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Revista Pernambuco 140 (Ver Páginas 13-17) PDF
Revista Pernambuco 140 (Ver Páginas 13-17) PDF
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KARINA FREITAS
SOBRE FIRMINA
Um especial sobre a primeira mulher a escrever um romance
abolicionista na língua portuguesa
A
Paulo Henrique Saraiva Câmara
capa desta edição traz uma denúncia. Se Firmina foi uma das primeiras, Vice-governador
Raul Henry
narrativa do cativeiro do hoje escutamos sua voz por meio de
esquecimento – e mostra que esse escritoras como Ana Maria Gonçalves, Luz Secretário da Casa Civil
Antonio Carlos Figueira
cárcere não apagou a memória Ribeiro, Elizandra Souza e tantas outras.
da liberdade. Falamos de Úrsula Nesta edição, uma entrevista com José COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE
(1859), de Maria Firmina dos Reis Luiz Passos, autor de Antologia fantástica da Presidente
(1825-1917), que ganha reedição pela Editora da República brasileira – 2° título do Selo Suplemento Ricardo Leitão
PUC Minas. A escritora foi a primeira da língua Pernambuco – uma narrativa que faz dialogar o Diretor de Produção e Edição
portuguesa a escrever um romance abolicionista, privado e o público para pensar a República. Ricardo Melo
mas aproveitamos a ocasião para falar de como E ainda: Maria de Lourdes Alves, escritora que Diretor Administrativo e Financeiro
o colonialismo sempre se esforçou para suprimir fissura o entendimento canônico de literatura; Bráulio Meneses
a população afrodescendente. Isso passa pela uma leitura de Carlos Felipe Moisés, o poeta;
imagem de Firmina, que é desconhecida. A o termo cosmopolitismo e suas mutações hoje; o
designer Karina Freitas escolheu trabalhar em novo livro de Sérgio Sant’Anna; a reedição de
cima de fotos antigas de mulheres negras, ainda Stella Manhattan em tempos de ataque aos direitos
Uma publicação da Cepe Editora
que não se conhecesse o tom de pele da autora. LGBTQI; Januária Cristina Alves e seu trabalho de Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
Trabalhar a ausência de forma literal (extração registrar o folclore brasileiro; poemas de Aglaja Pernambuco – CEP: 50100-140
do rosto) se mostrou algo violento – semelhante Veteranyi (1962-2002). Também publicamos Redação: (81) 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br
àquela que foi imposta à escritora. A imagem ainda um trecho do livro Comum, sobre o que hoje dá
SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL
dialoga com Susana, mulher escravizada que, em base às reivindicações sociais. Agradecemos à Luiz Arrais
Úrsula, se fia nas memórias de seu passado livre. editora Boitempo pela cessão do trecho da obra.
EDITOR
As narrativas de matriz afro-brasileira Schneider Carpeggiani
entoam um coro atemporal de resistência e Uma boa leitura a todas e todos.
EDITOR ASSISTENTE
Igor Gomes
DIAGRAMAÇÃO E ARTE
COL A BOR A M N E STA E DIÇ ÃO Hallina Beltrão, Janio Santos e Maria Júlia Moreira
TRATAMENTO DE IMAGEM
Fabiana Moraes, Leonardo Nascimento, Karina Freitas, Agelson Soares
jornalista e jornalista e produtor designer, assina as REVISÃO
professora de cultural, autor do imagens da capa Maria Helena Pôrto
Comunicação ensaio de capa desta COLUNISTAS
(UFPE), autora de O edição Everardo Norões, José Castello e Marco Polo
nascimento de Joicy PRODUÇÃO GRÁFICA
Júlio Gonçalves, Eliseu Souza, Márcio Roberto, Joselma Firmino
e Sóstenes Fernandes
Bárbara Conceição, fotógrafa e estudante de Comunicação (UFPE); Bruce Robbins, professor da Columbia University; Fabiana MARKETING E VENDAS
Macchi, tradutora, professora e pesquisadora em Literatura e Tradução (UFF); Giovanna Dealtry, professora de Literatura Daniela Brayner, Rafael Chagas e Rosana Galvão
Brasileira (UERJ); Januária Cristina Alves, escritora e jornalista; Maria Carolina Morais, tradutora e mestranda em Teoria Literária E-mail: marketing@cepe.com.br
(UFPE); Paulo Lemos Horta, professor da NYU Abu Dhabi; Tarso de Melo, poeta, autor de Íntimo desabrigo. Telefone: (81) 3183.2756
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017
BASTIDORES
ao que já tem
nome e emoção
Um livro recém-lançado, que
reúne informações sobre
o folclore brasileiro, tanto
preserva narrativas quanto
nos ajuda a atravessar o
(incerto) tempo presente
PERFIL
Escrever, ato
BÁRBARA CONCEIÇÃO
que é abrigo e
arrebatamento
Sobre a “presença-fissura” de
Maria de Lourdes, escritora
que vende seus livros a R$ 1
Fabiana Moraes
ENSAIO
Breviário do
DIVULGAÇÃO
desastre que se
ora se anuncia
Trecho de Comum, obra que
propõe a coletividade como
vetor de mudança social
Texto: Pierre Dardot e Christian Laval
Tradução: Mariana Echalar
O futuro parece bloqueado. Vivemos esse estranho ções de sua expansão sobre bases cada vez mais
momento, desesperador e preocupante, em que nada amplas, está destruindo as condições de vida no
parece possível. A causa disso não é mistério e não planeta e conduzindo à destruição do homem pelo
decorre da eternidade do capitalismo, mas do fato de homem2. A pressão do capitalismo, porém, foi mais
que este ainda não tem forças contrárias suficientes ou menos canalizada por políticas redistributivas e
diante de si. O capitalismo continua a desenvolver sociais após a Segunda Guerra Mundial, evitando
sua lógica implacável, mesmo demonstrando dia assim, acreditava-se, o retorno dos desastres so-
após dia uma temível incapacidade de dar a míni- ciais, políticos e militares produzidos por ele desde
ma solução às crises e aos desastres que ele próprio o século XIX. Nos anos 1980, o neoliberalismo, com
engendra. Parece até estender seu domínio sobre a o auxílio de todo o arsenal das políticas públicas,
sociedade à medida que desfia suas consequências. impôs uma via diferente, estendendo a lógica da
Burocracia pública, partidos de “democracia repre- concorrência a toda a sociedade.
sentativa” e especialistas estão cada vez mais presos Disso resultou um novo sistema de normas que
a camisas de força teóricas e dispositivos práticos se apropria das atividades de trabalho, dos com-
dos quais não conseguem se libertar. A ruína do portamentos e das próprias mentes. Esse novo
que constituiu a alternativa socialista desde meados sistema estabelece uma concorrência generalizada,
do século XIX, e permitiu conter ou corrigir alguns regula a relação do indivíduo consigo mesmo e
dos efeitos mais destruidores do capitalismo, faz com os outros segundo a lógica da superação e do
crescer o sentimento de que a ação política efetiva desempenho infinito. Essa norma da concorrência
é impossível ou impotente. Falência do Estado co- não nasce espontaneamente em cada um de nós
munista, guinada neoliberal do que nem mesmo como produto natural do cérebro: não é biológica, é
merece mais o nome “social-democracia”, desvio efeito de uma política deliberada. Com o auxílio di-
soberanista de boa parte da esquerda ocidental, en- ligente do Estado, a acumulação ilimitada do capital
fraquecimento do salariado organizado, aumento do comanda de maneira cada vez mais imperativa e
ódio xenofóbico e do nacionalismo, todos esses são veloz a transformação das sociedades, das relações
elementos que nos levam a perguntar se existem sociais e da subjetividade. Estamos na época do
ainda forças sociais, modelos alternativos, modos cosmocapitalismo, no qual, muito além da esfera do
SOBRE A OBRA de organização e conceitos que deem esperança de trabalho, as instituições, as atividades, os tempos de
um além do capitalismo. vida são submetidos a uma lógica normativa geral
Comum: ensaio sobre a que os remodela e reorienta conforme os ritmos e
revolução no século XXI foi A TRAGÉDIA DO NÃO COMUM objetivos da acumulação do capital. É esse sistema
lançado pela Boitempo no No entanto, a situação que se impõe à humanidade de normas que hoje alimenta a guerra econômica
Seminário 1917: o ano que é cada vez mais intolerável. O verdadeiro “espírito generalizada, que sustenta o poder da finança de
abalou o mundo, ocorrido do capitalismo” nunca foi tão bem-descrito como mercado, que gera as desigualdades crescentes e a
em fins de setembro. pela frase atribuída a Luís XV: “Depois de mim, vulnerabilidade social da maioria, e acelera nossa
o dilúvio”1. O capitalismo, produzindo as condi- saída da democracia3.
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017
Notas
as Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês)
vêm produzindo relatórios e mais relatórios que fundamentais para 1 Ver Michael Löwy, Écosocialisme, l’alternative ra-
dicale à la catastrophe écologique capitaliste (Paris,
sobrevivência, mas
apresentam o aquecimento global como o problema Mille et une Nuits, 2011).
mais importante e mais urgente que a humanidade 2 Isabelle Stengers, Au temps des catastrophes: résis-
já enfrentou5. As populações mais pobres serão ter à la barbarie qui vient (Paris, Les Empêcheurs de
as primeiras a sofrer as consequências funestas
do aquecimento global, e, a partir de meados do
século XXI, todas as gerações nascidas daqui até
mudar economia, Penser en Rond/La Découverte, 2009) [ed. bras.: No
tempo das catástrofes, trad. Eloisa Araújo, São Paulo,
Cosac Naify, 2015)].
lá padecerão com as alterações climáticas. Num
livro de grande lucidez, Les guerres du climat, Harald
Welzer afirma que “o aquecimento climático agrava
sociedade e o 3 Remetemos o leitor a um de nossos livros anteriores,
La nouvelle raison du monde: essai sur la société néo-
libéral (Paris, La Découverte, 2010) [ed. bras.: A nova
as desigualdades globais entre condições de vida
e sobrevivência, porque atinge as sociedades de
maneiras muito diversas”, e prevê que o século XXI
sistema de normas razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal,
trad. Mariana Echalar, São Paulo, Boitempo, 2016].
4 Joel Kovel, The enemy of nature: the end of capitalism
verá “não somente tensões envolvendo o direito atividades e todas as regiões interagem. Logo, não é or the end of the world? (Nova York, Zed, 2002).
à água e ao cultivo, mas verdadeiras guerras pelos tanto uma questão de proteger “bens” fundamentais 5 PNUD, Rapport mondial sur le développement humain
recursos naturais”6. para a sobrevivência humana, mas de mudar pro- 2007/2008. La Lutte contre le changement climatique:
A crise ambiental não é a única a afetar o destino fundamente a economia e a sociedade, derrubando un impératif de solidarité humaine dans un monde
das populações do globo, e há certo perigo em achar o sistema de normas que está ameaçando de maneira divisé (Paris, La Découverte, 2007) [ed. port.: Relatório
que apenas a emergência climática exige mobiliza- direta a humanidade e a natureza. É exatamente de desenvolvimento humano 2007/2008: combater a
ção geral, enquanto empresas, classes dominantes isso que entenderam todas as pessoas para as quais mudança do clima: solidariedade human a em um
e Estados continuam brigando para tomar para si a ecologia política consequente só pode ser um an- mundo dividido, trad. Instituto Português de Apoio ao
o máximo de poder, riqueza e prestígio, as usual, ticapitalismo radical7. Pois qual seria o motivo de Desenvolvimento, Coimbra, Almedina, 2007].
como se não tivessem nada a ver com isso. Mas essa o desastre anunciado pelas autoridades científicas 6 Harald Welzer, Les guerres du climat: pourquoi on
crise, talvez mais do que as outras, mostra bem os não provocar a mobilização que se poderia esperar, tue au XXI siècle (Paris, Gallimard, 2009), p. 13 [ed.
impasses com que nos defrontamos. O mundo não com exceção de uma minoria? O diagnóstico de bras.: Guerras climáticas: por que mataremos e seremos
ficará protegido com a implantação de uma espécie gravidade extrema dado pelo PNUD, pelo IPCC e mortos no século XXI, trad. William Lagos, São Paulo,
de reserva de “bens comuns naturais” (terra, água, por inúmeras instituições na atualidade suscita a Geração, 2010].
ar, florestas etc.) “milagrosamente” preservados questão das condições para uma ação coletiva capaz 7 Ver John Bellamy Foster, “Ecology against Capita-
da expansão indefinida do capitalismo. Todas as de responder à urgência climática. Nem as empresas lism”, Monthly Review, v. 53, n. 5, out. 2001.
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017
ENTREVISTA
José Luiz Passos
NORÕES
acompanhado apenas de seu cachorro. Queria
enxergar mais fundo o país e narrou a experiência
no livro Viagem com Charlie.
A jornada de Isabel rendeu 12 reportagens no
jornal Público e um livro: Viagem ao sonho americano
(Companhia da Letras, Lisboa, 2017). Um itinerário
esnoroes@uol.com.br que bem poderia ser lido assim: mergulho no ventre
de Moby Dick, a gigantesca baleia branca, metáfora
do país que ela trilhou, buscando encontrar, no que se
escreve, marcas do lugar de escrita, do lugar do autor, como
é que o real se reflete na ficção e vice-versa. Moby Dick, de
Herman Melville, é o romance fundador da América do indiví-
duo, e foi dele que parti para a escolha dos outros 15. Não são
necessariamente os meus livros preferidos, mas gosto de todos
os que escolhi, ficção, não ficção, poesia, jornalismo. Tudo. A
literatura tinha tudo para que eu partisse para uma viagem em
busca do real, cruzando vozes, todas as vozes que apanhasse
nos caminhos traçados pelos livros escolhidos.
O acaso permitia todos os contágios e essa era a minha
O ventre da
liberdade. O resto era o real e as suas circunstâncias. Deixar A paisagem talvez seja a primeira forma de espanto, a mais
possível o espanto, aquilo que nunca se sabe que se vai encon- imediata. Nos Estados Unidos ela é tão diversa quanto as pessoas que
trar. Deixar-me ser surpreendida, deixar-me contaminar por a habitam. Deserto, montanha, mar, lagos, rios, neve, a vastidão da
imagens, sons e o que as palavras dos livros me sugeriam. Era planície, o ritmo do glaciar desaparecendo no Alasca. Mas tem sons,
outra tradução. Eu já tinha lido todos os 16 livros de partida, como os de todas as línguas que se ouvem nas ruas de Nova York.
baleia é a nave
mas agora era outra a leitura que fazia deles. São coisas a compor um puzzle. Os livros acompanhavam-me
É de New Bedford, o lugar da baleia, por onde nessa confirmação. Nos contrastes sociais, culturais. Era impossível
Isabel começa a viagem. Ali, há o Museu da Baleia conter as emoções. Elas fazem parte do espanto.
e também uma casa com a placa: “Aqui dormiu Para Isabel, a paisagem está a nos reger, num re-
desta viagem
Moby Dick”, fazendo a simbiose entre obra e autor. torno ao Gênese. Tal como pensa David Vann, com
É também em New Bedford que ela encontra um quem dialoga na lonjura branca do Alaska. O autor
professor de origem portuguesa, especialista no ro- de Sukkwan Island narra o suicídio de um pai, quando
mance de Melville. Na conversa, ele comenta que a o filho tinha apenas 13 anos. É um episódio autobio-
ideia de subjugação, desenvolvida no Banqueiro anar- gráfico, pois o pai havia cometido suicídio quando
quista, de Fernando Pessoa, era algo já entranhado o autor tinha apenas 10 anos. Para David Vann, a
no Moby Dick, aquela forma estranha como o capitão paisagem era o princípio de tudo, só depois a palavra,
Uma conversa com Isabel Ahab mantinha sujeitos todos os homens do barco
baleeiro. O mesmo Ahab que inspirou Elton John:
ideia que distorce e inverte o enunciado bíblico sobre
a criação do mundo. É isso que o menino persona-
POESIA
Marco Sérgio Castro Pinto comemora cinco décadas de atividade
Polo literária e lança uma antologia de seus poemas
Ao completar 70 anos de vida marcada pela criação de versos
e 50 de atividade literária, curtos e claros, muitos com
o poeta paraibano Sérgio de sabor epigramático, em alguns
Castro Pinto (foto) publica o momentos carregados de
livro Folha corrida (Escrituras), humor e ironia, o que torna sua
uma seleção de seus poemas, leitura agradável e gratificante.
extraídos de sete livros: Gestos Um bom exemplo é o poema
lúcidos (1967), A ilha na ostra que serve de epígrafe ao livro,
CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
MARIA JÚLIA MOREIRA
CONSELHO EDITORIAL
I Os originais de livros submetidos à Cepe, exceto
aqueles que a Diretoria considera projetos da própria
Editora, são analisados pelo Conselho Editorial, que
delibera a partir dos seguintes critérios:
Com mais de 49 mil títulos, Historiadora investiga quais foram os editores artesanais Companhia Editora de Pernambuco
e-book ainda não decolou brasileiros, com presença de dois pernambucanos Presidência (originais para análise)
Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro
Os e-books continuam sem Editores Artesanais Brasileiros O Livro Inconsútil, criada em CEP 50100-140
decolar no Brasil. Segundo (Autêntica), da historiadora 1947. O segundo pernambucano
Recife - Pernambuco
pesquisa da Fundação Instituto Gisela Creni, mapeia o trabalho da lista é Gastão de Holanda,
de Pesquisas Econômicas, de quem que se dedicou a fazer com O Gráfico Amador, de 1954.
encomendada pela Câmara o livro de forma não industrial, Outros editores: Pedro Moacir
Brasileira do Livro e Sindicato ou seja, totalmente à mão, Maia, com a Dinamene, de 1950;
Nacional dos Editores de Livros, um a um. Obras de pequenas Geir Campos e Thiago de Mello,
em 2016 eles renderam R$ 42, tiragens, dedicadas a quem com sua Hipocampo, de 1951;
5 milhões contra R$ 3,8 bilhões gosta de livros e quer fruir a o barcelonês radicado no Rio
das cópias físicas. Em suma, obra também com o olfato, o de Janeiro Manuel Segalá, cuja
foram responsáveis por apenas tato e a visão – ou seja, o livro Philobiblion começou em 1957; e
1,1% do faturamento das editoras como objeto. O pioneiro é João Cleber Teixeira, com a Noa Noa,
nacionais, com 49,6 mil títulos. Cabral de Melo Neto com o selo que atuou de 1965 a 2013.
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017
CAPA
KARINA FREITAS
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017
“Vou contar-te
o meu cativeiro”
Maria Firmina dos Reis e Escrevo o que a vida me fala, o que capto de muitas vivências.
Escrevivências...
praticamente excluídas das representações oficiais,
uma vez que o escravismo representava o oposto da
a reedição de Úrsula no
Conceição Evaristo imagem civilizada e progressista que o país procurava
veicular. Assim, melhor seria deixar os escravizados
O século XIX representa um momento-chave na como sombra e silêncio, sendo esse silêncio uma
seu centenário de morte historiografia brasileira: foi nele que o Brasil se tornou
um país independente da metrópole, aboliu a escra-
ruidosa forma de memória.
Na contramão dos constantes silenciamentos, houve
vidão – ao menos na letra da lei – e transformou-se também uma significativa produção de narrativas
Leonardo Nascimento em República. Por trás de tantos eventos e reviravoltas dissonantes lutando por espaço no debate público. Foi
que tiveram palco nesse tumultuado século, é possível justamente em meio ao agitado contexto de disputas
reconhecermos um intenso processo de construção do da segunda metade do século XIX que emergiu a obra
que se convencionou chamar de “projeto nacional”. da escritora afrodescendente Maria Firmina dos Reis.
Se, como bem definiu Benedict Anderson, mode- Se entendermos a História como uma arena de
los de nacionalidade são modelos imaginários – que disputas pelo direito de significar, e reconhecermos
fazem largo uso de elementos como mapas, jornais, que essa mesma História é escrita (e inscrita) a partir
textos, imagens etc., visando à construção de uma de questões e olhares do tempo em que ela é vertida
comunidade que se reconhece entre si –, é preciso em discurso, poderemos então “retornar ao passado”
atentarmos ao fato de que muitos de nossos modelos com dúvidas e questões de “nosso tempo”, principal-
de “brasilidade” são oriundos de projetos autoritários mente quando temos em mãos outras narrativas que
e excludentes. Projetos nos quais, grande parte dos podem auxiliar na árdua tarefa de “escovar o passado
brasileiros e brasileiras jamais se reconheceria. Basta a contrapelo”. Desta forma, a memória histórica é
lembrar que, em 1838, poucos anos após a Indepen- reativada e, ao mesmo tempo, restabelecida.
dência, fundou-se no Rio de Janeiro, então capital Conhecer as obras e a trajetória intelectual de Maria
do país, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Firmina dos Reis é ponto mais que importante na
Com o intuito de criar uma história que fosse nacional fundamental tarefa de reinscrição da história social
e imperial para o então novíssimo país, em 1844 o da cultura brasileira.
Instituto deu lugar a um primeiro concurso, em que
os participantes deveriam discorrer sobre a seguin- FIRMINA EM VIDA E OBRA
te indagação: “Como se deve escrever a história do Maria Firmina do Reis nasceu em 11 de outubro de
Brasil?”. Como vem pontuando Lilia Schwarcz em 1825, na ilha de São Luís, capital da província do Mara-
alguns de seus trabalhos, poderíamos substituir o nhão. Nascida fora do casamento, Firmina não chegou
questionamento por outro um pouco mais apropriado: a conhecer o pai. Acredita-se que tenha nascido do
“Como se deve inventar uma história do e para o Brasil”. relacionamento entre uma portuguesa e um escravi-
O naturalista Carl von Martius foi o autor vencedor zado africano, embora não exista um consenso sobre
do concurso. Unindo-se a outros olhares exotizantes o tema entre os pesquisadores e as pesquisadoras
que fundamentaram um imaginário fetichista sobre de sua obra. Em 1830, com o falecimento da mãe, a
o país, o cientista alemão defendeu a ideia de que o menina passou a morar com a avó, em São José dos
Brasil poderia ser definido por sua mistura de raças. Guimarães, no município de Viamão (MA).
“Devia ser ponto capital para o historiador reflexivo Segundo Maria Lúcia de Barros Mott, em Submissão
mostrar como no desenvolvimento sucessivo do Brasil e resistência: a mulher na luta contra a escravidão, Firmina
se acham estabelecidas as condições para o aperfei- viveu alguns anos em casa de uma tia materna me-
çoamento das três raças humanas que nesse país são lhor situada economicamente. Para Eduardo de Assis
colocadas uma ao lado da outra, de uma maneira Duarte, importante estudioso da obra de Firmina, isto
desconhecida da história antiga, e que devem servir- talvez explique o acesso ao letramento e a aquisição
-se mutuamente de meio e fim” – escreveu o autor. A de um repertório literário com a presença de obras
imagem usada por von Martius para sustentar a tese foi do Romantismo brasileiro e francês, já que não há
a de um rio caudaloso, que corresponderia à herança condições de afirmar que a intelectual obteve uma
portuguesa presente entre nós. Esse mesmo rio deveria educação formal.
absorver “os pequenos confluentes das raças indina Em 1847, aos 22 anos, Firmina foi aprovada no
e etíope”. Estavam dadas aí as bases para um projeto concurso público para instrução primária na Vila de
de país mestiçado e racialmente harmônico, em que Guimarães, tornando-se a primeira mulher a con-
o grande e caudaloso rio formado pelas populações quistar o cargo na província. Em 1859, mesmo ano
brancas se uniria a um outro menor, o das populações em que Luiz Gama publicou suas Primeiras trovas bur-
indígenas, e a um outro ainda menor, composto pelos lescas, Firmina trouxe a público Úrsula, o primeiro ro-
negros e negras do país. Como se pode perceber, o mance abolicionista brasileiro de autoria feminina.
caráter harmônico defendido pelo autor não flertava No entanto, Firmina não gravou seu nome no livro,
com ideais de igualdade, mas antes reforçava as hie- assinando apenas como “uma maranhense” – fato
rarquias do projeto colonial. que dificultou posteriormente a atribuição da autoria
Desde os tempos coloniais, o Brasil era reconhecido e, provavelmente, contribuiu para o silêncio que en-
por sua “natureza sem igual”, uma espécie de Éden volveu a trajetória da obra.
tropical habitado por raças e grupos de origens varia- Para Eduardo de Assis Duarte, a autora foi “pres-
das, um paraíso mítico a ser explorado por viajantes, sionada, como todo afrodescendente que ocupa o
naturalistas e cientistas interessados nesse fascinante espaço público e rompe os muros da cidade letrada,
– mas também temido – laboratório natural e racial. a adotar a ‘compostura’ que o crítico Alfredo Bosi
Durante o Segundo Reinado, a construção da vê em certas atitudes de Machado de Assis”. No
imagem da Nação e do Estado também se apoiou prefácio, Firmina apresenta seu “mesquinho e hu-
na natureza exuberante do país e em seus naturais, milde livro” e se declara uma “mulher brasileira” de
com o Brasil sendo representado por indígenas devi- “educação acanhada”, como a pedir desculpas aos
damente estilizados. Já as populações negras foram homens letrados pelo atrevimento de publicar seu
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CAPA
KARINA FREITAS
do mascaramento
Editora PUC Minas publicaram a 4ª edição de Úrsula, embranquecido.” – escreve Rafael em seu artigo A
acrescida do conto A escrava, com atualização do texto dissonante representação pictórica de escritoras negras no Brasil:
após cotejo com o original e posfácio de Eduardo de o caso de Maria Firmina dos Reis.
de uma autora
Assis Duarte, e reeditaram a obra em 2009, quando
se completavam os 150 anos de publicação. ÚRSULA
Neste ano, que marca o centenário da morte da es- A narrativa de Úrsula se constrói a partir de um triân-
critora, a Editora PUC Minas lança a 6ª edição da obra.
Eduardo de Assis Duarte escreveu um novo posfácio,
atualizando o texto de 2004 e trazendo-o para dis-
que enfrentou o gulo amoroso formado pela jovem Úrsula, seu amado
Tancredo e por seu tio, o comendador Fernando P.,
apresentado como uma figura extremamente sádica.
cussões contemporâneas em torno da “razão negra”,
conceito trabalhado pelo filósofo Achille Mbembe, e da
“interseccionalidade entre gênero e etnia”. “Preparei
colonialismo Além de assassinar o pai e abandonar a mãe da prota-
gonista por anos entrevada em uma cama, Fernando é
um perfeito representante do senhor cruel que explora
também uma nova cronologia, bem mais ampla do que a mão de obra escravizada até o limite de suas forças.
a de 2004, situando Firmina no contexto ocidental de Se, no clássico Pele negra, máscaras brancas, Frantz Como uma autêntica romancista de sua época, Fir-
emergência das slaves narratives de fins do século XVIII Fanon falava sobre a violência do projeto colonial mina inicia a obra fazendo odes à paisagem local. “São
a meados do século XIX, quando se desenvolvem as que agia na subjetividade dos negros, fazendo-os vastos e belos os nossos campos; porque inundados
campanhas abolicionistas no Ocidente. E a pesquisa muitas vezes acreditarem em uma suposta inferiori- pelas torrentes do inverno semelham o oceano em
me revelou um fato importantíssimo: Firmina é a dade e buscarem “máscaras brancas”, o que vemos bonançosa calma — branco lençol de espuma, que
primeira autora de romance abolicionista em toda nesse caso é uma imposição literal de mascaramento não ergue marulhadas ondas, nem brame irado, ame-
a língua portuguesa!” (grifo do próprio Eduardo, em em uma autora que não aceitou ser subjugada pelo açando insano quebrar os limites, que lhe marcou a
conversa com o Pernambuco). projeto colonial e produziu uma obra de enfrenta- onipotente mão do rei da criação.”
mento a ele. No entanto, “em uma risonha manhã de agosto”
MÁSCARA BRANCA Segundo Rafael Balseiro Zin, um generoso inter- em que “as flores eram mais belas, em que a vida
É preciso pensarmos também nos motivos que le- locutor para a construção deste texto e autor de uma era mais sedutora”, um jovem se acidenta ao cair do
vam Firmina a ser representada como uma mulher dissertação de mestrado sobre a autora (Maria Firmina cavalo. Logo em seguida, outro jovem desponta ao
branca nas homenagens que vem recebendo nos dos Reis: a trajetória intelectual de uma escritora afrodescen- longe na paisagem: trata-se de Túlio, o único cativo
últimos anos. Segundo Nascimento Morais Filho, dente no Brasil oitocentista), o caso mais emblemático e da decadente propriedade da mãe de Úrsula, e que
“nenhum retrato deixou Maria Firmina dos Reis. recorrente é o uso da ilustração do busto da escritora acaba por salvar a vida de Tancredo.
Mas estão acordes os traços desse retrato falado dos gaúcha Maria Benedita Bormann, que assinava seus “ – Que ventura! – então disse ele, erguendo as
que a conheceram ao andar pela casa dos 85 anos: textos com o pseudônimo Délia. Branca e neta de um mãos ao céu – que ventura podê-lo salvar! (...) O
rosto arredondado, cabelo crespo, grisalho, fino, alemão, Maria Benedita, até onde se pode supor, era homem que assim falava era um pobre rapaz, que
curto, amarrado na altura da nuca; olhos castanho- bastante diferente de Maria Firmina. “O problema ao muito parecia contar vinte e cinco anos, e que na
-escuros; nariz curto e grosso; lábios finos; mãos e é que essa imagem, inadvertidamente, se espraiou franca expressão de sua fisionomia deixava adivi-
pés pequenos, meã (1,58 m, pouco mais ou menos), pelas redes sociais e em demais ambientes e acabou nhar toda a nobreza de um coração bem-formado.
morena”. Como bem sabemos, o termo morena é um ganhando a confiança do público, fazendo com que O sangue africano refervia-lhe nas veias; o mísero
dos muitos eufemismos empregados historicamente a reparação do equívoco seja um tanto difícil de ser ligava-se à odiosa cadeia da escravidão; e embalde
para designar pessoas afrodescendentes. realizada. A origem do mal-entendido não é certa. o sangue ardente que herdara de seus pais, e que
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CAPA
KARINA FREITAS
o nosso clima e a servidão não puderam resfriar, Além de reforçar a própria condição afrodescen-
embalde – dissemos – se revoltava; porque se lhe dente do texto, a entrada em cena da “velha africa-
erguia como barreira – o poder do forte contra o na” confere maior densidade ao sentido político da
fraco. Ele entanto resignava-se; e se uma lágrima obra. Seu território de origem é mencionado sem
desesperação lhe arrancava, escondia-a no fundo subterfúgios, sobressaindo a condição diaspórica
de sua miséria.” vivida pelas personagens arrancadas de suas terras e
Se na obra a escravidão é tida como “odiosa”, nem famílias para cumprir no exílio a prisão representada
por isso ela endurece a sensibilidade do jovem negro: pela escravidão. É preta Susana quem vai explicar
“E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão a Túlio o sentido da verdadeira liberdade, que não
não lhe embrutecera a alma; porque os sentimen- seria nunca a de um alforriado em um país racista e
tos generosos, que Deus lhe implantou no coração, escravocrata. Ela recorda sua terra natal, a infância,
permaneciam intactos, e puros como a sua alma. o amor de seu homem e a vida feliz que levavam
Era infeliz, mas era virtuoso; e por isso seu coração junto à filha, até o dia em que foi capturada pelos
enterneceu-se em presença da dolorosa cena que “bárbaros” mercadores de seres humanos. Essa voz
se lhe ofereceu à vista (a de Tancredo desmaiado)”. periférica traz para a literatura brasileira um discurso
É possível apontar aqui uma estratégia autoral de demarcado pelo traço ancestral, fortemente recalcado
denúncia e combate ao regime escravocrata sem, pela ideia do paraíso racial brasileiro. Ao apontar os
no entanto, agredir em demasia as convicções dos colonizadores como bárbaros, Susana subverte o
leitores da época. Ao menos nesse primeiro momen- discurso hegemônico e macula a imagem da Europa
to, Túlio pode ser entendido como uma vítima. Ao e de seu processo civilizador. Bárbaros!
contrário dos escravizados rebeldes e degenerados Úrsula traz ainda uma outra figura de escravizado:
presentes em obras do mesmo período, já que seu o que perde a autoestima e se entrega ao vício. Sur-
comportamento é pautado por valores cristãos. No ge a figura decrépita de Pai Antero, sujeito de bom
entanto, tampouco se tratava de condenar a escra- coração, mas dominado pelo alcoolismo. Saudoso
vidão unicamente porque um escravo específico dos costumes de seu país, Antero cumpre uma es-
possuía caráter elevado, mas de condená-la enquanto pécie de contraponto dramático ao caráter elevado
instituição. Em um contexto em que a própria Igreja de Túlio e expõe uma outra faceta da crueldade do
Católica respaldava o sistema escravista, essa conde- projeto colonial – crueldade tão bem trabalhada na
nação é operada partindo do discurso religioso que obra de Frantz Fanon.
afirmava serem todos irmãos.
Ao abrigar o ferido na casa de sua senhora, Túlio
propicia o encontro entre Tancredo e Úrsula, e tem
início a paixão que os leva a um breve momento de
Quantas
felicidade. Mais uma vez, sobressaem o zelo e a dig-
nidade de Túlio, que, como agradecimento, termina
ganhando a alforria, como um sinal de gratidão do
personagens da
homem branco. Um forte elo de amizade passa a
uni-los e o negro torna-se companhia inseparável literatura não
surgem como filhas
de Tancredo. Túlio é a figura do sujeito compassivo,
que respeita a senhora por não tê-lo maltratado e se
julga em dívida com aquele que o libertou.
de Susana? O corpo
Mais à frente, a nova condição de liberto de Túlio é
questionada pela preta Susana, comparando a “liber-
dade” do alforriado à vida que ela levava em sua terra.
É essencial perceber que, embora o plano principal das
ações seja supostamente centrado na história das três
personagens brancas do triângulo amoroso, o texto
da mulher negra
cresce expressivamente na medida em que emergem
os dramas e as histórias das personagens negras. Com
isso, Firmina confere um espaço privilegiado a elas,
narra e abre espaços
para que assumam a narração de suas próprias his- É justamente ao estabelecer essa diferença dis-
tórias, provocando um efeito disruptivo na estrutura cursiva que contrasta em profundidade com o aboli-
do romance e trazendo uma multivocalidade bastante cionismo hegemônico da literatura brasileira de seu
inovadora para época. tempo, que tratava em geral a escravidão como uma
Desse modo, a obra proporciona ao leitor a expe- “ideia fora do lugar” no projeto da modernidade,
riência de adentrar na temática abolicionista pela que Maria Firmina dos Reis constrói um outro lugar
perspectiva dos próprios escravizados, realizando uma para si: o da literatura afro-brasileira. Nesse sentido,
potente inversão dos valores dominantes da sociedade a autoria não se associa apenas à condição racial
escravista. Exatamente por isso é possível afirmar que, da autora, mas ao seu posicionamento político no
mais do que obra de interesse sociológico e historio- interior da obra. É importante frisar que a política
gráfico, Úrsula é um romance que oferece inúmeras em uma análise estética não deve ser procurada em VOZES-MULHERES
possibilidades para acuradas análises de críticos e seu conteúdo óbvio, e tampouco se configura em um Durante o processo de escrita deste texto, pensei
críticas da literatura. mecanismo de instrução de como olhar o mundo e inúmeras vezes em Conceição Evaristo e em seu
Preta Susana era “uma mulher escrava, e negra” transformá-lo. A literatura (e outras manifestações belíssimo poema Vozes-mulheres. Quem acompanha
como Túlio, uma mulher boa e compassiva “que lhe artísticas) não deve ser tomada como uma espécie de o trabalho de Conceição e conhece suas “escre-
serviu de mãe enquanto lhe sorriu” a “idade lison- guia para a ação política, e nem como instrumento vivências”, sabe que em sua obra quase nada é
jeira e feliz”. E Túlio estava diante de Susana “com de conscientização coletiva, mas, como ensina Ran- “verdade”, embora quase nada seja “mentira”. Nas
os braços cruzados sobre o peito. Em seu semblante cière, deve ser tomada como um desenho de novas escrevivências de Evaristo, existe uma memória
transparecia um quê de dor malreprimida”. É então configurações do visível, do dizível e do pensável e, histórica que pulsa, vinga e se vinga. Aqui o verbo
que se inicia um impactante diálogo entre ambos, por isso mesmo, uma paisagem nova do possível. vingar tem mesmo um duplo sentido, já que no
possivelmente o melhor e mais marcante momento A obra de Maria Firmina dos Reis é política por uso corriqueiro o termo ganha também sentido de
do romance. Túlio lhe anuncia que graças à generosa sua alta capacidade de devolver o dissenso e a rup- “realização” ou “sucesso”.
alma do mancebo Tancredo, tornou-se um homem tura, mesmo dentro do debate abolicionista. Assim, No poema, Conceição tece uma cronologia das
livre, “livre como o pássaro, como as águas; livre Firmina é uma autora profundamente política pelo mulheres de sua família, começando por sua bi-
como o éreis na vossa pátria”. As últimas palavras que opera dentro do próprio dispositivo, e não por savó, cuja voz ecoou “nos porões do navio”. Penso
do jovem despertam no coração da velha uma recor- seus usos – mesmo que seja fácil perceber na au- então na preta Susana e em seu relato do cativeiro,
dação extremamente dolorosa. Ela solta um gemido tora um forte desejo de transformação do mundo. que reproduzo mais abaixo. Conceição atravessa
magoado e curva a fronte para a terra, cobrindo os Análises que consideram a literatura apenas como também as experiências de sua avó e de sua mãe,
olhos com ambas as mãos enquanto chora. gatilho para que se encontre a política em outro lugar até chegar a si própria, reconhecendo que a sua voz
“A africana limpou o rosto com as mãos, e um desconsideram elementos estéticos e discursivos “ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue
momento depois exclamou: – Sim, para que estas próprios da linguagem. Firmina reconfigura marcos e fome”. Seu poema também nos conta que a voz
lágrimas? (...) Elas são inúteis, meu Deus; mas é um e opera novos rearranjos no modo como os corpos de sua filha “recolhe todas as nossas vozes (das
tributo de saudade, que não posso deixar de render a negros presentes aparecem e indicam possibili- ancestrais), recolhe em si as vozes mudas caladas
tudo quanto me foi caro! Liberdade! Liberdade... Ali dades de subversões e reinvenções dos modelos engasgadas nas gargantas”. A voz de sua filha “re-
eu a gozei na minha mocidade! – continuou Susana opressores aos quais estão submetidos. Através de colhe em si a fala e o ato”.
com amargura. – Túlio, meu filho, ninguém a gozou um reagenciamento dos signos, a autora rompe com Se as teóricas feministas têm insistido em es-
mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do a ordem natural que destina aos indivíduos negros critas feministas do corpo, atravessadas por uma
que eu (...) Tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! à subserviência, imputando-lhes maneiras de ser, perspectiva parcial capaz de oferecer uma nova
Oh, tudo, tudo até a própria liberdade!” ver ou dizer. visão objetiva, com saberes parciais, localizáveis
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e críticos, apoiados em redes de conexão – como que todo camburão tem algo de navio negreiro. Que filha, e liberdade! Meu Deus, o que se passou no fundo da minha
teoriza Donna Haraway –, sou levado a pensar na essa voz não se transforme em peso ou paralisia, alma, só vós o pudestes avaliar!
corporalidade do poema de Conceição Evaristo, mas que possa gerar falas que a recolham em si e Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infor-
prenhe de subjetividades, dores, intencionalidades produzam atos transformadores. Com a palavra e, túnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta
e até mesmo contaminado por fluídos corporais. portanto, com o corpo, Susana: dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais
Lamentos, obediência, revolta, perplexidade, san- necessário à vida passamos nessa sepultura, até que abordamos
gue, fome, vozes mudas caladas engasgadas nas Vou contar-te o meu cativeiro. às praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão
gargantas. A fala e o ato. fomos amarrados em pé, e, para que não houvesse receio de revolta,
Se Susana é como a bisavó do poema de Con- Tinha chegado o tempo da colheita, e o milho e o inhame e acorrentados como os animais ferozes das nossas matas, que se
ceição Evaristo, quantas personagens não surgem o amendoim eram em abundância nas nossas roças. Era um levam para recreio dos potentados da Europa: davam-nos a água
hoje na literatura brasileira que são como sua filha? destes dias em que a natureza parece entregar-se toda a brandos imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais
Poderíamos até mesmo pensar nas autoras que con- folgares, era uma manhã risonha, e bela, como o rosto de um porca; vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de
quistaram maior espaço nos últimos anos com uma infante, entretanto eu tinha um peso enorme no coração. Sim, ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas
escrita que parte de um “corpo-mulher-negra em eu estava triste, e não sabia a que atribuir minha tristeza. Era a tratem a seus semelhantes assim, e que não lhes doa a consciência
vivência”. Mas, concentrando-me aqui apenas nas primeira vez que me afligia tão incompreensível pesar. Minha de levá-los à sepultura asfixiados e famintos!
personagens criadas por elas, diria que a própria Con- filha sorria-se para mim, era ela gentilzinha, e em sua inocência Muitos não deixavam chegar esse último extremo — davam-
ceição construiu importantes delas em seu Insubmissas semelhava um anjo. Desgraçada de mim! Deixei-a nos braços -se a morte.
lágrimas de mulheres. Em comum, essas personagens de minha mãe, e fui-me à roça colher milho. Ah, nunca mais Nos dois últimos dias não houve mais alimento. Os mais
recolhem em si a fala e o ato. Exatamente por isso, devia eu vê-la. insofridos entraram a vozear. Grande Deus! Da escotilha lan-
não há como não ouvir o eco das vozes-mulheres Ainda não tinha vencido cem braças do caminho, quando çaram sobre nós água e breu fervendo, que escaldou-nos e veio
que vieram antes de todas elas. um assobio, que repercutiu nas matas, me veio orientar acerca dar a morte aos cabeças do motim.
Para que nunca nos esqueçamos quão perversas do perigo eminente que aí me aguardava. E logo dois homens A dor da perda da pátria, dos entes caros, da liberdade fora
foram as estruturas do edifício colonial e os horrores apareceram, e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira sufocada nessa viagem pelo horror constante de tamanhas
imputados pela escravidão, cujo rio caudoloso de — era uma escrava! Foi embalde que supliquei em nome de minha atrocidades.
sangue (herança dos bárbaros colonizadores) segue filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam-se Não sei ainda como resisti — é que Deus quis poupar-me
contaminando cada um de nós, termino este texto das minhas lágrimas, e olhavam- me sem compaixão. Julguei para provar a paciência de sua serva com novos tormentos
com a voz de preta Susana – que ecoa também da voz enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi possível... A sorte que aqui me aguardavam.
de cada uma das mulheres que tiveram seus filhos me reservava ainda longos combates. Quando me arrancaram (...) a dor que tenho no coração, só a morte poderá apagar!
assassinados pelo Estado brasileiro, pois é verdade daqueles lugares, onde tudo me ficava — pátria, esposo, mãe e Meu marido, minha filha, minha terra. Minha liberdade.
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ARTIGO
Sobre a dádiva
ARTE SOBRE REPRODUÇÃO DO FACEBOOK
que o poeta
colocando-a em palavras. Seres que, de tempos em
tempos, publicam e se dedicam a buscar leitores
para tudo aquilo que, no geral, as pessoas escon-
dem: suas fragilidades, suas paixões, suas derrotas,
seus amores e sonhos impossíveis. Tanto pelo que
nos devolve
dizem quanto pela forma como cuidam anos a
fio de pequenos livros como se fossem – e são –
imensos tesouros, poetas encantam pela espécie
de lição ética que vai contida, em muitos casos, na
dedicação à poesia.
Carlos Felipe Moisés e sua A partida recente e precoce de Carlos Felipe Moi-
sés (1942-2017) – ainda mais para quem, como eu,
justifica a contrapelo
constatação de uma falta muito especial. Carlos
Felipe vinha há décadas atuando exemplarmente
no campo minado da poesia e de suas “tarefas au-
xiliares” – a crítica, a teoria, a docência, a tradução,
Tarso de Melo a edição, os eventos, a correspondência etc. – e a
impressão de todos que acompanhavam sua produ-
ção era de que muito mais estava por vir, sempre,
dada a vitalidade das ideias e dos versos recentes.
Mais que isso: minha impressão particular era de
que, neste momento, com sete décadas de vida e
três quartos delas dedicados à poesia, Carlos Felipe
havia chegado a um ponto em que a escrita de po-
esia e a reflexão sobre ela se fundiram num outro
nível: deixando aquela mais leve e forte, deixando
esta mais precisa e clara.
É à luz desta afirmação que pretendo tratar aqui
de Dádiva devolvida: poemas escolhidos (Lumme Editor,
2016), antologia com pouco mais de 100 poemas
que Carlos Felipe organizou um ano antes de falecer,
sacando de todos os seus livros aqueles textos em
que “julga(va) ter acertado a mão”. A obra poética
de Carlos Felipe, antes da antologia, encontrava-se
nos seguintes livros: A poliflauta (1960), O signo e a
aparição (1961), A tarde e o tempo (1964), Carta de marear
(1966), Poemas reunidos (1974, que incluía o inédito
Urna diurna), Círculo imperfeito (1978), Subsolo (1989),
Lição de casa & poemas anteriores (1998, um livro novo
seguido da republicação quase integral de todos
os seus livros até então), Noite nula (2008) e Disjecta
membra (2014).
Quando organizou sua Antologia poética, em 1962,
Drummond afirmou ter olhado para os poemas
que havia produzido, em quatro décadas até então,
principalmente com a preocupação “de localizar, na
obra publicada, certas características, preocupações
e tendências que a condicionam ou definem, em
conjunto”. No intuito de fazer a “arrumação” de
seus poemas, Drummond separou os poemas por
eixos temáticos: o indivíduo, a terra natal, a família,
amigos, o choque social, o conhecimento amoroso,
a própria poesia, exercícios lúdicos e, por fim, “uma
visão, ou tentativa de, da existência”.
Em Dádiva devolvida, Carlos Felipe seguiu o caminho
de Drummond e olhou para sua obra em busca dos Como isso corresponde a uma das facetas do meu
temas recorrentes, separando os poemas em seções modo de ser, não vi mal algum em caminhar por
com os seguintes títulos: Natural, Humores, Rascu- aí, nos primeiros anos. Mas como o meu modo de
nho, Figuras, Animalia & Al, e Inventário. Ao fugir ser compreende outras facetas, a partir de certo
da ordenação cronológica e agrupar os poemas por momento comecei a me esforçar para que outras
tema, como afirmou Antonio Carlos Secchin, “todos formas de vibração, como o humor e a ironia, ti-
os poemas do autor, de certa maneira, se torna(ra) vessem ingresso nos poemas. Mas só consigo ir
m simultâneos”. Dessa forma de “arrumação”, mudando aos poucos. A passagem de uma fase a
portanto, resultou não apenas um livro novo, mas outra, para mim, precisa ser de dentro para fora: eu
também uma renovação do sentido dos poemas não conseguiria mudar radicalmente, para reco-
que conhecíamos em edições anteriores. meçar em outro diapasão. Ao longo das mudanças,
Neste sentido, percebe-se que, nessas antologias, algum lastro deve permanecer, ainda que reduzido
a releitura que o poeta faz de sua própria obra em ao mínimo essencial. Só espero que esse lastro não
busca dos temas que unem poemas escritos em desapareça antes de chegar ao mínimo” (publicada
momentos diferentes de suas vidas atua não só em parte no blog Jaguadarte, em janeiro de 2005 e,
como uma chave de interpretação, mas também na íntegra, como posfácio de Noite nula).
para criar laços novos entre as fases e facetas que Esse poeta que busca sua voz, a cada fase, “de
os livros vinham revelando até então. Em Carlos dentro para fora”, que afina as notas novas no diapa-
Felipe, cada fase nova, cada nova volta que sua voz são construído pacientemente por décadas, é aquele
dava, vinha sempre a partir das tensões que a fase que vai voltar para sua obra, visando à antologia,
anterior sugeria, como se o motor da criação fosse certamente com o ouvido atento para os momentos
a reflexão sobre si mesma. em que essa conversa consigo mesmo se deu de
Na grande entrevista que deu ao poeta Ricardo modo mais intenso, mais vivo.
Aleixo anos antes, Carlos Felipe se referia a isso: Na entrevista citada, Carlos Felipe já destaca-
“a dificuldade que tem sido contrariar minha pro- va, de sua obra até então, “Mário de Andrade em
pensão, que vem de longe, para o mais derramado, San Francisco” e “Mais um dia” como poemas que
para o sentimental. [...] Na fase inicial, em razão das “registram, com fidelidade, o meu sentimento das
influências recebidas na adolescência, eu achava coisas”. De certo modo, a voz desses poemas, ambos
que poesia só era compatível com austeridade. pertencentes a seu livro de 1989, Subsolo, parece
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luso-brasileiro e
entre a negação e a afirmação de si, entre a perda só afago, inofensivo,
de viver e o ganho de sonhar, entre o desencanto guardado no fogo
de tantos dias e o encanto de mais um dia, Subsolo brando em que me consumo
os beats, entre a
assume o oxímoro ou paradoxo da vida sob o signo há dez mil
do sempre recomeço, que é, de resto, o próprio signo novecentos e cinquenta dias. [...]
da poesia” (Folha de S.Paulo, 16/12/1989).
Mário de Andrade em San Francisco talvez seja o poema
mais emblemático do acerto de José Paulo Paes
quanto à obra de Carlos Felipe, por reunir num giro
paixão por SP e a Num dos aforismos sobre poesia incluídos em Disjecta
membra, Carlos Felipe anota: “Um tempo ou uma cul-
tura francamente favoráveis à poesia? Então a poesia
colossal as principais referências de sua formação
literária e existencial. A começar por Mario de An-
drade, poeta de sua predileção, que é levado para
vida no exterior já não será necessária, não fará falta alguma.” Essa
ideia de que a poesia somente se justifica a contrapelo,
em atrito com seu tempo e com a cultura em que se
uma jornada em que encontra Allen Ginsberg, Le- poesia, mas igualmente forjado pelas flexões da insere, talvez ajude a entender suas escolhas e, de
adbelly e Sosígenes Costa. E Ginsberg aparece não contracultura na poesia brasileira dos anos 1960, alguma maneira, a atravessar a formidável coleção de
apenas nominalmente, mas também na própria vai a San Francisco em busca de uma São Paulo “na poemas de Dádiva devolvida. E não se deve concluir daí
forma como a imaginação do poema se espraia. voz de Mário, teu poeta”, fazendo fundir, nos versos que a poesia se rende, inútil, ou se compraz em viver
Dedicado a Roberto Piva e Claudio Willer, desde aí livres, a geografia da cidade norte-americana à da em ambiente desfavorável. Pelo contrário, justamente
já se colocam alguns indícios do desafio que Carlos capital paulista. porque a vida segue soterrada sob os milhares de dias,
Felipe enfrenta no poema: um leitor dos mais de- O resultado desse “sono em delírio” é um poema que são apenas “mais um”, é que a poesia deve existir,
dicados de Mário de Andrade, que o tem também cosmopolita como, de fato, era a figura de Carlos Felipe insistir, persistir. Carlos Felipe, como poucos, soube
como grande influência nas fases iniciais de sua (que viveu nos EUA e na Europa durante diversos mostrar como se faz.
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017
TRADUÇÃO
Cosmopolitismo
CREATIVE COMMONS
e as questões
que o cercam
Trecho da introdução de
Cosmopolitanism, recém-
lançado pela NYU Press
Texto: Bruce Robbins e Paulo Lemos Horta
Tradução: Maria Carolina Morais
De onde você é? A palavra “cosmopolita” foi usada As definições recentes podem tender mais aos
pela primeira vez como uma forma de escapar exa- impulsos positivo ou negativo, mas em geral são
tamente dessa pergunta, cujas entrelinhas podem consensuais em algum nível de síntese: o cosmo-
ser confrontadoras e até perigosas. Quando Dióge- politismo seria um comprometimento com o bem
nes, o Cínico, se autointitulou um “kosmo-polites”, dos seres humanos como um todo, que supera
ou cidadão do mundo, estava optando por não todos os laços menores e cria uma indiferença
dizer que ele era de Sinope, distante colônia grega permanente em relação aos valores da localidade.
no Mar Negro, da qual fora banido sob alegação de Em vez de normativo, esse “novo cosmopolitismo”
fraude das moedas locais, como o autor da pergunta é plural e descritivo. Assim, ele descreve um dos
talvez soubesse. muitos modos possíveis de vida, pensamento, e
O entendimento singular, normativo e mais an- sensibilidade produzidos quando os compromissos
tigo do termo tende a gerar uma história relativa- e lealdades são múltiplos e sobrepostos, e nenhum
mente esquemática e linear: origens humildes nos deles necessariamente prevalece sobre os outros.
antigos Cinismo e Estoicismo, quando o mundo não Tal cosmopolitismo é muitas vezes atrelado ao
era tão fortemente entrelaçado à realidade quanto aparecimento da ética kantiana, que rejeita a sim-
estava começando a ser ao pensamento; o amadu- ples obediência à doutrina e envia a imaginação
recimento moderno no humanismo do Renasci- moral em uma longa, exaustiva, e, talvez, inter-
mento e do Iluminismo; uma interrupção no século minável jornada em direção a outros invisíveis.
XIX, quando o nacionalismo imperial tornou-se Ao menos para seus adeptos, a conquista determi-
predominante; depois, o pleno florescimento nos nante do cosmopolitismo empático em sua forma
séculos XX e XXI, quando a real interconexão dos iluminista-humanitária é a abolição do tráfico de
povos do mundo traz consigo, pela primeira vez, escravos, no século XIX.
a possibilidade de o ideal tornar-se realidade em Essa paulatina transição do cosmopolitismo no
algum tipo de comunidade mundial. singular para “cosmopolitismos” no plural, significa
No entanto, vale ressaltar que, desde seu mo- que sociólogos, críticos culturais, e historiadores
mento fundador, o cosmopolitismo já era plural. podem reivindicar a posse de um conceito que
Qualquer versão dada demonstraria uma mistura parecera pertencer em grande medida a filósofos e
nítida entre dois impulsos, negativo e positivo. O teóricos da política. E, acima de tudo, isso significa
impulso negativo afirma a indiferença em relação que, em vez de ser a prerrogativa de algumas figu-
ao lugar de origem ou residência de alguém, uma ras históricas como Diógenes, o cosmopolitismo
rejeição da jurisdição das autoridades locais, um passou a ser visto como característica e domínio de
excluir-se de convenções, preconceitos, obriga- numerosas coletividades sociais, que em geral não
ções. O impulso positivo afirma a participação de pertencem às elites e sobre as quais o cosmopoli-
alguma coletividade maior, mais envolvente ou tismo foi impingido por meio de histórias traumá-
poderosa. Talvez, inevitavelmente, o cosmopoli- ticas de deslocamento e desapropriação. Tornou-se
tismo tenha sido, ou pelo menos aparentado ser, possível falar, na ressonante expressão de Silviano
um distintivo de privilégio. Santiago, do “cosmopolitismo do pobre”.
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017
ser cosmopolita ao
século XXI, diz respeito a quanto do velho sentido dos Grandes Poderes, e, de tal modo, que passou a
normativo do conceito é preservado ou transfor- sugerir uma desculpa para as antiquadas interven-
mado por essas particularidades empíricas. O que ções militares, agora disfarçadas nas vestes de um
se tornar refugiado,
exatamente as torna interessantes, ou importantes? desinteresse humanitário. No livro Cosmopolitanism
Sociólogos e etnógrafos, atraídos pelo conceito em and the geograpgies of freedom (2009, p. 84), David
sua nova aparência plural, geralmente continuam Harvey expressa sua preocupação com a possibili-
a usá-lo como um termo elogioso, reivindicando
para seus sujeitos diversos, híbridos e diaspóricos,
algo como a honra que o conceito singular, norma-
o que há para se dade de o cosmopolitismo tornar-se “uma máscara
ética para práticas neoliberais hegemônicas de
dominação de classe e imperialismo financeiro e
tivo e filosófico deveria lhes conceder. Contudo,
no novo contexto, essa honra já não está acima de
qualquer suspeita. À medida que é pluralizado e
comemorar? militar”. No entanto, Harvey continua a falar em
nome de um cosmopolitismo melhor, um que
escolha rejeitar tal beligerância bem-intencionada,
democratizado, tornando-se uma parte maior do tismos no plural podem exigir histórias plurais, e considerando-a uma distorção.
status quo, o cosmopolitismo não pode mais servir que o cenário dessas histórias nem sempre será a Será que isso significa que o conceito de cos-
tão confortavelmente como critério de julgamento Europa. Surge, portanto, a pergunta: será mesmo mopolitismo não se sustenta como ideia única?
desse mesmo status quo. Se alguém passa a ser um concebível uma história única do cosmopolitismo Não necessariamente. Também é discutível que
cosmopolita ao se tornar refugiado ou migrante que permaneça responsável por tanta diversidade? o cosmopolitismo propriamente dito seja a ideia
econômico, o que há para se comemorar nisso? Se Na verdade, nunca houve um cosmopolitismo que abre espaço para essas concepções variadas e
o status quo é nacionalista, então, os cosmopolitas que não contivesse um colonialismo à espreita nas sobrepostas, forçado pelo imperativo da inclusivi-
podem ser nacionalistas também. Nesse caso, ainda redondezas. Sinope era uma colônia, e ela gerou dade a mudar suas próprias regras. Em vez disso,
estaríamos falando da mesma ideia? suas próprias colônias. Vários séculos depois, o podemos falar de cosmopolitismos imperfeitos
Uma análise mais severa e, talvez, mais dialé- Cinismo de Diógenes era uma influência para os e insistir que, mesmo enquanto buscamos des-
tica, teria de reconhecer que, juntamente com a estoicos, que popularizaram o cosmopolitismo crever suas formas e espaços de fato existentes,
natureza, a razão, o secularismo, e a humanidade, sobremaneira durante o Império Romano e o tor- o cosmopolitismo continua a ser uma corajosa
a lista de autoridades que promoveram o cosmo- naram a filosofia explícita de um de seus impe- aspiração para nós.
politismo também inclui o colonialismo, Deus, o radores, Marco Aurélio. Para Hegel, o Estoicismo
livre mercado, e experiências coletivas de lealdade era a filosofia exemplar da escravidão: ensinava às A obra, organizada pelos autores deste texto e publicada
dividida que podem não ser favoráveis à distância pessoas a se sentirem livres em suas mentes sem pela New York University Press, traz artigos de diversos
crítica. Ela teria de reconhecer que os cosmopoli- obrigá-las a emancipar seus corpos. pesquisadores sobre o tema exposto.
HUMOR, AVENTURA E HISTÓRIA EM
LIVROS PARA ADULTOS E CRIANÇAS
José
CASTELLO ARTE SOBRE IMAGENS DE DIVULGAÇÃO
Viagem ao presente
O leitor S. M. me escreve para reclamar da Sem ter para onde ir, pede abrigo em um miragem de Harmada. Como já sabem os
tristeza que expresso em minha coluna deste asilo para mendigos. Lá passará vários anos leitores do romance, depois há uma fuga, e
Pernambuco no mês passado. “A vida já está de sua vida, tentando recuperar os restos do por fim a chegada à capital onde ele se torna,
difícil. O senhor escreve para me afundar passado de ator, representando como pode até mesmo, um diretor teatral de sucesso.
ainda mais?”, ele se queixa. Tratei de reler o para os tristes hóspedes que o acompanham. Nada disso resolve: novos ideais precisam
que escrevi. Não posso negar: em A prostração de Em meio ao desalento, aos poucos, um ser tramados para que, mesmo em Harmada,
Kafka, despejo boa parte do desalento que a lei- ideal se forma em sua mente: chegar a o presente se torne suportável. De repente,
tura dos diários do escritor checo provoca em Harmada, a capital. Não consegue imagi- ele se vê sozinho de novo. “E não havia mais
mim. Tampouco pretendo esconder a imensa nar muito bem o que faria ao chegar a seu ninguém por perto, eu acabara só, no meio
desilusão que sinto com os rumos nefastos destino, mas é isso: precisa de um destino, da intempérie”. Posso dizer de outra forma:
tomados pelo país desde a derrubada da pre- um norte, para seguir em frente e suportar acaba sozinho em meio a seu sonho.
sidente Dilma Rousseff. Não nego nada disso, o presente. Harmada é esse norte. Não se Ao amigo Bruce, que o segue pelas ruas
mas não posso aceitar tudo o que o atento S. trata, portanto, de uma utopia, do sonho de de Harmada – que o persegue na busca de
M. me diz. Por exemplo: “O senhor parece um estado ideal, ou uma chegada ao Paraíso. seu ideal -, ele diz: “Você resolveu me seguir
não acreditar mais em nada. Se não acredita Não idealiza Harmada, não a vê como uma para ver aonde é que eu ia, e acabou desco-
mais em nada, por que ainda escreve?” – ele salvação, só quer mirá-la. Sabe que tudo o brindo que eu não ia a lugar nenhum”. Será
me pergunta, sem disfarçar o rancor. que tem é o presente. “Eu já não poderia esse o fracasso da esperança? Ou apenas a
Não é isso, não é bem assim. Constato a viver sem o apoio daqueles velhos, pelo me- constatação de que, de esperança em espe-
imensa tristeza de Kafka, mas nem por isso, nos sem aquilo que me vinha deles, aquilo rança, é preciso tramar sempre um destino?
ou melhor, por isso mesmo, ele nos legou que estava a vir agora, ali, aquilo que eu não Não é que o presente mude magicamente
uma obra ímpar. Também não é porque es- saberia que nome dar.” – e é talvez aqui que meu leitor S. M. se
tou desanimado com a realidade atual que Longe de se oferecer como uma solução, equivoque. Não é que mude: não muda, e
perdi a esperança. Mas, como fazer meu ou uma promessa de felicidade, o ideal tem é isso que o personagem de Noll descobre
leitor entender? Como levá-lo a ver que, se uma função anterior e mais importante: ele em sua viagem. Isso não quer dizer que ele
expressamos um desânimo, isso não quer ajuda a sustentar o presente que, no fim não precise do ideal para se mexer, para
dizer que desistimos da vida? Talvez seja das contas, é onde sempre estamos. Mais sobreviver, para saber onde está. Para sus-
bem o contrário: para acreditar é preciso de- jovem hóspede do asilo, o protagonista de tentar seu papel de homem e representar a
limitar. Para vislumbrar um futuro, é preciso, Noll ajuda a salvar seus companheiros no si mesmo. Aos poucos, de fato, ele se sente
primeiro, não escamotear os amargores do presente também: contando e interpretando em um palco de teatro. A vida não passa de
presente. Fiquei pensando numa maneira de histórias que preenchem o seu vazio. Eles uma “armação”, mas ela só se sustenta se
explicar isso a S. M. até que decidi reler Har- se deixam levar, “envolvidos com aqueles conseguimos olhar para frente.
mada, um dos grandes livros de João Gilberto mesmos interesses que as minhas histórias No apartamento que resolve alugar – que
Noll, de 1993. Ao abri-lo, encontrei uma pareciam escavar, germinando-os uns aos dá para a horta de um convento de freiras
anotação antiga, que fiz durante a primeira outros, e retirando-os assim das rondas pelas –, de repente, acha que vê um menino. Um
leitura, ainda nos anos 1990. Digo assim: ruas, como solitários, avulsos, mendigos”. garoto mudo. “Quem é esse menino? (...) O
“Um livro sobre a fragilidade dos fatos. Mas As histórias que conta ainda não são Har- que farei com ele?” O menino talvez seja o
também sobre como essa fragilidade abre mada; o asilo ainda não é Harmada; mas, futuro, que, no entanto, só existe no presente
uma chance para a esperança”. Eis aí, talvez, potencializados pelo ideal, eles conferem também. “Não havia mais o canto na capela.
o que preciso dizer a meu leitor. um sentido ao real. Não havia mais a horta. Nem a noite. Não
O protagonista de Harmada vive em um Para isso – e aqui volto às reclamações de havia quase nada.” Enfim, já na penúltima
mundo destroçado. Desde as primeiras pá- meu leitor S. M. – é preciso partir do mui- página do livro, ele se dá um nome: Pedro
ginas do romance, ele se pergunta se habita to pouco e, sobretudo, dos dias miseráveis Harmada. Ainda detido em seu tempo, sem
mesmo uma realidade construída por fatos, em que vivemos. É preciso não negar esse negar o vazio que o cerca, ele agora incorpora
ou se tudo não passa “de um breve colapso presente. Foi só porque escavou fundo a a esperança. Talvez tenha sido isso o que
entre a aparência e o íntimo das coisas”. própria tristeza, só porque não abdicou dela S. M., meu leitor, não compreendeu: que
Vagueia pela vida, em estado de tontura. Em e até a aprofundou, que Kafka nos deixou ao falar da tristeza e da ruína, ao suportar
seu caminho, cruza ora com velhos conhe- seus extraordinários relatos. É só porque se (imitando Kafka) o presente intolerável, é
cidos, ora com estranhos, mas não importa: atém à própria miséria, só porque se asila e, um lugar para o futuro e para esperança
“Eu não precisaria mais do que um pálido assim, aceita seus limites deploráveis, que que tento traçar. Tudo muito precário, tudo
convite para segui-los como um pobre cão”. o personagem de Noll chega a sustentar a insuficiente, mas ainda assim vivo.
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017
INÉDITOS
Aglaja Veteranyi
Nota e traduções de Fabiana Macchi
o surgimento de
existem na vida uns dos outros como função, às internato na Suíça, onde adquire a sua “língua-ma-
vezes como mágoa, sem encontros reais. A família drasta”, o alemão. Mais tarde, em Zurique, forma-se
aparece destruída, dilacerada. Cada ser permane- em teatro, trabalha como atriz, diretora e professora
ce um solitário, com sua desorientação e dores,
invisível para os outros e para a sociedade. Mas
ainda assim há alguma devoção e delicadeza nas
uma literatura de artes dramáticas. Escreve peças e, durante 11anos,
dirige uma importante escola de teatro na Suíça. Muito
ativa no meio cultural, ela funda em 1993 um grupo
relações, embora a melancolia, por vezes quase
uma morbidez, esteja sempre presente. É como se
a solidão fosse tão grande, que tornasse necessário
“intercultural” de literatura experimental chamado Die Wortpumpe
(em português: “A Bomba de Palavras”. Não o artefato
explosivo, mas daquelas bombas de ar ou de água)
inventar um objeto de amor e dedicação. E nesse no próprio desamparo que esses personagens vivem e, em 1996, o grupo de teatro Die Engelmaschine (A
esforço por afeto, por uma vida normal – levar as e nutrem alguma esperança. Máquina de Anjos).
compotas e as roupas da estação que termina para A linguagem é simples, as frases são curtas. Ela Em 1999, lança o seu primeiro romance (Warum
o porão, preparar uma canja, cantar para o filho usa expressões idiomáticas levemente alteradas. das kind in der polenta kocht, - Por que a criança cozinha na
dormir e olhar a lua – reside a humanidade e a A concisão da linguagem é como se fosse um in- polenta, São Paulo: DBA, 2004) e único livro que ela
beleza desses cenários. ventário do que resta na vida dessas pessoas. Para lançaria em vida. Esse livro recebeu vários prêmios
Um certo tom de fábula aparece através da sinta- a escassez de possibilidades, para a esterilidade do literários na Suíça e na Alemanha, transformando-se
xe e do uso de imagens, como meninas que enve- mundo, resta um mundo interior, resta um certo em sucesso de público e de crítica. Sua linguagem,
lhecem e fatos que aconteceram em tempos muito humor que o absurdo pode causar. Uma linguagem aparentemente lúdica e ingênua, contrasta com um
remotos. Há sonhos que não se realizam, mas há quase infantil, mas densa, sem permitir que o leitor olhar rigoroso, que procura revelar o absurdo e as
sonhos. E, no meio da desesperança, há um tom se distancie. E quase sempre dói. Mas há uma lua contradições do cotidiano. Aglaja citava Beckett e
de esperança nas pequenas janelas – varandas – de que aguarda e dança. E ela dança para nós. Ionesco como autores que a inspiraram. E, pesso-
onde se vê a lua e onde ela cria uma poeticidade almente, ela me disse ter sido influenciada e enco-
triste, mas bela. Aglaja não se utiliza desses perso- VIDA rajada também por Herta Müller.
nagens, não se distancia deles. E essa empatia, esse Aglaja Veteranyi, nascida em Bucareste, na Romênia O romance foi adaptado por ela própria para o teatro
afeto da autora acompanham e conduzem o leitor em 1962, tornou-se nos anos 1990 um dos expoentes e traduzido para várias línguas. No Brasil, a versão
através dessa poesia um tanto estranha, declara- de uma literatura jovem e irreverente de língua alemã portuguesa também recebeu adaptação e montagem
damente influenciada pela literatura do absurdo. e teve seus prosa-poemas largamente publicados em para o teatro, pela Companhia Mungunzá de Teatro,
Embora a casa e partes dela sempre apareçam nos antologias e revistas literárias. Como muitos autores da de São Paulo, e a peça recebeu vários prêmios. Um
poemas, não há um lugar para a existência dessas chamada literatura intercultural, Aglaja teve uma bio- segundo romance e uma reunião de seus poemas
pessoas. E quase não há aconchego. Os personagens grafia bastante incomum: ela nasceu em uma família estavam prontos, quando Aglaja, em meio a uma
transitam por lugares inóspitos, constituídos de ele- de artistas de circo. Seu pai era o palhaço Tandarica crise emocional – provavelmente causada por um
mentos básicos, em que há sempre algo provisório, – que sonhava ser diretor de cinema e fazia filmes nas sério problema de saúde – decidiu por fim à própria
uma mala ou algo a ser salvo. É na própria fantasia e horas vagas. Sua mãe era a “mulher dos cabelos de vida, em 3 de fevereiro de 2002, aos 39 anos de idade.
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017
INÉDITOS A Canção
1
Ele canta. Sua canção é de mel.
Você mora aqui, diz a mulher.
E você é minha mulher, diz o homem. Minha mulher.
Minha mulher.
No jardim cresce a árvore
Da árvore crescem maçãs.
Crescem peras.
Crescem cerejas.
Estamos na estação certa, diz a mulher.
Agora vou levar os vestidos para o porão. Agora vou levar o vidro de compota
para o porão. Agora vou levar o verão para o porão.
A escada para o porão tem 10 anos de comprimento. No caminho, a mulher
precisa cortar as unhas. Seu cabelo caído, ela põe em uma caixa debaixo da
escada. Do seu cabelo, ela vai fazer um travesseiro para ele. Um travesseiro
de inverno. Que continua a crescer.
2
Meu cabelo é longo, diz a mulher. Eu o penteei.
Dei-lhe gema de ovo. O cabelo comeu o ovo.
Agora trago a neve, diz a mulher.
Ela chama o homem. Ela o chama com uma voz longa.
O homem põe o gato de 40 anos na mala. Ele pega pão e salsicha. Uma
garrafa de vinho. A camisa recém-lavada e o terno de domingo.
O homem espera até que a sombra das árvores tenha ido embora.
3
O pé direito do homem vai devagar.
A cada par de passos ele deposita a mala no chão e se reergue
No olho do homem cai um corvo.
A mulher canta.
Na canção há uma paisagem. Branca.
Aglaja Veteranyi
Nota e traduções de Fabiana Macchi
Stursa Bulandra
Na verdade, ela ainda vive e sofre de obsessão. Dia desses, mandou
trancafiar seus admiradores num armário e afogá-los no poço.
A atriz Stursa Bulandra tinha tão pouco talento, que, durante as suas cenas,
até as cadeiras do teatro adormeciam. Suas pernas criaram varizes, e aí ela
se matou.
O poema A casa faz parte Verdade verdadeira é só que ela se chamava Stursa Bulandra e que não tinha
do livro Por que a criança nenhum talento e que preferia papéis trágicos, de saias longas, por causa das
cozinha na polenta (São varizes.
Paulo: DBA, 2004). Os
poemas Stursa Bulandra e E quando ficou velha, bem velha, fingia-se de jovem e parecia uma menina.
Rosmarie foram publicados No asilo, ficava sentada o dia inteiro em frente a um pequeno espelho,
na finada revista Inimigo penteando-se. Duas vezes ao dia, davam-lhe um comprimido. E, certo dia,
Rumor (nº17, 2005). Os ela simplesmente parou de se pentear.
demais são inéditos E ainda viveu por muito tempo.
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017
A Varanda Rosmarie
A menina envelheceu, cresce-lhe um caixão Meu tio A Viagem tem uma mala cheia de vozes. E uma mulher e um cão.
no ventre. E o cão se chama Rosmarie. E a tia tem outro nome. E o tio se chama A
Os seios caem sobre a mesa. Viagem, embora nunca tenha estado no exterior. Ele passa diariamente 8
Os amantes já estão mortos há tanto tempo, que todos se chamam Robert. horas em seu quarto; ninguém sabe o que ele faz lá dentro. Quando alguém
Antes de dormir a menina dirige-se à varanda. lhe pergunta, ele diz: eu me imagino sentado no quarto. À noite, ele vai ao
Lá aguarda a sombra. Lá aguarda a lua. restaurante italiano da esquina e come lesmas com limão.
A lua brota. Mas lesma nem é comida italiana, diz a sua mulher.
Brotar é uma canção. E o tio diz: e daí?
As gotas de pétalas da lua caem sobre os pés da menina. Após a grapa ele retorna e vê o dia na televisão.
A lua dança, diz a menina. Ela dança para nós. Depois anda pela casa e faz uma cara.
Até hoje ninguém viu a mala cheia de vozes. E o tio conta cada vez uma
história diferente: quando estou no quarto e me imagino sentado no quarto,
tiro uma voz de dentro da mala e mando-a calar-se. As vozes na mala são
como macacos, mal saem e já sobem pelas cortinas ou arrastam-se sob o
tapete ou entram pelas pernas das minhas calças.
Mãe Então a tia vai para a cozinha e bebe vinho branco. O copo metade vazio ela
sempre recoloca no armário. Frequentemente retorna à cozinha, e todas as
Uma vez uma mãe. Disse para o braço: Filho. vezes ouve-se ela abrir e fechar a porta do armário. À noite, os seus olhos
Cortou o próprio braço. estão boiando em vinho branco. E enquanto o tio A Viagem escuta o silêncio
Foi à cozinha e preparou para o braço canja da sua mala de vozes, escuta-se a tia soluçando no banheiro.
de galinha. Dizia: Filhinho. Come tudo! A mamãe fez No dia seguinte, o tio conta que, no sonho, ele morava em um refrigerador.
muita sopa. Isso! Isso! E a tia diz nada em voz alta.
Depois da comida ela pôs o braço na cama. Cobriu- E às vezes ela se enfia na cama em pleno dia.
o. Cantou o braço até o sono. E o tio sai para a rua em plena noite.
E a tia vai à igreja e acende uma vela.
E o tio conta ao vizinho que tem negócios no exterior, que se tornou criador
de minhocas.
1 Cartão-postal E a tia sorri.
E o tio pendura uma tabuleta na porta:
A filha HOJE FECHADO
come as velas de aniversário E o pior desta história é que ninguém se importa com o cãozinho Rosmarie.
não
A mãe
Você é como seu pai!
A Casa
O pai
fica 20 anos fora Um estrangeiro nato perdeu os seus sapatos. Ele os tinha esquecido em sua
envia depois de 20 anos casa e jogado a casa em um rio. Ou será que a própria casa tinha se jogado
1 cartão postal no rio?
telefona depois de 20 anos
1 vez O estrangeiro nato foi de rio em rio.
canta para a filha depois de 20 anos
1 canção infantil Certa vez ele encontrou um velho debaixo d’água com uma tabuleta
pendurada no pescoço: AQUI CÉU.
A filha O estrangeiro perguntou: Como assim, céu?
envia para a mulher do pai O velho encolheu os ombros e apontou para a tabuleta.
1 a 2 saudações
A casa voltou a aparecer, mas em um lugar completamente diferente.
Depois de 20 anos E, provavelmente, era outra casa, pois ela não se recordava mais dos sapatos
o pai volta do estrangeiro.
e morre
1 vez Mais tarde, a casa perdeu sua porta.
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017
RESENHAS
JANIO SANTOS
ou “inventados”, mas
sempre ficcionalizados
– o papel de um
observador distanciado
dos acontecimentos. Em
O conto fracassado, o uso da
terceira pessoa produz,
concomitantemente,
a sensação de
distanciamento e de
cumplicidade, como
se Sant’Anna-escritor
instruísse diretamente
o contista-personagem.
“Durante a escrita do
conto fracassado, a
tentativa do contista de
sair de si, de seu universo
tão intimista, para tornar-
se outro, mais duro, que
em vez de mergulhar na
subjetividade, retirasse
das palavras ação.”
Nesse universo
de duplicações,
Talk show e Uma peça
sem nome exploram,
respectivamente, a
linguagem televisiva e
teatral, destacando o
artifício, a encenação
como única forma de
aproximação com o outro.
São textos que trazem o
humor insólito do autor,
diálogos e situações
que beiram o kitsch, em
uma aproximação exata
com o sensacionalismo
e os clichês.
Talk show, em especial,
é uma narrativa
brechas para o
de Sérgio Sant’Anna. esfaqueada remete a essa que aborda o feminino. proporções maiores que
Em um apartamento em irresolução da condição Mulher e criadora assim sua obra. Uma história
Copacabana, Francisco da escrita de Sant´Anna. se reduplicam diante que ri de si mesma, ri
contraditório
observa a pintura, em É nessa ferida, nesse do olhar do homem; do status conferido ao
tamanho real, de uma espaço intersticial “mulher dupla”, como a escritor de literatura,
mulher nua retratada entre representação qualifica o narrador. ganhador de prêmios
frontalmente. “Seu seio e consciência crítica O espelho diante do prestigiosos, mas que
Em novo livro, Sérgio Sant’Anna direito é magnífico e o
esquerdo também, mas
da representação, que
se instala a escrita de
espelho, a reduplicação
contínua torna o espaço
é obrigado a cumprir o
ritual de exposição na
reflete questões da arte e “joga” com uma perfuração
sob ele, que se espraia,
Sérgio Sant’Anna.
Não por acaso, artistas
narrativo fechado,
autônomo, enquanto
mídia sendo entrevistado
por uma apresentadora
com outros volumes de sua obra como se alguém houvesse como Andy Warhol coloca o leitor para fora
da narrativa ao sinalizar
também ganhadora
de um Jabuti pela
revolvido aquela ferida.” ou Balthus rondam os
Augusta, a pintura, romances e contos do a existência concreta de sua autobiografia. No
Giovanna Dealtry
fora apunhalada pelo autor. Seja como em Cristina Salgado. Ou, entanto, não seria Sérgio
próprio criador, Carlos As meninas de Balthus (do ainda, possibilita ao leitor Sant’Anna, se o riso
Rodrigues, um “realista livro O voo da madrugada) acostumado às teias de fosse mero reflexo cínico.
anacrônico”, segundo ou em Um conto límpido Sérgio Sant’Anna voltar Pelo contrário, interessa
a crítica especializada. e obscuro (Anjo noturno) à estante em busca de ao autor encontrar as
Carlos, à época que como tema central da A mulher nua, conto do brechas para o humano,
partilhamos a admiração narrativa, seja como no livro O voo da madrugada, e para o contraditório,
de Francisco por Augusta, romance Crime delicado, agora, lê-lo à luz da nova para a ferida revolvida
já está morto. Lançou-se trazendo à cena questões publicação, como em um sob a tinta.
da janela do apartamento de ordem teórica, jogo de peças móveis.
na Avenida Atlântica. como a diluição das A investigação sobre a
Na imagem do corpo/ fronteiras entre espaço dobradiça representação
pintura apunhalado/a, estético, cênico e espaço real estende-se também
na ferida de tela e tinta privado, biográfico. pelas narrativas de teor
revolvida, permanece a A artista plástica memorialístico. Mãe, A
pergunta: é possível rasgar brasileira Cristina rua e a casa, Amigos, O conto
o véu da representação e Salgado, cuja obra já fracassado recuperam a
assim atingir a carne? As havia sido objeto de infância e início da vida
narrativas de Anjo noturno, uma narrativa de tons madura de Sant’Anna,
assim como grande ensaísticos em O voo da ao explorar não apenas
parte da obra de Sérgio madrugada, reaparece em os registros familiares
Sant’Anna, jogam com os Um conto límpido e obscuro. e a subjetividade do
regimes significativos da Desta vez, personagem e escritor-personagem,
linguagem, problema que artista se intercambiam; mas também
as artes plásticas, menos a personagem não reconstruindo, em CONTOS
os “realistas anacrônicos”, nomeada aparece como detalhes, o cotidiano do
parecem ter resolvido. Se autora das peças – reais Rio dos anos 1950 ou as Anjo noturno
a própria palavra é signo – de Cristina Salgado. Por vésperas do golpe militar Autor - Sérgio Sant’Anna
que remete a algo “real”, sua vez, o personagem de 1964. Sant’Anna Editora - Companhia das Letras
seria possível apunhalar masculino, igualmente adota nesses textos Páginas - 184
essa representação sem nome, desliza entre memorialísticos – “reais” Preço - R$ 39,90
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017
PRATELEIRA
Olhar crítico que continua a ecoar
A PEDRA
Estabelecer pontes política nos governos – uma vasilha. “(…) Mas rincões do país e que O segundo romance de Yuri Pires relata as
entre fatos e suas estes, mais preocupados tenho a impressão de sofriam perseguição do consequências do surgimento de uma pedra
possíveis conotações em afagar elites que que o Brasil se decidiu regime de exceção. mágica na cidade de Lemuri, dominada pela
políticas é um dever atender demandas do pela vasilha”, diz o Neste ano, em que se política e pela religião, onde o cenário muda
inerente à profissão de grosso da população Eça reproduzido por completa o centenário com o desenrolar de uma história de amor. A
jornalista. Há quem opte à espera da reforma Callado. O português de Antonio Callado, nos edição se destaca pela proposta gráfica: cada
por essa tônica para atuar agrária, à espera de acreditava que o Brasil deparamos com esse leitor pode fazer sua própria capa, com ajuda
como escritor, ainda que uma revolução que seja deveria investir em uma esforço de celebração de uma prensa e papel carbono, de acordo
ela não seja obrigatória mudança real. Qualquer pretensa vocação rural. e de agenciamento da com o projeto criado por Gustavo Pereira.
– e mesmo que suas semelhança com o Brasil A leitura do autor de leitura de um autor que
escolhas aparentemente de hoje é explicada Quarup soa simpática a continua a nos provocar
não políticas sejam, pela história: um país essa ideia problemática como leitores e críticos.
no frigir dos ovos, cuja memória coletiva tanto pela ausência de Algo que soa bastante
políticas. Porque estética ocorre no ato conjunto crítica a ela, quanto pela necessário em tempos
é, inegavelmente, de esquecimento dos defesa subsequente da de insegurança política
uma escolha e um tempos pretéritos necessidade de reforma generalizada como o
agenciamento ideológico longínquos e agrária. O texto ecoa presente (Igor Gomes). Autor: Yuri Pires
das preferências dos recentes. Algo ainda hoje porque as questões, Editora: Lote 42
agentes de poder incompreendido por obviamente, persistem. Páginas: 136
(detentores dos meios pesquisadores e que No fim, Eça fala do país Preço: R$ 39,90
que visam propagar as parece estar na raiz dos como uma escarradeira.
ideias). As pontes de que escândalos e rupturas Outro exemplo: uma MELANCOLIA: LITERATURA
falo se misturam em O políticas – que são, briga entre moradores O autor mapeia o fenômeno da melancolia para
país que não teve infância: as em verdade,“acordos de Tiradentes (MG) e mostrar como, no Ocidente, ela afetou diversas
sacadas de Antonio Callado. de cavalheiros” –, que Burle Marx. Este, em expressões do pensamento, da medicina à
A obra reúne crônicas começa, talvez, com a um projeto paisagístico literatura. Ele se detém principalmente em
publicadas numa coluna Independência do Brasil. para a cidade, defendeu dois escritores essenciais à literatura ocidental
assinada por Callado na A crônica que dá título a retirada de árvores não moderna: o tcheco Franz Kafka e o irlandês
IstoÉ entre 1978 e 1982. ao livro é um exemplo do nativas, o que provocou Samuel Beckett, que cultivaram uma ficção
Os contos surgem às olhar político do autor. protesto nos moradores. que tem a melancolia como base, e usaram as
claras nesses textos não Traz um texto de Eça de Callado, simpático ao vertentes irônica e satírica, de cunho negativo,
ficcionais. São escritos Queirós – uma viagem coletivo, defende uma em seu diálogo com o mundo.
que problematizam ficcional que ele fez ao cidadania brasileira CRÔNICA
aquele tempo presente Brasil. Ele escreve a um para essas plantas – da
e já trazem os ecos do amigo e compara uma mesma forma como O pais que não teve infância
passado, que mostram nação a um punhado deveriam recebê-la os Autor - Antonio Callado
como o Brasil ainda de barro, algo que pode padres estrangeiros que Editora - Autêntica
sofre com os problemas ser moldado como realizavam importante Páginas - 288
de uma representação um deus ou como trabalho social nos Preço - R$ 54,90 Autor: Luiz Costa Lima
Editora: Unesp
Páginas: 366
Preço: R$ 68
RESENHAS
FÁBIO SEIXO
supérfluo como
o romance se mostra tão, de renascimento que de Machado de Assis e de
Há cerca de dois anos, tão necessário já em sua constitui o corpo de todo saber que o amor são mil
pedi a Silviano Santiago epígrafe – a marchinha exilado. E imagine o rosas roubadas.
arte política
que escrevesse um ensaio de carnaval dos anos corpo de um sexilado! Mas, no romance aqui
pensando os 30 anos de 1930, que no começo Stella é também Eduardo, específico, o que lhe
Stella Manhattan, seu romance desse texto repito porque mineiro afastado para NY importou foi fazer um
sobre sexílio (sexo + exílio) hoje em dia não há como no final dos anos 1960 por livro como um poema,
Nova edição do romance cult e a necessidade primordial
do supérfluo e do artifício
fugir da tristeza. Sim, a
jardineira parece estar
seu desejo de desafinar da
moral da época, da ditadura
que pode ser lido em
voz alta, que pode (e até
Stella Manhattan chega em em tempos sombrios. A
reflexão veio numa forma
ainda mais triste.
Não é um céu de
brasileira e da ditadura
da sua distinta família
precisa) ser performado
e que pede “ao leitor que
momento bem-apropriado que hoje lhe interessa brigadeiro que espera
Stella em 2017. Mas chega
católica-amém. Eduardo
e Stella são também a
pegue as palavras com as
mãos para que as sinta
muito: um estudo sobre
resistência, um retrato a ser irônico que – em cidade à frente, uma como se fossem vísceras,
Schneider Carpeggiani
do artista quando velho. tempos de censuras a metrópole à beira de uma corpo amado, músculo
Ele sabe que precisamos obras de arte, quando a revolução – no caso a de alheio em tensão”.
não apenas de literaturas possibilidade de cura gay Stonewall, o movimento É, Stella, vai ser preciso
de formação, mas de é discutida em jornais de emancipação dos muito refrão, muita pinta,
literaturas de persistências. sem assombro, como uma direitos gays, que levou muitos conselhos da sua
“Tenho 79 anos. O possibilidade banal, como drag queens a se revoltarem vizinha Lacucaracha para
romance Stella Manhattan, um desejo de mercado – a pela primeira vez contra os que você encare o Brasil
30”, escreveu Silviano, obra pioneira da nossa policiais que faziam batidas em 2017 (e não adianta
para continuar: “Stella literatura queer retorna às violentas por bares e boates voltar para NY, que a
Manhattan é proverbial. É livrarias. E retorna mais do bas-fond. Queen bees are coisa lá também está
juvenil, intuitivo, lúdico, magenta do que nunca. stinging mad – anunciavam feia!). Mas seu retorno
estiloso (camp) e tem uma Stella é subversiva os jornais nova-iorquinos, é necessário. Preste
moral falocêntrica (a e, também, repetimos, boquiabertos, quando de atenção: tempo só lhe
revolução comportamental “juvenil, intuitiva, Stonewall. A camélia pode remoçou, a noite lá fora
a reclamava então) que estilosa” já em seu ter até caído do galho, ter está apenas começando
pode ser lida na batida do primeiro parágrafo, dados dois suspiros, mas e pode ter certeza de que
samba Quem cochicha o rabo embalado pelo não morreu. “este mundo é todo seu e
espicha, cantado por Jorge melancólico refrão de Pois a juvenil Stella é tu é muito mais bonita...”
Ben Jor. Não fique pelas Orlando Silva: “Stella Eduardo, é Manhattan,
esquinas, cochichando. Manhattan cantarola a é a ditadura no Brasil, é
Fale. Quem fala, o phalo canção enquanto abre a Stonewall e tantas outras
espicha. Passo a seguir janela da pequena sala coisas nessa obra em que
Jorge, ao pé da letra: saia do apartamento em que tudo se desdobra, dos
pelo mundo afora fazendo mora, e logo em seguida personagens que se sabem
amizades, conquistando respira o ar frio e poluído vórtices carnais de suas
vitórias. Também não fique da manhã de outubro fantasias – as incríveis
pensando que essas vitórias em Nova York. Incha e Lacucaracha e Viúva-Negra
serão fáceis. Pois nesta vida desincha os pulmões –, passando pelo gênero
de perde e ganha, ganha e o corpo quente exala literário – um romance
quem sabe perder.” uma compacta nuvem de que é também ensaio,
Seu ensaio sobre como fumaça pela boca como porque sabe que o olhar
o tempo tratou Stella ou se fosse outdoor de cigarro que importa não é o frontal,
sobre como Stella acendeu ou de ferro de engomar mas o do soslaio, aquele
um cigarro, olhou-se no na Times Square. Wonderful que deixa a dúvida, o olhar ROMANCE
espelho, driblou A Praga morning! What a wonderful da madrugada. E Stella é
(aquela!), as viradas feeling! Cantarola em também a prova do quanto Stella Manhattan
politicas e chegou até silêncio”. O livro começa, Silviano é um dos autores Autor - Silviano Santiago
a esses anos dois mil e então, com um exercício de ficção mais radicais Editora - Companhia das Letras
alguma coisa reaparece na de respiração. Mas o que e versáteis das últimas Páginas - 328
reedição da Companhia contrai os pulmões não décadas. Um autor capaz Preço - R$ 54,90
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017
PRATELEIRA
Um pé no sonho, outro no real
OS FILHOS DO DESERTO COMBATEM
A triste história de Barcolino, estabelecer a ligação que se um diálogo cultural Operar esse tipo de NA SOLIDÃO
o homem que não sabia deseja”, diz a mensagem profundo em que um representação é um dos Em Os filhos do deserto combatem na solidão,
morrer, de Lucílio Manjate, no celular – e “ligação” mundo encantado e esforços frequentes da Lourenço Cazarré retorna à época da escravidão
foi recentemente lançado aqui opera em duplo outro desencantado se arte. Coisa necessária no Brasil para contá-la por meio do olhar
no Brasil (o escritor é sentido, tanto aquela transformam num só nos tempos nossos e que, inocente de um menino que tem a sorte de
moçambicano) e é quase chamada telefônica espaço de conflitos. no Brasil, anda sob risco conquistar a proteção de uma rica mulher
uma fábula sobre um quanto o elo com a É preciso destacar de uma crítica rasteira mestiça. Esta o apresenta ao mundo da leitura,
bairro encantado cravado ideia eurocêntrica do um lugar na obra, a Parte e moralizante, feita por ampliando a sua percepção do mundo. O livro,
no mundo moderno/ que é ser moderno (ou, incerta, espaço em que quem se empenha em ilustrado pelo mineiro Cau Gomez, representa
pós-moderno. talvez, civilizado). Barcolino costumava criar uma estabilidade um aporte à compreensão da história dos
“Encantado” porque Posteriormente, fala- surgir e onde se anuncia (social, cultural, negros no Brasil e sua luta pela liberdade.
traz um componente se no “Muro de Berlim” o seu dilema: ele está econômica) excludente de
mágico sem o qual não que existe entre uma morto ou vivo? “Estou minorias. Uma crítica que
se compreende a história mulher e seu esposo eu”, é a resposta. No age como censora rasa,
de Barcolino, um sujeito –, mas Berlim é esse chão espinhoso do não como propositora de
que não consegue morrer lugar que se conhece presente, firmado em um debates (Igor Gomes).
e que, ao mesmo tempo apenas de nome. Ao passado violento como
em que proporciona vida se falar em telefonia o das colônias, outra Autor: Lourenço Cazarré
à aldeia – chegam barcos móvel, situa-se melhor resposta seria possível? Editora: Cepe
cheios de peixe no lugar, historicamente o enredo: A identificação é com a Páginas: 132
quando ele está por perto deve se passar nos incerteza proporcionada Preço: R$ 35
–, ele leva uma criança últimos 15 ou 20 anos. por estar clivado por uma
consigo quando aparece. A questão do espaço, mentalidade complexa e POR DOIS MIL ANOS
Paralelamente, e a forma como o sem chão firme, advinda Um jovem judeu registra contato com facetas
vemos como a narrador vai virando da vida no espaço entre o da sociedade romena no período entreguerras
contemporaneidade um personagem sonho e o real. – no qual houve a ascensão do fascismo e
(a designação pouco ativo na história, são É isso: um pé no que colocou em xeque a intelectualidade
importa) dialoga com fatores que me fazem sonho, outro no real. europeia. Da universidade, onde tentava
isso: quando Barcolino ver que a narrativa A incerteza é território passar despercebido pelos antissemitas, à vida
aparece, pessoas se (como deve ter ficado poético, que mantém profissional adulta, o protagonista convive com
hospedam em hotéis evidente) é centrada nas vivo o passado em reacionários, revolucionários e fanáticos sem
para ver seu embate complexidades de um choque com o presente, FICÇÃO se identificar com nenhum grupo. Isso não o
com Adamastor (o ser humano que vive sem expor preocupações impede de perceber que nem um esforço de
gigante camoniano), em um país colonial na com qualquer futuro. É A triste história de Barcolino, o assimilação o protege de ser malvisto.
um gigante que dorme África. As fronteiras entre o que leva a entender homem que não sabia morrer
nas profundezas do o moderno e o ancestral o livro como uma Autor - Lucílio Manjate
mar. A telefonia móvel existem nos pequenos representação da Editora - Kapulana
não funciona: “Neste gestos e grandes ações. condição humana Páginas - 256
momento não é possível No livro de Manjate, cria- em Moçambique. Preço - R$ 44,90