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Nº 140 - Outubro 2017 - R$ 6,00 - www.suplementopernambuco.com.

br

KARINA FREITAS

SOBRE FIRMINA
Um especial sobre a primeira mulher a escrever um romance
abolicionista na língua portuguesa

MUTAÇÕES DO COSMOPOLITISMO | POEMAS DE AGLAJA VETERANYI | CARLOS FELIPE MOISÉS


2
PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017

C A RTA DOS E DI TOR E S E X PE DI E N T E


GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO
Governador

A
Paulo Henrique Saraiva Câmara

capa desta edição traz uma denúncia. Se Firmina foi uma das primeiras, Vice-governador
Raul Henry
narrativa do cativeiro do hoje escutamos sua voz por meio de
esquecimento – e mostra que esse escritoras como Ana Maria Gonçalves, Luz Secretário da Casa Civil
Antonio Carlos Figueira
cárcere não apagou a memória Ribeiro, Elizandra Souza e tantas outras.
da liberdade. Falamos de Úrsula Nesta edição, uma entrevista com José COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE
(1859), de Maria Firmina dos Reis Luiz Passos, autor de Antologia fantástica da Presidente
(1825-1917), que ganha reedição pela Editora da República brasileira – 2° título do Selo Suplemento Ricardo Leitão
PUC Minas. A escritora foi a primeira da língua Pernambuco – uma narrativa que faz dialogar o Diretor de Produção e Edição
portuguesa a escrever um romance abolicionista, privado e o público para pensar a República. Ricardo Melo
mas aproveitamos a ocasião para falar de como E ainda: Maria de Lourdes Alves, escritora que Diretor Administrativo e Financeiro
o colonialismo sempre se esforçou para suprimir fissura o entendimento canônico de literatura; Bráulio Meneses
a população afrodescendente. Isso passa pela uma leitura de Carlos Felipe Moisés, o poeta;
imagem de Firmina, que é desconhecida. A o termo cosmopolitismo e suas mutações hoje; o
designer Karina Freitas escolheu trabalhar em novo livro de Sérgio Sant’Anna; a reedição de
cima de fotos antigas de mulheres negras, ainda Stella Manhattan em tempos de ataque aos direitos
Uma publicação da Cepe Editora
que não se conhecesse o tom de pele da autora. LGBTQI; Januária Cristina Alves e seu trabalho de Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
Trabalhar a ausência de forma literal (extração registrar o folclore brasileiro; poemas de Aglaja Pernambuco – CEP: 50100-140
do rosto) se mostrou algo violento – semelhante Veteranyi (1962-2002). Também publicamos Redação: (81) 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br
àquela que foi imposta à escritora. A imagem ainda um trecho do livro Comum, sobre o que hoje dá
SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL
dialoga com Susana, mulher escravizada que, em base às reivindicações sociais. Agradecemos à Luiz Arrais
Úrsula, se fia nas memórias de seu passado livre. editora Boitempo pela cessão do trecho da obra.
EDITOR
As narrativas de matriz afro-brasileira Schneider Carpeggiani
entoam um coro atemporal de resistência e Uma boa leitura a todas e todos.
EDITOR ASSISTENTE
Igor Gomes
DIAGRAMAÇÃO E ARTE
COL A BOR A M N E STA E DIÇ ÃO Hallina Beltrão, Janio Santos e Maria Júlia Moreira
TRATAMENTO DE IMAGEM
Fabiana Moraes, Leonardo Nascimento, Karina Freitas, Agelson Soares
jornalista e jornalista e produtor designer, assina as REVISÃO
professora de cultural, autor do imagens da capa Maria Helena Pôrto
Comunicação ensaio de capa desta COLUNISTAS
(UFPE), autora de O edição Everardo Norões, José Castello e Marco Polo
nascimento de Joicy PRODUÇÃO GRÁFICA
Júlio Gonçalves, Eliseu Souza, Márcio Roberto, Joselma Firmino
e Sóstenes Fernandes
Bárbara Conceição, fotógrafa e estudante de Comunicação (UFPE); Bruce Robbins, professor da Columbia University; Fabiana MARKETING E VENDAS
Macchi, tradutora, professora e pesquisadora em Literatura e Tradução (UFF); Giovanna Dealtry, professora de Literatura Daniela Brayner, Rafael Chagas e Rosana Galvão
Brasileira (UERJ); Januária Cristina Alves, escritora e jornalista; Maria Carolina Morais, tradutora e mestranda em Teoria Literária E-mail: marketing@cepe.com.br
(UFPE); Paulo Lemos Horta, professor da NYU Abu Dhabi; Tarso de Melo, poeta, autor de Íntimo desabrigo. Telefone: (81) 3183.2756
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BASTIDORES

Para dar corpo


BERJE/REPRODUÇÃO

ao que já tem
nome e emoção
Um livro recém-lançado, que
reúne informações sobre
o folclore brasileiro, tanto
preserva narrativas quanto
nos ajuda a atravessar o
(incerto) tempo presente

seca do sertão, estavam prontas, jorrando em abun-


Januária Cristina Alves dância, à espera de quem se dispusesse a contá-las.
Para os estudiosos, o folclore é o saber popular, um
Há livros que estavam prontos desde sempre. Só conhecimento sem bula, sem uma face própria. O
não haviam sido escritos. Essa é a sensação que desafio era escrever sobre o que, na maior parte das
tenho quando vejo o Abecedário de personagens do fol- vezes, é apenas algo que se ouviu-não-sei-onde-de-
clore brasileiro, obra de minha autoria, que acabou -não-sei-quem. É claro que não fui eu quem começou
de ser lançada e que integra a Coleção Personagens do a registrar essas façanhas, esses relatos embebidos
Folclore Brasileiro (FTD Educação). As personagens de medos, invejas, alegrias e transformações, esses
que habitam cada uma de suas 416 páginas existem causos cuja origem, muitas vezes, é impossível deli-
a partir de uma data que não pode ser marcada mitar. Muitos antes de mim fizeram isso: dos nossos
e permanecem vivas até hoje, no recôndito da antepassados das cavernas, aos nossos cordelistas que
nossa imaginação. Figurar em páginas impressas cantavam nas feiras no interior desse país, passando
corporifica e registra algo que é imaterial e por isso pelos folcloristas como Câmara Cascudo, Simões Lopes
possui uma força própria, que é difícil (d)escrever. Coelho, Silvio Romero e tantos outros. Todos eles foram
Longe de ser algo abstrato ou esotérico. Fatos minhas fontes e inspiração na busca de recontar, de
revelam que há, sim, algo de encantador nesse um jeito contemporâneo e atraente para essas novas
desfile de personagens conhecidas e absolutamente gerações, o que é imemorial.
estranhas do imaginário brasileiro. O filho de uma O resultado é esse livro que traz 141 personagens
amiga agora só dorme depois que ela lê um verbete do folclore brasileiro, dispostas em ordem alfabética,
do livro. Isso porque tem sonhado com esses seres ricamente ilustradas, em que se encontram, além
todas as noites, embarcando em aventuras diverti- das origens e um pouco da história de cada uma, as
das e interessantes. Uma mãe me conta que trocou relações com outras personagens e sua presença em
a leitura de algumas dessas lendas por uma hora grandes obras da literatura brasileira. Fazer essa pes-
de video game e depois do terceiro dia, ao invés de quisa e esse recorte foi um extenso quebra-cabeças,
reclamações chorosas pela “troca injusta”, houve pois haveria mais que o dobro para incluir no livro.
pedidos para “mais uma história”. Muitos que me A opção por ilustrá-las também foi outra epopeia:
pedem autógrafo sorriem ao folhear o livro: pais, a maior parte delas tem, pela primeira vez, um re-
avós, crianças, artistas, professores. Lembram-se gistro visual, imortalizado pelo traço genial de Berje
de si mesmos, de suas reminiscências e mistérios, (pseudônimo de Cezar Berger). Sem falsa modéstia,
de um tempo vivido ou imaginado. creio que produzimos um inventário do que há de
Desde que comecei a escrever o Abecedário, há três mais significativo no nosso folclore.
anos, – e minha editora Isabel Coelho é testemu- Muitas razões me moveram durante o processo
nha! – fui invadida pela presença desses entes que, criativo dessa obra. Uma delas me inquieta e tem
além de concretamente terem preenchido minhas provocado reflexões: vivemos tempos incertos.
horas, habitaram meu sono, realizando uma espé- Tempos em que confiamos nossas memórias aos
cie de magia que só as coisas que necessitam ser HDs dos computadores, em que é mais importante
e existir possuem. fazer uma selfie no celular do que aguentar a emoção
O livro tinha mesmo de ser escrito e conheço uma do momento, tempos em que teclar vale mais a
dúzia de escritores do mais alto calibre que pode- pena do que dialogar pela fala. Essas personagens
riam tê-lo feito. Mas, por outro lado, compreendo me pareceram o melhor contraponto, a grande
que se fui eu a encarar essa empreitada, só o fiz lembrança de quem somos e de onde mora o cerne
porque me preparei para isso todo o tempo, mesmo do nosso povo. Entendi que resgatar essa memória
sem me dar conta. Não só porque eu colecionava era necessário para que nos lembremos de que é
as histórias desses seres desde pequena, mas por- preciso resistir ao “rápido e ligeiro”, tão somente
que ouvia esses relatos com intensa curiosidade e para viver plenamente a vida que nos pertence.
desejo de querer saber mais (eu apenas sabia que Assim, o Abecedário de personagens do folclore brasileiro
havia mais, porque os contos de tradição oral têm chega para oferecer ao Moderno, o Eterno. Evoé!
sempre mais um ponto a ser contado). Não apenas Vida longa para ele!
porque a pesquisa sobre eles começou quando li
Monteiro Lobato e seu O saci, ou quando conheci A
psicanálise dos contos de fadas, de Bruno Bettelheim, que O LIVRO
me convenceu da necessidade dessas histórias para Abecedário de personagens
crescermos com graça nessa vida tão complexa. do folclore brasileiro
Foi a experiência e a emoção que cada narrativa Editoras Edições Sesc e FTD
dessas provoca onde quer que passe, que me deram Páginas 416
a certeza de que essas histórias que estão nas raízes Preço R$ 55
das nossas árvores, nas águas dos nossos rios, nos
ventos afoitos que cortam nossos campos e na dura
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017

PERFIL

Escrever, ato
BÁRBARA CONCEIÇÃO

que é abrigo e
arrebatamento
Sobre a “presença-fissura” de
Maria de Lourdes, escritora
que vende seus livros a R$ 1
Fabiana Moraes

3 DE MAIO leitura. Tudo é xerocado e finalmente grampeado. Os


livros com mais páginas custam R$ 1, R$ 2. Outros
Aprendi com meu filho de dez anos saem a R$ 0,80. As capas são diferentes, mas há uma
Que a poesia é a descoberta mesma informação em todos os trabalhos:
Das coisas que eu nunca vi
Oswald de Andrade escritora: Maria de Lourdes Alves
endereço: Rua José Carlos Coutinho, 938
Maria de Lourdes Alves é uma das escritoras mais Bairro: Cedro – Caruaru, PE, CEP 55020-600
produtivas de Pernambuco: aos 45 anos, já lançou Rua Zacarias Neves, n.53, B. Santo-Antônio Bezerros PE
25 livros, entre eles Desenvolvimento nacional, Poemas de CEP 55660-000
Caruaru, Raiou a luz, Deus ama seu povo, Orientações alimentar,
A vida da mulher, A história de Luiz Gonzaga e Santas missões Maria dos dois endereços é uma dessacralizado-
do século. Consegue aliar a escrita a outras atividades ra, uma terna lança-chamas, que se planta em um
criativas: compõe músicas, pinta quadros, é poeta, espaço simbólico e material não acostumado a uma
faz artesanato. Vende suas produções pelas ruas de mulher como ela, religiosa, a pele negra, a origem
Caruaru, 350 mil habitantes, quase 37% dos domicílios humilde. O pai era jardineiro, a mãe doméstica,
com rendimento mensal de até meio salário-mínimo tiveram a única filha que só entrou na escola aos 10
por pessoa. Maria de Lourdes, artista, circula tanto anos de idade, pois tinha medo de ir para a rua. Para
nessa porcentagem quanto pelos salões da Assembleia ser mais precisa: Maria tinha mesmo medo de fogos,
de Deus: é missionária há 30 anos e de seu trabalho de bomba, de explosão, do barulho que fazia. Ficava
dedicado ao divino retira boa parte da inspiração para nervosa, gritava. Se um político falava na praça,
escrever seus textos, que misturam história, releituras soltavam fogos; se passava uma procissão, também;
bíblicas, conselhos sobre bem-estar e bem-viver, se nascia uma criança, de novo. “Só quando eu fiz
homenagens a vivos, homenagens a mortos. 32 anos é que Jesus me curou.” Não aconteceu nada
Na escrita de Maria, aprendemos novas palavras: específico, nenhum chamado, nenhum evento-
pohêmicas, desageiro, frinha, controlo. Na escrita de -gatilho. Aos 32, Maria simplesmente entendeu que
Maria, somos, leitoras e leitores, interpelados constan- as explosões não chegariam até ela. Que o medo, não
temente pela autora. “Como você ama a si próprio?”, o barulho, poderia silenciá-la. E isso, nunca. Falar e
pergunta ela em De bem com a vida, livro feito, como todos escrever era urgente, tanto que, um ano depois das
os outros, com um design muito particular: folhas A4 aulas no Grupo Rui Barbosa, em Bezerros, a garota
cortadas em quase tiras, cada uma delas sendo uma já sabia ler. Oito anos à frente, escreveria Deus ama
página. Nelas, os textos datilografados aparecem ao seu povo, quando colheu testemunhos de pessoas da
lado de desenhos e colagens, muitas delas figuras igreja e os publicou.
retiradas de livros escolares. Maria tem vários, que vai Entre esses depoimentos, há um em especial: ela
ganhando de presente de quem sabe seu gosto pela conta a história de um arrebatamento. Sem entender
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rosas, um blazer, a saia longa, a sacola de plástico nas


mãos. Entrou no espaço colorido e tecnológico, uma
tela de cinema curva ao lado de luzes neon, com a na-
turalidade de quem chega nos salões da Assembleia de
Deus desde criança. A sala lotada, microfones ligados,
bancos altos. Maria, confortável, olhava e sorria para
aqueles outros saberes tentando compreender o saber
dela. Falou da máquina de datilografar, das tesouras
que passeiam nos livros escolares e de lá retiram me-
ninos e meninas, homens e mulheres, flores e animais.
Renascem ressignificados nas folhas A4 grampeadas
e tornadas obras. Pergunta de professora, de designer,
de jornalista, de futura cineasta. Fotografias, muitas.
Gente filmando, porque tudo agora pode ser capturado.
A autora explicava o que queriam saber e finalizava
dizendo, várias vezes: “a paz do Senhor.” Sob o neon e
a tela curva de cinema, Maria era, além de escritora, de
compositora, pintora, artista, missionária. No começo,
algum estranhamento. Depois, o entendimento. Maria
só queria abençoar, mas não desejava, ao contrário da
plateia, capturar ninguém.
Momentos depois, ela e sua tiara de rosas miúdas
circulavam em redes sociais, imagens que ela nunca
viu. Maria não usa nenhuma, não faz parte de gru-
pos virtuais, nem tem telefone celular. Costura suas
relações no ziguezague diário feito entre o Cedro e o
Centro, entre o Centro e o Salgado, entre o Salgado
e Divinópolis. Sai à tarde ou à noite, em dias mais
quentes. Volta às 22h, 23h, depois de espalhar seus
livros. Dá uns R$ 200 por mês.
Lá, na casa pequenina na qual mora, há quem
chame de quartinho, criou um imenso lugar: a Univer-
sidade Histórica, o nome do escritório onde trabalha
na confecção de seus livros e objetos (bandeiras,
marcadores de página etc.). Foi ali que datilografou no
papel: “Como devemos viver de-bem-com-a-vida?
Nos amando, ser-mos cuidadoso, ser-mos paciente,
alimentando-nos bem”. É um assunto recorrente na
obra da escritora, que em Orientações alimentar reco-
menda as comidas mais indicadas para manter uma
boa saúde. “Se o ser humano ou qualquer um ser
vivo está com sede não vai tomar água morna, tem
que ser frinha. Pra não ofender.” Maria não gosta de
nada que ofende.
Ela, falando do corpo e da alma, escreve o que pra-
tica: tem explícito apreço por si mesma, algo funda-
mental para sua rotina diária como dessacralizadora.
Entra nos restaurantes, bares, lanchonetes e lojas de
Caruaru levando uma sacola grande de plástico com
seus trabalhos. Convida-se a adentrar. Abre as portas.
Já foi convidada a deixar vários espaços – inclusive a
padaria/restaurante na qual se sentou para tomar um
café e conceder a entrevista para esse texto. Mas lá es-
tava ela de volta, atenta, serena, falando sobre sua vida,
da Bíblia, passei alguns momentos tentando ajustar
aquela palavra entre mim e Maria. Compreendi que o
que eu usava para falar de entrega, ela, bíblica, usava
Lourdes não escreve calando-se quando eu escrevia algo para me ajudar a
anotar sem perder nada. O silêncio me incomodava.
“Pode falar, Maria.” “Não, eu espero.” Ao impor-
para falar de renascimento (pensei depois que são
apenas sinônimos que não se conhecem). Assim foi:
uma mãe e sua filha haviam morrido. Mas voltaram.
sobre política, mas -se suavemente nas calçadas da Avenida Agamenon
Magalhães, onde estão localizadas concessionárias e
lojas de decoração, delicatessens e roupas de grife, ela,
De lá, daquele Outro lugar. Foram e retornaram, algo
que Maria me conta naturalmente, e eu imagino como faz uma militância lança-chamas, subverte a ordem da homogeneização
de pessoas e comportamentos que caracterizam não

particular com seus


é viver esse cotidiano incrivelmente mais amplo do só as grandes cidades, mas as médias, como Caruaru
que o meu. Eu não preciso acreditar para saber que é nos ensina. “A gente espera que o tempo melhore as
tudo verdade: está escrito no livro de Maria, que leu coisas. Aqui, mudou. Mas não acho que para melhor.”

textos sobre religião,


em I Tessalonicenses 4:16-17: os que morreram em Não escreve sobre política, mas realiza uma es-
Cristo ressuscitarão primeiro. “Depois nós, os que pécie de militância muito particular, tanto com sua
ficarmos vivos, seremos arrebatados juntamente com presença-fissura quanto vendendo pequenas ban-
eles nas nuvens, a encontrar o Senhor nos ares, e assim
estaremos sempre com o Senhor.”
Achamos, as duas, bonito: encontrar alguém nos
alimentação e deiras de papel. Faz de Caruaru e do Brasil, também
usando máquina de fotocopiar. Algumas são vendidas
com os livros, assim como os marcadores de páginas
ares. Ser arrebatado. Maria acreditou que isso acon-
teceria com o pai, Luís, que morreu no ano passado
aos 97 (Elvira, a mãe, faleceu em 1993). O arrebata-
outros temas que ela corta com tesoura. Um artesanato autoral,
intuitivo, próprio.
Ganhei um de presente: é um pedaço de papel pe-
mento não veio, apesar da vigilância da filha, que as mãos cheias de exemplares de Orientações alimentar. queno, verde, brilhante, cheio de pontas. Custa R$
esperou ver o jardineiro retornar do Outro lugar. Tem “Eu escrevi, é sobre cuidados que temos que ter com 0,50. Observo atentamente o objeto delicado antes
um quase choro, quando fala do homem que home- a comida, porque tem hora para a gente consumir de guardá-lo na minha agenda. “É uma árvore”, ela
nageou no livro Pai Luís, meu herói, escrito quando ele certos alimentos, entende minha filha?”. Citou que explica. Atrás do papel há uma palavra escrita, não
ainda estava vivo. A cada aniversário dele, Maria de tinha formação em medicina natural, podia cuidar consigo compreender a princípio e pergunto a Ma-
Lourdes xerocava mais exemplares e distribuía nas de dores, aliviar tormentos. Levei três exemplares ria o que é. Quando ela me responde e meu coração
ruas de Bezerros, onde morou antes de seguir para – entre as ilustrações feitas com lápis e/ou caneta, dispara. Novamente sinto inveja não só do cotidiano
viver em Caruaru. “Achava que ele nunca morreria.” vemos a própria Maria interpretando uma mulher tão mais amplo daquela artista, mas de sua imensa
Sim, Maria acreditava. passando mal – e senti o imediato desejo de falar da clareza das coisas, a clareza e a inteligência de quem
Tem que repetir, dado que hoje é raro: Maria acre- escritora do Bairro do Cedro para todo mundo (mais não tem medo de articular o mais óbvio. A clareza
dita muito e acreditar é algo que ela faz muito bo- do que nunca, no Brasil desencantado, é urgente que só uma intelectualidade não ritualizada e não
nito. No dia em que a conheci, estava sentada em compartilharmos a beleza). afeita a continências, livre para articular vida, morte
um pequeno restaurante, ao ar livre, sentindo um Semanas depois, convidei-a para conversar com e maravilha, é capaz de produzir:
pouco de frio. Quando a mulher de estatura baixa estudantes universitárias e universitários sobre sua
se aproximou, saia longa, casaco e gorro, mostrou produção. Ela apareceu com uma tiara de pequenas “Sombra.”
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ENSAIO

Breviário do
DIVULGAÇÃO

desastre que se
ora se anuncia
Trecho de Comum, obra que
propõe a coletividade como
vetor de mudança social
Texto: Pierre Dardot e Christian Laval
Tradução: Mariana Echalar

O futuro parece bloqueado. Vivemos esse estranho ções de sua expansão sobre bases cada vez mais
momento, desesperador e preocupante, em que nada amplas, está destruindo as condições de vida no
parece possível. A causa disso não é mistério e não planeta e conduzindo à destruição do homem pelo
decorre da eternidade do capitalismo, mas do fato de homem2. A pressão do capitalismo, porém, foi mais
que este ainda não tem forças contrárias suficientes ou menos canalizada por políticas redistributivas e
diante de si. O capitalismo continua a desenvolver sociais após a Segunda Guerra Mundial, evitando
sua lógica implacável, mesmo demonstrando dia assim, acreditava-se, o retorno dos desastres so-
após dia uma temível incapacidade de dar a míni- ciais, políticos e militares produzidos por ele desde
ma solução às crises e aos desastres que ele próprio o século XIX. Nos anos 1980, o neoliberalismo, com
engendra. Parece até estender seu domínio sobre a o auxílio de todo o arsenal das políticas públicas,
sociedade à medida que desfia suas consequências. impôs uma via diferente, estendendo a lógica da
Burocracia pública, partidos de “democracia repre- concorrência a toda a sociedade.
sentativa” e especialistas estão cada vez mais presos Disso resultou um novo sistema de normas que
a camisas de força teóricas e dispositivos práticos se apropria das atividades de trabalho, dos com-
dos quais não conseguem se libertar. A ruína do portamentos e das próprias mentes. Esse novo
que constituiu a alternativa socialista desde meados sistema estabelece uma concorrência generalizada,
do século XIX, e permitiu conter ou corrigir alguns regula a relação do indivíduo consigo mesmo e
dos efeitos mais destruidores do capitalismo, faz com os outros segundo a lógica da superação e do
crescer o sentimento de que a ação política efetiva desempenho infinito. Essa norma da concorrência
é impossível ou impotente. Falência do Estado co- não nasce espontaneamente em cada um de nós
munista, guinada neoliberal do que nem mesmo como produto natural do cérebro: não é biológica, é
merece mais o nome “social-democracia”, desvio efeito de uma política deliberada. Com o auxílio di-
soberanista de boa parte da esquerda ocidental, en- ligente do Estado, a acumulação ilimitada do capital
fraquecimento do salariado organizado, aumento do comanda de maneira cada vez mais imperativa e
ódio xenofóbico e do nacionalismo, todos esses são veloz a transformação das sociedades, das relações
elementos que nos levam a perguntar se existem sociais e da subjetividade. Estamos na época do
ainda forças sociais, modelos alternativos, modos cosmocapitalismo, no qual, muito além da esfera do
SOBRE A OBRA de organização e conceitos que deem esperança de trabalho, as instituições, as atividades, os tempos de
um além do capitalismo. vida são submetidos a uma lógica normativa geral
Comum: ensaio sobre a que os remodela e reorienta conforme os ritmos e
revolução no século XXI foi A TRAGÉDIA DO NÃO COMUM objetivos da acumulação do capital. É esse sistema
lançado pela Boitempo no No entanto, a situação que se impõe à humanidade de normas que hoje alimenta a guerra econômica
Seminário 1917: o ano que é cada vez mais intolerável. O verdadeiro “espírito generalizada, que sustenta o poder da finança de
abalou o mundo, ocorrido do capitalismo” nunca foi tão bem-descrito como mercado, que gera as desigualdades crescentes e a
em fins de setembro. pela frase atribuída a Luís XV: “Depois de mim, vulnerabilidade social da maioria, e acelera nossa
o dilúvio”1. O capitalismo, produzindo as condi- saída da democracia3.
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nem os Estados dão respostas que permitam fazer


frente aos processos em andamento. Os fracassos
repetidos das cúpulas sobre as mudanças climáticas
apenas ressaltam o confinamento dos dirigentes eco-
nômicos e políticos à lógica da competição mundial.
A ideia de um destino comum da humanidade não
conseguiu se impor ainda, as vias da indispensável
cooperação permanecem bloqueadas. Na realidade,
vivemos a tragédia do não comum.
Essa tragédia não vem do fato de a humanidade
ignorar o que a espera, mas de ser dominada por
grupos econômicos, classes sociais e castas políticas
que, sem abrir mão de nenhum de seus poderes e
privilégios, querem prolongar o exercício da domi-
nação por meio da manutenção da guerra econô-
mica, da chantagem do desemprego, do medo dos
estrangeiros. O impasse em que nos encontramos
é testemunha do desarmamento político das so-
ciedades. Ao mesmo tempo que pagamos o preço
da ilimitação capitalista, somos atormentados pelo
enfraquecimento considerável da “democracia”,
isto é, dos meios que, apesar de raros e limitados,
possibilitavam conter a lógica econômica dominan-
te, conservar espaços vitais não mercantis, apoiar
instituições regidas por princípios que não fossem
os do lucro, corrigir ou atenuar os efeitos da “lei da
concorrência mundial”. Os “dirigentes políticos”
que se sucedem ao sabor das alternâncias perde-
ram em grande parte a liberdade de ação perante os
poderes econômicos que eles próprios estimularam
e reforçaram. O aumento do nacionalismo, da xe-
nofobia, da paranoia por segurança é consequência
direta dessa subordinação do Estado, cuja principal
função hoje é dobrar a sociedade às exigências do
mercado mundial.
É ilusório esperar que o Estado nacional proteja a
população dos mercados financeiros, das desloca-
lizações e da degradação do clima. Os movimentos
sociais das últimas décadas tentaram salvar o que
podiam em serviços públicos, proteção social e
direito ao trabalho. Contudo, nota-se que o âmbito
nacional e a alavanca estatal são insuficientes ou
inadequados para enfrentar os retrocessos sociais
e os riscos ambientais. Nota-se, sobretudo, que o
Estado muda de forma e função, à medida que se
acentua a competição capitalista mundial, e seu
objetivo é menos administrar a população para
melhorar seu bem-estar do que lhe impor a dura
lei da globalização. Na realidade, se hoje a questão
do comum é tão importante, isso se dá porque
ele anula brutalmente as crenças e as esperanças
progressistas depositadas no Estado. Está claro que
não se trata de fazer eco à condenação neoliberal
É também essa lógica normativa que está precipi-
tando a crise ambiental. No capitalismo neoliberal,
cada um de nós se torna um “inimigo da natureza”,
A questão não das intervenções sociais, culturais ou educacio-
nais do Estado, mas de resgatá-las de seus limites
burocráticos e submetê-las à atividade social e à
segundo a formulação de Joel Kovel4. Há anos o
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvi-
mento (PNUD) e o Painel Intergovernamental sobre
é proteger bens participação política da maioria.

Notas
as Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês)
vêm produzindo relatórios e mais relatórios que fundamentais para 1 Ver Michael Löwy, Écosocialisme, l’alternative ra-
dicale à la catastrophe écologique capitaliste (Paris,

sobrevivência, mas
apresentam o aquecimento global como o problema Mille et une Nuits, 2011).
mais importante e mais urgente que a humanidade 2 Isabelle Stengers, Au temps des catastrophes: résis-
já enfrentou5. As populações mais pobres serão ter à la barbarie qui vient (Paris, Les Empêcheurs de
as primeiras a sofrer as consequências funestas
do aquecimento global, e, a partir de meados do
século XXI, todas as gerações nascidas daqui até
mudar economia, Penser en Rond/La Découverte, 2009) [ed. bras.: No
tempo das catástrofes, trad. Eloisa Araújo, São Paulo,
Cosac Naify, 2015)].
lá padecerão com as alterações climáticas. Num
livro de grande lucidez, Les guerres du climat, Harald
Welzer afirma que “o aquecimento climático agrava
sociedade e o 3 Remetemos o leitor a um de nossos livros anteriores,
La nouvelle raison du monde: essai sur la société néo-
libéral (Paris, La Découverte, 2010) [ed. bras.: A nova
as desigualdades globais entre condições de vida
e sobrevivência, porque atinge as sociedades de
maneiras muito diversas”, e prevê que o século XXI
sistema de normas razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal,
trad. Mariana Echalar, São Paulo, Boitempo, 2016].
4 Joel Kovel, The enemy of nature: the end of capitalism
verá “não somente tensões envolvendo o direito atividades e todas as regiões interagem. Logo, não é or the end of the world? (Nova York, Zed, 2002).
à água e ao cultivo, mas verdadeiras guerras pelos tanto uma questão de proteger “bens” fundamentais 5 PNUD, Rapport mondial sur le développement humain
recursos naturais”6. para a sobrevivência humana, mas de mudar pro- 2007/2008. La Lutte contre le changement climatique:
A crise ambiental não é a única a afetar o destino fundamente a economia e a sociedade, derrubando un impératif de solidarité humaine dans un monde
das populações do globo, e há certo perigo em achar o sistema de normas que está ameaçando de maneira divisé (Paris, La Découverte, 2007) [ed. port.: Relatório
que apenas a emergência climática exige mobiliza- direta a humanidade e a natureza. É exatamente de desenvolvimento humano 2007/2008: combater a
ção geral, enquanto empresas, classes dominantes isso que entenderam todas as pessoas para as quais mudança do clima: solidariedade human a em um
e Estados continuam brigando para tomar para si a ecologia política consequente só pode ser um an- mundo dividido, trad. Instituto Português de Apoio ao
o máximo de poder, riqueza e prestígio, as usual, ticapitalismo radical7. Pois qual seria o motivo de Desenvolvimento, Coimbra, Almedina, 2007].
como se não tivessem nada a ver com isso. Mas essa o desastre anunciado pelas autoridades científicas 6 Harald Welzer, Les guerres du climat: pourquoi on
crise, talvez mais do que as outras, mostra bem os não provocar a mobilização que se poderia esperar, tue au XXI siècle (Paris, Gallimard, 2009), p. 13 [ed.
impasses com que nos defrontamos. O mundo não com exceção de uma minoria? O diagnóstico de bras.: Guerras climáticas: por que mataremos e seremos
ficará protegido com a implantação de uma espécie gravidade extrema dado pelo PNUD, pelo IPCC e mortos no século XXI, trad. William Lagos, São Paulo,
de reserva de “bens comuns naturais” (terra, água, por inúmeras instituições na atualidade suscita a Geração, 2010].
ar, florestas etc.) “milagrosamente” preservados questão das condições para uma ação coletiva capaz 7 Ver John Bellamy Foster, “Ecology against Capita-
da expansão indefinida do capitalismo. Todas as de responder à urgência climática. Nem as empresas lism”, Monthly Review, v. 53, n. 5, out. 2001.
8
PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017

ENTREVISTA
José Luiz Passos

Das traições que


nos foram infligidas
pela República
Em Antologia fantástica da República brasileira, segundo
título do Selo Suplemento Pernambuco, autor orquestra
várias vozes para refletir sobre a democracia no Brasil
ERNESTO RAPOSO/ DIVULGAÇÃO

Quando pensei em convidar você para esse


projeto, há um ano, a ideia inicial não era um
romance: seria, aproveitando seu trabalho
para O marechal de costas, uma reunião
de textos de domínio público que falassem
da República Velha (1889-1930), e que nos
ajudassem a entender a ideia de República
no Brasil. Dessa ideia, surgiu um romance
em que você manteve o título de “antologia”.
Qual foi o momento dessa virada?
Tem razão... enganei meu editor. E me
desculpo por isso. O livro foi mudando
ao longo do ano. Para O marechal de costas,
fiz uma pesquisa relativamente grande e
demorada sobre a vida de Floriano Peixoto
e o final do Império. A ideia era mostrar,
a partir de um mergulho na vida privada
de Floriano, um momento da vida pública
brasileira que, penso, encontrava um eco
nos eventos contemporâneos, de 2013
para cá, até o impeachment de Dilma. Ao
mesmo tempo, O marechal me fez pensar nos
vários episódios de nossa história em que
o projeto de uma comunidade entre iguais
(que está no cerne de ideia de República)
falha aos seus cidadãos, ou é adiado em
favor de um acordo entre as elites. Então,
a partir de sua provocação (“fazer um livro
ousado, com materiais diversos, sobre a
República como um problema”), comecei
a juntar vários textos meus, e dos outros,
por trás desses vários momentos de nossa que tratavam das nossas várias repúblicas:
Entrevista a Schneider Carpeggiani história”, atesta o autor. Momentos que vão 1817, 1889, 1930, 1964, 1989, 2016... Não
da Revolução Pernambucana de 1817 à crise houve, a rigor, um momento de virada no
“Na Antologia, o que quis mostrar foi uma se- política que levou Temer ao poder em 2016. projeto. Tentei vários formatos para fazer
quência de tentativas frustradas de represen- Essa crise do ano passado que me fez, como caber no livro as questões que queria de
tação de nossos anseios políticos e momentos editor, convidar Passos para esse projeto do abarcar. Acontece que o gênero do romance
de profunda assimetria de poder entre grupos Selo Suplemento Pernambuco. Nessa entre- é um gaveteiro poderoso. Sua flexibilidade
e cidadãos” – assim o escritor pernambucano vista, o autor fala das mudanças que a obra é ao mesmo tempo cômoda e desafiadora.
José Luiz Passos resume o que está por trás viveu ao longo da nossa primeira conversa Então, sem que pudesse evitar, comecei
do seu novo romance, Antologia fantástica da e relembra ainda a primeira vez em que foi a imaginar uma estória correndo por trás
Republica brasileira (Cepe Editora), espécie de traído pela República. Uma traição que está desses vários momentos de nossa história
baú em que gêneros literários se intercalam registrada na foto que ele fez questão que (perdoe o trocadilho chulo): a conexão entre
contando ao final uma só narrativa: a da nos- figurasse na orelha do romance e nas suas as partes do livro se dá, às vezes, pela voz do
sa tumultuada República. “Acontece que o imagens de divulgação: um jovem de cha- narrador, outras vezes pela recorrência de
gênero do romance é um gaveteiro poderoso. pelão olhando displicentemente para o lado, um personagem, época, cenário ou tema. E
Sua flexibilidade é ao mesmo tempo cômoda sem nem imaginar os tropeços que seguiriam assim busquei montar um painel de vozes,
e desafiadora. Então, sem que pudesse evitar, à vitória do primeiro presidente eleito por algumas das quais estão “sumidas”, como é
comecei a imaginar uma estória correndo voto popular após o fim da ditadura. característico das nossas várias repúblicas.
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017

Na Antologia, Não acho que


quis mostrar a estrutura
uma sequência fragmentada do
de tentativas livro seja problema.
frustradas de Nenhuma obra é
representação dos feita para agradar
anseios políticos a todos os gostos
De certa forma, penso que uma democracia?”. E o livro de 1817, por sucessivos sobre o que implicou essa invisibilidade está marcada
a Antologia fantástica da é isso: essa orquestração de livros do nosso chamado Residência para o livro? pela presença, na Antologia, de
República brasileira trava um vozes, que na maioria das vezes regionalismo literário, que se Recebi o convite para inaugurar fichas cadastrais de funcionários
diálogo complementar com não se escutam e algumas até debate com a desigualdade a Residência Literária do Usina dos engenhos da região. O
as ideias de O marechal de acabam sendo silenciadas. A social etc. No romance, não de Arte, em Santa Therezinha, período passado lá foi intenso
costas. Livros escritos em meio meu ver, é mais interessante há uma fórmula nem uma no ano passado, quando já estava e inquietante, deu-me a
à crise da República, falando da pensar a Antologia como um solução para essa República. redigindo a Antologia. Ela já havia, oportunidade de incluir um
República… Como você pensa o grande conjunto de vozes do Há apenas um convite a se digamos assim, se transformado aspecto crucial da relação entre o
diálogo entre essas obras? que como mais um romance considerar as dificuldades num romance propriamente interior e a República: aquele da
Diria que cronologicamente O “fragmentado”. Com esse livro, às quais ela nos convoca. dito quando cheguei ao Brasil, relação de oposição entre ambos,
marechal aborda 1889 e 2016, você propõe um debate sobre a para realizar a Residência em tal como ilustrado por Euclides
enquanto a Antologia se volta para ideia do republicano? É curioso meu esforço, ao pensar julho último. Imaginava que da Cunha em Os sertões.
1817, 1930 e as metamorfoses Se há uma correspondência, essas perguntas, em sempre a Residência fosse me dar
e continuidades de 1964. aqui, ela está no fato de que repetir a palavra “romance”. a oportunidade de reler os A sua foto na orelha do livro, que
A Antologia também é mais a coleção fragmentada de Para que fique claro a quem lê originais, fazer cortes e melhorar reproduzimos nesta entrevista,
especificamente relacionada vozes é reunida pela forma do que se trata de um “romance”, as transições. Mas as iniciativas é da sua adolescência, quando da
a Pernambuco e à questão da romance (em contraposições, apesar de achar interessante do Usina de Arte me colocaram eleição de Collor. É como se esse
tensão entre o campo e a cidade. paralelismos, sequências a confusão entre os gêneros numa situação ao mesmo tempo garoto com sombreiro mexicano
E O marechal, por sua vez, se em choque) assim como um que a Antologia pode causar. produtiva e difícil. Um entorno fosse mais personagem do livro
dedica aos cenários do Rio de conjunto de cidadãos diversos Quais riscos você acha que sociocultural semelhante ao do que você mesmo, hoje em dia;
Janeiro, à época capital federal, e deveriam compor uma pode correr ao lançar uma da Usina Santa Therezinha essa é a imagem que me passa.
nossa fronteira Sul. De um ponto República que os representasse. obra com uma estrutura não já figurava nos trechos Pode falar sobre essa foto?
de vista, digamos, temático, Claro, não tento fazer do convencional como essa? da Antologia, que exploravam a A foto foi tirada por um grande
vejo a crise como um aspecto romance uma visão exaustiva Não acho que isso seja um relação entre família, política e amigo meu, durante uma das
mais forte no romance sobre de como é, ou como deveria ser, problema. Nenhuma obra é afeto em Graciliano Ramos e José várias viagens que fizemos
Floriano. Já na Antologia o que a nossa sociedade. Muito pelo feita para agradar a todos os Lins do Rego, particularmente no ao interior. Associo a época
quis mostrar foi uma sequência contrário: estão ali vinhetas, gostos. Não me incomoda a romance Usina, de 1936. Essa é a a um momento de tomada
de tentativas frustradas de momentos de “instrução” designação de “fragmentado” parte “ensaística” do romance. de consciência de minha
representação de nossos política, de fracassos, exclusões para o romance. Do meu ponto E a Residência fez com que ela parte com relação à política
anseios políticos e momentos e sumiços em nossa comunidade de vista, a grande diferença entre ganhasse relevância, levando- (da literatura, das divisões no
de profunda assimetria de política. Não vejo no livro este livro e os que já escrevi me de volta a um tema que eu território do estado, da própria
poder entre grupos e cidadãos. nenhuma mensagem ideológica. está no fato de que os outros são já havia abordado em Nosso grão viagem). O ano marcava minha
Levei exatamente um ano para O que tentei foi fazer um convite livros, em geral, que possuem mais fino (2009) e O sonâmbulo passagem do Ensino Médio
escrever a Antologia, e acho para que as leitoras e leitores um único enredo, enquanto amador (2012): o contraponto ao nível universitário. Isso
que só consegui acabar o livro imaginem o esforço envolvido a Antologia aborda várias vidas e entre o campo e a cidade, e a coincidiu com a eleição de 1989,
em tão pouco tempo porque, na dificuldade de alguns ideias, voltando-se a situações ligação disso com a perda da quando votei pela primeira
de fato, ele é, rigorosamente personagens e narradores para diversas no tempo e no espaço. dignidade do trabalho. Então, na vez; e com a decepção que
falando, uma antologia, ou seja, verem no Outro um seu Igual. Residência, em conversas com foram a derrota de Lula e os
estão ali transcritos, reescritos Essa igualdade, creio eu, deveria Um dos tópicos frequentes das o curador José Rufino, com o escândalos do governo Collor,
ou adaptados, textos meus estar na base da forma política nossas conversas ao longo da meu anfitrião Ricardo Pessoa de que o levou ao impeachment.
e também de outros. O meu da República. Na Antologia, edição do livro foi a questão Queiroz, e principalmente com Quando me pediram uma
papel foi, em grande parte, o de o dilema é enfrentado por das fichas dos trabalhadores os trabalhadores da região – na “foto do autor” para a Antologia
um autor-editor, como de fato um pai já falecido (em suas que estão ao final do romance. maioria aposentados, pois a fantástica da República brasileira,
costuma acontecer no caso de “meditações” dirigidas ao filho), Fichas que entraram na reta usina parou de moer há anos –, lembrei-me prontamente da
qualquer antologia. por um professor imigrante, final da edição, quando da pude refazer o trajeto de volta à imagem desse período em que
por uma policial honesta sua Residência artística na questão, mas agora sob a ótica experimentava pela primeira
Em uma conversa nossa sobre o tentando entender as sutilezas Usina Santa Therezinha, de uma preocupação com o vez uma clara sensação de
slogan para o livro, você soltou de um crime psicológico, por em Água Preta (Mata Sul abandono e a invisibilidade haver sido traído pela República
um “com quantas vozes se faz um dos mártires da Revolução de Pernambuco). Pode falar do trabalhador rural. Essa que eu acabara de conhecer.
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017

Do travel-log: 1 de abril de 2016. “Atrás de Herman Melville,


num autocarro chamado Peter Pan. E um dia de grande pe-
numbra a caminho de New Bedford”.

O que teria levado Isabel Lucas, jornalista portugue-


sa, a percorrer milhares de quilômetros nos Estados
Unidos, durante 2016, o ano Trump, enfrentando
lonjuras e estranhamento, tendo como “guias” 16
obras da literatura norte-americana? Andando à
deriva num país-continente, guiada pela literatura, mas atenta
à realidade e às pessoas que fazem parte dela.
O que a motivou certamente não foi apenas a
busca do inusitado. Quem sabe, tentativa de decifrar
a diferença ou rasgar a superfície. Como John Stein-

Everardo beck, que já era famoso e beirava os 60 anos quando


decidiu viajar pelos Estados Unidos, num trailer,

NORÕES
acompanhado apenas de seu cachorro. Queria
enxergar mais fundo o país e narrou a experiência
no livro Viagem com Charlie.
A jornada de Isabel rendeu 12 reportagens no
jornal Público e um livro: Viagem ao sonho americano
(Companhia da Letras, Lisboa, 2017). Um itinerário
esnoroes@uol.com.br que bem poderia ser lido assim: mergulho no ventre
de Moby Dick, a gigantesca baleia branca, metáfora
do país que ela trilhou, buscando encontrar, no que se
escreve, marcas do lugar de escrita, do lugar do autor, como
é que o real se reflete na ficção e vice-versa. Moby Dick, de
Herman Melville, é o romance fundador da América do indiví-
duo, e foi dele que parti para a escolha dos outros 15. Não são
necessariamente os meus livros preferidos, mas gosto de todos
os que escolhi, ficção, não ficção, poesia, jornalismo. Tudo. A
literatura tinha tudo para que eu partisse para uma viagem em
busca do real, cruzando vozes, todas as vozes que apanhasse
nos caminhos traçados pelos livros escolhidos.
O acaso permitia todos os contágios e essa era a minha

O ventre da
liberdade. O resto era o real e as suas circunstâncias. Deixar A paisagem talvez seja a primeira forma de espanto, a mais
possível o espanto, aquilo que nunca se sabe que se vai encon- imediata. Nos Estados Unidos ela é tão diversa quanto as pessoas que
trar. Deixar-me ser surpreendida, deixar-me contaminar por a habitam. Deserto, montanha, mar, lagos, rios, neve, a vastidão da
imagens, sons e o que as palavras dos livros me sugeriam. Era planície, o ritmo do glaciar desaparecendo no Alasca. Mas tem sons,
outra tradução. Eu já tinha lido todos os 16 livros de partida, como os de todas as línguas que se ouvem nas ruas de Nova York.

baleia é a nave
mas agora era outra a leitura que fazia deles. São coisas a compor um puzzle. Os livros acompanhavam-me
É de New Bedford, o lugar da baleia, por onde nessa confirmação. Nos contrastes sociais, culturais. Era impossível
Isabel começa a viagem. Ali, há o Museu da Baleia conter as emoções. Elas fazem parte do espanto.
e também uma casa com a placa: “Aqui dormiu Para Isabel, a paisagem está a nos reger, num re-

desta viagem
Moby Dick”, fazendo a simbiose entre obra e autor. torno ao Gênese. Tal como pensa David Vann, com
É também em New Bedford que ela encontra um quem dialoga na lonjura branca do Alaska. O autor
professor de origem portuguesa, especialista no ro- de Sukkwan Island narra o suicídio de um pai, quando
mance de Melville. Na conversa, ele comenta que a o filho tinha apenas 13 anos. É um episódio autobio-
ideia de subjugação, desenvolvida no Banqueiro anar- gráfico, pois o pai havia cometido suicídio quando
quista, de Fernando Pessoa, era algo já entranhado o autor tinha apenas 10 anos. Para David Vann, a
no Moby Dick, aquela forma estranha como o capitão paisagem era o princípio de tudo, só depois a palavra,

Uma conversa com Isabel Ahab mantinha sujeitos todos os homens do barco
baleeiro. O mesmo Ahab que inspirou Elton John:
ideia que distorce e inverte o enunciado bíblico sobre
a criação do mundo. É isso que o menino persona-

Lucas sobre sua travessia


gem do romance, seu alter ego, aprende com o pai na
Hey Ahab can you tell me where primeira página do livro.
I can catch a ride out of here O Alaska é como uma superAmérica, uma repre-
pelos Estados Unidos Hey Ahab hoist that sail
You gotta stand up straight
sentação das ideias americanas de fronteira, de au-
toconfiança, de imersão no mundo selvagem. Talvez
When you ride that whale por seu horizonte pesado, cinza e neve, é um estado
DIVULGAÇÃO

POESIA
Marco Sérgio Castro Pinto comemora cinco décadas de atividade
Polo literária e lança uma antologia de seus poemas
Ao completar 70 anos de vida marcada pela criação de versos
e 50 de atividade literária, curtos e claros, muitos com
o poeta paraibano Sérgio de sabor epigramático, em alguns
Castro Pinto (foto) publica o momentos carregados de
livro Folha corrida (Escrituras), humor e ironia, o que torna sua
uma seleção de seus poemas, leitura agradável e gratificante.
extraídos de sete livros: Gestos Um bom exemplo é o poema
lúcidos (1967), A ilha na ostra que serve de epígrafe ao livro,

MERCADO (1970) , Domicílio em trânsito


(1983), A quatro mãos (1996),
o poeta septuagenário: o poeta/
arrasta/ os pés// e tropeça/ nos

EDITORIAL O cerco da memória (1993), Zoo


imaginário (2005), e A flor do
versos/ de pés/ quebrados.// o
poeta/ não mais/ se inspira.// o
gol (2014). A obra do autor é poeta/ só inspira/ cuidados.
A Cepe - Companhia Editora de Pernambuco informa:

CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
MARIA JÚLIA MOREIRA
CONSELHO EDITORIAL
I Os originais de livros submetidos à Cepe, exceto
aqueles que a Diretoria considera projetos da própria
Editora, são analisados pelo Conselho Editorial, que
delibera a partir dos seguintes critérios:

1. Contribuição relevante à cultura.

2. Sintonia com a linha editorial da Cepe,


que privilegia:

a) A edição de obras inéditas, escritas ou


traduzidas em português, com relevância
cultural nos vários campos do
conhecimento, suscetíveis de serem
apreciadas pelo leitor e que preencham os
seguintes requisitos: originalidade, correção,
coerência e criatividade;

b) A reedição de obras de qualquer gênero da


criação artística ou área do conhecimento
científico, consideradas fundamentais para o
patrimônio cultural;

3. O Conselho não acolhe teses ou dissertações


sem as modificações necessárias à edição e que
contemplem a ampliação do universo de leitores,
visando a democratização do conhecimento.

II Atendidos tais critérios, o Conselho emitirá parecer


com elevada taxa de suicídio, o dobro da média desse estado perdia a concentração que me permitia terminá-lo a sobre o projeto analisado, que será comunicado ao
nacional americana. tempo de enviar para o jornal. Foi assim durante 12 meses. E eu a proponente, cabendo à diretoria da Cepe decidir
Também à oeste, a imensidão texana, tomada do sentir que me perdia no país. A biblioteca ia aumentando ao ritmo sobre a publicação.
México, é um presente da geografia, a partir da qual Cormac das minhas interrogações, somava quilómetros, vozes e livros. E o
McCarthy descreve a América em Meridiano de sangue e primeiro de todos: Moby Dick e toda a inquietação, contradição,
Todos os belos cavalos, a natureza a servir de ponto de partida fé, a dúvida. E o sonho original, o sonho humano contaminado por III Os textos devem ser entregues em duas vias, em
para questões filosóficas, religiosas, científicas. Lugar onde um colectivo que pede sucesso, dinheiro. É o sonho que se constrói papel A4, conforme a nova ortografia, devidamente
línguas se mesclam e o sentido de pertencimento se com base na ideia de que o indivíduo é igual a todos os indivíduos. revisados, em fonte Times New Roman, tamanho
esvai como a areia da vastidão. Mas onde é possível Mas tem o seu oposto: o medo do fracasso, a palavra maldita 12, páginas numeradas, espaço de uma linha e meia,
observar o quanto fronteiras podem ampliar o mundo segundo os construtores do sonho americano e os que o perseguem. sem rasuras e contendo, quando for o caso, índices
em vez de limitá-lo, malgrado os projetos de muros e A literatura nos guia, mas há sempre o confronto a eventos
e bibliografias apresentados conforme as normas
cercas elétricas que encurralam os homens enquanto inusitados, susceptíveis de ocorrer nas esquinas de um país onde,
liberta as mercadorias. Benjamin Alire Sáenz, outro num ano, 27% dos norte-americanos sofrem ou irão sofrer de técnicas em vigor. A Cepe não se responsabiliza
escritor de fronteira e amigo de Cormac McCarthy, distúrbios mentais, o que coloca os Estados Unidos como o país por eventuais trabalhos de copidesque.
expressa o que isso significa para ele: um pertenci- com maior prevalência deste tipo de doença, no mundo.
mento a duas nações e a nenhuma. Essa crueldade inerente ao que Isabel Lucas chama IV Serão rejeitados originais que atentem contra a
Indago a Isabel Lucas como fez para arrancar a bis- de América ressalta quando ela descreve seu acompa-
Declaração dos Direitos Humanos e fomentem a
turi tantos pedaços do cotidiano da Roma de nossos nhar os passos, sob o frio gelado de Dakota do Norte,
dias, que parece próxima da queda do império, mas de um casal indígena que se vai pela rua vazia, rostos violência e as diversas formas de preconceito.
cuja língua faz explodir uma literatura de profundeza parecidos com os dos indígenas retratados nas 1.500
e contrastes. fotos de Edward. S. Curtis. E, de repente, chega o mo- V Os originais devem ser encaminhados à
Dois dias para escrever cada texto. 35, 40 mil caracteres num torista de táxi e lhe arremessa: “Sabe qual a expectativa Presidência da Cepe, para o endereço indicado a
frenesim de escrita em que muitas vezes senti náusea de cansaço, média de vida dessas pessoas? A deles é de 44 anos, a delas de 47. seguir, sob registro de correio ou protocolo,
espécie de delírio que parecia alimentar a mesma escrita. Se saísse São boa gente, mas têm vidas curtas”.
acompanhados de correspondência do autor, na
qual informará seu currículo resumido e endereço
para contato.

VI Os originais apresentados para análise não serão


devolvidos.

VII É vedado ao Conselho receber textos provenientes


de seus conselheiros ou de autores que tenham
vínculo empregatício com a Companhia Editora
de Pernambuco.
DIGITAL PESQUISA

Com mais de 49 mil títulos, Historiadora investiga quais foram os editores artesanais Companhia Editora de Pernambuco
e-book ainda não decolou brasileiros, com presença de dois pernambucanos Presidência (originais para análise)
Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro
Os e-books continuam sem Editores Artesanais Brasileiros O Livro Inconsútil, criada em CEP 50100-140
decolar no Brasil. Segundo (Autêntica), da historiadora 1947. O segundo pernambucano
Recife - Pernambuco
pesquisa da Fundação Instituto Gisela Creni, mapeia o trabalho da lista é Gastão de Holanda,
de Pesquisas Econômicas, de quem que se dedicou a fazer com O Gráfico Amador, de 1954.
encomendada pela Câmara o livro de forma não industrial, Outros editores: Pedro Moacir
Brasileira do Livro e Sindicato ou seja, totalmente à mão, Maia, com a Dinamene, de 1950;
Nacional dos Editores de Livros, um a um. Obras de pequenas Geir Campos e Thiago de Mello,
em 2016 eles renderam R$ 42, tiragens, dedicadas a quem com sua Hipocampo, de 1951;
5 milhões contra R$ 3,8 bilhões gosta de livros e quer fruir a o barcelonês radicado no Rio
das cópias físicas. Em suma, obra também com o olfato, o de Janeiro Manuel Segalá, cuja
foram responsáveis por apenas tato e a visão – ou seja, o livro Philobiblion começou em 1957; e
1,1% do faturamento das editoras como objeto. O pioneiro é João Cleber Teixeira, com a Noa Noa,
nacionais, com 49,6 mil títulos. Cabral de Melo Neto com o selo que atuou de 1965 a 2013.
12
PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017

CAPA

KARINA FREITAS
13
PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017

“Vou contar-te
o meu cativeiro”
Maria Firmina dos Reis e Escrevo o que a vida me fala, o que capto de muitas vivências.
Escrevivências...
praticamente excluídas das representações oficiais,
uma vez que o escravismo representava o oposto da

a reedição de Úrsula no
Conceição Evaristo imagem civilizada e progressista que o país procurava
veicular. Assim, melhor seria deixar os escravizados
O século XIX representa um momento-chave na como sombra e silêncio, sendo esse silêncio uma
seu centenário de morte historiografia brasileira: foi nele que o Brasil se tornou
um país independente da metrópole, aboliu a escra-
ruidosa forma de memória.
Na contramão dos constantes silenciamentos, houve
vidão – ao menos na letra da lei – e transformou-se também uma significativa produção de narrativas
Leonardo Nascimento em República. Por trás de tantos eventos e reviravoltas dissonantes lutando por espaço no debate público. Foi
que tiveram palco nesse tumultuado século, é possível justamente em meio ao agitado contexto de disputas
reconhecermos um intenso processo de construção do da segunda metade do século XIX que emergiu a obra
que se convencionou chamar de “projeto nacional”. da escritora afrodescendente Maria Firmina dos Reis.
Se, como bem definiu Benedict Anderson, mode- Se entendermos a História como uma arena de
los de nacionalidade são modelos imaginários – que disputas pelo direito de significar, e reconhecermos
fazem largo uso de elementos como mapas, jornais, que essa mesma História é escrita (e inscrita) a partir
textos, imagens etc., visando à construção de uma de questões e olhares do tempo em que ela é vertida
comunidade que se reconhece entre si –, é preciso em discurso, poderemos então “retornar ao passado”
atentarmos ao fato de que muitos de nossos modelos com dúvidas e questões de “nosso tempo”, principal-
de “brasilidade” são oriundos de projetos autoritários mente quando temos em mãos outras narrativas que
e excludentes. Projetos nos quais, grande parte dos podem auxiliar na árdua tarefa de “escovar o passado
brasileiros e brasileiras jamais se reconheceria. Basta a contrapelo”. Desta forma, a memória histórica é
lembrar que, em 1838, poucos anos após a Indepen- reativada e, ao mesmo tempo, restabelecida.
dência, fundou-se no Rio de Janeiro, então capital Conhecer as obras e a trajetória intelectual de Maria
do país, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Firmina dos Reis é ponto mais que importante na
Com o intuito de criar uma história que fosse nacional fundamental tarefa de reinscrição da história social
e imperial para o então novíssimo país, em 1844 o da cultura brasileira.
Instituto deu lugar a um primeiro concurso, em que
os participantes deveriam discorrer sobre a seguin- FIRMINA EM VIDA E OBRA
te indagação: “Como se deve escrever a história do Maria Firmina do Reis nasceu em 11 de outubro de
Brasil?”. Como vem pontuando Lilia Schwarcz em 1825, na ilha de São Luís, capital da província do Mara-
alguns de seus trabalhos, poderíamos substituir o nhão. Nascida fora do casamento, Firmina não chegou
questionamento por outro um pouco mais apropriado: a conhecer o pai. Acredita-se que tenha nascido do
“Como se deve inventar uma história do e para o Brasil”. relacionamento entre uma portuguesa e um escravi-
O naturalista Carl von Martius foi o autor vencedor zado africano, embora não exista um consenso sobre
do concurso. Unindo-se a outros olhares exotizantes o tema entre os pesquisadores e as pesquisadoras
que fundamentaram um imaginário fetichista sobre de sua obra. Em 1830, com o falecimento da mãe, a
o país, o cientista alemão defendeu a ideia de que o menina passou a morar com a avó, em São José dos
Brasil poderia ser definido por sua mistura de raças. Guimarães, no município de Viamão (MA).
“Devia ser ponto capital para o historiador reflexivo Segundo Maria Lúcia de Barros Mott, em Submissão
mostrar como no desenvolvimento sucessivo do Brasil e resistência: a mulher na luta contra a escravidão, Firmina
se acham estabelecidas as condições para o aperfei- viveu alguns anos em casa de uma tia materna me-
çoamento das três raças humanas que nesse país são lhor situada economicamente. Para Eduardo de Assis
colocadas uma ao lado da outra, de uma maneira Duarte, importante estudioso da obra de Firmina, isto
desconhecida da história antiga, e que devem servir- talvez explique o acesso ao letramento e a aquisição
-se mutuamente de meio e fim” – escreveu o autor. A de um repertório literário com a presença de obras
imagem usada por von Martius para sustentar a tese foi do Romantismo brasileiro e francês, já que não há
a de um rio caudaloso, que corresponderia à herança condições de afirmar que a intelectual obteve uma
portuguesa presente entre nós. Esse mesmo rio deveria educação formal.
absorver “os pequenos confluentes das raças indina Em 1847, aos 22 anos, Firmina foi aprovada no
e etíope”. Estavam dadas aí as bases para um projeto concurso público para instrução primária na Vila de
de país mestiçado e racialmente harmônico, em que Guimarães, tornando-se a primeira mulher a con-
o grande e caudaloso rio formado pelas populações quistar o cargo na província. Em 1859, mesmo ano
brancas se uniria a um outro menor, o das populações em que Luiz Gama publicou suas Primeiras trovas bur-
indígenas, e a um outro ainda menor, composto pelos lescas, Firmina trouxe a público Úrsula, o primeiro ro-
negros e negras do país. Como se pode perceber, o mance abolicionista brasileiro de autoria feminina.
caráter harmônico defendido pelo autor não flertava No entanto, Firmina não gravou seu nome no livro,
com ideais de igualdade, mas antes reforçava as hie- assinando apenas como “uma maranhense” – fato
rarquias do projeto colonial. que dificultou posteriormente a atribuição da autoria
Desde os tempos coloniais, o Brasil era reconhecido e, provavelmente, contribuiu para o silêncio que en-
por sua “natureza sem igual”, uma espécie de Éden volveu a trajetória da obra.
tropical habitado por raças e grupos de origens varia- Para Eduardo de Assis Duarte, a autora foi “pres-
das, um paraíso mítico a ser explorado por viajantes, sionada, como todo afrodescendente que ocupa o
naturalistas e cientistas interessados nesse fascinante espaço público e rompe os muros da cidade letrada,
– mas também temido – laboratório natural e racial. a adotar a ‘compostura’ que o crítico Alfredo Bosi
Durante o Segundo Reinado, a construção da vê em certas atitudes de Machado de Assis”. No
imagem da Nação e do Estado também se apoiou prefácio, Firmina apresenta seu “mesquinho e hu-
na natureza exuberante do país e em seus naturais, milde livro” e se declara uma “mulher brasileira” de
com o Brasil sendo representado por indígenas devi- “educação acanhada”, como a pedir desculpas aos
damente estilizados. Já as populações negras foram homens letrados pelo atrevimento de publicar seu
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CAPA

KARINA FREITAS

romance. Eduardo lembra ainda “que uma espessa


cortina de silêncio envolveu a autora ao longo de
mais de um século”.
Mas, apesar do silêncio em torno de sua obra, Firmi-
na teve grande atuação na imprensa local, publicando
poemas e contos, além de enigmas e charadas. Úrsula
obteve também significativa repercussão por parte da
crítica literária maranhense. É importante ressaltar
aqui a forte relevância da imprensa local à época.
Segundo Ricardo Martins, em Breve panorama histórico
da imprensa literária no Maranhão oitocentista, “um fator
muito decisivo para a consolidação da atividade le-
trada no Maranhão foi o jornalismo literário e político
que surgiu, sobretudo em São Luís, decorrente da
intensa atividade tipográfica que ali se instalou em
começos do século XIX (…). Os periódicos maranhen-
ses, que vão desempenhar um papel importante no
desenvolvimento político e cultural da província,
serão representados por jornais e revistas de con-
teúdo partidário ou literário”. Esses periódicos nos
dão testemunho também do aumento da presença
feminina no debate maranhense, desfazendo a ideia
de que somente homens atuaram na consolidação da
cultura letrada no período.
A partir da segunda metade do século XIX, o número
de mulheres com acesso à educação formal cresceu
consideravelmente no país, e refletiu na circulação
de jornais não apenas voltados ao público feminino,
mas organizados, editados e escritos por mulheres.
Vale destacar que, como lembra Ana Flávia Magalhães
Pinto em Imprensa negra no Brasil do século XIX, além dos
periódicos organizados por mulheres, “ao longo do
século XIX, indivíduos e grupos negros letrados cria-
ram espaços na imprensa para tratar dos assuntos que
consideravam importantes e expor suas ideias sobre
os rumos do país”.
Com a Independência, o Maranhão passou a padecer
de problemas semelhantes aos das demais províncias,
com muitos tributos e pouco retorno da corte carioca.
Além disso, a província atravessava um momento de
crise, uma vez que o algodão sofria forte concorrência
no mercado internacional. Assim, trabalhadores livres,
camponeses, vaqueiros, escravizados e profissionais
liberais se uniram em uma revolta popular contra
os grandes proprietários locais. A revolta, batizada Sotero dos Reis. A autora colaborou também com criticada pela ousadia de reunir crianças dos dois sexos
de Balaiada, teve início em 1838. Mas o Império não poemas em diversos jornais locais, entre eles O jardim em um mesmo ambiente.
caiu, e a insurreição foi contida em 1841, deixando um dos maranhenses, em que também publicou, em 1861, o Ainda hoje, a atitude de Firmina talvez soe demasia-
saldo de 12 mil sertanejos e escravizados mortos nos conto indianista Gupeva, dividido em cinco capítulos do subversiva para alguns, uma vez que em julho deste
combates. A experiência de terror vivida na provín- e classificado por ela como “romance brasiliense”. O ano o jornal carioca O Globo publicou uma matéria sobre
cia criou em São Luís esforços coletivos que geraram conto foi republicado em 1863 no jornal Porto Livre e uma escola na Barra da Tijuca que separa meninos e
resultados posteriores. Entre 1830 e 1870, o destaque em 1865 no jornal Eco da juventude. meninas. O argumento? “Meninas, em termos afetivos,
alcançado por intelectuais maranhenses no cenário Em sua 1ª edição, Gupeva foi assim apresentado pelo amadurecem muito antes dos meninos, o que inclui
nacional foi tão grande, que fez com que a província jornal: “Existe em nosso poder, com destino a ser as áreas do cérebro responsáveis pela leitura e pela
conquistasse a alcunha de “Atenas brasileira”. Apesar publicado no nosso jornal um belíssimo e interessante escrita. Já o cérebro masculino nesta fase (por volta
do grande reconhecimento local, Maria Firmina dos ROMANCE, primoroso trabalho da nossa distinta dos seis anos) está pronto para a questão da ciência,
Reis nunca recebeu as mesmas honrarias que seus comprovinciana, a Exma. Sra. D. Maria Firmina dos mas não da escrita”.
conterrâneos homens. Reis, professora pública da Vila de Guimarães; cuja Em 1881, após 34 anos de dedicação, Firmina
Embora alguns críticos maranhenses fossem exa- publicidade tencionamos dar princípio do nº 25 em aposentou-se, mas continuou suas atividades em
geradamente condescendentes com a presença de diante. Garantimos ao público a beleza da obra e Maçaricó, ensinando crianças pobres das fazendas
mulheres no meio literário, descambando em alguns pedimos-lhes a sua benévola atenção. A pena da da redondeza – muitas delas praticamente adotadas
casos para críticas extremamente paternalistas, vale Exma. Sra. D. Maria Firmina dos Reis já é entre nós como filhos de criação.
destacar aqui o texto publicado no Jornal do Comércio, em conhecida; e convém muito aclamá-la a não desistir Em 1887, no auge da campanha abolicionista, Fir-
4 de agosto de 1860, uma vez que este faz uma leitura da empresa encetada. Esperamos, pois, a vista das ra- mina publicou o conto A escrava, na Revista maranhense,
mais nuançada do romance de Firmina: zões expedidas, que nossas súplicas sejam atendidas, centrando a narrativa no drama da personagem Joana,
“OBRA NOVA – com o título ÚRSULA publicou a afiançando que continuaremos no nosso propósito: uma mulher negra e escravizada que narra seus infor-
Sra. Maria Firmina dos Reis um romance nitidamente sempre defendendo o belo e amável sexo – quando túnios, entre eles a perda da razão ao ver seus filhos
impresso que se acha à venda na tipografia Progresso. injustamente for agredido”. serem vendidos como mercadoria. Em 1888, logo após
Convidamos aos nossos leitores a apreciarem essa Embora se tratasse de um conto e não de um roman- a Abolição, Firmina compôs a letra e a música do Hino
obra original maranhense, que, conquanto não seja ce, a forma como Gupeva foi previamente anunciado da libertação dos escravos. Além disso, deixou um diário
perfeita, revela muito talento da autora, e mostra que na publicação traz indícios da grande importância com registros esparsos, publicado postumamente. A
se não lhe faltar animação poderá produzir trabalhos de conquistada pela autora em tão pouco tempo – fazia autora também atuou como folclorista na recolha e na
maior mérito. O estilo fácil e agradável, a sustentação apenas dois anos que Firmina havia publicado Úrsula, preservação de textos da literatura oral.
do enredo e o desfecho natural e impressionador põem sob o pseudônimo “uma maranhense”. Foi também Pobre e cega, Maria Firmina dos Reis faleceu em 1917,
patentes neste belo ensaio dotes que devem ser cui- em 1861 que o jornal A imprensa elogiou os poemas de na cidade de Guimarães, aos 92 anos, em companhia
dadosamente cultivados. É pena que o acanhamento Firmina presentes em Parnaso maranhense: “Os versos de seu filho adotivo Leude Guimarães. Mais tarde,
mui desculpável da novela escrita não desse todo o de Maria Firmina dos Reis indicam uma imaginação Leude se mudou para São Luís e teve seus aposen-
desenvolvimento a algumas cenas tocantes, como as cheia de vivacidade da parte da autora; muita leitura tos assaltados, perdendo boa parte da documentação
da escravidão, que tanto pecam pelo modo abreviado e gosto, e do doce perfume dos sentimentos saídos do pessoal da escritora.
com que são escritas. A não desanimar a autora na coração sem ensaio nem afetação. De há muito que Em 1962, o pesquisador e bibliófilo Horácio de
carreira que tão brilhantemente ensaiou, poderá para todos conhecem os talentos e habilidade da autora de Almeida encontrou por acaso o romance Úrsula, em
o futuro, dar-nos belos volumes”. Úrsula, assim não causaram estranheza as poesias que meio a um lote de livros usados comprados por ele
Mais à frente, trabalharei melhor a questão da es- mandou para o Parnaso”. em um sebo do Rio de Janeiro. Após longa pesquisa,
cravidão e do discurso abolicionista na obra de Maria Seguindo no serviço público enquanto colaborava Horácio obteve a identificação da autora, graças ao
Firmina, mas já adianto que me oponho a visão pre- com a imprensa local, em 1871 a autora publicou o Dicionário de pseudônimos regionais. Assim, tornou-se
sente na crítica do Jornal do Comércio destacada acima. volume de poemas Cantos à beira-mar. Em 1880, aos 55 detentor do único exemplar da primeira edição da
Dois anos depois da publicação de Úrsula, Firmina anos, foi aprovada em primeiro lugar em concurso obra de que se tem notícia.
participou da antologia poética Parnaso maranhense, ao que lhe valeu o título de mestra régia. No mesmo ano, Em 1975, finalmente saiu a edição fac-similar de Úrsula,
lado de outros autores locais, entre eles seu primo fundou a primeira escola gratuita e mista do Maranhão prefaciada por Horácio. No mesmo ano, o historiador
por parte de mãe, o renomado intelectual Francisco – e uma das primeiras do país –, sendo fortemente José Nascimento Morais Filho organizou a publicação
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de Maria Firmina, fragmentos de uma vida. A biografia reunia


também parte de sua produção (poesias, contos e com-
posições musicais), além de depoimentos dos filhos
Maria Firmina é Mas esse fenômeno se evidencia, inclusive, em ou-
tra representação recente, que é o quadro contendo
a pintura do que se imaginou ser o rosto de Maria
de criação e de ex-alunos da escritora. Começou-se,
dessa forma, a romper o silêncio que impediu a cir-
culação e leitura de Úrsula e demais obras de Firmina.
representada como Firmina dos Reis. Afixado na galeria da Câmara Mu-
nicipal de Guimarães (...), o quadro, no entanto, foi
nitidamente baseado no retrato da escritora gaúcha
Em 1988, a pesquisadora Luiza Lobo lançou a 3ª
edição da obra. Em 2004, a Editoras Mulheres e a branca. Trata-se e, nele, como agravante, a representação da supos-
ta Firmina aparece com o tom de pele ainda mais

do mascaramento
Editora PUC Minas publicaram a 4ª edição de Úrsula, embranquecido.” – escreve Rafael em seu artigo A
acrescida do conto A escrava, com atualização do texto dissonante representação pictórica de escritoras negras no Brasil:
após cotejo com o original e posfácio de Eduardo de o caso de Maria Firmina dos Reis.

de uma autora
Assis Duarte, e reeditaram a obra em 2009, quando
se completavam os 150 anos de publicação. ÚRSULA
Neste ano, que marca o centenário da morte da es- A narrativa de Úrsula se constrói a partir de um triân-
critora, a Editora PUC Minas lança a 6ª edição da obra.
Eduardo de Assis Duarte escreveu um novo posfácio,
atualizando o texto de 2004 e trazendo-o para dis-
que enfrentou o gulo amoroso formado pela jovem Úrsula, seu amado
Tancredo e por seu tio, o comendador Fernando P.,
apresentado como uma figura extremamente sádica.
cussões contemporâneas em torno da “razão negra”,
conceito trabalhado pelo filósofo Achille Mbembe, e da
“interseccionalidade entre gênero e etnia”. “Preparei
colonialismo Além de assassinar o pai e abandonar a mãe da prota-
gonista por anos entrevada em uma cama, Fernando é
um perfeito representante do senhor cruel que explora
também uma nova cronologia, bem mais ampla do que a mão de obra escravizada até o limite de suas forças.
a de 2004, situando Firmina no contexto ocidental de Se, no clássico Pele negra, máscaras brancas, Frantz Como uma autêntica romancista de sua época, Fir-
emergência das slaves narratives de fins do século XVIII Fanon falava sobre a violência do projeto colonial mina inicia a obra fazendo odes à paisagem local. “São
a meados do século XIX, quando se desenvolvem as que agia na subjetividade dos negros, fazendo-os vastos e belos os nossos campos; porque inundados
campanhas abolicionistas no Ocidente. E a pesquisa muitas vezes acreditarem em uma suposta inferiori- pelas torrentes do inverno semelham o oceano em
me revelou um fato importantíssimo: Firmina é a dade e buscarem “máscaras brancas”, o que vemos bonançosa calma — branco lençol de espuma, que
primeira autora de romance abolicionista em toda nesse caso é uma imposição literal de mascaramento não ergue marulhadas ondas, nem brame irado, ame-
a língua portuguesa!” (grifo do próprio Eduardo, em em uma autora que não aceitou ser subjugada pelo açando insano quebrar os limites, que lhe marcou a
conversa com o Pernambuco). projeto colonial e produziu uma obra de enfrenta- onipotente mão do rei da criação.”
mento a ele. No entanto, “em uma risonha manhã de agosto”
MÁSCARA BRANCA Segundo Rafael Balseiro Zin, um generoso inter- em que “as flores eram mais belas, em que a vida
É preciso pensarmos também nos motivos que le- locutor para a construção deste texto e autor de uma era mais sedutora”, um jovem se acidenta ao cair do
vam Firmina a ser representada como uma mulher dissertação de mestrado sobre a autora (Maria Firmina cavalo. Logo em seguida, outro jovem desponta ao
branca nas homenagens que vem recebendo nos dos Reis: a trajetória intelectual de uma escritora afrodescen- longe na paisagem: trata-se de Túlio, o único cativo
últimos anos. Segundo Nascimento Morais Filho, dente no Brasil oitocentista), o caso mais emblemático e da decadente propriedade da mãe de Úrsula, e que
“nenhum retrato deixou Maria Firmina dos Reis. recorrente é o uso da ilustração do busto da escritora acaba por salvar a vida de Tancredo.
Mas estão acordes os traços desse retrato falado dos gaúcha Maria Benedita Bormann, que assinava seus “ – Que ventura! – então disse ele, erguendo as
que a conheceram ao andar pela casa dos 85 anos: textos com o pseudônimo Délia. Branca e neta de um mãos ao céu – que ventura podê-lo salvar! (...) O
rosto arredondado, cabelo crespo, grisalho, fino, alemão, Maria Benedita, até onde se pode supor, era homem que assim falava era um pobre rapaz, que
curto, amarrado na altura da nuca; olhos castanho- bastante diferente de Maria Firmina. “O problema ao muito parecia contar vinte e cinco anos, e que na
-escuros; nariz curto e grosso; lábios finos; mãos e é que essa imagem, inadvertidamente, se espraiou franca expressão de sua fisionomia deixava adivi-
pés pequenos, meã (1,58 m, pouco mais ou menos), pelas redes sociais e em demais ambientes e acabou nhar toda a nobreza de um coração bem-formado.
morena”. Como bem sabemos, o termo morena é um ganhando a confiança do público, fazendo com que O sangue africano refervia-lhe nas veias; o mísero
dos muitos eufemismos empregados historicamente a reparação do equívoco seja um tanto difícil de ser ligava-se à odiosa cadeia da escravidão; e embalde
para designar pessoas afrodescendentes. realizada. A origem do mal-entendido não é certa. o sangue ardente que herdara de seus pais, e que
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KARINA FREITAS

o nosso clima e a servidão não puderam resfriar, Além de reforçar a própria condição afrodescen-
embalde – dissemos – se revoltava; porque se lhe dente do texto, a entrada em cena da “velha africa-
erguia como barreira – o poder do forte contra o na” confere maior densidade ao sentido político da
fraco. Ele entanto resignava-se; e se uma lágrima obra. Seu território de origem é mencionado sem
desesperação lhe arrancava, escondia-a no fundo subterfúgios, sobressaindo a condição diaspórica
de sua miséria.” vivida pelas personagens arrancadas de suas terras e
Se na obra a escravidão é tida como “odiosa”, nem famílias para cumprir no exílio a prisão representada
por isso ela endurece a sensibilidade do jovem negro: pela escravidão. É preta Susana quem vai explicar
“E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão a Túlio o sentido da verdadeira liberdade, que não
não lhe embrutecera a alma; porque os sentimen- seria nunca a de um alforriado em um país racista e
tos generosos, que Deus lhe implantou no coração, escravocrata. Ela recorda sua terra natal, a infância,
permaneciam intactos, e puros como a sua alma. o amor de seu homem e a vida feliz que levavam
Era infeliz, mas era virtuoso; e por isso seu coração junto à filha, até o dia em que foi capturada pelos
enterneceu-se em presença da dolorosa cena que “bárbaros” mercadores de seres humanos. Essa voz
se lhe ofereceu à vista (a de Tancredo desmaiado)”. periférica traz para a literatura brasileira um discurso
É possível apontar aqui uma estratégia autoral de demarcado pelo traço ancestral, fortemente recalcado
denúncia e combate ao regime escravocrata sem, pela ideia do paraíso racial brasileiro. Ao apontar os
no entanto, agredir em demasia as convicções dos colonizadores como bárbaros, Susana subverte o
leitores da época. Ao menos nesse primeiro momen- discurso hegemônico e macula a imagem da Europa
to, Túlio pode ser entendido como uma vítima. Ao e de seu processo civilizador. Bárbaros!
contrário dos escravizados rebeldes e degenerados Úrsula traz ainda uma outra figura de escravizado:
presentes em obras do mesmo período, já que seu o que perde a autoestima e se entrega ao vício. Sur-
comportamento é pautado por valores cristãos. No ge a figura decrépita de Pai Antero, sujeito de bom
entanto, tampouco se tratava de condenar a escra- coração, mas dominado pelo alcoolismo. Saudoso
vidão unicamente porque um escravo específico dos costumes de seu país, Antero cumpre uma es-
possuía caráter elevado, mas de condená-la enquanto pécie de contraponto dramático ao caráter elevado
instituição. Em um contexto em que a própria Igreja de Túlio e expõe uma outra faceta da crueldade do
Católica respaldava o sistema escravista, essa conde- projeto colonial – crueldade tão bem trabalhada na
nação é operada partindo do discurso religioso que obra de Frantz Fanon.
afirmava serem todos irmãos.
Ao abrigar o ferido na casa de sua senhora, Túlio
propicia o encontro entre Tancredo e Úrsula, e tem
início a paixão que os leva a um breve momento de
Quantas
felicidade. Mais uma vez, sobressaem o zelo e a dig-
nidade de Túlio, que, como agradecimento, termina
ganhando a alforria, como um sinal de gratidão do
personagens da
homem branco. Um forte elo de amizade passa a
uni-los e o negro torna-se companhia inseparável literatura não
surgem como filhas
de Tancredo. Túlio é a figura do sujeito compassivo,
que respeita a senhora por não tê-lo maltratado e se
julga em dívida com aquele que o libertou.

de Susana? O corpo
Mais à frente, a nova condição de liberto de Túlio é
questionada pela preta Susana, comparando a “liber-
dade” do alforriado à vida que ela levava em sua terra.
É essencial perceber que, embora o plano principal das
ações seja supostamente centrado na história das três
personagens brancas do triângulo amoroso, o texto
da mulher negra
cresce expressivamente na medida em que emergem
os dramas e as histórias das personagens negras. Com
isso, Firmina confere um espaço privilegiado a elas,
narra e abre espaços
para que assumam a narração de suas próprias his- É justamente ao estabelecer essa diferença dis-
tórias, provocando um efeito disruptivo na estrutura cursiva que contrasta em profundidade com o aboli-
do romance e trazendo uma multivocalidade bastante cionismo hegemônico da literatura brasileira de seu
inovadora para época. tempo, que tratava em geral a escravidão como uma
Desse modo, a obra proporciona ao leitor a expe- “ideia fora do lugar” no projeto da modernidade,
riência de adentrar na temática abolicionista pela que Maria Firmina dos Reis constrói um outro lugar
perspectiva dos próprios escravizados, realizando uma para si: o da literatura afro-brasileira. Nesse sentido,
potente inversão dos valores dominantes da sociedade a autoria não se associa apenas à condição racial
escravista. Exatamente por isso é possível afirmar que, da autora, mas ao seu posicionamento político no
mais do que obra de interesse sociológico e historio- interior da obra. É importante frisar que a política
gráfico, Úrsula é um romance que oferece inúmeras em uma análise estética não deve ser procurada em VOZES-MULHERES
possibilidades para acuradas análises de críticos e seu conteúdo óbvio, e tampouco se configura em um Durante o processo de escrita deste texto, pensei
críticas da literatura. mecanismo de instrução de como olhar o mundo e inúmeras vezes em Conceição Evaristo e em seu
Preta Susana era “uma mulher escrava, e negra” transformá-lo. A literatura (e outras manifestações belíssimo poema Vozes-mulheres. Quem acompanha
como Túlio, uma mulher boa e compassiva “que lhe artísticas) não deve ser tomada como uma espécie de o trabalho de Conceição e conhece suas “escre-
serviu de mãe enquanto lhe sorriu” a “idade lison- guia para a ação política, e nem como instrumento vivências”, sabe que em sua obra quase nada é
jeira e feliz”. E Túlio estava diante de Susana “com de conscientização coletiva, mas, como ensina Ran- “verdade”, embora quase nada seja “mentira”. Nas
os braços cruzados sobre o peito. Em seu semblante cière, deve ser tomada como um desenho de novas escrevivências de Evaristo, existe uma memória
transparecia um quê de dor malreprimida”. É então configurações do visível, do dizível e do pensável e, histórica que pulsa, vinga e se vinga. Aqui o verbo
que se inicia um impactante diálogo entre ambos, por isso mesmo, uma paisagem nova do possível. vingar tem mesmo um duplo sentido, já que no
possivelmente o melhor e mais marcante momento A obra de Maria Firmina dos Reis é política por uso corriqueiro o termo ganha também sentido de
do romance. Túlio lhe anuncia que graças à generosa sua alta capacidade de devolver o dissenso e a rup- “realização” ou “sucesso”.
alma do mancebo Tancredo, tornou-se um homem tura, mesmo dentro do debate abolicionista. Assim, No poema, Conceição tece uma cronologia das
livre, “livre como o pássaro, como as águas; livre Firmina é uma autora profundamente política pelo mulheres de sua família, começando por sua bi-
como o éreis na vossa pátria”. As últimas palavras que opera dentro do próprio dispositivo, e não por savó, cuja voz ecoou “nos porões do navio”. Penso
do jovem despertam no coração da velha uma recor- seus usos – mesmo que seja fácil perceber na au- então na preta Susana e em seu relato do cativeiro,
dação extremamente dolorosa. Ela solta um gemido tora um forte desejo de transformação do mundo. que reproduzo mais abaixo. Conceição atravessa
magoado e curva a fronte para a terra, cobrindo os Análises que consideram a literatura apenas como também as experiências de sua avó e de sua mãe,
olhos com ambas as mãos enquanto chora. gatilho para que se encontre a política em outro lugar até chegar a si própria, reconhecendo que a sua voz
“A africana limpou o rosto com as mãos, e um desconsideram elementos estéticos e discursivos “ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue
momento depois exclamou: – Sim, para que estas próprios da linguagem. Firmina reconfigura marcos e fome”. Seu poema também nos conta que a voz
lágrimas? (...) Elas são inúteis, meu Deus; mas é um e opera novos rearranjos no modo como os corpos de sua filha “recolhe todas as nossas vozes (das
tributo de saudade, que não posso deixar de render a negros presentes aparecem e indicam possibili- ancestrais), recolhe em si as vozes mudas caladas
tudo quanto me foi caro! Liberdade! Liberdade... Ali dades de subversões e reinvenções dos modelos engasgadas nas gargantas”. A voz de sua filha “re-
eu a gozei na minha mocidade! – continuou Susana opressores aos quais estão submetidos. Através de colhe em si a fala e o ato”.
com amargura. – Túlio, meu filho, ninguém a gozou um reagenciamento dos signos, a autora rompe com Se as teóricas feministas têm insistido em es-
mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do a ordem natural que destina aos indivíduos negros critas feministas do corpo, atravessadas por uma
que eu (...) Tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! à subserviência, imputando-lhes maneiras de ser, perspectiva parcial capaz de oferecer uma nova
Oh, tudo, tudo até a própria liberdade!” ver ou dizer. visão objetiva, com saberes parciais, localizáveis
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e críticos, apoiados em redes de conexão – como que todo camburão tem algo de navio negreiro. Que filha, e liberdade! Meu Deus, o que se passou no fundo da minha
teoriza Donna Haraway –, sou levado a pensar na essa voz não se transforme em peso ou paralisia, alma, só vós o pudestes avaliar!
corporalidade do poema de Conceição Evaristo, mas que possa gerar falas que a recolham em si e Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infor-
prenhe de subjetividades, dores, intencionalidades produzam atos transformadores. Com a palavra e, túnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta
e até mesmo contaminado por fluídos corporais. portanto, com o corpo, Susana: dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais
Lamentos, obediência, revolta, perplexidade, san- necessário à vida passamos nessa sepultura, até que abordamos
gue, fome, vozes mudas caladas engasgadas nas Vou contar-te o meu cativeiro. às praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão
gargantas. A fala e o ato. fomos amarrados em pé, e, para que não houvesse receio de revolta,
Se Susana é como a bisavó do poema de Con- Tinha chegado o tempo da colheita, e o milho e o inhame e acorrentados como os animais ferozes das nossas matas, que se
ceição Evaristo, quantas personagens não surgem o amendoim eram em abundância nas nossas roças. Era um levam para recreio dos potentados da Europa: davam-nos a água
hoje na literatura brasileira que são como sua filha? destes dias em que a natureza parece entregar-se toda a brandos imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais
Poderíamos até mesmo pensar nas autoras que con- folgares, era uma manhã risonha, e bela, como o rosto de um porca; vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de
quistaram maior espaço nos últimos anos com uma infante, entretanto eu tinha um peso enorme no coração. Sim, ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas
escrita que parte de um “corpo-mulher-negra em eu estava triste, e não sabia a que atribuir minha tristeza. Era a tratem a seus semelhantes assim, e que não lhes doa a consciência
vivência”. Mas, concentrando-me aqui apenas nas primeira vez que me afligia tão incompreensível pesar. Minha de levá-los à sepultura asfixiados e famintos!
personagens criadas por elas, diria que a própria Con- filha sorria-se para mim, era ela gentilzinha, e em sua inocência Muitos não deixavam chegar esse último extremo — davam-
ceição construiu importantes delas em seu Insubmissas semelhava um anjo. Desgraçada de mim! Deixei-a nos braços -se a morte.
lágrimas de mulheres. Em comum, essas personagens de minha mãe, e fui-me à roça colher milho. Ah, nunca mais Nos dois últimos dias não houve mais alimento. Os mais
recolhem em si a fala e o ato. Exatamente por isso, devia eu vê-la. insofridos entraram a vozear. Grande Deus! Da escotilha lan-
não há como não ouvir o eco das vozes-mulheres Ainda não tinha vencido cem braças do caminho, quando çaram sobre nós água e breu fervendo, que escaldou-nos e veio
que vieram antes de todas elas. um assobio, que repercutiu nas matas, me veio orientar acerca dar a morte aos cabeças do motim.
Para que nunca nos esqueçamos quão perversas do perigo eminente que aí me aguardava. E logo dois homens A dor da perda da pátria, dos entes caros, da liberdade fora
foram as estruturas do edifício colonial e os horrores apareceram, e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira sufocada nessa viagem pelo horror constante de tamanhas
imputados pela escravidão, cujo rio caudoloso de — era uma escrava! Foi embalde que supliquei em nome de minha atrocidades.
sangue (herança dos bárbaros colonizadores) segue filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam-se Não sei ainda como resisti — é que Deus quis poupar-me
contaminando cada um de nós, termino este texto das minhas lágrimas, e olhavam- me sem compaixão. Julguei para provar a paciência de sua serva com novos tormentos
com a voz de preta Susana – que ecoa também da voz enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi possível... A sorte que aqui me aguardavam.
de cada uma das mulheres que tiveram seus filhos me reservava ainda longos combates. Quando me arrancaram (...) a dor que tenho no coração, só a morte poderá apagar!
assassinados pelo Estado brasileiro, pois é verdade daqueles lugares, onde tudo me ficava — pátria, esposo, mãe e Meu marido, minha filha, minha terra. Minha liberdade.
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ARTIGO

Sobre a dádiva
ARTE SOBRE REPRODUÇÃO DO FACEBOOK

Para além do interesse pelos livros, pelos tex-


tos, o leitor de poesia costuma ter algum fascínio
por essas figuras humanas que passaram pela vida

que o poeta
colocando-a em palavras. Seres que, de tempos em
tempos, publicam e se dedicam a buscar leitores
para tudo aquilo que, no geral, as pessoas escon-
dem: suas fragilidades, suas paixões, suas derrotas,
seus amores e sonhos impossíveis. Tanto pelo que

nos devolve
dizem quanto pela forma como cuidam anos a
fio de pequenos livros como se fossem – e são –
imensos tesouros, poetas encantam pela espécie
de lição ética que vai contida, em muitos casos, na
dedicação à poesia.
Carlos Felipe Moisés e sua A partida recente e precoce de Carlos Felipe Moi-
sés (1942-2017) – ainda mais para quem, como eu,

poesia refletida, que se teve a honra e o prazer do convívio durante um


bom tempo – colocou diante de seus leitores essa

justifica a contrapelo
constatação de uma falta muito especial. Carlos
Felipe vinha há décadas atuando exemplarmente
no campo minado da poesia e de suas “tarefas au-
xiliares” – a crítica, a teoria, a docência, a tradução,
Tarso de Melo a edição, os eventos, a correspondência etc. – e a
impressão de todos que acompanhavam sua produ-
ção era de que muito mais estava por vir, sempre,
dada a vitalidade das ideias e dos versos recentes.
Mais que isso: minha impressão particular era de
que, neste momento, com sete décadas de vida e
três quartos delas dedicados à poesia, Carlos Felipe
havia chegado a um ponto em que a escrita de po-
esia e a reflexão sobre ela se fundiram num outro
nível: deixando aquela mais leve e forte, deixando
esta mais precisa e clara.
É à luz desta afirmação que pretendo tratar aqui
de Dádiva devolvida: poemas escolhidos (Lumme Editor,
2016), antologia com pouco mais de 100 poemas
que Carlos Felipe organizou um ano antes de falecer,
sacando de todos os seus livros aqueles textos em
que “julga(va) ter acertado a mão”. A obra poética
de Carlos Felipe, antes da antologia, encontrava-se
nos seguintes livros: A poliflauta (1960), O signo e a
aparição (1961), A tarde e o tempo (1964), Carta de marear
(1966), Poemas reunidos (1974, que incluía o inédito
Urna diurna), Círculo imperfeito (1978), Subsolo (1989),
Lição de casa & poemas anteriores (1998, um livro novo
seguido da republicação quase integral de todos
os seus livros até então), Noite nula (2008) e Disjecta
membra (2014).
Quando organizou sua Antologia poética, em 1962,
Drummond afirmou ter olhado para os poemas
que havia produzido, em quatro décadas até então,
principalmente com a preocupação “de localizar, na
obra publicada, certas características, preocupações
e tendências que a condicionam ou definem, em
conjunto”. No intuito de fazer a “arrumação” de
seus poemas, Drummond separou os poemas por
eixos temáticos: o indivíduo, a terra natal, a família,
amigos, o choque social, o conhecimento amoroso,
a própria poesia, exercícios lúdicos e, por fim, “uma
visão, ou tentativa de, da existência”.
Em Dádiva devolvida, Carlos Felipe seguiu o caminho
de Drummond e olhou para sua obra em busca dos Como isso corresponde a uma das facetas do meu
temas recorrentes, separando os poemas em seções modo de ser, não vi mal algum em caminhar por
com os seguintes títulos: Natural, Humores, Rascu- aí, nos primeiros anos. Mas como o meu modo de
nho, Figuras, Animalia & Al, e Inventário. Ao fugir ser compreende outras facetas, a partir de certo
da ordenação cronológica e agrupar os poemas por momento comecei a me esforçar para que outras
tema, como afirmou Antonio Carlos Secchin, “todos formas de vibração, como o humor e a ironia, ti-
os poemas do autor, de certa maneira, se torna(ra) vessem ingresso nos poemas. Mas só consigo ir
m simultâneos”. Dessa forma de “arrumação”, mudando aos poucos. A passagem de uma fase a
portanto, resultou não apenas um livro novo, mas outra, para mim, precisa ser de dentro para fora: eu
também uma renovação do sentido dos poemas não conseguiria mudar radicalmente, para reco-
que conhecíamos em edições anteriores. meçar em outro diapasão. Ao longo das mudanças,
Neste sentido, percebe-se que, nessas antologias, algum lastro deve permanecer, ainda que reduzido
a releitura que o poeta faz de sua própria obra em ao mínimo essencial. Só espero que esse lastro não
busca dos temas que unem poemas escritos em desapareça antes de chegar ao mínimo” (publicada
momentos diferentes de suas vidas atua não só em parte no blog Jaguadarte, em janeiro de 2005 e,
como uma chave de interpretação, mas também na íntegra, como posfácio de Noite nula).
para criar laços novos entre as fases e facetas que Esse poeta que busca sua voz, a cada fase, “de
os livros vinham revelando até então. Em Carlos dentro para fora”, que afina as notas novas no diapa-
Felipe, cada fase nova, cada nova volta que sua voz são construído pacientemente por décadas, é aquele
dava, vinha sempre a partir das tensões que a fase que vai voltar para sua obra, visando à antologia,
anterior sugeria, como se o motor da criação fosse certamente com o ouvido atento para os momentos
a reflexão sobre si mesma. em que essa conversa consigo mesmo se deu de
Na grande entrevista que deu ao poeta Ricardo modo mais intenso, mais vivo.
Aleixo anos antes, Carlos Felipe se referia a isso: Na entrevista citada, Carlos Felipe já destaca-
“a dificuldade que tem sido contrariar minha pro- va, de sua obra até então, “Mário de Andrade em
pensão, que vem de longe, para o mais derramado, San Francisco” e “Mais um dia” como poemas que
para o sentimental. [...] Na fase inicial, em razão das “registram, com fidelidade, o meu sentimento das
influências recebidas na adolescência, eu achava coisas”. De certo modo, a voz desses poemas, ambos
que poesia só era compatível com austeridade. pertencentes a seu livro de 1989, Subsolo, parece
19
PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017

períodos), arrastando o paulistaníssimo Mario de


Andrade pelas espirais do tempo-espaço da poesia
e da vida, com o assombro do desenraizamento,
como na seguinte passagem:

[...] : como teu coração paulistano, Mário,


que um dia você enterrou no Pátio do Colégio
e ali estava, quente e vivo,
entre as ruínas da O’Farrell quase esquina com a
Market,
dedilhando um blues sem esperança
: como tua língua,
que você um dia guardou no alto do Ipiranga,
para cantar a liberdade (saudade)
mas esta já não foi possível encontrar mais, não.
Por isso também nos perdemos e nos achamos
– comoção de nossas vidas! [...]

É este poeta, entre a paixão paulistana e a vivência


do estrangeiro, entre a força do modernismo luso-
-brasileiro (Pessoa pesava-lhe tanto quanto Mário) e
a poesia incendiária dos beats, que vai olhar em 2016
para o conjunto de sua obra e sacar dali vários poemas
que, em níveis diferentes de elaboração, demonstram
como sua voz desde sempre resultou das tensões que o
levaram e mantiveram dedicado à poesia por décadas.
Num belo artigo sobre Noite nula, Reynaldo Damazio
arrisca definir o combustível da aventura poética de
Carlos Felipe: “No íntimo de toda reflexão residem
indagações que dizem respeito ao sentido do poéti-
co como possibilidade de entendimento do mundo;
de construção da identidade a partir de novos pa-
râmetros (dialógicos, lúdicos, éticos); de revelação
do inesperado, do renovador, nas estruturas calcifi-
cadas do cotidiano; da rebelião permanente contra
os esquematismos, as burocracias de toda ordem,
que tentam aprisionar a liberdade criativa de ideias e
comportamentos em papéis pré-estabelecidos num
teatro de horrores” (publicado na revista Poesia Sempre,
nº 32, ano 16, 2009).
Não é por acaso, neste sentido, que Carlos Felipe
destacou sua predileção também por Mais um dia, outro
poema longo, com versos mais curtos e ritmo mais
tenso, mas com o mesmo tom revolto contra a rotina
que marca sua busca por uma vida-poesia que faça
sentido, que se incendeie, que seja digna das forças
que carrega:

[...] um novo dia igual


aos dez mil novecentos e cinquenta
já percorridos,
gastos à mesa dos bares,
a acumular nas retinas
a imagem velha dos insetos
que roem a carcaça do dia,
jogada na calçada
[...]
Dez mil
novecentos e cinquenta dias
consumidos à distância,
ter, de fato, sido a (auto)influência mais forte para
a poesia que Carlos Felipe escreveu dali em diante
e, também, para as escolhas que fez ao reler toda
Os trabalhos de no silêncio do quarto
onde rodopia
há trinta anos
sua poesia para pensar e montar Dádiva devolvida.
José Paulo Paes, ao resenhar Subsolo, viu que ali es-
tava um poeta que revirava a si próprio, que atacava,
Carlos Felipe estão a mesma velha inútil melodia.
[...]
a gota perdida
sem dó, seus próprios flancos: “Posto assim entre a
poliflauta da juventude e a monoflauta da madureza, entre o modernismo do ódio por tudo
e por nada : ódio

luso-brasileiro e
entre a negação e a afirmação de si, entre a perda só afago, inofensivo,
de viver e o ganho de sonhar, entre o desencanto guardado no fogo
de tantos dias e o encanto de mais um dia, Subsolo brando em que me consumo

os beats, entre a
assume o oxímoro ou paradoxo da vida sob o signo há dez mil
do sempre recomeço, que é, de resto, o próprio signo novecentos e cinquenta dias. [...]
da poesia” (Folha de S.Paulo, 16/12/1989).
Mário de Andrade em San Francisco talvez seja o poema
mais emblemático do acerto de José Paulo Paes
quanto à obra de Carlos Felipe, por reunir num giro
paixão por SP e a Num dos aforismos sobre poesia incluídos em Disjecta
membra, Carlos Felipe anota: “Um tempo ou uma cul-
tura francamente favoráveis à poesia? Então a poesia
colossal as principais referências de sua formação
literária e existencial. A começar por Mario de An-
drade, poeta de sua predileção, que é levado para
vida no exterior já não será necessária, não fará falta alguma.” Essa
ideia de que a poesia somente se justifica a contrapelo,
em atrito com seu tempo e com a cultura em que se
uma jornada em que encontra Allen Ginsberg, Le- poesia, mas igualmente forjado pelas flexões da insere, talvez ajude a entender suas escolhas e, de
adbelly e Sosígenes Costa. E Ginsberg aparece não contracultura na poesia brasileira dos anos 1960, alguma maneira, a atravessar a formidável coleção de
apenas nominalmente, mas também na própria vai a San Francisco em busca de uma São Paulo “na poemas de Dádiva devolvida. E não se deve concluir daí
forma como a imaginação do poema se espraia. voz de Mário, teu poeta”, fazendo fundir, nos versos que a poesia se rende, inútil, ou se compraz em viver
Dedicado a Roberto Piva e Claudio Willer, desde aí livres, a geografia da cidade norte-americana à da em ambiente desfavorável. Pelo contrário, justamente
já se colocam alguns indícios do desafio que Carlos capital paulista. porque a vida segue soterrada sob os milhares de dias,
Felipe enfrenta no poema: um leitor dos mais de- O resultado desse “sono em delírio” é um poema que são apenas “mais um”, é que a poesia deve existir,
dicados de Mário de Andrade, que o tem também cosmopolita como, de fato, era a figura de Carlos Felipe insistir, persistir. Carlos Felipe, como poucos, soube
como grande influência nas fases iniciais de sua (que viveu nos EUA e na Europa durante diversos mostrar como se faz.
20
PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017

TRADUÇÃO

Cosmopolitismo
CREATIVE COMMONS

e as questões
que o cercam
Trecho da introdução de
Cosmopolitanism, recém-
lançado pela NYU Press
Texto: Bruce Robbins e Paulo Lemos Horta
Tradução: Maria Carolina Morais

De onde você é? A palavra “cosmopolita” foi usada As definições recentes podem tender mais aos
pela primeira vez como uma forma de escapar exa- impulsos positivo ou negativo, mas em geral são
tamente dessa pergunta, cujas entrelinhas podem consensuais em algum nível de síntese: o cosmo-
ser confrontadoras e até perigosas. Quando Dióge- politismo seria um comprometimento com o bem
nes, o Cínico, se autointitulou um “kosmo-polites”, dos seres humanos como um todo, que supera
ou cidadão do mundo, estava optando por não todos os laços menores e cria uma indiferença
dizer que ele era de Sinope, distante colônia grega permanente em relação aos valores da localidade.
no Mar Negro, da qual fora banido sob alegação de Em vez de normativo, esse “novo cosmopolitismo”
fraude das moedas locais, como o autor da pergunta é plural e descritivo. Assim, ele descreve um dos
talvez soubesse. muitos modos possíveis de vida, pensamento, e
O entendimento singular, normativo e mais an- sensibilidade produzidos quando os compromissos
tigo do termo tende a gerar uma história relativa- e lealdades são múltiplos e sobrepostos, e nenhum
mente esquemática e linear: origens humildes nos deles necessariamente prevalece sobre os outros.
antigos Cinismo e Estoicismo, quando o mundo não Tal cosmopolitismo é muitas vezes atrelado ao
era tão fortemente entrelaçado à realidade quanto aparecimento da ética kantiana, que rejeita a sim-
estava começando a ser ao pensamento; o amadu- ples obediência à doutrina e envia a imaginação
recimento moderno no humanismo do Renasci- moral em uma longa, exaustiva, e, talvez, inter-
mento e do Iluminismo; uma interrupção no século minável jornada em direção a outros invisíveis.
XIX, quando o nacionalismo imperial tornou-se Ao menos para seus adeptos, a conquista determi-
predominante; depois, o pleno florescimento nos nante do cosmopolitismo empático em sua forma
séculos XX e XXI, quando a real interconexão dos iluminista-humanitária é a abolição do tráfico de
povos do mundo traz consigo, pela primeira vez, escravos, no século XIX.
a possibilidade de o ideal tornar-se realidade em Essa paulatina transição do cosmopolitismo no
algum tipo de comunidade mundial. singular para “cosmopolitismos” no plural, significa
No entanto, vale ressaltar que, desde seu mo- que sociólogos, críticos culturais, e historiadores
mento fundador, o cosmopolitismo já era plural. podem reivindicar a posse de um conceito que
Qualquer versão dada demonstraria uma mistura parecera pertencer em grande medida a filósofos e
nítida entre dois impulsos, negativo e positivo. O teóricos da política. E, acima de tudo, isso significa
impulso negativo afirma a indiferença em relação que, em vez de ser a prerrogativa de algumas figu-
ao lugar de origem ou residência de alguém, uma ras históricas como Diógenes, o cosmopolitismo
rejeição da jurisdição das autoridades locais, um passou a ser visto como característica e domínio de
excluir-se de convenções, preconceitos, obriga- numerosas coletividades sociais, que em geral não
ções. O impulso positivo afirma a participação de pertencem às elites e sobre as quais o cosmopoli-
alguma coletividade maior, mais envolvente ou tismo foi impingido por meio de histórias traumá-
poderosa. Talvez, inevitavelmente, o cosmopoli- ticas de deslocamento e desapropriação. Tornou-se
tismo tenha sido, ou pelo menos aparentado ser, possível falar, na ressonante expressão de Silviano
um distintivo de privilégio. Santiago, do “cosmopolitismo do pobre”.
21
PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017

Por outro ângulo, pode-se também considerar a


origem alternativa e não comercial para o cosmo-
politismo moderno oferecida por Walter Mignolo.
Se fosse possível dispensar as raízes seculares do
cosmopolitismo, então os debates teológicos na
Espanha do século XVI sobre o status dos indíge-
nas do Novo Mundo seriam um ponto anterior de
surgimento em relação a Kant e ao Iluminismo do
norte da Europa – anterior e, também, melhor,
pois, de acordo com Mignolo, a defesa dos povos
indígenas nas Américas recebeu uma audiência
mais elaborada e solidária na Espanha do que na
Alemanha de Kant.
Diante disso, parece mesmo plausível que o re-
conhecimento básico das lealdades divididas entre
o local e o translocal comece com o advento do
monoteísmo, ou seja, fortemente estimulado por
ele. Em vez de “eu tenho meu Deus e você tem o
seu”, significando que eu não tenho obrigação de
tratar você e os seus como trato a mim mesmo e
aos meus, a premissa seria que, uma vez que há um
Deus para todos, a mesma lei moral também deve
ser aplicada a todos. Ao menos em tese, tornar-
-se-ia, portanto, menos aceitável dar preferência
a compatriotas e conferir a estrangeiros um trata-
mento inferior ao padrão de conduta.
Na prática, entretanto, a fé monoteísta não tem
sido uma fonte confiável de comportamento cos-
mopolita, tampouco serve como garantia do status
cosmopolita. Se tanto antissemitas quanto filosse-
mitas em geral tomaram o cosmopolitismo como
uma palavra-código para Judeu, o termo não foi
muito aplicado aos muçulmanos - a exemplo dos
residentes muçulmanos na União Europeia, que
provavelmente oferecem uma melhor ilustração
do cosmopolitismo como afiliação múltipla e so-
breposta do que a diáspora judia. Isso sugere que o
uso da palavra permanece sob o controle residual
de um humanismo secular que tem sido mais vela-
damente particularista – isto é, judeu-cristão – do
que aparenta.
Muitos afirmariam, por outro lado, que os direi-
tos humanos se tornaram a versão dominante do
cosmopolitismo, a qual, desde a Segunda Guerra
Mundial, tem arrebatado os corações e mentes da
maioria e se tornado, efetivamente, uma religião
secular. Nesse caso, ela estaria vulnerável à acusa-
ção de não ser nada mais que liberalismo ocidental,
comercializado para exportação. Os verdadeiros
portadores de direitos sempre parecem ser indiví-
duos, não coletividades. Assim, o cosmopolitismo
afunda novamente na ética. Ele não consegue criar
Hoje, em vez de uma abstração ética debilmente
franzina, o termo carrega muitas particularidades
viçosas e robustas. E, no entanto, o triunfo do plural
As perguntas se a justiça global econômica e política que nos ajuda
a imaginar, o que depende necessariamente da
ação de coletividades e, certamente, demanda a
descritivo sobre o singular normativo abre tantas
perguntas quanto respostas. Em primeiro lugar, ele
nos obriga a perguntar o quê, ou quanto, essas va-
impõem. Uma delas: preferência de membros sobre não membros.
Apesar da ambiguidade que o termo em si car-
rega, e de suas interpretações conflitantes, algo, no
riantes têm em comum. A segunda, e mais urgente,
pergunta, em especial à medida que avançamos no se alguém passa a entanto, parece claro: em termos gerais, o cosmo-
politismo hoje está identificado com a ideologia

ser cosmopolita ao
século XXI, diz respeito a quanto do velho sentido dos Grandes Poderes, e, de tal modo, que passou a
normativo do conceito é preservado ou transfor- sugerir uma desculpa para as antiquadas interven-
mado por essas particularidades empíricas. O que ções militares, agora disfarçadas nas vestes de um

se tornar refugiado,
exatamente as torna interessantes, ou importantes? desinteresse humanitário. No livro Cosmopolitanism
Sociólogos e etnógrafos, atraídos pelo conceito em and the geograpgies of freedom (2009, p. 84), David
sua nova aparência plural, geralmente continuam Harvey expressa sua preocupação com a possibili-
a usá-lo como um termo elogioso, reivindicando
para seus sujeitos diversos, híbridos e diaspóricos,
algo como a honra que o conceito singular, norma-
o que há para se dade de o cosmopolitismo tornar-se “uma máscara
ética para práticas neoliberais hegemônicas de
dominação de classe e imperialismo financeiro e
tivo e filosófico deveria lhes conceder. Contudo,
no novo contexto, essa honra já não está acima de
qualquer suspeita. À medida que é pluralizado e
comemorar? militar”. No entanto, Harvey continua a falar em
nome de um cosmopolitismo melhor, um que
escolha rejeitar tal beligerância bem-intencionada,
democratizado, tornando-se uma parte maior do tismos no plural podem exigir histórias plurais, e considerando-a uma distorção.
status quo, o cosmopolitismo não pode mais servir que o cenário dessas histórias nem sempre será a Será que isso significa que o conceito de cos-
tão confortavelmente como critério de julgamento Europa. Surge, portanto, a pergunta: será mesmo mopolitismo não se sustenta como ideia única?
desse mesmo status quo. Se alguém passa a ser um concebível uma história única do cosmopolitismo Não necessariamente. Também é discutível que
cosmopolita ao se tornar refugiado ou migrante que permaneça responsável por tanta diversidade? o cosmopolitismo propriamente dito seja a ideia
econômico, o que há para se comemorar nisso? Se Na verdade, nunca houve um cosmopolitismo que abre espaço para essas concepções variadas e
o status quo é nacionalista, então, os cosmopolitas que não contivesse um colonialismo à espreita nas sobrepostas, forçado pelo imperativo da inclusivi-
podem ser nacionalistas também. Nesse caso, ainda redondezas. Sinope era uma colônia, e ela gerou dade a mudar suas próprias regras. Em vez disso,
estaríamos falando da mesma ideia? suas próprias colônias. Vários séculos depois, o podemos falar de cosmopolitismos imperfeitos
Uma análise mais severa e, talvez, mais dialé- Cinismo de Diógenes era uma influência para os e insistir que, mesmo enquanto buscamos des-
tica, teria de reconhecer que, juntamente com a estoicos, que popularizaram o cosmopolitismo crever suas formas e espaços de fato existentes,
natureza, a razão, o secularismo, e a humanidade, sobremaneira durante o Império Romano e o tor- o cosmopolitismo continua a ser uma corajosa
a lista de autoridades que promoveram o cosmo- naram a filosofia explícita de um de seus impe- aspiração para nós.
politismo também inclui o colonialismo, Deus, o radores, Marco Aurélio. Para Hegel, o Estoicismo
livre mercado, e experiências coletivas de lealdade era a filosofia exemplar da escravidão: ensinava às A obra, organizada pelos autores deste texto e publicada
dividida que podem não ser favoráveis à distância pessoas a se sentirem livres em suas mentes sem pela New York University Press, traz artigos de diversos
crítica. Ela teria de reconhecer que os cosmopoli- obrigá-las a emancipar seus corpos. pesquisadores sobre o tema exposto.
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23
PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017

José
CASTELLO ARTE SOBRE IMAGENS DE DIVULGAÇÃO

Viagem ao presente
O leitor S. M. me escreve para reclamar da Sem ter para onde ir, pede abrigo em um miragem de Harmada. Como já sabem os
tristeza que expresso em minha coluna deste asilo para mendigos. Lá passará vários anos leitores do romance, depois há uma fuga, e
Pernambuco no mês passado. “A vida já está de sua vida, tentando recuperar os restos do por fim a chegada à capital onde ele se torna,
difícil. O senhor escreve para me afundar passado de ator, representando como pode até mesmo, um diretor teatral de sucesso.
ainda mais?”, ele se queixa. Tratei de reler o para os tristes hóspedes que o acompanham. Nada disso resolve: novos ideais precisam
que escrevi. Não posso negar: em A prostração de Em meio ao desalento, aos poucos, um ser tramados para que, mesmo em Harmada,
Kafka, despejo boa parte do desalento que a lei- ideal se forma em sua mente: chegar a o presente se torne suportável. De repente,
tura dos diários do escritor checo provoca em Harmada, a capital. Não consegue imagi- ele se vê sozinho de novo. “E não havia mais
mim. Tampouco pretendo esconder a imensa nar muito bem o que faria ao chegar a seu ninguém por perto, eu acabara só, no meio
desilusão que sinto com os rumos nefastos destino, mas é isso: precisa de um destino, da intempérie”. Posso dizer de outra forma:
tomados pelo país desde a derrubada da pre- um norte, para seguir em frente e suportar acaba sozinho em meio a seu sonho.
sidente Dilma Rousseff. Não nego nada disso, o presente. Harmada é esse norte. Não se Ao amigo Bruce, que o segue pelas ruas
mas não posso aceitar tudo o que o atento S. trata, portanto, de uma utopia, do sonho de de Harmada – que o persegue na busca de
M. me diz. Por exemplo: “O senhor parece um estado ideal, ou uma chegada ao Paraíso. seu ideal -, ele diz: “Você resolveu me seguir
não acreditar mais em nada. Se não acredita Não idealiza Harmada, não a vê como uma para ver aonde é que eu ia, e acabou desco-
mais em nada, por que ainda escreve?” – ele salvação, só quer mirá-la. Sabe que tudo o brindo que eu não ia a lugar nenhum”. Será
me pergunta, sem disfarçar o rancor. que tem é o presente. “Eu já não poderia esse o fracasso da esperança? Ou apenas a
Não é isso, não é bem assim. Constato a viver sem o apoio daqueles velhos, pelo me- constatação de que, de esperança em espe-
imensa tristeza de Kafka, mas nem por isso, nos sem aquilo que me vinha deles, aquilo rança, é preciso tramar sempre um destino?
ou melhor, por isso mesmo, ele nos legou que estava a vir agora, ali, aquilo que eu não Não é que o presente mude magicamente
uma obra ímpar. Também não é porque es- saberia que nome dar.” – e é talvez aqui que meu leitor S. M. se
tou desanimado com a realidade atual que Longe de se oferecer como uma solução, equivoque. Não é que mude: não muda, e
perdi a esperança. Mas, como fazer meu ou uma promessa de felicidade, o ideal tem é isso que o personagem de Noll descobre
leitor entender? Como levá-lo a ver que, se uma função anterior e mais importante: ele em sua viagem. Isso não quer dizer que ele
expressamos um desânimo, isso não quer ajuda a sustentar o presente que, no fim não precise do ideal para se mexer, para
dizer que desistimos da vida? Talvez seja das contas, é onde sempre estamos. Mais sobreviver, para saber onde está. Para sus-
bem o contrário: para acreditar é preciso de- jovem hóspede do asilo, o protagonista de tentar seu papel de homem e representar a
limitar. Para vislumbrar um futuro, é preciso, Noll ajuda a salvar seus companheiros no si mesmo. Aos poucos, de fato, ele se sente
primeiro, não escamotear os amargores do presente também: contando e interpretando em um palco de teatro. A vida não passa de
presente. Fiquei pensando numa maneira de histórias que preenchem o seu vazio. Eles uma “armação”, mas ela só se sustenta se
explicar isso a S. M. até que decidi reler Har- se deixam levar, “envolvidos com aqueles conseguimos olhar para frente.
mada, um dos grandes livros de João Gilberto mesmos interesses que as minhas histórias No apartamento que resolve alugar – que
Noll, de 1993. Ao abri-lo, encontrei uma pareciam escavar, germinando-os uns aos dá para a horta de um convento de freiras
anotação antiga, que fiz durante a primeira outros, e retirando-os assim das rondas pelas –, de repente, acha que vê um menino. Um
leitura, ainda nos anos 1990. Digo assim: ruas, como solitários, avulsos, mendigos”. garoto mudo. “Quem é esse menino? (...) O
“Um livro sobre a fragilidade dos fatos. Mas As histórias que conta ainda não são Har- que farei com ele?” O menino talvez seja o
também sobre como essa fragilidade abre mada; o asilo ainda não é Harmada; mas, futuro, que, no entanto, só existe no presente
uma chance para a esperança”. Eis aí, talvez, potencializados pelo ideal, eles conferem também. “Não havia mais o canto na capela.
o que preciso dizer a meu leitor. um sentido ao real. Não havia mais a horta. Nem a noite. Não
O protagonista de Harmada vive em um Para isso – e aqui volto às reclamações de havia quase nada.” Enfim, já na penúltima
mundo destroçado. Desde as primeiras pá- meu leitor S. M. – é preciso partir do mui- página do livro, ele se dá um nome: Pedro
ginas do romance, ele se pergunta se habita to pouco e, sobretudo, dos dias miseráveis Harmada. Ainda detido em seu tempo, sem
mesmo uma realidade construída por fatos, em que vivemos. É preciso não negar esse negar o vazio que o cerca, ele agora incorpora
ou se tudo não passa “de um breve colapso presente. Foi só porque escavou fundo a a esperança. Talvez tenha sido isso o que
entre a aparência e o íntimo das coisas”. própria tristeza, só porque não abdicou dela S. M., meu leitor, não compreendeu: que
Vagueia pela vida, em estado de tontura. Em e até a aprofundou, que Kafka nos deixou ao falar da tristeza e da ruína, ao suportar
seu caminho, cruza ora com velhos conhe- seus extraordinários relatos. É só porque se (imitando Kafka) o presente intolerável, é
cidos, ora com estranhos, mas não importa: atém à própria miséria, só porque se asila e, um lugar para o futuro e para esperança
“Eu não precisaria mais do que um pálido assim, aceita seus limites deploráveis, que que tento traçar. Tudo muito precário, tudo
convite para segui-los como um pobre cão”. o personagem de Noll chega a sustentar a insuficiente, mas ainda assim vivo.
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MARIA JÚLIA MOREIRA

INÉDITOS
Aglaja Veteranyi
Nota e traduções de Fabiana Macchi

CONTEXTO os chamados Gastarbeiter – normalmente traduzido


Literatura versus nacionalidade definitivamente não como “trabalhador convidado”, mas que também
parece ser uma questão relevante para a literatura. pode ser “trabalhador-hóspede”, ou seja, que teria
Talvez seja para as nações, a depender do grau de um período de permanência definido. O escritor
notoriedade que um autor atinge. O lugar de onde suíço Max Frisch resumiu muito bem: “– Cha-
se fala é, sim, relevante, mesmo que esse lugar mamos mão de obra, vieram seres humanos”. E
seja um lugar nenhum, um reduto objetivamente alguns desses seres humanos passaram a escrever
inexistente em uma geografia não especificada, mas literatura em língua alemã. Salve!
ainda assim marcado como ausência. A língua que A história dessa literatura “intercultural” é
se escolhe para escrever, ou em que, sem escolha, riquíssima, e o perfil de seus autores é diverso.
se escreve, também é relevante, pois é com a tra- Simplificando muito, pode-se dizer que, inicial-
dição da literatura daquele idioma que cada obra mente, eram trabalhadores que escreviam, depois
dialogará. Não exclusivamente, é claro. refugiados políticos e econômicos, os filhos dos
Pois bem, a literatura alemã – ou literatura de primeiros, os filhos dos segundos, representantes
língua alemã, como prefiro diferenciar, por não de outras ondas migratórias – como, por exemplo
estar vinculada a apenas um território –, já havia a que ocorreu durante a guerra civil iugoslava, nos
recebido muitas e marcantes influências externas ao anos 1990 – e, finalmente, os filhos da globalização.
longo dos séculos, através de traduções e influências Os temas evoluíram de questionamentos sobre o
da literatura da antiguidade, das literaturas de língua desterro, sobre diferenças culturais e dificuldades
inglesa, francesa e italiana, para mencionar as mais de adaptação à nova cultura até a busca de uma
evidentes. Mas a Segunda Guerra Mundial deixaria identidade. A denominação dessa literatura também
outras marcas até hoje perceptíveis na literatura de gerou controvérsias ao longo dessas décadas, tendo
língua alemã, por ter sido a causa de um processo sido chamada de Gastarbeiterliteratur, literatura dos
SOBRE OS POEMAS acentuado de internacionalização dessa literatura. trabalhadores-hóspedes, Migrantenliteratur, literatura
E uma internacionalização que ocorreu de várias de imigrantes, passando por “literatura multicultu-
Agradecemos à Random formas, de dentro para fora e de fora para dentro. ral”, “literatura intercultural” etc. Em comum, esses
House a cessão de 3 Menciono aqui apenas dois fenômenos. Em pri- autores têm a experiência de vida em duas culturas
poemas: A casa, (em meiro lugar, o exílio de autores de língua alemã, e duas línguas diversas e a consequente liberdade
Aglaja Veteranyi, Warum principalmente alemães e austríacos, fazendo com das tradições socioculturais e da tradição literária
das Kind in der Polenta que boa parte da produção literária a partir do início dos dois países em questão. Independentemente
kocht; 1999, Deutsche da década de 1930 fosse interrompida ou ficasse da denominação controversa, porém, o final é feliz.
Verlags-Anstalt, München, espalhada por diversos países, sem publicação ou, Muito feliz, aliás: Herta Müller, uma escritora rome-
in der Verlagsgruppe inclusive, escrita em outras línguas. Vários autores na de expressão alemã, recebeu o prêmio Nobel de
Random House GmBH), passaram a escrever na língua do seu país de exílio literatura em 2009, caso queiramos medir o “final
Stursa Bulandra e ou sob novas óticas adquiridas na sua experiência feliz” através do enorme sucesso institucional que
Rosmarie (em Aglaja no estrangeiro. um prêmio Nobel representa.
Veteranyi, Vom geraumten O segundo fenômeno a que me refiro teria início Diria, entretanto, que, felizmente, não há um
Meer, den gemienten na Alemanha da década de 1950, quando o país final. Muitos notáveis representantes da literatura
Socken und Frau Butter; passava por um processo de reconstrução após contemporânea de expressão alemã não cresceram
2004, Deutsche Verlags- a destruição causada pela Segunda Guerra. Data falando alemão. Aglaja Veteranyi – lê-se “Agláia
Anstalt, München, in der dessa época a chegada maciça (chamados pelo Veterâni” – foi uma dessas autoras.
Verlagsgruppe Random governo alemão através de acordos bilaterais com Hoje, no mesmo grupo, também estão a ucraniana
House GmBH) os respectivos países) de trabalhadores italianos, Katja Petrowskaja e o escritor Saša Stanišić, da Bósnia,
espanhóis, gregos, turcos, iugoslavos e portugueses, para mencionar apenas dois autores que surgiram
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PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017

recentemente no cenário literário de língua alemã


e que já estão traduzidos para o português. Para falar de aço”, a acrobata que ficava pendurada pelos cabelos
na cúpula do circo fazendo piruetas. Em 1967, a famí-
lia fugiu da ditadura de Nicolae Ceaucescu, e Aglaja
ESCRITA
Em seus poemas, ou mininarrativas, como ela
os chamava, Aglaja nos apresenta personagens
Aglaja, é preciso passou a infância viajando pelo mundo com o circo,
morando em trailers e, mais tarde, se apresentando – ela
mesma – com o circo pela Europa, África e América
anônimos, que ela chama simplesmente de “a
mulher”, “o homem”, “a mãe”, “a menina”. Po- ver o contexto Latina. O que poderia parecer leve e lúdico, revela-se
cruel e implacável. O desterro e o desamparo ficariam

social que permitiu


rém, ao contrário do que a denominação possa profundamente impressos em sua alma e na de seus
sugerir, esses personagens não são caricaturas. personagens.
Não há muita interação entre eles, é verdade. Eles A partir dos 15 anos, Aglaja passa a viver em um

o surgimento de
existem na vida uns dos outros como função, às internato na Suíça, onde adquire a sua “língua-ma-
vezes como mágoa, sem encontros reais. A família drasta”, o alemão. Mais tarde, em Zurique, forma-se
aparece destruída, dilacerada. Cada ser permane- em teatro, trabalha como atriz, diretora e professora
ce um solitário, com sua desorientação e dores,
invisível para os outros e para a sociedade. Mas
ainda assim há alguma devoção e delicadeza nas
uma literatura de artes dramáticas. Escreve peças e, durante 11anos,
dirige uma importante escola de teatro na Suíça. Muito
ativa no meio cultural, ela funda em 1993 um grupo
relações, embora a melancolia, por vezes quase
uma morbidez, esteja sempre presente. É como se
a solidão fosse tão grande, que tornasse necessário
“intercultural” de literatura experimental chamado Die Wortpumpe
(em português: “A Bomba de Palavras”. Não o artefato
explosivo, mas daquelas bombas de ar ou de água)
inventar um objeto de amor e dedicação. E nesse no próprio desamparo que esses personagens vivem e, em 1996, o grupo de teatro Die Engelmaschine (A
esforço por afeto, por uma vida normal – levar as e nutrem alguma esperança. Máquina de Anjos).
compotas e as roupas da estação que termina para A linguagem é simples, as frases são curtas. Ela Em 1999, lança o seu primeiro romance (Warum
o porão, preparar uma canja, cantar para o filho usa expressões idiomáticas levemente alteradas. das kind in der polenta kocht, - Por que a criança cozinha na
dormir e olhar a lua – reside a humanidade e a A concisão da linguagem é como se fosse um in- polenta, São Paulo: DBA, 2004) e único livro que ela
beleza desses cenários. ventário do que resta na vida dessas pessoas. Para lançaria em vida. Esse livro recebeu vários prêmios
Um certo tom de fábula aparece através da sinta- a escassez de possibilidades, para a esterilidade do literários na Suíça e na Alemanha, transformando-se
xe e do uso de imagens, como meninas que enve- mundo, resta um mundo interior, resta um certo em sucesso de público e de crítica. Sua linguagem,
lhecem e fatos que aconteceram em tempos muito humor que o absurdo pode causar. Uma linguagem aparentemente lúdica e ingênua, contrasta com um
remotos. Há sonhos que não se realizam, mas há quase infantil, mas densa, sem permitir que o leitor olhar rigoroso, que procura revelar o absurdo e as
sonhos. E, no meio da desesperança, há um tom se distancie. E quase sempre dói. Mas há uma lua contradições do cotidiano. Aglaja citava Beckett e
de esperança nas pequenas janelas – varandas – de que aguarda e dança. E ela dança para nós. Ionesco como autores que a inspiraram. E, pesso-
onde se vê a lua e onde ela cria uma poeticidade almente, ela me disse ter sido influenciada e enco-
triste, mas bela. Aglaja não se utiliza desses perso- VIDA rajada também por Herta Müller.
nagens, não se distancia deles. E essa empatia, esse Aglaja Veteranyi, nascida em Bucareste, na Romênia O romance foi adaptado por ela própria para o teatro
afeto da autora acompanham e conduzem o leitor em 1962, tornou-se nos anos 1990 um dos expoentes e traduzido para várias línguas. No Brasil, a versão
através dessa poesia um tanto estranha, declara- de uma literatura jovem e irreverente de língua alemã portuguesa também recebeu adaptação e montagem
damente influenciada pela literatura do absurdo. e teve seus prosa-poemas largamente publicados em para o teatro, pela Companhia Mungunzá de Teatro,
Embora a casa e partes dela sempre apareçam nos antologias e revistas literárias. Como muitos autores da de São Paulo, e a peça recebeu vários prêmios. Um
poemas, não há um lugar para a existência dessas chamada literatura intercultural, Aglaja teve uma bio- segundo romance e uma reunião de seus poemas
pessoas. E quase não há aconchego. Os personagens grafia bastante incomum: ela nasceu em uma família estavam prontos, quando Aglaja, em meio a uma
transitam por lugares inóspitos, constituídos de ele- de artistas de circo. Seu pai era o palhaço Tandarica crise emocional – provavelmente causada por um
mentos básicos, em que há sempre algo provisório, – que sonhava ser diretor de cinema e fazia filmes nas sério problema de saúde – decidiu por fim à própria
uma mala ou algo a ser salvo. É na própria fantasia e horas vagas. Sua mãe era a “mulher dos cabelos de vida, em 3 de fevereiro de 2002, aos 39 anos de idade.
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INÉDITOS A Canção

1
Ele canta. Sua canção é de mel.
Você mora aqui, diz a mulher.
E você é minha mulher, diz o homem. Minha mulher.
Minha mulher.
No jardim cresce a árvore
Da árvore crescem maçãs.
Crescem peras.
Crescem cerejas.
Estamos na estação certa, diz a mulher.
Agora vou levar os vestidos para o porão. Agora vou levar o vidro de compota
para o porão. Agora vou levar o verão para o porão.
A escada para o porão tem 10 anos de comprimento. No caminho, a mulher
precisa cortar as unhas. Seu cabelo caído, ela põe em uma caixa debaixo da
escada. Do seu cabelo, ela vai fazer um travesseiro para ele. Um travesseiro
de inverno. Que continua a crescer.

2
Meu cabelo é longo, diz a mulher. Eu o penteei.
Dei-lhe gema de ovo. O cabelo comeu o ovo.
Agora trago a neve, diz a mulher.
Ela chama o homem. Ela o chama com uma voz longa.
O homem põe o gato de 40 anos na mala. Ele pega pão e salsicha. Uma
garrafa de vinho. A camisa recém-lavada e o terno de domingo.
O homem espera até que a sombra das árvores tenha ido embora.

3
O pé direito do homem vai devagar.
A cada par de passos ele deposita a mala no chão e se reergue
No olho do homem cai um corvo.
A mulher canta.
Na canção há uma paisagem. Branca.
Aglaja Veteranyi
Nota e traduções de Fabiana Macchi

Por que eu não sou anjo

Um anjo vestiu-se de anjo e permaneceu irreconhecível.

Um outro caiu do céu e despedaçou-se.

Um anjo estrangeiro tornou-se crente e afogou-se na banheira.

No céu, os anjos mortos são empalhados e pendurados na parede.

Eu prefiro permanecer imortal..

Stursa Bulandra

Na verdade, ela ainda vive e sofre de obsessão. Dia desses, mandou
trancafiar seus admiradores num armário e afogá-los no poço.

A atriz Stursa Bulandra tinha tão pouco talento, que, durante as suas cenas,
até as cadeiras do teatro adormeciam. Suas pernas criaram varizes, e aí ela
se matou.

Na verdade, ela se casou, teve filhos, ficou roliça e satisfeita e cheirava


sempre à torta de maçã. Um dia ela perdeu a memória e esqueceu-se de
acordar.
SOBRE OS POEMAS

O poema A casa faz parte Verdade verdadeira é só que ela se chamava Stursa Bulandra e que não tinha
do livro Por que a criança nenhum talento e que preferia papéis trágicos, de saias longas, por causa das
cozinha na polenta (São varizes.
Paulo: DBA, 2004). Os
poemas Stursa Bulandra e E quando ficou velha, bem velha, fingia-se de jovem e parecia uma menina.
Rosmarie foram publicados No asilo, ficava sentada o dia inteiro em frente a um pequeno espelho,
na finada revista Inimigo penteando-se. Duas vezes ao dia, davam-lhe um comprimido. E, certo dia,
Rumor (nº17, 2005). Os ela simplesmente parou de se pentear.
demais são inéditos E ainda viveu por muito tempo.
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MARIA JÚLIA MOREIRA

A Varanda Rosmarie

A menina envelheceu, cresce-lhe um caixão Meu tio A Viagem tem uma mala cheia de vozes. E uma mulher e um cão.
no ventre. E o cão se chama Rosmarie. E a tia tem outro nome. E o tio se chama A
Os seios caem sobre a mesa. Viagem, embora nunca tenha estado no exterior. Ele passa diariamente 8
Os amantes já estão mortos há tanto tempo, que todos se chamam Robert. horas em seu quarto; ninguém sabe o que ele faz lá dentro. Quando alguém
Antes de dormir a menina dirige-se à varanda. lhe pergunta, ele diz: eu me imagino sentado no quarto. À noite, ele vai ao
Lá aguarda a sombra. Lá aguarda a lua. restaurante italiano da esquina e come lesmas com limão.
A lua brota. Mas lesma nem é comida italiana, diz a sua mulher.
Brotar é uma canção. E o tio diz: e daí?
As gotas de pétalas da lua caem sobre os pés da menina. Após a grapa ele retorna e vê o dia na televisão.
A lua dança, diz a menina. Ela dança para nós. Depois anda pela casa e faz uma cara.
Até hoje ninguém viu a mala cheia de vozes. E o tio conta cada vez uma
história diferente: quando estou no quarto e me imagino sentado no quarto,
tiro uma voz de dentro da mala e mando-a calar-se. As vozes na mala são
como macacos, mal saem e já sobem pelas cortinas ou arrastam-se sob o
tapete ou entram pelas pernas das minhas calças.
Mãe Então a tia vai para a cozinha e bebe vinho branco. O copo metade vazio ela
sempre recoloca no armário. Frequentemente retorna à cozinha, e todas as
Uma vez uma mãe. Disse para o braço: Filho. vezes ouve-se ela abrir e fechar a porta do armário. À noite, os seus olhos
Cortou o próprio braço. estão boiando em vinho branco. E enquanto o tio A Viagem escuta o silêncio
Foi à cozinha e preparou para o braço canja da sua mala de vozes, escuta-se a tia soluçando no banheiro.
de galinha. Dizia: Filhinho. Come tudo! A mamãe fez No dia seguinte, o tio conta que, no sonho, ele morava em um refrigerador.
muita sopa. Isso! Isso! E a tia diz nada em voz alta.
Depois da comida ela pôs o braço na cama. Cobriu- E às vezes ela se enfia na cama em pleno dia.
o. Cantou o braço até o sono. E o tio sai para a rua em plena noite.
E a tia vai à igreja e acende uma vela.

E o tio conta ao vizinho que tem negócios no exterior, que se tornou criador
de minhocas.
1 Cartão-postal E a tia sorri.
E o tio pendura uma tabuleta na porta:
A filha HOJE FECHADO
come as velas de aniversário E o pior desta história é que ninguém se importa com o cãozinho Rosmarie.
não

A mãe
Você é como seu pai!
A Casa
O pai
fica 20 anos fora Um estrangeiro nato perdeu os seus sapatos. Ele os tinha esquecido em sua
envia depois de 20 anos casa e jogado a casa em um rio. Ou será que a própria casa tinha se jogado
1 cartão postal no rio?
telefona depois de 20 anos
1 vez O estrangeiro nato foi de rio em rio.
canta para a filha depois de 20 anos
1 canção infantil Certa vez ele encontrou um velho debaixo d’água com uma tabuleta
pendurada no pescoço: AQUI CÉU.
A filha O estrangeiro perguntou: Como assim, céu?
envia para a mulher do pai O velho encolheu os ombros e apontou para a tabuleta.
1 a 2 saudações
A casa voltou a aparecer, mas em um lugar completamente diferente.
Depois de 20 anos E, provavelmente, era outra casa, pois ela não se recordava mais dos sapatos
o pai volta do estrangeiro.
e morre
1 vez Mais tarde, a casa perdeu sua porta.
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RESENHAS
JANIO SANTOS

ou “inventados”, mas
sempre ficcionalizados
– o papel de um
observador distanciado
dos acontecimentos. Em
O conto fracassado, o uso da
terceira pessoa produz,
concomitantemente,
a sensação de
distanciamento e de
cumplicidade, como
se Sant’Anna-escritor
instruísse diretamente
o contista-personagem.
“Durante a escrita do
conto fracassado, a
tentativa do contista de
sair de si, de seu universo
tão intimista, para tornar-
se outro, mais duro, que
em vez de mergulhar na
subjetividade, retirasse
das palavras ação.”
Nesse universo
de duplicações,
Talk show e Uma peça
sem nome exploram,
respectivamente, a
linguagem televisiva e
teatral, destacando o
artifício, a encenação
como única forma de
aproximação com o outro.
São textos que trazem o
humor insólito do autor,
diálogos e situações
que beiram o kitsch, em
uma aproximação exata
com o sensacionalismo
e os clichês.
Talk show, em especial,
é uma narrativa

Ele ainda escava Uma passagem retirada


do conto Augusta guia a
leitura de Anjo Noturno,
utilizando, para isso,
a própria palavra?
A mulher (pintada)
o desejo pela mulher e
o encantamento diante
da produção da artista
necessária aos tempos
atuais, quando a figura
do escritor tomou

brechas para o
de Sérgio Sant’Anna. esfaqueada remete a essa que aborda o feminino. proporções maiores que
Em um apartamento em irresolução da condição Mulher e criadora assim sua obra. Uma história
Copacabana, Francisco da escrita de Sant´Anna. se reduplicam diante que ri de si mesma, ri

contraditório
observa a pintura, em É nessa ferida, nesse do olhar do homem; do status conferido ao
tamanho real, de uma espaço intersticial “mulher dupla”, como a escritor de literatura,
mulher nua retratada entre representação qualifica o narrador. ganhador de prêmios
frontalmente. “Seu seio e consciência crítica O espelho diante do prestigiosos, mas que
Em novo livro, Sérgio Sant’Anna direito é magnífico e o
esquerdo também, mas
da representação, que
se instala a escrita de
espelho, a reduplicação
contínua torna o espaço
é obrigado a cumprir o
ritual de exposição na
reflete questões da arte e “joga” com uma perfuração
sob ele, que se espraia,
Sérgio Sant’Anna.
Não por acaso, artistas
narrativo fechado,
autônomo, enquanto
mídia sendo entrevistado
por uma apresentadora
com outros volumes de sua obra como se alguém houvesse como Andy Warhol coloca o leitor para fora
da narrativa ao sinalizar
também ganhadora
de um Jabuti pela
revolvido aquela ferida.” ou Balthus rondam os
Augusta, a pintura, romances e contos do a existência concreta de sua autobiografia. No
Giovanna Dealtry
fora apunhalada pelo autor. Seja como em Cristina Salgado. Ou, entanto, não seria Sérgio
próprio criador, Carlos As meninas de Balthus (do ainda, possibilita ao leitor Sant’Anna, se o riso
Rodrigues, um “realista livro O voo da madrugada) acostumado às teias de fosse mero reflexo cínico.
anacrônico”, segundo ou em Um conto límpido Sérgio Sant’Anna voltar Pelo contrário, interessa
a crítica especializada. e obscuro (Anjo noturno) à estante em busca de ao autor encontrar as
Carlos, à época que como tema central da A mulher nua, conto do brechas para o humano,
partilhamos a admiração narrativa, seja como no livro O voo da madrugada, e para o contraditório,
de Francisco por Augusta, romance Crime delicado, agora, lê-lo à luz da nova para a ferida revolvida
já está morto. Lançou-se trazendo à cena questões publicação, como em um sob a tinta.
da janela do apartamento de ordem teórica, jogo de peças móveis.
na Avenida Atlântica. como a diluição das A investigação sobre a
Na imagem do corpo/ fronteiras entre espaço dobradiça representação
pintura apunhalado/a, estético, cênico e espaço real estende-se também
na ferida de tela e tinta privado, biográfico. pelas narrativas de teor
revolvida, permanece a A artista plástica memorialístico. Mãe, A
pergunta: é possível rasgar brasileira Cristina rua e a casa, Amigos, O conto
o véu da representação e Salgado, cuja obra já fracassado recuperam a
assim atingir a carne? As havia sido objeto de infância e início da vida
narrativas de Anjo noturno, uma narrativa de tons madura de Sant’Anna,
assim como grande ensaísticos em O voo da ao explorar não apenas
parte da obra de Sérgio madrugada, reaparece em os registros familiares
Sant’Anna, jogam com os Um conto límpido e obscuro. e a subjetividade do
regimes significativos da Desta vez, personagem e escritor-personagem,
linguagem, problema que artista se intercambiam; mas também
as artes plásticas, menos a personagem não reconstruindo, em CONTOS
os “realistas anacrônicos”, nomeada aparece como detalhes, o cotidiano do
parecem ter resolvido. Se autora das peças – reais Rio dos anos 1950 ou as Anjo noturno
a própria palavra é signo – de Cristina Salgado. Por vésperas do golpe militar Autor - Sérgio Sant’Anna
que remete a algo “real”, sua vez, o personagem de 1964. Sant’Anna Editora - Companhia das Letras
seria possível apunhalar masculino, igualmente adota nesses textos Páginas - 184
essa representação sem nome, desliza entre memorialísticos – “reais” Preço - R$ 39,90
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PRATELEIRA
Olhar crítico que continua a ecoar
A PEDRA
Estabelecer pontes política nos governos – uma vasilha. “(…) Mas rincões do país e que O segundo romance de Yuri Pires relata as
entre fatos e suas estes, mais preocupados tenho a impressão de sofriam perseguição do consequências do surgimento de uma pedra
possíveis conotações em afagar elites que que o Brasil se decidiu regime de exceção. mágica na cidade de Lemuri, dominada pela
políticas é um dever atender demandas do pela vasilha”, diz o Neste ano, em que se política e pela religião, onde o cenário muda
inerente à profissão de grosso da população Eça reproduzido por completa o centenário com o desenrolar de uma história de amor. A
jornalista. Há quem opte à espera da reforma Callado. O português de Antonio Callado, nos edição se destaca pela proposta gráfica: cada
por essa tônica para atuar agrária, à espera de acreditava que o Brasil deparamos com esse leitor pode fazer sua própria capa, com ajuda
como escritor, ainda que uma revolução que seja deveria investir em uma esforço de celebração de uma prensa e papel carbono, de acordo
ela não seja obrigatória mudança real. Qualquer pretensa vocação rural. e de agenciamento da com o projeto criado por Gustavo Pereira.
– e mesmo que suas semelhança com o Brasil A leitura do autor de leitura de um autor que
escolhas aparentemente de hoje é explicada Quarup soa simpática a continua a nos provocar
não políticas sejam, pela história: um país essa ideia problemática como leitores e críticos.
no frigir dos ovos, cuja memória coletiva tanto pela ausência de Algo que soa bastante
políticas. Porque estética ocorre no ato conjunto crítica a ela, quanto pela necessário em tempos
é, inegavelmente, de esquecimento dos defesa subsequente da de insegurança política
uma escolha e um tempos pretéritos necessidade de reforma generalizada como o
agenciamento ideológico longínquos e agrária. O texto ecoa presente (Igor Gomes). Autor: Yuri Pires
das preferências dos recentes. Algo ainda hoje porque as questões, Editora: Lote 42
agentes de poder incompreendido por obviamente, persistem. Páginas: 136
(detentores dos meios pesquisadores e que No fim, Eça fala do país Preço: R$ 39,90
que visam propagar as parece estar na raiz dos como uma escarradeira.
ideias). As pontes de que escândalos e rupturas Outro exemplo: uma MELANCOLIA: LITERATURA
falo se misturam em O políticas – que são, briga entre moradores O autor mapeia o fenômeno da melancolia para
país que não teve infância: as em verdade,“acordos de Tiradentes (MG) e mostrar como, no Ocidente, ela afetou diversas
sacadas de Antonio Callado. de cavalheiros” –, que Burle Marx. Este, em expressões do pensamento, da medicina à
A obra reúne crônicas começa, talvez, com a um projeto paisagístico literatura. Ele se detém principalmente em
publicadas numa coluna Independência do Brasil. para a cidade, defendeu dois escritores essenciais à literatura ocidental
assinada por Callado na A crônica que dá título a retirada de árvores não moderna: o tcheco Franz Kafka e o irlandês
IstoÉ entre 1978 e 1982. ao livro é um exemplo do nativas, o que provocou Samuel Beckett, que cultivaram uma ficção
Os contos surgem às olhar político do autor. protesto nos moradores. que tem a melancolia como base, e usaram as
claras nesses textos não Traz um texto de Eça de Callado, simpático ao vertentes irônica e satírica, de cunho negativo,
ficcionais. São escritos Queirós – uma viagem coletivo, defende uma em seu diálogo com o mundo.
que problematizam ficcional que ele fez ao cidadania brasileira CRÔNICA
aquele tempo presente Brasil. Ele escreve a um para essas plantas – da
e já trazem os ecos do amigo e compara uma mesma forma como O pais que não teve infância
passado, que mostram nação a um punhado deveriam recebê-la os Autor - Antonio Callado
como o Brasil ainda de barro, algo que pode padres estrangeiros que Editora - Autêntica
sofre com os problemas ser moldado como realizavam importante Páginas - 288
de uma representação um deus ou como trabalho social nos Preço - R$ 54,90 Autor: Luiz Costa Lima
Editora: Unesp
Páginas: 366
Preço: R$ 68

Amor em looping Um vogue lésbico NA MINHA PELE


Neste livro, o ator Lázaro Ramos revela
episódios íntimos e compartilha reflexões
Vinicius de Moraes esboça qualquer tipo de Em tempos de e sua estética subverte o sobre família, gênero, etnia, afetividade,
é um dos poetas mais provocação que os textos censura às artes (como apuro formal do mercado discriminação e outros temas. Afirmando seu
conhecidos do público, possam ofertar. É um a da Queermuseu), editorial; e por trazer desejo de que prevaleçam valores positivos
por vários motivos. Um trabalho para fãs cegos iniciativas como um painel atemporal na sociedade, ele rejeita toda segregação e
deles: por representar ou estudiosos, já que só o volume 3 do zine de vozes, com autoras radicalismo, fala da importância do diálogo e
de forma intensa as reforça o que se sabia Mais pornô, por favor vivas e mortas, jovens propõe uma mudança de conduta, convocando
angústias do amor – o antes sobre o poeta e sua são relevantes por e velhas, em poemas os leitores a serem mais atentos e tolerantes.
sentimento nos coloca produção acerca do tema encarnarem uma (originais ou releituras)
em montanhas russas em questão. Por isso, resistência erótica. eróticos. A vida cotidiana
emocionais e, por isso, a obra parece ter sido Nele, 18 poetas (todas é o que há de mais
talvez fosse melhor não publicada com pretensões mulheres) são unidas resistente, quando a
amar. Mas é o amor o que puramente comerciais em um coro lésbico censura deseja suprimir
temos como inquietação – o que não é problema que fala alto por as complexidades do
mais visceral. Todo amor, porque, nela, não há meio de frestas nas humano. Mais pornô, por Autor: Lázaro Ramos
organizado por Eucanaã argumentos que tentem paredes da sociedade. favor nos mostra isso Editora: Companhia das Letras
Ferraz, reúne trechos mostrar uma relevância A organização é de com poemas cheios de Páginas: 152
da obra do poeta em inexistente (I.G.). Adelaide Ivánova, “potência e tesão” (I.G.). Preço: R$ 34,90
que o tema do título é Maria Carolina Morais,
abordado. A frase que Priscilla Campos ÚLTIMO AVISO
abre a apresentação e Carol Almeida – A cartunista alemã Franziska Becker é
de Ferraz dá a linha do respectivamente, três apresentada ao Brasil nesta coletânea em
painel exposto no livro: colaboradoras e uma que trata de consumo, moda, dinheiro,
“a obra de Vinícius ex-editora assistente relacionamentos, política, religião e mídia,
de Moraes, um longo do Pernambuco. O sempre com uma verve anarquista. Sua visão
aprendizado no amor”. zine está disponível do mundo apresenta um retrato potente da
A repetição sem fim gratuitamente no link existência humana, representada com ironia
do assunto central é goo.gl/JWD8un. A obra e humor em desenhos engraçados e situações
dinamizada em textos pensa a sexualidade absurdas, que colocam o leitor num confronto
de diferentes formatos como resistência entre o sonho e a realidade.
e imagens avulsas de política em uma
momentos íntimos, sociedade estruturada
ou de casais (todos sob homofobia e
heterossexuais). MISCELÂNEA machismo. Esse caráter POESIA
O livro não se arrisca também surge no
a nada – como uma Todo amor formato, pois o zine, Mais pornô, por favor # 3
releitura lésbica dos Autor- Vinícius de Moraes esse produto transável, Autoras - Várias (18 poetas) Autora: Franziska Becker
poemas de Vinícius, Editora - Companhia das Letras como foram as obras da Editora - Edição das organizadoras Editora: Boitempo
que poderia ser sugerida Páginas - 278 geração marginal dos Páginas - 22 Páginas: 130
por fotos – nem Preço - R$ 54,90 anos 1970, é acessível Preço - Gratuito Preço: R$ 49
30
PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017

RESENHAS
FÁBIO SEIXO

A fantasia do Ó jardineira, por que


estás tão triste?
Mas o que foi que te aconteceu?
das Letras. Com sua
novíssima e necessária
capa magenta-cintilante,
é só o ar frio lá fora; é a
cidade, é a promessa de
vida nova, é o folclore
de recuperar Graciliano
Ramos, de fazer o retrato
do artista quando velho

supérfluo como
o romance se mostra tão, de renascimento que de Machado de Assis e de
Há cerca de dois anos, tão necessário já em sua constitui o corpo de todo saber que o amor são mil
pedi a Silviano Santiago epígrafe – a marchinha exilado. E imagine o rosas roubadas.

arte política
que escrevesse um ensaio de carnaval dos anos corpo de um sexilado! Mas, no romance aqui
pensando os 30 anos de 1930, que no começo Stella é também Eduardo, específico, o que lhe
Stella Manhattan, seu romance desse texto repito porque mineiro afastado para NY importou foi fazer um
sobre sexílio (sexo + exílio) hoje em dia não há como no final dos anos 1960 por livro como um poema,
Nova edição do romance cult e a necessidade primordial
do supérfluo e do artifício
fugir da tristeza. Sim, a
jardineira parece estar
seu desejo de desafinar da
moral da época, da ditadura
que pode ser lido em
voz alta, que pode (e até
Stella Manhattan chega em em tempos sombrios. A
reflexão veio numa forma
ainda mais triste.
Não é um céu de
brasileira e da ditadura
da sua distinta família
precisa) ser performado
e que pede “ao leitor que
momento bem-apropriado que hoje lhe interessa brigadeiro que espera
Stella em 2017. Mas chega
católica-amém. Eduardo
e Stella são também a
pegue as pa­lavras com as
mãos para que as sinta
muito: um estudo sobre
resistência, um retrato a ser irônico que – em cidade à frente, uma como se fossem vísceras,
Schneider Carpeggiani
do artista quando velho. tempos de censuras a metrópole à beira de uma corpo amado, músculo
Ele sabe que precisamos obras de arte, quando a revolução – no caso a de alheio em tensão”.
não apenas de literaturas possibilidade de cura gay Stonewall, o movimento É, Stella, vai ser preciso
de formação, mas de é discutida em jornais de emancipação dos muito refrão, muita pinta,
literaturas de persistências. sem assombro, como uma direitos gays, que levou muitos conselhos da sua
“Tenho 79 anos. O possibilidade banal, como drag queens a se revoltarem vizinha Lacucaracha para
romance Stella Manhattan, um desejo de mercado – a pela primeira vez contra os que você encare o Brasil
30”, escreveu Silviano, obra pioneira da nossa policiais que faziam batidas em 2017 (e não adianta
para continuar: “Stella literatura queer retorna às violentas por bares e boates voltar para NY, que a
Manhattan é proverbial. É livrarias. E retorna mais do bas-fond. Queen bees are coisa lá também está
juvenil, intuitivo, lúdico, magenta do que nunca. stinging mad – anunciavam feia!). Mas seu retorno
estiloso (camp) e tem uma Stella é subversiva os jornais nova-iorquinos, é necessário. Preste
moral falocêntrica (a e, também, repetimos, boquiabertos, quando de atenção: tempo só lhe
revolução comportamental “juvenil, intuitiva, Stonewall. A camélia pode remoçou, a noite lá fora
a reclamava então) que estilosa” já em seu ter até caído do galho, ter está apenas começando
pode ser lida na batida do primeiro parágrafo, dados dois suspiros, mas e pode ter certeza de que
samba Quem cochicha o rabo embalado pelo não morreu. “este mundo é todo seu e
espicha, cantado por Jorge melancólico refrão de Pois a juvenil Stella é tu é muito mais bonita...”
Ben Jor. Não fique pelas Orlando Silva: “Stella Eduardo, é Manhattan,
esquinas, cochichando. Manhattan cantarola a é a ditadura no Brasil, é
Fale. Quem fala, o phalo canção enquanto abre a Stonewall e tantas outras
espicha. Passo a seguir janela da pequena sala coisas nessa obra em que
Jorge, ao pé da letra: saia do apartamento em que tudo se desdobra, dos
pelo mundo afora fazendo mora, e logo em seguida personagens que se sabem
amizades, conquistando respira o ar frio e poluído vórtices carnais de suas
vitórias. Também não fique da manhã de outubro fantasias – as incríveis
pensando que essas vitórias em Nova York. Incha e Lacucaracha e Viúva-Negra
serão fáceis. Pois nesta vida desincha os pulmões –, passando pelo gênero
de perde e ganha, ganha e o corpo quente exala literário – um romance
quem sabe perder.” uma compacta nuvem de que é também ensaio,
Seu ensaio sobre como fumaça pela boca como porque sabe que o olhar
o tempo tratou Stella ou se fosse outdoor de cigarro que importa não é o frontal,
sobre como Stella acendeu ou de ferro de engomar mas o do soslaio, aquele
um cigarro, olhou-se no na Times Square. Wonderful que deixa a dúvida, o olhar ROMANCE
espelho, driblou A Praga morning! What a wonderful da madrugada. E Stella é
(aquela!), as viradas feeling! Cantarola em também a prova do quanto Stella Manhattan
politicas e chegou até silêncio”. O livro começa, Silviano é um dos autores Autor - Silviano Santiago
a esses anos dois mil e então, com um exercício de ficção mais radicais Editora - Companhia das Letras
alguma coisa reaparece na de respiração. Mas o que e versáteis das últimas Páginas - 328
reedição da Companhia contrai os pulmões não décadas. Um autor capaz Preço - R$ 54,90
31
PERNAMBUCO, OUTUBRO 2017

PRATELEIRA
Um pé no sonho, outro no real
OS FILHOS DO DESERTO COMBATEM
A triste história de Barcolino, estabelecer a ligação que se um diálogo cultural Operar esse tipo de NA SOLIDÃO
o homem que não sabia deseja”, diz a mensagem profundo em que um representação é um dos Em Os filhos do deserto combatem na solidão,
morrer, de Lucílio Manjate, no celular – e “ligação” mundo encantado e esforços frequentes da Lourenço Cazarré retorna à época da escravidão
foi recentemente lançado aqui opera em duplo outro desencantado se arte. Coisa necessária no Brasil para contá-la por meio do olhar
no Brasil (o escritor é sentido, tanto aquela transformam num só nos tempos nossos e que, inocente de um menino que tem a sorte de
moçambicano) e é quase chamada telefônica espaço de conflitos. no Brasil, anda sob risco conquistar a proteção de uma rica mulher
uma fábula sobre um quanto o elo com a É preciso destacar de uma crítica rasteira mestiça. Esta o apresenta ao mundo da leitura,
bairro encantado cravado ideia eurocêntrica do um lugar na obra, a Parte e moralizante, feita por ampliando a sua percepção do mundo. O livro,
no mundo moderno/ que é ser moderno (ou, incerta, espaço em que quem se empenha em ilustrado pelo mineiro Cau Gomez, representa
pós-moderno. talvez, civilizado). Barcolino costumava criar uma estabilidade um aporte à compreensão da história dos
“Encantado” porque Posteriormente, fala- surgir e onde se anuncia (social, cultural, negros no Brasil e sua luta pela liberdade.
traz um componente se no “Muro de Berlim” o seu dilema: ele está econômica) excludente de
mágico sem o qual não que existe entre uma morto ou vivo? “Estou minorias. Uma crítica que
se compreende a história mulher e seu esposo eu”, é a resposta. No age como censora rasa,
de Barcolino, um sujeito –, mas Berlim é esse chão espinhoso do não como propositora de
que não consegue morrer lugar que se conhece presente, firmado em um debates (Igor Gomes).
e que, ao mesmo tempo apenas de nome. Ao passado violento como
em que proporciona vida se falar em telefonia o das colônias, outra Autor: Lourenço Cazarré
à aldeia – chegam barcos móvel, situa-se melhor resposta seria possível? Editora: Cepe
cheios de peixe no lugar, historicamente o enredo: A identificação é com a Páginas: 132
quando ele está por perto deve se passar nos incerteza proporcionada Preço: R$ 35
–, ele leva uma criança últimos 15 ou 20 anos. por estar clivado por uma
consigo quando aparece. A questão do espaço, mentalidade complexa e POR DOIS MIL ANOS
Paralelamente, e a forma como o sem chão firme, advinda Um jovem judeu registra contato com facetas
vemos como a narrador vai virando da vida no espaço entre o da sociedade romena no período entreguerras
contemporaneidade um personagem sonho e o real. – no qual houve a ascensão do fascismo e
(a designação pouco ativo na história, são É isso: um pé no que colocou em xeque a intelectualidade
importa) dialoga com fatores que me fazem sonho, outro no real. europeia. Da universidade, onde tentava
isso: quando Barcolino ver que a narrativa A incerteza é território passar despercebido pelos antissemitas, à vida
aparece, pessoas se (como deve ter ficado poético, que mantém profissional adulta, o protagonista convive com
hospedam em hotéis evidente) é centrada nas vivo o passado em reacionários, revolucionários e fanáticos sem
para ver seu embate complexidades de um choque com o presente, FICÇÃO se identificar com nenhum grupo. Isso não o
com Adamastor (o ser humano que vive sem expor preocupações impede de perceber que nem um esforço de
gigante camoniano), em um país colonial na com qualquer futuro. É A triste história de Barcolino, o assimilação o protege de ser malvisto.
um gigante que dorme África. As fronteiras entre o que leva a entender homem que não sabia morrer
nas profundezas do o moderno e o ancestral o livro como uma Autor - Lucílio Manjate
mar. A telefonia móvel existem nos pequenos representação da Editora - Kapulana
não funciona: “Neste gestos e grandes ações. condição humana Páginas - 256
momento não é possível No livro de Manjate, cria- em Moçambique. Preço - R$ 44,90

Autor: Mihail Sebastian


Editora: Amarilys

Pode aprofundar Cooperativismo


Páginas: 352
Preço: R$ 42,90

UM NORTE PARA O ROMANCE BRASILEIRO


A Autêntica lançou época. Não assumir Em Cooperativismo impossíveis de se Entre os estudiosos do século XIX que
recentemente Lima Barreto: riscos interpretativos é de plataforma, Trebor reproduzir neste curto discutiram a formação da cultura brasileira a
cronista do Rio, organizado compreensível (o livro não Scholz (com tradução espaço. A obra soa partir do mestiço, a autora situa Franklin Távora
por Beatriz Resende, é teórico), mas é como se de Rafael Zanatta), relevante num contexto de e suas críticas a José de Alencar nas Cartas a
conhecida estudiosa do o virtual interesse do leitor pensa os problemas precarização do trabalho, Cincinato (1871-1872). Dividido em três partes, o
autor. A seleção nos faz em algo mais profundo da economia de como o brasileiro. É trabalho analisa cinco romances da “literatura
passear pelos registros fosse subestimado para compartilhamento interessante por refletir do Norte” de Távora, para mostrar como ele
produzidos pelo escritor favorecer uma lógica de aplicada como lógica sobre um tema urgente alia seu projeto literário, atrelado aos estudos
sobre a urbe carioca nos venda que nivela por baixo de lucro, a exemplo e propor uma resolução dos primeiros “folcloristas”, às convenções de
anos 1910 e 1920, em o potencial interesse por do que ocorre com o que integra coletividades composição do romance em sua época.
que saíam problemas de esse conhecimento. Seria aplicativo Uber. As (principalmente as
toda sorte – e amores de possível uma apresentação aparentes facilidades marginalizadas) ao
toda sorte. É uma bonita maior, que trouxesse as do ponto de vista espaço tecnológico.
edição, com reproduções questões de representação trabalhista mascaram A obra está disponível
de imagens da época. Um da cidade no autor de problemas dessa gratuitamente no link
panorama para quem forma mais elaborada, mesma ordem, que goo.gl/2QLSMh (I.G.).
deseja conhecer o autor mais estimulante (I.G.). mascaram uma lógica Autor: Cristina Betioli Ribeiro
como observador da de precarização. No fim Editora: Unicamp
cidade. O que incomoda das contas, é confuso Páginas: 312
não é a seleção das para quem usa, quem Preço: R$ 56
crônicas ou mesmo a consome e para quem
lógica comercial (movida legisla. À falta de ERA UM GAROTO: O SOLDADO BRASILEIRO DE
pela Flip 2017)– falo nesta alternativas realistas HITLER – UMA HISTÓRIA REAL
porque ela se insinua para lidar com os Baseado no diário de um garoto brasileiro, filho
no livro, uma obra com problemas do trabalho, de alemães e recrutado pelos nazistas, Badaró
crônicas em domínio Scholz propõe o descreve aventura, relatos de guerra, a prisão nos
público reunidas por uma cooperativismo de campos russos, o trabalho escravo e a indigência
especialista. Incomoda plataforma, que na Itália. O autor visitou arquivos alemães e russos,
o fato de que as editoras ressignifica noções consultou historiadores, entrevistou a família e
parecem não entender que como eficiência e os amigos do personagem,
lógica comercial pode se inovação, invoca a empreendeu o mesmo
aliar a um trabalho crítico solidariedade sem abrir ENSAIO percurso feito 71 anos antes.
mais aprofundado, sem CRÔNICA mão das inovações
ser elitista. A seleção é tecnológicas. Ele Cooperativismo de plataforma
boa, mas a apresentação Lima Barreto: cronista do Rio propõe 10 princípios Autor - Trebor Scholz
deixa a desejar por não Autor - Lima Barreto para nortear Editoras -F. Rosa Luxemburgo, Autor: Tarcísio Badaró
trazer nenhuma ideia mais Editora - Autêntica iniciativas baseadas Elefante, Autonomia Literária Editora: Vestígio
elaborada ou comparativa Páginas - 240 no cooperativismo Páginas - 96 Páginas: 192
com a produção da Preço - R$ 44,90 de plataforma, Preço - Gratuito Preço: R$ 39,80

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