


ESTÁ NO MORRO DO ALEMÃO HÁ MAIS DE 35 ANOS
Matéria: Que morro bão, sô!
Viva Favela 23/11/2002
Crédito: Rodrigues Moura
43
44 Notícias da Favela

Lá pelo final de 2002, quando se olhava o grupo como um todo,


apenas uma minoria passara pelo curso inicial. Muitos entra-
ram no meio do processo.

Não ter um esquema mais ou menos regular para capacitar os


novos correspondentes e reciclar os antigos era um dos pontos
fracos do portal. Na correria do cotidiano, faltava tempo para
reflexões sobre a nossa prática. Chegamos a planejar uma série de
debates sobre jornalismo e favela. A idéia, porém, nunca vingou.

No início de 2003, a editora-assistente Tetê Oliveira – que assu-


mira a função em setembro do ano anterior – se dispôs a dar
aulas de reforço e capacitação. As aulas aconteceriam bem
cedo, na própria sede do Viva Rio. No primeiro dia, dos cinco
inscritos, apenas três chegaram. No segundo dia, apenas dois.
No terceiro, um. Diante da falta de tempo e de disciplina dos
correspondentes, não tinha como dar certo.

Tetê guardou as apostilas e não quis mais saber da história.


Continuou sempre aberta, porém, a tirar dúvidas e a ensinar
tudo o que podia. Os correspondentes sabiam que podiam con-
tar ainda com os jornalistas da equipe, que volta e meia davam
uma mãozinha.

Quanto mais o tempo passava, mais eles se tornavam os “queri-


dinhos” da redação – e a essência do portal. Curiosamente, nin-
guém sabe ao certo como surgiu a idéia de se criar uma revista
feita por moradores de favela. É provável que tenha sido mesmo
inspirada pelo extinto site No., revista eletrônica que mantinha
correspondentes em vários estados.

O jornalista Marcos Sá Corrêa lembra de ter dado uma sugestão


nesse sentido para Rubem César Fernandes: “A idéia de conectar
as favelas já estava pronta na cabeça do Rubem. O que discutimos
foi a possibilidade de botar os próprios favelados escrevendo e
fotografando, produzir conteúdo jornalístico, publicar anúncios…
Enfim, fazer o site”, conta Marcos, que já foi editor das revistas
Na boca do lobo 45

Veja e Época, diretor do Jornal do Brasil e do site No., hoje faz


parte do site O Eco e da revista piauí, que ajudou a criar.

O diretor-executivo do Viva Rio lembra, por sua vez, que os dois


chegaram a discutir uma parceria entre o site No. e o Viva Favela.
“Era o começo da onda da Internet e a gente pensou em fazer
um trabalho conjunto. Chegamos a estudar a possibilidade
de transformar o Viva Favela num braço social do No.”, conta
Rubem César, lembrando que os dois projetos foram gestados
juntos, no início de 2000”.

O fato é que a idéia de criar um corpo de repórteres que pudesse


atuar nas comunidades estava ligada à própria concepção do
projeto. Desde o início, segundo Rubem César, sabia-se que
“a força deveria sair de dentro das favelas”. Já a proposta de
combinar jornalistas profissionais com correspondentes “seria
burilada depois”, na medida em que o portal tomava forma.

Para delinear o Viva Favela, o diretor do Viva Rio conversaria


ainda com vários outros jornalistas. Entre eles, Xico Vargas, que
aceitou o convite de Rubem César para coordenar toda a fase de
elaboracão e desenvolvimento do portal. Jornalista desde 1970,
Xico – que tem na bagagem, entre outras, as redações do Jor-
nal do Brasil, O Dia, TV Globo e do site No Mínimo (para onde foi
depois de lançar o Viva Favela) – sempre adorou novos desafios.
Não teve como recusar.

“O No. já estava no ar e Rubem viu que a idéia de uma revista


eletrônica poderia funcionar. Entusiasmado, foi conversar com
os irmãos Marinho3 e propôs a criação de uma revista que trou-
xesse a favela para fora do gueto, para a luz do sol. Eles com-
praram a idéia no ato. Em três meses, a sugestão tinha virado
projeto”, lembra o experiente jornalista Xico Vargas, atualmente
também na revista piauí.

3 O jornalista se refere aos irmãos João Roberto e José Roberto Marinho, vice-
presidentes das Organizações Globo.
46 Notícias da Favela

A concepção do portal sairia de uma série de longas reuniões


entre Rubem, Xico e o jornalista Oscar Valporto. Os Marinho
se comprometiam, lembra Xico, a doar um milhão e meio de
reais para a criação e manutenção do portal durante um ano.
O financiamento sairia do recém-criado site Globo.com. Em
contrapartida, o Viva Rio deveria colocar o Viva Favela no ar em
seis meses e, nos seis meses seguintes, captar recursos para
seguir com as próprias pernas. Na prática, o dinheiro durou um
ano e meio, segundo Xico. Já a auto-suficiência seria uma meta
bem mais difícil de ser alcançada, como veremos mais adiante.

Xico lembra que não era fácil dar continuidade às conversas


com a diretoria da Globo.com – então uma empresa nova, que
ainda procurava acertar seu caminho. “Os interlocutores muda-
vam freqüentemente”, diz o jornalista. Oscar Valporto, editor-
chefe durante todo o primeiro ano de vida do portal Viva Favela,
admite que ficou frustrado com o desfecho da parceria.

Não que houvesse qualquer quebra de compromisso financeiro


por parte da Globo.com, diz Oscar. Mas, acima de tudo, porque
havia uma expectativa de que eles fossem “parceiros mais efe-
tivos”, o que os levaria a hospedar o Viva Favela na Globo.com e,
acima de tudo, a investir na expansão do acesso à Internet nas
favelas. “Naquele momento, a direção comprava a idéia de que
haveria milhares de novos usuários da Internet e que seria bom se
estivessem entrando via Globo.com”, lembra. E o Viva Favela seria
o parceiro ideal para abrir esse caminho, acredita o jornalista.

Porém, nada disso foi adiante. Na virada de 2000 para 2001, a dire-
ção mudou e eles se desinteressaram, segundo Oscar. “Passaram
a focar mais os públicos A e B. Estávamos em plena bolha e as
empresas buscavam caminhos para faturar. Tinha uma competi-
ção ferradíssima lá com o UOL, o IG, o Terra. E esse outro retorno
iria demorar demais. Assim, viraram meros patrocinadores”, diz
ele. Até hoje, o jornalista lamenta que esse caminho não tenha
sido seguido: “Daria ao Viva Favela uma visibilidade que jamais
teve, e levaria o acesso à favela quase de graça”.
Na boca do lobo 47

No entanto, a favela já tinha o que comemorar. O portal, afinal


de contas, era fruto de um pedido feito por lideranças comu-
nitárias ao Viva Rio, ainda em 1995. Na época, o recém-criado
Viva Rio organizava uma passeata de protesto contra a onda
de violência na cidade – o Reage Rio.

Para provar que o movimento não era elitista (o “Reage Rico”,


como provocavam seus detratores), o Viva Rio convidou a Fede-
ração das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro
(Faferj) para integrar a passeata – que levaria a favela em peso
para a rua. Em troca do apoio, impuseram uma condição: o Viva
Rio teria de ajudar a mudar a imagem da favela na mídia.

“Eles achavam que as favelas eram estigmatizadas demais, que


apareciam sempre com uma imagem violenta e negativa”, lem-
bra Rubem César, que, em seguida, organizaria uma reunião iné-
dita entre as lideranças comunitárias e os representantes dos
três principais jornais do Rio na época: Walter Mattos (O Dia),
João Roberto Marinho (O Globo) e Kiko Brito (Jornal do Brasil).
Dali saiu o compromisso de trabalhar essa nova imagem.

Chegou-se a pensar em criar uma agência de notícias – mas isso


não foi adiante. Somente em 2000, com a expansão da Internet,
apareceu a solução – investir num veículo virtual, muito mais
barato e viável. Assim surgiria o Viva Favela e sua nova pers-
pectiva. O impacto sobre a mídia tradicional levaria ainda algum
tempo para aparecer, mas seria consolidado a ponto de saldar a
promessa feita às lideranças anos antes.

“Quando a gente formulou o projeto, foi a recuperação de uma


dívida, um compromisso que a gente não tinha conseguido
resolver. A Internet estava em alta e, por acaso, o represen-
tante de um grande provedor de São Paulo passou por aqui.
Eu apresentei a idéia e ele ficou totalmente entusiasmado.
Aí, fui conversar com o João Roberto (Marinho), que era conse-
lheiro do Viva Rio. Ele disse: ‘Isso tem tudo a ver com inclusão
digital. Tem de ser uma coisa independente, mas a gente banca.’
Não vamos ficar atrelados a um provedor”, lembra Rubem César.
48 Notícias da Favela

Assim, as Organizações Globo acabaram viabilizando o desen-


volvimento e a manutenção inicial do Viva Favela.

Mas faltava trazer os leitores até o portal. Assim, a ONG deci-


diria ainda lutar pela inclusão digital. Para ampliar o acesso
à Internet nas favelas, o Viva Rio lançaria as Estações Futuro,
telecentros com banda larga e cursos de computação a preços
módicos. “Era uma forma também de investir nos jovens em
situação de risco social e ajudar na sua inserção no mercado de
trabalho”, explica Rubem César.

O projeto deveria andar lado a lado com o Viva Favela. Tanto


que os critérios para a escolha dos correspondentes estavam
diretamente relacionados aos locais onde seriam instaladas as
Estações Futuro: “Áreas de alta densidade demográfica, com um
acesso não muito difícil e parceiros que pudessem se articular
para fazer funcionar os telecentros”, segundo Oscar.

Hoje, as dez Estações Futuro espalhadas pelo Rio são centros de


desenvolvimento econômico, com aulas de profissionalização e
ajuda para entrada no mercado de trabalho. Em 2005, após uma
reforma capitaneada pela coordenadora Marta Ramos, as esta-
ções conquistaram auto-suficiência. Ainda são uma gota d’água
no oceano, mas realmente ajudam a ampliar o acesso ao mundo
digital nessas áreas.

A Estação Futuro da Rocinha, veterana entre as dez, foi lan-


çada oficialmente em abril de 2001. Quem ligasse os monitores
naquele momento já poderia ver o Viva Favela no ar. O lançamento
oficial do portal, porém, só aconteceria três meses depois, com
uma festança na sede do Viva Rio, na Glória (Zona Sul do Rio).

Além de ser uma forma de pagar a velha promessa feita às lide-


ranças comunitárias, o projeto confirmaria a determinação do
Viva Rio – tantas vezes associado à elite abastada da Zona Sul
carioca – de atuar nas favelas do Rio (vide Anexo 3). Ajudava ainda
a provar a viabilidade de uma proposta de inclusão digital que
dava voz às comunidades e produzia um novo olhar sobre elas.
Na boca do lobo 49

A jornalista Cristina De Luca, então gerente de conteúdo digi-


tal do grupo O Dia, diria, em 2005, que o portal representava
“a materialização de todo o potencial das modernas tecnolo-
gias da informação e comunicação para a liberdade de expres-
são”. Era “exemplar”, segundo a jornalista, ao se mostrar capaz
de “suprir a lacuna deixada pelos grandes meios” no registro de
fatos cotidianos das comunidades de baixa renda do Rio.
50

Capítulo 2
51
Memória
resgatada

Falar das favelas sob a perspectiva do presente ajudava a


explicar uma parte da vida no Rio de Janeiro. Mas faltava contar
como esses morros foram ocupados e por quem. Dizer de que
forma boa parte dessa população começou a chegar à cidade.
Revelar episódios como o do desembarque dos nordestinos, na
década de 1940, no “arara-porto” – ponto final para os cami-
nhões de paus-de-arara que viajavam levando gente em busca
de uma vida melhor.

Faltava lembrar os mutirões para levar água e luz ao topo dos


morros e a luta dos líderes comunitários para evitar as remo-
ções. E revelar as histórias de um tempo em que as vastas áreas
– hoje repletas de casas de alvenaria – eram mato puro e seus
novos moradores erguiam barracos de madeira com tetos de
zinco que inundavam e podiam ruir sob qualquer chuva mais
forte. Um tempo em que não se sabia reconhecer tiro de fuzil
nem cheiro de maconha.

Ninguém melhor do que os moradores mais antigos dessas


comunidades para contar essas histórias. Não por acaso,
eles eram os personagens principais do Favela Tem Memória
(FTM) – dos quatro sites do Viva Favela, o primeiro a ser criado.
Em longos depoimentos aos correspondentes, traçavam um
panorama raro da ocupação dos morros do Rio.

O FTM foi uma idéia genial do jornalista Flávio Pinheiro, que suge-
riu sua criação durante um encontro com Rubem. “Claro que, no

52
Memória resgatada 53

almoço, parecia simplíssimo fazer um trabalho de memória.


Depois, fomos descobrindo todas as imensas dificuldades de
realização desse desejo”, diz Flávio, que já ajudara Rubem César
a pensar o Viva Favela na pré-história do projeto.

Jornalista desde 1966, Flávio foi chefe da sucursal carioca da


Veja, criador da Veja Rio, editor-executivo do Jornal do Brasil e
um dos fundadores dos sites No. e No Mínimo. Desde agosto de
2004 intregra a cúpula do jornal O Estado de São Paulo.

Em 2002, quando sugeriu a criação do FTM, Flávio era consul-


tor do Viva Favela. Adorava participar das reuniões de pauta
do portal e considerava a equipe de correspondentes uma das
melhores coisas que já vira no jornalismo carioca.

A concepção do FTM foi elaborada pelas antropólogas Regina


Novaes – coordenadora geral do projeto até o final de 2004 –
e Christina Vital, com a ajuda dos jornalistas da redação, dos
correspondentes e, naturalmente, do próprio Flávio. Diretora
do Iser e professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ), Regina
convidara Christina para integrar o time do FTM. Com sua saída,
Christina passou a atuar na linha de frente, coordenando com
esmero a supervisão do trabalho de pesquisa que servia de fio
condutor ao site e co-editando os textos comigo.

Um dos pontos fortes do projeto eram os depoimentos obtidos


pelos correspondentes, que descobriam histórias como a de
Maria Luzia Belizário de Carvalho, entrevistada por Rita de Cássia.
Trocada pelo pai por uma garrafa de cachaça, Maria Luzia deixou
a roça, no interior do estado do Rio, para virar escrava numa man-
são de Ipanema. Escapou de lá com a ajuda de uma prostituta que
morava no Cantagalo e que a levou para morar no morro.

Há quase sempre muito sofrimento permeando esses relatos.


Porém, eles mostram, acima de tudo, o quanto os migrantes
eram capazes de superar obstáculos para realizar o sonho de
levar uma vida melhor no Rio de Janeiro. Entre eles está Clau-
ALBERTO MOREIRA LIMA E SUA MULHER, D. MARIA,
MORAM NA ROCINHA DESDE OS ANOS 1960
Matéria: No foco de um baiano
Favela Tem Memória, Viva Favela 09/01/2003
Crédito: Nando Dias
56 Notícias da Favela

dete Pereira, que trocou Recife pelo Rio em 1958. Ela chegou à
favela da Maré quando ainda se começava a construir as pala-
fitas. Sua primeira casa foi feita com sobra de madeira que ela
conseguira em obras de um bairro próximo.

Para isso, fez várias idas e vindas a pé pelas ruas, com o peso
todo nas costas. “A Maré ia da rua da Praia até a avenida Brasil.
E as casas eram todas de madeira”, contou ela ao correspon-
dente Cláudio Pereira. De longe, as palafitas invadindo a baía
de Guanabara eram símbolo da precariedade das favelas nas
grandes cidades. De perto, pessoas como Claudete e o marido
enfrentavam todo tipo de desafios para ter onde morar.

“Os barracos eram cobertos de lona e feitos em compensado.


Ainda não tinha os pranchões (pedaços de madeira) que ser-
viam como ponte. As mulheres eram obrigadas a sair de casa
com as saias levantadas e o pé na água. Os homens saíam de
cueca. Depois, quando chegavam no seco, vestiam as calças e a
gente ‘arriava’ a saia”, lembra Claudete.

Ao relatar episódios de sua própria vida, os moradores revelavam


parte da história da própria cidade. Foi interessante descobrir,
por exemplo, que a Rocinha também passou pelos “anos doura-
dos” – mas à sua moda. Nascida e criada na comunidade, Jurema
de Mello Gomes os viveu em grande estilo: foi eleita a primeira
Miss Simpatia da Rocinha. Até hoje é reconhecida nas ruas.

Em depoimento publicado em 2003 (quando Jurema estava com


54 anos), a ex-miss contou ao correspondente Edu Casaes que
o desfile teve a presença da “alta sociedade da Rocinha, for-
mada por moradores mais populares e com maior renda, além
de pessoas de comunidades vizinhas”. Não havia faixa, mas ela
recebeu um buquê de rosas, um jogo de jarras, cinco quilos de
carne, um jogo de copos e a promessa de que seu casamento
seria realizado na Soreg – badalado clube social da comuni-
dade na época.

Regina Novaes e Christina Vital chegaram a elaborar uma


apostila para orientar a equipe de correspondentes do FTM.
Memória resgatada 57

“A versão final contou com a reação dos próprios corresponden-


tes, que nos expuseram suas dúvidas e sugestões. Em vários
aspectos, eles mexeram com a própria concepção do projeto”,
lembra Christina.

A apostila trazia, por exemplo, os critérios que deveriam nortear


a escolha dos entrevistados. Havia uma preferência por pessoas
acima dos sessenta anos – o que aumentava a chance de se
conseguir boas histórias de vida, que certamente se cruzavam
com a trajetória da própria favela e, por tabela, do Rio de Janeiro
daquela época.

Não era fácil achar alguém com o perfil ideal. Alguns não que-
riam falar, outros não tinham uma memória tão boa assim.
Porém, isso não chegava a ser um problema para Cláudio
Pereira, da Maré; Bete Silva, do Alemão; Dayse Lara, da Cidade
de Deus; Rita de Cássia, do Cantagalo e Edu Casaes, da Rocinha.
Os cinco tinham um profundo orgulho do seu trabalho. E faziam
tudo na maior disposição.

“Comecei a compreender certas coisas que, mesmo sendo


morador de lá, não compreendia. Podemos ver ângulos diferen-
tes a partir da visão do outro”, diz Cláudio. A decisão de cobrir
apenas cinco comunidades foi tomada em função do orçamento.
Na época, cada entrevista era paga como um extra. A idéia era
expandir, no futuro, o projeto para outras favelas.

Na fala dos mais velhos, ficava claro o quanto era dura a vida
de quem morava nas favelas cariocas nas décadas passadas.
Naquele tempo, a falta de infra-estrutura era a maior fonte de
sofrimento. Hoje, o grande problema parece ser mesmo a vio-
lência – aliás, um tema tabu para a maioria dos entrevistados.

Durante o seminário de lançamento do site, no início de 2003,


Flávio Pinheiro observou: “Às vezes, eu e Regina Novaes ficáva-
mos nos perguntando: ‘Caramba, daqui a dez anos vão ler um
trabalho sobre memória feito no ano de 2003 e não tem violên-
cia?’ Ninguém fala de violência! Essa é uma dificuldade real.
58 Notícias da Favela

Acho que cada dúvida dessas ou cada questão que vai ser
levantada tem feito com que a gente procure algum tipo de res-
posta produtiva”.

O seminário teve o mérito de mostrar que havia projetos de


memória espalhados em várias favelas do Rio – e até do Brasil.
Entre eles, a Rede Memória da Maré, do Centro de Estudos e
Ações Solidárias da Maré (Ceasm); os Condutores de Memória,
da área da Grande Tijuca; o Casarão dos Prazeres, de Santa
Teresa e o Centro Histórico da Rocinha. Convidados a apresen-
tar seus projetos durante o lançamento, todos se tornaram par-
ceiros do FTM. O evento reuniu historiadores, cientistas sociais,
jornalistas e moradores de favela.

No ano seguinte, o Caderno de Comunicações do Iser dedicou


uma edição inteira aos melhores momentos do seminário.
Na publicação, Regina Novaes lembra que a “vida em sociedade
produz esquecimentos e impõe silêncios”. E pergunta: “Nas
favelas existem hoje silêncios intransponíveis. Trata-se de um
tempo em que armas de fogo dos traficantes e dos policiais
estão sempre por perto (...) Podemos falar em construção da
memória social em um espaço onde vigora a ‘lei do silêncio’?”

Para responder, Regina faz referência ao antropólogo Michel


Pollack, que escreveu sobre a memória dos presos nos campos
de concentração. Pollack dizia, lembra Regina, que “a sociedade
só começou a reconstruir a história do nazismo quando os pró-
prios judeus sentiram que podiam falar sobre seu sofrimento.
O que só aconteceu quando já havia condições sociais para a
nova geração quebrar o silêncio sobre o holocausto”.

O FTM mostraria que não seria preciso esperar tanto. Nas


entrelinhas, o silêncio começou a ser sutilmente quebrado.
Como no depoimento da lavadeira mineira Joana Gabriel da
Silva, publicado em novembro de 2004. Dona Joana, então com
82 anos, lembrava que, ao se mudar para o Rio, encontrara um
morro do Alemão que era puro mato. Naquela época, ela andava
Memória resgatada 59

pela cidade batendo “nas casas das madames” em busca de


trabalho. Sempre conseguia alguma coisa.

“Hoje não se pode nem bater nas portas”, lamentava. “Às vezes,
eu fico assim pensando, olhando como ficaram as coisas, tudo
modificado... Não tinha essa violência... Tinha um posto de
guarda no cinema Santa Helena... Saíamos de madrugada para
comprar carne, o povo vinha dos bailes (...) e não havia briga.
(...) Se tivesse poder para mudar alguma coisa, eu mudaria esse
negócio desses tiroteios, tinha que acabar com isso. (...) Tenho
saudades daquele tempo. A gente ia passear sempre e andáva-
mos sem medo pelas ruas”.

Quem também tocava no tema era Benedita Monteiro da Costa


Bitencourt. Mãe de oito filhos – entre eles Ailton Batata, que
teria inspirado o personagem do traficante Cenoura no filme
Cidade de Deus –, ela chegara à comunidade em 1966 e contava
que a polícia e os bandidos já foram bem mais cordiais. Bene-
dita lembrava que sua família sofrera muito com a pressão da
polícia e com as ameaças das quadrilhas rivais.

Segundo ela, ouvida pela correspondente Dayse Lara, os poli-


ciais achavam que seu filho “tinha cara de bandido” e sempre o
levavam para o Instituto Padre Severino (unidade de internação
provisória para menores infratores). Mesmo quando saía de casa
só para comprar um pão. No depoimento, publicado em janeiro
de 2005, Benedita dizia que tinha mais medo da polícia do que
dos bandidos: “No passado, ambos nos respeitavam mais. Hoje
a polícia é muito violenta”. Os bandidos, por sua vez, costuma-
vam “pedir com bons modos” quando queriam se esconder na
casa de um morador e não fumavam maconha na frente dos
mais velhos. “Agora, eles jogam até a fumaça na nossa cara”.

O site também abordou temas pouco explorados – ou até igno-


rados – pela mídia tradicional. Entre eles, a reação da favela à
ditadura militar – uma sugestão dada pelo doutor em história
Marcos Alvito e soprada por Flávio Pinheiro. Poucos sabem, por
exemplo, que o morro de São Carlos, no Estácio (área central do
60 Notícias da Favela

Rio), abrigou gente que fugia da perseguição do regime. No São


Carlos, famoso por ser um dos tradicionais berços do samba no
Rio, a movimentação era intensa. Por coincidência ou não, lá
morava a família do guerrilheiro Carlos Lamarca.

A reportagem “Nas barbas da ditadura”, do repórter Marcelo


Monteiro, foi ao ar em junho de 2004. Nela, Marcelo confirmou
que, não só o São Carlos, mas vários outros morros cariocas abri-
garam militantes de esquerda perseguidos pelo regime militar.

Ouvido pela reportagem, Abdias Nascimento, presidente da


Associação de Moradores do São Carlos entre 1965 e 1968 e
membro do conselho deliberativo da Federação das Associa-
ções de Favelas da Guanabara (Fafeg), lembra que “a favela não
era vigiada pelos militares porque eles achavam que a nossa
luta era só por infra-estrutura. Eles não desconfiavam, mas
tinha muita gente consciente e politizada que também discutia
questões ideológicas nas favelas”.

Uma dessas pessoas era Natanael Pereira de Araújo, o “Pro-


feta do PT”, morador da Maré perseguido pela ditadura militar.
Formado em direito, ele tinha setenta anos em 2004 quando
deu seu depoimento a Cláudio Pereira. Para fugir da polícia,
Natanael costumava se jogar na baía de Guanabara, às mar-
gens da comunidade. Numa dessas fugas, acabou preso. Havia,
segundo Natanael, um sistema de delação na própria favela:
“O cara podia fumar maconha e cheirar (cocaína), que eles não
estavam nem aí. Mas, se tivesse um papel na mão com o nome
de alguém, para fazer qualquer tipo de reunião, a pessoa estava
ferrada. Era na Região Administrativa que era feita a coleta de
informação sobre o morador subversivo”.

O site publicou ainda pautas inusitadas. Como a da Ilha dos


Macacos, na Maré, onde três famílias dividiam espaço com cem
primatas. O lugar foi aterrado, mas os moradores não esquece-
ram suas histórias, recuperadas por Marcelo Monteiro. O repór-
ter especial cuidava também da seção Gramophone, que resga-
tava composições de moradores de favela em vias de se perder.
Memória resgatada 61

Para fazer um registro dessa memória musical, ele produzia


rodas de samba comprando meia dúzia de cervejas. Gravava as
melodias e as colocava depois no site, à disposição de todos.

Encontrou bambas como a turma do bloco Aventureiros do


Leme, do Chapéu Mangueira e Babilônia, e o grupo Diamante
Negro, formado por moradores do Cantagalo, Santa Marta e Cru-
zada São Sebastião. O grupo fez fama na cidade na década de
1960 e se reencontrou três décadas depois de sua separação. Na
Cidade de Deus, Marcelo descobriu ainda Anahyde dos Santos
Muniz, a Tuca, uma das raras puxadoras de samba do Rio.

Temas recorrentes a várias comunidades – como enchentes ou


remoções – também viravam pauta, numa tentativa de se cons-
truir uma nova versão para velhos fatos pela ótica dos mora-
dores. Para isso, o site contava com uma pesquisa feita nos
arquivos de jornais do início do século XX até meados da década
de 1970. O período coincidia com a principal fonte encontrada
para a pesquisa: o jornal O Correio da Manhã, lançado em 1901
e fechado em 1974. O jornal, que marcou época como um dos
mais importantes veículos da imprensa brasileira, serviu de
base tanto para a pesquisa iconográfica quanto para a textual.

Tiago Pinheiro, pesquisador da equipe do FTM, era o respon-


sável pela garimpagem de fotos e matérias antigas. Conseguiu
reunir um bom material, sobretudo na pesquisa iconográfica,
que se concentrava no acervo do Arquivo Nacional. Ali, o forte
era o período que vai do final da década de 1950 até o início
da década de 1970. São fotos surpreendentes quando se olha a
cidade sob uma perspectiva contemporânea.

Uma das imagens de maior impacto, por exemplo, é a da Roci-


nha ainda cercada por uma área verde que se estendia até a
praia de São Conrado. Ali, percebe-se que a favela chegou muito
antes dos prédios imensos que tomaram conta da orla do bairro.
A foto está entre as várias cedidas ao site pelo Arquivo Nacio-
nal, parceiro fundamental do FTM, que viabilizou a organização
de uma galeria on-line de peso.
62 Notícias da Favela

Fruto de um trabalho exaustivo de edição e catalogação de


Kita Pedroza – editora de fotografia do Viva Favela –, a seção
trazia também fotos atuais, feitas pelos fotógrafos do portal, e
retratos de época, coletados pelos correspondentes em álbuns
de família cedidos pelos moradores. Neles, é possível ver uma
Cidade de Deus bucólica, mutirões no Cantagalo, a Maré em
festa durante o Carnaval.

Para se manter, o site contava com o suporte de instituições


como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tec-
nológico (CNPq) – que propiciou a contratação de bem-vindos
estagiários – e o Consulado Geral dos Estados Unidos no Rio
de Janeiro (setor de Educação e Cultura), que contribuiu para a
aquisição de material.

Em 2005, três anos depois de ser criado, o FTM virara fonte de


consulta para pesquisadores e acadêmicos – a ponto de ser
citado como referência em teses e livros. Entre eles, Favela,
alegria e dor na cidade, de Jailson de Souza e Silva e Jorge Luiz
Barbosa, lançado em dezembro de 2005 pela Editora Senac Rio.
Com o pé
na lama
Ser jornalista era um dos grandes sonhos de Dayse Lara, mora-
dora da Cidade de Deus. E ela tanto fez, que conseguiu uma
bolsa de estudos na Universidade Veiga de Almeida, na Barra da
Tijuca – bairro abastado da Zona Oeste carioca vizinho à favela.
A vizinhança não aliviava o preconceito dos colegas de faculdade.
“Conheci um rapaz que estava até interessado em mim, mas
a visão que ele e os familiares dele tinham é de que lá só mora
bicho, de que lá é uma comunidade perigosa”, lamenta Dayse.

O que era ainda mais duro de engolir para uma moça destinada
a ser diretora de escola. Pelo menos esse era o sonho de sua
mãe – tradicional conselheira tutelar da região. O plano não deu
certo, mas levou Dayse a se tornar professora com diploma do
Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (ISERJ) e faci-
litou o seu ingresso na faculdade e, mais tarde, no Viva Favela.

Para Dayse, o portal era uma boa chance de mostrar um outro


lado da favela. Porém, não era a única. Ela estava sempre metida
numa penca de atividades sócio-educativas. Quando chegou ao
Viva Favela no final de 2001, já trabalhara numa creche e fora
orientadora social de um programa do município para o desen-
volvimento de jovens.

Também montara na Cidade de Deus o Clube do Cidadão Martin


Luther King, em parceria com um vizinho, estudante da Pontifí-
cia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

O clube promovia aulas de cultura e cidadania para cinqüenta


jovens e os levava a visitar a universidade “para ampliar seus
horizontes”. Dayse fazia ainda o caminho inverso, como ativista

63
64 Notícias da Favela

da ONG Feijoada Completa: levava a garotada endinheirada


para visitar a favela. A proposta surgira após um debate sobre
o filme Cidade de Deus. “A idéia era mostrar a realidade da
comunidade, que é diferente do que eles imaginam”, explica a
correspondente.

Nascida em 1979, ela era uma das mais novas do grupo. Tinha
um ar sempre distraído, mas era ótima observadora. Possuía
também a mania de fazer muitas perguntas – algumas bem
indiscretas. O que, para uma futura jornalista, não chegava a
ser um defeito. De todo o grupo, era a única com pretensão de
seguir a carreira – pelo menos até Landa Araújo, da Rocinha,
chegar em 2005.

A entrada de Dayse só se tornou possível com a desistência de


Rosy Henriques, selecionada em primeiro lugar. Dayse perdeu
a vaga após fazer uma entrevista desconcertante: “Meu noivo
havia terminado comigo e eu estava muito mal. De fato, não
houve entrevista. Acabou a entrevistadora me consolando...”,
contaria, rindo, tempos depois.

Uma vez lá, soube conquistar seu lugar. Durante a cobertura


do referendo sobre o desarmamento no Brasil, em 2005, des-
tacou-se por conseguir matérias que mostravam o poder de
destruição das armas de fogo com relatos de vítimas e de seus
parentes. Também trouxe boas histórias sobre balas perdidas.

Às vezes, no entanto, eram as matérias mais simples que mais


davam trabalho. Dayse suou, por exemplo, para escrever a saga de
Gilmar Vicente Sobreira, um cozinheiro desempregado que man-
tinha uma escolinha de futebol para meninos na Cidade de Deus.

A batalha começou na hora de emplacar a pauta. A história,


aparentemente, era um tanto batida. Mas acabou sendo apro-
vada após muita insistência da correspondente. Uma vez pronta,
esbarrou em outro obstáculo. Parecia inverossímil. O texto foi
parar nas mãos de Tetê Oliveira cheio de buracos. E não havia
santo que a convencesse de que um desempregado pudesse
Com o pé na lama 65

gastar tantas horas numa atividade que mal lhe rendia alguns
caraminguás.

“Pelo texto, a gente só sabia que o Gilmar tinha mulher e três


filhos e estava desempregado. Em vez de procurar trabalho, ele
dedicava todo o seu tempo às aulas de futebol para a criançada,
sem ser remunerado. Como havia uma preocupação nossa em
não noticiar nada que tivesse ‘patrocínio’ indevido – fosse do
tráfico ou de caráter eleitoreiro –, tive de questionar a reporta-
gem”, lembra Tetê.

Depois de muitas idas e vindas, descobriu-se que Gilmar rece-


bia dinheiro de uma caixinha para a qual cada jogador do time
original – que depois se desdobrou na escolinha – contribuía
com algo em torno de cinco reais por mês. Já era uma ajudinha.

Publicada, a matéria trouxe uma alegria inesperada aos meninos.


Nela, eles revelavam um sonho: visitar a fábrica da Coca-Cola.
Cristina Barros Barreto, coordenadora de atividades da Coorde-
nação Interdisciplinar de Estudos Culturais (Ciec) da UFRJ, leu
a história e, por iniciativa própria, fez contato com a empresa.
A partir daí, mandou um e-mail para o portal, que fez a ponte
com Gilmar. A visita aconteceria meses depois.

Antes disso, eles ainda viraram estrelas de um programa de


esportes na televisão. “As crianças ficaram muito felizes com
esse reconhecimento”, lembra Dayse. A correspondente se sen-
tiu especialmente gratificada com o retorno para Gilmar: “Fazer
uma pessoa que está dando tudo de si, trabalhando no anoni-
mato, ter um reconhecimento assim é maravilhoso”.

Esse tipo de repercussão se espalhava pela favela com velocidade


– e abria cada vez mais portas para os correspondentes. Mora-
dores começavam a sugerir pautas e pedir ajuda para solucionar
problemas. Assim, surgiu a história de um menino que morrera
após se afogar no tanque de uma obra da prefeitura na Cidade de
Deus, que estava sendo executada por uma firma terceirizada.
66 Notícias da Favela

Com uma barreira de proteção vulnerável, o tanque – formado


pelo desvio do curso de um rio – virou uma tentadora piscina para
as crianças da favela. Dentre os que viram a cena de afogamento
do menino – incluindo os seguranças da empresa, segundo mora-
dores –, ninguém foi capaz de pular e salvar a criança.

A questão era bem delicada. Além de envolver a prefeitura e uma


empresa privada, envolvia também, como descobrimos depois,
um amigo próximo de um funcionário influente do Viva Rio.
A saída foi colocar a redação em campo para complementar a
apuração. A tarefa coube à redatora Vilma Homero que, com a
reportagem de Dayse nas mãos, ainda penou um bocado até
conseguir falar com alguém da empresa responsável pela obra.

Formada pela UFRJ e com vinte anos de profissão, Vilma é uma


jornalista experiente. Em 2003, estava vivendo tranqüilamente
como “frila”1 quando a convenci a entrar para o Viva Favela.
O cargo de redatora exigia muito mais do que uma simples
correção de erros ortográficos. Era desejável alguém com texto
fluente, fôlego para reportagens mais extensas e delicadeza
para ensinar.

Naquele momento, Vilma deve ter se arrependido por aceitar o


convite. Depois de inúmeros e inúteis telefonemas, onde ficou no
meio de um jogo de empurra entre diferentes áreas, a jornalista
finalmente achou alguém capaz de dar uma explicação decente.
Mas, para isso, tinha de ir pessoalmente até a empresa.

Enquanto estava lá, o telefone tocou na redação do Viva Favela.


Era alguém perguntando como estávamos conduzindo a tal
reportagem, sugerindo uma abordagem mais leve. Fui direto a
Rubem – que, além de diretor-executivo do Viva Rio, era diretor
do portal Viva Favela – perguntar se havia algum tipo de res-
trição. Ele me disse para ir em frente. A matéria acabou sendo
publicada sem cortes e gerou pelo menos uma boa repercussão

1  Free-lancer: Jornalista autônomo.


Com o pé na lama 67

numa emissora de TV. Foi também uma forma de dar um retorno


para a comunidade.

Não foi a primeira (nem a única) vez em que a redação foi obri-
gada a entrar em campo para ajudar no fechamento de uma
matéria dos correspondentes. A inexperiência inicial da equipe
produzia reportagens que não faziam jus ao que fora vendido na
reunião de pauta. Belas idéias simplesmente se perdiam, num
estranho caminho entre a apuração e o texto final. E os jornalis-
tas precisavam, por vezes, entrevistar o próprio correspondente
para desvendar o mistério.

Também entrávamos em campo quando havia necessidade de


se falar com empresas ou órgãos públicos – como na matéria
do “tanque-piscina” da Cidade de Deus. Por mais que a equipe
de correspondentes corresse atrás – o que era sempre nossa
primeira orientação –, o retorno costumava ser pífio. Quando
havia. Várias vezes tivemos de ligar também para os “cole-
guinhas” das assessorias e explicar a proposta do veículo e o
intuito da matéria. Só assim vinham as respostas desejadas.
Até o portal ser conhecido, seu nome costumava fechar portas.
Quem as abria era o Viva Rio.

Os correspondentes, no entanto, não chegavam a se aborrecer


com isso. Em geral, gostavam de ter a ajuda da redação. Dayse
Lara, em especial, dava o maior valor. Talvez porque estudasse
jornalismo, para ela a edição dos seus textos era uma forma
bem-vinda de aprendizado. “Me ajuda no meio acadêmico, por-
que redijo a matéria com alguma dificuldade. Ponho o grosso
das informações e, quando o jornalista pega esse texto, ele não
deturpa. Posso comparar com a matéria final, e vejo onde errei e o
que posso melhorar. Além disso, vai ser ótimo para o meu currículo
no futuro”, dizia Dayse, ainda em 2003, no meio da faculdade.

Quando o Viva Favela deixou de dar crédito exclusivo aos cor-


respondentes e passou a dividir a autoria das reportagens entre
eles e os jornalistas que editavam o texto, Dayse não reclamou.
Foi uma das poucas. Acostumados desde o início a receber todos
68 Notícias da Favela

os créditos, eles tomaram um susto ao abrir o portal e encontrar


suas reportagens compartilhadas com as redatoras – na época,
Verônica Fraga e eu – , sem que houvesse qualquer aviso prévio.
A imensa maioria detestou ter de dividir a assinatura da matéria.

Uma das primeiras reportagens a aparecerem com crédito duplo


foi “Os esquecidos no topo” – a que retratava a vida no Caran-
guejo, vila no alto do Pavão-Pavãozinho, feita por Rita de Cássia.
Estávamos em meados de 2002 e Márcia Vieira achou por bem
assinar o texto em nome da correspondente e no meu. Salvo
engano, a mudança começou aí. Como nessa época já havia
um respeito mútuo entre nós duas, profissional e pessoal, um
grande afeto mesmo, Rita não reclamou tanto. Gostar, porém,
não gostou. Somente muito tempo depois mudaria de idéia.

Passados quase dois anos, ela refletiria: “Não escrevíamos isso


tudo. A gente mandava a matéria bruta e as redatoras traba-
lhavam muito”. A parceria só passou a valer a pena porque Rita
percebeu o quanto estava aprendendo com a troca. “Juntas,
tornamos o texto bom de ser lido. Até porque o leitor de Internet
é mais exigente, é importante a técnica jornalística”.

Entretanto, naquela primavera de 2002, ao assumir o portal e


manter os créditos compartilhados, eu sabia estar comprando
uma briga. Era óbvio que viria bomba pela frente. “Quem é que
está lá com o pé na lama? Quem é que ‘rala’ subindo ladeiras
e becos no sol quente? Quem é que se expõe e bota a cara na
favela?”, argumentavam. Isso, sem falar na produção do texto,
que exigia grande esforço de cada um.

Mas eu tinha a convicção de que era justo deixar clara a par-


ceria entre jornalistas e correspondentes. O resultado final era
uma combinação do suor de ambos – e não de um só. Havia ali,
realmente, uma criação coletiva. Com a perda da exclusividade,
no entanto, o grupo ficou desmotivado.

Só com o tempo encontramos um caminho do meio: colocar o


nome do correspondente sozinho na capa do portal e, sobre ele,
Com o pé na lama 69

um asterisco remetendo ao crédito do jornalista, disposto na


página interior: Fulano de Tal, da redação. Isso ajudou a manter
a auto-estima do grupo e a fazer cada um se sentir mais reali-
zado com o seu trabalho.

O ideal seria, talvez, deixá-los reescreverem mil vezes as maté-


rias. Até porque, caprichar demais em cima do texto alheio pode
deixar o repórter preguiçoso, como disse certa vez o jornalista
Marcos Sá Corrêa. Mas, se as matérias já demoravam a ficar
prontas nas mãos de um profissional, com esse processo leva-
riam um século.

Quando Tetê Oliveira entrou para o portal, em setembro de 2002,


a questão dos créditos acabara de ser deflagrada. Ela entendia
o lado dos correspondentes, que, além de tudo, achavam que
dividir a assinatura era desvalorizar o seu trabalho diante da
própria comunidade. No entanto, era totalmente a favor da nova
norma. “Não acho justo que o correspondente assine sozinho.
Afinal, isso é uma parceria. O texto não chega do jeito que vai
ao ar”, dizia Tetê.

Para Oscar Valporto, que não estava mais à frente do portal


quando a polêmica surgiu, a disputa era mais do que compre-
ensível. “Repórter brigar com redator é uma coisa muito velha...
Mas existe um padrão jornalístico. Eles têm um texto que vai
para a mão de um redator que muitas vezes destrói o que eles
fizeram. 90% das vezes, destrói porque tem de destruir. Mas
tem gente com boa vocação jornalística ali”, avaliava Oscar, um
ano e meio após sua saída do portal.

O talento dos correspondentes era inegável. Entretanto, fal-


tava à maioria lapidar uma postura mais profissional – o que
certamente aumentaria as chances de serem absorvidos pelo
mercado de trabalho. Quem sabe um dia, poderiam ser contra-
tados por um jornal comunitário, uma rádio ou TV – ou até por
um grande veículo de comunicação.
JOGO DE PIÃO NA CIDADE DE DEUS
Ensaio Fotográfico
Viva Favela 2003
Crédito: Tony Barros
Segunda é dia
de festa

O grande ponto de encontro dos correspondentes eram as


reuniões de pauta, realizadas nas tardes de segunda-feira.
No começo, eles vinham tímidos e desconfiados. Depois, bas-
tante à vontade, criavam um clima de festa em meio ao silêncio
habitual da redação do Viva Favela. Contavam casos, falavam
alto e com todo mundo, disputavam os computadores, ávidos
por ver e imprimir suas matérias on-line – poucos tinham acesso
fácil à Internet.

As reuniões aconteciam muitas vezes ao ar livre, debaixo das


jaqueiras e abacateiros do pátio do Viva Rio, quando a sede
da ONG ainda ficava no alto da ladeira da Glória, bem ao lado da
tradicional igreja do Outeiro. Sentávamos em círculo e as boas
idéias iam surgindo.

Os assuntos percorriam todas as editorias – comportamento,


saúde, economia, cultura, polícia, educação, meio ambiente.
Nem tudo o que se falava virava notícia. Mas cada tema se trans-
formava em matéria-prima para costurarmos uma compreensão
mais profunda das favelas. Os tópicos eram sempre tão inéditos
para nós, moradores do asfalto, que ouvir aquelas várias histó-
rias era como assistir a um documentário sem edição.

Vistas em conjunto, essas narrativas traçavam um panorama


quente das favelas cariocas. Um “instantâneo” feito de retra-
tos particulares que muitas vezes se reproduziam em diversos

71
72 Notícias da Favela

morros da cidade. Da rica Zona Sul à modesta Zona Norte, via-se


que as comunidades costumavam sofrer com os mesmos pro-
blemas – excesso de ruído, violência policial, abusos do tráfico,
saneamento básico precário, falta de postos de saúde. Também
tinham em comum aspectos culturais e de comportamento.
E costumavam lançar modismos simultaneamente.

Não foram poucas as reuniões de pauta que provocaram crises


de choro ou boas gargalhadas na equipe. Elas tinham um quê de
análise de grupo – e geravam espaço para as pessoas abrirem o
coração e contarem coisas que ainda não haviam contado para
ninguém. Isso se consolidaria com o tempo – e com a conquista
de uma imensa confiança entre cada um do grupo.

REUNIÃO DE PAUTA DO VIVA FAVELA


Sede do Viva Rio, 2005
Crédito: Sandra Delgado
Segunda é dia de festa 73

No início, era difícil explicar a diferença entre os fatos que


despertavam grande interesse na comunidade, mas que não
tinham maior apelo para quem não morasse nela. “A gente
procurava mostrar que eles estavam escrevendo para pessoas
de qualquer canto do planeta. A gente queria o local, mas que
emocionasse e que pudesse acontecer em qualquer parte”,
lembra Rosana Bensusan.

Eles entenderam isso rápido. Levaria mais tempo, porém, até


conseguirem lidar bem com os diversos lobbies da própria
comunidade – associações de moradores, políticos com influ-
ência local, centros culturais, creches, amigos da família – que
buscavam espaço na mídia, representada pelo portal.

Para os jornalistas da equipe, quase tudo o que surgia na reu-


nião era novidade. “Mas vocês ainda não sabem disso?”, costu-
mava perguntar incrédulo um ou outro correspondente diante
do nosso espanto. Às vezes, eram histórias simples, mas que
valiam ser contadas pelo ineditismo ou vigor. Como a moda da
festa junina com jeitão de desfile de escola de samba, que se
espalhou por algumas comunidades do Rio.

Com muito dinheiro, muita produção e quase nenhuma música


tradicional, elas renderiam sem dúvida uma boa pauta naquele
inverno de 2003. Mas, primeiro, era preciso convencer os meni-
nos disso. O mesmo aconteceria com a matéria das “explica-
doras”. Uma pauta óbvia para os jornalistas, mas não para os
correspondentes. Surgiu no dia em que fizemos uma das nos-
sas reuniões itinerantes no subúrbio de Realengo, na casa da
correspondente da Zona Oeste, Anna Carolina Miguel.

De tempos em tempos, um correspondente sediava a reunião


de pauta em sua casa – era uma chance de conhecer melhor as
outras comunidades e de fortalecer a intimidade entre todos.
Na de Realengo, teve churrasco e muita cerveja. Ao sairmos da
casa de Anna Carolina, alguém viu uma plaquinha oferecendo o
serviço de “explicadora”. Como os jornalistas não sabiam o que
era, Anna ensinou: “É uma espécie de professora particular,
74 Notícias da Favela

como se diz na Zona Sul do Rio. Só que geralmente a professora


particular vai na casa do aluno ensinar uma só matéria. Já nas
comunidades mais pobres, no subúrbio, a ‘explicadora’ fica na
casa dela e os alunos vão para lá receber um reforço de todas as
matérias”.

Para a correspondente, era a coisa mais normal do mundo.


Quando percebeu que não era assim tão comum, ficou surpresa:
“Meu Deus do céu, vocês não sabem o que é explicadora!” Nas-
cida em 15 de janeiro de 1983, Anna Carolina cobria toda a Zona
Oeste carioca. Não morava em favela, mas nem por isso suas
sugestões eram menos interessantes.

Recém-saída da adolescência, Anna tinha uma sensibilidade espe-


cial para sacar pautas divertidas de comportamento. Sempre dava
um jeito de encontrar algum personagem interessante, alguma
nova moda, um ângulo inesperado de uma velha história. Com isso
pautava outros veículos de comunicação com freqüência.

Numa dessas, inventou de acompanhar jovens sem grana para


saber como eles se viravam na noite carioca. Descobriu que
tinham táticas próprias para compensar a dureza – como com-
prar uma única cerveja de alguma marca famosa e ficar bebendo
na mesma garrafa a noite toda. Em frente à boate – na qual não
tinham dinheiro para entrar – poderiam atrair algumas meninas
bonitas. A reportagem acabou inspirando uma história do “Fan-
tástico”, da Rede Globo, que conseguiu o contato dos meninos com
a correspondente e produziu uma saída noturna com o grupo.

Aos doze anos, Anna já fazia um programa voltado para jovens na


Rádio Padre Miguel, da Zona Oeste. Assim, ela começou a ter um
contato com as comunidades pobres da região que a ajudaria muito
nos tempos de Viva Favela. Sua temporada na Padre Miguel aca-
bou aos dezessete anos. “A Polícia Federal foi lá e fechou a rádio de
forma autoritária. Tivemos muito prejuízo e não deu para reabrir”,
lembra Anna, filha do fundador de uma rádio comunitária.
Segunda é dia de festa 75

Quando ainda fazia o programa, Anna recebeu um pedido do


Viva Rio para indicar pessoas de comunidades para o portal,
que estava começando. Sugeriu duas pessoas da Vila Vintém,
mas resolveu participar. Acabou sendo escolhida.

Pouco tempo depois, ela conseguiria passar para a Faculdade


de Fonoaudiologia da UFRJ. Em agosto de 2006, conquistou seu
diploma. Além dela, vários outros correspondentes também
chegaram ao Ensino Superior. Especialmente a partir do Pro-
grama Voluntariado Carioca (Provocar), parceria entre o Viva Rio
e a UniCarioca, uma universidade privada.

Pelo acordo, ganharam bolsa Rita de Cássia, Cláudio Pereira e


Deise Lane, da Maré, e Cristian Ferraz e Walter Mesquita, da Bai-
xada Fluminense. Edu Casaes, que antecedeu Landa na Rocinha,
começou a cursar desenho industrial, mas trancou a matrícula
por falta de tempo. A correspondente do morro do Tuiuti, Gua-
raci Gonçalves, por sua vez, preferiu estudar letras – graduou-se
também pela UFRJ e passou a dar aulas na rede pública. Em
2005, dos quinze correspondentes comunitários do Viva Favela,
apenas cinco não estavam na faculdade.

Um morro em meia hora

Para Guaraci Gonçalves, a faculdade começou antes do Viva


Favela. Ela chegou ao portal com dezoito para dezenove anos,
totalmente inexperiente. “Foi a primeira vez em que tive horário,
em que tive prazo para entregar as coisas. Não soube lidar muito
bem com essa cobrança. Em alguns momentos dava vontade
de jogar tudo para o alto”. Nessas horas, nada lhe agradava.
Depois, começou a gostar: “O projeto foi muito importante,
cresci muito aqui”.

Parte da vontade de desistir vinha de um certo perfeccionismo.


Guaraci ficava péssima se uma pauta não era aceita. Não por
acaso, seus textos vinham com bilhetinhos alertando o editor
para possíveis falhas. Mas ela não precisava se preocupar tanto.
76 Notícias da Favela

Apurava e escrevia muito bem. Moradora do morro do Tuiuti – um


dos menores e mais calmos do Rio, ele pode ser percorrido em
meia hora –, Guaraci ainda assim desencavava boas histórias.
Conhecia o lugar, onde sempre viveu, como a palma da mão.

Na infância, e em boa parte da adolescência, ela morou numa


casa de madeira. Recusava-se a levar até lá os amigos da
escola. “Sempre estudei em escola pública, mas as pessoas
com quem eu convivia tinham uma situação financeira estável.
Moravam em casa de alvenaria e tinham televisão no quarto,
essas coisas. Eu tinha vergonha”.

Como o Tuiuti é vizinho do tradicional morro da Mangueira, na


Zona Norte, berço da famosa escola de samba Estação Primeira
de Mangueira, Guaraci logo percebeu que poderia descobrir boas
pautas também por lá. Uma delas foi a história de um “garimpo
urbano” – uma criação involuntária do Exército Brasileiro que dei-
xou restos de munição numa área usada para exercícios de tiro.

Desativado o estande, o terreno passou a ser procurado pelos


moradores como área de garimpo de balas. Achadas as muni-
ções, eles as fundiam e vendiam. Conseguiam com isso uma boa
fonte de renda. A reportagem fez sucesso. Inspirou, inclusive,
uma pauta para o jornal O Globo, que publicou sobre o tema
uma matéria do repórter Gustavo Goulart. Da Mangueira veio
também uma descoberta: depois de algumas reformas, casas
de escravos das antigas senzalas do morro são até hoje usadas
por moradores.

Nascida em 6 de abril de 1981, Guaraci teve, como a maioria dos


correspondentes, uma infância típica de interior. Cresceu no
Tuiuti correndo atrás de galinha, de pato, de porco, de coelho.
“Foi uma época maravilhosa”, resume ela. O pai cursou apenas
a primeira série primária. A mãe parou na quinta – queria ser
enfermeira, mas, para a avó, isso era coisa de prostituta. De
raiva, abandonou a escola. Tornou-se costureira, mas nunca
perdeu o hábito da leitura, que Guaraci herdou. Não por acaso, a
correspondente se especializou em literatura portuguesa.
Segunda é dia de festa 77

Com o pai, Guaraci aprendeu a “fazer contas” e a ser solidária.


Certo dia, por exemplo, quando viu o marido de uma vizinha
ter um enfarte e não conseguir socorro, entrou em desespero.
Já era noite e, pendurada ao telefone, a correspondente ligava
para hospitais e bombeiros em busca de uma ambulância.
Ninguém queria subir o morro. Diziam que não era seguro.

Indignada, sentindo-se impotente, Guaraci contou o episódio na


reunião de pauta. Quis transformar a história em reportagem,
mostrando o quão o cidadão da favela é quase sempre um cida-
dão de segunda classe, sem direito aos mais básicos serviços
públicos. Ficou tão emocionada ao lembrar o fato, que acabou
em prantos, num choro que contagiou a equipe inteira.

Para a correspondente, o portal deveria dar basicamente duas


contribuições à sociedade: “Levantar a bandeira das comunida-
des como locais onde moram seres humanos, e aí é uma contri-
buição mais ideológica mesmo, mais de luta; e uma mais efetiva,
quando a gente vê o retorno financeiro para o entrevistado”.

Um bom exemplo desse retorno financeiro aconteceu com Jar-


bas Ferreira, um morador do Tuiuti que fazia cortes de cabelo
com criativos e coloridos desenhos. Jarbas começou na ativi-
dade apenas para curar a depressão causada por um acidente.
Logo, porém, todas as crianças e adolescentes do morro que-
riam cortar o cabelo com ele.

Publicada a matéria – assinada por Guaraci em parceria com a


redatora Verônica Fraga –, a clientela se expandiu para outras
comunidades do Rio e até para fora da cidade. Jarbas foi parar
em jornais como O Estado de São Paulo, e fez questão de man-
dar os recortes com as reportagens para a família, na Bahia.

Ainda mais popular ficou Maria José da Silva – vizinha de Gua-


raci que virou personagem do Viva Favela ao alugar a piscina de
sua casa (coisa rara no morro) para as crianças, que pagavam
um real para mergulhar. A repercussão da história foi tão grande,
que ela desistiu de dar entrevistas. Para Guaraci, era compreen-
78 Notícias da Favela

sível: “Ela falou com gente do Extra, do O Globo, da TV Record…


não agüentava mais. Me pediu para dizer que tinha morrido”.

A correspondente achava fundamental fazer essa ponte, valori-


zar as iniciativas dos moradores. “A grande dificuldade de quem
mora na favela é não ter voz. Quando alguém coloca o microfone
na sua frente, tira a sua foto, você vê que sua visão de mundo é
significativa para alguém”.

Guaraci foi, provavelmente, a única correspondente a pautar


espontaneamente uma reportagem sobre o tráfico de drogas.
Enquanto todos fugiam do tema, ela queria mapear o “comér-
cio local”. Achava que não haveria problema. “Ele não é muito
agressivo, não interfere tanto na vida das pessoas”, justificou a
correspondente diante da nossa preocupação.

A história foi sugerida no início de 2003, mas a matéria acabou


não vingando: “Queria fazer um levantamento da indústria do
tráfico. Porque a gente que mora lá sabe que tem o ‘aviãozinho’, ‘o
fogueteiro’, o cara que começa a vender, tem o gerente, tem uma
hierarquia. Inventei que queria falar sobre isso. Quando comecei
a fazer meus contatos, o ‘povo’ me mandou ficar quieta”.

Já para falar sobre o drama das balas perdidas, não teve qualquer
problema. Achou personagens que contaram, com nome e sobre-
nome, que foram vítimas de armas do tráfico. Publicada sob o
título “Guerrilha urbana”, a matéria mostrava também o ponto de
vista dos médicos. Eles admitiam sofrer pressão da polícia para
fazer corpo mole no tratamento de bandidos. E alertavam: o sim-
ples fato de chegar ferido à bala no hospital já torna o morador
de favela suspeito.

A correspondente gostava de desdobrar suas pautas do morro


para o asfalto. Com isso, sentia talvez mais do que os outros
a resistência que o nome Viva Favela provocava. Mostrar que a
realidade poderia ser bem diferente disso era a grande motiva-
ção de Guaraci para trabalhar no portal: “As pessoas não estão
acostumadas a ouvir a opinião do Joãozinho, que anda de pé
Segunda é dia de festa 79

descalço. Estão acostumadas a ouvir ‘o doutor João’. Quando a


gente dá voz ao Joãozinho, demora um pouco para que ela seja
ouvida e respeitada. No asfalto, existe um povo preconceituoso
mesmo, que acha que na favela só tem tráfico, só tem roubo,
só tem pessoas ignorantes”.

No portal, realmente, sempre havia uma oportunidade para os


anônimos se expressarem. E lugar para personagens como empre-
gadas domésticas, pedreiros e vendedores de bala. Ao expor de
forma profunda o cotidiano dessa população de baixa renda, o
Viva Favela revelava, de quebra, as teias invisíveis que dificultam a
mobilidade social no país. E mostrava de que forma a criatividade
e as redes de solidariedade permitem uma sobrevivência mais
digna, mesmo diante da extrema pobreza.
80

Capítulo 3
81
Derrubando
muros

A redação sabia que precisava ter cuidados extras ao dar voz a


personagens sem muita familiaridade com a imprensa. Muitas
vezes, eram pessoas que não tinham a menor noção do estrago
que poderiam provocar com suas declarações – sobretudo para
si mesmas. Volta e meia uma informação do próprio entrevis-
tado provocava um dilema: deveríamos ou não publicá-la?

Numa matéria sobre mototaxistas da Cidade de Deus, por


exemplo, feita pela jornalista Mariana Leal, optamos por excluir
o nome de um personagem que declarava com todas as letras
que dirigia uma moto irregular, mas não era importunado por-
que pagava propina aos PMs. Quem poderia garantir que a his-
tória não chegaria aos ouvidos dos policiais que habitualmente
patrulham a favela? Especialmente porque os próprios corres-
pondentes e entrevistados costumavam imprimir e circular as
reportagens pelas comunidades.

A matéria fazia parte de uma série sobre mototáxis que nas-


ceu de uma animada discussão em torno da importância que,
nos últimos tempos, esse meio de transporte ganhara nas
favelas. Assim que a pauta foi colocada na mesa, vários cor-
respondentes começaram a contar histórias a respeito. Landa
Araújo, por exemplo, relatou a nova onda de turismo sobre
motocicletas na Rocinha.

Publicada em junho de 2005, “Tem gringo na laje” mostrava como


os estrangeiros adotaram o hábito de subir a favela de mototáxi

82
Derrubando muros 83

para depois descer a pé, curtindo a paisagem, conversando com


moradores, comprando artesanato. Um clima intimista impos-
sível num Jeep – a forma mais difundida, e pioneira, de se fazer
um passeio turístico pela comunidade.

Em outra reportagem, a correspondente mostrou que a Rocinha


– uma das maiores favelas do país – não pára de crescer também
no mundo virtual. No Orkut – site de relacionamentos que virou
febre no Brasil – existem mais de oitenta “comunidades”1 com
temas que variam da gastronomia à violência. “Quem navega
por elas consegue ter uma visão panorâmica e ao mesmo tempo
íntima da favela”, dizia o texto, fechado por Tetê Oliveira.

Landa foi escolhida numa das seleções mais difíceis do portal.


A disputa envolveu cinco candidatos da Rocinha. Todos já esta-
vam na faculdade, eram bem articulados e tinham no currículo
a prática de atividades extras, como teatro ou aulas de inglês.
Estudante de jornalismo da UniverCidade, faculdade privada
com sede em Ipanema, Landa ficou com a vaga. Entrou para o
Viva Favela em 2005, no lugar de Edu Casaes, que, por sua vez,
substituíra o líder comunitário Carlos Costa, o Carlinhos – pri-
meiro correspondente da Rocinha.

Dono do jornal comunitário Rocinha Notícias, Carlinhos ficou


cerca de um ano e produziu boas reportagens. Em “Só a Rocinha
segura a Rocinha”, por exemplo, publicada em 2001, retratou o
crescimento desordenado da favela. A idéia era mostrar o envol-
vimento dos moradores na preservação das áreas verdes como
um fator fundamental para o controle fundiário da favela.

Na matéria, Carlinhos mostra que, enquanto alguns moradores


brigam para salvar uma área reflorestada, outros derrubam
barreiras de cabos de aço da prefeitura para erguer novos bar-
racos. O correspondente também mapeou o poder feminino,
mostrando seu papel vital no desenvolvimento da comunidade.

1 As “comunidades” do Orkut funcionam como fóruns sobre temas de interesse


comum. Em setembro de 2006, o site contava com mais de um milhão de usuários
– 63% deles registrados no Brasil.
84 Notícias da Favela

“Elas comandam creches, escolas, centros comunitários, esco-


las de samba e até a política. A tradição feminina da Rocinha
se consolida agora com a nomeação da primeira mulher como
administradora regional”, dizia a reportagem.

Também interessante foi a cobertura da campanha feita pela


Light, companhia de luz do Rio de Janeiro, para acabar com os
“gatos” na favela. Com apoio dos moradores, a empresa conse-
guiu eliminar 24 mil pontos clandestinos. A surpresa foi des-
cobrir que muitos gostaram da idéia. Havia bons motivos para
isso: além de precisar do comprovante de residência fornecido
pela conta, eles estavam cansados de não poderem reclamar
quando os eletrodomésticos pifavam com picos de luz.

O correspondente ficou no portal até 2002, quando deixou o Viva


Favela para trabalhar na área de segurança e direito humanos
do Viva Rio. Mais tarde, Carlinhos seria eleito presidente de uma
das associações de moradores da Rocinha. Em seu lugar, deixou
Eduardo Casaes, o Edu, amigo, sócio no jornal Rocinha Notícias e,
como ele, apaixonado por política.

O maior interesse de Edu, ao entrar para o portal, era aberta-


mente “interferir na vida da comunidade”. Não por acaso, um
dos temas que mais gostou de abordar foi justamente o caos no
transporte: “A matéria fez o maior sucesso. Foi parar no jornal
O Dia, o prefeito falou sobre a questão e a menina da RA (Região
Administrativa) acabou caindo”.

Em 2003, um ano depois de entrar para o portal, a rotina de Edu


andava pesada. Além de produzir para o Viva Favela e para o site
Favela Tem Memória, escrevia e captava recursos para o Roci-
nha Notícias. Na TV ROC,2 Edu mantinha o programa semanal
“Rocnotícias” e uma “coluna social eletrônica” que o obrigava a
sair à noite e cobrir bailes na comunidade. Participava ainda da
ONG local Rocinha XXI, e cursava faculdade de desenho indus-

2 Canal de televisão pago e comunitário, repetidor da NET (operadora de televisão


por assinatura) na Rocinha.
Derrubando muros 85

trial na UniCarioca – queria economizar dinheiro diagramando


seu próprio jornal. Aos trinta e poucos anos, tinha pique para
segurar o tranco.

Em 2004, já experiente, fazia as matérias para o Viva Favela


com agilidade e era um dos correspondentes mais produtivos.
Nessa época, saía de casa antes das seis da manhã e voltava
à meia-noite para poder dar conta de tudo. Edu sabia se virar.
Antes de atuar em comunicação, fora segurança, office-boy e
boleiro em quadras de tênis de São Conrado, bairro chique aos
pés da Rocinha.

Uma favela conectada

A repercussão alcançada por suas reportagens publicadas


no Viva Favela era infinitamente maior do que em seu próprio
jornal: “Em dois anos no Rocinha Notícias nunca nenhum jorna-
lista me ligou para pautar uma matéria daqui. Botou no portal,
está todo mundo ligando”. As matérias de Edu costumavam
mesmo ter bom retorno. Entre elas, está “Sebo nas vielas”, que
mostrava moradores vendendo e comprando livros usados nos
becos. Uma prova de que a favela deseja ler – só não o faz mais
por falta de dinheiro.

O correspondente se preocupava muito, assim como Carlinhos,


com a imagem externa da comunidade. E gostou quando alguns
“coleguinhas” da imprensa começaram a ligar diretamente para
ele, pedindo dicas de personagens ou pautas.

Ele sempre atendia: “Se estamos derrubando muros, acho que


é de suma importância para nós”.

Nem sempre esse contato direto com jornalistas de outros


veículos dava tão certo. Na pressa de consolidar a pauta, por
exemplo, alguns colegas começaram a usar os correspon-
dentes como se fossem seus produtores. Eles faziam conta-
tos, articulavam encontros, acompanhavam as reportagens.
86

O GRUPO TEATRAL ROÇACAÇACULTURA


CRIOU SEBO ITINERANTE NA ROCINHA
Matéria: Sebo nas vielas
Viva Favela 20/05/2003
Crédito: Nando Dias
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88 Notícias da Favela

Mas não ganhavam nada por isso. A queixa desaguava na reu-


nião de pauta.

A equipe se sentia usada. A gente explicava que esse intercâm-


bio entre “coleguinhas” fazia parte do jogo. No dia seguinte, eles
poderiam precisar de alguém e já teriam seus próprios contatos
em outras redações. Era uma troca permanente. Isso não sig-
nificava, contudo, que eles deveriam fazer produção de graça.
Especialmente para as equipes de TV, cujo processo era mais
complexo. O ideal seria passar os contatos, no máximo fazer
uma ponte com os personagens. E só.

O contato direto tinha outro elemento complicador: dificultava o


controle sobre a repercussão das matérias publicadas pelo por-
tal. Contabilizar cada vez que uma reportagem inspirava pautas
na mídia tradicional era um indicador de sucesso importante,
como veremos mais tarde. Por tudo isso, ficou estabelecido que
a conexão com os correspondentes seria sempre feita por inter-
médio da redação.

É claro que volta e meia a gente passava diretamente para os


colegas o telefone de um ou outro correspondente. Era impor-
tante também que tivessem boas fontes nas favelas – e os cor-
respondentes poderiam ajudar nesse processo. Sempre pedí-
amos, porém, para que o número não fosse passado adiante.
Não queríamos, sobretudo, que ele entrasse para a agenda
coletiva das redações.

Em 2005, Edu deixou o portal para trabalhar na equipe da vere-


adora Andrea Gouvêa Vieira (PSDB/RJ). Jornalista e mulher de
Jorge Hilário Gouvêa Vieira, conselheiro do Viva Rio, Andrea
apoiou o projeto em sua busca por novos financiadores. Junto
com a socialite Gisela Amaral e com as então responsáveis pela
área institucional do Viva Rio Adriana Perusin e Maria Helena
Moreira Alves, Andrea ajudou a organizar uma palestra para
sensibilizar empresários sobre a importância do portal.
Derrubando muros 89

O encontro, articulado por Rubem César Fernandes, Jorge Hilário,


pelos irmãos João e José Roberto Marinho e por André Midani,
reuniu dezenas de convidados de peso na sede da Rede Globo,
no Jardim Botânico, no Rio, em setembro de 2003. Midani, um dos
nomes mais importantes da indústria fonográfica brasileira, foi
gestor estratégico (voluntário) do Viva Rio e sempre deu a maior
força ao Viva Favela. Diante de uma platéia de atentos homens de
negócios, Edu Casaes, Bete Silva, Rita de Cássia, Cláudio Pereira
e Tony Barros explicaram a importância do Viva Favela.

A reunião terminaria com um jantar chique, na própria sede da


Globo. E traria o apoio de empresas como Telemar, Ipiranga e
Icatu Hartford, cujo reforço contribuiu para a manutenção do
portal em 2004. No entanto, a batalha teria de prosseguir. Captar
recursos para o Viva Favela não era fácil mesmo, como lembra
Adriana Perusin: “O investidor brasileiro ainda não se deu conta
da importância de patrocinar ‘conteúdo’. Ele prefere investir em
projetos que tenham um retorno mais visível em ‘pessoas’. Sem
contar que ninguém mais queria ouvir falar de Internet depois
do boom de sites do final da década de 1990. As empresas fica-
ram sem saber como teriam retorno para esses gastos”.

Mulheres na mira

As constantes dificuldades de financiamento nunca impediram


o portal de se expandir. Dentro do mais puro espírito do Viva Rio,
que sempre preferiu correr riscos a abrir mão de novas emprei-
tadas, o Viva Favela começou a crescer já em seu segundo ano
de vida. Além do Favela Tem Memória, o portal criaria três novos
sites. As mulheres ganharam um só para elas – o Beleza Pura.
Nele, havia espaço para temas leves, como moda e culinária, mas
também para tópicos como aborto, violência doméstica, prosti-
tuição e gravidez na adolescência.

Segundo Eugênio Costa, coordenador de tecnologia da informa-


ção do Viva Rio na época, a idéia de fazer o site surgiu numa de
90 Notícias da Favela

suas andanças com Rubem César pelas favelas do Rio em busca


de sedes para as Estações Futuro. A quantidade de beldades
anônimas chamou a atenção. E fortaleceu uma antiga vontade
de Rubem César de dar ao Viva Favela um viés feminino.

O Beleza Pura começara a ganhar corpo nas mãos do então edi-


tor-chefe Oscar Valporto, da repórter Gisele Netto e de Eugênio.
Foi de Oscar, por exemplo, a idéia de criar a seção Sexo Oral,
na qual as mulheres discutiam temas polêmicos como a infi-
delidade masculina ou o orgasmo fingido. Foi ele também quem
provavelmente batizou o site – embora não tenha certeza disso.

Rubem César estava especialmente interessado na criação de


uma espécie de agência virtual voltada para moda e cultura.
Nela, modelos e atores/atrizes de favela poderiam expor fotos e
um breve currículo. “A idéia era incluir uma dimensão de gênero,
mas com o charme carioca. Uma coisa que não fosse careta,
tipo politicamente correta ou feminista demais, mas que tivesse
uma linguagem mais solta e seções provocadoras, como a Sexo
Oral”, lembra Rubem César.

A seção direcionada aos modelos e atores/atrizes das favelas


ganhou o nome de Revelação e chegou efetivamente a produzir
contratos entre profissionais e empresários, como veremos
adiante. Porém, para resguardar a privacidade e afastar os mal-
intencionados – não faltaram e-mails de engraçadinhos querendo
o telefone das moças –, a gente nunca passava diretamente o
contato. Apenas fazia a ponte.

Em pouco tempo, o Beleza Pura começou a receber uma bate-


lada de mensagens. Eram mulheres em busca de orientação
e, às vezes, de um pouco de colo. Algumas provocavam saias
justas. Como a jovem que escreveu para Mariana Leal pedindo
dicas para fazer um aborto. O assunto fora abordado numa
reportagem (“Saída arriscada”) que, obviamente, não estimu-
lava a prática como método de prevenção. Apenas discutia o
tema sem falsos moralismos.
Derrubando muros 91

“O enfoque era o aborto inseguro. Tentamos dar um panorama


sobre a questão de saúde pública que a prática representa.
Por isso, acho que foi tão impactante em termos de cartas”,
lembra Mariana.

A editora de fotografia Sandra Delgado, que sucedera Kita


Pedroza no portal, também recebeu uma mensagem delicada.
Sandra fizera um ensaio fotográfico com mulheres da Vila
Mimosa, tradicional área de prostituição do Rio, que sensibili-
zou uma moça em dificuldades financeiras. No e-mail, ela pedia
a Sandra o caminho das pedras para se tornar prostituta.

Nessas ocasiões, o site tentava cumprir o que acreditava ser


seu papel: oferecer informações que ajudassem as mulheres
a formar sua própria opinião. Claro que, às vezes, tomava par-
tido, como na seção Amor de Risco. Criada para dar visibilidade
às vítimas da violência doméstica que buscavam ajuda, tinha
a intenção de incentivar a denúncia da prática e até a fuga de
casa, se fosse necessário.

A seção era feita com depoimentos de vítimas atendidas pela Dele-


gacia de Atendimento à Mulher (DEAM) do Rio, parceira do Beleza
Pura graças ao empenho da repórter Gisele Netto, que convenceu
a delegada titular, Catarina Noble, da seriedade do projeto.

Formada em jornalismo pela UFRJ em 1998, Gisele foi estagiária


do “Bom Dia, Brasil” e do “Jornal Nacional” antes de ser contratada
como pauteira do “Linha Direta” – todos programas da TV Globo.
Também trabalhara numa oficina de vídeo para adolescentes
infratores que cumpriam pena no Rio. Entrou para o Viva Favela em
2001 e deixou o portal em agosto de 2004 para morar na Espanha.

A fase final de gestação do Beleza Pura provocou calorosas dis-


cussões, alimentadas pela escolha das imagens e do nome das
seções. As jornalistas da redação – além de Gisele e de mim, as
editoras de fotografia Kita e Sandra participavam do processo –
achavam que o site deveria ser mais colorido e valorizar mais a
fotografia. A equipe de tecnologia, formada por Eugênio e pelos
92 Notícias da Favela

webdesigners Rodrigo Peres e Flávio Fernandes, argumentava


que fotos pesavam demais – especialmente para leitores com
conexão discada. Tinham toda razão.

Mesmo assim, conseguimos emplacar na home quatro ou cinco


fotos de modelos de favela que se superpunham sucessiva-
mente, o que deu mais movimento e leveza à página. A definição
dos nomes foi mais fácil. Na época, prevaleceu a criatividade.
Hoje, eu seria contra a adoção de títulos como Monte de Vênus
– a seção que abrigaria reportagens sobre temas mais “sérios”.
Só percebi a besteira da escolha, no entanto, muito tempo depois,
ao ler Don’t Make me Think (Não me faça pensar), de Steve Krug.

Emprestado por um amigo, pioneiro em jornalismo na Internet, o


livro chama a atenção para a diferença entre o que nós achamos
que vai acontecer quando alguém começa a navegar no nosso
site – e aquilo que efetivamente acontece. E dá dicas que, de
tão óbvias, costumam ser ignoradas.

Um nome enigmático como Monte de Vênus, por exemplo, está


longe de ser o ideal para uma seção – especialmente se o seu
site se pretende popular. A menos que você queira ver o seu lei-
tor fugindo dali por pura preguiça de descobrir o que, afinal de
contas, você quis dizer com aquilo. O mesmo tropeço se repetiria
em outros sites do portal, como o Favela Tem Memória. Nele, há
seções como Favelário (inspirado em “Favelário nacional”, poema
de Carlos Drummond de Andrade). Difícil alguém adivinhar que
ali dentro havia um pequeno dicionário de favelas.

Uma vez no ar, foi preciso fazer malabarismos para alimentar


o Beleza Pura com uma única repórter. Mas Gisele, apaixonada
pelo site e envolvida no projeto desde o início, segurava bem a
onda. Com sua saída, caberia à jornalista Mariana Leal, também
formada pela UFRJ, tocar o site.

Mariana pegou logo o ritmo frenético de produção. E provou


ser uma bela profissional. Adorava o que fazia: “O Viva Favela
foi uma experiência intensa em jornalismo. No Beleza Pura, tive
Derrubando muros 93

a oportunidade de conhecer mulheres maravilhosas – líderes


comunitárias, religiosas, ativistas – que me deram lições de
vida”, diz hoje Mariana. A repórter ficaria no site até a crise de
2005, quando a equipe de jornalistas do portal teria de ser des-
feita – mas isso é uma história para depois.

Naquele momento, o Beleza Pura estava conseguindo virar


referência para quem buscava modelos da favela. Ainda enga-
tinhava, mas já havia resultados concretos. Uma parceria com
o projeto Lente dos Sonhos, de Tony Barros, da Cidade de Deus,
fortaleceria ainda mais esse processo.
Passarela
de tábuas

Bastam dois minutos com o fotógrafo Tony Barros pelas ruas da


Cidade de Deus para se ter certeza de sua popularidade. O fato
de ser “cria” da favela contribui para isso. A experiência como
mototaxista também. Mas seu nome começou definitivamente
a correr pela comunidade com o Lente dos Sonhos, criado por
ele em 2002. Dedicado à moda, o projeto abriria novos canais
– inclusive no plano internacional – para o fotógrafo e para
modelos de comunidades do Rio.

A inspiração para o Lente dos Sonhos nasceu de um ensaio foto-


gráfico feito para o Viva Favela. O tema era o Dia dos Namorados
e Tony resolveu usar como cenário uma das áreas mais pobres
da Cidade de Deus, conhecida como Jardim do Amanhã. Depois de
conseguir um Vectra prata emprestado, o fotógrafo rumou para lá
com um punhado de amigos que toparam participar da aventura.

Ao saltar do Vectra, o grupo foi logo cercado por moradores em


busca de autógrafos, certos de que ali estavam celebridades.
Tony explicou que os “modelos” eram todos moradores da Cidade
de Deus e contou o motivo do ensaio. Só aí os vizinhos resolveram
ajudar: emprestaram casa para troca de roupas, ofereceram água
e cafezinho e trouxeram até sabão em pó para lavar o carro.

A estudante Ludmila Gomes, modelo ainda iniciante na época,


adorou a experiência. “Quando a gente desceu do carro, juntou

94
Passarela de tábuas 95

um monte de gente. Pensavam que eu era podre de rica. Fiquei


me sentindo poderosa!”, admite.

Publicadas em junho de 2002 no Viva Favela, as fotos atraíram a


atenção dos jornais O Dia e do Extra, que deu chamada de capa e
uma página inteira para o ensaio. A repercussão agradou aos ban-
didos. “Até que enfim a Cidade de Deus está na primeira página
sem ser por causa da marginalidade”, teria comentado um deles.

O Lente dos Sonhos foi criado, segundo Tony, para “viabilizar o


acesso de moradores de baixa renda ao disputadíssimo mer-
cado da moda”. Uma pretensão e tanto, que tentava cumprir
oferecendo não só cursos de modelo e manequim, mas também
de teatro, dança, filmagem e recepção de eventos, oficinas de
moda e palestras sobre saúde e cidadania.

Em 2005, o projeto já atendia a trezentas crianças e jovens do


Rio e também de Niterói, cidade vizinha. Àquelas alturas, a his-
tória do Lente dos Sonhos já correra o mundo. A revista inglesa
SHM fez o primeiro ensaio. “Como foi para a Europa, teve uma
propagação bacana”, lembra Tony. A revista alemã Stern, por sua
vez, incluiu algumas jovens do time num editorial de moda.

Publicações de Portugal, Itália, Coréia, Estados Unidos, França e


Japão também chegaram a abrir espaço para fotos de Tony e/ou
das modelos do Lente dos Sonhos. Como veremos mais adiante,
alguns desses trabalhos foram articulados por intermédio do site
Beleza Pura, parceiro de primeira hora do Lente dos Sonhos.

Nascido na extinta favela da Praia do Pinto, no Leblon – uma


das áreas mais nobres do Rio –, Tony foi parar na Cidade de
Deus ainda garoto. Sua família se mudou para lá na década de
1960, depois que um incêndio tido como criminoso destruiu a
favela. Na época, os moradores da Praia do Pinto foram remo-
vidos, sobretudo, para dois conjuntos habitacionais recém-
construídos: a Cidade de Deus, em Jacarepaguá, na Zona Oeste,
e a Cidade Alta, em Cordovil, na Zona Norte do Rio.
96

JOVEM MODELO DO PROJETO LENTE DOS SONHOS


Ensaio Fotográfico na Cidade de Deus, 2002
Crédito: Tony Barros
97
98 Notícias da Favela

Aos cinco anos, o menino descobriria na Cidade de Deus uma


área quase inabitada da cidade. Logo se adaptaria. Aos nove
anos, porém, com a morte da mãe, uma costureira que susten-
tava a família, teria de voltar ao Leblon – dessa vez para morar
com os tios no conjunto habitacional conhecido como Cruzada
São Sebastião.

No apartamento de sala, banheiro e cozinha se apertavam os


tios, um casal de filhos e Tony. Na rua ao lado da Cruzada, onde
antes havia a Praia do Pinto, Tony via agora a Selva de Pedra –
um vasto condomínio formado por edifícios de classe média.

Ao chegar à adolescência, o rapaz foi mandado de volta para a


Cidade de Deus. Eram tempos estranhos. “Naquele momento,
qualquer jovem sem família e sem uma estrutura básica era
facilmente absorvido pela marginalidade”, diz o fotógrafo, que
foi morar com os irmãos. Acabou batendo de frente com a irmã
mais velha, que administrava a pensão da mãe, e foi parar num
instituto para menores infratores.

“Ela queria me ver afastado dos meus irmãos”, justifica Tony,


que do limão fez uma limonada. Encarou dois meses no Ins-
tituto Padre Severino como se estivesse num clube. Praticou
atletismo, natação e aprendeu a fabricar vassouras. Ninguém
mexia com ele: “A Cidade de Deus era um local muito respei-
tado nessas escolas porque era comandada mais por menores
do que por maiores. Só de falar que morava lá, os outros já fica-
vam com medo”, lembra Tony, que, no internato, recebia prote-
ção dos outros jovens da comunidade. “Nunca recebi favores,
mas me relacionava muito bem”.

Na extinta Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor (Funa-


bem), passou a ajudar os rapazes internos levando notícias para
suas famílias. Também por isso, era tratado de forma cortês lá
dentro. Podia se sentar, por exemplo, às mesas às quais só se
sentavam os chefes de quadrilhas. Ao mesmo tempo, servia de
elemento mediador para problemas e ajudava os rapazes que
eram maltratados. “Eu era um elo de ligação”.
Passarela de tábuas 99

Em outra instituição, a João Luis Alves, Tony participou de um


grupo jovem religioso e aprendeu a lutar pelos direitos huma-
nos. Após se tornar amigo de um padre, conheceu sua primeira
vocação: “educador social”. Foi trabalhar com ele na organiza-
ção da Escola São Martinho, hoje referência no atendimento
a crianças de rua no Rio. Ali, descobriu sua grande paixão pela
fotografia quando registrava meninos com dependência quí-
mica de cola de sapateiro.

A experiência na São Martinho o credenciaria para trabalhar


como educador na Secretaria Municipal de Desenvolvimento
Social, o que estava longe de ser um trabalho fácil. Mas Tony
sempre teve jogo de cintura e espírito conciliador para lidar
com situações delicadas. Nem por isso deixou de enfrentar
mal-entendidos.

Bandido “coca-cola”

Na Cidade de Deus, nunca foi proibido de fotografar pelo tráfico.


Passou, porém, por situações sinistras. A primeira foi em 2003,
quando estava na quadra da escola de samba e um rapaz se
aproximou perguntando o que ele tinha nas mãos. Tony respon-
deu, seco: “Uma máquina fotográfica”. E ficou quieto, esperando
a confusão.

No entanto, o rapaz não voltou. “Só pode ser um bandido ‘coca-


cola’”, disse um amigo para Tony. O fotógrafo explica: “Bandido
‘coca-cola’ é um moleque que quer crescer e se fazer em cima
de alguém. Só tem pressão”.

Em outro episódio, ele fazia um ensaio em preto e branco com


modelos sobre uma passarela de madeira que cruzava um valão
na favela. Fotografar o contraste entre a beleza das mulheres
da Cidade de Deus e a precariedade da arquitetura local era
uma proposta antiga incentivada pela editora de fotografia
Kita Pedroza.
100 Notícias da Favela

Levar as modelos para cenas de exterior na favela, lembra Kita,


ajudaria a minimizar os problemas de iluminação comuns nos
ambientes fechados. Além disso, “esse seria um grande diferen-
cial em relação aos milhares de fotógrafos de moda”, diz ela.

No dia em que finalmente Tony decidiu realizar o ensaio, calhou


de ter um morto sob as tábuas da ponte. Mas, depois de toda
a produção, ele não desistiria tão facilmente. A cada minuto,
porém, passava um moleque e avisava: “Moço, tem um homem
morto ali”. O menino saía e, dali a pouco, voltava com a mesma
história. Até que Tony, bem concentrado e nem aí para o tal
defunto, irritou-se: “Dá um tempo, você está atrapalhando!”

As fotos foram feitas na sexta. No sábado, ele estava com o


material em casa, quando um outro menino bateu na sua porta:
“Cara, tu tava fotografando, depois chegou o corpo de bom-
beiros e a polícia”. Era uma insinuação de que Tony ligara para
avisar. Já sem paciência, o fotógrafo encerrou o assunto: “Sou
nascido e criado aqui. Fotografo desde antes de você nascer”.

Ainda se deu ao trabalho de mostrar fotos suas feitas na comu-


nidade para o garoto, que ficou espantado. Tony perguntou quem
o tinha mandado lá. “Os ‘caras’”, respondeu o moleque, numa
referência aos traficantes. Sem acreditar, o fotógrafo insistiu
em ir com ele para resolver pessoalmente a questão. O menino
disse que não era necessário. “Tu não tá vindo na minha porta
me perturbar?”, indagou. “Não, compadre, nada disso. Foi mal.
Eu resolvo com os ‘caras’”. Era mais um bandido “coca-cola”.

Tony sabe que, assim como a máquina fotográfica, a palavra


é uma grande arma. Não por acaso, tem como prática fazer a
informação circular quando vai fotografar ou acompanhar algum
fotógrafo de fora pela Cidade de Deus. “Sempre levei o pessoal de
jornalismo na comunidade e nunca houve problema”.

Com isso, tornou-se uma espécie de guia para os jornalistas


estrangeiros. O que o ajudou a expandir seu mercado de tra-
balho. Vendeu fotos para revistas do exterior, como a badalada
Colors, e fez até uma produção para um documentário grego.
Passarela de tábuas 101

No rastro do sucesso do filme Cidade de Deus, em 2003, Tony


teve suas fotos publicadas pela Carnet – revista italiana de
cultura com tiragem mensal de cem mil exemplares. A Carnet
queria uma reportagem contextualizando a favela, mas não
tinha dinheiro para mandar um jornalista ao Brasil. Ao descobrir
o Viva Favela na Internet, fez contato e acabou comprando uma
série de fotografias do portal, quase todas de Tony.

Inicialmente, a editora Kita Pedroza enviou as fotos para serem


selecionadas protegidas por baixa resolução e com marca
d’água – assim, não haveria qualidade para imprimi-las sem
a nossa autorização. Eu escrevi pequenos resumos, em inglês,
de cada texto. Foi um negócio suado, mas, no final, fechamos o
pacote por oitocentos euros, metade do que pedimos.

Os textos, que poderiam simplesmente ser copiados do portal,


foram oferecidos como parte do pacote. Na verdade, a idéia
era induzi-los a usar as nossas reportagens como referência para
elaborar um artigo mais humanizado, mais próximo dos contras-
tes comuns à favela – e não apenas uma imagem chapada, única,
de violência e ponto. Deu certo.

A experiência valeu ainda como teste: estava claro que havia um


longo caminho pela frente até criar uma agência de notícias do
Viva Favela, velho sonho. Porém, era viável. Com um banco de ima-
gens considerável, o projeto sempre teve tudo para gerar recur-
sos com seu acervo. A comercialização de fotos, e até de textos,
poderia ser uma das saídas para a auto-sustentabilidade. Como
logo veremos, lentamente a demanda pela venda do material do
projeto começaria a crescer.

A agência também poderia tentar abrir um canal direto com veí-


culos internacionais para vender pautas de favelas sobre temas
específicos. Uma editoria de educação de um jornal inglês, por
exemplo, talvez se interessasse em publicar alguma boa reporta-
gem realizada pelo Viva Favela no Rio. No entanto, para viabilizar
o negócio, era preciso estruturar uma boa equipe – o que impli-
caria um custo com o qual não tínhamos condições de arcar.
102 Notícias da Favela

A falta de recursos próprios era compensada por uma incrível


capacidade de sobrevivência do Viva Favela. Vital para Rubem
César Fernandes, o projeto sempre era incluído nas conversas
da direção do Viva Rio com financiadores nacionais e interna-
cionais da ONG. Entre eles, o Banco Mundial, o Banco Intera-
mericano de Desenvolvimento e o Department for International
Development of Great Britain (DFID), que apoiaram o projeto de
forma direta ou indireta.

A parceira mais duradoura e leal do Viva Favela, no entanto, seria


a brasileira Petrobras. Em 2002, por exemplo, a estatal abriu
novos horizontes para o projeto com um financiamento de um
milhão de reais. Os recursos que entraram ao longo dos cinco
primeiros anos, no entanto, nunca foram suficientes para gerar
uma perspectiva de longo prazo. O sufoco nunca passava. Como
um querido carro velho e valente, o Viva Favela caía na estrada
ano após ano sem saber se chegaria inteiro ao seu destino.
Comando
verde

O crescimento desordenado das favelas do Rio as coloca na


linha de frente da destruição ambiental carioca. Quem mora na
cidade e olha para cima, para os morros, tem sempre a impres-
são de que elas são as grandes responsáveis pelo desmata-
mento acelerado do que resta de área verde. Com boa parte de
suas cerca de setecentas comunidades1 localizadas em encos-
tas, não poderia ser diferente.

Seus moradores, entretanto, não deixam de ser também víti-


mas dessa mesma destruição. Sem uma política habitacional
decente no país, eles foram se instalando como podiam nos ter-
renos ainda desocupados. E lá ficaram, durante décadas, sem
saneamento básico, coleta doméstica de lixo, limpeza de rios
ou educação ambiental.

Um olhar mais profundo sobre esse caos urbano mostra, no


entanto, que as favelas também são capazes de gerar solu-
ções para problemas ecológicos. Difícil é garimpar histórias do
gênero. Para chegar até elas, é preciso ter bons contatos. E, de
preferência, ser um legítimo ativista da causa, como Begha Lin-
demberg. Correspondente do EcoPop, site sobre meio ambiente

1 Segundo o IBGE, a Região Metropolitana do Rio abriga 971 favelas e 397.421


domicílios em favelas – o equivalente a 12,4% do total de casas da região. Na capi-
tal, são pelo menos 681 favelas, com um total de 283.306 moradias, onde vivem
cerca de um milhão de pessoas. (Fonte: O Globo, setembro de 2005)

103
104 Notícias da Favela

lançado pelo Viva Favela em junho de 2003, Begha descobriu


um punhado de pautas interessantes.

Morador do Complexo da Maré, compositor e poeta, ele entrara


para o Viva Favela um ano antes. Começara fazendo reportagens
para o Praia de Ramos – site criado pelo Viva Rio no período em
que a ONG administrava o Parque Ambiental da Praia de Ramos,
na Maré, em parceria com o Governo Estadual.

Begha chegava à redação com a matéria escrita à mão, e entre-


gava os papeizinhos amassados para os redatores copidesca-
rem. Não sabia ainda usar o computador, mas já se destacava
como um dos melhores do time. Não só pelo faro para boas
histórias, como pela fluência da escrita, que não negava sua
alma de poeta. Quando o site Praia de Ramos acabou, Begha
continuou no Viva Favela. Com a criação do EcoPop, já tínhamos
a pessoa certa para o lugar certo.

O EcoPop foi gestado numa reunião na sala de Rubem César. Dela


participaram, entre outros, André Trigueiro e Samira Crespo, que
ajudaram a traçar a linha editorial do site. Tinham credenciais
para isso: André é jornalista com pós-graduação em gestão
ambiental pela Coppe/UFRJ, e professor de jornalismo ambien-
tal na PUC carioca; Samira é doutora em história social, e, desde
1990, atua em projetos na área de ecologia.

Na reunião, definiu-se o foco do site: grandes questões ambien-


tais urbanas, como saneamento básico e coleta de lixo, que
estão intimamente ligadas aos avanços sociais. Nosso grande
desafio seria mostrar que existem saídas relativamente sim-
ples para melhorar a qualidade de vida da população de baixa
renda – e apresentar exemplos concretos disso.

O site se preocupava também em ser educativo, e trazia uma


simpática seção com jogos e brincadeiras para o público
infanto-juvenil, a Cambito na Ecologia, desenvolvida pelo car-
tunista Otávio Rios. Uma parceria com a ONG EcoMarapendi,
intermediada pela bióloga Patrícia Mousinho, ajudava o EcoPop
Comando verde 105

na orientação de leitores interessados em processos de reci-


clagem e temas afins.

O EcoPop criou ainda, por sugestão de André Trigueiro, uma seção


de entrevistas com figuras populares, como artistas e cantores,
que contribuiu para desmistificar a questão ambiental.

Em sua coluna no site, a Conexão Verde – uma das seções


que mais traziam visibilidade ao EcoPop –, Trigueiro publicava
artigos sobre temas como aquecimento global, riscos do con-
sumo desenfreado no planeta, reciclagem e poluição. Decerto
idéias não tão fáceis de serem absorvidas pelo grande público.
Mas com um texto ágil e informativo, o jornalista conseguia
prender a atenção e aprofundar aspectos geralmente ignorados
pela mídia tradicional. Isso atraiu um leitor mais culto, que pôde
assim ampliar sua compreensão sobre a realidade da favela.

Apresentador e repórter do “Jornal das Dez”, da Globo News,


canal de TV a cabo, o colunista trazia ainda exemplos de prá-
ticas benéficas em áreas de baixa renda com as quais o leitor
pudesse se identificar. No final de 2005, boa parte do material
publicado na Conexão Verde foi imortalizada em Mundo susten-
tável, lançado pela Editora Globo. O livro reúne artigos e maté-
rias feitos pelo jornalista para diversas mídias. E pereniza o que
até então era apenas virtual.

As reportagens do EcoPop, por sua vez, tinham um charme


especial. Traziam personagens como Jossuel de Souza, um mora-
dor da Maré que conseguiu mobilizar a comunidade em torno do
reaproveitamento do óleo usado em frituras. Era uma forma de
poluir menos a baía de Guanabara e ganhar dinheiro com o dejeto,
vendido para uma indústria que reciclava o produto.

Jossuel era um achado. Um típico personagem para a seção ING


(“Indivíduo Não-Governamental”), que trazia perfis de gente
capaz de provocar mudanças e mobilizar suas comunidades
praticamente sem nenhum apoio externo, mas com muita força
de vontade. Nela, mostravam-se histórias de ambientalistas que
106

DOMINGO NO PISCINÃO DE RAMOS


Ensaio Fotográfico, 2002
Crédito: Sandra Delgado
107
108 Notícias da Favela

conseguiam fazer pequenas, mas produtivas mudanças. Como


Moisés Vieira Ramos, o cearense que largou a favela da Maré para
viver num recanto às margens da baía de Guanabara – um dos
mais belos e poluídos cartões-postais do Rio. Depois de limpar e
reflorestar a área, Moisés a preservou incentivando o turismo.

Ao falar sobre o EcoPop, o jornalista Marcos Sá Corrêa, um dos


fundadores do site ambiental O ECO (www.oeco.com.br), afirmou:
“Para deixar de uma vez por todas babando de inveja as outras
redações, o Viva Favela tem uma seção permanente sobre meio
ambiente, coisa que está custando a pegar no jornalismo brasi-
leiro. Chama-se EcoPop. (...) Quem vai ao EcoPop dificilmente sai
de mãos abanando. Ela traz notícia para todos os gostos. Cada
uma delas é uma aula de jornalismo em um campo onde a maio-
ria dos jornalistas mal começa a engatinhar”.2

Tanto Jossuel quanto Moisés foram achados pelo correspon-


dente Begha Lindemberg e produziram grande repercussão
na mídia tradicional. Begha é do tipo que chama a atenção do
vizinho quando o vê jogando geladeira em valão. “Quando nós
chegamos, tinha tudo aqui. Agora devemos tentar deixar alguns
frutos para os nossos filhos, para os nossos netos”, justifica. Ao
entrar para o Viva Favela, ele já tinha experiência com trabalhos
de educação ambiental que fazia nas escolas para a Secretaria
Estadual de Meio Ambiente.

Nascido na Praia de Ramos, em 3 de janeiro de 1959, Begha


é filho de pais paraibanos, que vieram para o Rio de pau-de-
arara, numa viagem que durou mais de quinze dias. O pai era
seresteiro e costumava desaparecer durante uma semana.
A mãe tomou raiva de música e proibiu Begha de tocar violão.
Ele aprendeu música à revelia. Com o tempo, apresentar-se à
noite em bares e festas passou a ser uma fonte de renda.

2 Trecho de coluna de Marcos Sá Corrêa publicada no site AOL, em julho de 2004,


sob o título “Uma aula de reportagem ambiental”.
Comando verde 109

Aprendeu também que, para viver na Maré, é preciso preservar a


própria privacidade. “O negócio aqui é ser amigo de todos e andar
sozinho. Ver as coisas e não ver. Ouvir e fingir que não ouviu”,
resume. Assim, ele conseguia manter as fontes – e os amigos.

No ritmo da favela

Para a repórter Julia Duque Estrada, jornalista que dividia com


Begha as reportagens especiais do EcoPop, batalhar pautas da
redação era ainda mais difícil. Ambientalista de coração, como
o correspondente, ela conseguia desencavar ótimas histórias.
Como a de Célio de Oliveira, um comerciante que dava aulas
de educação ambiental para crianças em Magé, no interior do
estado do Rio. Célio era um perfeito “indivíduo não-governa-
mental”. Apenas com o lixo recolhido da baía de Guanabara,
que banha Magé, ele conseguiu construir uma casa inteira com
“tijolos” de garrafas PET. Para sua própria surpresa, o material
provou ser à prova de balas.

Julia descobriu também moradores de uma favela do Rio que


assumiram a gestão de um parque ecológico. Com seu esforço,
eles fizeram do espaço um raro exemplo de área verde preser-
vada numa comunidade carioca.

“Na maioria das vezes, os personagens não tinham recursos


materiais, mas realmente compreendiam a questão ambiental,
sentiam a sua urgência e se lançavam com uma imensa criati-
vidade para cuidar do meio ambiente. São um bom exemplo de
que não é preciso dinheiro para fazer alguma coisa”, diz Julia.
Para ela, o contato com as favelas foi uma experiência enri-
quecedora – “ter um olhar de dentro é fundamental para um
jornalista que pretende compreender essa realidade”.

Para achar boas pautas de meio ambiente nas favelas, era pre-
ciso aproveitar cada ida às comunidades. Seus contatos na área
ambiental também ajudavam. Nascida em setembro de 1977, a
repórter era uma das mais novas do time. Formada pela Univer-
110 Notícias da Favela

sidade Federal Fluminense (UFF), Julia passara pelo Jornal do


Brasil, Extra e pelo Iser antes de chegar ao EcoPop.

Sua estréia no site exigiu coragem. Como logo veremos, em sua


primeira matéria, a repórter deu de cara com uma operação
policial na Cidade de Deus. Um tipo de sufoco que nem os cor-
respondentes podiam evitar. Eles não gostavam de falar sobre
isso, mas estava claro que a falta de segurança era um fator que
volta e meia interferia no trabalho.

Cláudio Pereira, por exemplo, correspondente do Complexo da


Maré, costumava ligar para os amigos antes de visitar uma das
dezesseis comunidades da área. Procurava saber como estava o
clima. Sobretudo se acabara de ter tiroteio por perto. Às vezes,
era obrigado a suspender a visita. Como percorrer a pé toda a
Maré era inviável - de carro seriam pelo menos vinte minutos –,
era sempre bom tomar certo cuidado. Mesmo morando ao lado,
ficava difícil saber a extensão de um tiroteio, por exemplo, ape-
nas ao ver a notícia na televisão.

“Você só ouve rumores”, confirma o correspondente, que sem-


pre usou e abusou de seus contatos na comunidade. “Quando
há muito tiro, polícia por perto, e você tem de fazer o trabalho,
você faz. Nem que a matéria dure duas semanas”. Aconteceu
algumas vezes de Cláudio levar esse tipo de problema para a
reunião de pauta. Ganhava sempre um novo prazo.

Pedir licença ao tráfico, porém, não era necessário. “Todo mundo


sabe quem é quem dentro da comunidade. Você liga para o cara,
marca, vai lá, faz a matéria e vai embora. Não mexem com você.
Há o modo de chegar, você não tem de ficar olhando para Deus
e o mundo, por exemplo”.

De tanto rodar, o correspondente descobriu pautas curiosas.


Uma delas revelava que, numa única rua da Maré, havia em torno
de trinta salões de beleza. Também detectou um “Baixo Maré”3

3 Referência ao Baixo Leblon, no Rio de Janeiro, que fez história como ponto de
encontro da boêmia carioca e teve seu auge na década de 1980. Depois dele, outros
surgiram na cidade, como o Baixo Gávea.
Comando verde 111

– point noturno que atraía multidões ao redor de um palco ao


ar livre. O lugar era ponto de parada obrigatório para os grupos
de forró recém-chegados do Nordeste. Se fizessem sucesso ali,
era sinal de que tinham cacife para enfrentar a badalada Feira
de São Cristóvão, na Zona Norte do Rio.

Nascido em 1972, Cláudio foi criado na Maré num tempo em


que não existia qualquer “fronteira invisível” separando as
diferentes facções do tráfico de drogas. O número de comuni-
dades também era bem menor, e Cláudio costumava circular
por todas com desenvoltura – coisa que faz até hoje graças aos
inúmeros amigos conquistados ao longo dos anos.

“Eu cresci junto com a Maré. Tomei banho nela (na baía de Gua-
nabara, que originou o nome da favela), como muitas crianças.
Joguei bola com um trilhão de pessoas que já morreram e com
outras que mudaram de vida”. Enquanto alguns amigos optavam
pela marginalidade, Cláudio investia na religião. Ex-coroinha,
passou vinte anos na Igreja Católica. Ajudava em campanhas de
doação de alimentos e quermesses.

Antes do Viva Favela, teve a sorte de trabalhar em O Cidadão,


publicado pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré
(Ceasm) – raríssimo exemplo de jornal comunitário com produ-
ção regular e de qualidade. O correspondente soube do portal
quando fazia um curso de oficina literária do Ceasm. Entrou na
primeira leva do Viva Favela, em 2001.

Cláudio gostava de traçar perfis – adorou, especialmente, desco-


brir dona Maria da Macumba, de 104 anos, que fora secretária de
Juscelino Kubitschek e tinha um centro espírita na Maré. “Ela me
criou desde pequeno e eu nunca soube disso”, surpreendeu-se.

Às vezes, porém, quando colocava muitos personagens em cena,


embolava o meio de campo. Como inicialmente tinha certa difi-
culdade em avaliar a importância de cada um, tendia a apurar
e escrever demais. Uma vez, entrevistou um time completo de
futebol. E era um time gigantesco – nada menos do que 35 pes-
112 Notícias da Favela

soas. “Mas você entrevistou todo mundo... Podia escolher quatro


ou cinco!”, reclamei.

Cada um tinha algo a dizer, explicou ele. Cláudio anotou tudo.


“Se você fala com dez e esquece outros dez ali no canto, cria
sua própria discriminação. Se na matéria só quatro saírem, os
outros vão reclamar. Mas aí eu posso dizer que foi a redação
que cortou”. Para o correspondente, isso ajudava a criar laços e
facilitava futuras pautas.

Em contrapartida, criava um grande problema para a edição.


Entretanto, ele simplesmente não conseguia fazer diferente:
“Você começa a escrever e vai se empolgando. Em vez de oito mil,
a gente faz vinte, trinta mil caracteres”. Volta e meia suas maté-
rias vinham com um alerta: “Mandei um ‘livro’ para você”.

Pior era o que ele fazia sem avisar. Cláudio costumava submeter
seus textos à aprovação dos entrevistados – às vezes, por três ou
quatro vezes. Só depois que o personagem estivesse satisfeito
nos mandava a reportagem. Era sua forma de demonstrar res-
peito e tentar evitar mal-entendidos. Ao descobrir isso, entendi
finalmente por que algumas matérias atrasavam tanto – mesmo
em tempos de paz.

Para o correspondente, o papel do Viva Favela era ajudar a


grande mídia a parar de olhar a favela exclusivamente como um
nicho de violência. E também contribuir para que a própria favela
pudesse enxergar a grande mídia de forma diferente. Cláudio
percebeu isso ao ajudar na produção de uma reportagem para
a TV inspirada numa pauta sua sobre a favela Marcílio Dias, no
Complexo da Maré. Ele fez todos os contatos e deu a maior força
à equipe. “O Viva Favela trouxe para a comunidade essa con-
fiança de você estar ali e poder divulgar aquela pessoa”.

Uma de suas melhores matérias foi feita no Parque Alegria, no


Complexo do Caju, na Zona Norte carioca. “Quando o luto vira
luta” mostrava a batalha do grupo Mães do Caju para botar na
cadeia os responsáveis pela execução de seis jovens da comuni-
Comando verde 113

dade. Segundo testemunhas, os rapazes jogavam dominó numa


pracinha da favela, e ainda tentaram se identificar quando dois
policiais militares chegaram atirando.

A pauta original era bem mais simples. Falava do lado solidário


dessas mulheres – que se transformaram em referência para
várias famílias no Caju. Cláudio foi juntando as histórias até
descobrir o viés político do grupo. Com a ajuda da redatora Vilma
Homero, produziu uma bela reportagem, que levou mais de um
mês para ficar pronta e ser publicada, em dezembro de 2004.

A demora foi positiva: permitiu que incluíssemos dados fresqui-


nhos do relatório sobre violência policial publicado pela ONG
Justiça Global, que pesquisara o caso. Menos de um ano depois,
uma das mães do grupo foi convidada a relatar sua história na
Europa e a Anistia Internacional se interessou por comprar
uma foto da personagem feita por Deise Lane, fotógrafa do Viva
Favela e parceira de Cláudio na Maré.
114

Capítulo 4
115
Repórter bom
é repórter vivo

A equipe do Viva Favela não era nada desprezível. Além dos


quinze correspondentes comunitários, o portal chegou a ter doze
jornalistas profissionais – mais do que muita redação virtual ou
“física”. No início, os repórteres escreviam apenas notas para as
diversas seções, como Diversão e Emprego. Com a criação dos
novos sites, passaram a fazer também matérias externas e pre-
cisaram deixar o telefone de lado para mergulhar nas favelas.

A mudança era uma antiga reivindicação do grupo. E coincidia


com a valorização da revista Comunidade Viva, dedicada às
reportagens especiais, que se tornou aos poucos o carro-chefe
e o grande diferencial do portal. As seções de notas continua-
ram a ter um papel importante, sobretudo para o leitor de baixa
renda. Mas deixar um jornalista preso na redação apenas para
isso era certamente um desperdício.

Ao mandar os repórteres para a rua, porém, o projeto foi obri-


gado a lidar, mais do que nunca, com os impasses e limitações
que cercam o trabalho jornalístico nas favelas. A começar pela
questão da segurança. Estávamos em meados de 2002, o jorna-
lista Tim Lopes acabara de ser assassinado, como logo veremos,
e havia um temor no ar por parte dos correspondentes. Porém,
os jovens repórteres – a maioria tinha entre 25 e 30 anos – não
estavam nem aí para isso. Pelo menos no começo.

116
Repórter bom é repórter vivo 117

Animados pela chance de ir a campo e se sentindo protegi-


dos pelo nome do Viva Rio e do próprio Viva Favela – àquela
altura, já conhecido em muitas comunidades cariocas –, eles
foram se aventurando e abrindo seu próprio espaço. As regras
básicas de segurança não estavam escritas, mas eram conhecidas
e costumavam ser praticadas: fazer contato prévio com alguém
de confiança, avisar à associação de moradores, ligar antes de
sair da redação para saber se havia sinal de conflito no ar.

Isso, provavelmente, era muito mais do que faziam as equipes


do Viva Rio que trabalhavam em favelas. E talvez soasse até
meio ridículo para quem estava acostumado com essas idas
e vindas diárias. Mais ainda para quem morava lá e precisava
entrar e sair sem pensar duas vezes. Entretanto, em se tratando
de jornalistas – mesmo que de ONG –, não custava prevenir
algum mal-entendido.

Para os correspondentes, havia a vantagem de já estarem


lá e de poderem mudar a hora e o lugar da apuração em caso
de emergência. Além disso, o fato de serem bem conhecidos
na comunidade ajudava. Em compensação, qualquer ruído na
comunicação poderia ter efeito imediato sobre eles. Não por
acaso, a gente costumava lembrar durante as reuniões de pauta
que “repórter bom é repórter vivo”. Mais do que uma brincadeira
com o mote de mau gosto de um deputado fluminense (“bandido
bom é bandido morto”), a frase servia para reforçar a certeza de
que ninguém deveria correr riscos à toa.

Claro que eliminar completamente os imprevistos era impos-


sível. A jornalista Julia Duque Estrada descobriu isso logo na
sua primeira visita à Cidade de Deus. Ela fazia uma matéria para
o EcoPop numa das áreas mais pobres da favela, conhecida
como Jardim do Amanhã,1 quando ficou no meio da linha de tiro
durante uma invasão policial.

1 Mesma área que serviu ao ensaio fotográfico de Tony Barros (ver capítulo “Pas-
sarela de Tábuas”). O lugar também é conhecido como Rocinha II.
118 Notícias da Favela

Fortemente armados, eles chegaram dando chutes nas portas.


Não se constrangiam em invadir barracos à procura de trafican-
tes, mesmo sem qualquer mandado de busca. A cena era assus-
tadora. “A impressão era a de que poderiam atirar a qualquer
momento, para qualquer lado”, lembra a jornalista. Tony, que
fazia as fotos para a matéria, orientou a repórter a não correr.
Julia obedeceu, mas, por via das dúvidas, resolveu se identificar
como jornalista para os policiais. “Eles responderam para eu
sair logo porque iria haver confronto”, lembra.

A dupla, felizmente, já estava no final da matéria. “Por coinci-


dência, quando eu cheguei à Cidade de Deus, os moradores me
pediram para falar sobre a violência policial. Reclamavam que
eles chegam atirando, apontando a arma para todo mundo, e que
não respeitam os moradores”, lembra Julia.

A repórter tinha feito tudo como manda o figurino. Marcara pre-


viamente a entrevista com os personagens e com o fotógrafo
Tony Barros antes de pegar um ônibus – não havia dinheiro
para táxi – e saltar no ponto mais próximo à favela. Lá, Tony já a
esperava e os dois foram juntos para o Jardim do Amanhã. Vol-
tou ainda ofegante para a redação. “Apesar do susto, não deixei
de fazer matérias em favelas porque sempre fui muito bem aco-
lhida pelos moradores. E sentia a importância que eles davam
para as nossas coberturas”, diz Julia.

Por sorte, foi a única história do gênero registrada com os jornalis-


tas nos primeiros cinco anos do Viva Favela. A gente vivia o tempo
todo em alerta, especialmente com medo das balas perdidas.
A preocupação se estendia, e se ampliava, para os correspon-
dentes. O fato de contarmos com uma estrutura precária – não
havia carro com logotipo do projeto, por exemplo – não chegava
a ser uma grande preocupação em termos de segurança. A sim-
ples menção do nome Viva Rio já abria portas. Quando muito,
não as fechava. O que nem sempre acontecia com veículos da
grande imprensa, que podiam ser hostilizados em determina-
das comunidades.
Repórter bom é repórter vivo 119

Para os jornalistas, a existência de um correspondente funcio-


nava como uma espécie de salvaguarda, e sempre facilitava as
coisas. O fato de o Viva Favela ser um portal dedicado às comu-
nidades de baixa renda também facilitava o trânsito da equipe.

O maior problema estava nas investidas inesperadas da polí-


cia, como essa da Cidade de Deus, ou, em casos extremos, na
invasão da favela por uma quadrilha rival. Para esse tipo de
coisa, não havia remédio a não ser se proteger e esperar passar o
perigo. Nesse contexto, era preciso respeitar os limites de cada
profissional. Se havia um repórter apreensivo diante de uma
determinada matéria – o que aconteceu apenas uma ou duas
vezes –, não forçávamos a barra. Era melhor encontrar alguém
na equipe disposto a fazer a reportagem – ou até desistir da
pauta, se fosse o caso.

Para quem se aventurava em favelas onde não havia correspon-


dentes, era preciso estar duplamente atento. Especialmente
se o momento era de tensão, como em abril de 2003, no morro
do Borel, onde quatro jovens foram assassinados no dia 17.
Os principais suspeitos da chacina eram PMs que participa-
ram de uma operação policial naquele dia. O Viva Favela fora o
primeiro a denunciar a história – atraindo a atenção de outros
veículos. Era bom ficar atento.

Foi o que pensou o repórter Marcelo Monteiro quando conseguiu


falar por telefone com Simone Silvote, irmã do taxista Everson
Silvote, uma das vítimas da chacina. Naquele final de tarde de
sexta-feira, a chapa estava quentíssima na favela. O melhor era
acionar o plano B e marcar a entrevista num lugar qualquer fora
do Borel. Mesmo que fosse num pé-sujo em frente ao morro,
como efetivamente acabou acontecendo. A polícia andava por
perto e ninguém queria correr riscos desnecessários – muito
menos ampliar a vulnerabilidade das testemunhas e parentes.

Os assassinatos, ocorridos poucas semanas antes, produziram


uma indignação tal no Borel, que os moradores decidiram escre-
ver uma carta-denúncia endereçada, entre outros, ao presidente
120

SIMONE SILVOTE,
IRMÃ DE UMA DAS VÍTIMAS DO CASO BOREL
Matéria: Viver como trabalhador, morrer como bandido
Viva Favela 16/05/2003
Crédito: Rodrigues Moura
Repórter bom é repórter vivo 121
122 Notícias da Favela

da República Luiz Inácio Lula da Silva. Duas coisas surpreendiam


na carta: a riqueza de detalhes sobre o episódio e a lista de nomes
ligados a instituições respeitáveis que a subscreviam – dezenas
de ONGs, representantes da Igreja Católica e até da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB). Mesmo assim, nenhuma outra reda-
ção da grande imprensa carioca lhe deu crédito.

A carta chegara às mãos de Rubem César por uma fonte con-


fiável. Ele me pediu para checar se a história era verdadeira.
Marcelo, que tinha bons contatos no Borel, não demorou a con-
firmar o caso. “Logo no primeiro telefonema, uma fonte jurou
que as vítimas eram trabalhadores que haviam sido executados
a sangue frio”, lembra o repórter.

O passo seguinte era saber se ela chegara aos seus destinatá-


rios – além de Lula, o então ministro da Justiça Márcio Thomaz
Bastos e o então secretário nacional de direitos humanos Nil-
mário Miranda. Através de uma fonte no gabinete do secretário,
tive certeza de que ninguém sabia de nada em Brasília. Ao tomar
conhecimento do conteúdo da carta, prometeram tomar provi-
dências imediatas. Com essa informação, publicamos a primeira
matéria da série sobre o Caso Borel: “Vidas interrompidas”.

Só então a história ganhou destaque e abriu espaço na grande


imprensa. O jornal Extra foi o primeiro a repercutir, com crédito
para o Viva Favela. O Globo só entraria na pauta quando Nilmá-
rio Miranda anunciou, em Brasília, a formação de uma comissão
especial para tratar do assunto. Aí, a notícia foi para o alto da
página do caderno Nacional.

“Dias antes, os crimes haviam motivado uma passeata dos


moradores do Borel pelas ruas do bairro da Tijuca, onde fica
o morro – mas o protesto passou quase despercebido pelas
autoridades e pela imprensa de modo geral. Tudo levava a crer
que o caso seria esquecido e arquivado como muitos outros – e
os PMs continuariam impunes”, lembra Marcelo.
Repórter bom é repórter vivo 123

Durante a cobertura da manifestação, alguns jornalistas chegaram


a receber a carta-denúncia. Porém, por falta de tempo ou interesse,
pessoal ou da chefia, não deram maior repercussão ao texto.

Após a publicação da primeira matéria no Viva Favela, soubemos


que O Dia estava correndo atrás da história. E precisamos correr
para não sermos “furados” na seqüência da nossa cobertura.
Assim, Marcelo foi parar no tal pé-sujo para a entrevista com a
irmã da vítima. Voltou com detalhes da história e fotos do álbum
de família para ilustrar a reportagem. A matéria “Viver como
trabalhador, morrer como bandido” foi ao ar ainda na sexta à
noite. Trazia uma declaração contundente de Simone, que, aos
26 anos, prometeu “só descansar quando o nome de Everson
fosse limpo”. No final de semana, O Dia publicou uma matéria
alentada sobre o assunto.

A série foi encerrada com a reportagem “Além do medo”. Nela, Mar-


celo mostrava a visita de Nilmário Miranda ao Borel, uma semana
depois de ter prometido apurar melhor o caso. Lá, o secretário
se reuniu com parentes de vítimas e lideranças comunitárias.
A visita ao morro levou a história para as manchetes e o noticiário
das TVs e jornais de todo o Brasil.

O Borel se tornou um dos casos de violação de direitos humanos


com maior repercussão no país. Em 2003, a secretária-geral da
Anistia Internacional de Londres, Irene Khan, visitou a favela.
No mesmo ano, a relatora especial da Organização das Nações
Unidas (ONU) para execuções sumárias, arbitrárias e extrajudi-
ciais, Asma Jahangir, também foi até lá para colher depoimentos
de parentes de vítimas da violência policial. Saiu com a impres-
são clara de que existe no Rio, aberta e deliberadamente, a prá-
tica de execuções sumárias de jovens que moram em favelas.

Em outubro do ano seguinte, o primeiro dos policiais militares


acusados de envolvimento na chacina seria absolvido por um
júri popular no II Tribunal do Júri do Rio de Janeiro. “Isso evi-
dencia o quanto a população está envolvida pela sensação de
insegurança, acreditando no discurso oficial que criminaliza a
124 Notícias da Favela

pobreza e apresenta a violência policial como critério de eficiên-


cia”, disse em nota a ONG Justiça Global.

O perigo, porém, não estava só nas áreas conflagradas. A calmaria


também escondia seus riscos. Um exemplo clássico aconteceu
na comunidade Santa Marta. Lá, não havia correspondente, mas
isso nunca impediu que os jornalistas fizessem boas matérias
abrindo caminho por conta própria. Subir a favela, localizada no
morro Dona Marta, em Botafogo, na Zona Sul carioca, não era
difícil. Bastava seguir as regras básicas de segurança.

Em meados de 2004, quando a repórter Ana Cora Lima foi lá em


busca de uma lavadeira – personagem de uma matéria sobre
profissões em extinção –, o Santa Marta vivia uma longa tempo-
rada de tranqüilidade. A paz, que durou cerca de seis anos, seria
interrompida meses depois por um confronto entre a polícia e
o tráfico que chegou ao asfalto e feriu a repórter da TV Band
Nadja Hadaad, um morador e três PMs. Naquela tarde, porém,
tudo estava calmo e Ana Cora baixou a guarda. Sentia-se com-
pletamente segura.

A repórter chegou à favela acompanhada pelo fotógrafo Walter


Mesquita, correspondente da Baixada Fluminense. Já fizera
contato com a moradora, que ficara de buscá-la no pé da favela.
Depois de esperar cinco minutos, ligou do próprio celular, mas,
como ninguém atendia, Ana resolveu encontrar a casa sozinha.
E começou a subir o morro feliz da vida. Walter foi atrás.

Ao perceber que estava sendo observada por um rapaz simpático


e bonitão que sorria para ela, sorriu de volta e o rapaz se aproxi-
mou dos dois. “Era bonito, forte, bem vestido. Não tinha a menor
pinta de marginal. Quando ele puxou conversa, eu vi que também
era bem articulado”, lembra a repórter. Ana achou que estava
sendo paquerada.

“Aonde você vai?”, perguntou ele. Ana contou e ele, sempre gen-
til, ofereceu-se para confirmar sua chegada ligando do próprio
celular para a moradora. Quando tirou vários celulares do bolso,
Repórter bom é repórter vivo 125

Walter começou a ficar pálido. Impressionada com tamanha boa


vontade, a repórter só desconfiou quando o rapaz fez questão
de mandar alguém acompanhá-los. Aí, caiu a ficha.

Durante o longo caminho até a casa da moradora, “seu guia”


contou que, para chegar lá, seria preciso passar pela “Faixa de
Gaza” – uma área conhecida pelos constantes conflitos arma-
dos entre traficantes e a polícia. Pouco antes de chegarem, Ana
ainda viu seis menininhos com armas e rádios-transmissores.
“Durante a entrevista, ninguém tocou no assunto. Os moradores
têm sempre muito medo e às vezes fingem que os traficantes não
existem”, observa Ana, que voltou ao lado de Walter sem “escolta”.
Ainda ouviu um “volte sempre” dos garotos no caminho.

Foi a primeira e única vez em que a repórter bobeou desse


jeito. Ana sabia que não podia vacilar. E estava acostumada a
fazer malabarismos para proteger seus personagens. No dia
em que precisou entrevistar parentes do barman Fábio Gomes
Rodrigues, do Vidigal, que fora morto por uma bala perdida, por
exemplo, a repórter marcou a entrevista no lugar mais lotado
que conseguiu imaginar: uma agência do INSS.

A precaução fazia sentido. Em caso de morte por bala perdida,


muitas vezes as testemunhas são capazes de identificar se o
tiro partiu da polícia ou do tráfico. Para não levantar descon-
fianças inúteis, era melhor que a conversa com a repórter fosse
feita fora da favela.

O barman, que trabalhava numa badalada boate de Copaca-


bana e tinha muitos amigos, completava 27 anos no dia em que
foi morto. Era o início de março de 2005 e ele foi atingido por
quatro tiros de fuzil quando descia o morro para buscar seus
convidados que moravam no asfalto e não sabiam o caminho
até sua casa. Era também a comemoração do seu casamento
– em breve, ele passaria a morar com a namorada. Ana voltou
da entrevista arrasada.

Para a jornalista, o Viva Favela foi um grande aprendizado. “Pas-


sei a conviver com uma outra realidade. Descobri que, na favela,
126 Notícias da Favela

é preciso chegar sem soberba. E você sempre se envolve, quer


ajudar como for possível. O distanciamento jornalístico vai pras
cucuias”, diz Ana.

Entre os momentos tensos, ela lembra ainda de uma matéria


no morro da Fallet, em Santa Teresa (zona central do Rio). “Um
traficante chegou gritando para o Walter: ‘Não faz foto que eu
tô errado na parada!’ O fotógrafo, que só queria a paisagem,
teve de mostrar a imagem digital para acalmá-lo. Às vezes eu
penso em como tive coragem... Não sei se hoje eu subiria uma
favela do mesmo jeito. Acho que a situação piorou muito nos
últimos dois anos”, diz Ana Cora, hoje redatora do jornal popular
Expresso, das Organizações Globo.

O repórter Jaime Gonçalves Filho, que substituiu Marcelo Mon-


teiro no site Favela Tem Memória, também passou por momentos
de sufoco. Nascido em 1973, Jaime foi contratado pelo Viva
Favela em dezembro de 2003 para reforçar a cobertura de vio-
lência. De toda a redação, era o que mais sentia afinidade com
o tema. Gostava de discutir suas possíveis causas e de entre-
vistar especialistas. E não se recusava a encarar um morro sob
tensão. Como era o caso da Rocinha duas semanas depois da
Sexta-Feira da Paixão de 2004, quando um ex-chefe do tráfico
local invadiu a favela para retomar o comando do comércio de
drogas, como veremos a seguir.

Junto a duas outras equipes (do Jornal do Brasil (JB) e da Folha de


São Paulo), Jaime subiu com Kita Pedroza até uma área da favela
a convite de Carlos Costa, líder comunitário e ex-correspondente
do portal. O Batalhão de Operações Especiais (Bope) entrara de
madrugada na comunidade e os moradores queriam mostrar à
imprensa o estrago que os tiros fizeram por ali.

“Entramos por um beco que foi ficando cada vez mais estreito.
No final dele, dava para ver os carros, toldos e paredes perfurados”,
lembra Jaime. Tudo ia bem, até o fotógrafo do JB fazer uma foto
e colocar em quadro um dos traficantes parados mais adiante.
“A partir daí, começou a sair um monte de homem armado do
beco. Eram uns dez ou doze”. Carlinhos explicava que ninguém
Repórter bom é repórter vivo 127

estava ali pra fotografar o tráfico, mas eles queriam ficar com a
máquina do JB de qualquer maneira. Até tudo se acalmar – e a
máquina ser recuperada –, foram quatro intermináveis minutos.

No final daquele mesmo ano,  Jaime voltaria a viver momentos


em que ficou com a respiração suspensa. Dessa vez, durante
uma inocente matéria que fazia para o Favela Tem Memória.
A reportagem era “No tempo dos atabaques”, que trazia uma
entrevista com Dely Moreira Chagas, cantora do grupo Jongo da
Serrinha e neta da mãe-de-santo Vovó Maria Joana Rezadeira,
que, até meados da década de 1980, comandava um terreiro onde
famosos como a cantora Clara Nunes marcavam presença.

Para fazer a matéria, foi preciso subir o morro da Serrinha, no


bairro de Madureira, na Zona Norte carioca. Do pé da comuni-
dade, Jaime ligou do celular para Dely. Perguntou se ela não gos-
taria de pegá-los lá embaixo. A moradora disse que eles pode-
riam subir sozinhos, que ali era tranqüilo. A subida realmente
foi calma. Bastou perguntar a duas ou três pessoas. Seguindo
as indicações dos moradores, Jaime e o fotógrafo Walter Mes-
quita chegaram sem problemas à casa da cantora, que morava
no meio de uma escadaria que dá acesso ao alto da favela.
“A gente viu ‘os caras’ lá no alto, e eles ficaram olhando a gente
lá de cima”, lembra o repórter.

A saída, já ao entardecer, não seria tão calma. Depois de se


despedir na porta da casa de Dely, Walter resolveu fazer uma
foto da paisagem de Madureira que se descortinava bem na
frente da escadaria. Nesse momento, porém, Jaime percebeu
que havia dois rapazes do “movimento” descendo em direção a
eles. “Guarda essa câmera e vamos embora”, sussurrou Jaime.
O fotógrafo obedeceu. Os dois apressaram o passo, os bandi-
dos também. Já quase no final, o repórter ainda ouviu um deles
dizer ao outro: “Não adianta, a gente vai fazer aqui, agora!”
Eles acharam melhor continuar andando rápido, sem olhar para
trás. Só pararam quando chegaram ao pé da escadaria, sãos e
salvos. Provavelmente era só para assustar.

Porém, não convinha pagar para ver.


Um divisor
de águas

A cobertura das favelas cariocas feita pela mídia tradicional


tem um claro divisor de águas: o assassinato de Tim Lopes.
Se até então ela tendia a ser limitada, com a morte do jornalista
da TV Globo, tornou-se ainda mais precária. Triste ironia. Criado
no morro da Mangueira, Tim sempre lutou para inserir as comu-
nidades de baixa renda na pauta dos grandes veículos. Até ser
morto por traficantes no Complexo do Alemão, em junho de 2002,
quando fazia uma reportagem investigativa sobre consumo de
drogas e exploração sexual de menores num baile funk.

A partir do assassinato, a Globo proibiu expressamente a ida


de todo e qualquer jornalista às favelas do Rio. As equipes que
fossem fazer matérias em áreas próximas deveriam usar carros
blindados. Ainda assim, os repórteres teriam de usar coletes à
prova de balas. Imagens, só de helicóptero e a uma distância
segura. Essas medidas só seriam abrandadas uns dois anos
depois, quando a emissora voltou a entrar em favelas, sobre-
tudo para fazer reportagens de cunho social. A cobertura de
tiroteios, no entanto, continuou proibida.

A morte de Tim Lopes parece ter afetado, de uma maneira ou de


outra, todos os veículos cariocas de grande porte. A redação do
SBT, por exemplo, também adotou novas medidas de segurança.
Entre elas, havia uma ordem para as equipes nunca entrarem
sozinhas na favela.

128
Um divisor de águas 129

A regra era subir o morro com “escolta” da polícia e, de preferência,


junto com outras emissoras.

“O caso do Tim foi um grande susto. Até então, havia um senso


comum de que a imprensa estava salvaguardada. Mas a morte
dele mostrou que a lua-de-mel havia acabado e que o crime no
Rio não era mais o mesmo”, avalia Rafael Casé, editor-chefe do
SBT Rio. Para Rafael, parte dessa sensação de segurança se
devia ao fato de os bandidos enxergarem nos jornalistas um
fator de proteção: “Eles sabiam que, se a imprensa estivesse lá,
seria mais difícil para os policiais sumirem com eles caso fossem
pegos. Contavam com a imprensa para garantir suas vidas”.

A Folha de São Paulo, por sua vez, aprovou normas de segurança


rígidas, que incluíam o uso obrigatório de colete à prova de
balas. Na Folha, ninguém poderia tentar acompanhar um tiro-
teio, por exemplo. Nesse caso, a ordem era sempre para buscar
abrigo. Já em reportagens especiais, a equipe deveria checar as
condições de segurança previamente, encontrar o contato na
entrada da favela e jamais circular sozinha.

As normas foram definidas e implementadas por Marcelo


Beraba, então diretor da sucursal carioca da Folha. “Beraba
produziu um texto regulamentando a ação dos profissionais
em favelas. Esse texto foi submetido à direção do jornal, que o
aprovou. Eram normas bastante rigorosas e seu cumprimento
era exigido com severidade por ele. A Folha comprou para a
equipe coletes à prova de balas e era proibido ir para a favela
sem eles”, lembra o repórter Sergio Torres.

Marcelo Beraba confirma que as medidas foram adotadas


“depois de discussões com repórteres (de texto e de imagem),
com os motoristas e os chefes da sucursal do Rio” e aprovadas
pela direção da redação de São Paulo. Para o jornalista, que é
também presidente da Associação Brasileira de Jornalismo
Investigativo (Abraji), a grande mídia tem interesse na cobertura
de favelas, “mas não sabe como fazê-la”.
130

OPERAÇÃO POLICIAL NA ROCINHA


Matéria: Eles querem segurança
Viva Favela 09/02/2004
Crédito: Nando Dias
Um divisor de águas 131

Por conseqüência, essa cobertura, diz Beraba, “oscila entre uma


ênfase excessiva na violência (com relatos quase sempre de uma
única fonte, a polícia, uma vez que entrar nas favelas ficou de
fato perigosíssimo para a imprensa) e os destaques para casos
excepcionais, como a menina que foi fazer balé na Alemanha,
o garoto que ganhou bolsa para tocar violino na Áustria. É algo
completamente sem lógica. O morador comum, que não é nem
criminoso e nem um caso raro de virtuosidade, passa desperce-
bido, é ignorado, junto com os problemas urbanos – habitação,
saneamento, educação, oportunidades de trabalho etc. – estes
sim, gravíssimos e pouco abordados”.

Os jornais populares Extra e O Dia também mudaram seu


esquema de cobertura. O Extra tem hoje como padrão proibir a
entrada de equipes de reportagem em comunidades, salvo ações
determinadas pela chefia. Já O Dia continua a subir favelas, mas
repórteres e fotógrafos são orientados a não correrem riscos
desnecessários. Não há exatamente um código interno no jornal.
Entretanto, procura-se obedecer a alguns critérios, como fazer
contato prévio com a associação de moradores ou com alguma
fonte para entrar na favela, quando a matéria não é factual.

O uso de coletes à prova de balas só é obrigatório quando a


equipe acompanha incursões policiais. “A presença de jorna-
listas em favelas ficou bem mais tensa. Normalmente, pedem
que a gente permaneça no morro somente até o final da tarde.
A partir das dezoito horas, somente quando é imprescindível”,
diz a fotógrafa Isabela Kassow, do O Dia.

O limite de horário, no entanto, não impede situações de risco.


Certa vez, por exemplo, Isabela ficou encurralada em plena luz
do dia, junto com dois PMs, no morro da Providência: “Via as
balas de fuzil caindo a meio metro de mim, e eu totalmente
encolhida no cantinho de um muro. Não tinha nem como foto-
grafar”. Para sair de lá, foi preciso esperar a Coordenadoria de
Recursos Especiais (Core), grupo da Polícia Civil, chegar.
132 Notícias da Favela

Isabela teve de correr de costas para os tiros dos bandidos,


escondidos em cima de uma laje.

“Supero o medo, muitas vezes, em nome não sei bem de quê!


Parece que a câmera me torna quase imortal. Mas hoje temos mais
cuidado ao ‘invadir’ o terreno alheio, que, mesmo estando tranqüilo,
pode explodir a qualquer momento”, diz a fotógrafa.

Na medida em que o narcotráfico avançava, as favelas eram


cada vez mais identificadas como o espaço do medo no Rio.
Essa percepção se refletia na pauta e na cobertura feita pelos
jornalistas. E só piorou, a partir do ano 2000, quando os atos
de violência do tráfico de drogas transbordaram para o asfalto.
Bombas sendo lançadas sobre a sede da Prefeitura do Rio ou
confrontos entre a polícia e o tráfico em pleno asfalto, fora
da tradicional “área de proteção” oferecida pela geografia do
morro, traçam um quadro ainda mais hostil.

“Quando a imprensa deixa de entrar em favelas, uma parte


muito grande da sociedade fica sem voz. Esse recuo é o prejuízo
mais recente e nítido provocado pela tirania do tráfico de dro-
gas no Rio”, observa Aziz Filho,1 até meados de 2007, presidente
do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio
(SJPMRJ), que briga por melhores medidas de proteção para as
equipes que cobrem a violência na cidade.

Nesse contexto, era natural que o Viva Favela se tornasse uma


rara fonte de informação. Como nenhum outro veículo, o portal
podia contar com repórteres e fotógrafos 24 horas por dia nas
favelas – os correspondentes comunitários. Havia, no entanto,
um pequeno detalhe: praticamente nenhum deles queria falar
sobre assuntos que não transmitissem uma visão positiva
da comunidade. E, como o jornalismo é feito de notícias boas
e ruins, o Viva Favela começou a falhar na cobertura de um
aspecto fundamental para quem vive no Rio de Janeiro neste
início de século XXI: a violência.

  Revista Lide, março/abril de 2006.


1
Um divisor de águas 133

Claro que a intenção não era acompanhar a cobertura factual, a


velha guerra sem fim entre o tráfico e a polícia.  Havia um consenso
no Viva Favela de que a mídia tradicional já cobria exaustivamente
os temas do gênero. Contudo, era preciso dar alguma atenção aos
efeitos dessa guerra sobre o cotidiano dos moradores.

Não falar de violência passou a soar cada vez mais como omis-
são, ou alienação pura e simples, da realidade carioca, o que
criava situações absurdas. Para não passar atestado de luná-
tica, lembro-me de suspender a publicação de duas matérias
sobre a Rocinha. A comunidade vivia momentos dramáticos,
em plena “guerra” de facções, como veremos adiante. Não fazia
sentido colocar uma manchete sobre um assunto ameno sem
fazer referência à tensão que dominava o lugar.

Não dava para fingir que nada estava acontecendo. Sobretudo


na Rocinha, caixa de ressonância das favelas por se localizar
entre bairros de alto poder aquisitivo do Rio como Leblon,
Gávea, São Conrado e Barra da Tijuca.

A Caras da favela

A comunidade sempre foi a mais badalada do Rio – para o bem


ou para o mal. Ali, qualquer tiroteio ganha evidência amplifi-
cada, especialmente se houver vítimas, ao contrário de outras
favelas que ficam em bairros mais pobres e afastados da elite
carioca, onde muito acontece e pouco se noticia. Mesmo na
editoria de polícia.

Para o Viva Favela, a Rocinha também era especial porque fun-


cionava como uma espécie de favela-laboratório para diversas
iniciativas bem-sucedidas do Viva Rio, como a Estação Futuro e o
Viva Cred (programa de microcrédito). Como já vimos, ali também
os moradores tinham acesso privilegiado a computador e Inter-
net nos cyber-cafés, nas Lan Houses (lojas de jogos) ou nas sedes
de projetos sociais.
134 Notícias da Favela

Reza a lenda que Luciano Barbosa da Silva, o “Lulu”, chefe do


tráfico de drogas até ser morto numa troca de tiros com a polí-
cia em abril de 2004, costumava olhar a home do Viva Favela
para saber o que o portal escrevia sobre a Rocinha.

Fora da favela, porém, havia leitores descontentes com a


ampla cobertura dada a ela. Certo dia, por exemplo, um mora-
dor de uma favela da Zona Oeste ligou irritado para a redação,
reclamando que o Viva Favela “só cobria os tiroteios da Roci-
nha”. Explicamos que havia apenas uma correspondente para
cobrir toda a sua região, e pedimos que deixasse um contato.
Ele poderia nos ajudar nessa cobertura no futuro. O rapaz,
porém, desligou ainda bravo, sem sequer deixar seu nome.

Mas, se falar de violência era um tabu para os correspondentes,


como entrar no assunto? Porque não entrar era ignorar uma
parte da história da própria cidade, em última instância do país,
que se desenrolava ali, diante dos nossos narizes.

O tema foi discutido durante uma reunião de balanço do pro-


jeto, realizada em março de 2004. Nela, o jornalista Xico Vargas
pontuou que o portal correria o risco de virar a Caras da favela
se continuasse a ignorar a cobertura da violência na cidade.
A comparação com a revista de celebridades expressava a pre-
ocupação de Xico com o clima “água-com-açúcar” que tomara
conta do Viva Favela, confinado em sua camisa-de-força de não
tocar em aspectos negativos das comunidades.

Qualquer mudança, no entanto, teria de ser feita com muito


cuidado, já que tudo o que os correspondentes queriam (e nós
também) era fugir do estereótipo de favela como o “lugar da
violência”, para mostrar ali um outro tipo de cotidiano.

Uma restrição que até hoje Rubem César lamenta: “Eu não
sentia nos correspondentes aquela postura que os jornalistas
tinham durante a ditadura de usar subterfúgios para mostrar
o que não podia ser mostrado em cada brecha que aparecesse.
Não sentia uma atitude mais agressiva para afirmar a sua liber-
dade de expressão”. O antropólogo avalia que eles poderiam ter
Um divisor de águas 135

ousado um pouco mais. Entretanto, admite, a mídia era “tão


escancarada” ao falar de violência, que eles faziam “o caminho
inverso, forçando a barra para fechar”.

A linha editorial do Viva Favela realmente nunca excluíra o tema


de sua pauta. “Mesmo tendo presente o tempo todo o risco que
isso representava”, diz Xico. O jornalista lembra que Rubem
César, já no início, cobrara possíveis formas de se abordar a
questão da violência, o que acabou resultando na criação de
Vidas Perdidas, uma seção que permitia aos correspondentes
contar as histórias pela perspectiva da perda.

Algumas belas matérias chegaram a ser feitas. Mas não havia


regularidade na produção e era sempre difícil arrancar uma
sugestão da equipe. Com o tempo, a seção foi definitivamente
esquecida. O desfecho já era um forte indicador da resistência
que encontraríamos pela frente. Para os correspondentes, colo-
car o dedo na ferida sempre foi muito difícil.

Na publicação A memória das favelas,2 o jornalista Flávio Pinheiro


fala da importância da seção:
Como falar de questões delicadas? Questões delicadas porque envol-
vem a segurança das pessoas? Tivemos, nas reuniões de pauta, gran-
des conversas utilíssimas a respeito disso, a partir do depoimento
que cada correspondente traz: falam do seu temor, do limite de suas
ações. Discutimos a possibilidade de saber mais sem prejudicar, sem
colocar ninguém em risco e o Viva Favela fez isso com grande maes-
tria. O Viva Favela criou uma seção chamada Vidas Perdidas na qual
não fala sempre da violência, mas sim do luto por uma morte, dando
uma existência civil, se assim podemos dizer, ao indivíduo morto. (...)
Acho importante discutir esse tema.

Rosy Henriques, correspondente da Cidade de Deus, foi uma


rara exceção a fugir da linha “favela do bem”. Rosy escreveu, por
exemplo, sobre a denúncia de uma manicure que acusava um

2
NOVAES, Regina; CUNHA, Marilena & VITAL, Christina (eds.). “A Memória das
Favelas”. Em: Cadernos de Comunicações do Iser. Rio de Janeiro: Instituto de Estu-
dos da Religião, 2004.
136 Notícias da Favela

policial de ter assassinado seu filho. Também falou da explo-


são do consumo de drogas entre moradores de comunidades,
ainda em 2001. Publicada em 3 de setembro, “Drogas avançam
nas favelas” foi pioneira em revelar que os moradores de favelas
estavam se transformando em consumidores cobiçados pelo
narcotráfico. Nela, Rosy relatava que a proximidade da fonte de
distribuição ajudava a atrair os jovens para o vício.

A correspondente ficou pouco tempo no portal. Entretanto, saiu


com a fama de ser uma das melhores do time. Sacava pautas
corajosas. Entre as matérias memoráveis, destaca-se ainda
“A maldição do endereço”, que revelava a dificuldade dos mora-
dores para conseguir um emprego em função do preconceito
em relação à Cidade de Deus. Também marcou a reportagem
com meninos que trabalhavam para segurar a barra em casa –
“Chefes de família aos 12”. Além de correspondente, Rosy era
professora de um curso de modelo e manequim na favela até se
casar e se mudar para a Alemanha.

Dayse Lara, que sucedeu Rosy, também costumava aceitar pau-


tas mais pesadas. Encarou, por exemplo, o desafio de contar em
reportagem a morte da mãe de uma modelo que era conhecida
sua na favela. Assim, Dayse descobriu que ter intimidade com
as fontes e personagens nem sempre era um bom negócio.

Na hora de escrever, uma das grandes preocupações foi


não fazer um texto sensacionalista: “Eu vivenciei aquilo com
ela. Vi a mãe dela de manhã, os policiais entrando na comuni-
dade. Vi a mãe dela saindo depois e vi chegando a notícia de que
ela havia sido baleada. Vi a Ludmila gritando: ‘Minha mãe, não!’
Pedi desculpas por estar tocando numa ferida. Quem gosta de
ficar falando disso? Não perguntei os mínimos detalhes por-
que... quem gosta, não é?”, diz Dayse.

Ao longo do tempo, sugestões esporádicas dos correspondentes


tocariam em assuntos mais espinhosos. Mas, em geral, quase
ninguém queria jogar luz sobre as dores da favela. Além disso,
qualquer reportagem sobre sua própria comunidade, acredita-
Um divisor de águas 137

vam, seria automaticamente associada a eles. Mesmo que não


levasse o seu crédito. É na equipe de jornalistas profissionais,
portanto, e ainda assim, diante de certa resistência, que o projeto
descobre caminhos para falar da violência e de seus desdobra-
mentos na vida da população.
Códigos de
conduta

Os caminhos para uma nova cobertura que incluísse a questão


da violência logo seriam traçados. De saída, sabia-se que essa
não seria uma abordagem factual, com tiroteios e contagem de
mortos. Era preciso descobrir novos rumos. Ir além – enxergar
o morador, dar-lhe um nome e uma identidade, contar suas
histórias de vida, seus sonhos interrompidos. Mostrar que ele
é a maior vítima – embora o asfalto identifique tantas vezes a
favela apenas como produtora, e não refém, dessa violência.
Só assim seria possível sensibilizar os formadores de opinião
e a parcela da sociedade que, no final das contas, influencia o
poder público e é capaz de promover mudanças.

Em abril de 2004, a publicação da matéria “Códigos de conduta”


marcaria o primeiro passo dessa transformação. A reportagem
relatava com detalhes impressionantes como os moradores de
favelas eram obrigados a seguir as regras impostas pelo trá-
fico – às vezes, em sua própria casa. E mostrava que o domínio
do tráfico invadia até o raciocínio das crianças. Na hora das
brincadeiras, elas contavam: primeiro, segundo, “dois mais
um”, quarto… “Terceiro” era palavra proibida para não haver
referência ao Terceiro Comando, facção rival da quadrilha local.
“São regras”, dizia a matéria, assinada pelo repórter Carlos
Collier, o Carlinhos, “que não precisam estar escritas”.

Os nomes citados eram todos fictícios, mas os personagens,


naturalmente, 100% reais. A matéria teve boa repercussão.

138
Códigos de conduta 139

O site Globo Online reproduziu parcialmente o texto, enquanto


Roberto Pompeu de Toledo citou a reportagem do início ao fim
em sua coluna semanal na revista Veja, com os devidos créditos.

Um ano antes, o Viva Favela já ensaiara uma abordagem sobre


o tema, mas por um viés oposto. Em março de 2003, em repor-
tagem também de Carlos Collier, o portal mostrava os códigos
usados pelos moradores para não serem confundidos com ban-
didos pela polícia. Feita na Cidade de Deus, a matéria “A dureza
da dura” mostrava uma série de recomendações que deveriam
ser seguidas para driblar as revistas da polícia: “Um trabalha-
dor nunca deve ficar parado numa esquina, no meio da tarde.
Também não deve usar pochete. Cabelo pintado de louro – a
menos que seja um cantor de pagode muito famoso –, camisa
social estampada e corrente de ouro no pescoço também estão
proibidos. Andar com muito gingado à noite, agitando os braços
e conversando alto demais, é dura na certa. Pela lógica policial,
explicam os moradores, ninguém que tenha passado o dia traba-
lhando pesado pode ter tanta energia nesse horário”.

Mais interessado na área cultural, o repórter Carlos Collier sem-


pre tentava escapar de pautas do gênero. Nem sempre conseguia,
como se vê. Pernambucano, Carlinhos assumiu a seção Nordeste
é Aqui – feita sob medida para os nordestinos que vivem no Rio
de Janeiro, com perfis de famosos, letras de cordel e receitas
culinárias – quando Ana Cora, então responsável pelo espaço, foi
deslocada para o Clique Seu Direito – um site do Viva Favela que
prestava assistência jurídica on-line com o apoio da faculdade
de direito da UniRio. O Clique era uma espécie de braço virtual do
projeto Balcão de Direitos, também do Viva Rio.

Ana Cora, por sua vez, preferia fazer reportagens sobre temas
mais “pesados”. Como a série “Ditadura do tráfico”. Publicadas
entre setembro e novembro de 2004, as três matérias da série
mostravam moradores acuados pelos bandidos. Os depoimentos
revelavam que eles eram forçados a agir contra a sua vontade,
e tinham de servir comida e bebida a traficantes que invadiam
140 Notícias da Favela

suas casas. Também deviam pagar por “serviços de segurança”


e até pelo fornecimento clandestino de água. Para as famílias
de dependentes químicos ameaçados por dívidas com o tráfico,
o sofrimento era ainda maior. E cercado pelo silêncio.

Foi preciso muita confiança – e a garantia de que o Viva Favela


não identificaria a fonte nem localizaria as respectivas comuni-
dades – para que se pudesse conseguir os relatos inéditos das
vítimas que aceitaram denunciar como agem as facções crimi-
nosas e como elas implantam o terror nas favelas.

Como lembra a repórter Mariana Leal, era necessário um


cuidado extremo com certos entrevistados, inclusive mudar
nomes para garantir a sua segurança. Segundo a repórter, havia,
sobretudo, o medo da reação dos traficantes locais. No entanto,
a polícia também era temida. E o contato com os personagens
era sempre uma questão de confiança. “Alguns eram apresen-
tados pelos correspondentes – e nos confiavam experiências
de vida e até outras versões para os fatos. Daí ser fundamental
a atenção com essas informações”, diz.

A guerra na Rocinha

A tensão de quem vive numa favela disputada por facções rivais


pode ser terrível, apesar de as pessoas de fora nem sempre
perceberem isso. Quem acompanha os confrontos pelos jor-
nais mal se dá conta de que há vítimas. No meio de números de
armamentos e drogas apreendidas, o que se tem muitas vezes
são estatísticas sem rosto.

Se o conflito atinge moradores do asfalto, porém, é certo que


o assunto entrará na pauta de todos os veículos. Mais ainda
se esse conflito acontecer na Rocinha – como já vimos, a caixa de
ressonância das favelas cariocas e uma das maiores do Brasil.

Quando a favela passou por meses de tensão à espera de uma


guerra entre quadrilhas que disputavam o controle da venda de
Códigos de conduta 141

drogas, no início de 2004, isso ficou mais do que claro. As fac-


ções rivais invadiram a favela na madrugada da Sexta-feira da
Paixão. Tinham no comando um ex-chefe do tráfico local inte-
ressado em retomar o controle das bocas-de-fumo da Rocinha.

O episódio aconteceu apenas dois meses depois da reunião na


qual ficou decidido que o portal não poderia mais se negar a
falar da violência. Era preciso reagir e assim foi feito. O resul-
tado desse esforço – comandado por Tetê Oliveira, que assumiu
o portal durante minha licença-maternidade – ficou registrado
na série “A guerra na Rocinha”.

Com notícias frescas e inéditas da favela, a série provocou uma


das maiores repercussões já alcançadas pelo portal. As repor-
tagens – “Notícias de uma guerra”, “Diário de uma sobrevivente”
e “Pressão máxima” – foram assinadas pela própria Tetê, pela
repórter Gisele Netto e pela redatora Vilma Homero.

Durante a ação dos traficantes, que ocorreu tanto na favela


como em ruas próximas, no bairro de classe média alta de São
Conrado, morreram nas primeiras horas dois moradores da
comunidade e uma moça “do asfalto” que passava de carro pela
avenida Niemeyer, estradinha sinuosa à beira-mar e um dos
caminhos preferidos por quem vai da Zona Sul à Zona Oeste
da cidade. Também se pode passar pelo Túnel Zuzu Angel, cuja
saída desemboca ao lado da Rocinha.

Quando estourou o conflito, conta Tetê, os moradores se entrin-


cheiraram em suas casas ou ficaram impossibilitados de chegar
até elas. Como é de praxe, imperou a lei do silêncio e se evitou
dar depoimentos a jornalistas. O Viva Favela conseguiu furar o
cerco e retratou o conflito do ponto de vista de quem vive na
comunidade. Com as fontes do portal, foi possível traçar um
panorama da “guerra” a partir do relato das vítimas e de teste-
munhas anônimas, que viveram horas de terror após a invasão.

Os textos sobre a Rocinha tiveram grande repercussão na mídia,


inclusive com a reprodução de trechos de três matérias no Globo
142 Notícias da Favela

Online, e forneceram material para duas colunas, novamente


assinadas por Roberto Pompeu de Toledo e publicadas em edi-
ções consecutivas (21 e 28 de abril) na revista Veja. Todos deram
créditos ao Viva Favela. O portal foi procurado ainda por jornalis-
tas de diversos veículos, até mesmo de outros estados, querendo
indicações de personagens para matérias sobre o tema.

O interesse também veio do exterior. O diário basco Berria, por


exemplo, solicitou informações sobre a situação das favelas
cariocas. Os textos foram reproduzidos em blogs, sites e jornais,
como o Tecido Social, jornal da Rede Estadual de Direitos Huma-
nos – RN, publicação do Rio Grande do Norte.

A partir daí, o Viva Favela continuou buscando o tom mais


adequado para avançar na cobertura da violência nas favelas
do Rio. Até que, no dia 31 de março de 2005, um fato novo exigiu
outro grande empenho de reportagem. E, dessa vez, haveria um
reforço inesperado.

Nossos homens na Baixada

Ninguém contava com a ajuda dos correspondentes para maté-


rias do gênero. Foi uma ótima surpresa, portanto, quando o
fotógrafo Walter Mesquita e o correspondente de texto Cristian
Ferraz aceitaram ajudar na cobertura da Chacina da Baixada.
A notícia dava conta de que 29 pessoas haviam sido assassina-
das por um grupo de extermínio nos municípios de Nova Iguaçu e
Queimados. Escolhidas ao acaso, as vítimas eram jovens, adultos
e idosos. Os principais suspeitos, policiais militares.

A cobertura do episódio rendeu à dupla de correspondentes


da Baixada Fluminense um de seus melhores desempenhos no
portal. Os dois foram extremamente profissionais e consegui-
ram se sair muito bem numa apuração difícil até para um jorna-
lista experiente. A matéria seria a manchete do nosso boletim
semanal – uma síntese das melhores reportagens do período –,
Códigos de conduta 143

enviado para mais de doze mil assinantes. Tinha, portanto, de


ficar pronta no dia seguinte.

Cristian saiu da reunião de pauta de segunda com o compro-


misso de amanhecer em Queimados (ele morava em Duque
de Caxias, também na Baixada). Sua missão era traçar o perfil
alentado de uma das vítimas – e ele conseguiu. Madrugou por
lá na terça e só voltou com a entrevista nas mãos. Com a ajuda
de Walter, conseguira o contato dos pais de Julinho – um estu-
dante morto na chacina. Aos dezesseis anos, Julinho estava na
hora errada, no lugar errado. Convidado para uma festa, cance-
lou o compromisso na última hora. O menino queria ser policial,
como descobriram mais tarde.

Um prazo tão apertado era inédito para um correspondente.


Entretanto, Cristian voltou à redação e escreveu a matéria
na maior adrenalina. De madrugada, sem conseguir pregar
o olho, escreveu um e-mail para Tetê e para mim contando a
experiência – enquanto chorava ao relembrar a conversa com
a mãe de Julinho.

A cobertura da chacina envolveu também jornalistas da equipe,


como Vilma Homero, Jaime Gonçalves e a própria Tetê Oliveira.
Ao todo, foram dez matérias. Morador de Queimados, Walter
Mesquita conseguiu pautas preciosas. A de maior repercussão
falava sobre uma família que se mudou de Vigário Geral para
Queimados após assistir à chacina de Vigário, ocorrida em 1993,
mas deu de cara com outra tragédia.

Com o título “O filme se repete”, a reportagem levou O Globo e


O Estado de São Paulo a correrem atrás para entrevistar o per-
sonagem descoberto pelo Viva Favela. Walter fez a ponte e levou
o rapaz da Baixada até a sede do Viva Rio. O compromisso com
os dois jornais foi manter o anonimato e dar crédito ao portal na
matéria. Ambos foram respeitados.

Dar crédito ao veículo que originou a notícia está longe de ser


uma prática no jornalismo impresso. Quando se trata de Inter-
144

PARENTES DE VÍTIMAS DA CHACINA DA BAIXADA CRIAM ASSOCIAÇÃO


Matéria: Baixada relembra chacina
Viva Favela 30/03/06
Crédito: Walter Mesquita
145
146 Notícias da Favela

net, essa omissão é quase uma regra. É como se o mundo virtual


fosse uma terra de ninguém onde o dono do conteúdo – autor
ou veículo – pudesse ser simplesmente ignorado. Inúmeras
vezes, descobrimos matérias do Viva Favela reproduzidas sem
qualquer crédito ou link para o portal – exigência mínima que
fazíamos aos que queriam replicar nosso conteúdo.

As reportagens do Viva Favela sempre primaram pela exclusi-


vidade – o que as diferenciava de alguns sites, com conteúdos
jornalísticos mais ágeis, mas também bem mais superficiais.
Por isso, condicionamos nossas parcerias com outros veículos ao
crédito obrigatório. Entre os parceiros de conteúdo estavam os
sites IG Cidadania, Cidadania.org e NoMínimo. Com o Globo Online,
formalizamos uma parceria no segundo semestre de 2005.

De todos, o jornal O Dia foi, certamente, o que mais trouxe visi-


bilidade ao leitor de baixa renda. Por um iluminado acordo feito
informalmente por iniciativa de Oscar Valporto, o jornal publicava
todos os sábados uma matéria do Viva Favela em espaço nobre
(metade da página 2). Essa página fazia o maior sucesso nas
favelas e costumava ser colada pelos entrevistados em todos os
cantos da comunidade. Com a reforma gráfica do jornal, no final
de 2003, o espaço foi suspenso. Deixou, porém, sua marca.

A decisão tomada por Cristian de entrar de cabeça na cobertura


da Chacina da Baixada, junto com Walter Mesquita, mostra que
o tempo talvez tenha ajudado a atenuar a antiga resistência dos
dois em fazer pautas sobre violência. É fato que nem Walter nem
Cristian moram em favela. No entanto, deve ter pesado, acima
de tudo, a percepção de que nosso objetivo, também nesse
tópico, não era repetir a visão da grande mídia. Era não fechar
os olhos diante de fatos que impactavam a sociedade como um
todo – mas que importavam mais para uns do que para outros.

Nascido em 1972, o radialista Cristian entrou para o portal em


2003, substituindo a correspondente Keliane Muniz, também
de Duque de Caxias. Com uma diferença: ele passaria a cobrir
toda a região da Baixada, já que a correspondente de Quei-
Códigos de conduta 147

mados na época, Lara Larissa, também saíra. Cria da área –


apesar de ter morado em Botafogo (Zona Sul carioca) até os
cinco anos de idade –, Cristian daria conta do recado muito bem.
E se destacaria como um dos mais dedicados e competentes
do grupo, conseguindo conciliar o portal com o trabalho na hoje
extinta Rádio Fluminense FM e com os flashes que fazia para a
também extinta Rádio Viva Rio AM.
Capítulo 5
149
Luz sobre
o beco

As imagens das favelas brasileiras que costumam chegar ao


público são geralmente distantes e apressadas. No Viva Favela,
porém, os fotógrafos tinham não apenas tempo, mas, sobre-
tudo, intimidade diante do objeto. A proximidade permanente
dos becos, ladeiras e lares de suas comunidades permitiu que
fizessem uma leitura intensa dessas áreas.

Pelas lentes dos correspondentes Deise Lane, Nando Dias,


Rodrigues Moura, Tony Barros e Walter Mesquita – e também
das editoras Sandra Delgado e Kita Pedroza, a favela que brota
é singular. Em conjunto, essas imagens formam um dos maiores
acervos do gênero no país, com mais de quarenta mil fotos.

Não por acaso, em meados de 2005, o time conseguiu um reco-


nhecimento internacional ao ganhar o Documentary Photogra-
phy Project Distribution Grant – prêmio oferecido pelo Open
Society Institute (leia-se Fundação George Soros) após disputa
que envolveu projetos de documentação fotográfica do mundo
inteiro. A premiação permitiu ao portal viabilizar uma exposi-
ção itinerante em favelas do Rio e uma galeria de fotos on-line
(www.fotofavela.com.br).

Realizada ao longo de 2006, a mostra “Moro na Favela” percor-


reu as cinco áreas de baixa renda onde moram os fotógrafos
(Complexo da Maré, Rocinha, Cidade de Deus, Baixada Flumi-
nense e Complexo do Alemão).

150
Luz sobre o beco 151

Era a realização de um velho sonho da equipe, que desejava


retribuir o apoio das comunidades ao projeto.

Inicialmente, porém, a câmera costumava gerar muita descon-


fiança nas favelas. Só aos poucos a população foi percebendo
que, com suas lentes, os fotógrafos podiam denunciar injusti-
ças, registrar abusos, cobrar mudanças do poder público – e
também ser um instrumento de proteção. Cada um dos cinco
sentiu isso na pele à sua maneira. Mas Tony Barros, da Cidade
de Deus, talvez tenha sido o que mais enfrentou situações de
confronto. Como no dia em que fotografou o corpo de um moto-
taxista que acabara de ser morto pela polícia.

Passava pouco das quatro da tarde quando Tony ligou para a


redação. Perseguido pela polícia, ele se escondera na sede da
Associação de Moradores da Cidade de Deus. Insistia em sair do
prédio para fotografar mais. Tetê Oliveira, que atendeu a ligação,
disse que a ordem era para se proteger. “Lembro que briguei
com ele, dizendo que não queria ter um correspondente como
manchete nos jornais do dia seguinte”, conta a jornalista.

O fotógrafo se lembra bem da cena: “Um policial matou um moto-


taxista, e a comunidade ficou revoltada. Eu estava indo para um
encontro na associação de moradores, quando me deparei com
aquilo e saí fotografando. Até que um policial resolveu me tomar a
máquina. A comunidade ‘fechou’,1 me protegeu e me tirou da mão
da polícia. Queria publicar, mas por uma questão de segurança,
não publiquei. E também me deram todo o tempo do mundo para
que eu só publicasse no momento em que eu achasse seguro”.

Ao chegar e saber do que estava acontecendo, a editora Kita


Pedroza repetiu a orientação de Tetê e decidiu não publicar as
fotos, por mais tentador que fosse. Provocar a ira da polícia não
era recomendável. As imagens só seriam vistas meses depois,
numa exposição do Viva Favela realizada no Centro Cultural

1 Fez um círculo de proteção ao redor do fotógrafo.


152 Notícias da Favela

da Light, no Rio de Janeiro. Parte desse material também foi


exibida na seção Galeria, do portal. Uma das fotos mais impac-
tantes mostra uma grávida observando um grupo de policiais
armados com fuzis a poucos metros dela. Depois do episódio,
Tony começou a fotografar menos a ação da polícia dentro da
favela: “Passei a tomar muito cuidado”, explica.

Situações de conflito não o impediam, no entanto, de correr atrás


de uma boa foto. Ao flagrar, por exemplo, uma briga de gangues
num domingo de sol na praia da Barra da Tijuca, Tony não pensou
duas vezes: saiu fotografando. Parecia ser um “arrastão” e ele
era o único fotógrafo por ali naquele momento. Feitas as fotos,
ligou para O Dia, identificou-se, ofereceu o material e fechou a
venda. No dia seguinte, estava na primeira página do jornal.

Correr atrás de outros trabalhos era comum para os fotógra-


fos. Com um salário fixo inferior a dois mínimos, mais a grana
pingada dos extras, eles precisavam fazer bicos para fechar as
contas. Desde que não atrapalhasse a produção para o portal,
estimulava-se que buscassem fontes de renda alternativas.

O veterano Rodrigues Moura também conseguia manter uma


carreira paralela sem prejudicar o trabalho no Viva Favela –
e isso tendo que cobrir todo o Complexo do Alemão, uma área
com pelo menos 65 mil habitantes.2 Conhecido na comunidade
por fotografar bailes, casamentos e festas de debutantes, Rodri-
gues tinha uma clientela conquistada ao longo de décadas – e
não podia, nem queria, abrir mão disso.

O fotógrafo chegou ao Complexo do Alemão em 1979 vindo


de Resplendor, pequena cidade de Minas Gerais. Encontrou a
rua Joaquim de Queiroz – hoje uma das principais da comu-
nidade – ainda como uma trilha cheia de mato em volta.
Ele conta: “Fixei moradia com uma venda nos olhos, sem saber
onde estava. Quando aquela venda caiu, comecei a ver. Mas já

2 De acordo com dados de 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística


(IBGE).
Luz sobre o beco 153

estava mergulhado num mundo de compromissos e não dava


mais para desistir. Resolvi ficar. Esta é a cidade que eu amo”.

No Rio, terminou o Ensino Fundamental e, quando já estava no


portal, o Médio. “Quando entrei para o Viva Favela e vi todo esse
povo estudado, jornalista, pensei: ‘Tenho de voltar a estudar. Eles
estão a mil anos luz na minha frente’. Então, não tive outro jeito”,
contou certa vez o fotógrafo. Rodrigues conquistou o diploma
em 2005, depois de enfrentar o desdém de muita gente no morro,
que não entendia por que ele queria voltar aos bancos escolares
beirando os cinqüenta anos. “Eles me perguntavam se isso iria
me trazer dinheiro”, diz o fotógrafo com uma ponta de mágoa.
Se não fosse a insistência “dos amigos do Viva Favela”, garante
ele, não teria chegado ao final do curso.

Nascido em novembro de 1954, Rodrigues entrou para o por-


tal ainda em 2001, como os demais fotógrafos do Viva Favela.
Começou a profissão em Minas – era agricultor, mas, nas horas
vagas, sempre tirava fotos. Em Resplendor, a única diversão era
cantar música sertaneja e ouvir rádio. Num dos programas, des-
cobriu que poderia ganhar uma pequena câmera descartável.
Escreveu para a Rádio Nacional de São Paulo e logo estava com
o aparelho na mão.

Ele fazia as fotos, enviava a câmera para São Paulo, eles revela-
vam e mandavam outra de volta. Assim, foi aprendendo sozinho.
Um dia, comprou sua própria máquina fotográfica e começou
a fazer slides para monóculos com o objetivo de vender nas
festas dos rodeios. Dessa forma, ampliou a experiência que lhe
renderia uma profissão no futuro.

“Cheguei ao Rio sem muita opção, até então semi-analfabeto, sem


profissão e passei por umas crises financeiras. Me apeguei ao que
tinha, que era a foto. O pessoal começou a gostar do meu trabalho,
aquilo foi me dando força, fui mudando do monóculo para o preto
e branco, e depois já foi a fotografia em cores. Cada vez as pessoas
foram pedindo mais, e, hoje em dia, eu não sei viver mais sem a
foto”, resume Rodrigues.
154 Notícias da Favela

Dedicado, extremamente profissional e parceiro, Rodrigues


tinha espírito de fotojornalista. Gostava de sugerir pautas e de
interferir na apuração da matéria. Achava tempo ainda para
montar, por conta própria, um dossiê com fotos que mostravam
o abandono da favela, a falta de saneamento básico, o lixo a céu
aberto, as valas negras. “Faço esse trabalho para que a socie-
dade possa ver o que acontece. Porque lá moram cidadãos que
amanhã serão eleitores, crianças que serão trabalhadores, o ali-
cerce deste país. O Complexo do Alemão é regido por políticos,
mas ninguém trabalha em prol da comunidade”, denuncia.

O correspondente da Baixada, Walter Mesquita, também queria


melhorar sua região. “Procuram a gente pensando que somos os
salvadores da comunidade. Passamos a ser uma espécie de por-
ta-vozes”. Sempre que podia, Walter ajudava. Às vezes, bastava
um telefonema: “As pessoas parecem ter medo da imprensa.
Acham que a gente vai prejudicar o estabelecimento”.

O fotógrafo, que também se mostrara extremamente profis-


sional, teve em 2004 uma chance de provar sua seriedade ao
ser convidado para cobrir as férias da editora Sandra Delgado.
Era um desafio gigantesco, mas ele se saiu bem. Walter fotogra-
fava ainda para uma revista elitista de um clube de Nova Iguaçu.
Feita para empresários emergentes da Baixada Fluminense, era
“uma grande coluna social”, como ele a definia.

Circular entre a elite e a miséria produzia experiências radi-


cais. Certa vez, por exemplo, depois de fotografar uma “festa
de esbanjamento” no clube, Walter foi direto fazer uma matéria
para o Viva Favela na comunidade Cosme e Damião, área muito
pobre da Zona Oeste, com a correspondente Anna Carolina.
Estavam nas vésperas do Natal, e a dupla encontrou uma mãe
sozinha com seus oito filhos e nada na geladeira. O marido
estava no hospital havia vários meses e ela não conseguia tra-
balho porque não tinha com quem deixar as crianças.

Quando a repórter perguntou qual era a expectativa em relação


aos presentes, a mulher mostrou o armário quase vazio: “Isso
Luz sobre o beco 155

aqui é o que a gente tem para comer hoje”. Havia meio saco de
farinha, um fiapo de macarrão, umas três colheres de arroz.
Walter teve de disfarçar as lágrimas.

Da Baixada para Londres

Com o tempo, os fotógrafos do portal passaram a ser reconheci-


dos na rua como pessoas que podiam contribuir para melhorar
as condições de vida locais. Sandra Delgado lembra, por exem-
plo, que, na Rocinha, costumavam se referir ao fotógrafo Nando
Dias como Nando, “o filho de Fulano de Tal”. Ao entrar para a
equipe do Viva Favela, ele ganhou uma nova identidade. Passou
a ser Nando Dias, “o fotógrafo”. “A profissão muda a forma como
as pessoas os vêem nas comunidades. Elas passam a ter mais
respeito”, percebe a editora.

Nando Dias transitava entre o morro e o asfalto com grande


freqüência. Adorava pegar onda na praia de São Conrado, aos
pés da favela. Às vezes, passava tanto tempo “no asfalto”, que
era difícil encontrá-lo disponível na hora de fazer uma foto na
favela. Contudo, costumava captar boas imagens. E era espe-
cialmente bom no que mais gostava de fazer – coberturas de
esporte e cultura.

Em geral, os fotógrafos do Viva Favela tinham grande autonomia


quando estavam em campo. E nem poderia ser diferente. Claro
que havia os problemas de sempre na hora da edição – muitas
vezes as identificações não estavam completas e coisas do
gênero. Mas, em geral, os resultados eram bastante positivos –
e, sobretudo, singulares.

“Eu não estou lá dizendo: ‘Fotografa isso, fotografa aquilo’. Eu dou


uma orientação básica. A foto é sempre fruto de uma visão muito
própria de cada um. Quem está mostrando uma perspectiva e um
olhar são eles, e esse olhar é completamente diferente do nosso”,
avalia Sandra.
156

CRIANÇAS NA CIDADE DE DEUS


Ensaio Fotográfico 2003
Crédito: Tony Barros
157
158 Notícias da Favela

O fato de morarem na favela e de estarem ali o tempo inteiro,


segundo a editora, interferia, inclusive, no próprio contato dos
fotógrafos com os entrevistados: “É uma relação muito delicada
porque muitas vezes estão entrevistando pessoas muito próxi-
mas e precisam preservar essa relação. Em compensação, tem
coisas que só eles conseguem fotografar”.

Baiana de Salvador, Sandra sucedeu Kita Pedroza em 2004.


Kita foi a primeira profissional de fotografia da ONG e começou
a fazer a cobertura sistemática dos eventos, documentando
e montando um acervo de imagens da instituição, cuja his-
tória tem marcos importantes no movimento social do Rio de
Janeiro. Como editora de fotografia do Viva Favela, foi ela quem
selecionou e treinou os correspondentes fotográficos, em 2001.
Ali, começou a desenvolver em cada um as noções básicas de
fotojornalismo, que seriam depois refinadas.

Sandra deu continuidade a esse processo ao assumir a editoria,


enquanto Kita foi para a coordenação de fotografia do Viva Rio e
iniciou o mestrado em sociologia e antropologia. A baiana tinha
a experiência necessária para a função e uma paciência quase
infinita para lidar com os atropelos cotidianos. Formada em jor-
nalismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), mudou-se
para o Rio em junho de 2001. Pouco depois, ao conhecer o Viva
Rio, quis ser voluntária. Entrou na ONG para ajudar a organizar o
acervo fotográfico. Um ano depois, Kita convidou-a para ser sua
assistente. Chegou na hora certa.

No portal, a carga de trabalho era intensa. Com apenas cinco


fotógrafos para cobrir pautas de dez correspondentes “de texto”
e de cinco repórteres da redação, o cobertor estava sempre
curto. Para piorar, havia demandas de todo o Viva Rio – cujos
projetos usavam os fotógrafos do Viva Favela pagando extras.
Era uma engrenagem que exigia imensa dedicação para funcio-
nar corretamente.

Em 2005, um ano depois de assumir o cargo, o ritmo não dimi-


nuíra. Sandra teve de se desdobrar para conciliar a edição diária
Luz sobre o beco 159

com a produção do portal e a curadoria de um punhado de expo-


sições. Entre elas, a coletiva “Inclusão Visual Foto Rio”, a mostra
“Por Dentro da Favela”, e a “EcoFavela”, com fotos do site EcoPop.
Sandra negociava com a gráfica, pesquisava preços, montava e
desmontava. Por sorte, contava com a ajuda da equipe.

O resultado sempre valia a pena. Uma dessas exposições, por


exemplo, realizada no SESC Madureira, deu visibilidade nacio-
nal ao projeto quando virou tema de um programa da Globo
News, o “Almanaque”. O sucesso do portal estimulava o grupo.
Porém, era preciso achar uma saída para tornar o projeto auto-
sustentável – e a venda de fotos parecia ser uma boa solução.

O potencial do Viva Favela para o negócio era inegável. E esse era


um nicho de mercado onde havia pouca concorrência, com raras
e honrosas exceções. Entre elas, a Agência Imagens do Povo
(www.imagensdopovo.org.br), projeto do Observatório de Fave-
las do Rio de Janeiro coordenado pelo fotógrafo João Roberto
Ripper, parceiro do Viva Favela.

No portal, a demanda pela compra de fotos estava crescendo.


Entre setembro e novembro de 2005, pelo menos duas editoras
(Ática e Positivo, ambas de São Paulo) nos procuraram interes-
sadas em textos e fotos para publicação em livros didáticos.
A Revista de História, no Rio de Janeiro, e a Anistia Internacional,
em Londres, fecharam negócio com o portal. À Anistia coube
uma bela imagem de Walter Mesquita, feita durante a cobertura
da Chacina da Baixada. O portal cedeu ainda fotografias para
uma série de ONGs e projetos sociais.

Era a prova de que o caminho traçado por Kita e Sandra estava


correto. As duas produziam bem juntas. E juntas construí-
ram, com os cinco correspondentes, o raro acervo do projeto.
Em grande parte, foi isso que chamou a atenção de Peter Lucas –
um professor norte-americano que costumava levar anualmente
seus alunos da Columbia University, onde ministrava direitos
humanos, para conhecer o trabalho desenvolvido nessa área por
ONGs cariocas – entre elas, o Viva Rio.
160 Notícias da Favela

Numa dessas visitas, Peter conheceu o Viva Favela e ficou


apaixonado pelo portal. O prêmio oferecido pelo Open Society
Institute, por exemplo, foi uma batalha pessoal de Peter, que
preparou a candidatura do projeto e a submeteu à comissão
julgadora. Também professor de direitos humanos e mídia na
New York University, ele está terminando de escrever o livro Viva
Favela: Photojournalism, Visual Inclusion and Human Rights
in Brazil (Viva Favela: fotojornalismo, inclusão visual e direitos
humanos no Brasil), que trará fotos da equipe e uma reflexão
sobre a experiência.

“O Viva Favela é um programa de vanguarda, onde as pessoas que


vivem nos chamados ‘espaços marginalizados’ dizem: ‘Temos o
direito de auto-representação, de contar as nossas histórias, de
produzir as nossas próprias narrativas’”, avalia.

Ainda segundo Peter, o portal sempre foi também “um pro-


jeto sobre inclusão visual”. E, sob a perspectiva dos direitos
humanos, “as imagens representaram sérias violações, como
as condições de moradia e a degradação ambiental nas comu-
nidades”. Mas elas também “expuseram a riqueza da vida
cotidiana dessas pessoas e isso remete à essência ética dos
direitos humanos – dignidade e integridade”, diz o professor.
Seu maior interesse estava justamente nessa noção de integri-
dade – “os aspectos físicos, emocionais, espirituais, estéticos
e intelectuais” desses moradores. “A mídia dominante nunca
representa esses aspectos”, avalia Peter.

O trabalho fotográfico também ajudou a seduzir as video-


makers Sophia Bustorff e Alison Fast – ambas da ONG Video
Volunteers, de Nova York. Sophia produziu um vídeo sobre o site
Favela Tem Memória. Alison, por sua vez, fez um belo documen-
tário sobre o Viva Favela acompanhando o dia-a-dia dos cinco
fotógrafos do portal. O filme, que deveria ter cinco minutos,
ficou com quarenta e cinco. Nele, a única mulher do time de
fotógrafos, Deise Lane, do Complexo da Maré, aparece clicando
um pescador em meio à baía de Guanabara.
Luz sobre o beco 161

Deise sempre andou com desenvoltura pela Maré. Não tinha


medo de fotografar, por exemplo, um prédio crivado de buracos
de balas de fuzil bem na “fronteira” entre duas áreas ocupadas
por facções inimigas do tráfico. Também conseguia flagrar belos
retratos, como o que fez de uma mãe abraçada à filha diante de
um casebre no Caranguejo, no alto do Pavão-Pavãozinho.

Porém, ela quase passou direto pela carreira. Queria ser arqui-
teta, mas falou mais forte a influência da mãe – uma diarista
que deu de presente à filha uma câmera quando esta tinha ape-
nas treze anos. “Sou a penúltima de cinco filhos e até hoje me
pergunto o motivo de ela ter me dado essa máquina”, admite.

O presente não poderia ter sido melhor. Deise se saiu uma ótima
fotógrafa, com sensibilidade para flagrar a notícia em compo-
sições nada óbvias. Quando entrou para o Viva Favela, pensava
que seria apenas um emprego, um jeito de ganhar dinheiro.
Estranhava um pouco o nome. “No começo, a gente dizia que
era ‘uma revista do Viva Rio’. Mas, com o tempo, todos foram
começando a gostar do projeto e ganhando uma visão nova de
cidadania”, diz a fotógrafa.

A experiência ampliou seus horizontes também em relação à sua


própria identidade: “Morando em comunidade, você sofre pre-
conceitos e também tem preconceito com outras favelas. Sabia
que mentiam sobre a Maré, mas não sabia que essa mentira se
arrastava para outras comunidades. Depois que entrei para o
Viva Favela, vi que a mentira é geral e que o crime organizado
não é tão grande como é passado pela TV. No máximo, alcança
1% ou 2% dos moradores, o resto é trabalhador ou estudante,
gente normal que tem a intenção de crescer”.
A bomba de
MV Bill

Antes mesmo de ser lançado, em agosto de 2002, o filme Cidade de


Deus começou a provocar polêmica na favela Cidade de Deus (CDD).
O clima entre os moradores era de desconfiança e medo diante da
fita, co-dirigida por Fernando Meirelles e Kátia Lund. A insatisfa-
ção foi registrada na matéria “Cidade de Deus renega Cidade de
Deus”, dos correspondentes Rosy Henriques e Tony Barros.

Na reportagem, publicada em outubro de 2001, moradores de


diferentes perfis afirmavam (na base do “não vi e não gostei”)
que o filme reforçaria os estereótipos negativos sobre a comu-
nidade – entre eles, um estudante de filosofia da PUC, um can-
tor de rap e um monitor de informática.

A favela também não se conformava com o fato de não ter sido


escolhida para cenário das filmagens, deslocadas para os con-
juntos habitacionais de Sepetiba e Cidade Alta. O que, segundo
Kátia Lund, também ouvida na matéria, fora motivado pela dificul-
dade em se reproduzir o ambiente da época – a história se passa
entre 1966 e 1979. Apenas a área do Jardim do Amanhã, com seus
barracos precários, entraria em cena. Kátia admitia ainda que os
imprevisíveis confrontos entre o tráfico e a polícia também teriam
reforçado a decisão. Para compensar, dizia, “os cinco atores prin-
cipais foram escolhidos entre os moradores da Cidade de Deus”.

Uma série de novas reportagens se seguiriam no Viva Favela,


revelando o impacto do filme na comunidade. O portal acom-
panhou a reação dos que assistiam à fita pela primeira vez,

162
A bomba de MV Bill 163

mostrou que ela virou tema de debate nas escolas públicas e


descobriu moradores que conheceram pessoalmente os per-
sonagens do livro/filme. Nada, porém, teve tanta repercussão
quanto o artigo do rapper MV Bill.

Colunista do Viva Favela e um dos fundadores da Central Única


de Favelas (Cufa), Bill fora convencido por Rubem César a soltar
sua “bomba” no portal, esquentando ainda mais aquele verão de
2003. Rubem César argumentara com Bill e seu produtor, Celso
Athayde, que o rapper conseguiria, com isso, a repercussão que
queria. O que acabou provando ser verdade.

Publicada em janeiro, sob o título “A bomba vai explodir?”, a


coluna trazia um rapper claramente insatisfeito com o filme.
Nela, Bill abandonara a postura discreta, e saíra atirando. Fizera
ásperas críticas às produtoras O2 e VideoFilmes, dissera que o
filme só ampliou a fama de lugar violento da Cidade de Deus e
pedira “mais respeito” e “menos humilhação”: “O mundo inteiro
vai saber que esse filme não trouxe nada de bom para a favela,
nem benefício social, nem moral, nenhum benefício humano.
O mundo vai saber que eles exploraram a imagem das crianças
daqui da CDD. O que vemos é que o tamanho do estigma que
elas vão ter de carregar pela vida só aumentou, só cresceu com
esse filme. Estereotiparam nossa gente e não deram nada em
troca para essas pessoas. Pior, estereotiparam como ficção e
venderam como verdade”.

Logo após ir ao ar, o texto começou a circular em alta veloci-


dade pela Internet e abarrotou de mensagens a caixa de e-mails
do portal. A fala de Bill era o que estava faltando à discussão
em torno do filme. Desde o lançamento, ele vinha sendo procu-
rado pela imprensa para se manifestar. Criou tanta polêmica,
que o portal teve de abrir espaço para o debate com a série
“Os vários ângulos da Cidade de Deus”.

Além das reportagens especiais, a série trazia a intensa corres-


pondência enviada ao portal por alguns dos personagens direta
ou indiretamente ligados ao filme, como a antropóloga Alba
164 Notícias da Favela

Zaluar, os cineastas Fernando Meirelles e Kátia Lund, o escritor


Paulo Lins (autor do livro homônimo que inspirou a fita) e Mau-
ricio Andrade Ramos, da VideoFilmes.

O aumento do número de acessos foi imediato. A coluna de


Bill atraiu, inclusive, leitores da própria favela. Como Lenira
Machado, que mandou a seguinte carta: “Adorei a coluna do MV
Bill. Há muito uma amiga tem pedido para eu entrar neste site
e ler este jornal (...). Tudo ali exposto é uma realidade da nossa
comunidade e ele fala na língua do povo, bem fácil de se enten-
der. (...) É interessante como um trabalho de um artista fez a
comunidade ter orgulho de ser CDD. O filme “Cidade de Deus”
realmente está incomodando, mas ninguém tem a sua coragem
de se expor desta maneira. Serei mais uma nessa sua jornada,
pois também nasci na Cidade de Deus e crio os meus filhos
nesta comunidade e quero o melhor para eles”.

Tiroteio verbal

O longa, que alcançaria mais de três milhões de espectado-


res no Brasil e no exterior, era o assunto do momento naquele
começo de 2003. Era natural que os leitores quisessem saber
detalhes dos embates que o filme provocara. Nas cartas envia-
das ao Viva Favela, Alba Zaluar, por exemplo, não poupou críti-
cas a Fernando Meirelles e Paulo Lins. Segundo a antropóloga,
o filme omitira créditos devidos a ela. Para Alba, por ser base-
ada em fatos reais, a história seria conseqüentemente funda-
mentada em pesquisa que coordenara (e que também teria sido
fonte do livro), da qual Lins participara como pesquisador. Alba
sugeria, além disso, que os personagens reais que inspiraram
o filme deveriam receber indenização.

Também em carta enviada ao portal, em fevereiro, Meirelles


dissera que teria repetido na tela, sem problemas, os créditos
do livro homônimo de Lins (onde há um agradecimento a Alba),
se soubesse que havia essa expectativa: “CDD não é um docu-
A bomba de MV Bill 165

mentário ou um trabalho com rigor científico, mas uma obra


de ficção baseada no romance cujos direitos de adaptação
compramos do Paulo. (...) Teria sido tranqüilo acrescentar à
nossa lista seu crédito pela pesquisa”. Ele afirmava ainda que
a produção de CDD “fez questão de remunerar as famílias das
pessoas nas quais se baseiam os personagens” e que Alba
estava enganada quanto a isso.

Em outra carta, Alba acusaria o filme de “desrespeitar a ética


antropológica” ao “violar o acordo tácito, feito de valores e pro-
tocolos, que sempre regeram as relações entre cineastas brasi-
leiros, antropólogos e os personagens históricos dos quais seus
filmes falaram”.

Para a antropóloga, não se pode dizer que o direito dos pais de


Manoel Galinha – “analfabetos, velhos, humildes, o pai com perda
de massa encefálica por um atropelamento, a mãe precocemente
envelhecida pela perda dos três filhos e do pai na guerra” – foram
respeitados quando seu filho “é apontado como assaltante de
banco e assassino frio”, versão que ela garantia jamais ter ouvido.
Ela dizia também que Paulo Lins ignorara sua exigência de não
citar o nome da comunidade no livro Cidade de Deus.

O escritor custou a romper o silêncio. Mas acabou entrando na


polêmica. Em carta publicada dia 7 de fevereiro de 2003, Lins –
que estava recolhido desde o lançamento do filme – finalmente
se manifestou. Ex-morador da Cidade de Deus, ele reconhecia a
importância da pesquisa da antropóloga, mas garantia que rea-
lizara um exaustivo trabalho individual para produzir o romance
– e não uma pesquisa científica.

“É claro que nem o filme nem o romance seguem fielmente a his-


tória da criminalidade em Cidade de Deus, porque senão seria
documentário ou história (ciência), respectivamente. Essas duas
produções se baseiam numa determinada realidade social para
trazer ‘a nossa desgraça à luz’, fazer política, mudar o mundo...”,
dizia o escritor. Numa segunda carta, publicada dia 12 de feve-
166 Notícias da Favela

reiro, Lins falava de seu carinho pela antropóloga – e lembrava


que seu livro trazia os devidos créditos e agradecimentos a ela.

Entre Lins e Alba havia discordância também em relação à figura


de Ailton Batata – único sobrevivente da guerra que tomou conta
da Cidade de Deus nas décadas de 1970 e 1980. Batata saiu da
prisão em liberdade condicional, no ano de 2004, e passou a
trabalhar para uma ONG, num projeto de reinserção social para
egressos do sistema penal. Sua história está contada na matéria
“Dívida zerada”, publicada em fevereiro de 2005 pelo Viva Favela.

Alba sempre achou que Batata deveria receber indenização por


ter inspirado o personagem Sandro Cenoura. Lins garantia que
Sandro fora construído a partir da fusão de histórias recolhidas
na Cidade de Deus – “uma mistura de ações que são possíveis
no mundo da criminalidade”. O fato de o filme mostrar crianças
envolvidas com o tráfico de drogas foi outro ponto de atrito.
Alba contestava a veracidade histórica das cenas. Paulo a con-
firmava: “Dizer que na década de 1980 não existiam “aviões”,
olheiros que anunciavam a chegada da polícia (...), que mata-
vam qualquer um para pegar consideração com o líder do bando
é afirmar que o Brasil (...) cuida bem de suas crianças (...)”,
escreveu Paulo, dando o assunto por encerrado e prometendo
não dar mais entrevistas sobre a questão.

MV Bill conseguiria seu objetivo inicial: mobilizar a sociedade


e o poder público para promover melhorias na Cidade de Deus.
Depois de algumas reuniões com políticos e autoridades de
diversas áreas na favela, Bill anunciou no portal os novos pro-
jetos previstos para a comunidade. Entre eles, uma fábrica de
material esportivo e um núcleo do Espaço Criança Esperança.
O rapper também celebrou parcerias com instituições e empre-
sas, como a produtora VideoFilmes, que prometeu publicamente
apoio às atividades que viessem a ser desenvolvidas na área.

Bom para a Cidade de Deus e bom para o Viva Favela, que, com a
polêmica, alcançara uma visibilidade inédita. A semente estava
lançada. Bill seguiria na batalha, junto com o produtor Celso
A bomba de MV Bill 167

Athayde, usando como carro-chefe a Cufa, pólo de produção


cultural que promove atividades nas áreas de educação, lazer,
esportes, cultura e cidadania.

Palavra de colunista

Além de MV Bill, o time de colunistas que entrou no primeiro


tempo do portal era composto por craques como José Junior,
Def Yuri, Celso Athayde e Ivo Meirelles. Com liberdade total
de forma e conteúdo, eles traziam ar fresco e discussões que
ultrapassavam o ponto de vista jornalístico. A única dificuldade
era fazer o time entrar em campo. Ocupadíssimos, escreviam
quando lhes dava na telha. Com exceção de Def Yuri. Rapper
de palavra afiada, entre abril de 2001 e dezembro de 2005, ele
escreveu nada menos do que 165 colunas.

Ligado na vasta rede do hip-hop – movimento que usa a web


como um canal precioso de informação e difusão –, Yuri aju-
dava a multiplicar o nome do Viva Favela. Escrevia bem e tinha
o hábito de fomentar debates acalorados. Às vésperas do Car-
naval de 2003, por exemplo, quando o Rio de Janeiro sofria com
uma série de ataques do tráfico, o Exército e a Secretaria de
Segurança Pública do Estado coordenaram uma operação con-
junta para garantir a ordem durante a festa.

Tudo acabou bem. Mas, enquanto muitos creditavam a paz à efi-


cácia da operação, Yuri lembrava que certamente havia outros
motivos para tanta tranqüilidade, na coluna “Jogo de cena”,
de 6 de março: “Segundo a própria Justiça fluminense, o jogo
do bicho e o tráfico de drogas e armas estão intrinsecamente
ligados. Sabendo quem faz o gerenciamento das escolas de
samba e do Carnaval carioca como um todo, chegamos à conclu-
são de que a ‘calmaria’ seria o resultado mais óbvio”. E concluía:
“A polícia finge que policia, a bandidagem finge que se intimida,
e a população (alguns se iludem!) finge que acredita”.
168 Notícias da Favela

O colunista também falava muito de hip-hop (sempre bem) e


da polícia (quase sempre mal). Em diversos artigos, criticou a
atuação da PM no Rio, relatando casos de corrupção e a tru-
culência das blitze, que conhecia de perto. No rap “A desculpa
(foda-se a polícia)”, que publicou na coluna, dizia: “Escrevem a
lei por linhas tortas / Colecionam vários homicídios nas costas /
São os reis do Rio, um câncer, um mal / Polícia bandido, bandido
polícia, será tudo igual?”

Uma das melhores características da seção era, sem dúvida, o


espaço que ela abria para novidades que não estavam nos meios
tradicionais. José Junior, por exemplo, coordenador-executivo
do Grupo Cultural AfroReggae (GCAR),1 era mestre em cavar
histórias de iniciativas culturais coletadas em suas viagens pelo
Brasil e pelo mundo. Como o Guia Cultural de Vilas e Favelas de
Belo Horizonte, que ele descobriu em 2004. A pesquisa, coor-
denada por Clarice de Assis Libânio, revelava “que há mais de
setecentos grupos culturais envolvendo diretamente quase sete
mil pessoas nas 226 vilas, favelas e aglomerados da cidade”.

O colunista também falou da realidade de comunidades de vários


cantos do Brasil e de projetos como o Bagunçasso, que descobriu
em suas andanças por Salvador. “Os caras criaram um monte de
bandas de latas através da reciclagem e de muita criatividade
rítmica e performática (como guitarra e baixo feitos com latas
de goiabada e afins)”, contava Junior na coluna. Ele conheceu
o grupo quando visitava a favela de Alagados, em Salvador.
Sua descrição da comunidade baiana transporta o leitor até lá:
“Durante a visita, era impactante ver a miséria e a quantidade de
palafitas, como um mar infinito. Aquela paisagem escura das casas
de madeira dentro da água destoava bastante daquela Bahia que
nós víamos nos ‘cartões-postais, nas novelas de TV’. O mais impres-

1 Criado em 1993, no Rio de Janeiro, o Grupo Cultural AfroReggae visa oferecer


“uma formação cultural e artística para jovens moradores de favelas para que
eles possam construir sua cidadania e escapar do narcotráfico e do subemprego”.
(Fonte: www.afroreggae.org.br)
A bomba de MV Bill 169

sionante era ver a forma como aquelas pessoas viviam. Algumas em


palafitas de até dois andares.

(...) Seis anos depois, voltamos na mesma Alagados e no mesmo


Bagunçasso, ambos completamente diferentes, mais moder-
nos e evoluídos. Aquele cenário das palafitas já não existia mais.
A maioria das casas agora era de alvenaria e houve um grande ater-
ramento ilegal (...). Tudo parecia estar melhor. (...) vimos a ampliação
do comércio, mas também um cheiro diferente daquele da falta de
saneamento. O ar tava mais pesado. (...) Durante nossa caminhada,
ficamos sabendo das brigas entre os traficantes locais.

(...) o tráfico em Alagados não é dominado por facções, mas por


gangues de ruas e de regiões da mesma comunidade.(...) Durante
os conflitos, eles chegam a utilizar barcos a remo e trocam tiros de
12 (escopeta) e de pistolas. O forte por lá é a venda de maconha.
Os traficantes locais se inspiram nos colegas do Rio, através do que
ficam sabendo pelos telejornais.

(...) Joselito sim é um exemplo que teria que aparecer em todos os te-
lejornais. (...) Saiu das palafitas pra intercambiar com outros proje-
tos sociais do Brasil e do exterior. (...) todos os anos, eles promovem
um festival de bandas de lata que chegam de tudo que é lugar”.

Já em “Voduns e batuques”, publicada em dezembro de 2003,


Junior revelava descobertas feitas em São Luís, no Maranhão:

“Cheguei no auge das festas juninas (...). Andar por aquelas ruas
ao som de um tambor de criola, matracas, zabumbas e dos pan-
deirões, vendo aquela paisagem que mistura fachadas decoradas
de azulejos centenários, é de um prazer inenarrável (...)”. Ele ficou
especialmente encantado com o Cacuriá, uma ciranda onde (...)
“as músicas tratam de temas prosaicos, quase sempre regionais,
como a seca, os animais nordestinos e a vegetação do sertão”.

Ainda em São Luís, Junior teve “uma experiência muito interes-


sante” na favela Anjo da Guarda:
“Um dos traficantes era conhecido como seu Cláudio – visto como
um protetor do local. Quando tem dificuldade financeira, a própria
comunidade o ajuda com alimentos pra ele e para os seus filhos.
170 Notícias da Favela

No outro ponto (pra não dizer ‘boca’), pediram-nos um real. Imagina


os traficantes do Rio pedindo: ‘Aí, irmão, me arruma um dinheiro!!!’
Aparentemente, nenhuma daquelas pessoas estava armada”.

Celso Athayde, produtor cultural e fundador da Cufa, também


usava o espaço para dar visibilidade a histórias pouco conhe-
cidas pelo grande público. Celso transitava por assuntos como
religião, mídia, narcotráfico e política.

Organizador do Hutúz, festival de hip-hop que começou modes-


tamente em 2000 e hoje tem proporções nacionais, ele escreveu
vários artigos sobre o tema. O racismo no Brasil também esteve
em foco. Quando os jornais noticiaram, em abril de 2001, a cria-
ção de um partido negro – o PPPomar –, Celso dedicou uma
coluna ao assunto, criticando a cobertura:
“Esta semana, vários jornais se escandalizaram com a notícia
de que um partido político negro estaria se formando. (...) Por
que os mesmos veículos nunca atacaram os movimentos ne-
gros que, historicamente, recebem subvenções dos governos do
Estado e do Município? Não seria uma manifestação legítima?
(...) Enquanto não tivermos o poder ou parte dele, não decidiremos,
ficando para sempre restritos à condição de espectador ou dignos
de compaixão”.

No final de 2001, Celso voltaria a bater na imprensa – dessa


vez, o alvo seria O Globo. O produtor achou preconceituosa
a cobertura da festa de Natal na Cidade de Deus. O evento
contou com um espetáculo do Conexões Urbanas,2 que levou
à favela convidados como Caetano Veloso, Fernanda Abreu e
Gabriel O Pensador. Celso não perdoou o jornal por ter dado
mais destaque às armas dos traficantes do que ao peso de uma
festa rara em áreas pobres como a Cidade de Deus:

2 Circuito de shows em favelas cariocas realizado pelo Grupo Cultural AfroReggae


e pela Assessoria Especial de Eventos do município do Rio.
A bomba de MV Bill 171

“Hoje ao acordar, uma vizinha que trabalha como empregada na casa


de um bacana nos avisou que saiu no Globo que na festa tinha uns
bandidos e que alguns deles escondiam suas armas com dificulda-
de, e também que tinha gente fumando maconha. (...) Até aí normal.
Sabemos todos que no jornal O Globo não existe um usuário sequer
de maconha. (...) Por isso podemos entender o grande espanto. O que
não conseguimos entender é que a questão central não é se a favela
tem bandido ou não. Eles estão lá todos os dias e em todas elas. (...)
O que não podemos aceitar é que um evento dessa importância e
dessa grandeza não tenha seus méritos reconhecidos (...)”.

Sangue novo

Numa segunda leva, entrariam ainda o músico Emerson Facão


e o escritor Julio Ludemir. Morador da Nova Holanda, uma das
favelas do Complexo da Maré, Facão chegou ao Viva Favela por
indicação da jornalista Mônica Cavalcanti (então assessora de
imprensa do Viva Rio), soprada pelo compositor Marcelo Yuka,
ex-baterista do Rappa.

O músico não tinha vergonha de revelar onde seus primeiros


LPs foram garimpados: “Não tinha dinheiro para comprar discos
e visitava o ‘lixão’ (na Maré) de vez em quando. Lá encontrei ver-
dadeiras raridades que nunca teria oportunidade de conhecer”.
Líder da banda Ciência Rimática, indicada ao prêmio Hutúz na
categoria de melhor CD demo, Facão estreou em 29 de maio de
2003, e gostava de falar de arte, política, violência e filosofia.

Já o escritor e jornalista Julio Ludemir foi idéia minha. Levado para


fortalecer a análise da violência no Rio, ele gostava especialmente
de investigar os bastidores da guerra do narcotráfico. Um de seus
assuntos favoritos era a origem – e a atuação – das facções que
dividem o mercado de drogas na cidade – Comando Vermelho
(CV), Amigo dos Amigos (ADA) e Terceiro Comando (TC). Julio devo-
rava tudo o que caía em suas mãos sobre o tema – e contava com
fontes tanto nas prisões quanto na polícia e nas favelas.
172 Notícias da Favela

Em suas colunas, discutia, por exemplo, se a origem do Comando


Vermelho estava mesmo ligada aos presos políticos que teriam
emprestado um discurso ideológico aos detentos comuns
durante a ditadura. Em abril de 2004, Julio escreveria na coluna
“Na pista das memórias do cárcere”:
“Sempre me pareceu fake a tese defendida pelo jornalista Carlos
Amorim em seu A história secreta do Comando Vermelho (...). Uma sé-
rie de fatores me fazia desconfiar do trabalho de conscientização
feito pelos presos políticos na Ilha Grande, do qual teria resultado
a mítica Falange Vermelha. (...) Embora sem provas, a tese de Amo-
rim se tornou um lugar comum de que se valeram todas as pessoas
que estudam o crime organizado no Rio de Janeiro. (...) O sociólogo
Michel Misse (...) foi a única pessoa que vi refutar a tese de que a
convivência entre os presos enquadrados pela Lei de Segurança
Nacional teria resultado no desejo de organização dos antigos as-
saltantes de banco. Para Misse, o tráfico teria herdado a estrutura
organizacional do jogo do bicho, cujos banqueiros encarnaram até
a década de 1980 a imagem de periculosidade hoje associada às
facções criminosas (...)”.

O escritor foi colunista do Viva Favela entre 2002 e março de


2004, quando lançou Sorria, você está na Rocinha. Na linha do
jornalismo ficcional, o livro narra histórias sobre a atuação
de ONGs e lideranças comunitárias na favela. Nele, tanto uns
quanto outros são acusados de tirar proveito de uma espécie
de indústria da miséria, captando recursos fora da comunidade
para proveito próprio.

A direção do Viva Rio – que sempre manteve projetos de peso


na Rocinha – viu na obra de Julio um ataque generalizado ao
Terceiro Setor e específico à própria instituição, a parceiros
locais e aos líderes comunitários. E excluiu o escritor do quadro
de colunistas. Julio não voltaria a escrever para o portal – mas
continuaria a produzir sobre o tema. Seu livro seguinte foi Lem-
brancinha do Adeus, que relata uma conversa fictícia entre um
velho criminoso e um menino, tendo como cenário o morro do
Adeus, no Rio de Janeiro.
A bomba de MV Bill 173

Àquela altura do campeonato, fazia um bom tempo que MV Bill


não escrevia novas colunas. Depois da imensa repercussão de
“A bomba vai explodir” e de seus efeitos sobre a Cidade de Deus,
só de tempos em tempos o rapper publicava alguma coisa.
Um dos motivos que o afastaram foi a produção do documen-
tário Falcão - meninos do tráfico – veiculado em março de 2006
pelo “Fantástico”. Porém, mesmo sem alimentar a coluna, Bill
continuaria a receber cartas. Como esta, de Diogo Henrique
Santos Souza, enviada em agosto de 2005, dois anos depois do
último artigo do rapper ser publicado:
“To aqui no recife, no meu trampo, taligado, tenho 17 anos e de vez
enquando entro no vivafavela e leio sua coluna e coisas sobre hi-
phop. nessa busca descobri muitas coisas que o sistema faz com
o nosso povo (...) vejo que estamos rodiados de sujeira muito da
grande (...) eu percebir um bagulho muito loko de dois programas
de tv que mostra os crimes que acontecem aqui, eu assistia todo
dia mas acabei percebendo que só mostram oque ah de ruim mas
ainda ganham com o ibope da propria comunidade (...) AE MV Bill
TO MUITO FELIZ DE VOCÊ EXISTIR. VOCÊ É UM LIDER NATO QUE FOI
MANDADO POR DEUS PRA DEFENDER O QUE É NOSSO”.
174

COTIDIANO NA CIDADE DE DEUS


Ensaio Fotográfico 2002
Crédito: Tony Barros
175
Do outro lado
da tela

Um mergulho na correspondência do Viva Favela trazia boas pis-


tas sobre os leitores do portal. Eles possuíam diversas facetas:
podíamos encontrar um estudante ou um cientista social, uma
empregada doméstica ou um rapper, um jornalista ou uma mani-
cure, um morador do asfalto ou um líder comunitário. Como Marcio
Alexandre, de Jardim Vila Nova, Zona Oeste do Rio, que escreveu:
“Venho pedir-lhes socorro, tento apoio a quase 1 ano para minha
comunidade e não obtive nenhuma resposta de nenhum orgão pú-
blico. Presido uma associação de moradores e sinto-me só nesta
empreitada árdua. Esta é minha ultima tentativa. Preciso de proje-
tos de ensino, lazer e esporte, tenho muitas crianças e adolescentes
na comunidade que estão sendo acolhidos pelo tráfico por falta
de opções, seus pais tem que trabalhar e não podem tomar conta
de seus filhos”.

O leitor do Viva Favela era também o brasileiro morando no exte-


rior com saudades da pátria – como Leonardo, que descobriu
o portal quando passava uma temporada nos Estados Unidos.
Ex-morador da favela do Jacarezinho, ele dizia em seu e-mail:
“pow, super legal e bem feito o trabalho de voces, deu pra matar
um poquinho da saudade, pois estou aqui na Florida a 6 meses, vim
pra jogar em um time de futebol em Miami, essa e a grande chance
da minha vida, pois sou da comunidade do Jacarezinho, onde mora
minha familia e meu filinho que vai completar um aninho em julho.
Devo voltar pro aniversario dele, e se conseguir fechar um contrato

176
Do outro lado da tela 177

com um time de Nova Iorque, vai estar incluido trazer minha familia
pra ka junto comigo... Pow, e o sonho da minha vida”.

Responsável pela seção de Cartas, Tetê Oliveira respondeu ao


rapaz como a um velho amigo. Ao todo, os dois trocaram dez
e-mails. Neles, o garoto deixou claro que não era fácil ficar longe
do Brasil. Leonardo dizia que a saudade e a solidão eram seus
“inimigos íntimos”, porque na favela do Jacaré ele conhecia “um
montão de gente”, e ali nem a língua sabia falar direito. “Mas
eu estou determinado e vou conseguir..”., concluía ele numa de
suas muitas mensagens.

A jornalista já se perguntava que caminhos seguira o rapaz –


cuja história um dia poderia render uma pauta – quando rece-
beu um e-mail de uma prima de Leonardo, numa quinta-feira de
agosto de 2004. A mensagem dizia que ele fora assassinado no
Jacarezinho. Sincero e contundente, o texto radiografa um ato
brutal da polícia na favela:
“Leonardo desembarcou do estados unidos e nao quis mas voltar,
infelizmente ele foi assasinado em um tiroteio aqui no jacarezinho,
eu encontrei em sua carteira o seu email (...) o que deixou todos
com muita raiva e que os policiais jogaram uma pistola na mao do
leonardo e falaram que ele era traficante arrastaram o corpo dele
ate a viatura e jogaram com a maior crueldade, nisso foi todo mundo
atras da viatura falando que ele nao era bandido que tinha chegado
do estados unidos a pouco tempo e que ele tinha que ir pro hospital
e nao pro i.m.l porque ele ainda nao tinha morrido, nossa eles foram
muitos ruins e sangue frio, nisso agente fechou a suburbana e foi
aquele alvoroso que sempre acontece aqui (...). vou insistir pra mae
dele te ligar, vou falar que voce e reporter e que pode ajudar ela por-
que o leonardo morreu como traficante, numa covardia dos policias,
porque ele estava no chao um policial revistou ele, nao achou nada,
botou uma luva e esfregou uma pistola na mao dele, os outros ar-
rastaram ele com muita ignorancia e o jogaram como se fosse uma
pilha de batata dentro da viatura, essa cena na frente de todos nos,
e depois falaram ‘agora e menos um foi pro saco direto pro i.m.l’ foi
quando o tio dele chegou e comecou a confusao , o tio dele foi preso
tambem por desacato a autoridade. isso pra gente nao e nenhuma
178 Notícias da Favela

novidade, mas nunca me aconteceu com um ente tao querido e cor-


reto nem maconha o leonardo fumava, todos os amigos dele fumam
menos ele, ele comecou a fazer uma obra na casa da mae dele, mas
pra ela e o fim da vida, o unico filho dela que nao tinha nada a ver
com o trafico morreu como traficante”.

Lágrimas nos olhos, Tetê lia e relia a mensagem, sem querer


acreditar. Leonardo tinha 21 anos. A tristeza serviu de inspi-
ração para um belo texto publicado na seção Espaço Aberto.
Em um de seus trechos, a jornalista diz:
“Ele não pôde ficar num país distante e com um idioma incompre-
ensível aos seus ouvidos. Longe dos amigos, da família e das pes-
soas que amava. Dividido entre a dura realidade de faxineiro num
hospital e o sonho de ser contratado por um time de Nova York (...),
Leonardo (...) decidiu investir suas economias na reforma da casa da
mãe e ficar junto àqueles que amava – principalmente o filho. Mas
não teve chance. (...) Passeava pelos becos da favela com amigos de
infância, ligados ao tráfico e que se confrontaram com os policiais.
Foi atingido com um tiro no peito”.

Pelo tom do artigo, via-se que alguma coisa mudara desde


que Tetê entrara para o Viva Favela. Formada pela UFF, ela já pas-
sara pelos jornais O Globo e O Dia (como colaboradora em Lon-
dres), pela revista Manchete e pelo extinto No., onde foi redatora
de 2000 a 2002. Chegou ao portal sem jamais ter pisado numa
ONG, e muito menos numa favela. No final, estava apaixonada
pelo trabalho.
“Aprendi a enxergar de forma diferente as notícias sobre as ‘mor-
tes de traficantes’ nas favelas cariocas. Na versão das autoridades
públicas, quase todos os mortos em comunidades de baixa renda
durante incursão policial são criminosos – principalmente os jovens
e negros. Muitas vezes, são anônimos também, porque poucos se
dão ao trabalho de identificá-los. E aí, esses assassinatos são justi-
ficados – para o bem da sociedade – e engrossam as estatísticas da
(in) segurança pública”, diz a jornalista.

No portal, a infância e a juventude eram especialmente retrata-


das pela história em quadrinhos cujo protagonista era Cambito
Do outro lado da tela 179

– um menino como tantos outros que vivem nos morros cariocas.


Com seu cachorro, sua paixão por futebol e cercado por seus
amigos – Cabeção, que achava que ganharia a vida estudando;
Vaporzinho, amigo de infância que virara aprendiz de traficante;
Teca, ex-namorada que sonhava em ser uma modelo famosa; e
Pipa, uma das muitas namoradas de Vaporzinho –, Cambito cati-
vou o público infanto-juvenil do portal.

A tirinha foi uma idéia de Eugênio Costa. Coordenador de Tecno-


logia, ele imaginou que faltava ao portal uma história ambien-
tada na favela, ao observar crianças da Rocinha na Estação
Futuro. “Os garotinhos de sete, oito anos, chegavam lá com a
nota de um real amassadinha e falavam: ‘Tio, quero usar a Inter-
net’. A primeira coisa que faziam era conectar o site do canal de
TV Cartoon Network. Eu achava uma cultura tão importada... e
comecei a querer entender por que isso acontecia. Descobri que
eles têm TV a cabo na Rocinha, e o que eles vêem lá é Cartoon
Network. E o canal fala o tempo todo ‘acesse o nosso site’. Então,
quando eles tiveram acesso à Internet, foram lá direto”, conta
Eugênio, que convidou o ilustrador Otávio Rios para criar as tiri-
nhas da história. Era um trabalho voluntário, mas Otávio aceitou
na hora. Ele só seria contratado pelo Viva Rio para a função um
ano depois – mas jamais se arrependeria da empreitada.

O cartunista não se limitou a criar as tirinhas. Mesmo sem equipe,


conseguiu desenvolver uma série de produtos para além da his-
tória em quadrinhos. Logo o Cambito ganharia seu próprio site,
a Cambitolândia, que apresentava jogos pedagógicos desenvol-
vidos com paixão pelo próprio Otávio. Parte desse conteúdo foi
adaptada do site Mingau Digital (www.mingaudigital.com.br),
voltado para crianças de maior poder econômico e parceiro do
Viva Favela.

Com o tempo, Cambito ganhou um link no site Voices of Youth


(Vozes da Juventude), da Unicef; foi parar em vinhetas da Globo
e participou do Dia Mundial contra o Tabaco, promovido pela
Organização Mundial da Saúde (OMS). O Instituto Nacional
180 Notícias da Favela

do Câncer (Inca) também o usou na luta contra o fumo junto à


população de baixa renda.

O personagem não agradava a todos, porém. Alguns achavam as


historinhas excessivamente moralistas. Eugênio saía na defesa:
“O Cambito não é politicamente correto, ele é real. A gente em
nenhum momento tenta mascarar a realidade da favela. Os
garotos convivem com isso! E talvez seja essa a fórmula do
sucesso do Cambito: ser real. Quando a gente tenta mandar as
mensagens nas tirinhas, nas histórias, elas são bem sublimina-
res, não são acintosas”.

Cambito e sua turma recebiam montes de cartinhas.


Eram coisas do tipo:
“O site é inteligente, criativo e bem brasileiro. ‘Realidade de favela’
quase ninguém quer ver, ela é em preto e branco... Mas vocês colo-
riram a favela e enobreceram seus moradores... Um abraço, Elaine
Cristina”.

Ou ainda:
“Italiana cariocada e moradora do morro, agora de férias na Itália,
morro de saudade, mas também de alegria para meu povo adotivo.
Amo vocês!”

E mais:
“Cambito não da ideia para o vapozinho. ele pode tar com rasao. so
que você tem os amigos e é isto que enporta agora. Vapozinho agora
você passou dos limites, se você não pedir desculpa para o cambito
eu nunca mais vou me preulcupa com você? Mônica”.

As mensagens eram uma prova irrefutável de que o Viva Favela


estava realmente chegando às favelas. Confirmavam o que já
fora levantado em duas pesquisas realizadas pelo Iser. A pri-
meira delas, coordenada pelo cientista social Bernardo Sorj,
realizada in loco e tabulada em dezembro de 2003, mostrava
que cerca de cem mil pessoas, ou seja, 10% dos moradores de
favelas do Rio, tinham acesso à Internet. E que em torno de 12%
Do outro lado da tela 181

RENATO BATISTA, LOCUTOR DA ROCINHA


Matéria: A voz da Rocinha
Viva Favela 27/02/2004
Crédito: Nando Dias
182 Notícias da Favela

deles conheciam e acessavam com freqüência o Viva Favela.


“Não deu traço”, animou-se Rubem César.

A segunda pesquisa, dessa vez on-line, seria feita no início de


2005. O objetivo era traçar o perfil do leitor do portal. Em torno
da metade dos leitores que responderam – 45,5% – eram mora-
dores de favela. Em sua maioria, jovens e com bom nível escolar.
Quase todos já estavam cursando, ou concluíram, o Ensino Médio.

“Esse dado revela que o tema desperta interesse na população


que não necessariamente mora em favelas. E que a linguagem
tem a característica de não ser estritamente direcionada ao
público de favela, isto é, leva em consideração outros tipos de
leitores, o que é um ponto extremamente satisfatório para o
portal”, avaliou Luís Eduardo Guedes, coordenador da área de
monitoramento e avaliação do Iser.

Ainda segundo a pesquisa, 17,1% dos leitores queriam encontrar


no portal material para pesquisa acadêmica. Já a qualidade dos
textos era um consenso entre o leitor de favela e o do asfalto
– 75% deles achavam que eram “bem escritos e fáceis de ler”.
No geral, o Viva Favela ganhou média de 8,5 (sobre 10). A repor-
tagem do dia era o que mais interessava aos leitores (53,7%),
seguida pelas seções de Serviço (46,3%) e de Cursos (38,2%).

Os moradores de favela procuravam, na maior parte das vezes,


as seções de Serviço, Emprego, Diversão, Esporte e os colunis-
tas. Os de menor escolaridade queriam mais dados referentes
a emprego e matérias sobre a violência na sua própria comu-
nidade. O portal já atingia a favela, mas lá o seu maior público
ainda era o leitor classe A. O desafio de chegar aos mais pobres
e, sobretudo, aos ainda sem acesso, continuava. O caminho para
isso era retomar propostas de inclusão digital e social. Como criar
um banco de currículos on-line e fazer parcerias com empresas
de recursos humanos, para investir pesado na seção de Empre-
gos – projeto que cheguei a iniciar, mas ficou inconcluso.
Do outro lado da tela 183

Ao mesmo tempo, a gente sabia que precisava ser bom o sufi-


ciente para manter os vários tipos de leitores já conquistados.
Inclusive em outros países. A média de acessos no exterior era
alta – em torno de 10%. Em sua maior parte, dos Estados Unidos.
Porém, que interesse movia esse leitor? De vez em quando, um
ou outro e-mail dava uma pista: pesquisadores interessados no
tema, brasileiros com saudades de casa, como Leonardo, curio-
sos em geral.

As cartas (ver Anexo 2) certamente, eram um belo indicador da


popularidade do projeto. Em 2005, a média mensal chegou a 175
mensagens – a imensa maioria enviada por e-mail. O Viva Favela
contabilizava ainda em torno de 180 mil visitas, cerca de 650 mil
page views e mais de 2,7 milhões de hits por mês.
184

Capítulo 6
185
Uma rede
virtual

Com o tempo, ficou claro que o Viva Favela conquistara seu espaço
junto a três segmentos distintos – a favela, a academia e a mídia.
Isso obrigava o veículo a investir na produção de conteúdos dife-
renciados. Nem sempre era tão fácil, mas parecia dar certo.

Ninguém esperava, entretanto, a abertura de uma promissora


frente: o papel de “rede virtual”. Ao interligar diversos segmen-
tos da sociedade, o projeto começou a quebrar barreiras sociais
e dar uma visibilidade inédita aos leitores de baixa renda. Graças
à credibilidade do portal e à força do nome Viva Rio, eles ganha-
vam com as reportagens uma espécie de “carta de recomenda-
ção” capaz de abrir portas em vários setores.

A experiência estava funcionando com artesãos, modelos, artis-


tas, pequenos empresários e ambientalistas, que conquista-
vam novas oportunidades no mercado de trabalho por conta de
matérias publicadas e contatos feitos pelo portal. Entre eles, por
exemplo, estavam as modelos do projeto Lente dos Sonhos, da
Cidade de Deus, que, a partir do site Beleza Pura, receberam um
convite para trabalhar na Rio Beauty Show (feira internacional de
beleza), no Riocentro, Rio de Janeiro.

Ludmila Gomes e Gisele Guimarães conseguiram ainda mais:


foram convidadas para serem as estrelas do catálogo da grife
Devotos, distribuído no Fashion Rio de 2004, em coleção inspi-
rada nos parangolés do artista plástico Hélio Oiticica.

186
Uma rede virtual 187

A chance surgiu também pelo site Beleza Pura, onde o fotógrafo


Carlos Mattos as descobriu. Ainda por conta do site, a revista
Maxim, da Espanha, contratou seis modelos para um ensaio
fotográfico na Cidade de Deus, em meados de 2004.

Aos poucos, exemplos do gênero começavam a pipocar. Só perce-


bemos o tamanho do fenômeno, porém, ao contabilizar as histórias
de sucesso para o boletim bimestral que lançávamos com notícias
sobre o projeto para parceiros, financiadores e colaboradores.

A área ambiental era a campeã de boas novas. E se provou uma


fonte inesgotável de trocas de todos os tipos – de conheci-
mento, de produtos e até de sonhos. Um dos que se beneficia-
ram dessa rede foi o artesão Ednelson Soares dos Santos, da
Maré, convidado a exportar seus produtos. Ele foi indicado pelo
Viva Favela a Grace Dantas, que mora em Nova York e é dona da
Artes do Rio, empresa que importa artesanato brasileiro para os
Estados Unidos. Grace escreveu ao portal em busca de artesãos
que pudessem fornecer peças para serem comercializadas pela
empresa. Ednelson recebeu ainda um convite para participar de
uma exposição em Lisboa, mas não viajou por falta de recursos.

Já o pequeno empresário Jonas de Oliveira, que começou como


catador de lixo e hoje é dono de um galpão de reciclagem no
Jardim América, Zona Norte do Rio, recebeu convites de secre-
tarias do interior fluminense para dar palestras sobre sua expe-
riência, além de ser requisitado por uma moradora de comuni-
dade querendo aprender a trabalhar com materiais recicláveis
para obter uma nova fonte de renda.

A dona-de-casa e artesã Maria José de Oliveira Teixeira, a Zezé,


moradora da Penha, Zona Norte carioca, que faz bolsas usando
garrafas PET, também foi procuradíssima por gente de todo o
país, querendo comprar e aprender a fazer o produto. Ednelson,
Jonas e Zezé foram todos personagens de matérias do EcoPop
– um dos maiores catalisadores da rede.
188 Notícias da Favela

Ainda por conta do EcoPop, a Cidade de Deus foi escolhida para


sediar um projeto-piloto de energia alternativa do Governo Fede-
ral. O negócio seria tocado por moradores, com apoio do sindi-
cato dos restaurantes – os empresários garantiram a doação
do óleo de cozinha, matéria-prima a ser usada na produção do
biodisel. Os integrantes do Sindicato das Empresas de Ônibus
da Cidade do Rio de Janeiro (Rio Ônibus), com frota de sete mil
veículos, toparam comprar toda a produção da favela. A inicia-
tiva do projeto-piloto foi de Luiz Theodoro, do Governo Federal,
que tomou a decisão ao descobrir uma entrevista do presidente
do Comitê Comunitário da Cidade de Deus no site EcoPop.

Para o professor Venício dos Santos, morador daquela comu-


nidade, a rede virtual – que se alimentava, sobretudo, da troca
de e-mails – trouxe uma sonhada chancela da Universidade de
Oxford, na Inglaterra, para o método que adotou em seu curso
de inglês na favela.

O curso era gratuito e vivia lotado. Venício abrira a escola por sua
própria conta e risco. Achava que falar o idioma era fundamental
para quem buscava um lugar melhor no mercado de trabalho.
E não se conformava com o fato de não haver nenhuma alterna-
tiva do gênero na favela. Um dia, a correspondente Dayse Lara
descobriu a novidade e vendeu a pauta. Na hora de falar com o
professor, no entanto, nunca o encontrava disponível.

Ele fugiu de Dayse o quanto pôde. Como confessaria mais tarde,


tinha implicância com o Viva Rio. Só aceitou dar entrevistas
quando ela passou a freqüentar seu curso. Numa de suas aulas,
vendo que a correspondente anotava sem parar as histórias
que contava, quis saber o que tanto “a nova aluna” escrevia.
Ela explicou que só se matriculara na escola para chegar mais
perto dele. Venício finalmente cedeu.

Não teria motivos para se arrepender. Com a reportagem – que


trazia ainda entrevista feita por Vilma Homero com uma dinamar-
quesa que conhecera o curso na Cidade de Deus –, o professor
conseguiria o apoio de Oxford para usar o método da universidade
Uma rede virtual 189

oficialmente. No rastro do sucesso da matéria, foi convidado a


dar um curso de inglês para detentos numa penitenciária carioca
– o que atraiu uma bela cobertura da mídia tradicional.

Rikke Winther, a tal professora dinamarquesa, ficou no Rio por


cerca de seis meses – parte do tempo dando aulas como visi-
tante no curso de Venício. “Sou professora de inglês no meu
país. Acho que as aulas do Venício eram muito boas. Os alunos
se interessavam muito, eram aplicados e na sala sempre existia
bom humor”, contou Rikke, por e-mail.

Com o tempo, era possível colecionar reportagens que traziam


benefício direto para os entrevistados. No morro do Salgueiro,
por exemplo, um menino chamado Edílson conseguiu patrocínio
para jogar futebol de um empresário dos Estados Unidos após
virar pauta do repórter Marcelo Monteiro, com fotos de Rodri-
gues Moura, correspondente do Alemão. Rodrigues também
participou de uma outra matéria que trouxe dividendos ime-
diatos para um grupo de jovens da Mangueira. Após deixarem
o tráfico e o consumo de drogas, eles começaram a investir “na
marra” num grupo de dança. Iam aos bailes funk, mas não con-
tavam com coreógrafo, nem professor.

“Eu vi aqueles garotos dançando e sendo discriminados, por-


que o preconceito falava mais alto por causa do rebolado. Mas
achei aquilo importante, fiz o contato, e eles aceitaram dar a
entrevista”, lembra Rodrigues. A matéria saiu no Viva Favela e foi
republicada pelo jornal O Dia.

Logo começaram a surgir convites para dançar em outras comu-


nidades e clubes. “Aquilo deu uma força enorme a eles. Fizeram
turnê em São Paulo, gravaram disco e participaram de vários
programas de TV”, conta Rodrigues. O efeito da rede por vezes
ultrapassava as favelas. As detentas da penitenciária Talavera
Bruce, por exemplo, conseguiram lançar um jornal interno após
virarem personagens de uma matéria de Anna Carolina, onde
revelavam seu sonho. Assim, conseguiram um “padrinho” – um
jornalista anônimo que viabilizou a criação do veículo.
190 Notícias da Favela

Um condutor de informação

A rede virtual se fortalecia diariamente, mas ninguém era capaz


de vê-la. Foi preciso que a professora e antropóloga Ilana Stro-
zenberg chamasse a atenção para o fenômeno. Só no final de
2004, a capacidade do Viva Favela de conectar os diversos seg-
mentos da sociedade surgiu com toda a clareza. Até então, as
histórias eram apenas um belo “indicador de sucesso”. Úteis para
convencer os financiadores da eficácia do projeto, é verdade.
Mas apenas isso.

Para a professora, o Viva Favela se encaixava perfeitamente na


visão contemporânea da idéia: “Empregado nas ciências sociais
para mapear as relações entre indivíduos em sociedades com-
plexas, o conceito de rede começa a ser reelaborado. Uma rede
hoje pode ser também pensada como um conjunto de relações
construídas intencionalmente como estratégia para a realiza-
ção de uma ação política”.

Uma ação que promove novas e novas teias, abrindo portas


onde só havia muros. Ao atuar como ponte virtual entre asfalto e
favela, o projeto exerce também “o papel de instrumento capaz
de interligar segmentos da sociedade até então isolados entre
si”, segundo Ilana. A professora observa, no entanto, que o por-
tal também tinha, obviamente, limitações na sua capacidade
de atuação. A começar “pelas próprias pontes que já se sabia
impossíveis de serem construídas simplesmente pela ação do
Viva Favela”. Mesmo assim, o potencial da proposta sempre foi
imenso, diz Ilana.

O projeto, para ela, conseguiu efetivamente produzir um impacto


na forma como o jornalismo carioca cobria as favelas. Contudo,
era apenas uma iniciativa isolada. Ainda há muito chão pela
frente, a seu ver: “Mudanças mais profundas na mídia de grande
circulação só vão ocorrer quando se ampliarem efetivamente as
conexões entre a favela e a cidade”.

A ponte virtual que o Viva Favela viabilizou, acredita a professora,


“não é uma solução para problemas que superam, de muito, o
Uma rede virtual 191

seu alcance. Mas aponta para a possibilidade desse diálogo”.


Ilana descobriu o Viva Favela em 2003 e achou a proposta tão
inovadora, que a transformou em tema de uma pesquisa reali-
zada sob sua orientação por estudantes da disciplina Labora-
tório de Jornalismo, Antropologia e História Oral, na Escola de
Comunicação (ECO) da UFRJ, da qual é professora. As entrevis-
tas realizadas foram vitais para a realização deste livro.

Carolina Andrade, estudante que participou da pesquisa, resol-


veu investigar mais tarde o portal. No trabalho Uma ponte social
na rede virtual: a proposta do Viva Favela, apresentado por ela
durante a Jornada de Iniciação Científica realizada pela UFRJ
em 2005, buscou mapear as ramificações da tal rede virtual,
partindo do princípio de que essa rede seria capaz de “inserir as
comunidades populares em diferentes meios e dar visibilidade
a seus moradores”.

A aluna pesquisou ainda a consolidação do portal como fonte de


informação e referência para a mídia tradicional. Para avaliar o
impacto do Viva Favela nesse sentido, ela analisou as pautas que
se desdobraram na mídia tradicional a partir da leitura dos boletins
bimestrais lançados entre novembro de 2003 e março de 2005.

O levantamento mostra que, na maioria das vezes (84%), os veículos


da mídia tradicional eram os grandes interessados em reproduzir
as pautas do Viva Favela. Em apenas 16% dos casos elas exerciam
influência sobre a imprensa comunitária ou institucional.

Na mídia tradicional, os mais interessados eram as televisões


(51%) e os jornais impressos (43%) – em sua maior parte (61%),
populares. Apenas uma minoria das rádios (1%) e sites (5%) bus-
cava replicar pautas do Viva Favela. A análise confirmava ainda
que a grande imprensa usava as matérias do portal para contor-
nar a falta de acesso às favelas.

Para quem vivia na correria da redação, era sempre interessante


conhecer novos olhares sobre o projeto, como o apresentado na
dissertação A Case Study in Media Inclusion: The Viva Favela
Model (Um estudo de caso na Inclusão Midiática: O modelo Viva
192 Notícias da Favela

Favela), submetida pelo norte-americano David Christopher


Marty à Graduate School of Arts and Science, na New York Uni-
versity, em dezembro de 2004.

Seu foco principal eram “os processos e práticas que podem levar
a inclusão digital até a inclusão midiática” – que David entendia
como “uma das muitas formas de inclusão social que podem e
devem ser feitas por uma campanha de inclusão digital de peso”.

Para o pesquisador, mesmo depois que as campanhas de inclu-


são digital cuidarem do hardware e do software e derem conexão
e treinamento em computadores para a população, ainda esta-
remos diante de uma questão fundamental: “Faltará o acesso às
mais influentes estruturas de auto-representação que existem
na sociedade moderna: as mídias de massa”.

E sem esse acesso e sem a habilidade de determinar sua pró-


pria representação na mídia de massa, “a auto-representação
permanece isolada, e a inclusão midiática continua incompleta”.
Nesse sentido, o pesquisador escolheu o portal porque, entre os
vários projetos de inclusão digital existentes no Rio, o Viva Favela
era o “mais notável pelo progresso que fizera – e pela promessa
que representava – em direção à inclusão midiática na cidade”.

“O projeto começa a operar como um importante condutor de


informação, ajudando a canalizar novas histórias das comuni-
dades de favelas à margem da cidade para as mídias de massa
local e nacional – que, historicamente, têm tendido a gerar ape-
nas reportagens sensacionalistas sobre violência e tráfico de
drogas”, dizia David, para depois concluir: “Com o Viva Favela,
o objetivo inicial dos fundadores do Viva Rio, ao negociar com
as mídias de massa uma cobertura mais justa e representativa
para as favelas, está finalmente começando a se realizar”.

As novas histórias veiculadas pelo portal eram multiplicadas,


sobretudo, com a ajuda de jornalistas que trabalhavam na grande
imprensa. Geralmente por conta de um interesse pessoal sobre
o tema, eles costumavam navegar pelo Viva Favela e acabavam
Uma rede virtual 193

topando com alguma pauta interessante que, por vezes, podia


ser replicada.

Denise Ribeiro, editora de Cidade do jornal Extra, estava entre os


profissionais que jogavam no time do Viva Favela. Não por acaso,
esse veículo publicou diversas pautas inspiradas no portal. Ouvida
por Mayumi Senra Aibe – que apresentou a monografia O Caso
do Portal Viva Favela: O jornalismo a serviço de uma nova pauta
à Escola de Comunicação da UFRJ, em 2004 –, Denise explicou
que o Extra sempre teve todo o interesse em cobrir as favelas.
No entanto, a maior barreira para isso era o acesso a elas.

Nesse sentido, o Viva Favela podia abrir caminhos ao promover


a colaboração entre jornalistas profissionais e correspondentes
comunitários. “Temos a dificuldade de não conseguir, em muitos
casos, entrar nas comunidades. As pessoas ficam receosas de
falar. Nós tentamos, mas não temos acesso direto a esse tipo
de  matéria.O fato de termos de pedir autorização para entrar numa
favela mostra que esses locais são zonas restritas”, diz Denise.
A editora admite ainda que “é muito mais fácil cobrir o lado que a
polícia oferece, porque eles conversam conosco e os moradores,
não. A tendência é ouvir mais um lado do que o outro”.

Denise Ribeiro avaliava que o Viva Favela alcançara uma função


importante justamente por conseguir atuar como essa ponte
entre a favela e a imprensa. “É difícil eu ter uma sacada boa
de pauta lá, porque não vivo na favela. Por isso, o Viva Favela é
importante para nós, pois é uma grande fonte de pautas inte-
ressantes para os leitores do Extra”, confirmava a editora.

Para Mayumi, os correspondentes comunitários eram “a fonte


de inovação que o Viva Favela inseriu no jornalismo brasileiro”.
Ela avalia ainda que a criação de uma redação formada por
moradores de favela e jornalistas era o grande diferencial do
portal: “Sem a orientação, a técnica e a visão jornalística de
profissionais, as reportagens do Viva Favela não teriam tanto
alcance, tampouco seriam tão atrativas”.
194 Notícias da Favela

Após ouvir integrantes da equipe do portal e profissionais da mídia


tradicional, a hoje jornalista conclui que o portal “apresenta uma
proposta inovadora e necessária, visto que a imprensa não cobre
devidamente as favelas cariocas”. Mayumi sustenta sua conclu-
são ainda com base em entrevistas feitas com Angelina Nunes,
editora-assistente da editoria Rio do O Globo, e o ex-editor-chefe
do Viva Favela, Oscar Valporto, então editor de produção do O
Dia.

“Todos classificaram como insuficiente a cobertura jornalís-


tica nas favelas, em relação tanto a seus respectivos veículos
como à imprensa em geral”, diz Mayumi, que escreveu a mono-
grafia orientada por Maurício Lissovsky, professor da ECO
e integrante do Iser.

Em sua fala, Angelina Nunes destaca algumas matérias sobre


aspectos positivos da favela já publicadas pelo O Globo. Confirma,
porém, a tendência da mídia a explorar mais as pautas de polícia.
Para ela, isso se deve à ausência de fontes que produzam uma
pauta “social” e também à “falta de cultura dos repórteres de
pensar em buscar pautas nas favelas”, já que boas sugestões,
acredita, emplacam em qualquer redação.

A editora julga que, com o crescimento dos índices de violência


no Rio a partir de meados da década de 1990, os jornais passa-
ram a focar cada vez mais as pautas policiais. Algumas vezes,
esse distanciamento levou a imprensa a errar a mão, caindo no
sensacionalismo e levando os moradores a se sentirem usados.
“A favela está muito ressentida com a imprensa e a imprensa não
sabe direito como lidar com essa realidade”, diz a jornalista.

Ela aposta que os leitores do jornal querem saber mais sobre


o que “os moradores de favela pensam e fazem”. “Existe uma
preocupação com o perfil do leitor do jornal, com o que ele está
interessado em ler. Acho que poderíamos furar esse bloqueio
para mostrar outras coisas”.
Uma rede virtual 195

Para Oscar Valporto, os moradores de comunidades pobres são


mesmo os “sem-pauta”. “Da mesma forma que estão excluídos
da vida econômica e social, eles estão excluídos da pauta”.
O jornalista acredita que os grandes jornais seguem pura e sim-
plesmente a lógica empresarial: “Estão pouco interessados na
favela porque não vendem na favela. A maioria dos moradores
compra pouco jornal, mesmo os mais populares. E os jornais
cuidam de quem compra jornais”. Como consumidores em
potencial, no entanto, não deveriam ser ignorados, pensa Oscar.

CIDADE DE DEUS
Ensaio Fotográfico 2002
Crédito: Tony Barros
196 Notícias da Favela

Em sua conclusão, Mayumi observa que o Viva Favela conseguia


efetivamente “contribuir para o trabalho dos jornalistas nas reda-
ções dos grandes jornais”. “Por seguir uma lógica não-comercial”,
avalia a jornalista, “ele tem a liberdade de passar informações
às quais os profissionais de outros veículos têm dificuldades
de acesso. Em troca, multiplica seu trabalho, já que a imprensa
passa a publicar um maior número de matérias sobre os aspectos
positivos da favela”.

Contudo, é uma relação que depende “do interesse pessoal de


cada profissional”. O que está longe de ser o ideal. “Para haver
uma mudança significativa na mídia sobre as favelas, é neces-
sário implementar ações sistemáticas que ampliem a ponte
estreita que une ‘morro’ e ‘asfalto’”.

Até o final de 2005, outros pesquisadores ainda fariam do Viva


Favela seu objeto de estudo. Entre eles, Maarit Mäkinen, mes-
tranda do Hypermedia Laboratory, da Universidade de Tampere,
na Finlândia. Após visitar o portal em outubro de 2005, ela o ele-
geu um exemplo de projeto bem-sucedido de inclusão digital,
capaz de dar voz ativa aos moradores de comunidades do Rio.

O Viva Favela mereceu espaço também em várias publicações.


É possível ler sobre ele nos livros Brasil@povo.com, do pro-
fessor e cientista social Bernardo Sorj; Brasil eficiente, Brasil
cidadão, da jornalista Rosa Lima, com organização de Marcos
Cavalcanti e Inclusão digital: com a palavra, a sociedade, com
coordenação geral de Lia Ribeiro Dias. Além disso, o projeto
receberia especial atenção dos Cadernos de Comunicações do
Iser: O Galo e o Pavão, de 2003, com edição de Regina Novaes e
Marilena Cunha; e A Memória das Favelas, publicado em 2004
e editado por Regina Novaes, Marilena Cunha e Christina Vital.
Jornalismo
é coisa de ONG?

Numa cidade como o Rio de Janeiro, criar um veículo especia-


lizado em favela exige coragem e uma certa dose de loucura.
Não há nada parecido na mídia tradicional, e as tentativas de
rádios e jornais comunitários mostram que é dificílimo sobreviver
nesse meio. O Viva Rio, porém, resolveu pagar para ver naquele
começo de 2001. O tempo provaria que a proposta não era tão
louca assim. Àquelas alturas, porém, ninguém se arriscaria a
dizer que o projeto faria sucesso nas favelas – e muito menos em
outros setores da sociedade.

O fato de ter sido criado a partir de um pedido de lideranças


comunitárias que buscavam uma nova imagem na mídia tradi-
cional obrigava o Viva Favela, de certa forma, a “cumprir essa
missão”. Para isso, no entanto, era preciso ser muito mais do
que um mero porta-voz dessas comunidades. Era preciso ser
efetivamente um veículo capaz de transformar a matéria-prima
fornecida pelas favelas em notícias de interesse coletivo.

Além de elaborado para e pela favela, o portal era um produto


do Terceiro Setor com todas as limitações e vantagens que isso
significava. Pertencer a uma ONG tornava possível, por exem-
plo, experimentar uma nova forma de comunicação livre das
amarras do jornalismo convencional.

197
198 Notícias da Favela

Ali, tentava-se exercitar, simultaneamente, a liberdade de expres-


são e a liberdade de imprensa – dois conceitos que nem sempre
coincidem na prática.1

Como observou o jornalista Cláudio Abramo, responsável por


reformas editoriais nos jornais O Estado de São Paulo e Folha
de São Paulo, a liberdade de imprensa é, acima de tudo, a liber-
dade do dono da empresa. “O jornal é deles e eles fazem o que
quiserem”, dizia Abramo, uma vez que não se trata “de uma pro-
priedade pública, mas de uma propriedade privada”. E, portanto,
concluía, primordialmente orientada por interesses econômicos,
que determinam o que deve e como deve ser publicado.

Sem compromisso com o lucro, ou com o patrocinador A ou B,


o Viva Favela podia se dar ao luxo de oferecer aos que vivem na
favela uma oportunidade inédita de se expressar. O que fazia,
nesse caso, com que a liberdade de imprensa equivalesse bem
mais à liberdade de expressão.

Isso só era possível porque, nesse caso, o “dono da empresa” –


representado pelo Viva Rio – deixava o Viva Favela respirar. Isso
começava na própria definição da pauta – exatamente onde o
recorte da realidade começa a ser feito – e continuava no trato
de cada tema. A “voz do dono” aí não pesava, ao contrário do
que costuma ocorrer nas grandes empresas jornalísticas priva-
das, onde a escolha do que é notícia muitas vezes se sujeita aos
interesses da direção do veículo.

Um dos grandes desafios era não tratar a favela de forma pater-


nalista. Se havia um assunto polêmico, como remoção em áreas
de risco, por exemplo, era preciso mostrar a irresponsabilidade
dos que insistem em viver nelas. Entretanto, de forma contextu-
alizada – colocando em cena, por exemplo, as razões que levam

1 A liberdade de expressão se origina no direito individual de emitir uma opinião.


Já a liberdade de imprensa está ligada à idéia de independência das empresas de
comunicação.
Jornalismo é coisa de ONG? 199

essas pessoas a se pendurar em barrancos, como a falta de


emprego e moradia.

De certa forma, a liberdade de imprensa ali era também a


liberdade do “dono da empresa”. Nesse caso, porém, o “dono”
realmente podia ser considerado, em última instância, a própria
“sociedade civil” – um conceito demasiado abrangente, mas
que ajuda a explicar o rumo que sempre norteou o portal.

Isso foi possível porque o Viva Rio soube evitar que seus obje-
tivos específicos – fossem políticas de alianças da casa ou
parcerias da ONG nas favelas – violassem a independência do
portal. É claro que a instituição não deixava de ter interesse
político – no sentido mais amplo do termo – frente a um veí-
culo como o Viva Favela, capaz de “falar” com diversos setores.
No mínimo, era uma bela vitrine para as ações da casa.

Seria natural supor, portanto, que o “ator social” Viva Rio, com
seus projetos que se expandem por áreas tão diversas quanto
educação, comércio solidário ou mediação de conflitos, esti-
vesse fortemente tentado a usar o Viva Favela como canal de
informação para enviar mensagens, da favela à elite. E ele usou.
Contudo, sem atropelar a autonomia do veículo.

Volta e meia, é verdade, dentro do próprio Viva Rio, havia pedi-


dos para que se abrisse espaço para projetos da casa. Às vezes,
era uma saia justa. No entanto, também surgiam sugestões que
se transformavam em belas reportagens. Aos poucos, os coor-
denadores da ONG começaram a entender o que rendia e o que
não rendia uma boa pauta.

Mas isso era mais do que normal. Um projeto assim nunca está
isolado em sua trajetória – por mais autonomia que tenha. Qual-
quer veículo de comunicação, tanto do Terceiro Setor quanto
de empresas privadas – e públicas –, sempre estará sujeito a
pressões de “atores sociais” diversos. Incluindo aí os próprios
jornalistas, que acabam por influenciar o produto final.
200 Notícias da Favela

Qualquer um que analise de perto, por exemplo, a rede de inte-


resses – muitos nem sempre declarados – dentro da chamada
“sociedade civil organizada” verá que não há uniformidade entre
eles. Basta perguntar a duas ou três associações de moradores
de uma mesma favela o que elas querem – ou não – ver publi-
cado sobre a sua comunidade para se perceber que as respos-
tas muitas vezes são conflitantes.

No caso do Viva Rio, a vasta rede de projetos e colaboradores


em centenas de favelas da cidade era, acima de tudo, uma van-
tagem que fazia com que a ONG conseguisse chegar aonde a
mídia tradicional geralmente não chegava. Não por acaso, era
uma fonte permanente para os “coleguinhas” que buscavam
os mais diversos tipos de personagens junto à assessoria de
imprensa. Por intermédio das jornalistas do setor, Mônica
Cavalcanti, Chris Magnavita e Adriana Lacerda, muitos desses
telefonemas acabavam no Viva Favela.

Rubem César Fernandes não queria, declaradamente, dar ao


portal um ranço “chapa branca” – como ele chamava as matérias
de interesse institucional –, o que era mais do que bem-vindo.
Assim, fez com que prevalecesse o critério jornalístico na linha
editorial do veículo. Por essas e outras, muita gente duvidava da
ligação entre o Viva Favela e o Viva Rio. Era comum chegarem à
redação histórias de leitores tão diversos quanto universitários,
moradores de favelas ou diplomatas que não sabiam – e quase
não acreditavam – que o portal pertencia à ONG.

O fato de o veículo deixar a favela falar com sua própria voz era
digno de elogios para Marcos Sá Corrêa: “O portal Viva Favela,
uma rede criada pela ONG Viva Rio para ligar via Internet os
morros cariocas, deixa que se apresentem uns aos outros com
suas próprias palavras e não pelo que o resto da cidade tem a
dizer sobre eles. O resultado é um jornal eletrônico que, feito
por favelados e para favelados, livrou-se da obsessão jornalís-
tica que resume as favelas como a droga, violência e miserê.
(...) Às vezes, quando todas as primeiras páginas amanhecem
Jornalismo é coisa de ONG? 201

ocupadas pela mesma crise política de Brasília, não há nada


como o Viva Favela para servir no café-da-manhã”.2

A voz do Caveirão

Uma das maiores provas da independência editorial do Viva


Favela foi a publicação da matéria “Corra, o caveirão vem aí”,
em outubro de 2005. Escrita a partir de denúncias contra a
atuação do carro blindado (conhecido como “caveirão”) usado
pelas Polícias Civil e Militar no Rio, a reportagem batia de frente
com a política de segurança pública do Governo Estadual, o que
destoava da linha de atuação da área de direitos humanos e
segurança pública do Viva Rio, que mantinha parcerias com o
governo do estado para a capacitação de policiais.

Era de se prever, portanto, que a publicação fosse evitada.


Mesmo assim, fomos em frente. O tema era quentíssimo, as
denúncias vinham de fontes seguras e as favelas esperavam
que o portal cumprisse esse papel.

As histórias começaram a chegar à reunião de pauta por conta da


indignação dos correspondentes que testemunhavam as cenas
de violência e desrespeito com os moradores, além de receber,
eles mesmos, denúncias de velhos conhecidos. Não havia como
duvidar, nem vincular as acusações à manipulação do tráfico ou
algo do gênero.

No entanto, obviamente havia certa tensão diante das possíveis


reações ao texto. Rubem César estava ciente da pauta, mas só
leu a reportagem quando ela já estava no ar. Passava das nove da
noite quando bati na sua sala e pedi que ele conferisse o tom da
matéria. Ele leu o texto – a reportagem era minha – de cabo a rabo
e não fez nenhum reparo, mesmo sabendo que a matéria poderia
provocar reações. Como efetivamente provocou. Sabe-se que ela
irritou, por exemplo, alguns setores da polícia. Entre outras rea-

2 Coluna publicada pelo site AOL em de julho de 2004


202 Notícias da Favela

ções, começaram a circular na Internet mensagens acusando o


Viva Favela de defender os “direitos dos bandidos” – o que, por
tabela, atingia imediatamente o Viva Rio.

A reportagem trazia denúncias contra as ações do blindado em


várias favelas do Rio. Incluía um abaixo-assinado de moradores
do Complexo do Alemão, que reclamavam de prejuízos morais
e materiais e pediam “mais respeito ao Estado”, dava a letra do
rap (que podia ser ouvido no site) de um animador cultural da
Maré e contava que um dossiê sobre os abusos estava sendo
elaborado pela ONG Justiça Global. A Polícia Militar, através de
seu porta-voz, dizia desconhecer episódios negativos relacio-
nados ao “caveirão”.

Poucas semanas após ser publicada pelo Viva Favela, a repor-


tagem virou manchete do Extra, com os devidos créditos. A idéia
partiu do editor-executivo Octavio Guedes, com quem estáva-
mos articulando uma parceria para a publicação de matérias do
portal. A partir daí, a história ganhou destaque nas rádios Globo,
Tupi e CBN, além da Rede TV!, obrigando o então comandante
do Bope, coronel Fernando Príncipe, a dar explicações a contra-
gosto. Provocou também mensagens de apoio e agradecimento.

O pastor evangélico Ronaldo Cunha, que atua na comunidade


Nelson Mandela I, em Benfica, escreveu:
“Vejo com muita tristeza pessoas investidas de autoridade para
governar usarem o poder que lhes é auferido para declarar guerra
a essas comunidades. É uma verdadeira intifada. Sim, porque o
poder público envia blindados a essas comunidades atirando para
todos os lados. Morrem crianças, adultos, jovens e idosos sem ne-
nhuma relação com o crime. Quando o povo protesta, é autuado por
associação ao crime organizado. Isso é uma forma de legitimação
do genocídio. Usurpa-se do ser humano direitos básicos constitu-
cionais. Hoje, a presença do Estado nessas comunidades significa a
usurpação desses direitos”.

Um rapaz de quinze anos, que assinava apenas Vinicius, o “Sapo


Boi”, ex-morador do morro dos Macacos, em Vila Isabel (Zona
Jornalismo é coisa de ONG? 203

Norte carioca), também enviou e-mail após ter lido a reporta-


gem. Nele, Vinicius conta que conheceu bem a realidade das
favelas cariocas antes de se mudar para o Espírito Santo – e que
continuava a freqüentar bailes funk em suas visitas ao Rio.

Ele enviou trechos de um funk “proibidão” que costumava ouvir


nos bailes cariocas: “Escuta o barulho / é granada noite e dia /
caveirão no Macaco / virou caveirinha / não tem essa de Colôm-
bia, nem Afeganistão / o morro do Macaco explodiu o caveirão...
ão ão ão explodimos o caveirão...” Vinicius se ofereceu para ser
colunista do portal. “Meu sonho é ser jornalista e eu queria ter
uma coluna no seu site, que tem uma comunicação aberta...” Con-
videi-o a escrever quando quisesse, mas ele nunca deu retorno.

Cinco milhões de telespectadores

Livre da lógica do mercado, o Viva Favela podia buscar o que


acreditava ser de “interesse coletivo” e colocar em prática
sua responsabilidade social, mesmo com todas as limitações.
Sempre tentava pautar o que era “notícia”, sem perder de vista o
objetivo de desconstruir a imagem preconceituosa e superficial
que a sociedade tantas vezes faz das favelas.

Acabou descobrindo histórias fantásticas que, por seu inedi-


tismo, logo conquistaram a mídia tradicional. No primeiro ano
do portal, essa já era uma tendência clara. No segundo ano, os
telefonemas de “coleguinhas” em busca de pautas e persona-
gens passaram a ser sistemáticos. Ao assumir a coordenação,
em meados de 2002, adotei esses contatos como um indicador
de sucesso do projeto.

Mostrar que o Viva Favela era lido pelos jornalistas da mídia


tradicional – e pelos leitores de seus veículos – era uma forma
interessante de dar retorno aos financiadores. Não só porque
comprovava o prestígio e a credibilidade do projeto, mas, acima
de tudo, porque permitia a eles ter visibilidade junto aos forma-
dores de opinião.
204

CRIANÇAS BRINCAM NO CANTEIRO DE OBRAS


DO CIRCO BAIXADA, EM QUEIMADOS
Matéria: Respeitável Público: nasce o Circo Baixada
Viva Favela 18/02/2003
Crédito: Walter Mesquita
205
206 Notícias da Favela

Com o tempo, viramos referência e passamos a ser procurados


pelos jornalistas para todo tipo de informação: indicações de
lideranças comunitárias, novidades culturais, sugestões de per-
sonagem. Para Luiz Fernando Vianna, repórter da Folha de São
Paulo, numa avaliação feita no final de 2005, o Viva Favela olhava
para o que “a chamada grande imprensa não pode, não sabe,
não quer olhar: a vida nas comunidades para além das genera-
lizações do (mau) senso comum e do discurso freqüentemente
preconceituoso das autoridades e da polícia”. Em resumo: era
“um ótimo manancial de pautas, histórias e reflexões” e servia
de apoio para contatos nas comunidades.

Em depoimento dado ao portal no final de 2004, Marcelo Moreira,


então chefe de reportagem do RJTV da Rede Globo, também
afirmava “a ótima qualidade” do projeto. “Fazer uma matéria
positiva sobre a favela e pautar um telejornal como o RJTV, que
é visto por cinco milhões de pessoas, mostra o valor do trabalho
do Viva Favela”.

Moreira confirmava ainda que, com a morte de Tim Lopes, em


junho de 2002, as equipes de reportagem da emissora foram proi-
bidas pela direção de entrar nas favelas, o que, de certa forma,
afastou o telejornalismo dessas comunidades. No entanto, nem
por isso deixaram de se preocupar com o que acontece aos
moradores dessas áreas. Para ele, era a grande penetração do
portal nas favelas que o tornava um importante instrumento
de informações.

Também no final de 2004, Eduardo Auler, chefe de reportagem do


Extra, afirmou que o grande diferencial do Viva Favela era o con-
teúdo de suas reportagens. Especialmente por conta da diversi-
dade das pautas, da criatividade com que eram conduzidas e da
coragem com que algumas eram feitas – sobretudo as que retra-
tavam o medo dos moradores durante os momentos de conflito.

“Considero hoje o Viva Favela a mais importante fonte de notí-


cias sobre as comunidades, que estão cada dia mais distantes
da grande mídia. Seja pela reação violenta com que os órgãos
Jornalismo é coisa de ONG? 207

são recebidos em algumas áreas, seja pela dificuldade de acesso


a informações e fontes”, diria Auler. Os depoimentos de Auler e
Moreira foram dados ao repórter Carlos Collier, que escreveu
uma matéria avaliando os avanços do portal ao longo de 2004.

No ano seguinte, cerca de oito reportagens do Viva Favela


inspiravam pautas na mídia tradicional a cada mês. Era uma
contabilidade difícil de ser feita. Às vezes, uma única história
repercutia em dois, três, quatro veículos. A matéria “Segura,
peoa”, por exemplo, do correspondente Cristian Ferraz, publi-
cada em fevereiro de 2005, provocou interesse no “Fantástico”,
no “Domingão do Faustão”, ambos da Rede Globo, e nos jornais
O Dia e Extra. O mesmo aconteceu com “Moda limpa”, sobre a
dona Zezé, do morro do Tuiuti, de Guaraci Gonçalves. Publicada
no mês anterior, ela atraiu o Canal Futura e a TV ARD, maior rede
pública da Alemanha.

A relação com a mídia tradicional se fortalecia na medida em


que os correspondentes e repórteres da redação conseguiam
criar uma rara agenda de telefones. Viramos uma fonte confiá-
vel de fontes confiáveis. “A grande maioria dos jornalistas é de
classe média e sem contato com favelas. O Viva Favela faz com
que a gente se dispa do preconceito e mostre melhor essa rea-
lidade”, diria o editor-chefe do SBT Rio, Rafael Casé, em 2005.
Segundo ele, sua equipe utilizava o portal como uma base de
consulta permanente.

Aos poucos, pautas de estados como São Paulo, Rio Grande do


Sul, Bahia e Minas Gerais começaram a chegar – mas, salvo
duas ou três colaborações voluntárias de jornalistas de fora do
Rio, não foi possível ampliar a cobertura para além das frontei-
ras cariocas. Houve um momento, no entanto, em que se sonhou
com um “Viva Favela Brasil”. Um projeto que certamente seria
estimulado pelo antropólogo Hermano Vianna.

Em entrevista a Janaína Rocha, publicada em 2004 na revista


Cult, Hermano afirma: “Vejo com entusiasmo o aparecimento de
cada vez mais rádios comunitárias e TVs comunitárias, além de
208 Notícias da Favela

projetos como o excelente site Viva Favela, que precisaria ser


imediatamente nacionalizado”. A idéia era boa. O modelo, afi-
nal, já estava testado e aprovado. Pronto para se tornar política
pública – um dos ambiciosos objetivos dos projetos do Viva Rio.

O foco exclusivo no Rio não impediu o Viva Favela de se tornar


notícia em veículos do Brasil e do mundo, a partir de reportagens
de jornalistas da Europa e dos Estados Unidos. Entre eles, Tilman
Wörtz, que elaborou, em 2004, uma matéria para a WDR, grande
estação de rádio da Alemanha. No mesmo ano, a jornalista
africana Rasna Warat publicou Slums creates its own web site
(A favela cria seu próprio site), artigo que falava sobre o projeto,
no site www.peopleandplanet.net.

A reprodução de matérias do Viva Favela em sites internacionais,


como o United Nations Cyberschoolbus (Ônibus escolar ciberné-
tico das Nações Unidas), também era naturalmente bem-vinda.
O site, produzido pelas Nações Unidas, traduziu e replicou uma
reportagem sobre a Rocinha durante as comemorações do Dia
Mundial do Meio Ambiente, em 2005. Para Bill Yotive, gerente do
Global Teaching and Learning Project (Projeto Global de Ensino
e Aprendizagem), ao qual pertencia o site, o Viva Favela era “um
projeto maravilhoso”.

O portal também era conhecido no Extremo Oriente. Certa vez,


uma pesquisadora japonesa descobriu e resolveu incluir o Viva
Favela – depois de visitar sua redação no Rio – num livro de
boas práticas coletadas nas Américas.

“O efeito (do portal) só não foi maior por falta de dinheiro para
divulgar melhor o trabalho”, diz a jornalista Márcia Vieira sobre
os primeiros cinco anos do portal. Para ela, o Viva Favela repre-
sentava “a chance do morador de comunidade de ser ouvido”,
era a favela “falando por ela mesma”. O que, na sua avaliação,
ajudava a sociedade “a mudar a imagem do favelado, além de
melhorar a auto-estima dos moradores”.

Não ter verba para divulgar o projeto sempre foi realmente um


problema. Havia as agências de publicidade, parceiras do Viva
Jornalismo é coisa de ONG? 209

Rio, que topavam ajudar na criação. Mas isso não bastava. Era
preciso jogar a idéia na rua. Uma delas, a V&S Scala, chegou a
produzir um belo anúncio, jamais veiculado. Ele mostrava três
meninos com uma favela ao fundo. O texto dizia algo assim:
“Com tanto Washington, Wellington e Wallace, o que não falta
é www na favela”.

Em setembro de 2003, uma reportagem de capa da revista Lide


sobre jornalistas que trabalham no Terceiro Setor registrava a
expansão da área de comunicação do Viva Rio. Vital para a ONG
– que nasceu com o apoio dos três maiores jornais cariocas
da época (O Globo, Jornal do Brasil e O Dia) –, a comunicação
crescera rapidamente com a criação do Viva Favela, o aumento
de profissionais na assessoria de imprensa e o surgimento da
Rádio Viva Rio AM. Nesse período, o Viva Rio contava com mais
de vinte jornalistas profissionais.

O time começaria a se desfazer em 2005, quando a ONG come-


çou a se repensar após um processo de mudança provocado
pela redução nos financiamentos e pela derrota do “sim”3 no
referendo sobre o comércio de armas no Brasil. A partir dali,
haveria um freio de arrumação. E o número de jornalistas na
casa baixaria substancialmente. Mas quem conhece a impor-
tância que a área sempre teve para a instituição sabe que é
quase impossível não prever um novo crescimento futuro.

3 Em referendo realizado em outubro de 2005, quase dois terços dos eleitores


disseram “não” à proibição do comércio de armas de fogo e munição no Brasil.
A luta pelo desarmamento no país é uma das grandes bandeiras do Viva Rio.
A semente
estava lançada

Em 2005, o portal alcançara prestígio, credibilidade e um


número considerável de leitores, mesmo sem qualquer tipo de
publicidade. E começava a colecionar prêmios.1 O caixa, porém,
continuava baixo. Captar recursos sempre fora um problema.
Para piorar, naquele momento, o Viva Rio – que tradicionalmente
ajudava o Viva Favela durante as tempestades – também não se
encontrava bem financeiramente.

Ainda em janeiro, a ONG decidiu que seria mais seguro enxugar


os custos. Com isso, os correspondentes deixaram de receber
um salário fixo e passaram a ganhar por produção. O grande
baque, porém, viria em abril. Como a situação não melho-
rara, para que o projeto conseguisse chegar ao final do ano e
ganhasse tempo para buscar novos financiadores, seria preciso
tomar uma decisão ainda mais drástica. Não restou saída a não
ser desmontar a equipe de jornalistas.

De uma só tacada, perdemos os cinco repórteres e a redatora.


A partir dali, só poderíamos contar com os correspondentes e
as editoras de fotografia e de texto. A mudança reduziu o ritmo
de atualização do portal. Mas, pelo menos, a qualidade do con-
teúdo e a equipe da favela foram preservadas.

1 Entre eles, o Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos (Menção Honrosa


pelo conjunto da obra), conquistado em 2005, e o Telemar de Inclusão Digital,
recebido em 2004.

210
A semente estava lançada 211

Cada correspondente poderia produzir, no máximo, duas matérias


por mês. Era tudo o que o orçamento podia pagar. Para quem não
tinha uma segunda fonte de renda, foi um susto. Marta Oliveira,
por exemplo, do Complexo do Alemão, cursava faculdade à noite
e contava com o Viva Favela para fechar as contas. A situação era
um pouco melhor para La Toy Jetson, que mantinha seu programa
na Rádio Rayzes FM. Ambos entraram no final de 2004 sem ter a
menor idéia do vendaval que se aproximava.

Mais acostumado a falar em rádio do que a escrever textos


longos, La Toy ainda assim emplacou algumas boas matérias.
Descobriu, por exemplo, o grupo Teatro na Laje, formado por
jovens da Vila Cruzeiro. Eles adaptaram a obra de Shakespeare
para as favelas cariocas contemporâneas e fizeram uma versão
de Romeu e Julieta onde a disputa entre as famílias Capuletos e
Montéquios é substituída pelo conflito entre facções rivais.

A matéria de La Toy foi ao ar no finalzinho de novembro de 2005,


quando o Viva Rio ainda digeria a triste derrota do “sim” no refe-
rendo sobre o comércio de armas no país. Um momento deli-
cado para a ONG, que ainda não se recuperara da turbulência
financeira que prejudicara seus planos naquele ano. Tentando
enxergar na crise uma oportunidade para se fortalecer, a insti-
tuição começou a rever todos os seus projetos. E incluiu o Viva
Favela na lista.

Era o fim de um ciclo de quase cinco anos. Nesse momento, saí


de cena, feliz por ter estado à frente de um veículo de comu-
nicação inovador, que, a despeito de todas as dificuldades de
acesso à Internet neste país, conseguira efetivamente entrar
nas favelas. De alguma forma, aquela primeira fase pudera
estabelecer um novo paradigma para o exercício do que se
poderia chamar de “jornalismo social”.

A proposta de dar visibilidade às favelas – e de fazê-las usarem


a grande mídia para transmitir uma visão mais humana de si
mesmas – passava a ser uma possibilidade real, e não mais mera
utopia. A semente estava lançada.
212 Notícias da Favela

Uma olhada ao redor mostrava que não estávamos mais tão


sozinhos. Havia um grande movimento crescendo na mesma
direção. Nele despontam iniciativas como o jornal mineiro Visão
do Morro, lançado em 2004 e produzido por repórteres comuni-
tários do morro das Pedras, em Belo Horizonte. No Rio, o Obser-
vatório de Favelas acabara de criar a Escola de Comunicação
Crítica, para formar novos profissionais nessa área. Brasil afora
certamente existem várias outras iniciativas do gênero.

Em janeiro de 2006, com a equipe de correspondentes pratica-


mente desarticulada, o Viva Favela buscava seu novo caminho.
Eu estava de volta à favela – dessa vez como gerente de produ-
ção de um documentário que trata da relação entre o morro e o
asfalto2 –, quando meu celular tocou no alto do Chapéu Man-
gueira, no Leme, Zona Sul carioca. Era um jornalista querendo o
contato do grupo Shakespeare na Laje. Fiz a ponte com La Toy e
desliguei, torcendo para que outras pontes continuassem a ser
construídas.

2 Dirigido pelo inglês Donald Hyams, O outro lado do morro aborda a estreita inter-
dependência entre os moradores da favela e do asfalto.
A semente estava lançada 213

SAMBISTAS DO CANTAGALO
Ensaio fotográfico 2003
Crédito: Sandra Delgado
214
215

Anexo 1
Anexo 01
Matérias selecionadas

Arquitetura de pedreiro — 218


Por Edu Casaes, da Rocinha,
e Vilma Homero, da Redação – 21 / 02 / 2003

O barraco é mais embaixo — 221


Por Gisele Netto – 28 / 01 / 2003

Nas barbas da ditadura — 224


Por Marcelo Monteiro – 01 / 06 / 2004

Na boca do lobo — 227


Por Bete Silva, do Complexo do Alemão – 10 / 05 / 2002

Cada vez mais abusados — 231


Por Ana Cora Lima – 19 / 10 / 2004

Círculo das letras — 234


Por Guaraci Gonçalves, do Tuiuti,
e Silvia Noronha, da Redação – 18 / 08 / 2004

A dureza da dura — 237


Por Carlos Collier – 18 / 03 / 2003

Escolha radical — 240


Por Mariana Leal – 11 / 04 / 2005

Essencial inacessível — 243


Por Marta Oliveira, do Complexo do Alemão,
e Vilma Homero, da Redação – 17 / 03 / 2005

Uma favela partida — 246


Por Keliane Muniz, de Duque de Caxias – 20 / 09 / 2001
Favela no quadro-negro — 248
Por Dayse Lara, da Cidade de Deus,
e Vilma Homero, da Redação – 09 / 09 / 2003

O filme se repete — 250


Por Cristian Ferraz, da Baixada,
e Tetê Oliveira, da Redação – 05 / 04 / 2005

Ingresso ecológico — 253


Por Julia Duque Estrada – 02 / 09 / 2004

O lado C do funk — 255


Por Anna Carolina Miguel, da Zona Oeste – 16 / 11 / 2001

Da mansão ao morro — 258


Por Rita de Cássia, do Cantagalo – 13 / 08 / 2004

Minha adorável babá — 262


Por Cláudio Pereira, do Complexo da Maré,
e Verônica Fraga, da Redação – 13 / 12 / 2002

Rir sobre o óleo derramado — 266


Por Begha Lindemberg, do Complexo da Maré,
e Vilma Homero, da Redação – 26 / 05 / 2005

Só a Rocinha segura a Rocinha — 269


Por Carlos Costa, da Rocinha – 04 / 07 / 2001

Shakespeare na laje — 273


Por La Toy Jetson, do Complexo da Penha,
e Tetê Oliveira, da Redação – 29 / 11 / 2005

No tempo dos atabaques — 276


Por Jaime Gonçalves – 15 / 03 / 2005
Com anos de prática e nenhum diploma,
pedreiros da Rocinha multiplicam o espaço
onde ele praticamente não existe.
E inventam uma nova lógica urbanística.

Arquitetura
de pedreiro
Edu Casaes, da Rocinha, e Vilma Homero, daRedação | 21/02/2003
Foto: Nando Dias

Acostumados a se adequar às mais loucas condições de espaço


e a driblar dificuldades de tempo e dinheiro, os pedreiros
se tornaram um dos profissionais mais requisitados nas comu-
nidades. Experientes ou amadores – há até mulheres que colo-
cam a mão na massa –, eles são peças fundamentais quando
se trata de concretizar, tijolo a tijolo, o sonho da casa própria.
Sem saber, inventam também uma nova lógica urbanística.

Para solucionar a falta de dinheiro e de espaço, as casas de


favelas fogem do convencional. Escadas surgem nos lugares
mais inesperados, quartos são colocados ao lado da cozinha,
lajes encostam na janela do vizinho. O importante é encontrar
soluções apropriadas ao terreno e abrigar uma família grande
num lote pequeno.

218
219
220 Notícias da Favela

O pedreiro Ricardo de Oliveira, 29 anos, um dos mais requisitados


da Rocinha, já perdeu a conta de quantas casas fez na comunidade.
Antes de começar a obra, Ricardo desenha a planta de sua cria-
ção. A partir daí, faz de tudo: das fundações à subida das paredes
e acabamentos.

Em forma de funil

Ele não faz obra em área de risco, e sempre busca soluções


inovadoras. A casa da diarista Nalva de Araújo, 47 anos, por
exemplo, tem formato de funil e o acesso aos quartos, no
segundo andar, é feito por uma escada de madeira. “Foi a forma
que consegui para aumentar o espaço”, justifica o pedreiro, que
nem sempre segue o desenho original. “Quando vejo uma forma
mais fácil de fazer o serviço, mudo tudo e recomeço por outro
caminho”, explica.

Sua primeira casa foi aos 19 anos, depois de aprendidas as noções


básicas da profissão com o avô, também pedreiro. Os estudos,
mesmo limitados, ajudam. “Uso muita matemática”, explica.

O também pedreiro Sem Camisa, ou melhor, Antônio Carlos


da Silva, 42 anos, usa método semelhante. “Olho, meço o ter-
reno, faço um rascunho e caio dentro”, afirma. Sempre é difícil.
“Em toda obra há complicações, principalmente em morro.
Mas nunca tive problemas”, assegura. Sem Camisa aprendeu a
profissão com o pai e já fez mais de quinze casas na Rocinha.

A manicure e cabeleireira Carla Jovêncio de Souza, 42 anos,


também aprendeu com o pai os rudimentos da profissão, mas
usa o conhecimento em sua própria casa. Com três crianças
pequenas para sustentar e morando num espaço mínimo, ela
construiu um segundo andar, com quarto e banheiro, sozinha.
Já foi chamada para trabalhar profissionalmente, mas não acei-
tou: “Dou alguns toques, mas não participo”.
No morro do Tuiuti, no Rio, a família Silva
é exemplo de como moradores de favelas
driblam a falta de títulos de posse criando
mecanismos próprios para negociar imóveis e lotes.

O barraco é
mais embaixo
Gisele Netto | 28/01/2003
Foto: Walter Mesquita

No Brasil, as favelas criaram uma dinâmica própria para orga-


nizar o caos criado pela ocupação irregular em terras urbanas.
Sem uma política habitacional eficiente, o morador de baixa
renda inventou códigos próprios para lotear, dividir, multiplicar,
alugar, comprar e vender seus imóveis e terrenos na favela.
Uma realidade complexa que o governo terá de enfrentar quando
colocar em prática o projeto de legalização fundiária nessas
áreas, como está previsto no programa dos Ministérios da Jus-
tiça e das Cidades.

Os técnicos terão de lidar com situações bem específicas, que


talvez exijam soluções negociadas caso a caso. No morro do
Tuiuti, em São Cristóvão, zona portuária do Rio, por exemplo,
uma única família (a dos Silva, como a do presidente Lula) atra-

221
222 Notícias da Favela

vessou as últimas décadas protagonizando diferentes papéis –


posseira, proprietária sem título, loteadora.

Jarbas Luiz da Silva chegou com a família ao Tuiuti há 31 anos.


Eles foram morar numa casa alugada, instalada num enorme ter-
reno baldio. Um dia, decidiram saber de quem eram aquelas terras
para regularizar a posse. “Descobrimos que o terreno tinha dívidas
de mais de 150 anos. As pessoas que se diziam donas não tinham
mais direito a nada”, conta Marcília Viana da Silva, 40 anos.

Sem registro

Depois de muita confusão, o imposto passou a chegar em nome


de Jarbas. Para regularizar tudo, ele teria cinco anos para reque-
rer a escritura. Mas não deu tempo: morreu antes.

Um ano depois, a viúva dividiu a terra e começou a vender lotes.


Hoje existem dez casas onde só havia a residência dos Silva. Entre
elas, a de Marcília – a única das quatro filhas a ficar no terreno.
Com a morte da mãe, ela passou a ser a administradora da área.

“Eu teria de tirar a escritura para depois fazer o ‘desmembro’


para cada um. O problema é que teria de gastar um dinheiro
que não tenho”, explica. Resultado: não só ela não tem qualquer
prova da propriedade do terreno, como vem vendendo e alu-
gando imóveis e lotes sem nenhum documento legal.

Nos lotes, há proprietários que já venderam suas lajes para a


construção de novas residências. Tem até prédio de três andares.
Ninguém sabe como vai ficar quando o governo começar a distri-
buir os certificados de propriedade.

Seja como for, Marcília prefere que a associação de moradores


– que seria a intermediária das emissões segundo a proposta do
Ministério da Justiça – fique fora dessa história: “Não conheço
ninguém de lá. Eles só agem no alto da favela, dizendo que a
gente aqui embaixo é do asfalto, é rico e metido à besta. Já o pes-
soal do asfalto diz que a gente é da favela”.
Materias Selecionadas 223
Morros cariocas esconderam militantes
de esquerda perseguidos pelo regime militar.
No São Carlos, morava a família de Carlos Lamarca.

Nas barbas
da ditadura
Marcelo Monteiro | 01/06/2004
Foto: Walter Mesquita

O grupo Tortura Nunca Mais contabiliza quase quinhentas pes-


soas mortas e desaparecidas durante o governo militar no Brasil.
Um número que poderia ter sido ainda maior não fosse a parti-
cipação de moradores de favelas mais engajados, que deram
cobertura a lideranças de esquerda procuradas no asfalto. Em
tempos de perseguição política, as comunidades eram um porto
quase sempre seguro.

No morro de São Carlos (Centro do Rio), onde morava a família


do guerrilheiro Carlos Lamarca, assassinado pela repressão,
a movimentação era intensa. “Tinha um barraco que era usado
só para isso. Mas teve gente que ficou escondida em casa de
família. Ninguém podia bobear porque a polícia estava nas nos-
sas barbas”, conta Abdias Nascimento, presidente da Associa-
ção de Moradores do São Carlos de 1965 a 1968.

224
Matérias selecionadas 225

Padre Mário Prigol, que atuava em favelas do Rio na década de 60,


confirma: “Muita gente do partidão ficou nesse barraco do São
Carlos e em várias favelas do Rio”. Preso nos anos 70 pela Polícia
Especial do Exército, Prigol imagina que o próprio Lamarca possa
ter buscado refúgio no morro.

Já o ex-presidente da Associação de Moradores do Morro do


Chapéu Mangueira, no Leme, Zona Sul, Lúcio Bispo lembra que,
a partir de 64, os membros do Partido Comunista, impedidos de
atuar no asfalto, correram para a favela. “Eles infiltraram pes-
soas e fizeram contato com as lideranças. Na hora do aperto,
pediam ajuda para abrigar os companheiros.”

Lúcio lembra uma história surpreendente sobre sessenta uni-


versitários que se refugiaram na favela durante duas semanas:
“A polícia tinha tentado invadir uma universidade e a Igreja
Dominicana do Leme pediu para a gente esconder os jovens.
Como a gente tinha boa relação, o que eles falavam a gente
aceitava. A grande dificuldade foi comprar pão para todo mundo
sem chamar atenção”.

Coordenadora da Obra Social da Igreja Dominicana do Leme, Lia


Darcy de Oliveira confirma a história: “Nessa época, ninguém
sabia exatamente o que ocorria nas favelas. A igreja trabalhou
brilhantemente nos bastidores”.

Angel na Penha

A participação das comunidades na resistência ao regime mili-


tar foi tão discreta, que até hoje especialistas no assunto des-
conhecem casos como o do Chapéu Mangueira. Prova disso foi
a reação da presidente do grupo Tortura Nunca Mais do Rio de
Janeiro, Elizabeth Silveira e Silva: “Não sei nada sobre isso, mas
vou conversar com algumas pessoas”, respondeu.

Duas semanas depois, ela confirmou os abrigos secretos e contou


um novo episódio. “Descobri que o Stuart Angel ficou escondido
226 Notícias da Favela

numa favela da Penha. O Partido Comunista tinha um casal que


morava na subida de um morro e fazia a mediação com a favela.
Mas eram sempre passagens muito rápidas”, diz Elizabeth. Filho
da estilista Zuzu Angel, o guerrilheiro foi torturado e morto por
militares em 1971, aos 25 anos.

Segundo Abdias, ninguém no São Carlos perguntava o nome


dos que estavam escondidos. “Alguns ficavam até disfarçados.
O próprio Betinho chegou a freqüentar o morro e eu só soube
anos depois que era ele”, lembra. “Os militares achavam que a
nossa luta era só por infra-estrutura. Não desconfiavam, mas
tinha muita gente consciente e politizada que discutia questões
ideológicas nas favelas”, finaliza.
Cada vez mais cedo, há meninos entrando para o tráfico.
Às vezes, é preciso enfrentar o movimento e negociar a
demissão do filho, como fez Solange.

Na boca do lobo
Bete Silva, do Complexo do Alemão | 10/05/2002
Foto: Rodrigues Moura

Ser mãe em comunidade de baixa renda é, muitas vezes, padecer


no inferno. Diante do medo constante de ver seus filhos sedu-
zidos pelos salários fartos do movimento (o tráfico de drogas),
elas vivem com medo do pior. E, quando o pior acontece, sabem
que precisam entrar de corpo e alma na batalha se quiserem
resgatar seus filhos.

Em casos extremos, chegam a subir até a boca-de-fumo para


chamar o filho de volta para casa. Aconteceu com Solange San-
tos de Freitas, 41 anos. Nascida e criada no Complexo do Alemão,
Solange é mãe solteira. Tem cinco filhos, com idades entre 2 e
18 anos. Entre eles, Igor, o “homenzinho da casa”, hoje com 14
anos. Arrimo de família, Igor passou a ser motivo de preocupação
para a mãe ao ser recrutado como mão-de-obra do movimento
no Alemão.

227
228 Notícias da Favela

A mãe já desconfiava de algo, quando um dia chegou do trabalho


tarde da noite e não encontrou o filho, então com 10 anos. Ficou
preocupada. Igor deixara as irmãs pequenas com qualquer um.
Solange esperou. Por horas. Até que decidiu ir atrás dele. Era
madrugada, o medo bateu forte. “Seja o que Deus quiser. Vou
botar Ele na frente, e Ele vai mostrar onde está”, disse para si
mesma.

Dito e feito. Solange rodou toda a Grota, e subiu. Lá no alto, no meio


de uma turma, estava seu menino. Os rapazes armados, e Igor no
meio. “Me deu um estado de nervo tão grande, que eu dei um grito.
Eles até se assustaram”, lembra Solange. E perguntaram: “O que é
isso, minha senhora?” “Só vim buscar meu filho. Não tenho nada
contra vocês, mas não quero ele nesse meio”, amenizou. Teve
sorte. Um deles tentou tranqüilizá-la: “Calma, tia, a senhora está
nervosa”. Eles então conversaram, e um dos rapazes disse: “Leva,
tia. Conversa com ele, que a gente depois vai conversar também”.
A conversa não adiantou. Igor continuou no tráfico.

“Pai” das irmãs

O pai de Igor abandonou a casa antes de o filho nascer. O menino


só foi conhecê-lo aos 8 anos, quando ele apareceu para
pedir desculpas. Solange fez as pazes, engravidou de novo.
E novamente foi abandonada.

As quatro irmãs “adotaram” Igor como pai. O único “hominho”


começou a trabalhar cedo. Aos 6 anos, levantava às seis horas
para vender pão. À tarde, estudava. “Com a pouca idadezinha
dele, me ajudou muito. Sempre trabalhou, sempre foi uma boa
criança”, diz a mãe, lembrando que Igor “jamais deixou faltar
nada dentro de casa”. Quando a mãe ficava desempregada, sus-
tentava a família.

Mas, se estava com trabalho, Solange chegava muito tarde em


casa. Ficava semanas sem ver o filho à noite. Com isso, demorou
a perceber o que estava acontecendo.
229
230 Notícias da Favela

Rebeldia na escola

Quando Igor começou a se envolver com o movimento, ficou ainda


mais apegado. Entrava em casa correndo, gritando pela mãe.
Ela respondia: “Que foi, meu filho?” E ele: “Nada não. Só vim ver
se a senhora está bem”. E ia para a rua de novo.

Mas, na escola, ficou rebelde. Aos 12 anos, largou os estudos.


E não parava mais em casa – saía à noite e só voltava depois do
amanhecer. Um dia, chegou em casa com o primeiro dinheiro
“desse serviço deles”. Levou um sacolejão da mãe: “Prefiro morar
debaixo da ponte, mas com vocês tudo vivo (sic), do que ter uma
casa linda com você nesse meio”. Solange proibiu o filho de botar
dinheiro do tráfico em casa.

Igor ficou no movimento dos 10 aos 14 anos. Em janeiro, resolveu


se mudar para a casa de uma tia, em Minas Gerais. “Mãe, é hoje
que eu quero ir embora”, disse. Justamente no dia em que Solange
não tinha nem R$ 0,10 para comprar um pedaço de pão para ele.
“Saí por aí, pedindo para a família. Até que arrumei a passagem”.

O bilhete foi comprado no mesmo dia. A roupa de Igor ainda


estava molhada na corda. A mãe juntou tudo, secou uma no ferro
para ele vestir. Foi só o tempo de tomar banho. Igor foi sozinho
até a rodoviária. Naquele dia, estava fazendo 14 anos.

“Ele já se matriculou na escola e diz que, depois de fazer o


ginásio, vem para o Rio para fazer a faculdade”, conta, aliviada.
Solange está juntando dinheiro para ver o filho. “Está faltando
um pedaço de mim. Nunca me separei de nenhum deles”, explica,
chorando. Sem emprego, espera conseguir trabalho logo, para
segurar a barra até que seu “homenzinho” possa ajudar nova-
mente em casa.
A segunda reportagem da série sobre o impacto
do tráfico nos morros cariocas mostra como os
bandidos expandiram seus negócios.
Eles agora cobram por serviços como segurança e água.

Cada vez mais


abusados
Ana Cora Lima | 19/10/2004
Foto: Walter Mesquita

A relação dos traficantes com as favelas cariocas já não é mais


a mesma. Com a prisão e a morte de líderes tradicionais, chefes
cada vez mais jovens e sem vínculos com as comunidades assu-
mem o comando. Eles já não respeitam os moradores como antes
e resolveram ampliar seus “negócios” para aumentar os ganhos.
Os bandidos agora cobram pedágios, privatizam a distribuição de
água e aplicam taxas para “serviços de segurança”. Com medo, os
moradores resistem como podem.

O universitário Fábio,* 23 anos, mora desde que nasceu numa


comunidade violenta da Baixada Fluminense. Ele conta que, até
dois anos atrás, pequenos furtos sempre aconteciam em casas e
lojas da área. Agora reina a tranqüilidade, graças a um “acordo”:
moradores e comerciantes pagam uma mensalidade para um
grupo que faz a “segurança” do lugar.

“Pagamos R$ 15, mas tem pessoas que dão menos porque não
têm condições financeiras”, conta ele, que conhece alguns rapa-
zes do serviço de “vigilância”. “Tem os do movimento mesmo,

231
232 Notícias da Favela

mas outros são vizinhos desempregados que resolveram acei-


tar o bico”, explica. Fábio e sua família nem pensam em não
pagar. “Todo mundo tem medo de represálias e de nova onda de
assaltos”, explica.

O sociólogo Marcelo Burgos diz que os laços de amizade que


uniam moradores e traficantes deram lugar ao medo nos últi-
mos dez anos. “O bandido da localidade, muitas vezes conside-
rado um benfeitor, já não existe. O que vemos hoje são grupos
obcecados em expandir e manter as suas conquistas”, observa
o professor de Sociologia Urbana da PUC-RJ (Pontifícia Univer-
sidade Católica do Rio de Janeiro).

Tráfico privatiza água

Numa favela da Zona Sul, os moradores pagam para ter água


nas torneiras. Segundo a auxiliar de escritório Paula,* 26 anos,
a cobrança é feita todo mês, via associação de moradores, que
repassa a quantia para os traficantes.

Quando ficou desempregada, era sua mãe quem bancava a des-


pesa, com o salário mínimo da aposentadoria. “Nós deixávamos
de comer carne para poder pagar a taxa de R$ 10 no final de
cada mês”, reclama. Vários de seus vizinhos ficaram sem água
por não fazerem o pagamento. “Se o morador não paga, os tra-
ficantes vão lá e fecham o registro. Só abrem após o acerto da
dívida”, revela.

Já o comerciante Manoel,* 42 anos, morador de uma comuni-


dade da Zona Norte, viu-se acuado diante de um pedido feito
por dois homens que chegaram numa moto. “Eles disseram que
eram traficantes e que precisavam de dinheiro para libertar um
bandido preso pela polícia”, lembra ele, que desconfiou e negou
a colaboração. “Falei que iria ligar para um dos grandões do trá-
fico para conferir. Eles me xingaram, mas saíram na boa”, disse.
Matérias selecionadas 233

Depois, Manoel soube que outros comerciantes deram de R$ 70


a R$ 150 e, o que é pior, os tais bandidos eram mesmo do movi-
mento. “Fiquei apavorado. Hoje eu pago e ponto final, porque
esse é o preço para ter uma certa tranqüilidade de se viver ou
de se trabalhar numa favela”, admite.
*
Os nomes foram trocados a pedido dos entrevistados.
Viciados em leitura, moradores de favelas cariocas inventam
uma saída para ter livros sem gastar dinheiro: trocar títulos entre si.

Círculo
das letras
Guaraci Gonçalves, do Tuiuti, e Silvia Noronha, da Redação | 18/08/2004
Foto: Rodrigues Moura

Jorge, Jacira, Sérgio, Almerinda e Claudia formam um grupo


diferente. Eles criaram um círculo de letras para manter o
“vício” da leitura. Sempre que um consegue um livro – de
maneira nem sempre convencional – empresta para o outro,
que repassa ao próximo, e assim sucessivamente. Por essa
roda de leitura passam de três a cinco títulos por mês.

“Você melhora seu conhecimento de mundo, conhece outros


países e outros costumes, tudo sem sair de casa”, argumenta
um dos integrantes do grupo, o motorista de caminhão Jorge
Rodrigues da Silva, 42 anos, ao explicar sua paixão.

Morador do Tuiuti, em São Cristóvão, Zona Norte do Rio, ele


conta que se “viciou” ainda na época da escola e nunca mais
abandonou o hábito. Tem bons motivos para isso. Embora
tenha cursado apenas até a 8ª série do Ensino Fundamental,
Jorge fala com fluência sobre os mais diversos assuntos.
Como consegue? Lendo sem parar. “Quem lê se torna um
autodidata”, lembra.
235
236 Notícias da Favela

Resgatados no lixo

Em casa, Jorge guarda seus quinze livros como se fossem um


tesouro. Alguns foram comprados na Feira de São Cristóvão;
outros, numa feira hippie. Em sebos do Centro, já conseguiu
exemplares por R$ 0,50. Outros, ele confessa: achou no lixo.

Uma de suas amigas é a dona-de-casa Jacira da Silva Chaves,


59 anos, que cursou até a 5ª série do Ensino Fundamental.
Sua adoração por leitura pode ser medida pela quantidade de títu-
los que ela e a filha – que herdou o hábito da mãe – têm em casa:
são quase duzentos. Um dos orgulhos de Jacira é emprestar um
volume para os amigos, desde que “não se esqueçam de devolver”.

O primo de Jacira, Sérgio, consegue muitos livros emprestados no


trabalho e os repassa para a dona-de-casa e também para uma vizi-
nha. Depois, cada volume é mandado para o morro do São Roque,
também em São Cristóvão, onde a irmã e a sobrinha de Jacira o
lêem. Assim, um único volume é lido por, no mínimo, seis pessoas.

Quando bate a vontade de ler, o grupo se encanta com qualquer


coisa. Jorge diz que basta ter letras impressas para despertar
seu interesse, e conta que chegou a ler bula de remédio. Jorge já
influenciou a filha Mariana, 7 anos, que acaba de aprender a ler.

Já o estudante Rafael Nascimento da Encarnação, 19 anos,


participa com cinco amigos de outro círculo informal de lei-
tura. O grupo troca livros sempre que pinta uma oportunidade,
numa roda em que já circularam mais de trinta títulos.

No mesmo espírito, um movimento começou a se espalhar pelo


mundo em 2001. Sua proposta é incentivar as pessoas a “liber-
tarem” livros esquecidos em casa. Basta registrar o exemplar
no site www.bookcrossing.com e “libertá-lo” ao acaso na rua.
Moradores da Cidade de Deus desenvolvem
códigos, como evitar óculos escuros e camisa
social estampada, para driblar duras da polícia.

A dureza
da dura
Carlos Collier | 18/03/2003
Foto: Tony Barros

No confronto entre a polícia e o tráfico, quem mais sofre são


os moradores de favela. O medo de ser confundido com alguém
do movimento é tão grande, que muitos vêm incorporando à
rotina táticas para escapar das freqüentes batidas policiais.
Na Cidade de Deus, Zona Oeste carioca, o medo já levou os mora-
dores a criar uma espécie de código para se proteger das duras.

Há várias recomendações para quem não quer ser confundido


com “a malandragem”. Um trabalhador nunca deve ficar parado
numa esquina, no meio da tarde, por exemplo. Também não deve
usar pochete. Óculos escuros, somente na praia. E cabelo pin-
tado de louro – a menos que seja um cantor de pagode famoso
–, camisa social estampada e corrente de ouro no pescoço tam-
bém estão proibidos. Andar com muito gingado à noite, agitando
os braços e conversando alto, é dura na certa.

237
238 Notícias da Favela

Pela lógica policial, explicam os moradores, ninguém que tenha


passado o dia trabalhando pesado pode ter tanta energia nesse
horário. Pode parecer exagero, mas quem vive em favela acre-
dita que todo cuidado é pouco.

“A polícia acha que nós protegemos os traficantes. Só que, se a


gente abre a boca, na mesma hora somos mortos”, diz um mora-
dor. O horário mais tenso é entre 7h e 12h, quando os traficantes
estão dormindo e a polícia aproveita para agir. Segundo os mora-
dores, famílias inteiras costumam ser acordadas com chutes que
derrubam suas portas. Ali, a farda é associada com freqüência à
extorsão e agressividade.

Para saber mais sobre a política adotada nessas batidas, o Viva


Favela tentou falar várias vezes com o comandante do 18º Bata-
lhão da PM, mas ele não retornou.
Matérias selecionadas 239

Ao entrar na favela, dizem ainda os moradores, a PM não faz


diferença no tratamento que dá a criminosos ou a trabalhado-
res. O mototaxista Raul,* 26 anos, conta que foi parado uma vez a
caminho de casa:“Eles perguntavam onde estava o pó. Desceram
armados e me revistaram. Depois me deram um tapa, mandaram
logo eu deitar no chão. A sorte foi que um deles me reconheceu
da firma onde faço uns bicos como segurança”, conta.

À frente do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio, o


coronel Jorge da Silva diz que a violência policial “é resultado
de uma sociedade hierarquizada e preconceituosa, que faz
com que as pessoas sejam avaliadas de acordo com a classe
social e a cor da pele”.
* Os nomes foram trocados a pedido dos entrevistados.
A esterilização, praticamente irreversível, é um dos
métodos mais populares no Brasil. Cerca de 15%
das mulheres que optam por ela se arrependem.

Escolha radical
Mariana Leal | 11/04/2005
Foto: Walter Mesquita

A laqueadura (ou ligamento) de trompas, que provoca a esterili-


zação da mulher, é um dos métodos mais populares para evitar
filhos no Brasil. A partir dos anos 60, começou a ser usada indis-
criminadamente por brasileiras que não queriam mais engravi-
dar. Mas só em 1996 foi regulamentada pelo governo e passou a
ser oferecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A meta oficial
agora é ampliar a oferta na rede pública.

A regulamentação foi fundamental para obrigar mulheres muito


jovens a pensar duas vezes. Como Angélica Oliveira da Silva, 21
anos, grávida de seis meses de seu quarto filho e moradora da
Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. “Na consulta
do pré-natal, perguntei se podia ligar e a médica me disse que
eu estava muito nova”, conta ela.

Por lei, para fazer a laqueadura, é preciso ter pelo menos 25 anos
ou dois filhos vivos. A decisão final é do médico, com base nos
argumentos da paciente. O SUS só cadastra hospitais que deixem
claro para a mulher que a cirurgia é praticamente irreversível.

240
241
242 Notícias da Favela

Em 2004, foram 38.276 laqueaduras na rede pública, contra 2.533


em 1999. A procura tem sido maior do que a oferta. Somente
25,8% das mulheres conseguem fazer a cirurgia. Não por acaso,
“ela ainda é usada como moeda de troca em eleições”, como lem-
bra a médica Cláudia Bonan.

Chorinho de bebê

Cerca de 15% das mulheres que conseguem fazer a cirurgia,


porém, arrependem-se. “Quanto mais jovens, maior o arrependi-
mento”, diz o médico Marco Aurélio de Oliveira, que realiza micro
cirurgias que tornam a maternidade novamente possível para
mulheres esterilizadas.

A técnica devolveu a felicidade a Mônica Soares, 29 anos, mora-


dora de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. “Tive minha pri-
meira filha aos 17 anos e a segunda aos 23. Só que ela faleceu
aos dois anos de idade”, lembra Mônica. Ela ligou as trompas
logo após o nascimento da segunda filha.

Aos 25 anos estava esterilizada, traumatizada pela perda e dese-


jando ter filhos novamente. “Não me conformava em não ter mais
em casa aquele chorinho de bebê”, conta. Teve sorte. Engravidou
de Vinícius, seu primeiro menino, um ano depois da cirurgia.

Na década de 60, para conter o crescimento da população brasi-


leira, “entidades privadas e beneficentes, financiadas por orga-
nismos internacionais, promoveram a esterilização sistemática
de milhares de mulheres”, conta Cláudia Bonan.

Só a partir da década de 70, os movimentos de mulheres e


negros começaram a denunciar essas esterilizações abusivas,
que usavam critérios discriminatórios de classe e raça.

Em 1988, a Constituição finalmente definiu que o planejamento


familiar é uma escolha do casal e que o Estado tem a obrigação
de garantir as condições para o exercício desse direito.
No Poço do Caboclo, no alto do Complexo
do Alemão, água é artigo de luxo.
É preciso ter dinheiro para puxar cano até em casa.

Essencial
inacessível
Marta Oliveira, do Complexo do Alemão,
e Vilma Homero, da Redação | 17/03/2005
Foto: Rodrigues Moura

Os grandes centros urbanos deverão sofrer com a falta de água


no futuro. Mas, para muitos moradores de favelas do Rio, essa é
uma realidade antiga. Na comunidade de Poço do Caboclo, por
exemplo, no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio, ter água
na torneira é questão de sorte e dinheiro.

A desempregada Maria José Silva, 36 anos, pertence a uma das


trinta famílias (de um total de duzentas) que convivem com a
falta de água encanada. Em seus doze anos de comunidade ela
vem sendo obrigada a se abastecer na casa de uma vizinha,
a cerca de cinqüenta metros de onde mora.

A explicação é simples: a rede de abastecimento, implantada


em 1982, no primeiro governo Brizola, faz um caminho único. Da

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244
Matérias selecionadas 245

caixa, colocada no alto do morro, a tubulação desce direto para a


comunidade dos Mineiros, onde moram cerca de 3.100 famílias.

Na época, a associação de moradores fez uma vaquinha para


estender o abastecimento até o Poço do Caboclo. Mas nem todo
mundo teve como contribuir para a compra dos canos.

Até hoje, só tem água quem entrou na vaquinha. “Uma casa pode
ter e o vizinho do lado não. É obrigado a se virar, cavar poço, apro-
veitar as minas d’água”, explica Adão de Oliveira Nunes, 50 anos,
vice-presidente da Associação de Moradores dos Mineiros, que
também cuida do Poço do Caboclo e da Matinha, favelas vizinhas.
Por sorte, há várias nascentes na região.

O morador também pode puxar uma tubulação da rede princi-


pal até a própria casa. Mas para quem vive de salário mínimo,
que é quanto ganha o marido de Maria José, é uma obra difícil.
Por suas contas, ela teria de gastar umas quinze varas de canos,
fora outros materiais. Está longe de ter dinheiro para isso.
Mesmo assim, sonha com o dia em que terá água na torneira.

Morador há 31 anos do local, Edmilson Silva, 57 anos, lembra de


como era a vida quando chegou ali: “Ninguém tinha água enca-
nada e o poço era utilizado para tudo: beber, cozinhar, tomar
banho”. Três décadas depois, a situação permanece a mesma
para muita gente.
A favela do Dique, em Caxias, tem realidades
tão distintas, que se divide em duas.
Numa, há saneamento básico, asfalto e escola.
Na outra, falta tudo. Uma casa no lado nobre
pode custar dez vezes mais.

Uma favela
partida
Keliane Muniz, de Duque de Caxias | 20/09/2001
Foto: Deise Lane

No bairro de Gramacho, em Duque de Caxias, uma única favela


abriga realidades tão opostas, que foi obrigada a se separar em
duas: Dique I e Dique II. O contraste salta aos olhos de quem visita
as comunidades. Quem mora na carente Dique I não tem escola,
saneamento básico, pavimentação ou coleta de lixo. Já quem vive
na Dique II, a zona “rica” do pedaço, vive em casas confortáveis, com
paredes de tijolos e todos os serviços de uma área urbanizada.

Resultado: os moradores de Dique I vivem sonhando em passar


para o outro lado do rio Sarapuí, que separa as duas favelas.
O aposentado José Rocha, 62 anos, não pensa em outra coisa.
“Minha esposa faleceu sem realizar seu sonho. Sempre quise-
mos morar na Dique II”, diz o viúvo. Sua casa não vale mais do que
R$ 1.500. Já na Dique II, uma casa simples custa uns R$ 15.000.
“De onde vou tirar o restante para comprá-la?”, indaga.

Para passar de um lado para outro, é preciso caminhar pela beira


da linha do trem. Em Dique II, o cenário muda completamente.

246
Matérias selecionadas 247

Enquanto na comunidade mais carente as crianças improvisam


brincadeiras com o que encontram no chão e jogam pelada num
campo precário, as do lado urbanizado contam com uma praça
equipada com quadra de esportes e brinquedos.

Na pobre Dique I, os 4.220 moradores andam um quilômetro e


meio para conseguir água limpa, e uns três quilômetros para
achar um telefone público. A miséria é tanta, que as cinqüenta
crianças que nasceram em casa ainda estão sem registro.

A diferença entre as duas comunidades começou em 1997, quando


a Associação de Moradores da Dique II conseguiu ter suas rei-
vindicações atendidas pelo governo. “Como a Dique I estava
sem liderança, ficou sem as obras”, explica Edílson Santos, pre-
sidente da associação de moradores, que há um ano representa
as duas comunidades.

O rio Sarapuí virou depósito de esgoto e lixo. A feirante Tereza


Oliveira da Silva, 65 anos, moradora da Dique I, diz que tem tanto
mosquito depois das cinco da tarde, que é impossível ficar na
rua. Ela tem motivos para se arrepender. Depois de 28 anos em
Dique II, mudou-se há 12 para Dique I. Não podia adivinhar o que
viria depois. “Hoje, a diferença entre as duas comunidades é
tanta, que parece até que Deus não passou por aqui”, observa.
Alunos da Cidade de Deus estão aprendendo
a própria realidade na escola. Eles estudam temas
como fome, migração, hip-hop e geografia local.

Favela no
quadro-negro
Dayse Lara, da Cidade de Deus, | 09/09/2003
e Vilma Homero, da Redação
Foto: Tony Barros

A favela virou tema de sala de aula na Cidade de Deus. Lá, várias


escolas estão usando a realidade como fonte de consulta para
trabalhos pedagógicos. O resultado é nota dez: o desempenho
dos alunos está cada vez melhor. Para o grupo de educadores
que está investindo na idéia, a saída não está em esconder o
ambiente em que os estudantes vivem – mas colocá-lo em
foco. Com isso, reverteram o desinteresse em sala de aula e
elevaram a auto-estima dos jovens.

A direção da Escola Municipal Alberto Rangel, por exemplo,


inspirou-se na realidade da favela para planejar suas ativida-
des. Entre elas, um levantamento das áreas da Cidade de Deus,
Matérias selecionadas 249

feito para a aula de Geografia. Até a aula de dança entrou na roda,


abrindo espaço para o funk.

Para resgatar a identidade do estudante no seu contexto fami-


liar, um dos trabalhos estimulou a criação de uma árvore genea-
lógica. E obrigou os meninos a buscar as informações em casa.
Boa parte não conseguiu os dados, porque seus pais pouco
sabem de suas raízes. Mas, no geral, o resultado surpreendeu.

A fome se destacou como um dos temas que mais mobilizaram


a escola. Um grupo fotografou o desperdício na comunidade e
usou as fotos para ilustrar um debate. “Queremos que eles refli-
tam sobre o que pode ser feito para mudar esse comportamento
e desenvolvam uma visão crítica”, diz a orientadora pedagógica
Vanderléia de Oliveira Corrêa, 37 anos.

Iniciativa parecida vem tendo a Escola Municipal Frederico Eyer,


onde a realidade da favela é discutida desde 1998, quando os
estudantes produziram uma página de jornal com a história do
bairro. A partir daí, a direção decidiu pesquisar as origens da
Cidade de Deus. Para isso, mobilizou alunos, pais e professores.

Ao ouvir os mais antigos contarem as histórias da favela, os


próprios professores descobriram a formação da Cidade de
Deus – comunidade que tem origem na remoção de moradores
de favelas da Zona Sul para uma desabitada Zona Oeste, na
década de 60.

“Trocava-se um lugar onde havia infra-estrutura e trabalho por


outro onde tudo era difícil”, conta a coordenadora pedagógica
Maria Emília Cunha. Montar este quebra-cabeça, segundo ela,
ajudou a estreitar a ligação entre alunos e professores. “Quem
entende sua história tem mais condições de pensar o presente
e de se preparar para o futuro. Com esse resgate, formamos
cidadãos mais críticos”, acredita.
Família muda de Vigário para Queimados após
chacina de 1993 e acaba assistindo a uma reprise indesejada.

O filme se
repete
Cristian Ferraz, da Baixada* | 05/04/2005
Foto: Walter Mesquita

“Vai começar tudo de novo?” A pergunta veio à mente de


João** na quinta-feira, 31, assim que ele percebeu que os tiros
que ouvira faziam parte de uma seqüência. Seu medo foi logo
confirmado. Naquela noite, trinta pessoas foram mortas na
Baixada Fluminense. Era a segunda vez, em seus 26 anos de
vida, que João vivenciava uma chacina. Em 1993, ele morava
na favela de Vigário Geral, no Rio, quando 21 moradores foram
executados em suas casas por policiais militares.

A chacina de Vigário Geral levou a doméstica Lucia,** mãe


de João, a pegar os quatro filhos e abandonar a favela. Em
busca de tranqüilidade, mudaram-se para a Baixada. Estão
em Queimados – cidade que protagonizou a chacina junto
com Nova Iguaçu – há cinco anos.

* Colaborou: Tetê Oliveira


** Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.

250
Notícias da Favela
252 Notícias da Favela

Lúcia morou vinte anos em Vigário e conta que na Baixada presen-


ciou alguns casos violentos. Mas “eram coisas isoladas”. Nada pare-
cido com o que tinha visto antes. E assim foi até a quinta-feira.

“Ouvi os primeiros disparos por volta das dez da noite, e parei


onde estava. Quando ouvi outras rajadas, encostei na parede e
aguardei”, conta João, que na hora passeava pelas redondezas.

Uma das grandes diferenças entre Vigário e Queimados, observa o


jovem, é a reação dos moradores. “As pessoas correram para os por-
tões. Em Vigário, todo mundo corre para dentro de casa”, explica.

Minutos depois, todos já sabiam que várias pessoas foram exe-


cutadas nas proximidades. Cada um que chegava ampliava a
extensão da tragédia. Um roteiro que a família de João já conhe-
cia. “O filme se repetia”, diz o rapaz.

Mas Lúcia acha que dessa vez foi pior. “Aqui as pessoas são mais
próximas”, diz a doméstica, que conhecia algumas das vítimas.
Entre elas, um homem que deixou três filhos. “Soube que um deles
dormiu abraçado à roupa do pai. É muito triste”, emociona-se.

João também voltou no tempo: “Morava em Vigário desde os


três anos e quando tinha 13 aconteceu a chacina. Estava acos-
tumado com as invasões, os tiroteios, mas aquilo foi horrível”.
Sua casa ficava a quinhentos metros do local. “Fiquei com
muito medo”, admite.

Para o rapaz, a diferença de se viver na favela “é que lá sabe-


mos onde estão os bandidos e eles não mexem com as famílias”.
Na Baixada, “não sabemos quem é quem”.
253

Bombeiro de Parada Angélica cria “moeda ambiental”


para acesso a clube, ateliê de artesanato e biblioteca
com três mil livros.

Ingresso
ecológico
Julia Duque Estrada | 02/09/2004
Foto: Walter Mesquita

Na favela de Parada Angélica, em Vila Iraci, Duque de Caxias, na


Baixada Fluminense, as crianças já sabem exatamente o valor
da preservação ambiental. Lá, cair na piscina, soltar pipa, jogar
totó e sinuca são atividades pagas com uma moeda diferente:
unidades de garrafas PET. Cada diversão tem um custo especí-
fico, que os meninos conhecem de cor. A idéia saiu da cabeça do
bombeiro-hidráulico Valmir do Amor Divino Santana, 37 anos,
morador que vem realizando pequenos milagres na comuni-
dade. Entre eles, criar uma biblioteca dentro de um contêiner.

“As crianças e os jovens viviam me pedindo lápis, caderno,


dinheiro para bala ou para sair. Eu ficava triste porque não tinha
como ajudar”, explica o baiano Valmir. Até que veio a idéia de
254 Notícias da Favela

montar um projeto social, ambiental e econômico a partir da


reciclagem.

Para Valmir, usar as garrafas como moeda atinge vários objeti-


vos: ajuda a arrecadar matéria-prima para o projeto, estimula as
crianças a participar e ainda oferece uma alternativa de lazer.

As oficinas de artesanato que usam PET como matéria-prima


acontecem na varanda da casa de Valmir. Os jovens aprendem
a fazer vassouras, porta-retratos, caixinhas, móveis e diversos
utensílios de plástico. As meninas trabalham nos adereços –
arranjo de flores, porta-cartão – e os meninos confeccionam os
móveis. “Eles ficam com a parte bruta”, brinca o baiano. Os pre-
ços dos produtos variam de R$ 5 – uma vassoura – a R$ 250 – um
sofá de dois lugares.

Em outro terreno, três pessoas trabalham na prensagem de gar-


rafas que serão vendidas ou usadas no artesanato. O material
coletado vem de doações, da moeda de troca das crianças ou é
comprado de catadores. “Indiretamente, o projeto envolve toda
a comunidade”, diz Valmir. A venda do material prensado banca
grande parte das ações.

Para colocar seus objetivos em prática, o baiano mobilizou um


grupo de amigos. Eles apostam na reciclagem para ampliar os
horizontes de doze jovens. Já a biblioteca, que começou com
cinqüenta livros achados no lixo por uma catadora analfabeta,
conta hoje com cerca de três mil exemplares. O contêiner deve-
ria abrigar ações de educação ambiental do PDBG (Programa de
Despoluição da Baía de Guanabara), mas, como estava abando-
nado, Valmir resolveu lhe dar um destino melhor.
Os funkeiros não se dividem apenas em lado A e lado B –
seguindo facções do tráfico. Os “soldados da paz” cantam
músicas contra a violência e impedem brigas nos bailes.

O lado C do funk
Anna Carolina Miguel, da Zona Oeste | 16/11/2001
Foto: Walter Mesquita

A violência dos bailes funk não é mais a mesma. Na Zona Oeste


do Rio, ex-integrantes de galeras rivais dos “bondes do mal” são
agora “soldados da paz”. Ao invés de participar das violentas
brigas nos bailes de corredor – em que os jovens se dividem
em “lado A” e “lado B”, conforme a facção do tráfico em suas
comunidades –, eles agora cantam músicas com mensagens do
bem.

As músicas são produzidas em parceria entre MC’s (mestres de


cerimônia) e integrantes das galeras, e divulgadas pelas rádios
comunitárias. Já existem mais de quarenta “bondes do bem”.
Eles formam uma espécie de “lado C” do funk. E fazem o maior
sucesso.

“Na primeira vez, pensamos que seríamos vaiados, pois a galera


parou de pular e ficou ouvindo. Só depois do segundo refrão per-
cebemos a vibração de todos”, diz Rodrigo, 16 anos, do Bonde
dos Napolitanos, com quinze integrantes. Eles acreditam que
as músicas de paz “fazem os jovens refletirem”.
256 Notícias da Favela
Matérias selecionadas 257

Muitos mudaram de discurso ao perceberem que a violência


acaba levando ao fechamento dos bailes, inviabilizando sua única
forma de diversão. “Se não levarmos uma mensagem de basta, até
quando tudo isso continuará?”, pergunta Junior, 15 anos, do Bonde
dos Gatinhos, que já perdeu um amigo numa briga de baile.

R$ 50 por produção

Segundo os MC’s Geléia e Andinho, os integrantes dos “bondes


do mal” só aceitaram mudar de lado depois de muita conversa.
A participação de rádios comunitárias também foi fundamental,
ao abrir espaço para a divulgação das músicas. Os DJ’s comple-
taram o trabalho, ao ajudá-los na produção e divulgação.

“O movimento dos ‘bondes’ cresce aceleradamente. Mas falta


empresário e apoio financeiro, o que é um grande problema para
os jovens talentosos e carentes”, diz o DJ Jorginho Matarazzo,
25 anos, que produz músicas para a galera. Cobra o mínimo por
produção musical – R$ 50.

Cada grupo quer levar o público a se identificar com sua forma


de pensar e agir. O Bonde das Pedritas, por exemplo, formado
por adolescentes, tem ares feministas. E revela um lado das
funkeiras bem diferente das “tchutchucas” do Bonde do Tigrão.
Elas cantam: “Mulher de verdade não aceita ser chamada de
cachorra nem leva tapa de ninguém”.
Trocada por uma garrafa de cachaça, dona Maria
virou escrava numa mansão de Ipanema.
Foi salva por uma prostituta do Cantagalo,
que a levou para morar na favela.

Da mansão ao
morro
Rita de Cássia, do Cantagalo | 13/08/2004
Foto: Deise Lane

Dona Maria Luzia Belizário de Carvalho tinha perto de 83 anos


quando convocou toda a família para o Natal de 2003. Parecia
estar pressentindo que a festa seria o seu derradeiro momento
de alegria. Eu havia conversado com ela meses antes, em
sua casa. Lúcida e bem-humorada, dona Maria me contou os
momentos mais marcantes de sua vida.

Carioca de Pirapitinga, na divisa com Minas Gerais, dona Maria


chegou ao Rio de Janeiro ainda adolescente, depois de ser “ven-
dida” pelo pai, por volta de 1935. Não tinha um tostão no bolso,
nem documento ou certidão (sua idade é estimada com base no
nascimento da filha mais velha – a primeira de seis).

“Meu pai bebia muito e me trocou por uma garrafa de cachaça.


Acho que eu tinha uns dezesseis anos. A casa dos meus pais

258
Matérias selecionadas 259

ficava numa fazenda. A condição de morar ali era trabalhar


para o fazendeiro. É como se a gente devesse um favor eterno
por estar nas suas terras. Nossa rotina era capinar, candiar boi,
plantar arroz, café, feijão. Mas bastava pegar um balde de leite
para o patrão reclamar. Quando eu vim para o Rio, minha mãe
chorou muito. Nessa época, os maridos é que mandavam em
casa. Saí de trem às nove horas da manhã e cheguei às nove
horas da noite. Chorei a viagem inteira”.

Ao chegar, dona Maria foi direto para a mansão dos patrões, na


rua Prudente de Moraes, em Ipanema, na praça General Osó-
rio: “Estava morrendo de fome, mas só me deram um pouco de
comida e, na hora de dormir, me mandaram para o sótão, onde
ficavam os cachorros. Nem banho me ofereceram. Eu era arruma-
deira, passadeira, cozinheira. Trabalhava sozinha. Minha rotina
ia das cinco horas da manhã às onze horas da noite, sem folga
no final de semana. Não recebia nada por isso. Eles diziam que
mandavam o dinheiro para a minha família”.

O encontro com uma mulher, enquanto fazia compras na feira da


praça, mudaria para sempre sua vida: “O apelido dela era Katitu.
Ela morava aqui no Cantagalo. Contei tudo sobre a minha vida,
desabafei”. Revoltada com a história, Katitu convidou Maria
para ser sua hóspede. E ainda bolou um esquema de fuga. “Foi o
tempo de voltar em casa, pegar uma trouxinha de roupa e fugir.
Ela estava lá me esperando e, assim, conheci o Cantagalo, onde
vivi mais de sessenta anos. A favela estava ainda no começo,
se tinha três ou quatro barracos era muito. Fiquei muito feliz
com a mudança. As casas de barro lembravam minha terra e,
como não tinha rádio nem televisão, a distração era a ‘conversa
de porta’. Assim que cheguei, ela foi me apresentando: ‘Estou
trazendo essa menina para criar e não quero que ninguém toque
nela’. Depois de muito tempo, descobri que ela era prostituta,
mas só saía com homem da rua, porque dizia que no morro ela
queria muito respeito”.
260
Matérias selecionadas 261
Mães que não podem pagar babás e vizinhas em busca
de trabalho inventam as creches caseiras. Elas buscam
as crianças no colégio, dão banho, comida e muito carinho.

Minha adorável
babá
Cláudio Pereira, do Complexo da Maré,
e Verônica Fraga, da Redação | 13/12/2002
Foto: Deise Lane

Descobrir com quem deixar os filhos pequenos durante o expe-


diente é um drama para os pais de baixa renda que trabalham
fora. Dinheiro para contratar babá é um sonho impossível. Na
falta de alternativas, as crianças acabam ficando mesmo é
sozinhas. Quando muito, vão para a casa de vizinhos que se ofe-
recem para tomar conta. Nas favelas, porém, não raro a criati-
vidade transforma problema em solução. Assim, o desemprego
de uns gerou uma saída para outros: as creches caseiras.

No Complexo da Maré, na Zona Norte, moradoras resolveram


investir nessa fatia de mercado e estão se oferecendo para tomar
conta dos filhos de mulheres que trabalham fora. As “mães de
aluguel” buscam as crianças no colégio, dão banho, comida
e remédios. Uma tranqüilidade para os pais.

262
Matérias selecionadas 263

“Como trabalho ao lado, me sinto segura. Posso levar frutas e


outras coisas para minha filha durante o dia”, diz a auxiliar admi-
nistrativa Ana Paula da Silva, mãe de Aryane da Silva Cazubá, 4
anos, que passa o dia na creche informal da promotora de ven-
das Eliane Oliveira de Castro. A promotora montou uma pequena
creche em sua casa de dois andares, na Nova Holanda.

Junto com a irmã, Eliane cuida de dez crianças. O dinheiro cobre


as despesas da casa e da filha única Amanda Oliveira Santos de
Castro, 17 anos, que quer ser pediatra e ganhou um computador
e a chance de fazer um curso de inglês.

Já na creche Sossego da Mamãe, criada pela dupla Lígia Fer-


reira e Hosana de Souza, as crianças ficam num apartamento
no andar de cima do prédio onde moram. “Pagamos R$ 200 de
aluguel por mês e cobramos entre R$ 15 e R$ 80, dependendo
do tempo que a criança fica conosco. Ainda tomamos conta de
crianças do prédio, muitas vezes sem cobrar”, conta Lígia.

Lígia e Hosana foram capacitadas pelo projeto Mãe Crecheira, da


prefeitura, que desde 1993 prepara mulheres de comunidades
pobres. Lá, elas aprendem a confeccionar brinquedos pedagógi-
cos e desenvolver atividades educativas.

O trabalho não é novo na comunidade. A mineira Onélia Cardoso


de Souza, 54 anos, passou metade da vida cuidando dos filhos de
outros. Nem sempre recebeu, mas vivia rodeada de crianças. Com
o pagamento comprava apenas o necessário para se alimentar.
Onélia hoje cuida de uma criança abandonada. “A mãe pediu para
que eu ficasse com o menino e nunca mais voltou. Adotei-o como
filho”. Faz parte do ofício.
264 Notícias da Favela
265
Gordura usada na Maré por moradores e comerciantes
está deixando de poluir a baía de Guanabara para ser
reaproveitada por indústria. Iniciativa é de Jossuel de Souza.

Rir sobre o óleo


derramado
Begha Lindemberg, do Complexo da Maré,
e Vilma Homero, da Redação | 26/05/2005
Foto: Deise Lane

O destino da gordura usada em frituras de várias casas e restau-


rantes do Complexo da Maré mudou. Ao invés de simplesmente
despejar o óleo usado no ralo, muitos moradores estão desco-
brindo o benefício de dar um outro fim a esses restos, que agora
vão para as mãos de uma indústria de limpeza. Com isso, todo
mundo sai ganhando.

Além de reduzir os problemas com entupimento de caixas de


esgoto, os moradores ainda recebem alimentos em troca dos
restos de óleo. Por tabela, ganha também a poluída baía de Gua-
nabara, onde todos esses resíduos costumam parar.

“Para o comércio – já contamos com restaurantes que geram


duzentos litros por quinzena –, o retorno será em produtos de
limpeza, como caixas de detergente e panos de chão”, diz Jossuel

266
267
268 Notícias da Favela

Leandro de Souza, um carioca de 31 anos, nascido e criado na


Vila do Pinheiro.

A gordura que sai das casas e restaurantes é recolhida em


recipientes espalhados pela Vila do Pinheiro, Praia de Ramos
e Roquete Pinto e depois armazenada, por enquanto, na casa de
Jossuel. É ali que a empresa – uma intermediária que revende o
material para a fábrica União Fabril – manda buscar as bombonas
todo mês.

Entre a Praia de Ramos e a Vila do Pinheiro, ambas na Maré,


Zona Norte do Rio, duzentas famílias já aderiram. Só no entorno
do Piscinão de Ramos, são quarenta recipientes destinados a
recolher a gordura usada.

É de Jossuel a iniciativa, levada adiante em parceria com a


Associação de Moradores da Praia de Ramos. “Em apenas um
mês, o recolhimento dos restos de óleo gerou quatro empregos
para o pessoal daqui”, anima-se.

A estimativa é de que nas próximas coletas o volume de óleo


chegue a quatro mil litros por mês. Cada litro é vendido a R$ 0,40.
Quando chega à indústria, serve como matéria-prima para a
produção de sabão. O dinheiro será todo dividido: as famílias que
contribuíram vão receber alimentos, a associação de moradores,
material de escritório, e o pessoal da coleta, uma diária de R$ 20.
O que sobrar ficará para Jossuel.

Supervisor de um projeto da Secretaria Estadual de Meio


Ambiente na Maré desde 2004, Jossuel percebeu que o óleo
doméstico era jogado ali direto nos esgotos, provocando entupi-
mento. A idéia de coletar as sobras surgiu quando ele viu alguém
fazendo o mesmo num restaurante no asfalto – onde os pontos
de coleta são disputados por intermediários. Na favela, porém, a
iniciativa ainda é única.

Adeir Laurindo da Silva, 51 anos, que vende frango, peixe e batata


frita, sempre teve uma sobra de gordura enorme: “Eu despejava
num saco e deixava para o lixeiro”. Agora, o que ia para o lixo vai
render produtos de limpeza.
Enquanto antigos moradores da Rocinha brigam
para preservar área reflorestada, outros derrubam
barreiras de cabos de aço para erguer seus barracos.

Só a Rocinha
segura a Rocinha
Carlos Costa, da Rocinha | 04/07/2001
Foto: Nando Dias

Favela é sinônimo de devastação, construções irregulares e


deslizamentos? Nem sempre. Na Rocinha, o plantio de quase
23 mil mudas de espécies da Mata Atlântica semeou um sím-
bolo de resistência contra a degradação ambiental. Batizado de
“Mutirão Reflorestamento”, o projeto começou há cinco anos,
tem apenas 12,5 hectares, mas seus resultados já são visíveis
na encosta do morro Dois Irmãos. Já o projeto “Preservando o
verde do Rio”, que cercou com grossos cabos de aço uma área de
alto risco debruçada sobre o bairro de São Conrado, não obteve
sucesso. Mesmo isolada, a área foi invadida e já conta com
quinze barracos. Prova de que só a Rocinha segura a Rocinha.

Luiz da Graça, 62 anos, coordenador do projeto de refloresta-


mento, conta que o trabalho foi didático. Ensinou aos morado-
res a importância da preservação do solo, das encostas e, acima

269
272 Notícias da Favela

de tudo, da Mata Atlântica, que forma um cinturão em torno da


Rocinha. A iniciativa da Secretaria Municipal de Meio Ambiente
conquistou a comunidade ao contratar mão-de-obra local.

A área tinha o maior índice de acidentes por deslizamentos de


terra da favela. Hoje virou uma espécie de reserva florestal. “Se a
gente não tomar conta, volta toda a destruição”, diz o pernambu-
cano Pedro Celestino Gomes, 73 anos, morador da Rocinha há 52.

Barreira humana

Gomes e seus vizinhos são uma barreira mil vezes mais eficaz
do que as cercas de aço colocadas pela prefeitura na altura da
entrada principal da Rocinha. A barreira abrange a Roupa Suja,
a Dionéia e a Vila Verde – três áreas que sofrem imensa pressão,
mal os técnicos viram as costas.

Na Roupa Suja, já há mais de quinze barracos. Eles “simples-


mente amanhecem” na área. “Nem mesmo as batidas do mar-
telo a gente ouve, nem luz eles colocam para não chamar a
atenção”, diz uma moradora.

Entre os invasores, gente que quer se livrar dos aluguéis, desem-


pregados e jovens recém-casados. “A gente morava aqui mesmo
na Rocinha, com uma tia da minha mulher. Mas, como ela engra-
vidou, a gente tem que ter onde morar”, diz A.C.S., 17 anos. Car-
regador de feiras, ele armou seu barraco com folhas de compen-
sado. Investiu boa parte dos R$ 80 que fatura por semana.

Na Rocinha, onde já existem vinte mil domicílios, as casas são


feitas sem habite-se (documento que atesta a legalidade do imó-
vel), na base da habilidade. O analfabeto José da Silva, 53 anos,
já construiu mais de sessenta casas. Constrói sob encostas e
sobre pedras, precipícios, valas e escadarias. Chega a faturar
R$ 7.000 por mês.
Grupo de teatro da Vila Cruzeiro adapta tragédias do
século XVI para a realidade atual das favelas cariocas.
A disputa entre Capuletos e Montéquios é substituída
pelo conflito entre facções.

Shakespeare
na laje
La Toy Jetson, do Complexo da Penha,
e Tetê Oliveira, da Redação | 29/11/2005
Foto: Rodrigues Moura

As histórias de personagens como Romeu e Julieta, Otelo,


Macbeth e Iago, criados por William Shakespeare no século
XVI, cabem perfeitamente nas favelas cariocas do século XXI.
Basta ver a adaptação da obra do dramaturgo feita pelo Teatro
da Laje, grupo formado por jovens da Vila Cruzeiro, no Com-
plexo da Penha, Zona Norte do Rio. Em 2006, o trabalho deve
chegar às lonas culturais de Vista Alegre e Santa Cruz.

“No cotidiano da comunidade, existem temas com um paralelo


perfeito na dramaturgia de Shakespeare. Esses jovens têm con-
dições como poucos de se aproximar de aspectos da obra dele – o

273
274
Matérias selecionadas 275

bárbaro, o atroz, o sombrio –, que caracterizam seu lado original”,


diz o pernambucano Antônio Veríssimo, coordenador do grupo.

Há ainda um outro paralelo em relação ao teatro de Shakespe-


are, que sofria na época o mesmo preconceito dos bailes funk
atuais, na avaliação de Veríssimo. “Líderes puritanos pediam o
fechamento dos teatros, que eram tidos como antros de tudo
o que não prestava. Shakespeare era a Tati Quebra-Barraco da
época”, compara.

Criado em janeiro de 2003, o Teatro da Laje surgiu a partir das


aulas de artes cênicas de Veríssimo na Escola Municipal Leonor
Coelho Pereira. Apaixonado pela obra do dramaturgo inglês, o
professor contava as histórias de Shakespeare para os alunos.
O interesse dos jovens levou à criação do grupo, que hoje reúne
25 rapazes e moças, entre 12 e 18 anos.

O nome do grupo não é casual: “As lajes celebram uma verda-


deira instituição das favelas, usadas para a integração social
e também para o trabalho”, lembra o professor. Nelas, foram
feitos os primeiros ensaios do Teatro da Laje.

O texto “Montéquios, Capuletos e nós” nasceu da decisão do


grupo de investir em adaptações das tragédias shakespearia-
nas para a realidade da favela. E é fruto de uma visão coletiva
do clássico Romeu e Julieta, segundo a qual a briga entre as
famílias Montéquios e Capuletos é substituída pelo conflito
entre as facções rivais do tráfico.

“Alguns vêem essa obra de Shakesperare como uma love story


sentimentalóide. Outros defendem que é fundamental o seu
aspecto político, de luta pelo poder”, diz o professor, ex-morador
de um bairro da periferia carioca.
Dos anos 40 aos 60, os terreiros viveram
seu auge nas favelas. Concorrência com
evangélicos ajudou a esvaziá-los.

No tempo dos
atabaques
Jaime Gonçalves | 15/03/2005
Foto: Walter Mesquita

Os terreiros espíritas tiveram seu auge nas favelas do Rio entre os


anos 40 e 60. Na década de 70, eles começaram a fechar as portas
nos morros para reabrir em áreas mais isoladas de cidades da Bai-
xada Fluminense. Os que sobraram enfrentam a dura concorrência
dos novos templos evangélicos.

Segundo alguns praticantes da umbanda e do candomblé, a lei


do silêncio, que proibia os batuques religiosos, ajudou a expulsar
alguns desses centros das favelas. A perseguição policial sem-
pre foi um infortúnio para ambas as religiões. “Eles entravam nos
terreiros e, se o caboclo (o responsável) não estivesse, quebra-
vam tudo”, lembra Celita Vieira de Abreu, 67 anos, mais conhecida
como Obassy, umbandista que hoje flerta com o candomblé.

276
Matérias selecionadas 277
278

Moradora da Cidade de Deus, Zona Oeste do Rio, desde 1967,


Obassy deixou a Rocinha, Zona Sul, após o trágico temporal que
pôs abaixo barracos em toda a cidade, em 1966. Passou por
vários alojamentos até se instalar na comunidade, onde acom-
panhou a perseguição sofrida pelos “praticantes” da umbanda e
do candomblé. Segundo Obassy, eles sofriam com a “crueldade”
dos policiais.

Dona de um barracão de umbanda, no Grotão, na Penha, Zona


Norte, herdado do marido, o pai-de-santo João Felipe Filho, Vera
Regina Felipe, 66 anos, também testemunhou a perseguição da
polícia e diz que ela durou até meados da década de 60.

Terreiros famosos

Era o fim da época de ouro, quando terreiros badalados faziam a


cabeça de muita “gente boa”, como conta o compositor e escritor
Nei Lopes: “O de seu Paulino chegou a ser visitado, nos anos 60,
por artistas internacionais”. Segundo Nei, “estrangeiros famo-
sos” visitavam ainda o terreiro de Mãe Adedé, na Leopoldina.
Entre eles, estava a cantora e dançarina americana Josephine
Baker, em 1939, guiada por dona Neuma da Mangueira.

Também célebre foi o terreiro comandado por Vovó Maria Joana


Rezadeira até meados da década de 80, na Serrinha, em Madu-
reira, Zona Norte. Cantora do grupo Jongo da Serrinha e neta da
famosa mãe-de-santo, Dely Chagas lembra que o barracão era
um dos mais procurados. Inclusive por artistas, como a cantora
Clara Nunes.

A saída dos terreiros dos morros começa na década de 70,


segundo Eduardo Moreno, 35 anos – o pai-de-santo Fovo de
Yemanjá. Ele reabriu o terreiro na Penha deixado pelo tio para
a viúva Vera Regina. Fovo é um dos poucos a resistir à prolifera-
ção das igrejas evangélicas.
CASA DO PEDREIRO FRANCISCO GEORGE,
NA CIDADE DE DEUS
Matéria: Meu adorável barraco,
Viva Favela, 04/11/2003
Crédito: Tony Barros
280

CUIDADO COM O VISUAL VIRA ROTINA PARA RAPAZES DO


COMPLEXO DO ALEMÃO, COMO LUCAS DA SILVA DE OLIVEIRA,
QUE INVESTIU NAS TRANCINHAS
Matéria: Vaidade assumida, Complexo do Alemão
Viva Favela, 15/12/2003
Crédito: Rodrigues Moura

LUCY NUNES E A FILHA MÔNICA,MORADORAS DO CARANGUEJO,


NO ALTO DO MORRO PAVÃO-PAVÃOZINHO, ZONA SUL DO RIO DE JANEIRO
Matéria: Os esquecidos no topo
Viva Favela, 16/04/2002
Crédito: Deise Lane
281
282
CARATECA PREMIADA, MORADORA DO MORRO DO ALEMÃO
Ensaio fotográfico, 2002
Crédito: Rodrigues Moura

BAILE FUNK NA CIDADE DE DEUS


Ensaio fotográfico, 2004
Crédito: Tony Barros
284
285

IRMÃS CARREGAM MATERIAL DE CONSTRUÇÃO NO MORRO DO CANTAGALO


Matéria: Elas têm a força
Viva Favela, 03/11/2004
Crédito: Nando Dias

OFICINA DE PERCUSSÃO REALIZADA PELA ONG AFROREGGAE


NO EDUCANDÁRIO SANTO EXPEDITO
Matéria: A esperança silencia
Viva Favela, 18/07/2003
Crédito: Sandra Delgado
286
BAILARINA DO PROJETO
“DANÇANDO PARA NÃO DANÇAR”, NO CANTAGALO
Ensaio fotográfico, 2002
Crédito: Rodrigues Moura

BARRACO NA CIDADE DE DEUS


Ensaio fotográfico Arquitetura, www.fotofavela.com.br, 2003
Crédito: Tony Barros
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GUERRA DE OVOS NA CIDADE DE DEUS.


TODO DIA PRIMEIRO DO ANO, CRIANÇAS E ADOLESCENTES
PARTICIPAM DA BRINCADEIRA NA CDD
Ensaio fotográfico, 2004
Crédito: Tony Barros

ENSAIO FOTOGRÁFICO CABEÇA FEITA, NA CIDADE DE DEUS.


Crédito: Tony Barros, 2004
MULHER OBSERVA PROTESTO DE MORADORES
DA CIDADE DE DEUS CONTRA MORTE DE MOTO TAXISTA
Flagrante, Cidade de Deus, 2002
Crédito: Tony Barros
ÁREA DE RISCO, CIDADE DE DEUS.
SEM TER PRA ONDE IR, FAMÍLIA NÃO ABANDONA O LOCAL
Matéria: A vida por um fio
Viva Favela, 11/03/2002
Crédito: Tony Barros
ESPETÁCULO “DANÇA DAS MARÉS”, REALIZADO PELO CORPO
DE DANÇA DA MARÉ NO SESC TIJUCA (RIO DE JANEIRO)
EM SETEMBRO DE 2002
Ensaio fotográfico Galeria Viva Favela, 04/09/2002
Crédito: Kita Pedroza
FOLIA DE REIS “BRILHANTE ESTRELA DA MANHÔ
COMEMORA O DIA DE SÃO SEBASTIÃO NO MORRO DA FORMIGA
Ensaio fotográfico Galeria Viva Favela, 21/01/2005
Crédito: Rodrigues Moura
DONA MARIA DO NASCIMENTO, MORADORA
DA FAVELA NOVA HOLANDA, NA MARÉ
Ensaio fotográfico, agosto de 2004
Crédito: Deise Lane
FERNANDA OLIVEIRA NÃO É ATRIZ OU MODELO, NÃO TEM
SILICONE NEM FEZ LIPO, MAS CONQUISTOU O COBIÇADO
TÍTULO DE RAINHA DA BATERIA DA MANGUEIRA
Matéria: Rainha de verdade
Viva Favela / Site Beleza Pura, 19/02/2004
Crédito: Deise Lane
SEU ALCIBÍADES, MORADOR DO JACARÉ,
NO RIO DE JANEIRO, AO LADO DO NETO
Ensaio fotográfico, 2004
Crédito: Tony Barros
FAMILIARES DE VÍTIMAS DA CHACINA DA BAIXADA, DURANTE
SEPULTAMENTO NO CEMITÉRIO MUNICIPAL DE QUEIMADOS
Ensaio fotográfico
Viva Favela, Galeria Dor na Baixada, 05/04/2005
Crédito: Walter Mesquita
298
299

COTIDIANO NA CIDADE NOVA, ÁREA DA ROCINHA


Ensaio fotográfico, 2005
Crédito: Nando Dias

COTIDIANO NA ROCINHA
Ensaio fotográfico, 2002
Crédito: Kita Pedroza
300

DURANTE TRÊS MESES, MORADORES DA VILA CAMORIM ACOMPANHARAM A


INSTALAÇÃO DA GRANDE LONA QUE ABRIGARIA O PROJETO CIRCO BAIXADA,
EM QUEIMADOS, NA BAIXADA FLUMINENSE
Ensaio fotográfico, Galeria Viva Favela, 13/02/2003
Crédito: Walter Mesquita
301
MORRO DO CANTAGALO
Ensaio fotográfico Arquitetura da Favela, 2002
Crédito: Deise Lane
COTIDIANO NA ROCINHA
Ensaio fotográfico, 2003
Crédito: Kita Pedroza
304

VISTA DA ROCINHA
Ensaio fotográfico, 2004
Crédito: Nando Dias
305

APÓS MAIS UMA NOITE DE INTENSO TIROTEIO, A ROCINHA FOI ÀS RUAS,


NA MANHÃ DE 09 DE FEVEREIRO DE 2005, PARA PEDIR PAZ
Galeria Viva Favela: Rocinha pede paz, 11/02/2004
Crédito: Kita Pedroza
VILA MIMOSA,
CONHECIDA ZONA DE PROSTITUIÇÃO DO RIO DE JANEIRO
Ensaio fotográfico Mimosas por profissão
Galeria Em Foco, site Beleza Pura, 16/04/2004
Crédito: Sandra Delgado
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PASTOR EVANGÉLICO NO CANTAGALO


Ensaio fotográfico, 2004
Crédito: Tony Barros
309

A FAMÍLIA DINIZ MANTÉM VIVA A TRADIÇÃO DA FOLIA DE REIS


NO MORRO SANTA MARTA, RIO DE JANEIRO
Matéria: Os reis da folia
Viva Favela, 29/01/2003
Crédito: Sandra Delgado
ALTINA GOMES, NA ROCINHA
Matéria: Dignidade em pessoa
Viva Favela, 29/10/2004
Crédito: Nando Dias
311

Anexo 2
As cartas abaixo são uma pequena amostra das milhares de mensagens
recebidas, respondidas e publicadas pelo Viva Favela até dezembro de
2005. Há e-mails de todos os cantos do país e do exterior.
A grafia original foi mantida.

Fala, favela
Li sobre o trabalho de vocês. Achei o máximo. Gostaria de saber
como faço pra levar vocês na favela onde moro, pois lá precisa
de projetos para integrar as jovens. Moro em Parada de Lucas.
Desde já, obrigada. Michelle.

Sei que Vc’s Não vão ler Mesmo, Mas não custa nada Tentar!!!
Meu nome é George da Silva Corrêa Eu fui Criado No Morro
do Tuiuti, mas estou morando em Nova friburgo Eu queria trazer
o viva favela para Friburgo, é uma Cidade pequena Mas com os
Mesmo Problemas Sociais ou “Piores” que o Rio de Janeiro (...)
Eu quero Fazer parte da Família de vc’s, tenho uns amigos que
podem me ajudar a revolucionar... Para vc’s eu sou apenas outro
Idiota querendo fazer parte de alguma coisa mas para as pesso-
as que moram aqui nas favelas vc’s são muito importante.

oi tudo bom ver se vc poder mer ajuda eu e mais dois colegas


quemos abri uma pagina na intenete falando sobre a rocinha
mais agente não sebe com se cadasta. somos tres adolesente

312
Correio virtual 313

pensando no futuro e no cresimento do comunidade. espero sua


opinião muito obrigado ass: alexsandro silva.

queria o email do Dj Nino da matéria donas da festa, sou do


santa marta e estou começando tb como dj e queria entrar em
contato com ele...ok.... thiago firmino.

Trabalho em uma Creche comunitária entre as Comunida-


des de Babilônia e Chapéu Mangueira no Leme. Também sou
residente na Comunidade de Babilônia e sou envolvida com o
movimento comunitária. Temos aqui algumas pessoas que fa-
zem trabalhos artesanais. Gostaria de fazer a divulgação dos
trabalhos no site. Márcia.

(...) sou moradora da Rocinha, aqui na via apia, eu aproveito o


mail de minha amiga eda para fazer esta reclamacoa, nos mora-
dores da estrada da gavea nao temos mais sosegos sao tantas
musicas que ten o dia todo inclusive aquele pagode do barrata
que nos traz sempre as noites sem poder dormi direito e agora
as musicas da radio brisa que é terrivel (...) qual sera a melhor
maneira de podermos dormir? por favor nos ajude tenho ami-
gas que durante os sabados e domingos vao dormir em casa
de parentes Meu nome e carmenzita, doralice, amadeu robson
somos 5 moradores da via apia que pedimos a paz do sono bei-
jos, carmenzita.

po podia ter mas coisar de quem e menino de rua pq eu sei


quem e menino de rua tem mas coisa para vcs fazer???? Eu to
com vomtader de ir para rau nao tem ninguém pra ensentivar???
Esse e meu rercado não tem nho escolar não sei muito escreve
mas sei um pouco....... samuel candido – rj.
314 Notícias da Favela

Do asfalto
Meu nome é Cláudia T. da Silva, estou passando por uma enorme
dificuldade financeira, não consigo mais pagar a escola de meu
filho de 12 anos. Preciso urgênte de uma vaga numa escola pú-
blica perto de minha casa. (...) Estou desesperada. Este mundo
de hoje está um perigo, não consigo de concentrar no trabalho
pensando nele.

Sou empresário e assino a revista viva favela sempre com o in-


tuito de conhecer novas atitudes que possam melhorar o estilo
de vidas dos menos favorecidos. Gostaria de conhecer melhor o
curso de pré vestibular. Tenho como conseguir um bom espaço
fisico na tijuca com as condições necessarias para as aulas. (...).
Robson Mançur.

(...) li suas reportagens sobre a vila alice. tenho 21 anos e sempre


morei em laranjeiras, na rua mario portela. gostaria de ajudar
de alguma forma com a comunidade da vila alice e julio otoni.
passo em frente a vila alice todos os dias, indo para o trabalho,
mas por receio nunca tive a iniciativa de entrar para conhecer.
são comunidades tranquilas? gostaria do contato do bené,
presidente da associação de moradores da julio otoni. muito
obrigado. Renato.

(...) O seu texto serve de prova que existe o financiamento do


tráfico para o baile de Chatuba. E isso me parece ruim, pois é
possível de usar seu texto como justificativa de intervir no baile.
Então, por que você escreveu estas coisas que não beneficiarão
Correio virtual 315

os frequentadores do baile? Eu não entendi sua intenção com o


artigo.1 Rodolfo.

Brasil afora
Sou delegada da delegacia da mulher de Santarém Pará, uma
cidade perdida no meio da amazônia. (...) Gostaria de idéias e
ensinamentos de como ajudar as mulheres que atendo... a se
sustentarem sem o marido agressor, me ajudem. (...) Minha ci-
dade fica próxima a Belem (capital) são só três dias de barco.
márcia rabelo.

Digo: parabéns a vs… Moro na favela Morro do papagaio em Belo


Horizonte-MG Sou cantor de forró e sertanejo Estou pretendendo
montar um equipamento de som no dia das Mães, (…) Para mani-
festação de paz no morro Aqui foi bastante ruim agora está bom
demais (…) sou (RAPATACHO dupla sertaneja com “Tony & Lucia-
no”). E sempre fazemos alegria para o morro (..) Antonio Francisco.

Sou advogada na Colonia Penal Agricola do Paraná e também


professora de ingles, (…) ao ouvir a respeito do projeto do pro-
fessor Venicio Santos na Penitenciária Lemos de Brito fiquei
muito interessada em aplicá-lo aqui na Colonia Penal Agricola.
Kathleen Bueno de Camargo.

1 Resposta da Redação: “Como um dos mais importantes (e polêmicos) espa-


ços de convivência da favela, o baile funk (…) desponta como um tema natu-
ral (…). O fato de o baile ser considerado ilegal pela polícia e ainda assim ser
realizado é uma questão que diz respeito exclusivamente à esfera criminal.
A mídia, alternativa ou não, não pode ser culpada pelos fatos que relata”.
316 Notícias da Favela

Excelente o trabalho desenvolvido pela equipe que, através de


claras e excelentes matérias, nos ajudam a compreender as con-
dições de vida dos habitantes das favelas cariocas, seus dramas
e seus problemas, (...) Waldeban – João Pessoa, Paraíba.

oi estou enviando este e-mail porquer não vego minha irmâo


mais de oito anos ultima vez que eu fiquer sabeno e quer ela
esta em Fotaleza. o nome dela e Rita de cassia silva ela fugiu
da cidade de assaré. meu nome é cicero gomes da silva moro na
cidade de caxias do sul –RS.

… sou de porto alegre e acho esse site muito interessante… (…)


tive uma ideia quando vi o preco do aluguel numa favela... bahh é
muito caro, aqui em poa é muito mais barato... e pensei q a gente
podia fazer um intercambio... aqui não tem essas historias de tra-
ficante invadi casa e pa... aqui o crime não é tao organizado... eu
podia entregar uns corrículos procura lugar pra mora e essas coi-
sas, se vcs tiverem interessados... e agradeco por nos informarem
como esta a situação aí no rio do que eu considero uma guerra
civil, e é ótimo pois é pela otica de quem mora no morro... a gente é
brasileiro e tem q se unir e lutar por um país melhor leandro.

como eo me castro2 ariquemes 11 de abril de 2005 hora 23:15


m. hora de rondonia. Uma pergunta. Qual romo da agência de
voceis. Obrigado gláucio brasilestado de rondônia.

Quero parabenizá-los pelo projeto. Não pelo escopo fashion,


mas pelo resgate da dignidade de uma geração tão suscetível
às tentações do mundo do tráfico. Sou negro, estudante de

2  Possivelmente o leitor queria saber como é fazer uma vasectomia (tema de


matéria do site Beleza Pura).
Correio virtual 317

hotelaria, carioca e moro em São Paulo desde 1987, sei quão


difícil é trilhar uma carreira no Brasil, sobretudo... se tomar-
mos por base o engodo que é a Democracia Racial Brasileira
(...) Urubatan Crespo Fabiano.

EcoPop
Vcs me ensinariam (...) a fazer uma cesta de jornal? Sou do Rio de
Janeiro e moro em uma comunidade carente e vi que nesta arte
poderia estar ganhando uma renda extra. Obrigado, Gláucia.

Frequento o ecopop há algum tempo - e (...) já me interessei por


inúmeros artigos. Mas há um em especial sobre o qual o gostaria
de uma ajuda. Trata-se do Rir sobre o óleo derramado. Foi uma
grande coincidência pois estou estudando a possibilidade de
começar algum projeto do gênero. (...) necessito de informações
técnicas. (...) peço a vocês um canal onde eu possa encontrá-
las. Grato, Vinicius Scofield.

Sou da Comissão de Estudos de Problemas Ambientais da


USP – CEPA. Fiquei admirada com a iniciativa do Sertão do Ca-
rangola – Petrópolis/RJ. (…) gostaria de um (…) contato com os
coordenadores que organizam essa comunidade. Estamos orga-
nizando a III Semana de Meio Ambiente da USP, e será interes-
sante trazer esta iniciativa para a Universidade. Gabriela Otero.

Gostei muito do ecopop e gostaria de iniciar alguns trabalhos


artesanais de garrafas pets reciclaveis junto a minha comuni-
dade. Gostaria de receber orientações, idéias de artesanatos ou
ate mesmo de cursos. Maria do Carmo.
318 Notícias da Favela

oi adorei lê os artigos da ECO POP e estou com um monte de


projetos para realizar no meu bairro, que se chama Viila Casca-
vél em São Luis –MA beijos, NILRA.

Beleza Pura
(...) acho que estou grávida (...). Tive relação com o meu namo-
rado e acho que a camisinha furou fazem 17 dias que minha
menstruação não vem estou desesperada, o meu namorado ele
está muito contente mais eu não quero ainda... amigas minha
me deram dicas de chás não sei se isso adianta... por favor me
diga um chá ou remédio que faça eu tirar se eu estiver por favor
sei que no caso não querer me ajudar mais eu preciso muito...
Atenciosamente, M.

Adorei o site de vcs. as matérias são muito bem escritas e ex-


plicativas, moro no sul e por aqui o hip hop não é muito reco-
nhecido, somos tidos como marginais e sapatões. acredite ou
não, é assim mesmo, gostaria de mais dicas de roupas, cabelo
e dança. Sandra.

Sou empregada doméstica em ipanema e gostaria de saber maio-


res informações sobre o curso de cabeleireiro. obrigada, cristina.

Gostaria de obter informações de que forma posso entrar em


contato com vcs formalmente, tenho 2 filhas 11 e 9 anos, que
modesta parte são lindas (mestiças) beleza pura... tenho inte-
resse em cursos de modelos para elas. Grato, Aldemir Sousa.
Correio virtual 319

Minha namorada toma anticoncepcional há 2 anos e há duas


semanas atrás, tivemos relação sexual quando ela estava
no período fértil. Mesmo ela tomando a pílula, tem perigo de
engravidar? Denis.

Como é que faço o alisamento com pente, e se eu tomar chuva


o cabelo continua liso. Dura quando tempo e como o cabelo fica
depois que o alisamento acaba? Jessika.

Amei o site de vcs. (…) gostaria de saber se tem como enviarem


pra mim revistas de unhas decoradas passo a passo. (…) moro
no japão e é dificil se comunicar (…) vcs poderiam ver (…) o preço
(…). Se possivel mandem e-mail (…) Gilda.

Favela Tem
Memória
Sou carioca e advogado e estou fazendo uma tese em Paris sobre
a história das favelas no Rio de Janeiro, analisando a evolução
da legislação urbana no decorrer do século XX. (…) Acompanho
durante mais de dois anos as matérias do Viva favela. Elas são
ricas em informações sem cair em um discurso muito acadêmico
(e, consequentemente, chato!!). Rafael Gonçalves.

Gostaria de falar do nome de origem de (…) Nova Brasília.


A Favela (…) surgiu na década de 60, logo após a fundação de
Brasília, como muitas pessoas (…) afluiam para Brasília, as-
sim também acontecia com aquele imenso descampado de
320 Notícias da Favela

Bonsucesso (…) gente em busca de emprego no Rio começou a


comprar terrenos, vendidos muito baratos, por ser uma fazen-
da desapropriada (…) meu pai ajudou a vender os terrenos (…),
como pagamento ganhou um terreno também, isso em 1969,
quando nos mudamos para lá. No amanhecer era a coisa mais
maravilhosa do mundo (…). Alex Souza – RJ.

Sou estudante do 3º ano do ensino médio,e estamos produzin-


do um livro sobre a ditadura militar (…). Adorei descobrir esse
site,e gostaria de abordar mais em nosso livro a participação da
favela nesse período, o que quase não é citado nos livros didáti-
cos comuns. (…) Carolina Perini.

Olá organizadores do favelário. Adorei o fato de pessoas tão céle-


bres estarem interessadas na origem dos nomes das favelas. Sou
moradora do Riachuelo, ao lado do Jacaré/Jacarezinho, e gostaria
muito de saber a origem do nome desta comunidade. Elizabeth.

(…) estou terminando o curso de História. Escolhi como tema de


monografia: “Surgimento das favelas no RJ” e gostaria de saber
se vocês possuem alguma fonte (…) Luiz Ivan – RJ.

Clique Seu
Direito
Gostaria de obter algumas informações de vcs. Voltei da licença-
maternidade e a minha patroa demitiu-me, gostaria de saber
quais direitos que tenho, se tenho direito a seguro-desemprego,
Correio virtual 321

indenização pelo período de amamentação, pois meu bebê está


com 4 meses (...)

Cambito
Sou viciada, mas hoje comecei a pensar se realmente vale a
pena. Gostaria da sua ajuda se puder. Adorei o site e falarei para
meus amigos que usam comigo. Obrigada por ter me ajudado. O.

gostei muito do que vcs mandaro para mim eu moro no morro


do complexo do alemão manda para o meu e-mail uma papel de
parede para mim coloca no meu coputado valeu galera do viva
favela kinho luis henrique.

Olha, esse site me emocionou mto, por ter partes em que me veio
na kbeça...que eu já vivi isso...eu já presenciei a dor, a fome, a
pobreza... Chorei na primeira visita...foi muito emocionante pra
mim! espero q com a ajuda d vcs... esse país mude, que tenha
justiça... Boa Sorte, Yasmin.

(...) parabéns, eu moro na periferia de são paulo em um dos bai-


ros mais violento daqui eu sou um dos poucos que tem aseso a
imternete emtre os meus amigos queria que todos comhesese
o cambito mais de algum jeito vou mostrar a todos espero que
voçeis alcamsem o obegetivo, eder paulo.
322 Notícias da Favela

Mundo afora
Daqui do Haiti aprecio o trabalho de vocês, e digo não por ser
minha namorada, mais a Fabiane Baptista Moreira é a melhor
modelo que passou até agora nesse site, opinião de todo Gru-
pamento Operativo de Fuzileiros Navais do Haiti, Missão De Paz
(MINUSTAH), Marinha do Brasil!!!!! Carlos Eduardo da Silva.

Estudio en el Instituto Tecnológico y de Estudios Superiores de


Monterrey Campus Querétaro en México. Estoy tomando la clase
de Comunicación Internacional y estamos haciendo un estudio
sobre la comunicación y la sociedad de Brasil. Me agrado mu-
cho la página do Viva Favela (…) muy interesante para presentar
como ejemplo en mi exposición.3 Tzitzi Marsch :)

Saludos desde Chile, muy interesante su proyecto. Quiero pedir-


les ayuda para construir um saxofón de pvc, agradeceré si me
envían las medidas (...).4 Nilo Diaz.

(…) eu me encontro em Africa em particular em Angola.Varias


veses que tento entrar encontacto com a Viva Favela, no senti-
do de sabar preços de alguns produtos (…) queiram receber os
meus cumprimentos. Sds., Joao Manuel.

3 Estudo no Instituto Tecnológico de Estudos Superiores (…), no México. Estou cur-


sando Comunicação Internacional e estamos fazendo um estudo sobre a comunica-
ção e a sociedade brasileiras. Agradou-me muito a página do Viva Favela (…) muito
interessante para apresentar como exemplo em minha apresentação.

4 Saudações do Chile, muito interessante o seu projeto. Quero pedir-lhes ajuda


para construir um saxofone de pvc, agradecerei se me enviarem as medidas.
Correio virtual 323

Acabei de ler a matéria Capitães da Água e fiquei muito como-


vida com a história desses meninos, principalmente com a do
Serginho. Gostaria de contactar a canadense que os achou e
ver se posso ajudar (…). Eu trabalho na Universidade de Stan-
ford, Califórnia, onde fica um dos melhores hospitais infantis
do mundo. Não acho que seria impossível (…) conseguir um
tratamento para ele por aqui. (…) Claudia Baroni (Geophysics
Department Administrator School of Earth Sciences, Stanford
University).

Ecopop is a truly admirable project. My huge respect to all of


you and your work. (...). Therefore an english language section
would be very appreciated.5 simon roth.

5 O EcoPop é um projeto realmente admirável. Meu grande respeito a todos vocês


e ao seu trabalho. Uma seção em inglês seria muito bem-vinda.
324
325
Todos no
mesmo barco
Centro do Rio, meio-dia. Milhares de pessoas vestidas de branco
fazem dois minutos de silêncio para pedir paz diante da igreja da
Candelária – exatamente onde oito meninos de rua foram assas-
sinados cinco meses antes. A manifestação aconteceu no dia 17
de dezembro de 1993, ano marcado ainda pela chacina de 21
pessoas em Vigário Geral. E pontuou o nascimento do Viva Rio.

O clima na cidade era de tensão. A mobilização era o primeiro


passo para reagir à violência, na avaliação dos organizadores
do ato. Entre eles, estava o antropólogo Rubem César Fernandes,
PhD em história do pensamento social pela Universidade de
Columbia, nos Estados Unidos, que se tornaria um dos fundado-
res do Viva Rio e seu futuro diretor-executivo.

Rubem César começou a se envolver com a questão da violência


ainda em 1991, quando foi criado no Iser um setor de estudos
em torno do tema. “Todo mundo se interessou: Luiz Eduardo
Soares, Bárbara Soares, Jaqueline Muniz..”., conta o antropó-
logo, lembrando que, na época, o assunto ainda era considerado
“coisa de polícia”.

326
Anexo 3 327

O grupo que organizaria a manifestação na Candelária começara


a se reunir em setembro, num encontro articulado por Betinho.
Rubem César recebeu um telefonema do sociólogo convocando
para o encontro e avisando que estariam presentes Kiko Brito,
João Roberto Marinho e Walter Mattos, representantes do Jornal
do Brasil, O Globo e O Dia respectivamente. Na hora, ele pensou:
“Isso não existe, que reunião mais esquisita. Nunca tinha visto os
três juntos em alguma coisa. Só viviam numa competição braba..”.

A iniciativa partira de Walter Mattos, hoje presidente do jornal


Lance!. “Ele já vinha preocupado com o assunto e começou a
fazer uma campanha no O Dia. Até que percebeu que o assunto
não era só com eles, era grande demais. Como estava a onda
da campanha da fome, em vez de ligar para o general, o Walter
ligou para o Betinho”, conta Rubem César.

O primeiro encontro, segundo o antropólogo, “já tinha esse mix”


que o Viva Rio viria a representar: “Tinha o pessoal da CUT, tinha
empresário, tinha seqüestrado, tinha o pessoal de mídia…” Assim,
a ONG já nasceu produzindo uma comunicação entre grupos que,
em princípio, não estariam juntos. O foco era a violência, mas
também se discutia geração de empregos, desenvolvimento, for-
mas de sair da crise econômica regional.

Pouco tempo depois de montar a tal reunião, da qual participaram


cerca de quarenta pessoas, Betinho começou a se afastar. O soci-
ólogo não gostava do tema, segundo Rubem César – que, a essa
altura, já estava na coordenação do movimento. A primeira mani-
festação depois do lançamento foi uma campanha de mobilização
em favor da indústria naval – a Naviata. “Marcou um estilo. Ao invés
de fechar a ponte Rio-Niterói e atrapalhar a vida de todo mundo, a
gente levou um monte de barcos para a baía de Guanabara”.

O movimento mais forte em direção às favelas, porém, só viria


em 1995, com o Reage Rio. Ali, criou-se a polêmica: Reage Rio
ou “Reage Rico”? A provocação nascera com Caio Ferraz, que,
na época, trabalhava na Casa da Paz em Vigário Geral, projeto
associado ao Viva Rio, e questionava a manifestação.
328 Notícias da Favela

O Reage Rio, segundo Rubem César, tinha por objetivo “reagir


à violência”. A palavra de ordem surgira no conselho da ONG,
durante a discussão sobre o seqüestro do filho de Eduardo
Eugênio Gouvêa Vieira, presidente da Firjan e conselheiro do
Viva Rio. Além dele, outras duas pessoas foram seqüestradas
no Rio no mesmo dia. Isso num momento em que havia um clima
de otimismo na cidade.

Rubem César conta que Marcelo Alencar tomara posse como gover-
nador do estado e Fernando Henrique Cardoso assumira a presidên-
cia – e fizera sua primeira visita à cidade a convite do Viva Rio.“Plano
Real, inflação acabando. Havia uma crença de que finalmente o
Rio iria encontrar seu eixo”. Até que veio a onda de seqüestros.

Durante dois meses, o movimento Reage Rio dominou a mídia.


O slogan era “um milhão por um bilhão”. A idéia era conseguir
um milhão de pessoas na rua para conseguir um bilhão de reais
para investir em segurança no Rio. “Fomos a Brasília e Fernando
Henrique gostou da idéia e disse: ‘Um bilhão do orçamento não
dá. Mas, se vocês identificarem os projetos e várias fontes, de
repente faz um bilhão’.”

De volta ao Rio, os representantes do movimento foram de secre-


taria em secretaria, no governo do estado, procurar projetos que
já existissem. “Não dava para inventar um projeto de um bilhão
em um mês”, lembra Rubem César.

Quem não gostou nem um pouco da idéia foi o governador Mar-


celo Alencar: “Ele se sentiu totalmente invadido no seu espaço
pelo movimento. E proibiu as secretarias de nos receber, dizendo
que não precisava da gente para levantar recursos para seus
projetos. Aí o movimento ficou num impasse, porque tinha um
milhão, mas não tinha um bilhão porque não tinha os projetos.
E mudou de natureza. Tinha gente feliz porque podia meter
o pau. E o que era uma coisa pró-ativa vira uma coisa de pro-
testo. Começa também essa discussão se é Reage Rio ou ‘Reage
Rico’. E a gente vai para as lideranças das favelas. Tivemos três
plenárias na Faferj, salas lotadas... Nosso argumento era que a
Anexo 3 329

violência afeta todo mundo, sobretudo os mais pobres. Então,


tem de reagir de forma geral. Afinal, a favela veio e foi ela quem
de fato fez a marcha. Deu umas trezentas mil pessoas. Nesse
debate, a gente meio que definiu: vamos cair dentro das favelas.
Essa é a questão. Do movimento, saiu essa idéia. E começamos a
trabalhar nessa direção”. Como já vimos, dessa reunião na Faferj
também sairia a negociação que geraria o Viva Favela.

Mais de dez anos depois de sua criação, o Viva Rio continua a ter
uma imagem controvertida junto à sociedade. Os motivos para isso
são vários, acredita Rubem César. Um dos principais é o fato de a
ONG aparecer como “uma ruptura em termos de estilo de movi-
mento social, porque não faz protesto, não denuncia e não acusa”.

Rubem César explica melhor: “De certa maneira, o Viva Rio não
faz escolha, não está de lado nenhum. Está do lado da imprensa.
Na Naviata, o slogan era: ‘estamos todos no mesmo barco’.
Esse conceito é muito bom para mobilizar ações de consenso.
Mas não é bom para canalizar a raiva, o sentimento de injustiça,
porque esses sentimentos se expressam na divisão, no confronto.
O Viva Rio não acusa ninguém. Isso é uma estratégia, uma esco-
lha. A combinação é muita onda de um lado e muito pragmatismo
do outro. Mas você paga o preço de não conseguir expressar
indignação. Betinho era um que expressava indignação. Ele tinha
essa liberdade – saía da cama e esculhambava todo mundo.
Tinha uma áurea de vítima que protesta que o Viva Rio não tem, o
Viva Rio não é vítima”, diz Rubem César, coberto de razão.

Na verdade, a ONG, admite o antropólogo, tem aliados podero-


sos. O que acaba por favorecer quem se alia a ela. “O bom de
estar no Viva Rio é que, de repente, você está num contexto de
muitos projetos que já estão funcionando”.

O Viva Rio conseguiu realmente criar uma vasta rede de projetos


em parceria com entidades locais. Hoje está presente em cerca
de 350 favelas e comunidades de baixa renda da Região Metro-
politana do Rio. O foco principal das atividades são os jovens
330 Notícias da Favela

“mais vulneráveis aos riscos sociais” e a “busca da superação


da violência”.

Autodefinido como uma “organização não-governamental sem


fins lucrativos e apartidária”, o Viva Rio desenvolve campanhas
de paz e projetos sociais. Todas as ações se integram no con-
ceito de segurança humana, em três áreas: segurança pública
e direitos humanos, inclusão social e comunicação. Em 2006,
a ONG atuou em 82 municípios do estado do Rio. Nas ações
internacionais, já atuou em 12 países, com assessoria, treina-
mento, desenvolvimento de pesquisa e participação em semi-
nários. Ambas as redes – local e internacional – favoreciam o
Viva Favela ampliando a sua visibilidade.
331

Referências
bibliográficas
ABRAMO, Cláudio. A regra do jogo. O jornalismo e a ética do marceneiro.
São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

FILHO, Aziz & ALVES FILHO, Francisco. Paraíso armado, interpretações da


violência no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garçoni, 2003.

NOVAES, Regina & CUNHA, Marilena (eds.). O Galo e o Pavão.


Em: Cadernos de Comunicações do Iser. Rio de Janeiro:
Instituto de Estudos da Religião, 2003.

NOVAES, Regina, CUNHA, Marilena & VITAL, Christina (eds.). A Memória das
Favelas. Em: Cadernos de Comunicações do Iser. Rio de Janeiro:
Instituto de Estudos da Religião, 2004.

SOUZA E SILVA, Jailson de & BARBOSA, Jorge Luiz. Favela, alegria e dor na
cidade. Rio de Janeiro: Senac Rio, 2005.

STROZENBERG, Ilana (coord.). Pesquisa sobre o projeto Viva Favela.


Rio de Janeiro: Laboratório de Jornalismo, Antropologia e História
Oral da Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, 2004.

ZALUAR, Alba & ALVITO, Marcos (orgs.). Um século de favela. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 2003.

331
Sobre
a autora
Cristiane Ramalho é jornalista desde 1989. Como bolsista do
Britsh Council, fez mestrado em relações internacionais na
Universidade de Birmingham, na Inglaterra. Trabalhou no Jor-
nal do Brasil, Folha de São Paulo, revistas Manchete e IstoÉ e o
site No. Em 2001, ingressou no Viva Favela – experiência ímpar
pelo contato com a realidade popular. Em 2006, após produzir
documentário nas comunidades Chapéu Mangueira e Babilô-
nia, mudou-se para Berlim, onde vive com o marido e a filha.
Na Alemanha, é colaboradora da Globo News, entre outras
mídias.Sempre carioca, a autora adora praia, MPB e feijoada.
Foto: Sven Hilbig
Este livro foi composto em Akkurat.
Os papéis utilizados para o miolo foram o Pólen Bold 90g/m2 para
o texto e couche matte 90 g/m2 para o caderno colorido. O papel
da capa é o Supremo Alta Alvura 250 g/m2.

A impressão e o acabamento foram feitos pela gráfica


Imprinta Express LTDA. em novembro de 2007, no Rio de Janeiro.

Todos os recursos foram empenhados para identificar e obter as


autorizações dos fotógrafos e seus retratados. Qualquer falha
nesta obtenção terá ocorrido por total desinformação ou por erro
de identificação do próprio contato. A editora está à disposição
para corrigir e conceder os créditos aos verdadeiros titulares.

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