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O Diário de uma Manhã

Outono dentro e fora dele. Caminha pela cidade. Observa transeuntes. Observa-se
por dentro. Sabe que para além do sangue, corre nele rios de sentimentos, vaguezas
estranhas, memórias de antes de seu nascimento. Dentro dele pulsam saudades e
revoltas. Por fora, envolto na casca do anonimato, caminha. A solidão marca seus olhos a
ferro quente. Gado agora, nem a vontade de um poema, de uma música, nem a beleza
de um corpo alheio retira dele a estranha sensação de perigo.
Tem amigos, tem família até em laços estreitos, conhece mais a felicidade que a
tristeza, mas hoje, neste outono chuvoso, mutante, percebeu-se coberto de penúrias, um
quase luto, não sabe por quem, por ele mesmo? Caminha, vê a cidade em sua respiração
atravessada de barulhos. Alguns jardins são tão bonitos, outros estão descuidados. Raça
estranha esta dos humanos. Assemelham-se tanto às formigas e desconhecem tanto as
formigas. São quase todos pressa nesta hora da manhã. Ele não. Ele caminha
aparentemente sossegado, iniciará no trabalho apenas a tarde. Tem as manhãs livres.
Não sabe o que fazer com este excesso de liberdade. Tentou o sono. Tentou a televisão.
Tentou ficar deitado olhando para o teto. A leitura também foi uma tentativa. Nada
conseguia retirar dele a sensação de perigo, este estar parado, estar inútil.
Resolveu caminhar, observar a cidade, pequenos recantos, gretas invisíveis aos
olhos diários. Anda a passos lentos, visionando tudo o que lhe parece estranho fora de
ordem. Tem com isso apaziguado um pouco o perigo de não fazer nada. Trata seu
caminhar como um trabalho. Tem que ser feito de acordo com as regras, tem que ser
automático. Tem que ser distanciado do pensamento. Mas por dento estão pulsando
coisas, idéias que nunca teve. Pensa em Deus, suicídio, na morte violenta das crianças.
Pensa em nuvens, anjos, dedos e vulvas. Pensa na mulher, no filho, no Filho. Pensa
demais para uma manhã de outono. Olha o relógio, não acredita ainda tem muito tempo,
ainda tem que enfrentar duros pensamentos até começar o trabalho. Precisa ocupar-se,
depreocupar-se. Diria a filha mais velha: “desencana, pai”. Desencanar, sair do cano. Sair
da frente do perigo de se ver de perto e perceber que apesar de tudo, construiu-se em
cima de dunas, não fez sua casa em sólida rocha, desobedeceu a fala do Cristo. Pensa
isto porque passou na frente de uma igreja. 10:00h e alguns já estão orando, buscando
salvação na escada divina. Ele pensa em entrar, entregar-se às palavras mágicas do
pastor. Sabe que precisa, sabe que está com encosto, Satanás é esperto, tem
artimanhas. Quase à porta do templo, volta-se, volta para casa. Desiste de encontrar-se
com Deus. Meio correndo, meio com medo, retorna para casa. Logo começa o trabalho.
Lá tem serventia, lá vão notá-lo. O trabalho dignifica o homem. A vadiagem numa manhã
de outono pode ser ferida aberta e nunca cicatrizada. Vai conversar com o chefe, precisa
rever este horário. A manhã livre pode aprisioná-lo para sempre a si mesmo. E isto, isto é
o caos interno. Tem uma vida a cumprir, não pode se dar o luxo de refletir suas misérias.

Rubens da Cunha

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