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IV – TRAIÇÃO James Hillman (do livro “Estudos de Psicologia Arquetípica) Ed. achiamé

É corrente entre os judeus uma história, uma dessas anedotas comuns de judeus, que diz a seguinte: um
pai estava ensinando seu filho a ser menos medroso, a ter mais coragem, fazenda-a pular de uma escadaria.
Colocou o menino no segundo degrau e disse: "Pule que eu seguro você". E a menino pulou. O pai então
colocou o garoto no terceiro degrau, dizendo.: "Pule que eu seguro você". Apesar de estar com medo, o
menino confiou no pai, fez a que ele mandou e pulou em seus braços. Daí então o pai colocou-o no degrau
seguinte, depois na seguinte, cada vez dizendo: "Pule que eu seguro você" , e todas as vezes o menino pulou
e a pai segurou. E assim foram indo. Aí então o garoto pulou de um degrau bem alto, da mesma for ma que
antes; mas desta vez a pai recuou e o menino foi direto com a cara no chão. Quando conseguiu levantar-se,
machucado e chorando, o pai falou: "Isto vai lhe ensinar: nunca confie num judeu, mesmo que ele seja seu
pai".
Essa história - com todo seu questionável anti-semitismo sugere outras conotações mais, principalmente
porque muito provavelmente foi inventada pelos próprios judeus. Acredito que tenha alguma coisa referente
ao nosso tema - traição. Por exemplo: por que se deveria ensinar um menino a não confiar? E a não confiar
num judeu? E a não confiar em seu próprio pai? Que significa ser traído pelo próprio pai, ou por alguém muito
chegado? Que significa para um pai, para um homem, trair alguém que confia nele? Qual a finalidade da
traição na vida psicológica? Estas são. as questões que levantamos.
I

Devemos tentar começar por algum lugar. Prefiro neste caso começar "no começo", com a Bíblia, mesmo
que, como psicólogo, possa estar invadindo o terreno da teologia. Apesar de ser psicólogo não desejo, no
entanto começar como os psicólogos em geral começam, com aquela outra teologia, aquele outro jardim do
Éden: a criança e sua mãe.

Quando, pela tarde, Adão saia a passear com Deus, confiança e deslealdade não surgiam como temas
de suas conversas. A imagem do jardim do paraíso com estádio inicial da condição humana apresenta aquilo
que poderíamos chamar de "confiança primordial", ou como chamou Santayana, "fé animal"; uma certeza
fundamental - a despeito da angústia, do medo, da dúvida'- de que o chão encontra-se ali mesmo, embaixo
dos pés, e que não vai sumir quando dermos o próximo passo, de que amanhã o sol vai nascer outra vez, de
que o céu não vai cair sobre nossas cabeças e de que Deus de fato fez o mundo para o homem. Esta
situação de "confiança primordial", apresentada como a imagem arquetípica do Éden, repete-se nas vidas
individuais de filhos e pais. Assim como Adão, com fé animal, no começo confia em Deus, da mesrna forma o
menino no começo confia em seu pai. Em ambos, Deus e Pai, encontra-se a imagem paternal: confiável, fir -
me, estável, justa, aquela Rocha Eterna cuia palavra firma a aliança. Essa imagem paterna pode ser expressa
também pelo conceito do Logos, pelo poder imutável e pela sacralidade da palavra masculina.
Mas já não estamos mais naquele Jardim, Eva colocou um ponto final naquela dignidade nua. Desde a
expulsão, a Bíblia registra uma história de traições de todo tipo: Caim e Abel, Jacó e Esaú, Labão, José
vendido por seus irmãos e seu pai enganado, as promessas não cumpridas do Faraó, a adoração do bezerro
pelas costas de Moisés, Saul, Sansão, Jó, a ira de Deus e a quase anulação da criação – mais e mais,
culminando no mito central da nossa cultura: a traição de Jesus.
Embora não estejamos mais naquele Jardim, podemos a ele retomar cada vez que nos colocamos numa
situação de relacionamento profundo, por exemplo, o amor, a amizade, a análise, em que se reconstitui a
situação de confiança primordial. Uma outra forma diferente de designa-la é chamá-la de temenos, o vaso
analítico, a simbiose mãe-filho. Aqui se tem de novo a segurança do Éden. Mas essa segurança - ou pelo
menos o tipo de temenos a que estou me referindo - é masculina, dada pelo Logos, através de uma
promessa, um pacto, uma palavra. Não se trata de uma confiança primordial envolvendo seios, alimento e
calor epidérmico; é similar, mas diferente e acredito ser importante assumir que não temos de recorrer sempre
à mãe para nossos modelos de tudo quanto é básico na vida- humana.
Nesta segurança, baseada não na carne, mas no verbo, a confiança primordial é restabelecida e assim o
mundo primordial pode emergir em segurança -a fraqueza e a sombra, o desamparo nu de Adão, o mais
primitivo dos homens em nosso interior mesmo. Nele, de alguma maneira ficamos entregues à nossa natureza
mais simples, que contém a melhor e a menor porção de nós mesmos, o passado de milhões de anos e as
idéias germinais do futuro.
A necessidade de segurança, em que o mundo primordial da pessoa pode emergir, onde é possível
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expressar-se sem ser destruído, é básica e evidente na análise. Essa necessidade de segurança pode refletir
carência de cuidados maternos, mas a partir do padrão paterno de que estamos falando, a necessidade é de
uma aproximação a Deus, como a que Adão, Abraão, Moisés e os patriarcas conheceram.
O que se aspira é ser contido perfeitamente por um outro que jamais possa trair. Isso transcende a
confiança e a deslealdade do outro numa relação. O que se almeja é uma situação na qual a pessoa esteja
protegida das PROPRIAS traições e ambivalências, de sua própria Eva. Em outras palavras, confiança
primordial na palavra paterna significa estar no Paraíso com Deus e com todas as coisas, exceto Eva.
O mundo primevo é prévio ao surgimento de Eva e do mal. Estar unido a Deus por uma confiança primordial
oferece proteção contra próprias ambivalências. Não sê pode estragar coisas, desejar, en ganar, seduzir,
tentar, fraudar, culpar, confundir, ocultar, fugir, roubar, mentir, expropriar a criação usando a própria natureza
feminina, trair por sua própria má-fé na traição da anima, que é a fonte do mal no Éden e da ambivalência em
todo Adão daí por diante. Queremos a segurança do Logos, onde a palavra é Verdade e não sofre abalos.
É claro que a aspiração de uma fé primordial, de ser um só com o Velho Sábio, situação em que Eu e o
Pai somos uma só pessoa, sem interferência da anima, é facilmente reconhecível como típica do puer
aeternus que está por trás de toda puerilidade. Ele nunca aceita ser expulso do paraíso, pois aí sabe o nome
de todas as coisas da criação, aí os frutos crescem nas árvores e podem ser colhidos, não existe fadiga e
pode-se manter discussões interessantes no frescor da tarde.

E não apenas compreender: espera ser compreendido, totalmente, como se toda a onisciência de Deus se
concentrasse nele. Esse conhecimento perfeito, este sentimento de estar sendo totalmente compreendido,
confirmado, reconhecido, abençoado pelo que se é, patente a si mesmo e conhecido a Deus, por Deus e em
Deus, repete-se toda vez que ocorre uma situação de confiança primordial, quando a pessoa sente que
apenas o melhor amigo, a esposa, o analista, realmente a entende completamente, Se não o fazem, se não
captam direito ou deixam de reconhecer a essência da pessoa (que deve sempre revelar-se na vida e não
ocultar-se e fechar-se em si mesma), isto é considerado alta traição.
Poderia parecer, pelo relato bíblico, que Deus reconheceu não ser Ele um amparo suficiente para o
homem, que seria necessário encontrar para o homem algo mais que o próprio Deus. Eva tinha de ser criada,
chamada à vida, extraída do próprio homem, o que conduziu à quebra da confiança primordial pela traição.
Era o fim do Éden; a vida começava.
Essa maneira de interpretar o conto implica que a situação de confiança não é viável toda a vida. Deus e
a criação não bastavam para' Adão; era preciso Eva, o que vale dizer, a traição era necessária. Poderia
parecer que a única forma de sair desse Paraíso era sendo traído e expulso, como se o vaso que contém a fé
não pudesse de forma alguma ser alterado a não ser com unia traição. Chegamos a uma verdade essencial
sobre a fé e a traição; elas se contêm uma à outra. Não se pode ter confiança sem a possibilidade da traição.
E a mulher quem trai seu marido e o marido quem engana sua mulher; parceiros e amigos mentem, a amante
usa seu amor para obter poder, o analista desvenda os segredos de seu paciente, o pai deixa seu filho cair.
Não se mantêm as promessas quebra-se a palavra dada, a confiança vira traição.
Somos atraiçoados nas mesmas situações de relacionamento profundo em que a confiança primordial é
possível. Só podemos ser realmente traídos quando realmente confiamos: em irmãos, amantes, esposas,
maridos; não em inimigos, não em estranhos. Quanto maior o amor e a lealdade, o envolvimento e o
compromisso, maior a traição. A confiança contém em si a semente da traição; a serpente estava no Paraíso
desde o começo, da mesma forma que Eva já se encontrava préformada na estrutura que envolvia o coração
de Adão. A confiança e a possibilidade de traí-Ia vieram ao mundo no mesmo momento. Onde quer que exista
confiança em uma união O risco de traição torna-se uma possibilidade real. E a traição, como uma
possibilidade com que se deve sempre contar, é parte integrante da confiança, da mesma forma que a dúvida
integra uma fé viva.
Se tomarmos essa narrativa como modelo de progresso na vida desde "o começo de tudo", então pode-
se esperar que a confiança primordial deva ser quebrada se se quiser que haja progresso nos
relacionamentos; e, mais que isso, que nunca haverá amadurecimento para essa confiança primordial. A crise
sobrevirá, uma quebra caracterizada por traição, que, de acordo com a lenda, é o sine qua non para a
expulsão do Éden para o mundo "real" da consciência e responsabilidade humanas.

Pois devemos estar convencidos de que viver ou amar apenas em situações em que se pode confiar,
onde há segurança e contenção, onde não se pode ser ferido ou atraiçoado, em que toda palavra empenhada
está para sempre comprometida, significa estar realmente a salvo, mas por outro lado também alienado da
vida real. E não importa qual seja o continente da confiança - análise, casamento, Igreja ou lei, ou qualquer
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relação humana. Sim, poderia dizer até mesmo o relacionamento com o divino. Mesmo nesse caso confiança
primordial poderia parecer não ser o que Deus quer. Lembremos do Eden, de Jó, da proibição de Moisés
entrar na Terra Prometida, lembremos do recente destroçamento do Seu "Povo Escolhido", que depositou
Nele sua fé total e exclusiva.

Estou, afirmando, implicitamente, que a confiança primordial do judeu em Deus foi traída pela
experiência nazista, sendo necessária uma reorientação radical da atitude judaica, da teologia judaica, em
termos de anima, um reconhecimento do ambivalente componente feminino existente tanto em Deus como no
homem.
Se alguém pode sempre dar-se com a certeza de que no fim sairá ileso, ou talvez até melhor, o que
então é de fato dado? Se alguém salta apenas quando existem braços para segurá-Io, então não se pode
realmente falar de salto. Todo o risco de escalada fica anulado – no entanto, para sentir a emoção de estar
voando pelos ares, não há diferença entre segundo degrau, sétimo, décimo, ou dez mil metros de altura. A
confiança primordial leva o puer a voar tão alto. Pai e filho são uma só pessoa. E todas as virtudes masculinas
de habilidade, de risco calculado, de coragem, perdem a importância: Deus, ou então Papi vai segurá-lo ao pé
da escala. Mas não se pode saber isto de antemão. Não é possível ser avisado antecipadamente: "Desta vez
não vou segurá-lo". Um homem prevenido vale por dois e então ou não se pula ou se pula sem emoção, um
pseudo-risco. Acontece que chega o momento em que, apesar da promessa, a vida simplesmente intervém,
acontece o acidente e dá-se com a cara no chão. A promessa quebrada é uma intromissão da vida no mundo
seguro de Logos, em que a ordem de todas as coisas fica sob sua dependência, e o passado garante o futuro.
A promessa não mantida ou a confiança abalada são ao mesmo tempo uma -intromissão em outro nível de
consciência, o que veremos logo a seguir.

Voltemos, porém antes à nossa história e a nossas questões. O pai despertou a consciência, jogou o menino
para fora do jardim, brutalmente, com sofrimento. Fez a iniciação de seu filho. Esta iniciação em uma nova
consciência da realidade ocorre através da traição, pela omissão do, pai, pela promessa quebrada. O pai
intencionalmente afasta-se do compromisso essencial do ego de manter sua palavra, de não dar falso
testemunho e não mentir para seu filho, de ser responsável e digno de confiança aconteça o que acontecer.
Abandona sua posição deliberadamente, permitindo manifestar-se o lado sombrio nele e através dele. De
forma que é uma traição com moral. Pois nossa história é uma fábula moral, como o são todas as boas
histórias dos judeus. Não é uma fábula existencialista descrevendo um acte gratuit; nem uma lenda Zen que
leva a um esclarecimento libertador. É um sermão, uma lição, uma parte importante da vida. O pai demonstra
existir em sua própria pessoa a possibilidade de traição, mesmo numa situação de máxima confiança. Revela
sua própria deslealdade, posta-se diante do filho em sua nua humanidade, revelando uma verdade a respeito
da paternidade e da humanidade: eu, um pai, um homem, não mereço confiança. O homem é traiçoeiro. A
palavra não é mais forte que a vida.
E diz também: "Não confie nunca num judeu" de modo que a lição diz mais coisas ainda. Torna implícito
que sua paternidade segue o padrão de paternidade de Javé, que uma iniciação judaica significa igualmente
uma iniciação ao conhecimento da natureza de Deus, este Senhor tão pouco digno de confiança que precisa
ser continuamente louvado com salmos e orações como sendo paciente, confiável, justo, e propiciado com
epítetos de estabilidade - por ser tão arbitrário, emocional e imprevisível. O pai diz, em resumo, eu traí você
da mesma forma como são todos na traição da vida criada por Deus. A iniciação do garoto na vida é a
iniciação à tragédia adulta.
II

A experiência da traição é, para algumas pessoas, tão humilhante quanto a do ciúme e a do fracasso.
Para Gabriel Marcel, traição é a essência da maldade (1). Para Jean Genet, segundo Sartre, traição é a
maldade maior, como "a maldade que causa mal a si mesma" (2). Quando as experiências adquirem esse
aspecto, assumimos um contexto arquetípico, algo humano demais. Admitimos que provavelmente
encontraremos um mito fundamental e um padrão de comportamento com que a experiência possa ser
amplificada. Creio que esse contexto arquetípico é a traição de Jesus, o que pode nos dar maior
compreensão da experiência do ponto de vista do traído.
Estou hesitando em falar da traição de Jesus. São tantas as ilações que se podem fazer. Mas é nisso
justamente que consiste o valor de um símbolo vivo: pode-se extrair dele um fluxo contínuo de significados. E
é como um psicólogo em busca de significados psicológicos que outra vez atravesso as fronteiras teológicas.
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Na história de Jesus o tema da traição logo nos impressiona. O fato de ocorrer por três vezes (Judas, os
discípulos que dormiram, Pedro) - repetido pela tripla traição de Pedro - indica uma fatalidade, a traição como
essencial para a dinâmica do clímax da história de Jesus, o que coloca a traição em posição central no
mistério cristão. A tristeza na última ceia, a agonia no horto e o grito na cruz parecem repetir um mesmo
padrão, reafirmações de um mesmo tema, num tom cada vez mais alto, de que um destino está sendo
realizado, de que uma transformação está se impondo a Jesus. Em cada uma dessas traições ele vê-se
forçado ao terrível reconhecimento de ter sido traído, abandonado e deixado só. Seu amor foi recusado, sua
mensagem mal entendida, seu chamado negligenciado e seu destino proclamado.
Acho que há pontos em comum entre nossa anedota banal de judeus e esse grande símbolo. O primeiro
ato da traição de Judas já era conhecido antecipadamente. Sabedor disto, Jesus podia aceitar sub meter-se a
esse tipo de sacrifício para a glorificação de Deus. O impacto assim não deve ter sido tão devastador, para
Jesus, mas Judas acabou se enforcando. Também a negação de Pedro foi conhecida previamente, e da
mesma forma Pedro é que acabou chorando amargamente. Durante a última semana a confiança de Jesus
estava depositada no Senhor. "Homem da aflição", sim, mas sua confiança primordial não se abalara. Como o
garoto na escadaria, Jesus podia contar com seu Pai e até mesmo pedir-lhe o perdão para seus carrascos
até o último instante era um só com o Pai, até aquele momento da verdade em que foi traído, negado e
abandonado por seus seguidores, entregue nas mãos de seus inimigos, perdida a confiança em Deus,
atrelado a circunstâncias irreversíveis; nesse momento, sentindo na sua carne humana a realidade da traição
e a brutalidade de Javé e de sua criação, bradou o salmo 22, aquela longa lamentação em torno da confiança
em Deus-Pai:
Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?
Por que deixastes de me socorrer e vos
afastastes de minhas súplicas? Oh, meu Deus,
clamo por vós de dia e vós não me ouvis;
e à noite... E, no entanto sois justo....
Nossos pais confiaram em vós. Confiaram
e vós os salvastes... Confiaram em vós
e não foram confundidos... Vós sois
aquele que me tirastes do. berço.: fizestes-me confiar
quando ainda estava no seio da
minha mãe. Estou diante de vós desde o.
meu nascimento: Vós sois meu Deus desde o
ventre da minha mãe. Não vos afasteis de
mim, pois o tormento está próximo, pois
não há ninguém para me socorrer...

E eis que surgem as imagens de uma brutalização por forças bestiais

Estou cercado pelos touros, fortes touros


que me sitiam. Mostram-me suas imensas
fauces como se fossem leões... os cães
me rodearam. Estou preso no meio de
malfeitores: furam-me.as mãos e os pés...
Esta passagem extraordinária afirma que a confiança primordial está depositada no poder paterno, que ó
pedido de resgate não é pedido de proteção materna, mas que a experiência da traição integra o mistério
masculino.
É impossível deixar de notar o acúmulo de simbolismo da anima constelado junto com o tema da traição.
À medida que o drama da traição vai-se desenrolando e intensificando, o feminino vai-se tornando mais e
mais evidente. Resumidamente posso referir-me ao lavapés na última ceia e ao mandamento do amor; ao
beijo e às moedas de prata, à agonia no Getsêmani - um horto, à noite, o suor salgado porejando como gotas
de sangue; à orelha ferida, à imagem das mulheres estéreis no caminho do Gólgota; à advertência do sonho
da mulher de Pilatos, à degradação e ao sofrimento, à esponja de vinagre e fel, à nudez e à fragilidade, à
escuridão da nona hora e ao grande número de Marias - e referir-me de modo especial à ferida no flanco no
instante irremediável da morte, lembrando a maneira como Eva foi arrancada do flanco de Adão. E finalmente
ao encontro do Cristo ressuscitado, vestido de branco, por mulheres.
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Poderia parecer que a mensagem de amor, a missão de Eros de Jesus ganha sua força final só quando
ocorre a traição e a crucifixão. Pois no momento em que Deus o abandona, Jesus se torna realmente
humano, sofrendo a tragédia humana, com seu flanco ferido e perfurado, de onde corre sangue e água, a
fonte não represada da vida, do sentimento, da emoção. (O simbolismo do sangue foi extensivamente
amplificado no trabalho de Emma Jung e M. L.von Franz sobre o Graal) (3). A marca do puer, a condição de
segurança destemerosa do pregador miraculoso, terminou. O Deus puer morre quando se perde a confiança
primordial, e nasce o homem. E o homem só nasce quando nele nasce o feminino. Deus e homem, pai e filho,
não são mais uma só pessoa. E uma mudança radical no cosmos masculino. Depois que Eva nasceu do
flanco adormecido de Adão, o mal tornou-se possível; depois que o flanco de Jesus, traído e moribundo, foi
perfurado, o amor tornou-se possível.

III

O momento crítico da "grande traição", quando se é crucificado pela própria fé, é um momento
perigosíssimo daquilo que Frances Wickes chamaria "escolha”.(4). Ao levantar-se do chão o garoto, a questão
pode encaminhar-se para qualquer direção; sua ressurreição fica pendente na balança. Pode mostrar-se
incapaz de perdoar e assim manter uma fixação no trauma, tornar-se vingativo, ressentido, cego a toda,
compreensão e afastado do amor. Ou pode vo1tar-se para a direção que tentarei descrever no restante
destas minhas considerações.
Mas antes de dirigirmos nossa atenção para as possíveis conseqüências aproveitáveis da traição, vamo-
nos deter um pouco nas opções estéreis, nos perigos que sucedem à traição.
O primeiro desses perigos é o espírito de vinganca. Olho por olho; mal por mal; dor por dor. Para alguns
vingança é algo natural, imediato, sem contestação. Se executada diretamente como um ato de verdade
emocional pode ser purificadora. Deve acertar as contas sem, é claro, produzir mais conseqüências. Vingança
não leva a nada a não ser contravingança e inamistosidade. Psicologicamente não é produtiva porque permite
apenas a abreação da tensão. Quando a vingança é adiada e vai-se transformando em intriga, dissimulação e
espera do dia da caça, começa a cheirar a perversidade, a alimentar fantasias de crueldade e rancor.
Vingança adiada, vingança refinada por métodos indiretos pode tornar-se obsessiva, reduzindo o foco que
abarcava todo o evento da traição e seu significado, para a pessoa do traidor e para sua sombra. Por isso S.
Tomás de Aquino justifica a vingança apenas quando ela se dirige de forma abrangente contra o mal e não
contra o perpetrador do mal. O pior da vingança é, psicologicamente, sua perspectiva medíocre e mesquinha,
seu efeito redutor sobre a consciência.
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Esses perigos, desvios errôneos se bem que naturais, continuam no mecanismo de defesa da negacão.
Se uma pessoa é traída em um relacionamento, sente-se tentada a negar o valor da outra pessoa; a ver,
instantaneamente, a sombra do outro, uma vasta couraça de demônios viciosos que, é claro, simplesmente
não estavam presentes quando ainda existia a confiança primordial. Esses aspectos hediondos do outro
subitamente revelados são todos compensações, uma enantiodromia, de idealizações prévias. O choque da
revelação súbita indica o quanto era grosseira a inconsciência prévia da anima. Pois devemos admitir que
sempre que há um lamento amargo por uma traição, é porque existiu um contexto de confiança primordial, de
inconsciente inocência infantil, em que se reprimiu a ambivalência. Eva ainda não tinha entrado em cena,
ainda não fora reconhecida como parte da situação, estava reprimida. .

Quero dizer com isto que os aspectos emocionais do envolvimento especialmente os julgamentos de
valor, essa corrente contínua de avaliações que flui no interior de toda conexão - não eram admi tidos. Antes
da traição o relacionamento negava o componente da anima. Um envolvimento que é inconsciente da anima
ou é precipuamente uma projeção, como num caso amoroso, ou precipuamente uma repressão, como na
muitíssimo masculina amizade de idéias e de "trabalho em comum". Nessas circunstâncias a anima só pode
chamar a atenção sobre si criando problemas. A inconsciência grosseira da anima consiste em considerar a
parte emocional de um relacionamento como um dado de certeza, com fé animal, uma confiança primordial de
que não há problemas, de que é suficiente o que se diz, o que se crê, o que se "tem em mente", de que as
coisas caminham, ça va tout seul. Se a pessoa falha ao tentar honestamente trazer para o interior de um
relacionamento a esperança, a necessidade de crescer junto e com reciprocidade - o que se constela como
possibilidade última em qualquer relacionamento íntimo - aí então se muda de rumo e se nega por completo
as esperanças e as expectativas.
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Mas a passagem súbita do estado de inconsciência grosseira para um estado de consciência também
grosseira integra todo momento de fé e é até evidente. De modo que não é esse o perigo maior.

Mais perigoso é o cinismo. Decepção amorosa, desapontamento com uma causa política, com uma
organização, com um amigo, um superior ou um analista, conduz a uma mudança de atitude na pessoa traída,
que não só passa a negar o valor daquela pessoa particular e do relacionamento, como também todo amor
passa a ser considerado Falsidade; as causas são para os Ingênuos; as organizações, Arma dilhas; as
hierarquias, Mal e a análise nada menos que prostituição, lavagem cerebral e fraude. Seja inteligente, fique
alerta. Apanhe o outro antes que ele o apanhe. Melhor sozinho. Tudo bem comigo, José - o verniz para
esconder as cicatrizes de uma confiança perdida. Com os restos desfeitos de idealismo improvisa-se a
filosofia agressiva do cinismo. .

É bem possível que encontremos este cinismo - especialmeme entre os jovens - por não ter sido dada
atenção suficiente ao significado da traição, principalmente na transformação do puer aeternus. Como
analistas não elaboramos a sua significatividade no desenvolvimento da vida sentimental; como um dado final
em si, de onde fênix alguma poderia renascer. Assim, a pessoa traída jura nunca mais subir tão alto na
escada. Vai ficar grudada no chão, no mesmo nível do cão, kynis, cínico. Essa postura cínica, como dispensa
o trabalho de elaboração de um significado positivo da traição, forma um círculo vicioso, o cão perseguindo a
própria cauda. O cinismo, esse zombar do próprio destino, é uma traição dos próprios ideais, uma traição das
mais elevadas ambições pessoais encerradas no arquétipo do puer. Quando este entra em colapso, tudo que
tem a ver com ele é rejeitado. O que leva ao quarto e, acredito, maior perigo: à autotraição.
A traição de si mesmo é talvez o que mais realmente nos angustia. E uma das maneiras disto acontecer é
como conseqüência de alguém nos ter traído. Na situação de confiança, na ligação amorosa, ou com um
amigo, um parente, um parceiro, um analista, alguma coisa sempre fica em aberto. Alguma coisa que tinha
estado lá dentro vem para fora: "Nunca contei isto antes em toda a minha vida". Uma confissão, um poema,
uma carta de amor, uma invenção ou esquema fantástico, um segredo, um sonho de terror infantil - algo que
contém os valores mais profundos da pessoa. No instante da traição, essas pequenas pérolas, tão delicadas e
sensíveis, transformam-se em nada mais que pó, grãos de areia. A carta de amor torna-se um amontoado de
asneiras sentimentais, e o poema, o terror, o sonho, a ambição, tudo fica reduzido ao ridículo, exposto à
zombaria grosseira, tratado em linguagem grossa como merde, uma bosta. Reverte-se o processo alquímico:
o ouro volta a ser excremento, a pérola lançada aos porcos. Porque os porcos não são os outros, de quem se
deve esconder os valores sagrados, e sim as explicações materialistas grosseiras, as reduções às
simplicidades obtusas do instinto sexual e da sofreguidão, que devora tudo indiscriminadamente; a própria
insistência obstinada em achar que o melhor era realmente o pior, o refugo onde se arrojam os mais preciosos
valores.

É uma experiência estranha perceber alguém traindo a si mesmo, voltando-se contra as próprias
experiências ao atribuir-Ihes os valores negativos da sombra e ao agir contrariamente às próprias intenções e
sistema de valores. No colapso de uma amizade, de uma parceira, de um casamento, de uma ligação
amorosa, de repente o que há de pior e de mais sujo vem à tona e a pessoa se surpreende agindo da mesma
maneira cega e sórdida que atribui ao outro, e justificando as próprias ações com um sistema de valores Que
não é seu. A pessoa é realmente traída, entregue ao inimigo interior. E os porcos avançam e despedaçam.

O distanciamento de si mesmo após a traição é em grande parte para se proteger. Não se quer ser ferido
de novo, e já que a ferida resultou justamente da revelação daquilo que se é, começa-se a evitar viver de
novo experiências assim. De modo que se evita, trai-se a si mesmo, deixando-se de viver uma etapa da vida
(um divorciado de meia-idade sem ninguém para amar) ou a própria sexualidade (não quero mais saber de
homens e vou passar a ser tão cruel quanto eles) ou o próprio tipo psicológico (meu sentimento, minha
intuição ou fosse lá o que fosse, estava errado), ou a própria vocação (a psicoterapia é mesmo um negócio
sujo). Porque foi justamente pela confiança nesses marcos fundamentais da própria natureza que se foi
atraiçoado. Assim, recusamos ser o que somos, começamos a ludibriar a nós mesmos com desculpas e
evasivas, transformando-se a autotraição em nada menos que a definição de Jung para neurose como
uneigentlich leiden, sofrimento inautêntico. Deixa-se de viver a experiência pessoal de sofrimento para, por
mauvaise foi, por falta de coragem de ser, trair-se a si mesmo.
Isto é, em última análise, suponho, um problema religioso, e mais parecemos Judas ou Pedro ao trair o
essencial, a exigência essencial de que se assuma e se carregue o próprio sofrimento e de que se seja o que
se é não importa quanto isso possa doer.
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Ao lado da vingança, negação, cinismo e autotraição, existe ainda um outro perigo, um outro desvio
negativo, que chamaremos de paranóide. É, mais uma vez, uma medida de proteção contra novas traições,
por meio da elaboração de um relacionamento perfeito. Relacionamentos desse tipo exigem um juramento de
fidelidade, não toleram riscos à segurança. "Você não deve me trair jamais" - é o lema. A traição deve ser
exorcizada por votos de confiança, declarações de fidelidade eterna, provas de dedicação, juras secretas.
Não pode haver nem um arranhão; a traição tem de ser excluída.
Mas se a traição está contida na interior da confiança, como a semente antinômica encerrada nela, então
essa exigência paranóide de um relacionamento sem possibilidade de traição não pode na verdade estar
baseada na confiança. É mais uma convenção arquitetada para excluir riscos. Como tal tem a ver menos com
o amor do que com o poder. É um recuo para um lacionamento baseado no logos, imposto pela palavra e não
sustentado pelo amor.

É impossível restabelecer-se a confiança primordial depois que se deixou o Éden. Agora se sabe que as
promessas mantêm-se apenas até certo ponto. A vida é que toma a seu cargo os juramentas, cumprin do-os
ou quebrando-os. E os novos relacianamentos após a experiência da traição têm de começar por algum outro
ponto totalmente diferente. A distorção paranóide dos assuntos humanos é algo muito sério. Quando um
analista (ou marido, amante, discípulo ou amiga) tenta preencher os requisitos de um relacionamento
paranóide, fornecendo garantias de lealdade, exconjurando a traição, certamente estará afastando-se do
amar. Pois como já vimos e tornaremos a ver, amor e traição procedem de um mesmo lado: o esquerdo.

IV

Gostaria agora de encerrar a questão do que significa a traição para o filho, o traído, a fim de voltar-me
para a.outra das nossas questões iniciais: Que pode a traição significar para o pai? O que sig nifica para Deus
deixar Seu filho morrer na cruz é algo que não nos foi dito. O que significou para Abraão levar seu filho para o
sacrifício, também isso não nos foi dito. Mas eles fizeram essas coisas. Eram capazes de trair, da mesma
forma que Jacó, o patriarca, que adquiriu o seu status traindo o irmão. Será que a capacidade de trair é
inerente à paternidade? Vamos examinar melhor esta questão.
O pai naquela história não mostra apenas sua imperfeição humana, quer dizer, não é que apenas não
segura o filho. Não é apenas fraqueza e erro. Conscientemente ele resolveu deixá-lo cair e causar -lhe dor e
humilhação. Mostra como é brutal. A mesma brutalidade que aparece no tratamento que Jesus recebe desde
a captura até a crucifixão, e nos preparativos feitos por Abraão. O que acontece com Esaú e com Jó é nada
menos que brutalidade. A brutalidade aparece de novo na pele de animal que Jacó veste para trair Esaú, e
nas grandes bestas que Deus revela a Jó como justificativas de seus tormentos. Da mesma forma, nas
imagens do Salmo 22, como vimos acima.
A imagem paterna - esta figura justa, sábia e tolerante - recusa de qualquer maneira intervir para minorar
o sofrimento que ele próprio ocasionou. Recusa também justificar sua conduta. A recusa de explicações
significa que a explicação, se afinal de contas houver uma, deve proceder da parte ofendida. Depois de uma
traição não se está em posição de ouvir de forma alguma explicações do outro! Isto é, creio eu, um estímulo
criativo na traição. É o traído quem de alguma forma deve cuidar da própria ressurreição, dar o passo adiante,
por meio de sua própria interpretação do que aconteceu. Mas isso só será criativo se a pessoa não sucumbir
aos perigos que mencionamos acima.

Naquela nossa história o pai explica. Nossa história é mais que tudo uma lição e a própria ação é educativa
enquanto iniciação, ao passo que nas lendas arquetípicas e em muitas situações da vida diária, o traidor não
explica a traição ao traído, pois a traição procede do lado autônomo, esquerdo, incosciente. Apesar das
explicações, nossa história ainda exibe brutalidade. O uso consciente da brutalidade poderia parecer um traço
comum das figuras paternas. O pai injusto reflete a injustiça da vida. Quando se mostra inacessível ao grito de
socorro e às necessidades do outro, ou admite que sua promessa é falível, está reconhecendo que o poder da
palavra pode ser transcendido pelas forças da vida. Este conhecimento das suas limitações masculinas e esta
insensibilidade implicam em um alto grau de diferenciação do lado fraco, esquerdo. Diferenciação do lado
esquerdo poderia significar a capacidade de suportar tensão sem ação, de prosseguir no erro sem tentar
corrigir as coisas, deixando os fatos determinarem os princípios. Significa também que a pessoa deve, em al-
guma medida, superar este desconfortável sentimento de culpa que impede a realização plenamente
consciente de atos necessários, ainda que brutais. (Com brutalidade consciente não me refiro nem à bru-
talidade deliberadamente perversa destinada a arruinar o outro! Nem à brutalidade sentimental, tal como às
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vezes a encontramos na literatura, nos filmes e nos códigos dos soldados).
A culpa incômoda e a pusilanimidade conferem aos atos um caráter ambíguo - o que não é tarefa muito
adequada para a anima. Mas a aspereza do pai não dá margem a ambigüidade alguma. Não é que ele seja
cruel de um lado e compassivo de outro. Não é que ele traia e em seguida levante o filho do chão dizendo
"pobre garoto, isto me feriu mais que a você".
Na análise, como em todas as situações de confiança, somos às vezes levados a situações em que
alguma coisa ocorre que requer uma ação conscientemente brutal, uma traição da confiança do outro.
Quebramos uma promessa, omitimo-nos quando nossa presença seria necessária, atraiçoamos o outro,
alienamos uma afeição, traímos um segredo. Não damos explicações de nossas ações, não aliviamos o outro
de sua cruz, nem sequer o erguemos do chão ao pé-da-escada. São brutalidades - e nós as fazemos com
mais ou menos consciência. E temos de permiti-Ias e assumi-Ias, caso contrário a anima faz nossos atos
inconsistentes, indiferentes e cruéis.

Essa insensibilidade aponta para uma integração da brutalidade, com isso aproximando o indivíduo da
natureza - que não dá explicações de si mesma. As explicações têm de ser arrancadas dela. Essa disposição
para ser um traidor aproxima-nos da condição primitiva em que somos não tanto os protegidos de um Deus
supostamente moral e de um Demônio imoral, e sim de uma natureza amoral. E assim somos reconduzidos
ao nosso tema da integração da anima, que tem na insensibilidade e nos lábios selados semelhança com Eva
e a serpente, cuja sabedoria está também próxima da traição da natureza. Isto me leva a perguntar se a
integração da anima não pode mostrar-se de maneira distinta da usual - vitalidade, relacionamento, amor,
imaginação, sutileza e assim por diante - ou seja, assemelhando-se à natureza: menos confiável, como água
que corre pelo caminho que oferecer menor resistência, mudando as respostas com o vento, falan do uma
linguagem dúbia - ambigüidade consciente, mais que ambivalência inconsciente. Supostamente, o sábio ou
mestre, a fim de ser o psicopompo que guia as almas através da confusão da criação, onde existe uma falha
em cada pedra e os caminhos não são diretos, exibe uma sagacidade hermética e uma frieza que é tão
impessoal quanto a própria natureza. (5).
Em outras palavras, nossa conclusão para a questão: "O que significa a traição para o pai?" resulta nisto
- a capacidade de trair outros está relacionada com a capacidade de conduzir outros. A paternidade integral
possui ambas. Na medida em que a orientação psicológica tem por objetivo a auto-ajuda e a autoconfiança, o
outro terá, de alguma forma, em algum ponto, que ser abandonado ou cair em seu próprio nivel, isto é,
afastado do auxílio humano, (a)traido para o interior de si mesmo, onde é deixado só.
Como diz Jung em Psicologia e Alquimia (págs. 27-8):

Sei por experiência que toda coerção - seja ela sugestão, insinuação, ou qualquer outro método de
persuasão - no final das contas acaba sendo apenas um obstáculo para a mais elevada e decisiva
experiência de todas, que é estar sozinho com o próprio Sel,. ou com o que quer que se chame a objetividade
da psique. O paciente deve ficar sozinho se for para encontrar aquilo que o sustém quando não pode mais
suportar a si mesmo. Só essa experiência pode lhe dar uma base indestrutível.

O que então é digno de confiança no bom pai ou no psicopompo? Com relação a isso, qual a diferença
entre o mago da magia branca e o da magia negra? O que separa o sábio do selvagem? Não poderíamos,
através daquilo que venho apresentando, justificar toda brutalidade e traição que um homem possa cometer
como um sinal de sua "integração da anima", como um sinal de sua chegada à "plena paternidade"?

Não sei como responder a essa questão a não ser referindo-me às mesmas histórias já mencionadas.
Em todas elas encontramos duas coisas: o tema do amor e/ou do sentido da necessidade. A interpre tação
cristã diz que Deus abandonou Jesus na cruz porque amou tanto o mundo que deu Seu próprio Filho pela sua
redenção. Sua traição era necessária, perfazia o seu destino. Abraão amava tanto a Deus que se preparou
para imolar Isaac em oferenda. A traição de Esaú por Jacob era uma necessidade já anunciada no momento
do nascimento. O pai naquela nossa história deve ter amado tanto seu filho que podia arriscar quebrar-lhe os
ossos, desfazer sua confiança e denegrir a própria imagem aos olhos do filho.
Esse contexto mais amplo de necessidade ou amor leva-me a acreditar que a traição - voltar atrás de
uma promessa, recusar ajuda, revelar um segredo, enganar no amor - é uma experiência por demais trágica
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para ser justificada em termos pessoais de mecanismos e motivações psicológicas. Não basta psicologia
pessoal; análises e explicações não resolvem. Deve-se procurar o contexto maior do amor e do destino. Mas
quem pode ter certeza da presença do amor? E quem pode dizer que a traição foi uma necessidade, foi o
destino, foi um chamamento do Self?
De certo, uma parte do amor é necessidade; é igualmente interesse, envolvimento, identificações - mas
talvez uma maneira ainda mais certa de se dizer se a pessoa está mais próxima do selvagem ou do sábio é
examinando o oposto do amor: o poder. Se a traição é perpetrada principalmente para obter-se vantagem
pessoal (sair de uma situação difícil, ferir ou usar, salvar a própria pele, aplacar um desejo ou satisfazer uma
necessidade, defender os próprios interesses) então pode-se estar seguro de que o predomínio não é tanto
do amor e sim da brutalidade, do poder.
O contexto mais amplo do amor e da necessidade é dado pelos arquétipos míticos. Quando se coloca o
evento sob esta perspectiva, o padrão pode tornar-se outra vez significante. O ato mesmo de tentar
compreendê-Io nesse contexto mais amplo é terapêutico. Infelizmente o evento pode não revelar seu
significado por muito, muito tempo, enquanto jaz sob o selo do absurdo ou apodrece no ressentimento. Mas a
luta para colocá-Io dentro do contexto mais amplo, as lides com interpretação e integração, esse é o caminho
para fazer andar. Pareceme que apenas isto pode conduzir através dos estágios da diferenciação da anima,
há tanto já delineado, e mesmo levar a um passo adiante; na direção do mais elevado dos sentimentos
religiosos: o perdão.

Devemos deixar bem claro que perdão não é assunto fácil. Se o ego errou, o ego não pode perdoar, só
porque "deveria", sem consideração pelo contexto mais amplo de amor e destino. O ego consegue manter-se
vital devido a seu amor-próprio, seu orgulho e sua honra. Mesmo quando se quer perdoar, vê-se que
simplesmente não se pode, porque o perdão não provém do ego. Não posso perdoar di retamente, posso
apenas pedir, ou rezar, para que esses pecados sejam perdoados. Desejar que o perdão venha e esperar por
ele talvez seja tudo o que se pode fazer.
O perdão, como a humildade, é apenas um termo até que pessoa tenha sido realmente humilhada ou
realmente enganada. Perdão só tem sentido Quando não se pode nem perdoar nem esquecer. E nossos
sonhos não nos permitem perdoar (esquecer). Qualquer um pode perdoar um insulto banal, uma afronta
pessoal. Mas se alguém é levado, passo a passo, a um envolvimento cuja substância é a própria confiança,
desnuda a própria alma, e então é profundamente traído, no sentido de ser entregue às mãos de seus
inimigos, exteriores ou interiores (aqueles valores da sombra descritos acima, situações em que as chances
de uma nova confiança amorosa ficam permanentemente comprometidas por defesas paranóicas, pela
autotraição, pelo cinismo), então aí o perdão assume grande significado. Pode bem ser Que a traição não
tenha nenhum outro produto positivo além do perdão, e que a experiência do perdão seja possível apenas se
alguém tiver sido traído. Tal perdão é um perdoar que não é um esquecer, mas a lembrança do erro, que se
transforma, quando inserido em um contexto mais amplo, ou nos termos em que Jung coloca, o sal da
amargura transformado no sal da sabedoria.

A sabedoria, como Sofia, é de novo uma contribuição feminina à masculinidade. e poderia fornecer o
contexto mais amplo que a vontade não pode providenciar por si mesma. Gostaria de considerar aqui a
Sabedoria como a união do amor com a necessidade, da qual finalmente brota o fluxo livre do sentimento
para o interior do próprio destino, reconciliando-nos com um acontecimento.
Da mesma forma que a confiança contém em si a semente da traição, a traição contém em si a semente
do perdão. Esta poderia ser a resposta à última de nossas questões iniciais: "Que posição ocupa a traição na
vida psicológica em geral?" Nem a confiança nem o perdão podem ser corretamente imaginados sem a
traição. A traição é o lado sombrio de ambos, a ambos dando sentido, tornando ambos possíveis. Talvez isso
nos explique um pouco por que a traição é um tema tão forte em nossas religiões. É talvez a passagem
humana para as experiências religiosas tão elevadas do perdão e da reconciliação com este labirinto
silencioso, a criação.

Mas o perdão é tão difícil que provavelmente necessita da ajuda de outra pessoa. Quero dizer com isto
que a falta, se não for lembrada por ambas as partes - e lembrar como falta - recai inteiramente sobre o traído.
O contexto mais amplo no interior do qual ocorreu a tragédia poderia parecer reclamar sentimentos paralelos
de parte a parte. Ambos encontram-se ainda em uma relação, agora como traidor e traído. Se só o traído
percebe o crime, enquanto o outro o contorna com racionalizações, então a traição prossegue - e até mesmo
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aumentada. Esta ilusão com respeito ao que realmente aconteceu é, para o traído, a mais aberta de todas as
chagas. O perdão vem com mais dificuldade; os ressentimentos crescem porque o traidor não está
carregando sua culpa e o ato não é honestamente consciente. Jung disse que o sentido de nossos pecados é
que nós os carreguemos, o que significa não lançá-Ios sobre os ombros de outrem, esperando que este os
carregue para nós. Para carregar os próprios pecados é preciso primeiro reconhecê-los e reconhecer sua
brutalidade.
Psicologicamente, carregar um pecado significa simplesmente reconhecê-Io, lembrar-se dele. Todas as
emoções ligadas à experiência da traição em ambas as partes -- remorso e arrependimento no traidor,
ressentimento e rancor no traído - insistem no mesmo ponto: a lembrança. O ressentimento, em especial, é
uma aflição emocional da memória que o esquecimento não pode jamais reprimir completamente. Sendo
assim, não é melhor lembrar de um erro do que oscilar entre o esquecimento e o ressentimento? Estas
emoções poderiam parecer ter como objetivo evitar que uma experiência se dissolvesse no inconsciente. São
o sal que preserva o evento da decomposição. Amargamente, forçam-nos a manter a fé ao lado do pecado.
Em outras palavras, o paradoxo da traição é a fidelidade que ambos, traidor e traído, guardam, após o evento,
ao seu amargor.
E essa fidelidade é guardada da mesma forma pelo traidor. Porque se sou incapaz de admitir Que traí
alguém, ou se tento esquecê-lo, permaneço enclausurado numa brutalidade inconsciente. Nesse caso perde-
se o contexto mais amplo do amor e o contexto mais amplo do destino, da minha ação e de todo o evento.
Não somente continuo enganando o outro, como me engano a mim mesmo, pois cortei a possibilidade de me
autoperdoar. Não posso tornar-me mais sábio nem tenho nada com que reconciliar.
Por essas razões creio que o perdão de um requer a reparação do outro. A expiação consiste na adoção
do comportamento silencioso do pai, conforme o descrevemos anteriormente. O pai carrega sua culpa e seu
sofrimento. Embora tenha perfeita noção do seu ato, não dá explicações dele ao outro, o que implica em
expiá-lo, isto é, em autorelacionar-se. Reparação implica também numa submissão à traição como tal, à sua
realidade fatal transpessoal. Ao curvar-me à vergonha,da minha incapacidade de manter a palavra, sou
forçado a admitir humildemente tanto a minha fraqueza pessoal como a realidade de poderes impessoais.
No entanto é preciso verificar bem se essa reparação não é apenas para apaziguar a mente ou só
circunstancial. Não dev tragédia poderia parecer reclamar sentimentos paralelos de parte a parte. Ambos
encontram-se ainda em uma relação, agora como traidor e traído. Se só o traído percebe o crime, enquanto o
outro o contorna com racionalizações, então a traição prossegue - e até mesmo aumentada. Esta ilusão com
respeito ao que realmente aconteceu é, para o traído, a mais aberta de todas as chagas. O perdão vem com
mais dificuldade; os ressentimentos crescem porque o traidor não está carregando sua culpa e o ato não é
honestamente consciente. Jung disse que o sentido de nossos pecados é que nós os carreguemos, o que
significa não lançá-Ios sobre os ombros de outrem, esperando que este os carregue para nós. Para carregar
os próprios pecados é preciso primeiro reconhecê-los e reconhecer sua brutalidade.
Psicologicamente, carregar um pecado significa simplesmente reconhecê-Io, lembrar-se dele. Todas as
emoções ligadas à experiência da traição em ambas as partes -- remorso e arrependimento no traidor,
ressentimento e rancor no traído - insistem no mesmo ponto: a lembrança. O ressentimento, em especial, é
uma aflição emocional da memória que o esquecimento não pode jamais reprimir completamente. Sendo
assim, não é melhor lembrar de um erro do que oscilar entre o esquecimento e o ressentimento? Estas
emoções poderiam parecer ter como objetivo evitar que uma experiência se dissolvesse no inconsciente. São
o sal que preserva o evento da decomposição. Amargamente, forçam-nos a manter a fé ao lado do pecado.
Em outras palavras, o paradoxo da traição é a fidelidade que ambos, traidor e traído, guardam, após o evento,
ao seu amargor.
E essa fidelidade é guardada da mesma forma pelo traidor. Porque se sou incapaz de admitir Que traí
alguém, ou se tento esquecê-lo, permaneço enclausurado numa brutalidade inconsciente. Nesse caso perde-
se o contexto mais amplo do amor e o contexto mais amplo do destino, da minha ação e de todo o evento.
Não somente continuo enganando o outro, como me engano a mim mesmo, pois cortei a possibilidade de me
autoperdoar. Não posso tornar-me mais sábio nem tenho nada com que reconciliar.
Por essas razões creio que o perdão de um requer a reparação do outro. A expiação consiste na adoção
do comportamento silencioso do pai, conforme o descrevemos anteriormente. O pai carrega sua culpa e seu
sofrimento. Embora tenha perfeita noção do seu ato, não dá explicações dele ao outro, o que implica em
expiá-lo, isto é, em autorelacionar-se. Reparação implica também numa submissão à traição como tal, à sua
realidade fatal transpessoal. Ao curvar-me à vergonha,da minha incapacidade de manter a palavra, sou
forçado a admitir humildemente tanto a minha fraqueza pessoal como a realidade de poderes impessoais.
No entanto é preciso verificar bem se essa reparação não é apenas para apaziguar a mente ou só
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circunstancial. Não deve ela reconhecer a outra pessoa? Creio que este ponto não pode ser exagerado, pois
vivemos em um mundo humano, mesmo quando somos as vítimas de temas cósmicos, como a tragédia, a
traição, o destino. Traição pode integrar um contexto mais amplo e ser um tema cósmico, mas é sempre no
interior de relacionamentos individuais, através de outra pessoa muito próxima, de uma intimamente imediata,
que estas coisas nos atingem. Se os outros são instrumentos dos deuses para nos trazer tragédias, são
também o caminho pelo qual a nossa expiação chega aos deuses. As condições se transformam no interior do
mesmo tipo de situação pessoal em que ocorreram. É suficiente oferecer reparação apenas aos deuses? Dá-
se com isso por encerrada a questão? A tradição não conjuga a sabedoria à humildade? A expiacão, como o
arrependimento, não precisa ser expressis verbis, mas é provavelmente mais efetiva se ocorre em alguma
forma de contato com o outro, com o reconhecimento integral do outro. E, afinal, o que é esse reconhecimento
pleno do outro senão o amor?

VI

Tentarei resumir. Os desdobramentos, por sucessivos estágios, da confiança, através da traição, até o
perdão, representam uma modificação da consciência. A condição inicial de confiança primordial é em boa
parte inconsciente e pré-anima. Segue-se a traição, em que a palavra dada é quebrada pela vida. Apesar de
toda sua negatividade, a traição representa ainda um avanço em relação à confiança primordial porque
conduz à "morte" do puer através da experiência de anima do sofrimento. Isto pode então levar, se não for
bloqueado pelas vicissitudes negativas da vingança, da negação, cinismo, autotraição e defesas paranóides,
a uma paternidade mais firme, em que o traído pode, por seu turno, trair outros de forma menos inconsciente,
implicando isto na integração de uma natureza humana pouco digna de confiança. A integração final da
experiência pode resultar no perdão pelo traído, expiação pelo traidor e uma reconciliação - não neces-
sariamente de um com o outro - mas a reconciliação de cada um com o fato ocorrido. Cada uma destas fases
de amargos conflitos e de experiências sofridas que podem consumir longos anos de fidelidade ao lado
sombrio da psique, é também uma fase do desenvolvimento da anima e foi, apesar de minha ênfase sobre o
masculino, o tema principal deste trabalho.

NOTAS

I. Being and Having, (ed. Fontana), Londres, 1965, pág. 47.


2. Saint Genet: Actor and Martyr, (ed. Mentor), NewYork, 1964, pág. 191.
3. The Grail Legend; New Yórk, 1971.
4. The Inner World of Choice, New York, 1963.
5. "O Céu e a Terra não são humanos
Pois encaram todas as coisas como cães.
O sábio não é humano
Pois encara todas as pessoas como cães".
- Tao- Te King, nº 5.

Do Grêmio de Psicologia Pastoral: conferência n. o 128, 1964, 1966, 1971, Londres, e também Spring
1965, págs. 57-76.
Conferência proferida em 2 de outubro de 1964, em Londres.
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