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N86a09 PDF
N86a09 PDF
da Escola de Frankfurt*
Andreas Fischer‑Lescano
tradução de Rúrion Melo
Resumo
Apesar de seu ceticismo em relação à razão e à moralidade uni‑
versais, a Teoria Crítica e a Teoria Crítica dos Sistemas compartilham alguns pressupostos básicos: (1) o uso de conceitos
sistêmicos e institucionais, que transcendem as meras relações intersubjetivas graças à sua complexidade; (2) a idéia de que
a vida social é marcada por paradoxos, antagonismos e antinomias fundamentais; (3) a estratégia de definir a justiça como
uma fórmula contingente e transcendental; (4) o recurso à crítica imanente (e não externa, de fundo moral) como uma
atitude de transcendência; (5) o objetivo de emancipação social (e não apenas política) em uma “associação de indivíduos
livres” (Marx). O artigo enfoca esses paralelos e procura esboçar uma virada crítica da teoria dos sistemas autopoiéticos.
Palavras-chave: Teoria Crítica; teoria crítica dos sistemas; justiça;
sociedade global; direito global
Abstract
Besides their skepticism about universal reason and uni‑
versal morality, the Frankfurt Schools of Critical Systems Theory and Critical Theory share basic assumptions: (1)
the thinking in societal‑systemic, institutional concepts, which transcend simple reciprocal relations by dint of
their complexity; (2) the assumption that society is based on fundamental paradoxes, antagonisms, antinomies;
(3) the strategy to conceptualize justice as a contingent and transcendental formula; (4) the form of immanent
(and not morality‑based, external) critique as an attitude of transcendence; (5) the aim of societal (and not only
political) emancipation in an “association of free individuals” (Marx). The article focuses on those parallels and
aims to conceptualize a critical turnaround of autopoietic systems theory.
Keywords: Critical theory; critical system theory; justice; world society;
global law
[*] Em comemoração aos 65 anos Uma crítica do sistema, no sentido empregado por Adorno,
de Gunther Teubner.
é possível apenas se dispomos de um conceito de sistema social.
[1] Hauke Brunkhorst esboçou Brunkhorst, “Ästhetik als Gesellschaftskritik:
cuidadosamente os paralelos entre a
concepção de sociedade de Adorno e
Vier Fragen zu Adorno”, p. 171
a da teoria dos sistemas; na verdade,
ele próprio apresentou a possibilida-
de de uma reentrada da teoria crítica
É uma suposição comum a de que uma “teoria crítica
dos sistemas na Teoria Crítica. dos sistemas” não existe. Diz‑se que falta a toda teoria dos sistemas
[2] Habermas, Jürgen. “Theorie der
um ímpeto crítico‑emancipatório; por ser meramente uma forma
Gesellschaft oder Sozialtechnologie?“. descritiva de investigação, ela representa a “forma suprema da cons‑
In: Habermas e Luhmann, N. Theorie
der Gesellschaft oder Sozialtechnologie.
ciência tecnocrática”, a “apologia” do status quo, pois o preserva. Foi
Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1974. essa, pelo menos, a opinião que Jürgen Habermas2 defendeu em seu
sistemas sociais. A teoria transcende uma mera descrição de proble‑ [5] Cf. a reconstrução em Honneth,
mas estruturais e submete as estruturas sociais a uma crítica que pode Axel. Pathologien der Vernunft: Ges-
chichte und Gegenwart der Kritischen
ser produtivamente apropriada de várias maneiras pelas atuais teorias Theorie, Frankfurt a.M.: Suhrkamp,
pós‑materiais6. Uma teoria crítica dos sistemas aborda as antinomias 2007, pp. 44ss.; e Zuidervaart, Lam-
bert. Social philosophy after Adorno.
das estruturais sociais; ela realiza uma crítica imanente, em atitude Cambridge: UP, 2007, pp. 8ss.
não‑conformista, abarcando igualmente o “olho maligno”, tão caro à [6] Cf., por exemplo, Jessop, Bob.
teoria crítica7. Dessa forma, a abordagem procura identificar e reforçar “Zur Relevanz von Luhmanns Sys-
os processos sociais que podem conduzir à superação das ordens so‑ temtheorie und von Laclau und
Mouffes Diskursanalyse für die Wei-
ciais reificadas. terentwicklung der materialistischen
Gostaria de esboçar a seguir os elos entre a teoria crítica dos sis‑ Staatstheorie”. In: Hirsch, J. E outros
(eds.). Der Staat der Bürgerlichen Ge-
temas e a Teoria Crítica. Além de seu ceticismo em relação à razão ou sellschaft: Zum Staatsverständnis von
à moralidade universais, ambas as abordagens compartilham os se‑ Karl Marx. Baden-Baden: Nomos,
2008; Buckel, Sonja. Subjektivierung
guintes princípios: und Kohäsion. Weilerswist: Velbrück
Wissenschaft, 2007, pp. 230ss.;
Negri, Antonio. “Philosophy of law
1. Pensar em termos de conceitos da teoria dos sistemas sociais e against sovereignty”. European Jour-
institucionais, que transcendem as relações intersubjetivas em nal of Legal Studies, 2008, pp. 1-11;
Möller, K. “Global Assemblages im
função de sua complexidade. neuen Konstitutionalismus”. Ancilla
2. A suposição de que a sociedade se baseia em paradoxos, antago‑ Iuris, 2008, pp. 44ss; Brunkhorst,
Hauke. “Die Legitimationskrise der
nismos e antinomias fundamentais. Weltgesellschaft”. In: Albert, M. e Sti-
3. A estratégia de conceber a justiça como uma fórmula contingente chweh, R. (eds.). Weltstaat und Welts-
taatlichkeit. Wiesbaden: VS, 2008;
e transcendente. Blecher, Michael. Zu einer Ethik der
4. A crítica imanente (e não externa, baseada na moralidade) como Selbstreferenz oder: Theorie als Compas-
sion. Berlim: Duncker und Humblot,
forma, numa atitude de transcendência. 1991; Willke, Helmut. Stand und Kritik
5. O objetivo da emancipação social (e não apenas política), pela der neueren Grundrechtstheorie: Schrit-
te zu einer normativen Systemtheorie.
constituição de uma “comunidade de indivíduos livres” (Marx). Berlim: Duncker und Humblot, 1975.
[12] Teubner. “Der Umgang mit Re- Essa definição, que soa altamente formal, pressupõe que a sociedade é uma
chtsparadoxien: Derrida, Luhmann,
Wiethölter”. In: Joerges, Ch. e Teu-
entidade formada por seres humanos, que ela é humana, e que está diretamente em
bner (eds.). Rechtsverfassungsrecht. acordo com seus sujeitos; como se o “social” não fosse justamente a preponderância das
Baden-Baden: Nomos, 2003, p. 31.
Nesse contexto seminal, ver Wiethöl-
relações sobre os indivíduos, os quais são seus produtos impotentes.
ter, Rudolf. “Begriffs- oder Interes- Adorno, “Gesellschaft”, p. 9
senjurisprudenz”. In: Lüderitz, A. e
Schröder, G. (eds.). Internationales
Privatrecht und Rechtsvergleichung im A teoria crítica dos sistemas da Escola de Frankfurt comparti‑
Ausgang des 20. Jahrhunderts: Fests-
chrift für Gerhard Kegel. Frankfurt a.M:
lha com a geração fundadora da Teoria Crítica a suposição básica da
Metzner, 1977. não‑identidade entre indivíduos e sociedade. As condições sociais
incomensurabilidades em seus comentários recentes sobre a teoria [52] Staeheli, Urs. “Updating Luh-
jurídica dos sistemas de Teubner: “É de se admirar que sejam logo mann mit Foucault?”. kultuRRe-
volution: Zeitschrift für angewandte
os doutores em direito os que dirigem o espírito da nova era contra Diskurstheorie, vol. 47, 2004, pp. 14ss;
as tradições filosóficas enfadonhas”. Fischer-Lescano, Andreas e Chris-
tensen, Ralph. “Auctoritatis interpo-
O problema dos paradoxos permanece para o caso do direito, que sitio: Die Dekonstruktion des Dezi-
foi bastante desafiado pela teoria crítica dos sistemas, não sem conse sionismus durch die Systemtheorie”.
Der Staat, 2005, pp. 213ss.
qüências. Enquanto a primeira geração de teóricos críticos deu pouca
atenção a questões do discurso jurídico, e especialistas em direito [53] Cf. Menke, “Subjektive Rechte”,
op. cit., p. 86. O paradoxo do direito
como Kirchheimer, Neumann e Abendroth tinham pouco acesso ao torna-se aparente, uma vez que cria e
círculo interno presidido por Marcuse, Horkheimer e Adorno, a teo questiona a forma dos “direitos sub-
jetivos”, ao revelar o “caráter essen-
ria crítica atual incorporou enfaticamente discursos jurídicos do âm‑ cialmente político do direito auto-
bito nacional e internacional55. No entanto, em contraste com a teoria reflexivo”. Ver também Staeheli, op.
cit.; Fischer-Lescano e Ralph, op. cit.
crítica dos sistemas, que revela o lado político do direito se referindo a
seus fundamentos paradoxais, as segunda e terceira gerações da teo‑ [54] Negri, op. cit., p. 11.
ria crítica escolheram uma abordagem kantiana, abordando a política [55] Sobre a segunda geração da
como se fosse uma “doutrina do direito aplicada” e procurando atuali‑ teoria crítica e do direito, ver Nie-
sen, Peter e Eberl. “Demokratischer
zar a idéia da democracia no contexto de uma sociedade globalizada. Positivismus: Habermas/Maus”. In:
Nessa linha, Jürgen Habermas desenvolveu sua filosofia do direito em Buckel e outros, op. cit.
[60] Günther, Klaus. Der Sinn für O direito é a manifestação primordial da racionalidade irracional.
Angemessenheit. Frankfurt a.M.:
Suhrkamp, 1988; Günther e Ran- Adorno. Negative Dialektik, p. 303;
deria, Shalini. Recht, Kultur und “Individuum und Organisation”, p. 445
Gesellschaft im Prozeß der Globalisie-
rung. Bad Homburg: Werner Rei-
mers Stiftung, 2001; e Frankenberg,
Günter.“Zivilgesellschaft im trans-
Adorno criticou insistentemente a consistência e a totalidade como
nationalen Kontext”. Maecenata ideais burgueses de necessidade e universalidade66. O “fechamento
Jahrbuch für Philanthropie und Zivilge-
sellschaft , 2003, pp. 13ss; Ibidem. Au-
sistêmico” foi atacado por ele por tornar herméticas, por razões meto‑
torität und Integration: Zur Grammatik dológicas, as questões em jogo e por exercer o papel de autojustificação
von Recht und Verfassung. Frankfurt
a.M.: Suhrkamp.
dos sistemas contra a “ubiqüidade do mercado”. Isso coincide com a
descrição que a teoria dos sistemas fornece do desenvolvimento da
[61] Para uma visão de conjunto, ver
Frankenberg.“Partisanen der Re-
“ordem a partir do ruído”, na co‑evolução de sistema e do ambiente67.
chtskritik: Critical Legal Studies”. In: Tanto Adorno como a teoria crítica dos sistemas não concebem o “siste‑
Buckel e outros, op. cit. ma” como uma hierarquia estrutural estática. Tal noção, duramente de‑
[62] Horkheimer e Adorno, op. cit., nunciada por Friedrich Nietzsche68, é estranha a ambas as abordagens
p. 263. sistêmicas. Na verdade, ambos descrevem a autonomização dinâmica,
[63] Derrida, Jacques. “Force of law:
progressiva e eruptiva das racionalidades como um processo dialético
the mystical foundation of authori- de emergência de sistemas auto‑referentes. A problemática da autono‑
ty”. In: Cornell, D. e outros (eds.). De-
construction & the possibility of justice.
mização foi resumida por Adorno em sua filosofia da música; ele faz a
Nova York: Routledge, 1992. acusação de que a música solipsista, com sua textura rígida, que permi‑
são desenvolvidas as utopias sociais?”74. Essa questão atinge o [72] Adorno, “Über Marx und die
cerne do problema da justiça. Ao respondê‑la, a teoria crítica dos Grundbegriffe der soziologischen
Theorie. Seminarmitschriften”, op.
sistemas demanda “uma justiça que seja capaz de subverter a si cit., p. 508.
mesma, formulada de maneira contingente e transcendente”. Isso [73] Teubner e Zumbansen, Peer.
nos leva a um duplo conceito de justiça, que, como fórmula con‑ “Rechtsentfremdungen: Zum ge-
tingente intra‑sistêmica, precisa preservar tanto sua consistência sellschaftlichen Mehrwert des zwölf-
ten Kamels”. Zeitschrift für Rechtsso-
interna como sua permeabilidade em relação às demandas vindas ziologie, 2000, vol. 21, pp. 189-215.
da sociedade75. As implicações normativas dessa fórmula, coerente [74] Teubner, “Der Umgang mit Re-
com a própria auto‑representação da esfera jurídica, não devem ser chtsparadoxien”, op. cit., p. 37.
subestimadas, pois obrigam o direito a buscar traduzir os conflitos [75] Fögen, Marie Theres. Das Lied
estruturais da sociedade em quaestio iuris, a manter mutuamente vom Gesetz. München: Carl-Friedri-
compatíveis os espaços de autonomia, a garantir as condições para ch-von-Siemens-Stiftung, 2006,
pp. 95ss.
a autoconstituição dos indivíduos. Contudo, o modelo normativo
de justiça como fórmula contingente e transcendente excede essa
interpretação. Uma visão que insistisse na fórmula contingente e
tentasse universalizá‑la apenas provocaria nova injustiça. É exa‑
são e decisão em situações deliberativas por meio do estabelecimento [114] Ver Wiethölter. “Recht-Ferti-
coercitivo e legalmente estruturado de ligações entre espaços heterár‑ gungen eines Gesellschafts-Rechts”.
In: Joerges e Teubner (eds.), op. cit.,
quicos e policêntricos, privados e públicos, de ação organizacional e pp. 13ss.
espontânea; a volta da deliberação nos processos de auto‑regulação
[…] fazem uso de sua preferência pela desordem, revolta, desvio, variação
[122] Teubner. “Selbstsubversive Ge-
e mudança. Ela protesta em nome da sociedade, dos seres humanos e da natu‑
rechtigkeit”, op. cit., p. 21. reza — mas assim o faz […] fora de seu arcanum interior. A justiça subversi‑
va é o espinho em [sua] carne. O grande motim — essa é sua mensagem122.
Recebido para publicação
em 15 de dezembro de 2009.
NOVOS ESTUDOS
CEBRAP Andreas Fischer‑Lescano é professor titular da cátedra de Direito Público, Europeu e Interna‑
86, março 2010 cional e de Teoria do Direito, da Universidade de Bremen. É também diretor do Centro Europeu de
pp. 163-177 Direito e Política.