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Louise Bourgeois

prática artística crítica


feminista
1
2
Resumo

Neste texto, apresento a poética1 visual de Louise Bourgeois.


Privilegio obras em que os corpos aparecem fragmentados ou
transfigurados, formando imagens críticas às representações
históricas do feminino.

Palavras chaves: Louise Bourgeois, arte, feminismo


na capa
Louise Bourgeois,
fotografada por Alex Van Gelder
2008-2010

Runaway Girl
1938.

1 Norma Telles recorrendo à


Bachelard diz “A palavra poética
é o ser novo, contemporâneo,
que pelo presente origina e
evoca o passado, ser que é
inseparável de sua expressão
que por sua vez é o ser que ela
própria institui” (Telles, 2012:
40).

3
Uma garota de cabelos compridos e alaranjados caminha
sobre as águas, segurando uma pequena mala. Ao longe, há
uma casa sendo deixada para trás – essa é a imagem que
vemos na obra Runaway Girl, de 1938. Ao ser questionada
sobre sua relação com essa personagem, a artista Louise
Bourgeois diz: “[...] a Runaway é a menina que fugiu de
casa; eu obviamente fugi de casa” (Bourgeois, 2008). Naquele
ano, ela saiu de Paris e mudou-se para Nova York, deixando
para trás uma situação familiar conflituosa. Histórias sobre
a infância ela repetiu inúmeras vezes ao longo da vida,
apresentando-as como inspiração para a construção de
várias de suas obras.

O autoritarismo e a traição do pai, a depressão e a profissão


da mãe foram expostos não apenas pela artista, mas por
uma série de historiadores e críticos de arte como elementos
fundantes de sua poética visual. Por outro lado, a artista
afirma que devemos ler nas entrelinhas aquilo que ela fala
(Bourgeois, 2008) e que uma obra de arte não necessita de
explicações, pois se sustenta sozinha. “Depois que sai do
estúdio, a peça inicia uma vida própria [...[” (Bourgeois,
2004: 75-76).

Nessa perspectiva, as imagens podem levar-nos por


outros caminhos do que aqueles originalmente elaborados
pela artista. Assim, Runaway Girl emerge numa outra
dimensão – é aquela que foge sim de seu lar, mas é, para
além de estruturas reais, a construção de um imaginário
que aprisiona as mulheres, com suas principais referências
simbólicas e culturais. O lar seria o lugar feminino por
excelência, conforma os corpos e as mentes, tornando as
mulheres menos potentes para a elaboração de suas próprias
subjetividades.

Bourgeois é, sem dúvida, uma garota que escapou. Ela


tornou-se artista, tarefa que, se ainda hoje é bastante difícil
para as mulheres, no início do século XX era ainda mais.
Julia Kristeva destaca as diversas fronteiras que tiveram de
ser cruzadas por Bourgeois em seus percursos, tais como a
da linguagem, a da família, a da figura paterna. Para tornar-
se artista, teve de liberar-se de si e de seu espaço (Kristeva,
2007:249). Aventurando-se no território da arte, ela elaborou
para sua vida uma poética visual, que pode ser analisada
como uma forma de tensionar as identidades de gênero. E
na qual o espaço doméstico e seus complementares, como
o espaço hospitalar, desdobram-se em inúmeras imagens.
Nas próximas páginas, os comentários versam sobre tais
questões.

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Femme-Maison
1946-1947

5
Femme-Maison
1946-1947

6
Crítica à domesticidade

Louise Bourgeois dedicou-se, na década de 1940, à criação


de uma série de desenhos e pinturas intituladas Femme-
Maison (Mulher-Casa), nas quais corpos femininos
transfiguram-se em casas ou prédios. Com o passar do
tempo, elas reapareceram construídas de diferentes formas
e com distintos materiais, ocupando lugar privilegiado em
sua poética visual. Os híbridos de mulheres e a arquitetura
doméstica exploram a identidade feminina, evocando as
mulheres como seres produzidos pela e destinados à esfera
privada.

Em uma das pinturas da série, ela cria uma figura cor-


de-rosa sobre um fundo dividido em três partes. Na parte
superior, a cabeça apresenta-se em forma de casa, trazendo a
imagem de uma domesticidade que define ao mesmo tempo
em que nega voz às mulheres, como sugere Chadwick (1999:
324). Os seios e a barriga cor-de-rosa misturam-se à parede
vermelha exposta no fundo; o fraco contorno do corpo e
a proximidade de tonalidades entre ele e a parede criam a
sensação de uma mulher incorporada à arquitetura. Em outra
obra, não há cores, apenas o contorno preto de um corpo
feminino sobre um fundo branco. Aqui, a cabeça também se
transfigura em uma casa, cuja entrada ajusta-se ao seu corpo
como uma apertada camiseta. Mayayo afirma que o torso da
figura foi alterado apresentando as dimensões da estrutura
que o limitam (Mayayo, 2002: 13).

Consideradas na época de sua exibição pelos críticos de arte


uma representação da ligação natural entre as mulheres
e o lar (Chadwick, 1999: 324), as obras foram repensadas
pelas feministas, a partir da década de 1970, como uma
crítica à identidade feminina. Nesse registro, elas emergem
como uma contestação à representação das mulheres como
sujeitos abnegados, voltado para o lar, para a maternidade,
sem habilidade para as ciências ou para as artes. A leitura
feminista permite dizer que, ao criar imagens literais das
mulheres como pertencentes à esfera do privado, a artista
joga com a ironia para criticar esse modelo do feminino
2 Ver sobre o Anjo forjado como o anjo do lar 2
do Lar: Telles, Norma.
Encantações: escritoras A asfixia e o aprisionamento evocados na série Femme-
e imaginação literária Maison ressurgem em inúmeras obras da artista, nas quais
no Brasil do Século ela trabalha com imagens de corpos femininos espiralados.
XIX. São Paulo. A forma espiral é recorrente em sua poética visual e aparece,
Intermeios: 2012, pp sobretudo, na forma de esculturas, a partir da década de
85-92. 1950. As primeiras são construídas com fragmentos de

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madeira encaixados sobre uma barra de metal. Algumas Louise Bourgeois
levam o nome de Femme Volage (Mulher Inconstante, circa 1960
1951), pois, segundo sugere Mayayo, a figura espiral parece
submetida a torções em direções opostas, que podem
terminar fazendo com que ela perca as coordenadas de
referência e passe a girar sobre si (Mayayo, 2002: 20),
movimentando-se sem, no entanto, sair do lugar.

Na década de 1980, Bourgeois faz esculturas espirais mais


arredondadas e em bronze. Na obra Spiral-Woman (Mulher-
espiral) de 1984

[...] uma víscera-espiral sai do ventre da mulher e se enrosca


em seu corpo de modo ascendente, [...] aqui a mulher, como
um casulo, é envolta pela espiral (...). Sem rosto ela está
asfixiada pelas responsabilidades do quotidiano
(Herkenhoff, 1997: 27-28).

A ideia de uma rotação sobre si mesma é reforçada nessa


obra por sua disposição no espaço: pendurada ao teto por
um fio, a figura parece frágil, podendo ser movimentada

8
Spiral Woman
2003

por quem queira, com um simples toque. O corpo está, assim,


exposto às vontades do espectador.

A partir dos anos 1990, ela inaugura uma série de esculturas


em torno do domínio da tecelagem, focando, dessa forma,
uma atividade culturalmente associada ao universo feminino
(Mayayo, 2002: 67). Bordar, assim como outras atividades
que envolvem linhas e agulhas, é historicamente associado
ao universo feminino. No século XIX, às mulheres cabiam
os trabalhos com tecidos, chamados não qualificados,
subordinados a uma tecnologia específica, como lembra
Michelle Perrot, a qual ressalta um texto operário, de 1867,
que explicita isso: “Aos homens, as madeiras e os metais. À
mulher, a família e os tecidos” (Perrot, 2005: 198).

É em tecido que a imagem da Spiral-Woman reaparece,


numa escultura de 2003. Ela é bastante semelhante à
imagem feita em 1984, entretanto, há na estratégia de

9
Femme Maison,
2005

Spiral Woman
1984

10
criação uma clara influência do feminismo. Desde os anos
1970, os movimentos feministas reivindicam o uso
de tecidos, de bordados e de tantas outras atividades
associadas ao feminino, que foram deixadas de lado pela
historiografia e pela prática artística masculina da arte.
Assim, de tarefa inferior no mundo das fábricas e prática
artesanal no da arte, a costura é colocada numa outra
dimensão: de um saber considerado feminino, utilizado para
o enfretamento da própria identidade Mulher.

Saber médico: maternidade e histeria

Algumas figuras de Bourgeois foram repetidas incontáveis


vezes, assim como é o caso de Femme-maison. Em 2005,
ela foi refeita na forma de escultura, com tecido branco. Na
figura, a cabeça, os pés e os braços estão cortados e uma
pequena escultura de casa está colocada sobre o seu ventre.
A posição dessa casa e sua pequena proporção em relação
ao corpo parecem aludir à maternidade, à gestação e aos
efeitos que tudo isso pode produzir no corpo das mulheres.
É interessante perceber que Bourgeois cria no final da vida

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uma série de obras em torno dos temas gravidez e parto,
inúmeras vezes associados à dor e à imobilidade.

Em The Woven Child (A Criança Tecida - 2002) e The


Reticent Child (A Criança Reticente – 2003), a artista
constrói figuras grávidas, sem as pernas e sem os braços. Na
primeira delas, esculpe em tecido branco um corpo, no qual
deixa uma série de costuras aparentes, como se ele tivesse
sido cortado inúmeras vezes e, depois, refeito. A escultura
está colocada dentro de uma caixa de vidro transparente,
assim como são deixados animais para serem estudados nos
laboratórios. Sobre ela há um feto dentro de uma rede azul.

The Reticent Child é composta por seis pequenas esculturas


de mulheres colocadas sobre uma estrutura de metal, que
lembra uma mesa cirúrgica. Atrás das figuras posiciona-
se um espelho, no qual uma delass tem o rosto refletido,
apresentando uma expressão de dor e de tristeza. Do meio de
suas pernas dobradas sai uma pequena cabeça, criando-se o
momento do parto.

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As duas obras provocam a sensação de um corpo feminino
que, fragmentado, é identificado e pensado sempre em
relação à função da maternidade. Em caixas transparentes,
esses corpos estão expostos para serem observados
e analisados; nas mesas dos consultórios médicos e
laboratórios são manuseados e submetidos a experimentos.
Surge, então, a questão da medicalização dos corpos das
mulheres. A ideia de corpos observados, esquadrinhados e
produzidos pelo saber médico também se faz presente na
obra Arch of Hysteria (Arco de Histeria, 1993). Mas antes de
analisá-la, serão feitas algumas considerações.

Para falar da figura da mãe devota, afetiva e assexuada,


emergente no século XIX, é preciso rememorar que esta
tem como sua imagem em negativo a mulher nervosa, a
histérica, como ressalta Foucault ao delimitar o dispositivo
da sexualidade (Foucault, 2009:115). Abandonando a
hipótese repressiva em relação à sexualidade, o filósofo
observa que, ao contrário do que se havia imaginado,
nunca antes em uma sociedade falou-se e pensou-se tanto
em sexo, além de questionarem tanto sobre tal tema. No
século XIX, há um grande investimento no controle estatal
dos casamentos, dos nascimentos e das sobrevivências, e
uma crescente preocupação com os efeitos do sexo entre
as futuras gerações, ou seja, como o sexo poderia afetá-las
com doenças e degenerações. Assim, na tecnologia do sexo,
a medicina das perversões e a eugenia formaram saberes
e práticas componentes de uma tecnologia de cuidado da
vida da população, que Foucault nomeou de biopolítica.
(Foucault, 2009:115)

A histerização dos corpos das mulheres torna-se um dos


principais conjuntos estratégicos de investimento do
Foucault e o controle da sexualidade
feminina - biopolítica e histeria poder (um corpo saturado de sexualidade e que deve ser
controlado). Ele é, então, pensado em uma comunicação
orgânica com o corpo social, e como tendo uma
responsabilidade biológico-moral com relação às crianças,
no centro da família burguesa. Dessa forma, “[...] a Mãe,
com sua imagem em negativo, que é a “mulher nervosa”,
constitui a forma mais visível desta histerização” (Foucault,
2009: 129).

Arch of Hysteria é construída em bronze, tendo uma cor


Arch of Hysteria dourada. Esta obra, assim como a Spiral Woman (1984), está
1993 fixada por um fio ao teto. Há em Arch of Hysteria uma clara
referência às fotografias feitas por Charcot, no final do XIX.
Ele tornou-se conhecido por organizar sessões públicas, nas
quais médicos, jornalistas e curiosos assistiam às pacientes,

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sob efeito de hipnose, experimentar fortes ataques de
histeria. As sessões chegavam ao fim quando os corpos das
pacientes, por estarem tão tencionados, formavam um arco,
sendo este o sinal do fim da crise histérica (Mayayo, 2002:
65). A histeria, nessa obra, não figura o feminino, e sim o
masculino, produzindo uma crítica à noção dessa doença
como sendo intrinsecamente produzida pelos úteros.

Charcot chamava a si de un grand viseul, conta John


Rajchman (1988:105). Explicitando as discussões de Foucault
sobre os discursos e as técnicas médicas, Rajchman observa
que a modernidade inaugura uma fascinação visual pela
sexualidade, ou seja, nós não fomos sempre encantados pelo
desejo sexual, essa coisa considerada maléfica para a qual
Freud teria sido o primeiro corajoso homem a olhar.

Há, então, uma particularidade no voyeurismo da medicina


moderna, tão interessada na sexualidade desviante,
como o olhar panóptico interessava-se pelos prisioneiros. The reticent child
Desse modo, o local das experiências de Charcot não apenas 2003

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permitiam, mas incitavam observações, as interrogações, as
experiências, com os corpos doentes (Rajchman, 1988:105-
106). Assim, na medicina moderna

[...] o olhar deve restituir como verdade o que foi produzido


segundo uma gênese: em outros termos, deve reproduzir nas
operações que lhe são próprias o que foi dado no movimento
mesmo da composição (Foucault, 2008: 119).

No caso da histeria, o olhar funciona como técnica para a


comprovação das teorias médicas que desqualificavam o
corpo das mulheres. Como observa Michelle Perrot:

O corpo está no centro de toda relação de poder. Mas o corpo


das mulheres é o centro de maneira imediata e específica.
Sua aparência, sua beleza, suas formas, suas roupas, seus
gestos, sua maneira de andar, de olhar, de falar e de rir
(provocante, o riso não cai bem às mulheres, prefere-se que
elas fiquem com lágrimas) são objeto de perpétua suspeita.
Suspeita que visa ao seu sexo, vulcão da terra (Perrot, 2005:
447).

Imaginados, portanto, como sendo repletos de sexualidade,


fragmentados e analisados os corpos são tratados como
objetos de investimentos da medicina moderna. Alvos da
mais viva curiosidade, os corpos femininos envolvem-se
em séries de especulações traduzidas em registros escritos
e imagéticos de suas supostas patologias. Em Bourgeois,
esses discursos encontram um lugar crítico na elaboração
artística, inscrevendo-se de formas mais ou menos diretas,
em sua poética visual. Nessa dimensão, suas obras evocam,
novamente, a arquitetura, a construção dos espaços, mas não
o do lar, e sim dos consultórios, dos hospitais e das clínicas Arch of Hysteria
médicas – espaços que se complementam em imagens 1993
evocando as mulheres como esses seres sexuados, produtos
de um olhar moderno.

Variações: a mamãe aranha

Na escultura Sem Título, de 2001, novamente há uma figura


colocada dentro de uma caixa de vidro. Entre suas pernas
um buraco sugere o órgão sexual feminino, e em cima do
corpo um emaranhado de tecidos remete às estranhas, aos
órgãos internos, que estão expostos para análise. Do mesmo
modo, o emaranhado lembra um estrangulamento do corpo,
um “sufocamento do útero”, o que os discursos médicos
afirmavam ocorrer em casos de histeria.

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Parece haver, ainda, uma alusão aos órgãos enlouquecidos,
que, como animais enfurecidos, movimentam-se pelo corpo
dessa mulher. Como afirma Rago, os médicos do século
XIX apropriaram-se da concepção de Hipócrates, para
quem o útero seria um organismo vivo semelhante a um
animal dotado de certa autonomia e de possibilidade de
deslocamento. Ideia reforçada na modernidade

[...] especialmente no contexto de entrada das mulheres no


mercado de trabalho, na vida social e com a emergência
do feminismo, questionando e desafiando o ‘dispositivo da
sexualidade’ e as normas da domesticidade [...] (Rago, 2013).

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As concepções que associam os órgãos femininos a animais
não parecem ter sido deixadas totalmente de lado. Basta
lembrar que animais peçonhentos são constantemente
evocados pela cultura popular para nomear o órgão sexual
feminino, na qual a aranha é o exemplo, por excelência.
A imagem da aranha compõe de maneira basilar a poética
visual de Bourgeois. Aranhas aparecem em desenhos e
gravuras, desde o final dos anos 1940 e proliferam em
esculturas a partir de 1994 (Herkenhoff, 1997:27). As
aranhas de Bourgeois são, segundo ela própria, uma
homenagem à sua mãe no poema intitulado “Ode a minha
mãe”.:

Minha melhor amiga era minha mãe; ela era decidida,


inteligente, paciente, tranquilizadora, racional, exigente,
sofisticada, indispensável, arrumada e útil, como uma
aranha (Bourgeois, 2004:326),

sem título
2001

Em São Paulo, no Museu de Arte Moderna, pode-se ver uma


das Aranhas. Ali, o monstruoso animal, de nove metros
de altura, fica exposto numa sala de vidro, podendo ser
visto por aqueles que passeiam pelo Parque Ibirapuera. As
dimensões da escultura, bem como suas patas pontiagudas

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de bronze evocam a proteção. Afinal, quem ousaria enfrentar
um animal de tamanha proporção, com patas que podem
perfurar aqueles que se aproximarem, além de ser dotado
de veneno, de uma picada extremamente dolorida, capaz de
tombar um touro ou um leão? A aranha -protetora é evocada
pela artista em seu poema:

Ela [a mãe, assim como a aranha] também sabia se defender,


e a mim, recusando-se a responder perguntas pessoais
‘idiotas’, inquisitivas e embaraçosas (Bourgeois, 2004:326).

Numa outra camada de sentido, a figura da aranha


representa a criação, a inventividade ligada à confecção de
tapeçarias – este era o trabalho da mãe da artista. A imagem
associa-se à história de Aracne, relatada pelo poeta Ovídio.
Aracne andava pela cidade dizendo ser a melhor tecelã que
havia. Os rumores chegaram aos ouvidos da deusa Atenas,
que, então, lança a ela um desafio para saber qual das duas
seria a mais virtuosa nessa arte. Enquanto Atena retrata os
deuses no Olimpo, suas belezas e histórias em seus tecidos,
Aracne expõe lindamente as falhas dos deuses. Furiosa,
Atena transforma a tecelã numa aranha; seus habilidosos e
rápidos dedos dão lugar a finas patas, condenas a tecer um
único fio branco por toda a vida.

Anne Creissels fala de uma Aracne impetuosa e talentosa,


cuja falha é a hybrys ou o excesso de orgulho, não suportado
pelos deuses (Creissels, 2005:2). Ela é monstruosa mesmo
antes da metamorfose, pois ao reivindicar seu título como a
mais habilidosa na arte da tecelagem, mais habilidosa que a
própria Atenas, faz estremecer as hierarquias, abalando os
limites que separam os homens dos deuses. De acordo com
Creissels, descontextualizado por um olhar contemporâneo, o
mito pode ser associado às dificuldades das mulheres para se
afirmarem como sujeitos e como artistas (Creissels, 2005:2).

Séculos depois do poema de Ovídio, Aracne vagará aos


farrapos e louca no purgatório de Dante. Associada
à sexualidade feminina e à loucura, no século XIX a
aranha remeterá à “viúva negra”, aquela que mata após
o acasalamento. A aranha é, assim, aquela que aprisiona,
enreda em sua teia a vítima, que sufoca e mata. Essa
dimensão, também, está presente nas esculturas de Bourgeois
e mais explicitamente numa de 1997, na qual a aranha
gigante envolve suas próprias pernas num cercado circular,
que lembra uma gaiola. A sensação é de que ela cria com
seu corpo uma prisão, da qual é impossível escapar. Sobre a
figura da aranha na tradição ocidental, Rago diz:

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De Darwin a Lombroso, passando pela literatura e pelas 3 Estas informações estão no
artes, fez-se extenso uso da aranha para mostrar os perigos relatório “Prevention of Mental
da sexualidade feminina materializados em figuras femininas Disorders. Effective Interventions
desviantes, das ninfomaníacas às tríbades, onanistas e and Policy Options”, produzido
lésbicas,todas consideradas histéricas, perversas e loucas pela Organização Mundial de
(Rago, 2013). Saúde, em 2004. Disponível em:
http://www.who.int/mental_
Nesse sentido, a aranha de Bourgeois evoca a seguinte health/evidence/en/prevention_
sensação: a mulher-aranha, da qual não se pode escapar; of_mental_disorders_sr.pdf
como não se pode escapar da fúria da “viúva negra” ou da
sedução da mulher fatal.

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Ressonâncias contemporâneas

O corpo feminino saturado de sexualidade não se apresenta


nos dias hoje, ao menos, não tanto, como um corpo
histérico. Com a liberação sexual e o movimento feminista,
os discursos médicos do século XIX foram avidamente
questionados. No entanto, o sexo, especialmente de
mulheres, surge como grande tema midiático. Como fazê-lo,
quando fazê-lo, com certa liberalização dos costumes, efeitos
discursivos contraditórios das sociedades pós-industriais,
pós-modernas, pós-gênero. A sexualidade feminina explode
em reality shows, nas redes sociais, nas publicidades, nas
músicas populares. Os assujeitamentos são outros agora –
cotidianos e quase imperceptíveis, tal qual a TPM, como
lembra Tania Navarro-Swain (2006), que faria dos úteros e
dos ovários condutores periódicos de nossas mentes. Alguma
Spider, 1997. semelhança com a histeria? Ou a menopausa que significaria
foto de Rafael Lobato a perda de nossa função biológica primeira (a maternidade)
levando à falência nossos corpos (Swain, 2003; 2006).
Anorexia e bulimia, transtornos majoritariamente femininos
inscrevem-se nos corpos das jovens garotas3.

Em breve pesquisa no Google, foram observados comentários


como os de Táki Cordás, médico psiquiatra e professor
da Universidade de São Paulo. Segundo ele, distúrbios
alimentares são acompanhados de uma série de outras
patologias, tais como a depressão e, claro, a promiscuidade
sexual. Distúrbio dos corpos femininos que eliminaria as
características sexuais, como a menstruação, e que têm como
fator indiscutível uma alteração da neuroquímica cerebral4.
A sexualidade feminina é colocada mais uma vez em
discurso, re-modulando corpos doentes.

Retomando as aranhas, elas costumam remeter à


feminilidade. Mulheres ardilosas, destruidoras, capazes de
levar à loucura até o homem mais racional. São, também,
rebeldes e impetuosas, aludem à liberdade: mesmo mantidas
em cativeiro, jamais produzirão seda para o consumo
humano (Herkenhoff, 1997: 29). As esculturas-aranhas de
Bourgeois são arquiteturas ambulantes, por sua vez capazes
de tecerem arquiteturas, como sugere Herkenhoff (1997: 29).
Seus corpos constroem sua própria morada; eles produzem
aquelas substâncias necessárias à vida. Constroem delicadas
linhas de deslocamentos. No mito, os fios de Aracne
4 Entrevista disponível em: comprometem-se com a verdade; ousam dizê-la assumindo
http://drauziovarella.com.br/ os riscos de desafiar os deuses – uma verdade situada
wiki-saude/anorexia-nervosa-e- pelo olhar contemporâneo com base no compromisso
bulimia/ feminista de desconstrução das imagens e dos discursos

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que fixamidentidades, que se hoje são aparentemente
multifacetadas, não deixam de produzir efeitos asfixiantes.
A poeta brasileira Angélica Freitas, com ironia, escreve:

[...] a mulher é uma construção


deve ser
a mulher basicamente é para ser
um conjunto habitacional
tudo igual
tudo rebocado
só muda a cor [...]
(Freitas, 2012:45)

Garotas em fuga, entretanto, não deixam nunca de imaginar


outros modos vida, mais livres e belos, criando suas próprias
arquiteturas, seus espaços singulares. Não pertencem às
famílias ou aos hospitais e às clínicas. Elas são, como Louise
Bourgeois, artistas da vida e criam para si outras histórias.

Louise Bourgeois,
fotografada por Alex Van Gelder
2008-2010

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Referências bibliográficas

BOURGEOIS, L. 2008. The Spider, The Mistress and The


Tangerine. Documentário. Direção: Marion Cajori e Amei Wallach.
Estados Unidos: Zeitgeist Films.
BOURGEOIS, L. 2004 Destruição do Pai, Reconstrução do Pai.
Marie-Laure Bernadac; Hans-Ulrich Obrist (orgs.). São
Paulo: Cosac Naify,.
BOURGEOIS, L. Cells. . In Louise Bourgeois. Francis Morris
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CHADWICK, W. 1999. Mujer, Arte y Sociedad. Barcelona:
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Centro Cultural Banco do Brasil; Fundação Bienal de
São Paulo:
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SWAIN, T. 2003 Velha? eu? Autorretrato de uma feminista.
In Revista online Labrys – Estudos feministas,
Número 4, agosto /dezembro.
TELLES, N. 2012 Encantações: escritora e imaginação literária no
Brasil, Século XIX. São Paulo: Intermeios.

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Gabriela De Laurentiis

Uma primeira versão deste texto foi apresentada no evento


“Mulheres fazendo arte: territórios estéticos, políticos e
culturais”, realizado em outubro de 2012, no Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.
A publicação original foi na Revista Labrys Estudos
Feministas, janeiro / junho 2013.

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