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OS MECANISMOS RELACIONAIS

Eduardo Marques

Em um sentido abstrato, a discussão sobre derá-los, como no caso dos fenômenos econômi-
mecanismos relacionais confunde-se com a própria cos, por exemplo (Granovetter, 1985). Concre-
análise da política, visto que o poder tem uma tamente, essa análise reproduz, por meio de repre-
natureza intrinsecamente relacional. Entretanto, a sentações gráficas e matemáticas, os contextos
maior parte das linhas de análise da política his- relacionais dos mais variados tipos, onde se in-
toricamente buscou elementos explicativos loca- serem os atores sociais. Nas análises desse tipo,
lizados em duas escalas opostas de abstração – de pessoas, grupos, organizações e entidades são re-
um lado, nas estruturas e nos sistemas sociais e, presentadas como nós, e as relações, como víncu-
do outro, nos indivíduos e nos processos de los de vários tipos. Os vínculos podem ser materi-
decisão individual –, mesmo que pensadas estrate- ais e imateriais, apresentar conteúdos múltiplos e
gicamente. Apesar disso, a maioria dessas análises usualmente são pensados como em constante
incluiu e levou em conta as relações, embora de transformação. Na verdade, tais análises tentam
maneira contextual e metafórica. sempre reproduzir dedutivamente por meio das
A partir dos anos de 1970, entretanto, desen- redes certas estruturas relacionais de médio alcan-
volveu-se um programa de pesquisas focado no ce, construindo um nível analítico intermediário en-
nível intermediário e concentrado na análise dos tre estrutura e ação social. A tarefa é similar à esta-
padrões de relações de indivíduos e entidades que belecida com o espaço, pelos sociólogos urbanos
cercam as situações sociais – a sociologia relacional. marxistas nos anos de 1970, ou com as instituições,
Esses padrões de relação estariam presentes em pelos neoinstitucionalistas nos anos de 1980.
praticamente todas as situações sociais, sendo As redes podem ser entendidas, basica-
muito difícil estudar fenômenos sociais sem consi- mente, de três formas. Seguindo diversas tra-
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dições das ciências sociais, podemos considerá- Laumann e Knoke, 1987). Como a análise de
las apenas de maneira metafórica ou de forma redes permite a realização de estudos detalhados
descritiva e ensaística. São definidas também co- sem o preestabelecimento das fronteiras entre
mo prescrição normativa para uma determinada Estado e sociedade, representa também uma im-
situação, como em estudos em administração portante ferramenta tanto para o estudo de lobby
de empresas, por exemplo. Por fim, são conside- (Heinz et al., 1997) e de novas institucionalidades
radas um conjunto de ferramentas analíticas para de governança (Schneider et al., 2003), como para
o estudo de situações sociais específicas por meio a análise das relações entre público e privado no
da análise das conexões sociais nelas presentes. entorno do Estado (Marques, 2000, 2003).
Concentro-me neste texto nessa última acepção, A análise de redes sociais parte do pressu-
pois acredito que os avanços na área advêm da uti- posto de que as relações sociais constituem a
lização das redes como método de investigação – unidade básica da sociedade, ao invés dos atribu-
a análise de redes sociais –, uma vez. Os ganhos tos dos indivíduos. Nesse sentido, o mundo social
analíticos do uso do método advêm do fato de seria formado ontologicamente por padrões de
que os padrões de relação de diversas situações relação de vários tipos e intensidades em cons-
sociais apresentam complexidade tão elevada que tante transformação. Nas primeiras sínteses teóri-
não podem ser analisados satisfatoriamente por cas sobre essa questão, atributos individuais e
meio de narrativas que explorem metaforicamente relações sociais eram vistos, de uma forma redu-
as redes. Em fenômenos com baixa complexidade, cionista, como elementos em oposição (Emir-
evidentemente, o uso de metáforas pode per- bayer, 1997). Atualmente, eles são pensados em
manecer como a melhor estratégia, e a análise de associação, visto que, em muitas situações sociais,
redes talvez apenas adicione novos aspectos téc- entidades com atributos comuns têm maior pro-
nicos e conceituais desnecessariamente. babilidade de estabelecer relações por causa da
Como a ciência política enfoca centralmente presença de mecanismos de homofilia (Kadushin,
o poder político (institucionalizado ou não), e 2004). Ao mesmo tempo, as relações ajudam a
como este apresenta uma natureza relacional construir atributos de vários tipos, sendo muitas
intrínseca, o estudo das redes sociais pode ajudar vezes difícil estabelecer uma direção causal única.
bastante. As análises envolvem, por exemplo, o Embora os autores enfatizem questões dife-
estudo da influência dos padrões de relaciona- rentes, é possível reconhecer ao menos três tipos
mento em mobilizações coletivas, seja em traba- de análise. O primeiro investiga os efeitos das
lhos de corte mais tradicional (Gould, 1991), seja posições dos atores e entidades sobre os fenô-
em trabalhos mais contemporâneos centrados nas menos políticos. Essas posições podem potencial-
dimensões discursivas da ação política (Mische e mente: a) alterar os resultados; b) influenciar as
White, 1998). De forma similar, a literatura inves- ações, estratégias, alianças e oposições e c) influir
tigou as influências das redes no comportamento sobre as propensões cognitivas dos atores (inclu-
eleitoral (Niuwbeerta e Flap, 2000) e na estrutu- sive as suas preferências). O segundo tipo de uso
ração dos partidos políticos (Hedstrom et. al., analítico das redes foca nos efeitos da estrutura da
2000). Os estudos sobre as elites políticas também rede sobre os fenômenos existentes em uma dada
representam um importante campo para a análise situação. Nesse caso, analisam-se a conformação
das redes, seja do ponto de vista das relações geral de densidades e grupos, e os padrões de
internas à elite política (Gill-Mendieta e Schmidt, contigüidade, conectividade e distância presentes
1996) e à elite econômica (Minz e Schwartz, 1981; na rede social. Por fim, o terceiro grupo discute
Kadushin, 1995), seja comparando elites políticas os efeitos de modelos diferentes de estrutura
e econômicas (Laumann et al., 1992). Um outro sobre tipos de fenômenos. A ênfase, nesse caso,
conjunto de trabalhos investiga os padrões de está na comparação entre estruturas de várias
relação no interior do Estado, envolvendo buro- redes de um mesmo tipo. De fato, essas três
cracias, agências estatais e políticas públicas estratégias foram empreendidas a partir da déca-
(Marques, 2000, 2003) e investigando especifica- da de 1970, em um caminho de crescente gener-
mente a produção de políticas (Knoke, 2003; alização explicativa.
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Como qualquer estrutura, as redes costu- (1973) demonstrou a importância fundamental


mam ser duradouras. Isso porque, embora elas se dos vínculos fracos para a difusão de informações
transformem continuamente com a construção ou associadas a emprego, os autores vêm discutindo
o rompimento de vínculos, a parcela em transfor- essa questão, e hoje há um consenso de que
mação tende a ser relativamente pequena com- ambos os vínculos devem ser considerados, mas
parada ao conjunto dos vínculos. Além disso, em relação a fenômenos distintos. Os fracos
estudos recentes sugerem a existência de elemen- geralmente se fazem presentes na veiculação de
tos associados ao comportamento matemático das informações e na construção de coordenação
redes (Watts, 1999), os quais lhes garantiriam sua política. Os fortes, em contrapartida, são impor-
continuidade, mesmo em contextos de mudanças tantes quando se trata de fenômenos de coesão,
intensas de vínculos. A combinação desses ele- comando e relações mais verticalizadas. Mas
mentos faz com que as redes apresentem, a um ambos não são excludentes, podendo ser consi-
só tempo, dependência da trajetória, sobretudo derados inclusive na análise de uma mesma situa-
em relação à estrutura, e tendências constantes de ção, como mostraram Carroll e Fennema (2002).
mudança, principalmente em termos localizados. As redes também podem incluir vínculos
Embora a complexidade técnica do tema formais e informais. Na verdade, uma das poten-
não seja muito grande, esse tipo de análise en- cialidades trazidas pela análise de redes diz
volve escolhas que determinam os resultados dos respeito exatamente à possibilidade de conside-
estudos. rarmos esses dois tipos de vínculos de forma con-
A primeira escolha analítica fundamental diz junta e sistemática. Embora nem toda a literatura
respeito ao tipo de rede a ser estudada. Em todos trabalhe dessa forma, a incorporação de vínculos
os casos, as redes podem ser conceituadas para informais e não intencionais vem enriquecendo o
reproduzir os padrões de relação centrados em um estudo sobre elites econômicas (Kadushin, 1995)
ou mais indivíduos ou em contextos mais amplos, e sobre atores estatais e não estatais na produção
que modelam o tecido relacional de uma determi- de políticas públicas (Marques, 2003). Especi-
nada situação social (as chamadas redes totais). A ficamente a este respeito, a incorporação de vín-
escolha de redes pessoais ou amplas depende das culos informais e não intencionais (construídos ao
preocupações analíticas da investigação. longo da formação das comunidades de políticas)
A segunda escolha refere-se aos elementos parece ser um caminho promissor para o estudo
que compõem as redes – indivíduos, famílias, gru- do Estado de forma mais próxima da realidade
pos, organizações etc. Esses agrupamentos institu- empírica (Marques, 2006).
cionais e grupais, por sua vez, conectam-se muitas A sociologia relacional também não tem
vezes por meio dos indivíduos que os constituem. pressupostos fortes com relação à racionalidade
As entidades nas redes, portanto, estão sempre dos atores, sendo inclusive possível integrá-la
submetidas a uma natureza dual entre indivíduos com perspectivas da escolha racional e ferramen-
e grupos e organizações (Breiger e Mohr, 2004) e, tas da teoria dos jogos. A análise de redes é ape-
novamente, a questão se associa intrinsecamente nas incompatível com a adoção de princípios
aos pressupostos analíticos envolvidos. estritos de individualismo metodológico. Na ver-
Por outro lado, os vínculos considerados na dade, a ela apenas indica como funciona um dos
análise podem envolver elementos materiais, settings em que os indivíduos estão inseridos,
como dinheiro e mercadoria, e imateriais, como sendo compatível com vários pressupostos de
informações, afetos e idéias. Eles podem incluir, racionalidade. As próprias redes, entretanto, pare-
virtualmente, qualquer coisa, embora a considera- cem ser o produto de uma conjugação entre ação
ção de certos tipos de vínculo possa trazer difi- orientada a fins, acaso, e herança dos padrões de
culdades com relação à operacionalização da pes- vínculo anteriores. Como os atores individual-
quisa e mesmo à confiabilidade das informações mente não têm controle sobre a estrutura das
obtidas no campo. redes e sobre as posições dos demais atores,
A essa dimensão se soma outra ligada à mesmo que ajam racionalmente para construir e
intensidade dos vínculos. Desde que Granovetter desmontar vínculos (e provavelmente o fazem),
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conseguirão influenciar apenas uma parte muito PAREIGOULD, R. (1991), “Multiple networks and
pequena do tecido relacional em que se inserem. mobilization in the Paris Commune,
Parodiando Marx, é possível dizer que os indiví- (1871)”. American Sociological Review,
duos fazem as redes, mas não as fazem como 56.
querem. GRANOVETTER, M. (1973). “The strenth of weak
Todas as dimensões destacadas sugerem que ties”. American Journal of Sociology, 78.
a análise de redes envolve um grau elevado de
escolha da parte do analista no que diz respeito à _________. (1985). “Economic action and social
conceituação dos elementos relacionais presentes structure: the problem of embedded-
nas situações estudadas. Essa característica não ness”. American Journal of Sociology,
91 (3).
trás em si nada de problemático, desde que as es-
colhas sejam apropriadas às perguntas formuladas HEDSTROM, P.; SANDELL, R. & STERN, C. (2000),
e se desdobrem em estratégias e instrumentos de “Meso-level networks and the diffusion
pesquisa também apropriados. Dado o grau of social movements”. American
de detalhe envolvido, entretanto, a análise de Journal of Sociology, 106 (1).
redes trabalha sempre com estudos de caso. Co- HEINZ, J.; LAUMMAN, E.; NELSON, R. & SALIS-
mo já destacado na apresentação deste dossiê, no BURY, R. (1997). The hollow core: pri-
uso dessa estratégia de pesquisa, a generalização vate interests in national policy making.
dos resultados é obtida com as comparações, va- Cambridge, Harvard University Press.
riando os elementos presentes e investigando
detalhadamente a combinação dos fatores causais KADUSHIN, C. (2004), “Introduction to social net-
work theory”. Acessado no site
em cada conjunto de casos. Assim, apenas a rea-
http://home.earthlink.net/~ckadushin/T
lização de muitos estudos comparativos de redes
exts/Basic%20Network%20Concepts.pdf
em situações sociais distintas pode, no médio
#search=%22charles%20kadushin%20ch
prazo, sugerir quais os tipos de influências que
apter%201%22.
elas provocam, dadas as circunstâncias e os pro-
cessos presentes. Embora ainda estejamos longe KADUSHIN, C. (1995), “Friendship among the
desse momento, avançamos consideravelmente French financial elite”. American
nas últimas três décadas na compreensão das car- Sociological Review, 60.
acterísticas, do funcionamento e das conseqüên- KNOKE, D. (2003), “The sociopolitical construc-
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