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¨Eu não sou tua fantasia¨. Por Martín Mezza.

Esse ano as manas decidiram ultrapassar as fronteiras da tautologia do dito “não


é não” que visa colocar um limite num comportamento menos pré-histórico que
moderno, animal que humano, hormonal que subjetivo, universal que sociocultural. Sua
incursão psicológica, não poderia ser qualificada de outra maneira, derivou no grito de
carnaval “eu não sou tua fantasia”. E como não gritar junto com elas? Como não se
fantasiar e cair nesse bloco?

Se o “não é não” era suficientemente evidente para não se prestar a muita


conversa, o novo lema, por reunir no mesmo enunciado o campo psicológico e
carnavalesco através do significante fantasia, se oferece necessariamente ao processo de
customização. Então, comecemos por desfazer uma costura que pode nos incomodar na
hora de pular e brincar. “Eu não sou tua fantasia” pode sugerir a ideia que cada um tem,
ou deveria ter sua fantasia pessoal – insondavelmente singular – e inconfundível com a
realidade. O sujeito moderno deve saber distinguir, inclusive na festa de Momo, entre o
principio do prazer e o principio de realidade, entre interior e exterior.

Dessa forma, tudo parece se reduzir a uma fantasia sem objeto, a um


autoerotismo contrafóbico equivalente a um “eu cognoscente” que procura esse “teu”
(objeto) adequado, assim como o sapatinho no pé de Cinderela. Mas, no mundo do
calçado ocorrem acidentes tais como a deformação dos sapatos ou o inchaço dos pés
que fazem necessárias calçadeiras, feijão e algodão, água morna com sal e a sabedoria
dos velhos sapateiros, para harmonizar a conturbada e antinatural relação entre pés e
calçados. Nossa pedagogia amorosa, psicológica ou sexológica, tão necessária como
insuficiente no momento de traçar os limites, lidar com as ambiguidades e abordar os
excessos existentes entre sedução e assédio, não apresenta menos dificuldades, nem
dispõe de maiores recursos que os trabalhadores esquecidos da baixa dos sapateiros. Isto
não é necessariamente um defeito, é que no campo da fantasia, a divisão entre gozo e
desejo não é algo que possa ser abordado apenas com uma pedagogia esclarecida e
progressista, nem com uma política de boas vontades e compromissos afirmativos.

Se o feminismo tem o papel que importantes intelectuais lhe otourgam, aquele


movimento que vem a remover os lastros da modernidade, seria bom - pensamos
humildemente - não desconhecer que os cimentos da era moderna contemplam a
substituição da fantasia pelo ego cogito.

Abandonemos por um instante o pula-pula da pipoca baiana, e, enquanto


terminamos de costurar nossa fantasia, peguemos a carona de um carro alegórico que
percorra em parte a passagem da idade média para a modernidade.

Tanto na antiguidade quanto na idade média a fantasia não era irreal, não estava
destinada ao deserto interior da individualidade, ao mundo irreflexivo da patologia
mental ou aos confins do inautêntico. Enfim, a fantasia não era rejeitada, nem temida,
nem oposta à realidade, pelo contrário, tinha um papel fundamental na mediação entre o
mundo sensível e o intelecto, entre o múltiplo e o unitário, o subjetivo e objetivo,
externo e interno, entre um e outro.

Os poetas provençais – verdadeiros pedagogos e psicólogos do amor da Portugal


da idade média – interviam com seus versos na demarcação do amor louco (fol amour)
daquele mais satisfatório. Para estes poetas, um amor “sadio” se caracterizava pela
operatória da fantasia. Através dela, o desejo não se dirigia à coisa sensível senão ao
objeto imaginário, constituindo assim o que eles chamavam de “anjo” ou “nova
pessoa”. Já o amor louco (fol amour), aquele que hoje se tenta interpelar no nosso grito
de carnaval, era justamente aquele que apresentava um déficit de fantasia. Aqui, a
dificuldade não consistia tanto na indiferença entre realidade e fantasia quanto no fato
de não poder articulá-las, da incapacidade de incluir o outro enquanto objeto do desejo
na articulação do imaginário e do real.

Esse déficit de fantasia da idade média passa à modernidade como parte


constitutiva do processo de subjetivação. Por isso, já está presente no primeiro tempo da
autoconsciência, na dialética do mestre e do escravo de Hegel, onde a satisfação
alcançada entrelaça a afirmação de si e a negação da independência do outro mediante o
aniquilamento e o consumo do objeto; e nas personagens do Marquês de Sade que
permanentemente manifestam a dificuldade para avivar satisfatoriamente a fantasia,
compensado tal situação pela inversão do desejo e da necessidade, que resulta no gozo
perverso. Todo psicanalista pode reconhecer aqui a linha da qual puxa Lacan para
elaborar a fantasia como suporte do desejo e colocá-la na base das desventuras
neuróticas e perversas.

Por acaso, o carnaval não trata disso? Se o carnaval ainda tem uma função social
além de encher o bolso de uns poucos e esticar a precariedade da maioria, não é
justamente oferecer a possibilidade da realidade da fantasia? Pelo menos esse é o
carnaval que Chico Buarque captura em “Noite dos Mascarados”. Ali, não há abadás,
senão máscaras, disfarces que ajudam a suspender a impostura insuportável da
identidade individual, que auxiliam as exigências imediatas da paixão com a esperança
que a fantasia aconteça e o encontro amoroso tenha assim alguma chance.

Enfim, fica claro que não estamos objetando o grito de carnaval, apenas tentando
contribuir na sua potência e intervir nos seus ecos. Para isso, achamos necessário
advertir a diferença de níveis existentes entre “não é não”, consigna que chamamos de
pedagógica, e “eu não sou tua fantasia”, própria da psicologia e do carnaval. Pensamos
que esta última perde muito de sua força se for reduzida à tentativa de colocar um limite
no comportamento desviado, desconhecendo que é, na verdade, um correto diagnóstico
da impotência amorosa do homem moderno.

Martín Mezza. Psicólogo (UBA, Arg.). Psicanalista membro de Apertura Bs. As. e
Salvador-Ba; Mestre em SMC (UNL,a. Arg.). Doutorando (ISC-UFBA). Pesquisador
NISAM (ISC-UFBA). martinmezza@hotmail.com

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