Sermão de Natal 1
N
Saluator noster, dilectissimi, hodie
natus est, gaudeamus. Neque enim
locum fas est esse tristitiae, ubi na-
talis est uitae, quae consumpto
mortalitatis timore, ingerit nobis
de promissa aeternitate laetitiam.
Nemo ab huius alacritatis parti-
cipatione secernitur, una cunctis
laetitiae communis est ratio, quia
dominus noster, peccati mortis que
destructor, sicut nullum a reatu libe-
rum repperit, ita liberandis omnibus
uenit. Exultet sanctus, quia propin-
quat ad palmam. Gaudeat peccator,
quia inuitatur ad ueniam. Animetur
gentilis, quia uocatur ad uitam. Dei
namque filius, secundum plenitu-
dinem temporis quam diuini con-
silii inscrutabilis altitudo disposuit,
reconciliandam auctori suo natu-
ram generis adsumpsit humani, ut
inuentor mortis diabolus per ipsam
quam uicerat uinceretur.
In quo conflictu pro nobis inito,
magno et mirabili aequitatis iure
certatum est, dum omnipotens do-
minus cum saeuissimo hoste, non in
sua maiestate, sed in nostra humi-
litate congreditur, obiciens ei eam-
dem formam eamdem que naturam,
mortalitatis quidem nostrae parti-
cipem, sed peccati totius expertem.
Alienum quippe ab hac natiuitate
est, quod de omnibus legitur: Nemo
mundus a sorde, nec infans cuius
osso Salvador, caríssimos,
nasceu hoje. Regozijemo-
-nos! Não há lugar para
tristeza, pois nasceu a Vida, que,
destruindo o temor de nossa morte,
infundiu-nos a alegria da eternidade
prometida. Ninguém é excluído de
participar desse júbilo, pois todos se
alegram pelo mesmo motivo: nosso
Salvador, o destruidor do pecado
e da morte, como não encontras-
se ninguém livre de culpa, veio até
nós para libertar-nos todos. Exulte
o santo, porque se aproxima da vi-
tória. Alegre-se o pecador, porque
é convidado ao perdão. Anime-se o
pagão, porque é chamado à vida. O
Filho de Deus, na plenitude do tem-
po que foi disposto pelo profundo e
inescrutável conselho de Deus, assu-
miu a natureza do gênero humano
para reconciliá-la com seu Criador e
para que o diabo, inventor da morte,
pudesse ser vencido por aquela natu-
reza que vencera. Nessa luta travada
a nosso favor observou-se a máxima
e mais admirável eqüidade, pois o
Senhor Onipotente não combateu o
ferocíssimo inimigo em sua majesta-
de, mas em nossa humilde condição,
lançando contra ele nossa forma e
natureza e tornando-se partícipe de
nossa mortalidade, isento, porém, de
todo pecado. Com efeito, as seguin-
tes palavras que se aplicam a todos
estão muito longe de se aplicar a ele:
Ninguém está limpo da mancha, nem
2 Papa São Leão Magno
unius diei si sit uita eius super ter-
ram. Nihil in istam singularem na-
tiuitatem de carnis concupiscentia
transiit, nihil de peccati lege ma-
nauit. Virgo regia Dauidicae stirpis
eligitur, quae sacro grauidanda fetu
diuinam humanam que prolem
prius conciperet mente quam cor-
pore. Et ne superni ignara consilii
ad inusitatos paueret effectus, quod
in ea operandum erat a spiritu sanc-
to, conloquio discit angelico. Nec
damnum credit pudoris dei genetrix
mox futura. Cur enim de conceptio-
nis nouitate desperet, cui efficien-
tia de altissimi uirtute promittitur?
Confirmatur credentis fides etiam
praeeuntis adtestatione miraculi,
donatur que Elisabeth inopinata fe-
cunditas, ut qui conceptum dederat
sterili, daturus non dubitaretur et
uirgini.
Verbum igitur dei, deus filius dei,
qui in principio erat apud deum, per
quem facta sunt omnia et sine quo
factum est nihil, propter liberandum
ab aeterna morte hominem factus
est homo, ita se ad susceptionem
humilitatis nostrae sine diminutione
suae maiestatis inclinans, ut manens
quod erat adsumens que quod non
erat, ueram serui formam ei formae
in qua deo patri est aequalis uniret,
mesmo uma criança que vive um só dia
sobre a terra (Jó 14,4). Nesse nasci-
mento singular não entrou nada da
concupiscência carnal, nada esteve
sujeito à lei do pecado. Foi escolhi-
da uma Virgem régia, da estirpe de
Davi, para carregar no ventre um fru-
to sagrado e conceber na mente an-
tes que no corpo uma prole divina e
humana. E para que, desconhecendo
a sabedoria suprema, não temesse os
efeitos incomuns [que experimenta-
ria], as palavras do anjo explicam-lhe
o que nela havia de ser operado pelo
Espírito Santo. Aquela que logo se
tornaria a Mãe de Deus não crê per-
der o pudor. Como poderia duvidar
dessa nova forma de concepção, que
seria realizada pelo prometido poder
do Altíssimo? A fé [da Virgem] cren-
te é atestada por um milagre anterior:
foi dada a Isabel uma inesperada fe-
cundidade. Ora, aquele que deu um
filho a uma estéril, poderia dá-lo a
uma virgem.
Portanto, o Verbo de Deus, Deus Fi-
lho de Deus, que no princípio esta-
va junto de Deus, por quem foram
feitas todas as coisas e sem o qual
nada foi feito, para livrar o homem
da morte eterna, fez-se homem, as-
sumindo a nossa condição humilde
sem diminuir sua majestade, de tal
modo que, permanecendo o que era
e assumindo o que não era, uniu a
verdadeira forma de servo àquela
forma segundo a qual é igual ao Pai,

et tanto foedere naturam utramque
consereret, ut nec inferiorem consu-
meret glorificatio, nec superiorem
minueret adsumptio. Salua igitur
proprietate utriusque substantiae et
in unam coeunte personam, suscipi-
tur a maiestate humilitas, a uirtute
infirmitas, ab aeternitate mortali-
tas, et ad dependendum conditionis
nostrae debitum, natura inuiolabilis
naturae est infusa passibili, deus que
uerus homo uerus in unitatem do-
mini temperatur, ut quod nostris re-
mediis congruebat, unus atque idem
dei hominum que mediator et mori
posset ex uno et resurgere posset ex
altero. Merito uirgineae integritati
nihil corruptionis intulit partus sa-
lutis, quia custodia fuit pudoris edi-
tio ueritatis. Talis ergo, dilectissimi,
natiuitas decuit dei uirtutem et dei
sapientiam christum, qua nobis et
humanitate congrueret et diuinita-
te praecelleret. Nisi enim esset deus
uerus, non afferret remedium, nisi
esset homo uerus, non praeberet
exemplum. Ab exultantibus angelis
nascente domino gloria in excelsis
deo canitur, et pax in terra bonae
uoluntatis hominibus nuntiatur. Vi-
dent enim caelestem Hierusalem ex
Sermão de Natal 3
e juntou ambas as naturezas numa
aliança tal, que nem a glória consu-
miu a natureza inferior, nem a as-
sunção diminuiu a natureza superior.
Conservando-se, pois, as proprieda-
des de ambas as naturezas que se uni-
ram na unidade de uma só pessoa, a
majestade assume a humildade; o po-
der, a fraqueza; a eternidade, a mor-
talidade; e, para pagar a dívida a nos-
so Criador, a natureza imperecível é
infundida numa natureza passível, o
Deus verdadeiro e o homem verda-
deiro se unem harmoniosamente na
unidade do Senhor, para que, como
era conveniente a nossa salvação, pu-
desse ser um só e mesmo mediador
entre Deus e os homens, e pudesse
por um lado morrer, e por outro lado
ressurgir. Com razão o nascimento
da Salvação não corrompeu em nada
a integridade virginal; dar à luz a Ver-
dade preservou seu pudor. Esse tipo
de nascimento, caríssimos, convinha
a Cristo, Poder de Deus e Sabedo-
ria de Deus, pois nesse nascimento
Cristo se tornou igual a nós quanto
à humanidade e manifestou a su-
perioridade de sua divindade. Com
efeito, se não fosse Deus verdadeiro,
não nos poderia trazer um remédio, e
se não fosse homem verdadeiro, não
nos poderia servir de exemplo. Ao
nascer o Senhor, os anjos exultantes
cantam a glória de Deus nas alturas
e anunciam paz na terra aos homens
de boa vontade. Vêem a Jerusalém
4 Papa São Leão Magno
omnibus mundi gentibus fabricari
de quo inenarrabili diuinae pietatis
opere quantum laetari debet humili-
tas hominum, cum tantum gaudeat
sublimitas angelorum?
Agamus ergo, dilectissimi, gratias
deo patri, per filium eius, in spiritu
sancto, qui propter multam carita-
tem suam qua dilexit nos, misertus
est nostri, et cum essemus mortui
peccatis, conuiuificauit nos christo,
ut essemus in ipso noua creatura
nouum que figmentum. Depona-
mus ergo ueterem hominem cum
actibus suis, et adepti participa-
tionem generationis christi, carnis
renuntiemus operibus. Agnosce, o
christiane, dignitatem tuam, et diui-
nae consors factus naturae, noli in
ueterem uilitatem degeneri conuer-
satione recidere. Memento cuius ca-
pitis et cuius sis corporis membrum.
Reminiscere quia erutus de potesta-
te tenebrarum, translatus es in dei
lumen et regnum. Per baptismatis
sacramentum spiritus sancti factus
es templum, noli tantum habitato-
rem prauis de te actibus effugare et
diaboli te iterum subicere seruituti,
quia pretium tuum sanguis est chris-
ti, quia in ueritate te iudicabit, qui
misericorditer te redemit, christus
dominus noster.
celeste ser construída com povos do
mundo inteiro. Se os anjos sublimes
tanto se alegram, quão grande en-
tão não deve ser a alegria do pobre
homem ao contemplar essa inefável
obra da misericórdia divina?
Portanto, caríssimos, por meio do
Filho e no Espírito Santo demos
graças a Deus Pai, que, por causa da
imensa caridade com que nos amou,
teve piedade de nós, quando ainda
estávamos mortos no pecado, e nos
fez reviver com Cristo, para que se-
jamos nele uma nova criatura, uma
nova criação. Abandonemos, pois, o
velho homem com as suas obras e,
participando do nascimento de Cris-
to, renunciemos às obras da carne.
Reconhece, ó cristão, a tua dignidade
e, feito partícipe da natureza divina,
não voltes por tua conduta depra-
vada à antiga baixeza. Lembra-te de
quem é teu cabeça e de que corpo és
um membro. Lembra-te de que, arre-
batado do poder das trevas, foste in-
troduzido na luz e no reino de Deus.
Pelo sacramento do batismo te tor-
naste templo do Espírito Santo. Não
expulses, por teus atos depravados,
esse imenso hóspede, nem te sujeites
novamente ao diabo, pois tu vales
o sangue de Cristo, e nosso Senhor
Cristo, que por misericórdia te redi-
miu, te julgará segundo a verdade.