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SECRETARIA DE PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E COORDENAÇÃO

FUNDAÇÃO INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE


DIRETORIA DE GEOCIÊNCIAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA

Geografia e Questao Ambiental

Olindina Vianna Mesquita


Solange Tietzmann Silva
(coordenadoras)

Rio de Janeiro
1993
ISBN 85 240 0464 9

© IBGE

EQUIPE TÉCNICA EQUIPE EDITORIAL IMPRESSAO


A elaboração da pesquisa foi coorde Publicação editorada e elaborada Divisão de Gráfica/Departamento
nada pelo Departamento de Geogra pelo Sistema de Editoração na Divi de Editoração e Gráfica
fia DEGEO/DGC são de Editoração/Departamento DEDIT/CDDI em novembro de
de Editoração e Gráfica 1993 OS 03 03 10308/93
Coordenação DEDIT/CDDI
Olindina Vianna Mesquita CAPA
Solange Tietzmann Silva Estruturação Editorial
Ceni Maria de Paula de Souza Fernando Portugal Fraga Divisão
Supervisão de Promoção/Departamento de Pro
Cesar Ajara Oscar Ribeiro Rodrigues
moção e Comercialização
DECOP/CDDI
Autores Copidesque
Adma Hamam de Figueiredo Solange Gomes de Souza
Cesar Ajara Wilton de Almeida Tavares Geografia e questão ambiental / Olindina
Dora Rodrigues Hees Vianna Mesquita Solange Tietzmann Silva
Fany Davidovich (coordenadoras) -Rio de Janeiro : IBGE
Revisão Departamento de Geografia 1993
Helena Maria Mesquita Balassiano
João Baptista Ferreira de Mello Cristina Carlos de Carvalho Pinho 166 p

Maria Luisa Gomes Castello Branco laracy Prazeres Gomes


Maria Mônica V C O Neill Katia Domingos Vieira ISBN e5 240-0464 9
Miguel Angelo Campos Ribeiro Umberto Patrasso Filho
Olindina Vianna Mesquita 1 Geografia humana Brasil 2
Roberto Lobato Corrêa Edição Desenvolvimento econômico Aspectos
Roberto Schmidt de Almeida Elizabete Cruz da Silva ambientais. 3 Meio ambiente Brasil 1 .
Solange Tietzmann Silva Mesquita Olindina Vianna II Silva Solange
Maurício Alves da Silva Tietzmann III IBGE Departamento de Geografia
Equipe de Apoio Olevim Dias Filho
Vanda Ribeiro dos Anjos
Jana Maria Cruz IBGE CDDI Dep de Documentação e Biblioteca
RJ IBGE/93 14 CDU 911 3(81)
Paulo Afonso Melo da Silva
Regina Célia Silva Alonso Diagramagão
Sergio Medeiros de Lavor Luiz Carlos Chagas Teixeira Impresso no Brasil/Printed In Brazil
A Humanização da Natureza - Uma
Odisséia para a (re)Conquista
do Paraíso*
Jodo Baptista Ferreiro de Mello **

Considerações iniciais bens e frutos oferecidos pelo meio ambiente Tal


proeza exige trabalho, arte, empenho e inteli-
natureza transformada tem recebido no- gência A tarefa, como se sabe, difícil de ser rea-
menclaturas, definições e análises diversas lizada, é conduzida de maneira admirável,
de positivistas (meio ambiente artificial), mar- fazendo com que os limites entre os ambientes
xistas (segunda natureza) e humanísticos (ver- natural e humanizado, por vezes, se confundam
são humanizada da natureza)' Para os gregos A geografia humanística, preocupada com a
pré-socráticos a natureza é a totalidade ou o morada do homem, em qualquer escala, tem
todo envolvendo "os céus acima, a terra abaixo procurado, de alguma maneira, explorar a in-
e as águas sobre a terra"' A raça humana, bus- fluência da natureza e, muito insistentemente,
cando alimento, proteção e conforto, tem se es- enfocar as intervenções humanas no espaço em
merado - por necessidade vital - em preparar, sua busca incessante da felicidade e da promo-
consumir e metamorfosear as dádivas da mãe- ção da "boa vida" Este conceito originalmente
natureza Suas conquistas, alcançadas ao longo trabalhado pelos filósofos existencialistas foi
de milênios, são revestidas de vitórias, dissabo- ampliado pelo pensador Yi-Fu Tuan em sua be
res, sentimentos, conflitos, mitos e esplendores lissima obra The Good Life Geógrafo chinês,
radicado nos Estados Unidos, Dr Tuan abando-
O homem cria a sua fabulosa versão da natu- nou propositadamente o lado sombrio das rela-
reza recorrendo aos mais variados elementos, ções humanas com o meio ambiente Como o

' Dedicado ao geógrafo Miguel Angelo Campos Ribeiro do Departamento de Geografia da FundaçÃo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística DEGEO/IBGE por
sua atenção e lnelatóncia pare que eu escrevesse um texto sobre o meio ambiente utilizando os principia de humanismo em
Geografia

" Analista Especializado em Geografia do DEGEO/IBGE


Gostada de expressar minha profunda gratidão ao geógrafo Roberto Lobato Corroa (IBGFJUFRJ) pela leitura do texto e suas valiosas considera~ Não posso deixar
de registrar o meu orgulho pelo privilégio de poder recorrer a ente profissional que ocupa por seu conhecimento e sensibilidade uma posição singular no seio da comuni
dado geográfica do Pata. Oe agradecimentos são extensiva às geógrafas Eltane Ribeiro da Silva, Fany Davidovich e Maria Lulas Goma Castello Branco Em conversas in
formais no Departamento de Geografia do IBGE DEGEO , coe geógrafas argumentaram, muito acertadamente embora sem acesso aos manuscritos do ensaio , que o
titulo provieódo *A Humanização da Natureza uma Odieséia para a Promoção da Ba Viris" poderia gerar criticas e polémicas imediatas No Breeil a expressão "boa
vida" possui como vários outra termos uma conotação pejorativa de aversão ao trabalho ou desprovida de escrúpulos para o alcance dos objetivos e,por outro lado de-
nota lapsos ou prolongamentos de uma exìstóncia repleta de realizações e bem estar sentido este seguido e incorporado no presente estudo
t Respectivamente Milton Santos, 1988 p 84 citando Sauer, Corria 1988 p 54 e Than 1988 p 8
2 Ttian 1980 p 152 lembrando os grega pró socráticos e citando C 8 Lewìe
humanismo em geografia é uma corrente holís- Universos Lunares,
tica, não interessada em focalizar tão somente o Solares e Chuvosos
meio ambiente esculpido pelo homem, afloram
no presente artigo não apenas questões perti- O dia e a noite são antagônicos (e complemen
nentes às alegrias e celebrações, como igual- tares) O Senhor é luz, diz o texto sagrado O sol,
mente às amarguras, lutas e lendas ocorridas resplandecente, transmite vida e inspira confian-
no levantamento e manutenção do meio am ça Em contrapartida, as trevas, dominadas pelas
biente forças do mal, serão herdadas pelos impuros
Em realidade, a meta da orientação humanís- Para fugir dos horrores da escuridão da noite
tica é tentar "especificamente entender como as e desenvolver suas atividades, o homem tem
atividades e os fenômenos geográficos revelam procurado alumiar o ambiente noturno com cla-
a qualidade da conscientização humana" A rões produzidos por substâncias gordurosas e
geografia humanística "não nega as perspecti- combustíveis, como lamparinas e velas e, numa
vas científicas sobre o homem; trabalha sobre tentativa de copiar a luz natural, recorrido a
elas?`, o que não impede os seus pronunciamen- fontes tecnologicamente avançadas como a
tos críticos e radicais dirigidos principalmente energia elétrica, o gás neon e o mercúrio Esses
ao positivismo que "omite as questões da vida"' recursos, no entanto, ofuscam o brilho das es-
e fala de um mundo habitado por homens con trelas, principalmente em áreas poluídas ou in-
tados aos montes, como gado' tensamente iluminadas A noite, portanto, não
No âmbito da vertente humanística, espaço e se resume a fantasmas, padecimentos e receios
lugar são distintos O espaço é amplo, desco Quem vive em regiões de população rarefeita ou
nhecido, temido e rejeitado O lugar, recortado em imensos descampados saboreia, em noites
afetivamente, onde as pessoas se sentem segu- de céu límpido, um refulgente aglomerado de
ras e à vontade, emerge nas experiências coti- estrelas Alguns desses contrastes, entre o des-
dianas, nos locais de moradia, trabalho, cortinamento da abóbada celeste no campo e na
compras, lazer e encontros' Para o humanismo cidade, estão assentados em um dos ensaios da
em geografia, na simbiótica relação entre ho- geógrafa Anne Buttimer" graças ao sensível re-
mens e meio ambiente, lugares devem ser con lato de uma migrante apalachiana: " gosto de
siderados como pessoas e pessoas como lembrar os dias em que vivemos no vale e nem
lugares'. Por conseguinte, para esta escola do Jack e nem eu importávamo-nos em saber as
pensamento - surgida nos anos 70 e apoiada horas ( ) Havia o sol, naturalmente; a hora do
nas filosofias do significado - cada ser humano é sol era suficiente para nós Aqui, nunca vemos
um geógrafo informal, pois é o homem que cria, o sol Pergunto a mim mesma: o que aconteceu
atua e vive no espaço, estando portanto capaci- com o sol e a lua? Posso caminhar durante se-
tado para discorrer sobre o seu mundo vivido, manas e jamais ver qualquer sinal de lua, e as
pleno de mistérios, entendimentos, significados, estrelas estão sempre atrás de alguma nuvem
devaneios, premências, rejeições, fantasias, sa- E o sol não brilha dentro de nossas janelas; pa-
tisfações e reminiscências rece que estamos no ângulo errado . Minha ga-
rotinha ouve-me queixar, porém realmente ela
O presente texto, procurando abordar uma não sabe do que estou falando Tinha dois anos
expressiva gama de fenômenos, evidencia, além quando saímos de casa, e ela não se lembra da-
de alguns aspectos da natureza, as diferentes quelas noites com estrelas tão baixas que você
etapas do meio ambiente Um primeiro segmen- podia estender uma xícara e enchê-la com elas,
to discorre sobre os "universos lunares, solares diria minha mãe, e a lua empoleirava-se sobre
e chuvosos" Os posteriores (campos agrícolas, uma árvore, sorrindo para você E pela manhã,
reflorestamentos, parques e jardins - recriando você repentinamente ouvia os pássaros começa-
a criação; aterros, subterrâneos, túneis e repre- rem a cantar e você sabia que estavam gritando
sas: a profanação da natureza e "shopping cen o seu alô ao sol, que estava tentando chegar do
ter - a utópica natureza pós moderna?") são seu território - da China, não é? Isso é o que o
dedicados às obras trabalhadas pelo homem nosso professor dizia, que à noite o sol estava
'Tuen 1984 p 146
4 Tusn 1985 p 144
' Relph 1979 e 1981
' Mello 1990 p 93
' Mello 1990 p 102
' Pocock 1981 p 337
Buttimer spud Coles Robert~ 1985 p 187
na China ( ) Se tivesse de dizer uma coisa do mam, seja através da exploração primitiva dos
que mais acho falta, seria o nascer do sol E a solos, seja por intermédio dos métodos empre
segunda, seria o pôr do sol Eu vejo porque todo gados na agricultura moderna Base da riqueza
mundo aqui tem de ter um relógio por perto De das nações, o excedente agrário permitiu o flo-
outro forma, eles jamais saberiam se está claro rescimento das primeiras cidades e, ainda hoje,
ou escuro nas ruas" a despeito de sua opulência, o espaço urbano
depende da produção rural Além desses aspec
Os habitantes do campo e os indivíduos de so- tos, o homem citadino busca, também, nas pai-
ciedades ágrafas sabem distinguir o tempo pre- sagens rurais (e silvestres) fontes de inspiração
vendo chuvas, vendavais e tempestades Os para viver a "boa vida", em um ambiente próxi-
autóctones aventuram-se por terras e mares, mo (ou cópia) da natureza espontânea
tendo como guia o posicionamento de astros e
estrelas O homem urbano (comum), ao contrá- A maior floresta urbana do mundo, replanta
rio; aprende algumas noções Sabe que o sol da a partir de 1861, por um período de quase
nasce no leste - ao meio-dia está justo sobre a três décadas, domina algumas porções monta-
sua cabeça - e se põe no oeste Conhece esta ou nhosas da cidade do Rio de Janeiro, em uma
aquela estrela e, baseado nas crenças popula- área anteriormente ocupada pela Mata Atlânti
res, recorre ao calendário para avaliar o possí- ca. O reflorestamento, realizado por um peque
vel sucesso de um novo tipo de regime no grupo de escravos, obedeceu às ordens
alimentar ou a época propícia ao corte de cabe- assinadas pelo Imperador D Pedro II atento à
lo, de acordo com o ciclo lunar Pessoas de siste- devastação causada pelas antigas plantações
mas sociais comunitários e estratificados cafeeiras O replantio de cerca de cem mil mu-
acreditam que são microcosmos, e por isso mes- das de espécimes nativos - vencendo as agres
mo a lua e os astros interferem em seus desti- sões ao meio ambiente - procurava não apenas
nos e nas mudanças climáticas recompor a exuberância florestal, como afastar o
perigo da falta de água para a população cario-
Os fenômenos da natureza, como a chuva ca Quase um século depois, em 1943, a Floresta
que abranda as temperaturas, ajuda a germi- da Tijuca recebeu um novo reflorestamento con-
nar a semente e torna as plantas mais exube- servando sua aura ao apresentar uma gama de
rantes , são bem-vindos Mas o excesso
atrações muito ampla, onde pode ser sorvido o
prejudica o desenrolar da dinâmica da vida As néctar da "boa vida", catalisado através de seu
chuvas torrenciais destroem as plantações nas verde radiante, o frescor de temperaturas ame-
áreas rurais e, no espaço urbano, atrapalham o nas, além de cascatas e grutas Integrante do
corre-corre diário e o leque diversificado de circuito turístico e freqüentada como área para
suas funções, quando não causam danos irrepa- piqueniques, caminhadas e passeios, este (ou
ráveis Na ausência de explicações para a vio tro) oásis da "Cidade Maravilhosa" - tombado
lência da natureza, o povo prefere, em diversas
oportunidades, decifrar o enigma apelando para como Patrimônio Histórico da Humanidade
razões sobrenaturais Em meados da década de possui status de Reserva Mundial da Biosfera,
60, quando o Rio de Janeiro foi assolado, em título este conferido pela UNESCO"
dois verões consecutivos, por grandes tempo Os parques urbanos, flancos qualitativos
rais, a população carioca julgou que a retirada onde podem ser desfrutados momentos espe-
do feriado de São Sebastião, padroeiro da cida- ciais e de contemplação, estabelecem uma outra
de, provocara a sua ira. Entretanto, mesmo com alternativa do homem para atenuar os impac
o retorno oficial do feriado do dia 20 de janeiro, tos à degradação ambiental
as chuvas dos primeiros meses do ano, por ve
zes amedrontadoras, continuam a ocorrer em Um primoroso manto verde incrustado na pe-
um ou outro verão carioca, caracterizado por riferia da área central do Rio de Janeiro, popu-
dias muito quentes e ensolarados larmente consagrado como Campo de Santana,
está catalogado nos anais de diversos aconteci
mentos relevantes do País Em sua galeria de
Campos Agrícolas, fatos notáveis, após a chegada dos brancos ao
Reflorestamentos, Parques e continente, consta que, de campo para pasto,
Jardins - Recriando a Criação passou a ser - como propriedade herdada por
escravos - depósito de lixo e esgoto, obtendo tra-
A arte do cultivo da terra tem sido uma das tamento urbanístico no início do Século XIX.
principais atividades desenvolvidas pelo ho- Em 1880, com um novo plano de ajardinamen
e

" Sobre o "Aterro do Flamengo" ver entre outros o Rio de Janeiro e suas Praças 1988
to, espelhado nos moldes ingleses, o Campo de lhas em diagonal - ou veredas ligeiramente for
Santana tornou-se um parque construído acima tas - com os próprios pés Uma maneira sim
do nível das ruas que o circundam, ostentando ples, eficiente e cômoda de cortar caminho, para
uma pompa magnífica ornada com alamedas, chegar mais rápido ao seu destino"
lagos, cavernas artificiais, variados tipos de ár- Quanto a outras características e adaptações
vores e gramíneas, além de animais, como co- das maravilhas do campo ao espaço urbano,
tias, cisnes e pavões" Palco imponente das pode-se lembrar que os subúrbios americanos e
cerimônias festivas do casamento do Príncipe os bairrosjardins persistem, com êxito, em co
Dom Pedro e Dona Maria Leopoldina (em nectar o esplendor do verde à grandeza da tida
1818), o espaço em questão serviu também (iro- de O cinema tem sido pródigo em mostrar a
nicamente), em 1889, como plataforma para o platéias embevecidas as vantagens locacionais
brado da Proclamação da República Em 1942 a e aprazíveis dos subúrbios americanos, édens
área verde em destaque cedeu uma parte de preenchidos por mansões com dois ambientes,
seu terreno para a construção de um monumen- sem muros, cercadas de canteiros e jardins Nos
to suntuoso: a Avenida Presidente Vargas, com países desenvolvidos, como os Estados Unidos,
suas pistas largas Todavia, os seus atalhos e as pessoas de alto poder aquisitivo residem em
notadamente o seu interior estão a salvo do ba bairros afastados da confusão e do ar poluído do
rulho ensurdecedor e do fantástico movimento centro de negócios e, ao mesmo tempo, próxi-
de veículos que transitam em suas redondezas mas (de automóvel) da abundância de bens e
Protegido por grades e portões de ferro, o uso do serviços oferecidos nos espaços urbanos Nos
Campo de Santana se restringe ao horário diur- países do Terceiro Mundo onde os custos para a
no e às primeiras horas da noite, evitando, as- implantação dos melhoramentos urbanísticos e
sim, segundo os administradores públicos, que a irradiação das amenidades se tornam extre
o local se transforme em antro noturno de va- mamente dispendiosos, as elites e alguns seg
dios, mendigos e assaltantes mentos da classe média procuram, da mesma
Os parques, jardins e sobretudo os edifícios forma, habitar em redomas de verde, como os
levantados hodiernamente costumam mere- bairros jardins (ou em condomínios fechados,
cer, em sua maioria, a mesma atenção devota- nas encostas das serras ou ainda à beira-mar)
da aos seus antecessores? Os arquitetos,
planejadores e paisagistas permanecem das Aterros, Subterrâneos, Túneis
lumbrando os povos com os cuidados e dese e Represas : A Profanação
nhos dispensados aos prédios e áreas verdes da Natureza
Contudo, algumas paisagens, até mesmo
aquelas que podem ser intituladas como ul- O saber geográfico tem procurado elucidar as
tramodernas, parecem obedecer a um padrão questões referentes à sagração e profanação dos
estandartizado A essas paisagens monótonas, lugares Assim, aproveitando a idéia expressa
"xerocopiadas", com repetição de seqüências, pela tradição judaico-cristã, o humanismo em
o geógrafo Relph" conceituou, em sua tese de geografia lembra que todo e qualquer lugar, em
doutoramento, como placelessness, neologismo razão da onipresença do Senhor, é sagrado"
que, em português, talvez possa ser mais bem Todavia, a temática a ser abordada nesta parte
compreendido como "deslugar" do texto diz respeito à profanação da natureza
Com referência aos parques e jardins, os espe- Por que (e para que) o homem constrói ater-
cialistas tentam converter, com capricho, para o ros, subterrâneos, túneis e represas? A respos-
bem-estar das populações, a exuberância da na- ta, seguindo a trilha do pensamento aqui
tureza No entanto, como lembra Mello" "os pla- traçado, é simples: para viver a "boa vida" Em
nejadores fechados em seus gabinetes parecem contrapartida, o que diriam os povos das cha-
ignorar detalhes mínimos enfrentados pelo povo madas sociedades tradicionais - como índios
em sua vida cotidiana O traçado dos caminhos brasileiros, pigmeus africanos e aborígines aus-
nos parques e jardins é riscado sem consulta aos tralianos - acostumados a operar pequenos im-
populares Assim, nos desafios do dia a dia o pactos e a viver em comunhão com a natureza?
povo não obedece aos caminhos aprontados pelas O local das grandes metamorfoses é, por ex
políticas públicas, passando a redesenhar as tri- celência, a cidade, um monumento suntuoso
1~ ORio de Janeiro e suas Praças (1988) p 20
ix Tese de doutoramento em geografia de RelphEdward publicadaem livro no ano de 1976
i1 Mello 1990 p 98
"Com respeito è sagração doslugares as consultas podem ser feitas entre outros aTuan 1978 Mello 1990 p 107 eMello 1991 p 199
produzido pelo homem, onde se pode viver a elevação que obstruía o espraiamento do centro
"boa vida", em função da pluralidade dos recur- da cidadela
sos disponíveis Entretanto, esta jóia majestosa, Ao longo de sua existência o "Parque do Fla-
eternamente burilada, perpetua se em meio a mengo" tem servido de arena para vários even-
constantes reparos Na realidade, o espaço ru- tos Mesmo antes de sua inauguração sediou,
ral também sofre mudanças, mas as ações pre- em 1955, com altar projetado 'pelo urbanista
datórias/restauradoras de maior relevância Lúcio Costa, as solenidades litúrgicas do
ocorrem no espaço urbano tais como desmontes
e aterros, algumas das grandes insígnias do ho- XXXVI Congresso Eucarístico Internacional
mem no espaço. Nesse sentido, o caso do Rio de Nas últimas décadas, o "Aterro" experiencia,
Janeiro é notório A cidade, fundada no Século nos dias úteis, manifestações importantes por
XVI, junto aos morros Cara de Cão e Pão-de- ser um centro e local de passagem, repouso, di-
Açúcar, foi, pouco tempo depois, transferida versão, cultura e trabalho Aos domingos, com o
para o morro do Castelo Mas a presença de vá- trânsito correndo tão-somente nas pistas situa-
das junto ao paredão de edifícios do bairro do
rios acidentes geográficos - como morros, brejos, Flamengo, o "Aterro" cumpre as funções perti-
mangues, lagos, rios e o próprio mar - impedia o nentes a um parque, ao ser transformado em
seu espraiamento Por conseguinte, o homem um grande playground para recreação de adul-
passou a empreender diferentes retoques urba- tos e crianças
nísticos para tornar a cidade saudável, aprazí-
vel e funcional, logo, humanizada No que concerne aos subterrâneos, o metro-
O "Aterro do Flamengo" - assim popularmen- politano - sistema de viação que desliza sobre
te chamado - é um dos exemplos mais significa trilhos no subsolo de algumas das grandes ci-
tivos do processo de embelezamento e expansão dades do planeta - salienta uma outra faceta
que a paisagem carioca tem recebido ao longo laboriosa e desafiante do homem como trans-
de sua existência Situado entre a baía de Gua- formador da natureza
nabara, cercanias da área central e Zona Sul da A maioria dos metros - construídos para de-
"Cidade Maravilhosa", o "maior parque urbano safogar o trânsito de superfície - exerce um fas-
do mundo" abriga, junto a um concorrido bal- cínio notável, não apenas por sua própria
neário e sobre uma extensa faixa ajardinada concepção, como pela grandiosidade ou misté-
além de diversos monumentos, clubes náuticos, rios que encerram O underground de Londres
restaurantes, museus de artes e militares, qua- causa espanto por ter sido aberto no século pas-
dras e campos esportivos -, também vias que sado e por servir aos mais diversos recantos da
servem como escoadouro do tráfego de veículos capital inglesa O metro de Moscou é reconheci-
Os primeiros aterros em seu perímetro foram damente uma relíquia que ostenta desenhos, vi
executados entre 1779 e 1783 com o arrasamen- trais e pinturas como uma galeria de arte
to do morro das Mangueiras, resultando na ex- subterrânea O subway de Nova Iorque é famo-
tinção da infeçtada lagoa de Boqueirão Outros so por mesclar, à sua eficiência, perigo e violên-
pequenos aterros foram realizados sob a res- cia O metrô de São Paulo facilita a vida dos
ponsabilidade dos moradores locais com autori- paulistanos estabelecendo ligações nos sentidos
zação e, por vezes, ressarcimento da Câmara norte-sul-leste-oeste da maior cidade da Améri-
Municipal Em 1919, na antevéspera da exposi- ca do Sul O caso do metropolitano do Rio de Ja-
ção comemorativa do Centenário da Inde- neiro é igualmente admirável Como grande
pendência do Brasil, o "Aterro" teve as suas parte do seu eixo primaz serve à área central,
dimensões acentuadamente ampliadas Para a os meandros e transtornos para sua execução
concretização de tal objetivo, o morro do Caste- foram enormes
lo - "berço dá cidade" - foi arrasado e seus edifí-
cios históricos, entre eles a antiga Catedral, A estação Carioca do metrô do Rio de Janei-
bem como vários prédios residenciais, destruí- ro, uma das mais imponentes e de movimento
dos Seu entulho continha um volume de tal mais intenso do core da cidade, funciona como
monta que serviu igualmente para aterrar par- amostra em relação aos obstáculos vencidos du-
te da orla marítima do bairro da Urca e o sopé rante a perfuração dos caminhos subterrâneos
do morro do Pão-de-Açúcar Uma outra etapa na ex-capital do País O famoso Largo da Cario-
de alargamento do Parque Brigadeiro Eduardo ca - erigido em sítio onde anteriormente havia
Gomes - seu nome oficial data de 1954 com a uma lagoa - enfrentou, durante séculos, várias
demolição do morro de Santo Antônio, outra ondas de aterros, ampliações e processos de

11 Abreu 1987 e 0 Rio de Janeiro e sues Praças (1988) p 40 47


aj ardinamentos, càminando, recentemente, tela, freqüentemente utilizado pela população
nos anos 70, com a inauguração da referida es sem teto, como dormitório, é outrossim ponto de
tação subterrânea Por isso mesmo a população hordas de meninos e meninas de rua que, carco-
da cidade, colocando em dúvida a conclusão da midos pela fome e o abandono, a todo instante,
obra, comentava que aqueles grandes buracos mendigam, cheiram cola de sapato ou preparam
espalhados pela cidade poderiam sucumbir, a alguma investida para roubar um pedestre
qualquer instante, com os temporais que casti- qualquer
gam o espaço urbano carioca, notadamente no
verão Na época, enquanto os pedestres procura- Os túneis constituem outro grande sinal dos
vam evitar o mar de lama e nuvens de poeira esforços do homem em modificar a natureza
equilibrando se entre os tapumes protetores e as para viver a "boa vida" Esses caminhos subter-
tábuas utilizadas como passarelas - as unidades râneos - muito embora vençam obstáculos, tais
comerciais e de serviços situadas nos logradou como morros e montanhas, permitindo o fluxo
ros atingidos ficaram sujeitas aos tormentos da mais rápido de veículos carregam, sobretudo
queda vertiginosa de seus negócios Todavia, a no espaço intra urbano, um rastro de dor e de-
finalização da linha 1 do metrô contemplou o solação coetâneo aos períodos de suas constru-
Rio de Janeiro com uma raridade repleta de en ções A propósito, um exemplo muito rico diz
cantos e serventia capaz de reverter a conduta respeito ao bairro do Catumbi, localizado entre
do carioca A esta obra monumental o povo tem a periferia da área central e a Zona Norte da ci
dispensado um tratamento absolutamente dis dade do Rio de Janeiro, que padeceu sobrema-
tinto e (até mesmo) paradoxal Nas estações do neira com as obras para o aprontamento dos
metrô, munidas de sistema de ventilação e ar túneis Santa Bárbara (conectando Catumbi ao
condicionado, com forte luminosidade, conforto, bairro das Laranjeiras, na Zona Sul da cidade)
segurança e escadas rolantes, entre outros atri e Prefeito Martins Vaz, interligando as Ruas
butos, persistem as regras da educação ociden Frei Caneca e Henrique Valadares
tal Os usuários, solícitos, falam baixo, não Desde 1927, quando da elaboração do Plano
fumam ou jogam qualquer espécie de lixo no Agache, os proprietários de estabelecimentos co
chão, as paredes de mármore ou concreto conti merciais ou industriais e as pessoas domicilia
nuam imaculadas, sem pichações, e os assaltos das em casas e cortiços do bairro do Catumbi
ou suicídios são raríssimos (e, por vezes, enco suportaram, com temor e descrença, os constan
bertos) Em contraponto, na parte superior das tes rumores e noticiário da imprensa, a respeito
estações do metropolitano o solo artificial ou da desapropriação de seus imóveis Mas somen
laje, que separa dois mundos absolutamente te no início dos anos 60, durante a gestão do Go
opostos - pulsa um cenário com uma mixórdia verno Carlos Lacerda, as obras relativas à
de acontecimentos comuns, incongruentes e abertura do túnel Santa Bárbara foram real
inusitados mente efetivadas Diversos imóveis, logradouros
Na superfície, no Largo da Carioca propria- e a capela de Nossa Senhora da Conceição foram
mente dito, assomam as mazelas de uma mise lenta e dolorosamente atingidos, mutilados ou,
rópolis como Calcutá ou Bombaim, modelo que para usar a consagrada expressão popular, "ris-
algumas metrópoles brasileiras teimam em se cados do mapa", para agilizar a entrega ao tráfe
guir desde o início dos anos 80, com o recrudes go, em 1963, do túnel "Catumbi Laranjeiras" e
ainda para a perfuração das galerias pluviais,
cimento da crise econômica brasileira Nesse
imenso palco aberto atuam como protagonistas tendo em vista que o bairro, rodeado de morros
(Santa Teresa, Coroa, Querosene, Catumbi, Mi
e coadjuvantes, na coreografia do dia-a dia, neira), era transformado, em dias de chuvas for
transeuntes dos mais diversos grupos sociais e renciais, em uma "grande bacia hidrográfica",
faixas etárias, que assim podem apreciar a sole com suas ruas formando "calhas" ou "caudalosos
ne e aparatosa arquitetura do Convento de rios" de água barrenta, repleta de lixo que rola
Santo Antônio, ou o luxo dos modernos ediíi- va das encostas dos morros e favelas
cios, com mais de 30 pavimentos, que mar-
geiam o logradouro Ao mesmo tempo, os atores No transcurso da década de 70 o bairro do
do teatro da vida, enquanto ouvem os ecos dos Catumbi amargou um novo ciclo de arrasamen
trovadores e instrumentistas de rua, tentam to de vários quarteirões que, afora a inaugura
não tropeçar nos tabuleiros dos camelôs espa ção do túnel Prefeito Martins Vaz, em 1977,
lhados por todos os lados Nesse quadro multi permitiu a edificação de vias expressas Como
facetado o desconforto e o pavor surgem frente de hábito, no conjunto da reorganização do es
às mais variadas e deprimentes manifestações paço promovido pelas políticas públicas, os pro-
da degradação humana 0 espaço coletivo em prietários de estabelecimentos comerciais e
prédios residenciais do bairro foram contempla- Sá e Gutemberg Guarabira Seus versos meló-
dos com indenizações irrisórias, restando aos dicos começam narrando : "O homem chega e já
inquilinos, além da amargura do despejo, as desfaz a naturezaltira gente, põe represa, diz
lembranças do antigo universo vivido que tudo vai mudar/o São Francisco, lá pra
A transformação espacial assistida pelo Ca- cima da Bahia/diz que dia menos dia vai subir
tumbi, com a abertura de túneis, entre outras bem devagar/e passo a passo vai cumprindo a
grandes obras, não rompeu de todo com os laços profecia do beato que dizia/que o sertão ia ala-
de amizade trançados ao longo de várias gera- gar/o sertão vai virar mar, dá no coração%
ções de representantes das colônias portuguesa, medo que algum dia o mar também vire ser-
espanhola, italiana e ciganos sedentários esta- tão "
belecidos no local A reurbanização trouxe os la- O reservatório de Sobradinho aparece com
ços de concreto (viadutos/vias expressas) para o destaque no mapa de um País de dimensões
fluxo do trânsito, nesse espaço não totalmente continentais como o Brasil Contudo, para o ho-
reestruturado em razão da luta dos comercian- mem construir um utensílio dessa magnitude -
tes, padres e populares unidos em torno da As- apontando o seu fantástico estágio tecnológico -
sociação de Moradores do Catumbi Nos dias de desfaz parte da natureza e arranca o povo de
hoje, longe dos tempos do canto emocionado e seu lugar vivido
triste das suas grandes procissões e a ale-
gria/descontração dos famosos carnavais de ou- O rio São Francisco nasce no Estado de Mi-
trora, permanecem cristalizados lado a lado o nas Gerais e, como uma bênção, atravessa o
"antigo" e o "novo" na paisagem do Catumbi, sertão semi-árido, banhando alguns estados da
diante das marcas do conflito Estado X Comu- Região Nordeste como Bahia, Pernambuco, Ala-
nidade de bairro, através de casas e prédios hu- goas e Sergipe " Lá pra cima da Bahia ",
mildes contrastando com um emaranhado de quer dizer no norte do estado, teve o seu curso
laços de concreto alterado para que à estagnada situação do vale,
de atividade econômica tradicionalmente pau-
Obras faraônicas como aterros, subterrâneos tada na pecuária extensiva, pudessem ser in-
e túneis são geralmente encontradas nas cida- corporadas as técnicas de irrigação para
des Todavia, as represas, uma das megainter- lavoura e a atividade pesqueira no lago de So-
venções do homem na natureza e, como se sabe, bradinho'e Mas as mutações drásticas operadas
consumidoras de muito espaço são, via de re- na natureza são acompanhadas de presságios
gra, erigidas fora do perímetro urbano Instru- aterrorizantes : " o sertão vai virar mar, dá no
mentos de alento para o sofrimento dos povos, coração% medo que algum dia o mar também
as represas viabilizam a irrigação dos solos, ar- vire sertão " Assim, crendices, surpresas, te-
mazenam e fornecem água e energia elétrica mores e dúvidas misturam-se aos vaticínios de
para as populações circunvizinhas e, entre ou- alguma vingança irreversível da natureza
tros aspectos, corrigem - de acordo com as ne-
cessidades humanas - o curso dos rios e os Na segunda parte do contundente discurso
regimes de queda-d'água, facilitando, assim, o melódico a famosa dupla de cantores/composito-
desenvolvimento dos meios de transportes la- res Sá e Guarabira saúda os lugares atingidos
custre/fluvial. com versos tecidos de nostalgia e (repetidos) re-
ceios: " deus Remanso, Casa Nova, Sento
A cidade - plural, heterogênea, polifórmica e Sé/adeus Pilão Arcado, vem o rio te engolir/de-
(in)completa - é o artefato mais pujante e com baixo d'água lá se vai a vida inteira/por cima da
plexo talhado pelo homem; Mas, como produto cachoeira o gaiola vai subir/vai ter barrragem
singular, as represas impressionam pelo gigan- no salto do Sobradinho% o povo vai se embora
tismo Com sua habilidade o ser humano tem com medo de se afogar/o sertão vai virar mar,
sido capaz de domar parte da natureza, cons dá no coração% medo que algum dia o mar tam-
truindo, para o seu proveito, um objeto que, por bém vire sertão"
vezes, transcende o tamanho de cidades, princi
pados e mesmo alguns países Para a concretização da " barragem no salto
do Sobradinho " municípios como " Remanso,
A represa de Sobradinho, construída em mea- Casa Nova, Sento Sé (e) Pilão Arcado " cede-
dos dos anos 70, no Estado da Bahia, região ram porções de seus territórios, tendo suas po-
Nordeste do Brasil, ganhou maior notoriedade pulações sido transferidas para locais prévia e
com o sucesso nacional da música Sobradinho monotonamente edificados, segundo as normas
(1978), escrita a quatro mãos por Luis Carlos ditadas pelos dirigentes e planejadores gover-

16 Oliveira (inédito)
namentais " Debaixo d'água lá se vai a vida À guisa de ilustração, vale recordar que, em
inteira : " transformada com o "progresso" em suas premissas evolucionistas, Lewis Henry
inquietações e lembranças Todavia, ao lado da Morgan (1818-1881), "pai da antropologia ame-
crueldade do desalojamento das pessoas da ricana", arrola algumas das grandes fases cul-
mística do antigo universo vivido, resta ainda, turais do homem partindo da etapa anterior à
juntamente com a saudade, o consolo de conti- dieta do peixe e o acesso ao fogo e à fala até a
nuar navegando nas águas do "Velho Chico" (o civilização, com o advento do alfabeto" Hodier
carinhoso apelido do rio) em embarcações como namente, a complexidade e a heterogeneidade
" o gaiola " e usufruir do potencial e fartura dos bens e serviços são - não há como negar - al
oferecidos pela represa de Sobradinho, com vis- tamente seletivas Mas, no conjunto das inova
tas à prosperidade e à "boa vida" ções, o laser, a "maquininha" das instituições
bancárias (com sistema on line), o microcompu-
tador, o fax, o telex, as transmissões radiofóni
Shopping Center - A Utópica cas e televisivas via satélite, a antena
Natureza Pós-moderna? parabólica, a liberdade de ação, os novos costu
mes e experiências, para citar apenas alguns
Os shopping centers seriam o coroamento do exemplos, trazem benefícios à população mun-
patamar mais radical e sofisticado da natureza dial, como podem ser reconhecidos nos serviços
(re)elaborada pelo homem?-4s chamadas "cate prestados pela medicina e nos momentos de La-
drais do consumo", somatório de vários aspec zer
tos, associam elementos do projeto utópico Os shopping centers - construídos em conso-
sonhado por Thomas Morus (1480 1535) e a pa- nância com os ditames estadunidenses - "sub-
rafernália da pós-modernidade centros fechados e de luxo", ou como quer que
Nas fantasias extraordinárias de Morus os sejam rotulados, não devem ser confundidos (a
habitantes dos lugares utópicos vivem em casas ressalva é importante) com as galerias comer-
cobertas por um telhado resistente ao mau tem- ciais. Enclaves glamurosos e das maravilhas,
po e dotadas de janelas envidraçadas contra- onde os passantes são belos ou assim se fazem,
postas à ação da corrente de ar" As ruas e por suas roupas e ainda pela conduta, esses
praças - amplas, higiênicas e ajardinadas - com- "rincões da pós-modernidade", como nos lindos
poriam (de maneira resumida) o emolduramen- sonhos de fadas, reproduzem paraísos encanta
to desses magníficos recantos paradisíacos dos, os quais oferecem para os seus "eleitos" co-
modidade, música, pequenos lagos e canteiros,
A pós-modernidade, por outro lado, é uma te- iluminação feérica, comércio e serviços refina-
mática que tem acirrado discussões acaloradas dos, além de proteção contra a violência, a po-
no âmbito das ciências sociais e das filosofias luição, as intempéries e a pobreza ou miséria do
Enquanto alguns estudiosos se debruçam com mundo "exterior""
afinco sobre o assunto, outros pensadores en-
tendem o pós-moderno como uma tolice estéril, Epílogo
conseqüência de um modismo pedante
Com "o suor do teu rosto comerás o teu pão"
A mídia, vez por outra, transmite, para o (Gênesis, 3,19) disse o Criador a Adão, antes de
grande público, as idéias de alguns especialis- expulsá-lo do Jardim do Éden Desde então, o
tas de que a modernidade começou com a the homem, com perseverança e constância conti-
gada de Colombo à América em 1492 Os nua insistindo em "retornar" ao paraíso
primeiros passos do homem na lua não pode-
riam ser, então, o marco de um novo tempo? Os fiéis seguidores de algumas religiões
Para o antropólogo Jair Ferreira dos Santos, crêem que após o sofrimento vivido na Terra al-
um dos filósofos de pós moderno, as mudanças cançarão o reino dos céus Os princípios e os de
do pós-guerra demarcaram uma nova era Geó- sejos de chegada a um mundo fabuloso não se
grafos como David Harvey opinam que o exór restringem aos adeptos de filosofias monoteís-
dio da pós-modernidade se deu com a implosão tas como cristãos e muçulmanos Agnósticos e
de um prédio, símbolo da arquitetura moderna, crentes, e ainda povos de sociedades tribais al
ocorrida em 1972'8 mejam ancorar no paraíso ou viver a "boa vida"
1° 91Lan citando Palmar p s
"e Santos Jair Ferreira doe 1988 e Harvey 1888
" Peito 1984 p 90 89
"Mello 1991 p 200
Antes do "Descobrimento do Brasil", em 1500, portal do paraíso para viver a "boa vida" (nesta
os povos do mundo Tupi-Guarani - instruídos ou em outra dimensão), A busca, continua
pelos karai, profetas-filósofos, que se diziam fi-
lhos de uma mulher com uma divindade - for- Bibliografia
maram intensas correntes migratórias em
direção ao leste, ao encontro da "terra sem ABREU, Maurício de Almeida Evolução, urbana do
mal" Embora a barreira oceânica frustrasse o Rio de Janeiro Rio de Janeiro : IPLAN/Zahar,
sonho de atingir o que poderia ser traduzido 1987 147 p
para a cultura ocidental como um espécie de BUTTIMER, Anne Erewhon or Nowhere land In:
"shangri-lá", os índios continuaram a acalentar GALE, Stephen ; OLSSON, Gunnar, eds Philo
os delírios de aportar na morada dos deuses, sophy in Geography Dordrecht : D Reidel Pablis
onde o milho cresce sem qualquer trabalho e o hing, 1979 p 9 37
sol brilha intensamente" - Aprendendo o dinamismo do mundo vivido In:
Os sonhos e os devaneios aliviam as dores e CHRISTOFOLETTI, Antonio, ed. Perspectivas da
Geografia São Paulo: Difel, 1985 a p 165 193
conduzem os indivíduos a lugares encantados
Os meios de comunicação e as artes também co- CLASTRES, Pierre A arqueologia da violência Bra
locam (indiretamente), ao alcance das multi- siliense, 1983
dões, paraísos naturais como as ilhas dos Mares CORRÊA, Roberto Lobato Região e organização es
do Sul ou do Caribe e aqueles trabalhados pela pacial São Paulo: Ática, 1986 93 p
mão do homem Mas, com exceção de seus pró - O espaço urbano São Paulo : Ática, 1989 94 p
prios habitantes, alguns desses lugares só po
DUARTE, Aluízio Capdeville et al A área central do
dem ser visitados por turistas aquinhoados Rio de Janeiro Rio de Janeiro: IBGE, 1967 158 p
Os paraísos naturais conservam sua magia FOLCH SERRA, Mireya Geography and post-moder
diante da luz solar As noites enluaradas tam- nism: linking humanism and development stu
bém exercem um grande fascínio Contudo, a dies The Canadian Geographer, 33: 66-75, 1989
maioria as pessoas prefere não se aventurar HARVEY, David The Condition of Postmodernity :
nas praias, montanhas ou bosques junto aos an Inquiry into the Origins of Cultural Change
mistérios da noite Oxford : Basil Blackwell, 1990
As tentativas de "reproduções" paradisíacas LEY, David Rediscovering man's place Transactions
são acompanhadas de percalços e muito traba- Institute of British Geographers New Series 7:
lho, por um lado, e fantasias ou ansiedades, por 248 253, 1982
outro, que impedem o pleno gozo da "boa vida" MELLO, João Baptista Ferreira de Geografia huma
No bojo da reorganização do espaço várias nística : A perspectiva de experiência vivida e
obras construídas - de acordo com os empreen- uma crítica radical ao positivismo Revista Brasi
dedores das políticas públicas para minorar o leira de Geografia, Rio de Janeiro : IBGE, 52 (4)
91 115, out /dez , 1990
sofrimento do povo e trazer o "progresso" ense-
jam conflitos e, depois de prontas, continuam a - O Rio de Janeiro dos compositores da música
ser rejeitadas, por outros motivos Os claustró- popular brasileira 1928/1991- uma introdução à
fobos se recusam a "cortar caminho" atraves- geografia humanística Dissertação de Mestrado,
sando os túneis cavados na base dos morros ou UFRJ, 1991 301 p
a viajar de metrô "debaixo da terra", no que são NUNES, Guida Catumbi, rebelião de um povo traí
acompanhados pelas pessoas temerosas de al- do Petrópolis: Vozes, 1978 196 p
gum tipo de desabamento Os "paraísos utópi- OLIVEIRA, Lúcia de Divisão regional do Brasil em
cos" como os shopping centers são desprezados, mesorregiões e microrregiões geográficas Esta
por alguns, exatamente porque, imunes à ação do da Bahia Rio de Janeiro: IBGE (inédito)
do clima exterior, mudam o ritmo da vida tradi- PELTO, Pertti J Iniciação ao estudo da antropolo
cional e impedem o "bater pernas" nas calçadas gia Zahar, 1984 144 p
e o acompanhamento das coisas simples do POCOCK, Douglas C D Place and the novelist
mundo vivido Transactions of the Institute of British Geograp
O que é o paraíso? Onde está localizado? Às hers, New Series 6, p 337-347 1981
opiniões são múltiplas e divergentes Cada ser RELPH, Edward C Place and placelessness London :
humano tem uma concepção sobre o "shangri- Pion,1976 156 p
lá", o lugar das delícias Todavia, se há um traço - As bases fenomenológicas da geografia Geo
comum entre a humanidade é o da travessia do grafia, 4 (7) : 125, 1979
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