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A ABORDAGEM RELACIONAL E O ESTUDO DA RELAÇÃO ENTRE

ESTADO E SOCIEDADE.
Antônio Carlos Ribeiro

Doutorando em Sociologia

Universidade Federal de Minas Gerais

RESUMO:

ensaio apresenta-se os aspectos fundamentais, particularidades e avanços da abordagem relacional.


Analisa-seos trabalhos que aplicaram essa abordagem no Brasil para estudar a relação entre Estado e
Sociedade, a relação entre Estado e mercado e das organizações civis entre si. Os textos analisados
foram selecionados através de pesquisa na plataforma Scielo Brasil. Identifica-secontribuições da
abordagem relacional, destacando as discussões mais significativas para a compreensão da relação
entre Estado e sociedade. Destaca-se o impacto da aplicação da abordagem relacional em outras
discussões da ciência e sociologia política. Por fim, apresenta-se os resultados da abordagem relacional
aplicada a um estudo da política de accountability social.

PALAVRAS CHAVES: Análise de Rede Sociais, Abordagem Relacional, Estado.

INTRODUÇÃO

A introdução de novas técnicas e estratégias de análise traz em si a promessa de lançar luz em


um amplo leque de aspectos da realidade que permaneciam até então obscuros. No campo de estudo da
política brasileira, uma das novidades tem sido a aplicação da abordagem relacional e o conjunto de
técnicas e estratégias aplicadas para sua realização. Essanovidadecoloca em relevo a importância dos
padrões relacionais entre os atores sociais, enquanto um dos mecanismos importantes para vida
política. Ainda embrionárias, as pesquisas desenvolvidas sob esse prisma contribuem para o avanço ou
a problematização de alguns temas e teses da teoria social e política brasileira. Preocupadas com as
lacunas encontradas na literatura e com supostos essencialismos de instituições e atores, denunciam,
sobretudo, “falsas” oposições presentes em estudos e interpretações anteriores.
Sem assumir compromissos com tradições teóricas, o estudo relacional da política procura
compreender os objetos de pesquisa em suas particularidades. Sugere que muitas vezes dilemas
presentes na literatura podem resultar muito mais do enquadramento da questão que representarem uma
característica inerente ao objeto estudado. Provavelmente por isso, um dos campos mais férteis para
aplicação da abordagem relacional corresponda às discussões sobre a sociedade civil e a importância
das instituições participativa (IP’s) no processo de aprimoramento democrático.
Se for aceito que a política representa, em última instância, a relação, por vez conflituosa, entre
Sociedade e Estado, a novidade que hoje se alastra na academia brasileira tende a contribuir e oferecer
novos indícios sobre o papel e as estratégias dos atores sociais na construção da democracia e sobre a
relação desses com os atores estatais. Neste ensaio apresenta-se a abordagem relacional, seus aspectos
fundamentais e suas particularidades em relação a outras abordagens, classificadas pelos adeptos
daquela como substancialista ou essencialista. Destaca-se o principal ganho oferecido pela perspectiva
relacional quando realizada através da Análise de Redes Sociais (ARS).
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O ensaio prossegue com a apresentação de alguns trabalhos que aplicaram a abordagem


relacional no Brasil, especialmente aqueles que focaram a relação entre Estado e sociedade, mas
também aqueles que abordaram a relação do Estado com atores do mercado e das organizações civis
entre si. Esses estudos aplicaram as metodologias de Análise de Redes Sociais (ARS) e/ou Estudo de
Trajetória (ET) enquanto técnicas de realização da abordagem relacional. Os textos apresentados foram
selecionados através de pesquisa na plataforma Scielo Brasil. Realizaram-se buscas pelas palavras
chaves: “abordagem relacional”; “redes sociais”; “rede social”; “análise de redes sociais” e “estudo de
trajetória”. Após leitura dos resumos dos trabalhos encontrados chegou-se a um conjunto de 24 artigos,
dos quais seis foram descartados tendo em vista os conteúdos integrais que não contribuíram para
discussão realizada adiante. Os artigos selecionados foram analisados observando os achados
apontados e as contribuições mais significativas para o estudo da política brasileira. Procurou-se indicar
os avanços passíveis de serem atribuídos à abordagem relacional, destacando as discussões mais
significativas para a compreensão da relação entre Estado e Sociedade no Brasil. Atentou-se, também,
às principais lacunas apontadas pelos adeptos da abordagem relacional. Por fim, são apontadas
questões para o avanço da agenda sobreaccountability.

1. A ABORDAGEM RELACIONAL COMO PERSPECTIVA ANALÍTICA

No âmbito das ciências sociais os métodos, muitas vezes classificados numa falsa oposição
entre quantitativos versus qualitativos, sustentam-se a partir de diferentes estratégicas analíticas. As
perspectivas de análise hegemônicas nesta área têm sido denominadas por alguns atores de
substancialista ou essencialista (EMIRBAYER, 1997; SILVA, 2006). A abordagem substancialista se
define pela forma como concebe sua unidade de análise e agrupa um conjunto extenso de teorias, por
vezes antagônicas. Seus objetos de estudo são tomados como entidades pré-formadas, dotados de uma
essência que lheé própria. São atributos de tais entidades que explicam os fenômenos analisados. Ainda
que se confrontem a respeito de antigas questões das ciências sociais, tal como o dilema entre micro e
macro ou entre ação racional e ação normativamente orientada, essas teorias estão sempre reificando
seus objetos, criando um mundo estático onde o Estado, a Sociedade, o indivíduo, o mercado são
tomados como dotados de vida própria e independência das relações nas quais estão envolvidos.
É inegável que a abordagem substancialista/essencialista forneceu (e ainda fornecerá)
importantes contribuições para a construção do conhecimento social. Todavia, como ocorre com toda e
qualquer perspectiva de análise, o conjunto de teorias que ali se reúne parece incapaz de explicar de
forma completa os processos sociais, políticos e econômicos. As lacunas deixadas por essa abordagem
propiciam espaço para o surgimento de novas perspectivas que procuram contribuir para a construção
de novas respostas.
Partindo de pressupostos alternativo, a abordagem relacional pode contribuir para o avanço do
conhecimento social. A principal característica da abordagem relacional é seu foco nas relações entre
entidades sociais (indivíduos ou organizações) e não atributos inerentes a essas. Propõe trazer para o
primeiro nível de análise a interdependênciaentre os atores sociais, identificando padrões de
relacionamento e as implicações desses sobre os processos sociais. Os atributos são considerados
aspectos complementares no proceso de análise. A abordagem relacional assume que entidades sociais,
seja agindo estrategicamente ou seguindo normas, são inseparáveis dos contextos transacionais dentro
dos quais estão inseridos (EMIRBAYER, 1997). As relações sociais criam e restringem oportunidades,
influenciando diretamente os resultados dos processos sociais. Sentidos, significados e identidade das
entidades envolvidas em uma relação derivam dos “papéis funcionais” que desempenham dentro de
suas redes de relações. Os processos sociais podem ser explicados por meio dos diversos vínculos que
se estabelecem entre os atores sociais. Agentes sociais são assumidos como dependentes das relações
que estabelecem. São termos dessas relações e não podem ser considerados isoladamente.

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A ARS é hoje o principal instrumento de aplicação da abaordagem relacional. Essa tem


permitido avanços na construção do conhecimento sobre o mundo social. Por meio dessa técnica, o
recurso à metáfora de rede tem sido substituído por medidas, conceitos e representações gráficas que
ilustram padrões relacionais e fornecem indicadores para ilustrá-los e analisá-los. A ARS permite às
ciências sociaisoperacionalizar seus conceitos clássicos, tais como: poder, dependência, coesão,
estrutura, grupos, papel social, subgrupos etc..
Atualmente, o nível de desenvolvimento da metodologia de ARS contribui diretamente para “dá
uma definição formal precisa a aspectos do ambiente político, econômico ou social. Para a visão da
Análise de Redes Sociais, o ambiente social pode ser expresso como padrões ou regularidades de
relações entre unidades interagindo” (WASSERMAN e FAUST, 1994: 3 – tradução livre).
Enquanto método de aplicação da abordagem relacional, a ARS parte do princípio básico
segundo o qual “a estrutura das relações sociais determina o conteúdo dessas relações” (MIZRUCHI,
2006: 73). A ação social, nessa perspectiva, assume um caráter dinâmico e se desenvolve sob a
influência do conjunto de relações que envolve o agente. Deste modo, ações que do ponto de vista de
algumas teorias da perspectiva substancialista seriam consideradas sem racionalidade, pelo prisma
relacional são explicadas a partir dos padrões de relações estabelecidos pelos atores sociais. Nesse
sentido, Granovetter (appud MIZRUCHI, 2006: 78). “argumenta que as relações sociais que se
desenvolvem entre clientes e fornecedores muitas vezes atenuam, ou mesmo anulam, o oportunismo”.

2. A ABORDAGEM RELACIONAL NO BRASIL

O conjunto de iniciativas que aplicam a abordagem relacional no Brasil trabalha com vários
temas. Os avanços promovidos pela aplicação da abordagem relacional no estudo da política brasileira
iluminam questões ausentes nas análises de cunho substancialista e, assim, indicam caminhos novos a
serem trilhados. Obviamente, estes estudos não anulam as contribuições anteriores, mas problematiza-
as levantando novos aspectos. Essa literatura aborda básicamente seis áreas: 1) a relação entre Estado e
Sociedade na formulação e gestão de políticas pública (MARQUES, 1999, 2006); 2) a relação entre
Estado e Sociedade na construção da democracia no Brasil (SILVA, 2007; SILVA e MOURA, 2008;
AZAMBUJA JUNIO, 2009); 3) as relações de produção sob a perspectiva da democratização das
relações sociais (SILVA e OLIVEIRA: 2009); 4) a relação entre política e burocracia sob o prisma
Estado/Sociedade e accountability (OLIVIERI, 2007); 5) a relação entre organizações civis sob a
perspectiva da dinâmica interna de interação dos atores societários(MARTELETO, 2001; GURZA
LAVALLE, CASTELLO e BICHIR, 2006, 2007, 2008; JUNQUEIRA e PINTO, 2009); 6) a relação
entre mercado, Sociedade e Estado (LAZZARINI, 2007; KAUCHAKJE, BORSATO e
ROCHADELLI, 2010).
Nota-se uma multiplicidade de tema. Todavia, alguns desses autores destacam a necessidade de
comparação de um número maior de casos de modo a permitir a produção de teorias baseadas nessa
estratégia analítica. Essa limitação, de certa forma, é responsável pelo tímido diálogo interno entre
esses autores. A seguir procura-se contribuir para a superação de parte desse problema ao analisar os
achados e avanços dessa literatura, tendo em vista a promoção de um diálogo maior entre os textos.
Argumenta-se que o avanço potencial promovido pela abordagem relacional depende tanto da
replicação e produção de pesquisas relacionais, quanto do diálogo entre os adeptos dessa perspectiva.

3. A ABORDAGEM RELACIONAL ALGUMAS APLICAÇÕES

Uma das discussões mais caras ao pensamento político e social organiza-se em torno da força
dos laços pessoais na estruturação da vida pública. Por trás de conceitos como clientelismo,
patronagem, nepotismo as relações pessoais figuram como um resquício do atraso na política. Essa
característica afastaria qualquer país do ideal de uma política moderna marcada por relações impessoais

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e pelo insulamento burocrático. Entretanto, o enquadramento relacional aponta a importância dos laços
pessoais na democracia brasileira.Se, tradicionalmente, os efeitos desses são negativamente destacados,
com a abordagem relacional os laços pessoais candidatam-se a um lugar mais nobre nas interpretações
futuras sobre a política brasileira. Marques (1999) destaca a importância dos vínculos pessoais para a
consolidação institucional e o relacionamento do órgão estatal com o ambiente político que o circula.
Partindo da análise do padrão relacional da rede de indivíduos, grupos e organizações que constitui a
comunidade profissional da política de saneamento na cidade do Rio de Janeiro, o autor elabora o
conceito de permeabilidade, o qual remete a um padrão relacional em que os campos do público e do
privado se interpenetram. Segundo o autor, a permeabilidade se constitui a partir de relações e
cumplicidades estabelecidas ao longo da vida dos indivíduos. Esses revelam, no caso analisado, grande
habilidade de produzir solidez institucional e respondem pelo padrão de vitórias nas licitações
realizadas no setor de saneamento da cidade.
Os achados da pesquisa de Marques revelam que a posição ocupada no interior da rede de
política, especialmente a localização em lugares por onde fluem mais informações, tendem a aumentar
a capacidade de realizar contratos com o Estado. Contrariando parte da literatura nacional, o autor
observou que não é o porte das empresas ou a rede de corrupção que explicaria o padrão de vitórias no
setor, mas sim os laços pessoais desenvolvidos com a comunidade profissional. Seus achados
problematizam ainda o conceito de “Anéis Burocráticos” (CARDOSO, 1977), ao mostrar como os
interesses privados penetram o campo estatal sem a necessidade de se estabelecer uma mesa de
negociações entre Estado e grandes capitais. Assumindo a relevância das relações pessoais, Marques
(1999: 63) ataca as teses do atraso propondo a incorporação da “prevalência de padrões de
relacionamento individual como base da estruturação do setor estatal (...), como parte da própria
constituição do Estado brasileiro”. Deste modo, o estudo da política no Brasil passaria necessariamente
pela captura desses laços, os quais tornam difícil a demarcação das fronteiras entre o espaço estatal e o
social e, conseqüentemente, coloca uma questão delicada aos modelos de análise que opõe os dois
campos.
Por outro caminho, Olivieri (2007) aplica a abordagem relacional para estudar as nomeações
para os cargos de presidente e diretores do Bando do Brasil. Seus achados apontam que, por um lado,
se as competências técnicas dos nomeados são consideradas na hora da escolha, por outro, o
pertencimento a uma rede social de relações pessoais é fundamental para decisão. O que tenderia a
definir a nomeação para esses cargos seriam os vínculos pessoais estabelecidos durante a trajetória do
profissional em função da participação conjuntas em cursos, da filiação acadêmica às teses dos
nomeadores, de ter trabalhado na mesma instituição anteriormente etc. Mais uma vez, é a inserção na
rede pessoal que influenciaria o resultado de um processo social. A autora destaca como uma das
vantagens da abordagem relacional a possibilidade de discutir a relação entre política e burocracia sem
recorrer à dicotomia clientelismos versus insulamento burocrático. Suas conclusões escapam às teses
do atraso ao destacar os efeitos ambivalentes do padrão relacional encontrado sobre a política de
accountability no Brasil. Para Olivieri (2007:165-166) as “condições de responsabilização entre
políticos e burocratas podem ser promovidas pelas capacidades de negociação e conciliação de
interesses desenvolvidos na rede”, isso em função das relações pessoais que as estruturam.
Ainda que promova perdas para a dimensão vertical da política de accountability, as relações
pessoais estruturariam e fortaleceriam a dimensão horizontal, por se basear na confiança e no
compromisso entre nomeados e nomeadores. Com base nesses estudos, o primeiro ponto a ser
observado na elaboração de modelos relacionais no Brasil corresponde ao mapeamento dos laços
pessoais. Isso implica em atentar-se para o impacto das relações pessoais de membros de organizações
civis, Estado e mercado sobre as interações entre esses atores.
Outro área na qual a abordagem relacionam tem contribuído é o debate sobre o
aperfeiçoamento democrático. Os pesquisadores têm contribuído para a desconstrução de
maniqueísmos e essencialismos que com freqüência contrapõe Estado e Sociedade.Os achados

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baseados nas discussões sobre o tema da democratização colocam questões relevantes para a teoria da
sociedade civil. A abordagem relacional tem falseado aspectos fundamentais que estruturam tal teoria.
Seus adeptos sustentam questionamentos acerca da construção de modelos com duas categorias
analíticas tomadas como atores antagônicos, sendo, o Estado o lugar da representação de interesses
particulares e a sociedade civil o lugar de defesa de interesses da coletividade.
Marcelo Kunrath Silva (2006) mostra como a sociedade civil, às vezes louvada às vezes
condenada pela literatura hegemônica, se compõe de uma miríade de atores cujas trajetórias definem a
relação desses com os processos de aprofundamento democrático. Argumenta sobre a necessidade de se
reconhecer que “as sociedades civis” resultam de configurações políticas particulares, podendo
influenciar a constituição de um associativismo marcado pela autonomia ou pelo clientelismo. Deste
ponto de vista, será preciso que as pesquisas nesse campo se atentem para essa questão, superando os
substancialismos que sustentam modelos baseados nas supostas virtudes democratizantes da sociedade
civil, de um lado, ou no pessimismo que denuncia as fragilidades dos atores societários, por outro. Não
sendo possível realizar uma caracterização prévia desses atores, não se pode estabelecer “uma relação
entre sociedade civil e construção democrática. Ao contrário, esta relação apresenta diferenciações de
acordo com os distintos contextos locais” (SILVA, 2006: 161).
Silva (2006) comparou dois casos para investigar o papel da sociedade civil na construção da
democracia. Seu estudo focou as relações entre o poder local e as organizações civis em dois
municípios do Estado do Rio Grande do Sul. Em um dos casos analisados por Silva (2006) a maior
parte das organizações civis apresentou comportamentos contrários à implementação do Orçamento
Participativo na cidade. Já no outro caso estudado, os atores societários apoiaram a iniciativa do poder
público em instituir um canal de participação social que possibilitava a reprodução desses atores e, ao
mesmo tempo, aumentava sua influência sobre os cidadãos. As configurações sócio-políticas das
cidades analisadas revelaram-se fortemente baseadas num padrão clientelista. A maioria das
organizações civis atuava como intermediárias entre poder público e população e se faziam fortemente
dependentes dessas relações para “sobreviverem”. O padrão relacional encontrado não representa um
exemplo ou uma exceção, deve-se atentar que resulta de uma trajetória particular e que não está livre de
mudanças. Sem negar a importância da variável institucional, Silva (2006, 2007) argumenta sobre a
importância dos elementos relacionais para entendermos o caráter multifacetado da sociedade civil e a
variabilidade dos resultados produzidos pelas instituições participativas.
A separação rígida entre Estado e Sociedade revela-se fluída com a abordagem relacional. Aí se
encontra outro aspecto importante confirmado por essa perspectiva analítica. A dificuldade de desenhar
as fronteiras entre os dois campos é um desafio antigo enfrentado tanto pelas teorias do Estado quanto
pelas teorias da Sociedade Civil. Contudo, a perspectiva relacional, ao possibilitar a incorporação de
elementos informais nas análises, desvenda a porosidade da fronteira entre o campo estatal e o societal,
permitindo visualizar o trânsito dos atores entre os dois campos. Na prática parece não haver separação
que isole os atores em um ou outro lado. Neste sentido, o conceito de permeabilidade (MARQUES,
1999), referido acima, representa a manifestação de uma das possibilidades de trocas entre os atores. O
estudo de Olivieri (2007) sobre as nomeações no Banco Central ilustra, igualmente, outro tipo possível
de troca entre o campo estatal e o societário.
Além de ilustrar esse fenômeno, caberia explicar sua importância para a democracia brasileira e
seus efeitos sobre as hierarquias que se desenvolvem dentro do mundo societário, como evidenciam
alguns estudos relacionais (MARTELETO, 2001; GURZA LAVALLE, CASTELLO e BICHIR, 2006,
2007, 2008; JUNQUEIRA e PINTO, 2009). A possibilidade de atravessar as fronteiras entre o campo
estatal e o societal chama atenção para os padrões de relacionamento entre os agentes da política de
accountability. Torna-se desejável identificar relações entre os que atuam na dimensão horizontal
(campo estatal) e os que atuam na dimensão social (campo societal) e o modo como são constituídos os
vínculos entre esses.

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Para o tema da democratização, a ARS não só ilustra o trânsito dos atores por diferentes
campos, como também revela a presença de atores centrais no campo societário denunciando o caráter
altamente hierarquizado deste. Analisando a dinâmica interna de um conselho gestor a partir da
perspectiva relacional, Azambuja Junior (2009) identificou a existência de uma rede interna formada
pelos conselheiros cuja configuração manifesta uma estrutura hierárquica. Há no caso analisado uma
tendência à centralização na rede “amenizada em razão da atuação de outros [conselheiros] com poder
de influência considerável” (AZAMBUJA JUNIOR, 2009: 77), por serem igualmente centrais.
Verifica-se a identificação de hierarquias em instituições onde, em tese, deveriam imperar relações
horizontais entre seus membros. Azambuja Junior (2009) indica os conselheiros que exercem certo
protagonismo e conseguem influenciar as decisões do conselho. Trata-se de um “núcleo duro” que
caracteriza os posicionamentos e o funcionamento do conselho.
A existência e o estudo desses núcleos devem ser o objeto do esforço das pesquisas sobre a
dinâmica interna dos conselhos. Isto é, deve se atentar para o modo como comunidades políticas se
constituem, consolidam e se apropriam desses espaços, bem como para a forma com essas pessoas
conectam os conselhos às redes externas, como por exemplo, conectam os conselhos a outros
mecanismos de controle da política. Tais vínculos, provavelmente sustentados pela participação
concomitante dos conselheiros em diversas organizações, não tem recebido a devida atenção nas
análises realizadas. A literatura sobre instituições participativas as analisa separadamente, por vezes
destaca seu isolamento como um dos obstáculos para o cumprimento das funções a elas atribuídas no
processo de avanço da democracia. É o caso, por exemplo, dos estudos sobre controle público (ou
controle social) e conselhos gestores. A contribuição da abordagem relacional aqui é clara, ela permite
capturar os laços informais que conectam tais instituições tanto às outras da mesma natureza como ao
conjunto de organizações civis interessadas em uma política específica, mas que não tem um assento
formal garantido nos conselhos gestores.
Tudo indica que essa é uma área da literatura nacional na qual a abordagem relacional terá
muito a contribuir para seu desenvolvimento. Entretanto, é necessário outros estudos de casos que
permitam a comparação dos resultados. Além disso, as pesquisas relacionais sobre as IP’s precisam
atentar para suas conexões com o ambiente externo que as envolvem.
A presença de padrões relacionais hierarquizados dentro de instituições que deveriam, em tese,
garantir relações horizontais entre seus membros também foi notada por Silva e Oliveira (2009: 65) ao
estudar uma cooperativa de economia solidária do Estado do Rio Grande do Sul. Os autores
identificaram “tensões entre o objetivo normativo de instituição de relações igualitárias e a dinâmica
concreta de relações entre desiguais, em termos de seus recursos relacionais”. Todavia, o que deveria
ser uma ameaça ao êxito da cooperativa é apontado como garantía de sucesso. Para além dos laços
fortes entre membros mais antigos – laços que sustentam a identidade do grupo –, os pesquisadores
descobriram a importância dos vínculos menos intensos e menos freqüentes (laços fracos) concentrados
na presidente da organização. Esses favorecem o desenvolvimento da cooperativa por facilitar o acesso
a recursos relevantes. A centralidade e o prestígio de alguns indivíduos, como no caso do conselho
supracitado, aparentemente garante a reprodução da instituição. Dessa maneira, os modelos relacionais
necessitam levar em conta a importância dos atores centrais para certos empreendimentos que, em tese,
deveriam garantir igualdade entre os envolvidos. A existência de hierarquias parece não colocar em
risco os projetos de aprofundamento da democracia e sob esse prisma deve ser investigada.
Silva e Oliveira (2009) levantam uma questão relevante do ponto de vista da construção da
teoria política e social. Os autores sustentam que mecanismos institucionais e disposições ideológicas
impedem a conversão das desigualdades relacionais em outras formas de desigualdades, tal como a
sócio-econômica. As evidencias aqui oferecem novos elementos para se pensar o lugar das instituições,
disposições ideológicas e mesmo da ação estratégica na vida política. As redes sociais não anulam o
impacto dessas variáveis. Assim é que “tendem a apresentar maior importância e a influenciar mais
intensamente as políticas quando as organizações estatais envolvidas são mais insuladas e a

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comunidade política, mais forte” (MARQUES, 2006: 36). Embora as redes sociais criem oportunidades
e constrangimentos para os atores sociais, elas não eliminam os efeitos de disposições ideológicas e
mecanismos institucionais, nem a importância da ação estratégica na política. O trabalho de Marques
(2006) mostra o modo como os políticos entram e saem ou, às vezes, neutralizam as redes sociais.
As pesquisas relacionais referidas ao aprimoramento democrático contribuem também para
outra área temática da literatura: a dinâmica interna de interação entre as organizações civis. É
verificado o caráter heterogêneo e hierarquizado do campo societário. Se a visão da sociedade civil
como um ator multifacetado tem sido reconhecida amplamente, os investimentos em ARS denunciam
uma organização interna altamente hierarquizada, a qual se revela sem a necessidade de se recorrer a
juízos prévios normativamente orientados. GurzaLavalle, Castello e Bichir (2006, 2007, 2008)
adentraram aos “bastidores da Sociedade Civil” e destacaram o padrão relacional desigual
desenvolvido pelas organizações civis de São Paulo. As mesmas tendências a hierarquização foram
encontradas em outros trabalhos, como é o caso de Marteleto (2001), Kauchakje e Ultramari (2007) e
Junqueira e Pinto (2009).
Esses trabalhos ilustram a presença de organizações civis centrais no campo societário. O poder
de influência e o prestígio não se distribuem de forma homogênea. As organizações civis parecem
possuir capacidades desiguais de ação e interlocução. Por exemplo, na rede analisada em São Paulo,
GurzaLavalle, Castello e Bichir (2006: 63) descobriram uma dinâmica interna que “opera conforme
clivagens de especialização ou diferenciações funcionais e de outras afinidades que emperram ou
franqueiam o contato entre entidades”.
Interessados em uma questão mais pontual, Kauchakje e Ultramari (2007) analisam a rede
sociotécnica do direito à habitação em Curitiba. Os achados de pesquisa revelam indícios que reforçam
a tendência à hierarquização entre atores societários. Os autores identificam o grupo de organizações
centrais da rede, em sua maioria envolvidos com outras temáticas, notadamente associadas à luta pelos
Direitos Humanos. Curiosamente, as organizações estritamente ligadas às questões da habitação
ocupam posições periféricas na rede. Além disso, destacam a importância das organizações ligadas à
Igreja Católica.
Marteleto (2001) contribui ao identificar atores relevantes na construção de relações e na
facilitação de trocas informacionais em uma rede de movimentos sociais e ONGs no subúrbio de
Leopoldina, na cidade do Rio de Janeiro. Junqueira e Pinto (2009), descrevendo a rede da Cooperativa
de Promoção da Cidadania (Cooperapic), apontam o padrão diversificado das conexões entre as
organizações civis membros da cooperativa. Encontram o estabelecimento de laços mais fortes entre
organizações de uma mesma região, a centralidade de atores que participam de vários projetos, a
constituição de subgrupos dentro da cooperativa e a concentração de poder por parte de alguns
membros.
As iniciativas destacadas podem contribuir para o avanço em alguns pontos da teoria social e
política em curso no Brasil. O padrão de relacionamento hierarquizado no campo societal parece
oferecer indícios sobre a importância do valor da liderança destacado por Sartori (1994) como o valor
da democracia contemporânea. Por sua vez, se o valor da igualdade que tanto pressionaria, segundo o
mesmo autor, a estrutura democrática hoje possível não se mostra realizado entre os atores que
historicamente procuram “radicalizar” a democracia, poderia estar atuando na direção de impedir que
as desigualdades relacionais se transformem em outros tipos de desigualdade.
Ultrapassando o nível das discussões mais abstratas, a abordagem relacional, por meio dos
estudos destacados, apresenta questões relevantes para a agenda acadêmica. Dentre essas, destaca-se o
tema da centralidade dos movimentos sociais. GurzaLavalle, Castello e Bichir (2006, 2007) apresentam
indícios dessa centralidade e sustentam que a novidade neste campo se configura na emergência das
organizações civis articuladoras (associações e redes de ONGs, Fundações etc.), bem como na
mudança, no plano da ação coletiva, da lógica do protesto para a lógica do projeto. Os atores destacam
ainda a capacidade de inovação das organizações civis e oferecem evidências contrárias à idéia de que

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as ONG’s trabalham em rede. Destacam que o padrão relacional interno desse tipo de organização civil
é fortemente hierarquizado. Todavia, parece interessante investigar se esse padrão relacional se repete
quando observado em uma rede compostas por ONG’s de uma mesma temática.
Por fim, a abordagem relacional ilumina alguns aspectos da relação entre
Estado/Sociedade/mercado. Lazzarini (2007: 18) destacou evidências sobre o baixo efeito das
privatizações ocorridas nos anos 90 sobre a estrutura dos proprietários no Brasil. Segundo o autor, as
transformações ocorridas aparentemente reforçaram “as posições de proprietários locais – notadamente
fundos de pensões de Estados e o próprio Governo Federal”. As evidências encontradas questionam as
teses sobre o aumento da influência dos proprietários estrangeiros sobre a economia nacional, embora
tenham de fato aumentado sua participação.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do ponto de vista operacional, ao aplicar a ARS como técnica para realização da abordagem
relacional, os trabalhos destacados se estruturam a partir de diferentes vínculos, dentre os quais se
destacam: os pessoais (amizade e família); os institucionais (trabalho e participação societária em
empresas); a participação e ideologia política; a participação em cursos; as referências de parcerias; a
articulação em projetos e campanhas; links na internet; afinidade temática; afinidade identitária;
contatos diretos; participação em reuniões. As medidas de rede mais utilizadas têm sido a densidade
das redes, os graus de proximidades, de intermediação e centralidade. Há ainda poucos casos
preocupados com os estudos de subgrupos na rede.
A ausência de um diálogo mais sólido entre os autores que vem publicando sob a perspectiva
relacional no Brasil parece contribuir para o isolamento de questões interessantes sobre os mecanismos
relacionais que atuam na política. Apesar disso, a apropriação da abordagem relacional no estudo da
política tem promovido avanços importantes. Por meio dessa, tornou-se possível a incorporação das
relações informais nas análises. A representação dos mecanismos informais, como a relevância dos
vínculos pessoais, ajuda a quebrar velhas dicotomias que perpassam as teses e as análises sobre o
Brasil, tais como: moderno versus atraso; clientelismos versus insulamento burocrático; Estado versus
Sociedade; Sociedade Civil versus campo político institucional.
Outro avanço sob a perspectiva relacional oferece indícios valiosos para findar as tendências ao
maniqueísmo que rondaram, e ainda rondam, os estudos sobre sociedade civil e instituições
participativas no processo de democratização. Destacam-se vantagens ao se superarem os esforços que
buscam encaixar objetos de pesquisas em categorias fixas e pouco capazes de captar o dinamismo da
vida social. Procedimento que deforma os fenômenos pesquisados para enquadrá-los de acordo com
uma ou outra perspectiva teórica.
Contribuindo para a literatura sobre sociedade civil e teoria democrática, os avanços da
perspectiva relacional moldam objetivamente o argumento cada vez mais aceito sobre a
heterogeneidade da sociedade civil. Além disso, os estudos relacionais revelam indícios de fortes
hierarquias que estruturam o processo de interação entre os atores societários. Esse padrão
hierarquizado também tende a se repetir dentro de instituições que, em tese, se estruturam sobre o
princípio da igualdade entre seus membros, tal como conselhos gestores e cooperativas.
Os achados aqui analisados propiciam elementos para o reenquadramento das relações de poder
e de conflito, evitando maniqueísmos e favorecendo a compreensão da realidade social sem a reificação
de atores de qualquer natureza. Apontam que os atores sociais, seguindo orientações diversas a partir
de contextos sócio-políticos específicos, mantêm diferentes relações com a democracia. Em especial,
tratando-se da miríade que compõe a chamada sociedade civil, podem desenvolver relações com as
elites políticas locais que contribuem ou criam obstáculos para os processos de aprofundamento
democrático (SILVA, 2006). Assim, problematiza-se a relação direta e unívoca entre sociedade civil e

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democratização, bem como o problema do conflito e da diversidade para além da relação


Estado/Sociedade, mas também entre as “facções” presentes dentro do Estado e da sociedade (civil).
A fertilidade do campo de pesquisa aberto pela abordagem relacional e os indícios das pesquisas
estruturadas sobre essa perspectiva incentivam novas iniciativas. No campo da sociologia da política,
alguns conceitos de natureza relacional potencializam as possibilidades de aplicação da abordagem e de
novos achados. Considerando as discussões sobre a política de accountability, principalmente na
América Latina, a aplicação da abordagem relacional coloca sob um novo foco, as questões destacadas
pela literatura. Por exemplo, torna possível verificar se a centralidade dos mecanismos horizontais se
confirmará, bem como identificar a existência de uma tendência hierarquicas dentro da dimensão social
dessa política.

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