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Janete Magalhães Carvalho

O não-lugar dos professores nos


entrelugares de formação continuada

Janete Magalhães Carvalho


Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Educação

Introdução Concretamente, a “supermodernidade” manifes-


ta-se em modificações espaço-temporais, como con-
Marc Augé (1994), ao falar sobre os não-lugares, centrações urbanas, migração de populações e multi-
o faz a partir da análise de três figuras de excesso da plicação daquilo que Augé (1994, p. 36) denomina de
contemporaneidade, denominada por ele de “super- não-lugares nos seguintes termos:
modernidade”: a factual (tempo), a espacial (espaço)
e a individualização das referências. Os não-lugares são tanto as instalações necessárias à
A primeira transformação da “supermodernida- circulação acelerada das pessoas e bens (vias expressas, tre-
de” seria referida ao tempo, em especial a partir do vos rodoviários, aeroportos...) quanto os próprios meios
século XX, quando as atrocidades das guerras mun- de transporte e os grandes centros comerciais [...]. Não-
diais, dos totalitarismos, trouxeram a descrença nas lugares por oposição à noção sociológica de lugar, àquela de
grandes narrativas e/ou sistemas de interpretação, co- cultura localizada no tempo e no espaço.
locando em dúvida a história como portadora do sen-
tido de evolução da humanidade. Essa transformação A terceira figura do excesso da modernidade vem
trouxe consigo não apenas a alteração da percepção a ser a do ego, do indivíduo, que se caracteriza pelo
do tempo mas também do uso que fazemos dele, da processo de individualização das referências.
maneira como dispomos dele. Segundo Augé (1994), nunca as histórias indi-
A segunda transformação acelerada seria a do es- viduais foram tão explicitamente referidas pela histó-
paço, manifesta no encolhimento do planeta por meio ria coletiva, mas nunca também os pontos de identifi-
de transportes rápidos, pela comunicação via satélite cação coletiva foram tão flutuantes. A produção
que transmite imagens e informações que podem ser individual de sentido é, portanto, mais do que neces-
manipuladas, exercem influência e excedem, de lon- sária, porém o caráter singular da produção de senti-
ge, as mensagens objetivas das quais são portadoras. do, transmitido por “universos de reconhecimento”

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e/ou “universos simbólicos” que falam do corpo, dos facilmente à padronização; a igualdade na exigência
sentidos, da vivência individual, da política, cujo eixo de formação de nível superior para docentes e outros
é o tema das liberdades individuais, tem origem nos profissionais liberais; a satisfação na profissão, ali-
sistemas de representação que, individualizando as mentada principalmente pela autonomia do trabalho
referências, o faz em termos coletivos. na sala de aula, pela realização afetiva e gratificação
Sendo assim, para Augé (1994, p. 23), “a indivi- dada, em especial, pelas crianças e pais.
dualidade absoluta é impensável”, visto ser impossí- A identidade e a profissionalidade são, portanto,
vel dissociar a identidade coletiva da identidade indi- definidas em função do vínculo social que lhe é con-
vidual, não simplesmente porque a representação do substancial e, assim, afetadas pelas figuras de excesso
indivíduo é uma produção social mas também porque da “supermodernidade”: o tempo, o espaço e a indivi-
toda representação do indivíduo é, necessariamente, dualização das referências que produzem não-lugares,
uma representação do vínculo social que lhe é con- conforme analisaremos adiante.
substancial. Com relação à formação continuada, a revisão
Portanto, falar dos educadores em seus proces- de literatura realizada por Carvalho e Simões (2002b)
sos de formação continuada é, primeiramente, falar aponta que, de modo geral, há uma recusa da forma-
de sua identidade e profissionalidade, individual e co- ção continuada significando apenas treinamento, cur-
letiva. sos, seminários, palestras etc., emergindo uma con-
De acordo com Carvalho e Simões (2002a), a ceituação de formação continuada como processo que
identidade do professor tende a ser definida, na litera- encontra a sua centralidade no agir dos educadores
tura expressa em periódicos nacionais, de forma no cotidiano escolar.
multidimensional e interdimensional. De modo geral,
a literatura pesquisada pelas autoras define a identida- Alguns a definem como prática reflexiva no âmbito
de do professor como a de um ser em movimento, da escola, e outros, como uma prática reflexiva que, abran-
construindo valores, estruturando crenças, atitudes e gendo a vida cotidiana da escola e os saberes derivados da
agindo em função de um tipo de eixo pessoal/profis- experiência docente, a concebem como uma prática refle-
sional que o distingue dos outros. xiva articulada com as dimensões sociopolíticas mais am-
Nesse processo, destacam-se como fatores con- plas, abrangendo da organização profissional à definição,
trários à profissionalização do magistério: a frustra- execução e avaliação de políticas educacionais. (Carvalho
ção na profissão, derivada dos baixos salários; a au- & Simões, 2002b, p. 172)
sência de condições para o bom exercício profissional;
a má-formação inicial; a ausência de processos de Carvalho e Simões (2002b) afirmam que a litera-
formação continuada; as más relações de trabalho; as tura analisada evidenciou o aumento da atribuição da
múltiplas exigências extraclasse; a dupla jornada de importância ao professor como centro do processo
trabalho; o descaso das políticas públicas; a hetero- de formação continuada, atuando como sujeito indi-
geneidade da categoria; o seu crescimento numérico; vidual e coletivo do saber docente de experiência fei-
a expansão e a concentração das empresas privadas to em sua relação com o saber científico. Enfim, que
no setor; as excessivas regulamentações e a conse- a participação de professores na pesquisa de sua pró-
qüente perda de autonomia; a tendência ao corte de pria prática tem sido especialmente valorizada nos
gastos sociais e a repercussão dos salários sobre os últimos anos, ganhando o professor vez e voz, exer-
custos da força de trabalho docente; a feminização cendo o papel de ator coletivo social na transforma-
do magistério; a docência como emprego provisório ção do cotidiano escolar e para além dele.
e segundo salário, dentre outros... Como fatores fa- Entretanto, apesar dessa ênfase detectada na li-
voráveis à profissionalização, destacam-se: a nature- teratura sobre a temática, a representação de forma-
za específica do trabalho docente, que não se presta ção continuada dos professores detectada nessa pes-

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quisa é bastante contraditória, assumindo o que aqui Nesse sentido, buscamos, por meio de uma pesqui-
chamaremos de um entrelugar, ou seja, assim como sa de tipo exploratório-descritiva, enfocar a questão
o professor parece ocupar, ao contrário do que a lite- da formação e valorização do magistério a partir das
ratura aponta, um não-lugar no processo de forma- vozes de profissionais da educação presentes ao GT –
ção continuada, esse processo parece ser visualizado Formação e Valorização do Magistério, por ocasião
entrelugares. da realização do Seminário Estadual de Política Educa-
Para Lefebvre (1983), Hall (1999, 2003) e Silva cional do Espírito Santo, ocorrido no período de 22 a
(2003), uma representação é um sistema de signifi- 23 de setembro de 2003, tendo como eixo temático a
cação por meio do qual os processos culturais não “Educação como um direito”.
podem ser compreendidos quando dissociados dos No Seminário Estadual, o GT contou com a par-
signos e dos sentidos a eles atribuídos nas relações ticipação dos 60 delegados eleitos em três seminários
concretas que os engendram. regionais realizados, e de delegados de outros grupos
Portanto, um entrelugar é aqui definido como um que tiveram a oportunidade de participação após cum-
sistema de representação tanto mais distorcido quan- prirem a atuação no GT para o qual haviam sido elei-
to mais dissociado das condições concretas de exis- tos. Dessa forma, o GT envolveu a participação de de-
tência dos sujeitos que o sustentam. legados eleitos, além de outros delegados e convidados,
Considerando que a linguagem, entendida como totalizando 230 participantes. A constituição do GT foi
sistema de significação, é uma estrutura instável, vis- bastante diversificada, contando com professores (de
to que é constituída por signos que carregam sempre todas as áreas de conhecimento e níveis de ensino),
não apenas o traço daquilo que substituem ou repre- pedagogos, diretores, representantes do Sindicato dos
sentam mas também o traço daquilo que não são, o Professores (SINDIUPES), alunos da Universidade
conceito de representação aqui concebido é o de um Federal do Espírito Santo (UFES), professores uni-
sistema de significação que rejeita qualquer conota- versitários, superintendentes e técnicos da Secretaria
ção mentalista ou qualquer associação a uma suposta de Educação e Esportes do Espírito Santo (SEDU) e
interioridade psicológica. Assim sendo, a representa- das Secretarias Regionais de Educação (SRE).
ção é definida unicamente em sua dimensão de signi- Visando sistematizar e aprofundar o debate so-
ficante, isto é, como sistema de signos, como pura bre os processos de formação continuada vistos sob
marca material, arbitrário, indeterminado e estreita- a ótica dos educadores, a metodologia utilizada en-
mente ligado a relações de mercado e poder e, por- volveu a aplicação de instrumento de pesquisa com
tanto, situado entre as relações objetivas/concretas questões abertas e fechadas.
dos entrelugares dos sistemas de significações que Esse instrumento, como parte integrante de pes-
envolvem a formação continuada de professores. quisa mais ampla – Política Educacional do Estado
do Espírito Santo: formação do magistério1 –, foi
Dos lugares, não-lugares e entrelugares distribuído a todos os participantes do GT.
dos professores nos processos Do total de questionários distribuídos, 106 fo-
de formação continuada ram devolvidos, totalizando, portanto, aproximada-
mente 46% dos educadores presentes ao evento.
Analisar os lugares, os não-lugares e os entrelu-
gares dos professores dos/nos processos de forma-
1
ção continuada implica dar voz aos professores, bus- Pesquisa em desenvolvimento, da mesma autoria, de cará-
cando o sistema de signos que, engendrado nas ter mais amplo, com o objetivo de subsidiar as políticas de forma-
relações de mercado, de saber e poder, em sua mate- ção e valorização do magistério do Estado do Espírito Santo, com
rialidade discursiva, constitui as suas representações. apoio da Subsecretaria de Educação Básica e Profissional do Estado.

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subvertê-las (as lógicas impostas), não as rejeitando com a educação; b) razões relacionadas com as con-
diretamente, mas usando-as para fins e em função de dições de trabalho, remuneração e profissionalização.
referências próprias (Carvalho, 2002). Dentre as inúmeras razões relacionadas com as
Isso não ocorre porque, aparentemente, os pro- transformações societais em sua relação com a edu-
fessores não assumem um lugar, como definido por cação, destacamos algumas das afirmações mais fre-
Certeau (2001a, p. 201): qüentes e contextuais:2

Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se As mudanças no mundo não param e o professor não
distribuem elementos nas relações de coexistência [...]. Aí pode ficar estagnado.
impera a lei do “próprio”: os elementos considerados se Os professores precisam se atualizar continuamente.
acham uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar O estudo não pode parar.
“próprio” e distinto que o define. Porque a evolução caminha a passos largos, as inova-
ções são constantes e o professor, de modo geral, precisa
Os trabalhos dos professores, como autores, ter condições de redirecionar a sua prática.
mesmo enquanto individualidades, fariam com que Pois a sociedade muda todos os dias e as questões e
eles ocupassem um lugar que lhes seria “próprio”, demandas da educação estão se acumulando a cada dia.
visto que a lei de um “lugar próprio” se expressa pela Necessitamos urgentemente de capacitação para dar con-
autoria definida e, portanto, pela criação, mesmo ta dos desafios postos na escola e na sociedade.
personalizada/individualizada.
Alguns comentários adicionais feitos pelos Dentre as razões relacionadas com as condições
respondentes auxiliam a elucidar melhor o entrelugar de trabalho, remuneração e profissionalização, desta-
dos processos de formação continuada e o não-lugar camos:
dos professores nesse processo. São eles: a ausência
de continuidade dos programas e projetos; o baixo Prefiro ter condição financeira, condição de poder
índice de compromisso dos professores; o fraco escolher o que quero estudar e onde quero. Ganhando pelo
acompanhamento dado aos professores comprome- que faço com justiça e seriedade, eu responderia pela minha
tendo os resultados, apesar de reconhecerem a rique- formação continuada.
za do material didático de tais “pacotes”; a realidade É preciso que ocorra uma valorização financeira. Já!
de que tais programas e projetos chegam aos profes- Porque vivemos num mundo globalizado onde as in-
sores não por meio das escolas em si, nem pelo MEC formações chegam aos alunos antes dos professores, prin-
ou SEDU (mesmo gerados em âmbito nacional e es- cipalmente os que têm computadores conectados à internet.
tadual), visto que os projetos e programas citados Agora eu pergunto: como falar em formação continuada se
chegam aos professores por meio dos sistemas mu- não temos um laboratório de informática e não somos
nicipais de ensino etc. conectados à internet? Muitas escolas não assinam nenhum
Os professores, porém, de modo geral, reconhe- jornal informativo ou revistas para o professor se informar
cem a importância e a necessidade de formação con- melhor, por falta de dinheiro.
tinuada. Perguntados sobre a necessidade de forma- As mudanças são galopantes. Mas como acompanhar
ção continuada, 91% dos sujeitos responderam o tempo, sem tempo?
afirmativamente, nenhum respondeu negativamente, Óbvio. Elementar. Esperança é a última que morre...
enquanto 9% não se manifestaram. Mas morre.
As respostas afirmativas apresentaram razões
interpenetradas e orientadas em dois sentidos: a) ra- 2
Não apresentamos todas as afirmações e/ou justificativas
zões relacionadas com as transformações da socie- por serem muito numerosas e repetitivas. Procuramos selecioná-
dade de comunicação e informação em sua relação las por freqüência e relevância contextual.

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O não-lugar dos professores nos entrelugares de formação continuada

Destes, 83% do sexo feminino, 12% do sexo mascu- gramas e projetos desenvolvidos pela escola dos gera-
lino, com abstenção de resposta de 5% dos sujeitos. dos e geridos pelo MEC e/ou pela SEDU. Esse indica-
Aproximadamente 80% dos respondentes situa- dor fica mais evidente quando foram questionados sobre
ram-se com idade entre 30 e 49 anos, sendo 33% com a participação e envolvimento em programas e proje-
idade entre 30 e 39 anos e 46% entre 40 e 49 anos. tos desenvolvidos pela Secretaria de Educação. Nes-
O tempo indicado de experiência no magistério te caso, 55% dos respondentes afirmaram que sim,
situou-se entre 10 e 29 anos, ou seja, 86%, dos quais 42% disseram que não e 3% não responderam. Os
54% entre 10 e 19 anos e 29% entre 20 e 29 anos. que se manifestaram afirmativamente (55%) aponta-
Tais dados revelam que os sujeitos da pesquisa ram basicamente os mesmos programas e projetos, a
caracterizam-se pela predominância de mulheres adul- saber: PROGESTÃO (54%), PCNs em Ação (27%),
tas com idade média e com expressiva experiência no PROINFO (14%), PROCAP (12%), dentre outros.
magistério, em distintas funções, destacando-se den- Cumpre destacar que são citados, dentre os pro-
tre elas a de professor regente de classe (46%), segui- gramas e projetos, o curso de educação à distância,
da pela de técnico-pedagógico (14%) e diretor (13%). licenciatura para formação de professores de séries
Quando questionados sobre a participação em iniciais do ensino fundamental em nível superior, de-
programas e projetos de formação continuada desen- senvolvido pela UFES no Núcleo de Educação a Dis-
volvidos no âmbito da escola, 54% afirmaram que tância (NEAD); o mestrado e o doutorado em educa-
não têm envolvimento, 44% disseram que participam ção; o estudo de língua estrangeira; enfim, cursos de
e 2% não responderam. Observa-se, portanto, uma formação inicial ou continuada dirigidos para estudos
divisão de posições a esse respeito. em nível hierarquicamente superior e voltados para
Os respondentes que afirmaram ter envolvimen- interesses individuais de formação e/ou titulação.
to/participação em programa ou projeto de formação Observa-se, portanto, que os educadores repre-
continuada desenvolvido na escola (44%) pareceram, sentam os lugares de formação continuada como um
em sua maior parte, não distinguir programas e pro- entrelugar, que se configura, conforme explicitado,
jetos desenvolvidos na própria escola daqueles de ini- como um sistema de representação que atribui signi-
ciativa do Ministério da Educação (MEC) ou da SEDU. ficado ao significante em função das condições obje-
Destacaram-se, assim, dois grupos: um primeiro, que tivas que atravessam as relações de saber e poder –
efetivamente apontou atividades de formação conti- no caso, os programas e projetos do MEC/SEDU em
nuada desenvolvidas no âmbito do cotidiano escolar, sua relação concreta com as escolas –, nos quais os
como grupos de estudo (21%), planejamento coleti- professores aparecem ocupando um não-lugar, no sen-
vo e construção do projeto político-pedagógico da tido atribuído por Augé (1994), marcado pela indivi-
escola (6%); um segundo, que indicou programas e dualização das referências, assim como pela compres-
projetos de responsabilidade da SEDU ou do MEC, são espaço-temporal.
alguns já concluídos, a saber: Programa de Capacita- Torna-se, nesse caso, necessário analisar a ma-
ção a Distância para Gestores Escolares (PROGESTÃO) nipulação da representação, seu uso e consumo.
(36%), Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) Na medida em que os professores deixam de ser
em Ação (34%), Programa Nacional de Informática responsáveis pela produção dos objetivos, conteúdos
na Educação (PROINFO) (23%), Programa de For- e métodos de seu trabalho (transferidos para equipes
mação de Professores Alfabetizadores (PROFA) técnicas, pacotes de ensino, livros didáticos e outros),
(13%), Programa de Capacitação de Professores ocorre um estranhamento entre os professores e sua
(PROCAP) (13%) e outros, citados com menor inci- produção/trabalho. Nesse processo, os professores
dência percentual. tendem a ser consumidores e/ou usuários de saberes
Os educadores pareceram dessa forma, em nú- e lógicas alienígenas para eles. Isso, porém, não ocorre
mero expressivo, não serem capazes de distinguir pro- de modo sempre passivo. Os professores poderiam

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O não-lugar dos professores nos entrelugares de formação continuada

Observa-se, portanto, associada à representação ou ligações profundas com o vivido. Elas estão na
do não-lugar ocupado pelos educadores e do entrelu- expressão de todos nós, em nossos entrelugares e,
gar simbólico e material dos programas e projetos de portanto, estão na expressão e vivência dos profes-
formação continuada, a afirmação da necessidade de sores em suas práticas cotidianas, sendo alteradas e
formação continuada e de alteração das condições alterando as práticas, ou fazendo com que elas per-
objetivas de oferta de tais “oportunidades”. maneçam cristalizadas.
Importa, a esta altura, destacar que as representa- Importa, pois, considerar a presença-ausência de
ções, como aqui concebidas e explicitadas, implicam e possibilidades das vozes dos professores ao se expri-
explicam a linguagem como uma presença-ausência, mirem sobre a necessidade de formação continuada e
ou seja, “presença evocada e ausência preenchida” das condições objetivas para que esse processo se
(Lefebvre, 1983, p. 67), pois a linguagem, sendo so- efetive.
cialmente produzida e culturalmente transmitida, é atra- Parece, entretanto, que o não-lugar ocupado pe-
vessada por visões de mundo, representações mais los professores nesse processo diminui o campo de
próximas ou mais distanciadas da realidade vivida. possibilidades dos espaços-tempos praticados de for-
Tem-se, dessa forma, a correlação entre as tría- mação continuada, assim como da proximidade de
des do pensamento de Lefebvre, a saber: represen- suas representações com o mundo vivido.
tante-representação-representado e vivido-percebido- Dessa forma, ao serem perguntados sobre as ca-
concebido. Uma tríade remete à outra, em face da racterísticas que os programas e projetos de forma-
necessidade de juntar a linguagem, o discurso, o con- ção continuada desenvolvidos no âmbito da escola ou
cebido com o vivido. Então, as representações não fora dela, sob orientação da escola, da SEDU, ou ou-
são simples fatos, nem resultados compreensíveis por tro, 73% dos sujeitos responderam contraditoriamente
sua causa, nem simples efeito. São fatos de palavra ao discurso anteriormente enunciado, ou seja, que par-
(discurso) e de prática social. ticipam nos momentos de planejamento, desenvolvi-
Para Lefebvre, as representações têm origem no mento e avaliação dos programas e projetos de for-
vivido, esse imediato em que está o diferente, o sin- mação continuada, contra 20% que opinaram que não
gular. Ao menosprezar-se o vivido, comete-se o en- participam e apenas 3% que afirmaram que isso acon-
gano de estudar o concebido e tomar o saber como tece somente às vezes. Como dito, respostas bastan-
absoluto. É importante, pois, refletir sobre as repre- te contraditórias, tendo em vista o caráter dos pro-
sentações como oriundas do vivido interagindo com gramas e projetos citados, quase todos planejados e
o concebido; estudá-las no jogo do imediato com o desenvolvidos fora do âmbito escolar e recebidos como
mediato. Verificar como se situam as representações pacotes contendo objetivos, conteúdos e estratégias.
no movimento entre representante e representado, Essa contradição confirma-se quando, ao serem ques-
muitas vezes esmaecendo o representado por meio tionados sobre se os seus conhecimentos de expe-
do representante, e se autonomizando, multiplican- riência feita e/ou da experiência prática do professor
do-se em representações enganadoras. são considerados no desenvolvimento dos projetos e
programas de formação continuada, 82% afirmaram
As representações não são nem falsas nem verdadei- que sim, apenas 10% disseram que não e somente
ras, mas, ao mesmo tempo, falsas e verdadeiras: verdadei- 3% declararam que isso ocorre às vezes. Como se-
ras como respostas a problemas reais e falsas na medida em riam tais conhecimentos considerados, se os progra-
que dissimulam objetivos reais. (idem, p. 62) mas e projetos já chegam elaborados à escola? Isso
se mantém ao serem questionados sobre a relação
Assim, as representações são produzidas em que os conteúdos dos programas e projetos de for-
complexos simbólicos, repletos de autonomizações mação continuada apresentam com os problemas do

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cotidiano escolar. Sabendo que a quase totalidade dos do somente esse espaço, pois a formação fica-
programas e projetos é de abrangência nacional, como rá restrita.
poderiam estar conectados com o contexto específi- • É na escola que o profissional da educação ad-
co de cada escola e/ou do campo de atuação de cada quire experiência, vivencia a realidade de seu
professor? trabalho. É o local onde o profissional da edu-
Da mesma forma, quando perguntados sobre a cação deve repensar a sua prática.
continuidade que os programas e projetos apresentam, • Em algumas situações coletivas, como o con-
71% responderam negativamente, 12% afirmaram ha- selho de classe e o planejamento, há troca de
ver continuidade e 12% disseram que isso ocorre às experiências entre os profissionais da educa-
vezes. Como poderiam, sem continuidade, apresentar ção que gera aprendizagem e transformação
as características anteriormente apontadas, tais como em nossa prática.
a participação dos professores na elaboração, acom- • Quem poderá propor melhores soluções para
panhamento e avaliação dos programas e projetos e a a escola, a não ser aqueles que habitam e vi-
consideração dos conhecimentos práticos dos profes- venciam o seu cotidiano?
sores em sua relação com o cotidiano escolar?
Sustenta-se, entretanto, a representação da es- Aqueles que afirmaram que a escola não é es-
cola como espaço-tempo a ser buscado no desenvol- paço para formação continuada (apenas 24%) o fi-
vimento dos processos de formação continuada co- zeram utilizando, basicamente, os seguintes argu-
letivamente orientados, bastante sintonizados com a mentos:
representação da escola como uma comunidade com-
partilhada. Seria, entretanto, apressado e ingênuo, • Na escola não há instrumentos materiais e hu-
principalmente considerando a estrutura instável da manos para que haja tal formação.
linguagem como sistema de significação, supor que • Não há tempo e espaço. Não há tempo de es-
tais representações encontrem sua gênese na tríade tudo. A escola está preocupada com dias leti-
vivido-percebido-concebido ou na concretude de uma vos e cumprimento do currículo.
comunidade compartilhada, sendo, provavelmente, • Porque a rotatividade dos profissionais é mui-
esse sistema mais orientado pelo discurso teórico pre- to grande, dificultando um coletivo organizado
dominante no momento com relação à importância e a seqüência dos projetos de formação.
do coletivo e do cotidiano escolar nos processos de • Porque o professor enfrenta problemas de fal-
formação continuada. ta de tempo e espaço físico adequado, além da
Assim, quando perguntados sobre se a escola carência de material, inclusive bibliográfico,
deveria ser considerada como um espaço de forma- para o estudo.
ção continuada, 69% afirmaram que sim, 24% disse- • Porque a escola não tem condições adequadas:
ram que não e 7% não se posicionaram. sala de vídeo, computador etc. Todos os espa-
Algumas das justificativas daqueles que afirma- ços são preenchidos com crianças.
ram que a escola é um espaço privilegiado de forma-
ção continuada foram: Observa-se, portanto, apesar da predominância
de opiniões baseadas na escola como lugar da forma-
• Há um grupo de profissionais com o mesmo ção continuada, a explicitação do não-lugar dos edu-
objetivo necessitando estudar e melhorar sua cadores nesse processo e, o mais inusitado, a pers-
prática através da reflexão, debate e estudo. pectiva de crianças “preenchendo espaços”.
• É no espaço escolar que aprendemos, quando A escola moderna assumiu uma forma de or-
o trabalho é coletivo. Porém não deve ser usa- ganização que, entretanto, não é a única possível, mas

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O não-lugar dos professores nos entrelugares de formação continuada

apenas a que historicamente lhe foi dada, baseada em Dentre os que destacaram a SEDU e/ou agentes
relações impessoais, formais e burocráticas, visando externos ao âmbito da escola, algumas justificativas
à individualização dos papéis e/ou dos atores sociais e foram:
produzindo a alienação do professor com relação aos
fins do seu trabalho. • Toda formação depende de tempo e dinheiro, e
Assim, uma socialização escolar baseada siste- a SEDU deve facilitar, dando essas condições.
maticamente no individualismo, na competição, na falta • A UFES, através de convênio com a SEDU e
de solidariedade, implica uma especialização estreita outras IES que possam disponibilizar certifi-
do acadêmico-profissional, como um obstáculo, quase cação.
intransponível, para a percepção e a compreensão do • Equipe da SEDU visitando as escolas, ouvindo
conjunto dos processos sociais e produtivos. os municípios.
Face ao exposto, torna-se evidente que a escola • A SEDU, já que o professor não ganha o sufi-
da “supermodernidade”, baseada em suas figuras de ciente para se informar, ou seja, atualizar-se.
excesso factual, espacial e de individualização das
referências, efetiva-se intensamente na dicotomia entre Dentre os que citaram todas as opções ou mais
os lugares e os espaços-tempos da criação e da ação de uma opção:
política e/ou do entrelugar (espaço político e de po-
der) da formação continuada. • A responsabilidade pelas ações de formação de
Quanto à questão a quem caberia a responsabili- professores é tarefa que envolve o professor,
dade no âmbito escolar pelas ações de formação de o pedagogo, a SEDU e o coletivo escolar.
professores, destacou-se o coletivo escolar, ao lado • Os próprios professores e a SEDU para criar
da Secretaria de Educação e Esportes (o somatório mecanismos que possibilitem essas ações, o
de opções foi superior ao número de sujeitos, visto coletivo escolar, pois o envolvimento de todos
que marcaram mais de uma opção). Dessa forma, é importante.
60% dos sujeitos apontaram o coletivo escolar, 42% • Todos devem se sentir responsáveis pelas ações
a SEDU, 25% os pedagogos, 21% os próprios pro- de formação: SEDU, pedagogos, professores
fessores, 12% outros. Dentre os outros, foram espe- etc.
cificados: instituições de ensino superior que possam
disponibilizar certificação, profissionais externos re- A essa valorização do coletivo escolar em sintonia
munerados, superintendências regionais e diretores com a Secretaria de Educação e Esportes contrapõe-
de escolas. se uma grande insatisfação com relação aos processos
Algumas das justificativas daqueles que enfati- de formação continuada desenvolvidos pela SEDU.
zaram o coletivo escolar foram: Assim, quando perguntados se a SEDU tem ofe-
recido oportunidades de formação suficiente para
• Toda ação coletiva possibilita maior responsa- garantir o desenvolvimento profissional dos profes-
bilidade e integração na formação. sores, 86% opinaram que não, contra 11% de opinião
• Porque é no coletivo escolar que conseguimos favorável e 3% que não responderam.
avançar. Da mesma forma, quando perguntados sobre se a
• O coletivo envolve todos de direito: professo- SEDU tem oferecido oportunidades de formação aos
res, pedagogos, direção etc. professores de modo que melhore o atendimento aos
• O coletivo escolar com o apoio e investimento alunos e a qualidade de ensino, 71% foram de opinião
das instâncias superiores. que não, 20% que sim e 9% não se manifestaram.

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Com respeito ao tipo de orientação desejada para Algumas das razões apontadas pelos sujeitos para
os processos de formação continuada, 78% aponta- justificar a participação de professores na elaboração
ram a forma coletiva/colegiada, apenas 10% indica- e gestão dos programas e projetos de formação con-
ram a orientação pessoal/individual e 12% não res- tinuada foram:
ponderam.
Algumas das justificativas apresentadas para a • Só o professor sabe suas necessidades e deve
orientação coletiva/colegiada foram: analisá-las para o desenvolvimento dos proces-
sos de formação.
• Pela oportunidade de troca de experiências. O • Os professores são os maiores interessados,
professor deve estar inserido na escola, num por estarem no cotidiano escolar, lidando com
projeto coletivo. os alunos, sujeitos das ações desenvolvidas na/
• A formação continuada deve envolver o coletivo pela escola.
dos trabalhadores da educação lotados na escola, • O professor é quem conhece a realidade esco-
em torno do projeto político-pedagógico. lar, devendo ser o protagonista neste processo.
• Possibilita maior união e interação da equipe da
escola. Com respeito à modalidade de formação conti-
• A escola sofre uma crise estrutural que questi- nuada que melhor atenderia às necessidades de for-
ona o seu próprio sentido. Como tratar essa mação dos professores, os sujeitos assinalaram qua-
questão individualmente? se todas as opções, sendo, portanto, o somatório de
• A orientação individual é muito pobre. As pes- respostas superior ao dos sujeitos.
soas têm suas opiniões e às vezes as expres- A modalidade mais destacada foi a de grupo de
sam como se fossem reflexões coletivas. Te- estudo, com 77% das respostas, seguida por: cursos
mos que ter cuidado com isso. (51%), relatos de experiência (44%), oficinas (43%),
palestras (38%) e outros (10%).
Algumas das justificativas para preferirem orien- Foi bastante enfatizado nas justificativas que to-
tação pessoal/individual foram: das as modalidades são válidas e complementares,
na dependência da necessidade do grupo e das de-
• Cada professor é que conhece as suas neces- mandas.
sidades. Quando perguntados, especificamente, sobre
• Pequenos grupos valorizam o debate e o estudo. como deveriam ser organizados e desenvolvidos pro-
• Quando se referir ao mestrado e cursos de pós- gramas e projetos de formação continuada para me-
graduação. lhor atender às necessidades dos professores, as res-
• Para atender à individualidade e à realidade postas puderam ser agrupadas em três subgrupos: a)
de cada um. na própria escola (44%); b) em parcerias (33%); c)
alterando as condições de trabalho, remuneração e/
Perguntados se os professores poderiam ou de- ou valorização do magistério (23%).
veriam estar envolvidos na elaboração e gestão de pro- Algumas das respostas mais freqüentes referen-
gramas e projetos de formação continuada, 92% tes ao desenvolvimento na própria escola foram:
posicionaram-se afirmativamente. As respostas eviden-
ciam, porém, uma mistura de valorização da orienta- • Na escola, envolvendo o coletivo escolar.
ção individual e pessoal com a coletiva, ao contrário do • Na própria escola e por área de conhecimento.
que levaria a supor a maioria das respostas anteriores, • Na escola, durante o horário letivo e/ou dentro
que enfatizou a orientação coletiva/colegiada. do calendário escolar.

104 Jan /Fev /Mar /Abr 2005 No 28


O não-lugar dos professores nos entrelugares de formação continuada

• Na escola, com diversidade de ações: pales- De modo geral, observou-se nas vozes dos pro-
tras, grupos de estudo, oficinas, cursos, rela- fessores a valorização da escola como espaço privi-
tos de experiência, etc. legiado de formação continuada, assim como a ne-
• Na escola, enfocando a realidade e a relação cessidade de os processos de formação continuada,
teoria e prática. desenvolvidos em qualquer âmbito, apresentarem
• Na escola, por meio da análise da prática do- uma perspectiva de “comunidades interpretativas”
cente com colegas, por meio do relato de ex- e/ou comunidades compartilhadas (Santos, 2000).
periências e reflexão sobre a ação. Os professores, ao valorizarem comunidades
compartilhadas, o fazem em termos da necessidade
Algumas das respostas mais freqüentes sobre de instauração de comunidades dialógicas, interpre-
o desenvolvimento em parcerias foram: tativas e interativas.
Para Santos (2000), uma comunidade comparti-
• Oferta de cursos que realmente atendessem às lhada é uma comunidade interpretativa, cujo auditório
necessidades, anseios e interesses dos profes- (comunidade encarada na perspectiva do conhecimento
sores, no horário de trabalho. argumentativo) está em permanente formação e é a
• Oferta de cursos, com remuneração e/ou aju- fonte central do movimento.
da de custo para os participantes. Nessa perspectiva, dois pressupostos destacam-
• Organizados por região, de acordo com as ne- se: o primeiro, de que no sistema capitalista mundial a
cessidades e realidades dos professores das realidade social não pode reduzir-se à argumentação
escolas, integrando grupos de cinco a dez es- e ao discurso; o segundo, de que a retórica e/ou a
colas da rede em cada município. dialógica não é libertadora por natureza. Isso porque,
• Integrando escolas ou pólos. além da argumentação, do discurso, da linguagem,
• Organização e sistematização envolvendo de- há também trabalho e produção, silêncio e silencia-
legados (professores e técnicos) das escolas mentos.
para elaboração das metas e processos dos pro-
gramas e projetos. Sem ter em conta a dialéctica entre momentos argu-
mentativos e não-argumentativos é impossível entender a
Algumas das respostas envolvendo alterações construção e destruição sociais de auditórios e comunida-
nas condições de trabalho, remuneração e/ou valori- des. (Santos, 2000, p. 106)
zação do magistério foram:
Os auditórios e as comunidades possuem uma
• Com melhoria salarial e concessão de tempo, dimensão não apenas local, mas translocal, que per-
de modo que possibilite a participação do pro- mite a interpenetração de conflitos e consensos glo-
fessor. bais com conflitos e consensos locais.
• Dando continuidade e terminalidade aos proje- O coletivo cotidiano, per se, envolve não apenas
tos iniciados. o local, mas a relação entre a representação local e
• Oferecendo oportunidades a todos, e não só a global, como em outras palavras afirmam Lefebvre
pequenos grupos. (1983), Hall (1999, 2003) e Silva (2003). Para Santos
• Com diminuição da rotatividade profissional, (2000), representa uma “neo-comunidade”, que é tam-
pela realização de concurso público. bém uma constelação de “neo-auditórios” e não uma
• Com investimento e/ou oferta de recursos su- amálgama de consensos e diálogos indiferenciados.
ficientes para obter materiais como computa-
dores, livros, revistas, jornais, informatização É um processo sócio-histórico que começa por ser o
das escolas etc. consenso local-imediato mínimo sobre os pressupostos de

Revista Brasileira de Educação 105


Janete Magalhães Carvalho

um discurso argumentativo [...]. Esta construção micro- posicionamentos, em vários tons e semitons, desta-
utópica tem que assentar na força dos argumentos que a pro- cando-se a relevância que assumem nas parcerias a
movem, ou melhor, no poder argumentativo das pessoas ou participação dos professores e do coletivo escolar na
dos grupos que pretendem realizá-la. (Santos, 2000, p. 109) elaboração e gestão dos processos de formação con-
tinuada (92%), assim como a orientação coletiva/co-
Como as comunidades são relações sociais e os legiada de tais processos.
auditórios são o enquadramento argumentativo em Retomando a consideração inicial dos entreluga-
que essas relações se concretizam, nem as comuni- res como um sistema de representação baseado na
dades nem os auditórios existem aleatoriamente numa linguagem, de estrutura instável, que revela a presen-
dada formação social. Esses conjuntos são espaços- ça e ausência preenchidas por signos e símbolos das
tempos praticados, nos quais a dimensão da dialogi- condições concretas de produção dos discursos teó-
cidade confere a marca estética, a solidariedade a rico-práticos dos sujeitos, diríamos que os professo-
marca ética, a participação a marca política e os sa- res expressaram, com a contraditoriedade intrínseca
beres-fazeres compartilhados a marca do ensino- à instabilidade dos entrelugares em que se situam, de
aprendizagem. forma bastante expressiva, o não-lugar ocupado, o
lugar individualizado e a busca de espaços-tempos pra-
Dos não-lugares aos espaços-tempos ticados em comunidades compartilhadas.
de formação continuada em Às figuras de excesso da “supermodernidade”
comunidades compartilhadas (Augé, 1994), de individualização das referências e
de compressão espaço-temporal, os professores con-
Em síntese, os resultados apontaram que os pro- trapõem, mesmo que de modo confuso e instável, a
fessores, sujeitos da pesquisa, consideraram ter en- figura do espaço-tempo de criação coletiva.
volvimento e participação em programas e projetos Para Certeau (2001a):
de formação continuada executados na escola em
menor proporção (44%) que em programas e proje- Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores
tos desenvolvidos pela Secretaria de Educação e Es- de direção, quantidades de velocidade e a variável tempo
portes (55%), demonstrando, porém, um alto grau [...]. Espaço é o efeito produzido pelas operações que o
de insatisfação (86%) com os programas e projetos orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a
produzidos pela SEDU, assim como pouca clareza funcionar em unidades polivalentes de programas conflituais
quanto à origem, natureza e características dos pro- ou de proximidades contratuais. Em suma, o espaço é um
gramas e projetos realizados no âmbito escolar. lugar praticado. Assim a rua geometricamente definida por
Em sua quase totalidade (91%), os professores um urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres.
reconheceram a importância e a necessidade do de- (p. 201)
senvolvimento de processos de formação continuada
e consideraram a escola como o espaço privilegiado Uma escola ou academia geométrica e arquite-
para a realização de tais processos (69%). tonicamente definida é transformada em espaço pe-
Quanto à responsabilidade de desenvolvimento los professores, alunos, outros agentes e suas práti-
no âmbito escolar de processos de formação conti- cas discursivas, que transformam incessantemente
nuada, apontaram o coletivo escolar (60%), seguido lugares em espaços ou espaços em lugares. Os espa-
de perto pela SEDU (42%). ços exibem operações que permitem percursos, pas-
A necessidade de parcerias aparece nos entre- sagens, intercâmbios, trocas, compartilhamentos, e
lugares em que se situam as representações dos não apenas a determinação da “lei de um lugar pró-
professores, expressas, em suas vozes, ao longo dos prio”, de autoria marcada e/ou do individualismo bri-

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O não-lugar dos professores nos entrelugares de formação continuada

lhante do educador solitário, que cerca o conheci- CARVALHO, Janete Magalhães, (2002). Do projeto às estraté-
mento, mesmo em grupo, e segue o modelo da or- gias/táticas dos professores como profissionais necessários
dem dos lugares, coerente com o discurso científico aos espaços-tempos da escola pública brasileira. In: ______,
moderno. (org.). Diferentes perspectivas da profissão docente na atua-
Os professores expressaram em suas vozes a lidade. Vitória: EDUFES, p. 9-45.
necessidade de um coletivo com intercâmbios, tro- CARVALHO, Janete Magalhães, SIMÕES, Regina Helena Silva,
cas, compartilhamentos, parcerias, assim como de (2002a). Identidade e profissionalização docente: um retrato
instauração de comunidades compartilhadas locais e delineado a partir dos periódicos nacionais. In: ANDRÉ,
translocais. Marli Elisa (org.). Formação de professores no Brasil (1990-
Dessa forma, a formação continuada, visualiza- 1998). Brasília: MEC/INEP/COMPED, p. 185-204 (Série Es-
da a partir da constituição da escola como comunida- tado do Conhecimento, nº 6).
de compartilhada, pressupõe duas condições: o po- , (2002b). O processo de formação continuada de
der argumentativo das pessoas e grupos; a pretensão professores: uma construção estratégico-conceitual. In:
de construir processos de formação continuada vol- ANDRÉ, Marli Elisa (org.). Formação de professores no
tados para a “utópica” de constituição de um novo Brasil (1990-1998). Brasília: MEC/INEP/COMPED, p. 171-
coletivo escolar. 184 (Série Estado do Conhecimento, nº 6).
Em síntese, a representação dos professores e/ CERTEAU, Michel de, (2001a). A invenção do cotidiano – 1.
ou o entrelugar de formação continuada por eles enun- Artes de fazer. 6 ª ed. Petrópolis: Vozes.
ciado parecem indicar, em potência, o germe de uma , (2001b). A cultura no plural. 2ª ed. Campinas:
nova configuração dos processos de formação conti- Papirus.
nuada que supere o “não-lugar” ocupado pelos pro- GOVERNO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, Secretaria de
fessores. Estado da Educação e Esportes, Subsecretaria de Educação
Básica e Profissional, (2003). Política educacional do Esta-

JANETE MAGALHÃES CARVALHO, doutora em educa- do do Espírito Santo: a educação é um direito. Vitória: SEDU/

ção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é atual- ES (Documento-Base).

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2002]; Os espaços-tempos da pesquisa sobre o professor (Educa- dos estudos culturais. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, p. 103-133.

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Dossiê Formação de Professores, Campo Grande (MS), nº 14, p. comum: a ciência, o direito e a política na transição paradig-

83-97, jul.-dez. 2002). Co-autora da série: Estado do Conhecimen- mática. São Paulo: Cortez.

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gia da supermodernidade. Campinas: Papirus. Aprovado em julho de 2004

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Resumos/Abstracts

Janete Magalhães Carvalho


O não-lugar dos professores nos entrelugares de formação continuada
O artigo faz uma análise dos sistemas de representação de professores, delegados eleitos para participarem do GT – Formação e
Valorização do Magistério, por ocasião da realização do Seminário Estadual de Política Educacional do Espírito Santo, sobre os
processos de formação continuada desenvolvidos pela Secretaria de Educação. Utiliza como referencial de análise as categorias
de não-lugar, lugar, espaços-tempos e comunidades compartilhadas, a partir das obras de Lefebvre (1983), Augé (1994), Certeau
(2001) e Santos (2000), dentre outros. Trabalha com metodologia baseada em coleta de dados por meio de questionário composto
de questões abertas e fechadas. Aponta como resultado que o sistema de representação de professores enuncia a necessidade de
instauração de processos de formação continuada voltados para a “utópica” de constituição de um coletivo escolar que supere, por
meio de comunidades compartilhadas, o não-lugar por eles ocupado até então.
Palavras-chave: formação continuada; não-lugar; entrelugar; espaços-tempos; comunidades compartilhadas.

The non-place of teachers in the “between spaces” of continuing formation


This article analyses the systems of representation of teachers, elected to participate as delegates in the Working Group on Tea-
cher Formation and Valorisation during the Seminar on Educational Policy held in the State of Espírito Santo, to discuss the pro-
cesses of continuing formation developed by the State Secretariat of Education. It uses in its analytical framework the categories
of non-place, place, space-times and shared communities, based on works of Lefebvre (1983), Augé (1994), Certeau (2001), and
Santos (2000), among others. The methodology is based on data collection by means of questionnaires including open and closed
questions. The results indicate that the teachers’ system of representation points to the need to install processes of continuing for-
mation directed towards the “utopia” of constituting a school collective that surpasses, by means of shared communities, the non-
place occupied by the teachers up until now.
Key-words: continuing formation; non-place; “between” place; space-times; shared communities

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