Você está na página 1de 11

30

Revista Filosofia Capital


ISSN 1982 6613 Vol. 5, Edição 10, Ano 2010.
CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE À EDUCAÇÃO

Danilo Bilate
danilobilate@yahoo.com.br

Rio de Janeiro - RJ
2010
31

Revista Filosofia Capital


ISSN 1982 6613 Vol. 5, Edição 10, Ano 2010.
CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE À EDUCAÇÃO

Danilo Bilate1
danilobilate@yahoo.com.br

RESUMO: Com este texto quer-se pensar sobre as possibilidades de suporte teórico da
psicanálise para a prática educativa, sobretudo no que se refere especificamente ao papel
desempenhado pelo professor em sala de aula. Para tanto, mostramos como vários
desdobramentos práticos daqueles possíveis suportes já são de conhecimento da pedagogia,
mais especificamente de Paulo Freire, como, por exemplo: a constatação da impossibilidade
de uma neutralidade do professor, da necessidade de uma abertura por parte do professor para
a singularidade de cada um de seus alunos, da riqueza da fala do aluno e da importância de se
dar foco integral a essa fala, entre outros. Com a referência a conceitos de Freud e Lacan,
como os de “desejo”, “sujeito-suposto-saber” e, principalmente, de “transferência” e, além
disso, com a reflexão sobre características gerais do processo analítico clínico, buscamos
mostrar como esse campo teórico pode ser útil para que os educadores deixem de lado o papel
de “mestre”, isto é, de um professor tirano, pretensamente detentor do saber e saibam manejar
a transferência, que se mostra presente em sala de aula e não apenas na clínica psicanalítica.

Palavras-Chave: Desejo – Sujeito-suposto-saber – Transferência.

Introdução
Este trabalho pretende ser não uma resposta ou um encaminhamento definitivo para
as questões da educação, mas sim uma hipótese. Mais do que isso, devido às suas
particularidades, não se torna nem mesmo uma hipótese, senão que um questionamento;
afinal, o que podemos pensar acerca das contribuições da teoria psicanalítica no âmbito da
educação?

Alguma coisa já se foi dita, pelo próprio Freud, sobre a educação. Entretanto, nos
parece que pouco foi feito no sentido de se pensar psicanaliticamente a situação específica do
ensino em sala de aula. Como pensar, enfim, psicanaliticamente, a relação professor-aluno e o
processo de ensino? Responder a essa pergunta é, paradoxalmente, não fornecer respostas,
mas criar ainda mais questionamentos. De fato, parece original um trabalho deste tipo, já que
1
Doutorando e Mestre em Filosofia pelo PPGF-UFRJ, bolsista CAPES.
32

Revista Filosofia Capital


ISSN 1982 6613 Vol. 5, Edição 10, Ano 2010.
pelo menos não é de nosso conhecimento nenhum trabalho semelhante. E quando se faz algo
novo, é difícil ou mesmo equivocado procurar por respostas definitivas.

Quando nos referirmos à psicanálise estaremos não só tratando dos conceitos


freudianos como também de alguns conceitos de Jaques Lacan. Se por um lado muito do
ensino lacaniano é como que uma reformulação da teoria freudiana, é inegável que há pontos
de originalidade, ou, pelo menos, releituras mais otimizadas de pontos da teoria freudiana.

Todavia, ainda resta a pergunta: por que é na psicanálise que encontramos os


conceitos a serem estudados e repensados para a prática educativa? O motivo primeiro é que é
a psicanálise que se deteve mais profundamente no problema do desejo. A rigor, a relação
entre professor e aluno(s) é entendida por nós como uma relação de desejo, assim como a
relação entre analista e analisando. Mais ainda, tanto na situação analítica quanto na situação
de ensino, parece-nos que a relação de desejo está implicada mesmo na questão do saber. Ora,
a psicanálise demonstrou a importância de se entender a análise clínica como essa relação de
desejo que se coloca como uma busca de (um) saber(es). Como é nossa hipótese, a prática
educativa – ao menos a real prática educativa, onde há, de fato, aprendizado – é marcada
também como uma relação de desejo em busca de (um) saber(es).

Contudo, é preciso esclarecer que não buscaremos aqui expor a integralidade da


teoria psicanalítica. Em verdade, esta é uma teoria extremamente complexa, monumental, na
qual todos os conceitos aparecem interligados. Para entendermos determinado conceito,
precisaríamos entender um outro, seguindo-se assim numa enorme cadeia explicativa que não
cabe neste trabalho. Foi realmente muito difícil que largássemos a profundidade característica
do pensamento freud-lacaniano, em busca de uma superficialidade certamente não desejável,
mas inevitável, dada as nossas atuais limitações. Ora, também é sabido que os leitores a quem
este texto se dirige estão interessados em pensar a prática educativa e somente ela. Seria
infrutífero ou mesmo maçante direcionarmos nossos esforços para as extraordinárias
explicações teóricas da psicanálise. Explicaremos os conceitos somente na medida em que for
necessário para a compreensão deles no contexto da educação.2

Para facilitar a comparação com o contexto educacional, remetemo-nos, quando


possível, ao posicionamento de Paulo Freire, já que é em sua obra que encontramos algumas

2
Assim, no nosso levantamento bibliográfico, não dedicamos espaço aos textos de Lacan, mas apenas a um de
seus comentadores, além, é claro, de alguns textos freudianos. Isso facilitou a delimitação teórica que
procurávamos. Se recorrêssemos aos originais lacanianos, por exemplo, nos perderíamos na profundidade
teórica e obscuridade estilística de Lacan, o que não nos seria útil para o nosso propósito atual.
33

Revista Filosofia Capital


ISSN 1982 6613 Vol. 5, Edição 10, Ano 2010.
semelhanças com aquilo que enxergamos ser possível à psicanálise ajudar na nossa
compreensão da educação. Cônscios das muitas diferenças entre o pensamento de Freire e a
psicanálise – de fato, como muito se sabe, Paulo Freire não é psicanalista – não as exporemos
aqui e só o citaremos quando semelhanças importantes se mostrarem imprescindíveis para
nosso propósito.

Ademais, devemos deixar claro que a psicanálise mesma não nos fornece qualquer
base para uma aproximação entre ela e a prática educativa. O que pretendemos fazer é apenas
pensar psicanaliticamente essa prática. É importante ressaltar com toda a clareza necessária;
análise não é ensino e ensino não é análise. Freud, aliás, é bem enfático quanto a esse ponto:

O trabalho da educação é algo sui generis: não deve ser confundido com a
influência psicanalítica e não pode ser substituído por ela [...] A
possibilidade de influência analítica repousa em precondições bastante
definidas, que podem ser resumidas sob a expressão ‘situação analítica’; ela
exige o desenvolvimento de determinadas estruturas psíquicas e de uma
atitude específica para com o analista (FREUD, 1925, p.308).

São, afinal, dois campos e duas atuações distintas se tomadas de um ponto de vista
mais geral. No entanto, não apenas nós, mas mesmo Freud, estabelece algumas aproximações,
como veremos no nosso primeiro tópico, que agora se segue.

Analogias entre a psicanálise e a educação: a posição freudiana

É de Freud, o criador da psicanálise, a afirmação esclarecedora de que “O trabalho da


psicanálise sugere analogia com [...] a influência de um educador” (FREUD, 1919, p.175).
Em que se fundamenta essa analogia? Como dissemos, tanto a prática educativa quanto a
análise está fundamentada na busca por um saber, o que trataremos com mais atenção mais
adiante. No entanto, essa analogia provavelmente se refere ao fato de o analista poder ocupar
a função de professor, em certo sentido, de acordo com as exigências de uma determinada
fase do processo analítico: “ele [o analista] deve possuir algum tipo de superioridade, de
maneira que, em certas situações analíticas, possa agir como modelo para seu paciente e, em
outras, como professor” (FREUD, 1937, p.265). Na primeira passagem podemos ver que
Freud fala apenas de uma analogia e não, portanto, de uma relação direta de igualdade. Já na
segunda, verificamos que o foco de Freud é a análise e que o professor é tomado como
modelo para a atuação analítica e, não – como pretendemos fazer aqui – ao contrário, ou seja,
34

Revista Filosofia Capital


ISSN 1982 6613 Vol. 5, Edição 10, Ano 2010.
tomando o analista como modelo para o professor, tendo o foco neste último. Apesar dessas
ressalvas, aquelas duas passagens podem ser consideradas duas pistas iniciais úteis para a
nossa pesquisa e, decerto, como confirmação da possibilidade de nossa hipótese.

Fora essas citações que vimos acima, não há nada mais que Freud fale diretamente
sobre a educação e sua relação com a psicanálise – ausência que também se encontra em
Lacan. Passemos, então, para a nossa hipótese de trabalho.

O posicionamento ético do analista/educador: neutralidade versus respeito à diferença

Seguindo nossa pesquisa, podemos ler em Freud algumas indicações éticas que se
assemelham muito com os apontamentos de Paulo Freire. Este educador admite que “é
impossível, na verdade, a neutralidade da educação” (FREIRE, 2003b, p.110). Do mesmo
modo, Freud afirma que se deve sempre “levar em conta não apenas a natureza do ego [eu] do
paciente, mas também a individualidade do analista” (FREUD, 1937, p.264) na relação
analítica. Por quê? Justamente porque o eu do analista influencia necessariamente a prática
analítica. Em uma palavra, não há neutralidade na clínica. Lacan confirma esse ponto quando
fala sobre o desejo do analista. O analista é influenciador sobretudo porque é alguém que
deseja algo na e para a sua relação com o analisando. Voltaremos a esse tema mais tarde. Mas
se entendermos ser impossível a neutralidade tanto em sala de aula como na clínica, estaremos
concebendo que o analista ou o educador devam impor – ou não possam deixar de impor –
seus valores e significações para o analisando ou alunado?

É preciso fazer a pergunta porque a conclusão que nela se inclui é equivocada. Com
efeito, outro apontamento ético de Freire muito próximo à psicanálise é o da necessidade se
respeitar a individualidade do educando. A esse respeito, analogamente Freud diz:

Recusamo-nos, da maneira mais enfática, a transformar um paciente, que se


coloca em nossas mãos em busca de auxílio, em nossa propriedade privada,
a decidir por ele o seu destino, a impor-lhe os nossos próprios ideais, e, com
o orgulho de um Criador, a formá-lo à nossa própria imagem e verificar que
isso é bom. Vez por outra surgem ocasiões nas quais o médico é obrigado a
assumir a posição de mestre e mentor. Mas isso deve sempre ser feito com
muito cuidado, e o paciente deve ser educado para liberar e satisfazer sua
própria natureza, e não para assemelhar-se conosco (Freud, 1919: 178).

Em todas as suas tentativas de melhorar e educar o paciente, o analista deve


respeitar a individualidade deste (Freud, 1940: 190).

Portanto, o fato de o analista/educador ser incapaz de ser neutro e, em consequência,


35

Revista Filosofia Capital


ISSN 1982 6613 Vol. 5, Edição 10, Ano 2010.
ser sempre parcial e influenciador, não deve se confundir com a tirania do exercício do ensino
ou da análise. A função do analista/educador não é ditatorial. Assim, é preciso respeitar a
diferença, isto é, a individualidade do analisando/educando e trabalhar para que ele conquiste
sua própria autonomia.

O desejo e o saber: propostas para um instrumental analítico-educativo

Continuemos nossa reflexão com a demonstração de um ponto em comum entre a


situação analítica e a educacional, qual seja, o de que em ambas tem-se uma busca por um
saber. A rigor, quando uma pessoa procura o analista, ela está procurando o porquê de sua
doença ou qualquer outro mal-estar. Falando psicanaliticamente, o cliente chega à análise em
busca de um saber sobre a sua sintomatologia. Ele sofre e quer saber por que sofre e como
pode deixar de sofrer. Da mesma forma, também o aluno chega à escola em busca de um
saber, não de seus sintomas, é claro, mas ainda assim de um saber.

É claro que essa é uma consideração ideal. Muitos alunos não estão em busca desse
saber, e alguns clientes também não. Assim como no cotidiano escolar é comum ouvir dos
alunos a fala: “estou aqui porque meus pais me obrigam”, isso também pode ocorrer com um
cliente adolescente, por exemplo, que chega ao analista porque fora obrigado por seus pais.
Mas o que pensar disso? Se não há essa busca, falando propriamente, se não há esse desejo
pelo saber, não há ensino e não há análise. De fato, a existência desse desejo é condição sine
qua non para a entrada em análise. Do mesmo modo, no processo educacional, a inexistência
do desejo significa a inexistência daquilo que Freire chamou de curiosidade epistemológica, e
implica na ineficaz educação bancária, “um ato de depositar, em que os educandos são os
depositários e o educador o depositante” (FREIRE, 2003a, p.58). A curiosidade
epistemológica traz como consequência o questionamento. E, segundo Alain Juranville, para
Lacan a curiosidade e o questionar estão intimamente ligados ao desejo: “O ser daquele que
questiona, portanto, é desejo” (JURANVILLE, 1987, p.16).

Entretanto, surge a pergunta: o que é o desejo para a psicanálise? Respondê-la não é,


sem dúvida, tarefa das mais fáceis, nem das mais curtas. Mas esforçando-nos para fazê-lo
muito resumidamente, devemos começar com a constatação: tanto na situação educacional
quanto na analítica há uma relação entre seres humanos, entre sujeitos. Ora, Lacan entende o
sujeito exatamente como sujeito desejante. De acordo com a teoria psicanalítica, o sujeito se
36

Revista Filosofia Capital


ISSN 1982 6613 Vol. 5, Edição 10, Ano 2010.
estrutura, ou seja, é formado, é constituído a partir das experiências infantis. Dentre estas, a
mais marcante e definidora é, sem dúvida, o Édipo, o complexo de castração. A experiência
da castração é uma experiência de falta. E o desejo é justamente dependente da falta.
Desejamos porque a nós nos falta alguma coisa. Assim, “a lei da castração, à qual não se
pode escapar. É ela [...] que constitui o elemento mais profundo da teoria lacaniana do desejo”
(Ibidem, p.96). Aqui não nos referimos a qualquer falta, mas a uma falta primordial, uma falta
constituinte, que trará efeitos para toda a vida do sujeito, quais sejam, todos os implicados no
fato de que o sujeito sempre será um sujeito desejante.

Sabemos já, então, que somos desejantes. Todos nós. E não fogem a regra nem
mesmo o analista ou o professor. Aqui concluímos o que queríamos dizer com relação de
desejo. Nas relações dialéticas professor-aluno ou analista-analisando, tem-se em jogo o
desejo de ambos os lados. Há, portanto, que se considerar, na educação, o desejo do professor,
e não apenas o do alunado, neste processo de aquisição de saber. O que podemos aprender
com a psicanálise neste ponto? O que ela fala sobre o desejo do analista e o papel do analista
na produção de saber que se dá na análise?

Com efeito, se Freire afirma que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar
possibilidades para a sua produção ou a sua construção”, (FREIRE, 2003b, p.22) ou seja, que
o saber é construído na relação professor-aluno, isto está de pleno acordo com o que a
psicanálise enxerga; o saber é construído na relação analista-analisando. E como se dá essa
construção? Primeiro ponto de semelhança: tanto o ensino quanto a análise se sustentam na
fala: “O tratamento analítico é uma relação de fala, com os efeitos daí decorrentes. O que
Lacan chamou posteriormente de ‘ato analítico’ é o ato da fala” (JURANVILLE, 1987,
p.221). Mas quem fala? Quem sustenta o processo? Ora, toda a idéia do processo analítico é
justamente abrir um espaço para a fala do analisando, donde a importância do método de
associação-livre – que é o método característico do processo de análise, onde se pede ao
analisando que ele fale tudo aquilo que lhe vêm à mente. Ora, é através dessa fala que a
análise é estruturada. Assim, é o analisando quem sustenta a análise.

Neste sentido, é importante, como se sabe, que o analista saiba escutar; e a escuta é
ela mesma uma fala. Através da escuta, o analista – e também o professor – falam com o
analisando/aluno. De fato Freire nos diz: “Somente quem escuta paciente e criticamente o
outro, fala com ele” (FREIRE, 2003b, p.113). Logo, se temos por um lado que é a fala do
analisando que fundamenta o processo analítico, parece que também é a proposta de Freire de
37

Revista Filosofia Capital


ISSN 1982 6613 Vol. 5, Edição 10, Ano 2010.
que são as necessidades do aluno, percebidas em sua fala, que sustentam o processo de
ensino. Mas o que cabe, então, ao professor e ao analista, além de escutar (embora essa escuta
já seja ela mesma uma fala)?

Assim como em Freire há uma liberdade que é dada ao alunado, tendo todavia o
professor o papel de se colocar como orientador do processo de ensino, também o analista
guia o processo analítico com as devidas intervenções e cortes. Entenda-se a fala
propriamente dita do analista como sendo a intervenção e o corte como sendo o fim que é
dado à sessão estrategicamente (já que o corte também diz algo). Todas essas funções que
cabem ao analista deixam à mostra o seu desejo ao analisando. Por este motivo, Lacan
trabalhou tanto a questão do desejo do analista, evidenciando a impossibilidade de uma
neutralidade do analista e demonstrando a importância desse desejo para o estabelecimento da
transferência e, portanto, para possibilitar a análise, já que a análise só se estabelece com a
transferência.

Chegamos aqui em um ponto crucial. Entender o que é a transferência e como ela se


relaciona com a questão do saber é fundamental para os nossos propósitos. Explicando
rapidamente, a transferência, como o próprio nome diz, é um transferir, é um deslocamento
de um sujeito para outro; na situação analítica, do analisando para o analista e também do
analista para o analisando – neste último caso, fala-se em contratransferência. Mas
deslocamento de quê? De sentimentos, sejam eles favoráveis (transferência positiva) ou
desfavoráveis (transferência negativa).

A análise só pode existir se houver transferência positiva. Aliás, a existência da


transferência negativa em altas doses, digamos assim, pode ser mesmo motivo suficiente para
o fracasso da análise. O mesmo pode ser dito da contratransferência. Porque é desta que
depende aquela. Expliquemos melhor: é pelo desejo do analista que o desejo do analisando
pode florescer e só sob estas condições a análise pode ocorrer. Mais do que desejo, o termo
correto é amor: “no amor, existe o desejo: a tarefa do analista seria, através de seu próprio
desejo [...] fazer vir à luz o desejo no sujeito. A partir do amor” (JURANVILLE, 1987,
p.224). Logo, a experiência analítica é fundamentalmente uma experiência de amor.

Entretanto, não é apenas o desejo do analista que condiciona a existência da


transferência. Há toda uma questão do saber envolvida; em um primeiro momento – neste
38

Revista Filosofia Capital


ISSN 1982 6613 Vol. 5, Edição 10, Ano 2010.
momento de estabelecimento da transferência – o analisando3 coloca o analista na posição
simbólica de sujeito suposto saber (que Lacan designa por SsS). Ele realmente supõe que o
analista detém um saber sobre a sua patologia: o analista saberia como ajudá-lo. Essa
atribuição simbólica do saber ao analista é condição necessária para o estabelecimento da
transferência: “Lacan fala então do ‘sujeito suposto saber’ e esclarece que ‘desde que haja em
algum lugar o sujeito suposto saber, há transferência” (Ibidem).

Com a transferência estabelecida, e a conseqüente entrada em análise, o analista


esforça-se para sair deste lugar de detentor do saber para mostrar que o saber que se procura
na análise é do cliente (embora, a rigor, não pertença ao cliente, já que é um saber do
inconsciente) e o acesso a ele deve ser construído dialeticamente, na situação relacional em
que analista e analisando se encontram. É por isso que o que Lacan denomina de discurso
analítico deve ser diferenciado daquilo que ele denominou de discurso universitário, já que “a
tese desse discurso [universitário] consiste em que é preciso buscar a mestria” (Idem, p.300) e
essa mestria deve ser evitada – o lugar de SsS deve ser desocupado após a entrada em análise.
Mais do que isso, sair desse lugar é demonstrar-se como ser faltante, que não sabe e está ali
para saber.

Isso tudo nos parece muito semelhante com o contexto educacional proposto por
Freire. É claro por um lado que o professor já está mesmo ocupando a função de detentor do
conhecimento, mas, pergunta Freire: “Como posso respeitar a curiosidade do educando se,
carente de humildade e da real compreensão do papel da ignorância na busca do saber, temo
revelar o meu desconhecimento?” (FREIRE, 2003b, p.67). Em outras palavras: como posso
fazer o aluno desejar aprender, se não me mostro como faltante, se não mostro o meu desejo
de saber?

A transferência, e isso é admitido pela psicanálise, é encontrada em outros campos


humanos, além do campo analítico – no educacional, por exemplo. O professor já se apresenta
como alguém que, a princípio, sabe mais do que seu alunado e, neste sentido, está em uma
posição hierarquicamente superior. Ele ocupa, portanto, o lugar de sujeito-suposto-saber
(SsS). Assim como na clínica, também em sala de aula essa é uma condição fundamental para
o estabelecimento de uma transferência positiva que será útil para o processo de ensino.
Assim como o analisando que inicialmente acredita que o analista detém o saber sobre seu
3
É importante que se deixe claro, estamos nos referindo ao tipo neurótico. Importa esclarecer, já que a clínica é
pensada de diferentes maneiras segundo a estrutura do sujeito que procura a análise – na teoria freud-lacaniana
há a diferenciação entre neurose, psicose e perversão.
39

Revista Filosofia Capital


ISSN 1982 6613 Vol. 5, Edição 10, Ano 2010.
mal-estar, também o aluno acredita que o professor detém o saber de determinado
conhecimento (matemática, geografia, etc.). Se o aluno já não deseja a relação com o
professor a priori, é preciso que o professor demonstre sua falta, sua condição de desejante,
para que o aluno com ele se identifique. Essa identificação – e toda identificação é sempre
amorosa – é um processo amoroso que se estabelece justamente porque o professor demonstra
desejo pelo aluno, desejo pela fala do aluno, isto é, amor pelo aluno. Bref, é a escuta
interessada do professor que alimenta o interesse do aluno pela relação entre ambos. Esse
interesse, por sua vez, alimenta a curiosidade do aluno, faz nascer no aluno o desejo pelo
conhecimento – assim como, é claro, o desejo por ser ouvido, querido, aceito, etc. – e propicia
enfim o aprendizado real. Aprendizado não apenas não-ilusório, mas não-robótico porque
nascido do questionamento sui generis.

Por que o professor não poderia mostrar o seu amor e o seu desejo de ensinar? Por
que o professor não poderia sair dessa posição de mestria, de superioridade hierárquica,
mostrando-se como ser faltante, como ser desejante? Por que, afinal, o professor não poderia
aprender com o aluno e, assim, construir o saber com o aluno e a partir da fala do aluno? São
apenas algumas das questões que surgem após esta pequena e rápida reflexão da teoria
psicanalítica na prática educativa.
40

Revista Filosofia Capital


ISSN 1982 6613 Vol. 5, Edição 10, Ano 2010.
REFERÊNCIAS

DALI, Salvador. Metamorfose de Narciso - 1937. Disponível em:


http://www.salvadordalimuseum.org/. Acesso em: 14/12/2008. (Imagem – Marca D’água).
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 35 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003a.
_____. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 26 ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2003b.
FREUD, Sigmund. Linhas de progresso na terapia psicanalítica. (1919). In: Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XVII. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
_____. Prefácio a Juventude desorientada de Aichhorn. (1925). In: Obras, op. cit., Vol. XIX.
_____. Análise terminável e interminável. (1937). In: Obras, op. cit., Vol. XXIII.
_____. Esboço de psicanálise. (1940). In: Obras, op. cit., Vol. XXIII.
JURANVILLE, Alain. Lacan e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987.

Você também pode gostar