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de Albert Camus
Resumo: O artigo visa aproveitar-se da relação Abstract: The paper intends to take advantage of
entre o Direito e a Literatura para realizar uma the academic interaction between Law and
análise da obra “O Estrangeiro”, de Albert Camus. Literature to analyze Albert Camus’ novel The
Tem como intenção levantar questionamentos éti- Stranger. Within its aims is the discussion of ethical
cos pertinentes ao Direito por meio da narrativa alternatives relevant to the study of Law and the
camusiana. Busca analisar as proposições morais analysis of the workings of Camus’ absurd justice.
trazidas pelo romance. Pretende também tecer crí- It also intends to demonstrate Camus’ critics to
ticas ao funcionamento da justiça e à característi- Law as an oppressive and excludent institution.
ca opressora desta instituição social. Keywords: Law; Literature; Theory of Law;
Palavras-chave: Direito; Literatura; Teoria do Ethics.
Direito; Ética.
Introdução
“A obra de arte não é um instrumento cuja existência é manifesta e cujo o fim é
indeterminado: ela se apresenta como uma tarefa a cumprir, coloca-se de imediato
ao nível do imperativo categórico. Você é perfeitamente livre para deixar este livro
sobre a mesa. Mas uma vez que o abra, você assume responsabilidade.”
*
Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da UFSC. Mestre e Doutor em
Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Líder do grupo de pesquisa (Cnpq) “Direito e
literatura”.
**
Acadêmica da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista do
PIBIC/UFSC. Membro do grupo de pesquisa (Cnpq) “Direito e literatura”.
1
SARTRE, Jean Paul. O que é a literatura? São Paulo: Ática, 2006, p.c41.
5
CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 7.
6
“Há casamentos absurdos, desafios, rancores, silêncios, guerras e até acordos de paz. Para cada um
deles, a absurdidade nasce de uma comparação. Tenho base, portanto, para dizer que o sentimento da
absurdidade não nasce do simples exame de um fato ou impressão mas que ele brota da comparação
entre um estado de fato e uma certa realidade, entre uma ação e o mundo que a ultrapassa. O absurdo
é essencialmente um divórcio. Não está nem num nem noutro dos elementos comparados: nasce de sua
confrontação“. CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989, p.c48-49.
7
“Ao acreditar em Homero, Sísifo era o mais ajuizado e mais prudente dos mortais. No entanto,
segundo outra tradição, tinha tendências para a profissão de bandido. Não vejo nisto a menor contra-
dição. As opiniões diferem sobre os motivos que lhe valeram ser trabalhador inútil dos infernos“.
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989, p. 141.
8
Idem, p. 49
9
Idem, p. 50.
10
SARTRE, Jean Paul. Introdução. In: CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Trad. Rogério Fernandes.
Lisboa: Livros do Brasil, p. 12.
11
“A corrida, os solavancos, o cheiro de gasolina, a luminosidade da estrada e do céu, responsáveis por
fazê-lo adormecer“ (p. 8); o “esforço de duas horas de viagem o impediam de visitar a mãe enquanto
viva“ (p. 9); os “estímulos sonoros e as luzes na sala do velório de sua mãe“ (p. 11), o “brilho branco
da sala do velório o atordoavam“ (p. 13); “o sino e o sol que o distraem“ (p. 16); “o sol deprimia a
cidade“ (p. 19); “brilho insuportável do sol“ (p. 20); as “lembranças visuais das pessoas, enterro,
vozes, caixão, terra, raízes e a alegria de voltar para Argel e dormir doze horas“ (p. 21). CAMUS,
Albert. O Estrangeiro. Rio de Janeiro: Record, 2006.
12
Idem. SARTRE, Jean Paul. Introdução. In: CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Trad. Rogério
Fernandes. Lisboa: Livros do Brasil.
13
BROMBERT, Victor. Camus and the novel of the “absurd”. Yale French Studies,n. 1,
Existencialism. 1948, p. 119-123.
14
CAMUS, Albert. O mito de sísifo. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989, p. 85.
15
PEPE, Albano Marcos Bastos. Estranhamento, liberdade, a ética kantiana e o direito. Direito
e psicanálise: interseções a partir de “O Estrangeiro” de Albert Camus. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,
2006, p. 30.
16
Idem, p. 30.
“O absurdo não liberta: liga. Não autoriza todos os atos. Tudo é permitido não
significa que nada é proibido. O absurdo apenas devolve às conseqüências de
seus atos a equivalência delas. Ele não recomenda o crime. Seria pueril, mas
restitui ao remorso sua inutilidade”. (O mito de Sísifo, p.86)
17
“O meio que a natureza utiliza para levar a bom termo o desenvolvimento de todas as suas
disposições é o seu antagonismo no interior da sociedade, na medida em que este é, no entanto, no
final de contas, a causa de uma organização regular dessa sociedade. Entendo aqui por antagonismo a
insociável sociabilidade dos homens, ou seja, a sua inclinação para entrar em sociedade, inclinação que
é contudo acompanhada de uma repulsa geral a entrar em sociedade, que ameaça constantemente
desagregá-la“. KANT, Emmanuel. Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmo-
polita,1986, p. 13.
18
Idem. PEPE, Albano Marcos Bastos. Estranhamento, liberdade, a ética kantiana e o direito.
Direito e psicanálise: interseções a partir de “O Estrangeiro” de Albert Camus. Rio de Janeiro: Lúmen
Júris, 2006, p. 30.
19
VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. 18. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
20
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989, p. 86.
21
CAMUS, Albert. O homem revoltado. Lisboa: Livros do Brasil, p. 383.
22
Idem, p. 384.
23
RACHELS, James. Elementos da filosofia moral. São Paulo: Manole, 2006, p. 130.
24
“Se alguém está ciente de que agiu de acordo com a sua consciência, então, na medida em que está
envolvida a culpa ou a inocência nada mais pode ser exigido deste alguém; é sua incumbência somente
iluminar seu entendimento no que diz respeito ao que diz respeito ao que é ou não é dever; mas quando
atinge, ou atingiu um feito, a consciência se pronuncia de modo involuntário e inevitável”. KANT,
Emmanuel. Metafísica dos costumes. Introdução à doutrina da virtude. São Paulo: Edipro, 2003, p.
243-244.
25
KANT, Emmanuel. On a supposed right to lie from altruistic motives.
26
CAMUS, Albert. O homem revoltado. Lisboa: Livros do Brasil, p. 386.
27
Idem, p. 401.
28
“A Peste, comparada a O Estrangeiro, marca sem discussão possível, a passagem de uma atitude de
revolta solitária ao reconhecimento de uma comunidade de cujas lutas é imperativo tomar parte. Se há
evolução do Estrangeiro à Peste, ela se deu no sentido da solidariedade e da participação“. CAMUS,
Albert. Carta de Albert Camus a Roland Barthes. Disponível em:
<www.cadernosdecamus.blogspot.com>. Acesso em: 28 mar. 2008.
29
GOSS, James. Camus, God, and process thought. Disponível em: < http://www.religion-online.org/
showarticle.asp?title=2375>. Acesso em: 28 mar.2008.
3 O Julgamento
O romance O Estrangeiro é dividido em duas partes bem distintas. A primei-
ra parte familiariza o leitor com o personagem principal e o aproxima de sua lógica;
é por ela que Camus fornece ao leitor uma base referencial para que venha a julgar
seu personagem na segunda parte do livro. Após os cinco tiros deferidos contra o
árabe, Mersault encontra-se na prisão, no aguardo de seu julgamento.
Os fatos que se seguem são denunciadores de uma justiça teatral e
descomprometida com os fatos, evidenciando a crítica de Camus ao absurdo
institucional da sociedade. Ao descrever o funcionamento da justiça no decorrer do
processo de Mersault, Camus mostra como as instituições sociais, criadas com o
intuito de buscar a verdade e a justiça, tornaram-se, na verdade, obscuras e contra-
ditórias com o desejo humano por clareza – tornaram-se uma parte não-humana do
30
É interessante notar a forma semântica do nome Mersault, que em francês pode ser entendido como
uma composição de mar e sal, demonstrando a própria formação do personagem. CAMUS, Albert. A
morte feliz. Rio de Janeiro: Record, 1971. Nota 1, p. 128.
31
WEIL, Pierre. A nova ética. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993.
32
HALL, Gaston H. Aspects of the absurd. Yale French Studies. n. 25. Albert Camus,
1960, p. 28.
33
Em seu livro postumamente publicado, A morte feliz, Camus narra a história de Patrice Mersault,
por muitos visto como um embrião do Mersault de O Estrangeiro. Na comparação das duas obras, no
entanto, vemos a influência deste absurdo do acaso no destino dos dois personagens. Enquanto
Patrice Mersault beneficiou-se com um assassinato perfeito, seu seguidor Mersault virou presa dos
juízes e foi condenado à morte. CAMUS, Albert. A morte feliz. Rio de Janeiro: Record, 1971.
Gênese, p. 17.
34
CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 69.
35
Idem, p. 74.
36
Idem, p. 73.
“Há crimes de paixão e crimes de lógica. Com uma certa dose de comodidade,
distingue-os o Código Penal, pela premeditação. Vivemos no tempo da premedi-
tação e do crime perfeito. Os nossos criminosos já não são aquelas crianças que
invocavam o amor como desculpa. Hoje, pelo contrário, são adultos, e o seu
álibi irrefutável é a filosofia que pode servir para tudo, até para transformar os
assassinos em juízes”. (O homem revoltado, p.11)
Em O Estrangeiro, o réu foi julgado por suas inclinações, pelo seu modo de
viver e pensar. A despreocupação total da Justiça com o fato ofensivo que deu
origem ao processo nos remete à tese do Direito Penal do Autor ou do Inimigo. A
tese de Günter Jakobs, divulgada primeiramente em 1985, defende ser inimigo do
Estado quem se afasta de modo permanente do Direito e não oferece garantias
cognitivas de que vai continuar fiel à norma. Quem não oferece segurança cognitiva
suficiente de um comportamento pessoal não só não deve esperar ser tratado como
pessoa, senão que o Estado não deve tratá-lo como pessoa (pois do contrário
vulneraria o direito à segurança dos demais).39
A Justiça vê Mersault sob a perspectiva de sua ética espontânea acima des-
crita. Seu modo de pensar é incompatível com o social, pois o permite realizar con-
dutas antijurídicas, além de não ser afetado pela ameaça de prisão. Mersault res-
ponde a outra lógica, a de sua própria ética, e não é afetado por valores ou punições
37
Idem, p. 73.
38
Idem, p.100.
39
GOMES, Luis Flávio. Direito penal do inimigo.Disponível em:
<www.revistajuridicaunicoc.com.br/midia/arquivos/ArquivoID_47.pdf>. Acesso em: 28 mar. 2008.
40
CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 69.
41
Idem. O homem revoltado. Lisboa: Livros do Brasil, p. 385.
42
GOMES, Luis Flávio. Direito penal do inimigo. Disponível em:
<www.revistajuridicaunicoc.com.br/midia/arquivos/ArquivoID_47.pdf>. Acesso em: 28 de mar. 2008
43
CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 106.
44
Idem, p. 105.
Conclusão
A obra de Camus é de análise fértil, pois possui grande potencial questionador.
Ao propor uma visão de mundo inovadora, a obra de Camus provoca questionamentos
fundamentais quanto à natureza do homem, em relação à sociedade e também ao
Direito. A grande riqueza da obra de Camus está exatamente em sua capacidade de
aproximar o leitor, por meio de ficções, às grandes questões existenciais e morais do
ser humano.
A crítica à relatividade da ética humana, justificadora de guerras e horrores,
busca em Camus uma saída alternativa. Embora não-conclusivo por si só, Camus
apresenta um resgate à ordem da natureza em um sentimento de contemplação da
beleza como fonte de medida e equilibro para o homem. A negligência à história é
substituída pela busca de um amor à racionalidade, à revolta humana e à busca pela
verdade. A tentativa de Camus de aproximar estes elementos a uma formação
moral do homem é de grande valia na busca de uma solução ética. O papel da
literatura nesta busca ética encontra-se exatamente na junção entre o individual e
as palavras usadas para nomear o mundo social. Reside aí a relação entre o texto,
visão interior, e o contexto, visão social.47 A teoria de que uma construção ética
depende dialeticamente da relação entre um moralismo estático e a ética espontâ-
nea, defendida na Dialética do envelopamento, de Gaston Bachelard, pode ser
vista na obra de Camus. A compreensão das diferenças entre os elementos éticos,
Ethos e Éthos, ação e contemplação, coletivo e individual, nos permite tecer julga-
mentos razoáveis acerca da ética. Neste sentido, Bachelard defende que a
racionalidade e a intuição poética são duas faces de uma mesma realidade ética.
Em O Estrangeiro, Camus também denuncia a fragilidade do julgamento
humano. Ao criar uma cumplicidade entre o leitor e Mersault, na primeira parte do
livro, ele consegue fazer com que o leitor simpatize com o grande assassino de sua
história. Em seu julgamento não se sabe mais quem é culpado e quem é inocente. O
45
Idem, p. 88.
46
Idem, p. 102.
47
TAYLOR, Paul. Ética universal e a noção de valor. São Paulo: Mimeo, 2000.
48
CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 95.