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BIOÉTICA: princípios e aplicações

OBJETIVO DESTA UNIDADE:

Conceituar os princípios bioeticistas e suas propriedades por


meio da aplicação a casos selecionados.

Princípios em Bioética

Os princípios fundamentais da Bioética passaram


a ganhar destaque a partir da publicação do
The Belmont Report, publicado pela National
Commision for the Protection of Human Subjects
of Biomedical and Behavioral Research. Tal Unidade

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relatório, gerado em 1978, na secção B,
aponta justamente para esses princípios,
grafados como: o respeito às pessoas, a
beneficência e a justiça.
The Belmont Report, traduzido como Relatório Belmont, é o produto
de uma investigação que durou de 1974 a 1978 após o relato de três
casos ocorridos em solo americano: a) em 1963, no Hospital Israelita
de Doenças Crônica, em Nova York, foram injetadas células cancerosas
vivas em idosos doentes, com fins de experimentação científica e sem
conhecimento e consentimento desses pacientes; b) entre 1950 e 1970,
no Hospital Estadual de Willowbrook, em Nova York, injetaram o vírus da
hepatite em crianças com deficiência mental, nas mesmas condições do
caso anterior; e, c) Em 1932, no Estado do Alabama, no que foi conhecido
como o caso Tuskegee, 400 negros com sífilis foram recrutados para
participarem de uma pesquisa de história natural da doença e foram
deixados sem tratamento. Em 1972 a pesquisa foi interrompida após
denúncia no The New York Times. Restaram 74 pessoas vivas sem
tratamento, a maioria latinos, negros e empobrecidos.

O Governo e o Congresso norte-americano constituíram, em 1974, a


National Comission for the Protection of Human Subjects of Biomedical
and Behavioral Research. Foi estabelecido, como objetivo principal
da Comissão, identificar os princípios éticos “básicos” que deveriam
conduzir a experimentação em seres humanos.

A esses princípios foram acrescentados depois os princípios de não-


maleficência e a transformação do princípio do respeito às pessoas
em princípio de autonomia. Discute-se junto a isto as questões do
consentimento e da representação responsável.

Princípio de autonomia

O primeiro princípio (o respeito às pessoas) é também conhecido,


conforme Clotet (2003, p.23), como princípio da autonomia.
Este princípio “[...] exige que aceitemos que elas [as pessoas] se
autogovernem, ou sejam autônomas, quer na sua escolha, quer nos
seus atos” (CLOTET, 2003, p.24).

Clotet (2003) faz uma síntese desse princípio nos seguintes tópicos:

a) O autogoverno das pessoas;


b) Autonomia de escolha e de ação;
c) Respeito do médico à vontade do paciente ou à do seu

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representante;
d) Respeito aos valores morais e crenças do paciente;
e) Domínio do paciente sobre sua própria vida;
f) Limite às intromissões aos tratamentos;
g) Respeito à individualidade.

Clotet e Kipper (in COSTA; GARRAFA; OSELKA, 1988, p.37-51) ligam


o princípio da autonomia ao princípio da pessoalidade, para o qual a
definição de pessoa é de suma importância.

Mas, o que vem a ser pessoa?

Clotet (2003) enumera algumas reflexões, baseadas na opinião de Jean


Bernard:

[…] a pessoa é uma individualidade biológica, um ser


de relações psicossociais, um indivíduo para os juristas.
Contudo, ela transcende essas definições analíticas.
Ela aparece como um valor, [...] Nos problemas éticos
decorrentes do processo das pesquisas biológicas e
médicas devem ser respeitados todos os homens e o
homem todo (BERNARD apud Clotet, 2003, p.55).

Outra opinião considerada por ele é a de Kant, para o qual:


[…] os seres racionais são chamados de pessoas
porque a sua natureza se diferencia como fim em si
mesma; quer dizer, como algo que não pode ser usado
somente como meio, e, portanto, limita nesse sentido
todo capricho e é um objeto de respeito (KANT apud
CLOTET, 2003, p.55).

No entanto o conceito de pessoa não é ainda um conceito unívoco.


Há muitas discordâncias em torno dele, em especial, quando entra em
pauta o problema da hominização, que por sua vez se liga diretamente
à questão do aborto.

Princípio de Beneficência

O princípio da beneficência, de acordo com Clotet (2003, p.24), requer


“[...] que sejam atendidos os interesses importantes e legítimos dos
indivíduos e que, na medida do possível, sejam evitados danos”. Esse
autor associa este princípio à noção de bem-estar, cuja fundamentação

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remonta a Hipócrates: “usarei o tratamento para o bem dos enfermos,
segundo minha capacidade e juízo, mas nunca para fazer o mal e a
injustiça” (HIPÓCRATES apud CLOTET, 2003, p.25).

Alguns autores consideram que ao procurar fazer o bem a pessoa


necessariamente estará evitando o mal, daí concluírem que a outra face
do princípio da beneficência é a não-maleficência. No entanto, outros
autores e declarações o pressupõem como um princípio independente.

Princípio de Não-Maleficência

Autores como Garcia (1998) colocam este princípio como o primeiro


princípio da Bioética, ao lado do princípio da justiça – que não somente
ele, mas muito outros autores o compreendem como um princípio
transversal aos demais.

Para García (1998), o dever de não causar danos a outros é superior


ao de beneficiá-los. Ele faz uma distinção entre princípios públicos e
privados: os princípios da autonomia e da beneficência são privados, ao
passo que os princípios de não-maleficência e justiça são públicos. Isso
porque compreende a beneficência ligada diretamente ao sistema de
valores religiosos, culturais, políticos e econômicos – portanto, privados.
E completa que um ato de beneficência pressupõe liberdade, donde se
liga à autonomia. No entanto, a níveis éticos que obrigam a todos, são
deveres públicos, dentre estes estão a justiça e a não-maleficência.

Princípio de Justiça

O quarto princípio, o da justiça, na acepção de Clotet (2003, p.25),


“[...] exige equidade na distribuição de bens e benefícios no que
se refere ao exercício da medicina ou área da saúde”. Desse modo,
este princípio coloca Bioética em discussão direta com o Direito
(especialmente, com o Biodireito) e com as políticas públicas voltadas
para a gerência do poder e distribuição das garantias individuais no
tocante à vida, saúde e morte.

62 Curso de Bioética
Contudo, o que vem a ser isto, a justiça, não é uma definição consensual
e comporta inúmeras contradições, algumas das quais inconciliáveis.
Evocamos o trabalho de Chaïm Perelman, Ética e Direito, para elucidar isso.

De acordo com Perelman (1996), a sua teoria da justiça não busca


uma concepção sublime de justiça que deva ser mais venerável que
as demais; logo, se não há a justiça mais venerável também não há a
justiça única e verdadeira. Isso porque, o conceito de justiça não é um
conceito indiferente. Além do mais, trata-se de um dos conceitos mais
confuso, mais dotado de emotividade.

Dentre os muitos conceitos possíveis de justiça estão:

A justiça como dar a cada qual a mesma coisa

Todos devem ser tratados da mesma forma, sem levar em conta


nenhuma das particularidades que as distinguem. Desse modo, a justiça
perfeita é a morte, que não considera ninguém mais privilegiado.

Essa concepção é a única que trabalha com uma concepção de justiça


puramente igualitária. Todos os seres aos quais se deseja aplicar a
justiça fazem parte de uma só e única categoria essencial.

Essa fórmula não pode ser tomada como um humanitarismo igualitário,


pois a categoria essencial à qual ela se aplica não é a “todos os homens”
mas apenas a “alguns”.

Não sendo um humanitarismo igualitário, essa fórmula de justiça


constitui um meio de fortalecer as relações de solidariedade entre os
membros de uma classe que se considera incomparavelmente superior
aos outros habitantes do país.

Essa concepção fica modificada com a aplicação do conceito de justiça


formal para a fórmula “a cada membro da mesma categoria essencial,
a mesma coisa”.

A justiça como dar a cada qual segundo seus méritos

Deve-se dar um tratamento proporcional a cada um de acordo com


a proporção de uma determinada qualidade intrínseca, ao mérito da
pessoa humana. Essa justiça pesa os méritos de cada um. Não sendo

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fácil decidir a justa recompensa ou o justo castigo aqui na Terra, estes
ficam para uma vida no além.

Essa concepção exige uma proporcionalidade entre o mérito e o trato


dado aos que fazem parte da mesma categoria essencial.

Essa categoria essencial é definida quanto ao mérito e quanto ao grau


em que possui tal mérito. Assim, para serem tratados da mesma forma,
dois seres têm que possuir o mesmo mérito no mesmo grau.

As noções de recompensa e punição devem corresponder às noções


de mérito e demérito nos seus graus proporcionalmente equivalentes.

Para julgar da mesma forma, aplicando essa concepção de justiça, dois


seres devem não só ter o desejo de aplicar a mesma concepção da
justiça concreta, mas ainda terem a mesma representação dos fatos
submetidos às suas apreciações.

Um julgamento pode ser qualificado de injusto se:

• Aplicar uma fórmula de justiça concreta que não é aceita;


• Conceber a mesma fórmula de modo diferente;
• Fazer uma representação inadequada dos fatos;
• Infringir as prescrições da justiça formal que exigem que
se trate da mesma forma os seres que fazem parte de uma
mesma categoria essencial.

A justiça como dar a cada qual segundo suas obras

Deve-se tratar proporcionalmente a cada um de acordo com o resultado


de suas ações.

Essa concepção de justiça considera que fazem parte de uma mesma


categoria essencial aqueles cuja produção ou cujos conhecimentos têm
igual valor aos olhos do juiz. Se, colocando-se em certo ponto de vista,
certas obras ou certos conhecimentos são considerados equivalentes,
cumpre tratar da mesma forma os autores dessas obras ou aqueles
cujos conhecimentos são examinados.

Ela está por trás dos exames ou concursos, das noções de “salário
justo”, “preço justo” etc. e não se aplica a obras que necessitam, em
sua execução, de habilidades especiais ou de genialidade.

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As obras precisam ser da mesma natureza para que esse critério possa
ser aplicado.

A justiça como dar a cada qual segundo suas necessidades

Deve-se procurar diminuir os sofrimentos que resultam da


impossibilidade de satisfazer às necessidades essenciais de quem as
carece. Tratar da mesma forma aqueles que fazem parte da mesma
categoria essencial do ponto de vista de suas necessidades.

Essa fórmula se aproxima da caridade. Mas, o que a diferencia da


caridade é que, ao passo que a caridade considera as necessidades
do indivíduo tomado em sua individualidade, a justiça toma as
necessidades do indivíduo como necessidades coletivas do grupo no
qual está inserido.

Toda justiça social se fundamenta nesta concepção.

As necessidades levadas em consideração são as “necessidades


essenciais”. Dizer quais são estas não é algo que todos concordam.

É necessário estabelecer uma hierarquia das necessidades do indivíduo


para priorizar as que devem ser supridas mais imediatamente.

A justiça como dar a cada qual segundo sua posição

Deve-se tratar os seres humanos conforme pertençam a uma ou outra


determinada categoria de seres. Esta é uma concepção aristocrática de
justiça.

Não se trata de uma concepção universalista da justiça, mas reparte


os homens em categorias de seres diferentes, que devem ser tratados
diferentemente.

Embora não acredite numa hierarquia dos seres, esta concepção de justiça
defende que ser justo é tomar atitudes diferentes para com membros de
classes diferentes e tomar atitudes iguais para com membros de classes
iguais, uma vez que pertençam à mesma categoria essencial.

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A noção de classe não é necessariamente social, mas pode envolver
critérios como: cor da pele, língua, religião, estado civil etc.

Esta concepção de justiça exige um equivalente entre o posto, os


direitos e as responsabilidades, afinal, a “nobreza obriga”.

A cada qual segundo o que a lei lhe atribui

Deve-se dar a cada um aquilo que está na lei, na forma que a lei
determina. Afinal, ser justo é aplicar as leis do lugar.

Cada sistema jurídico é uma variante dessa concepção de justiça.

Essa concepção de justiça não é moral, mas jurídica: o juiz não pode
escolher uma concepção de justiça, mas lhe cabe tão somente aplicar
a regra estabelecida. Em moral se aplicam as regras da consciência aos
fatos, em direito se qualificam os fatos.

Em direito moderno, as duas instâncias, a que determina as categorias


e a que as aplica, são rigorosamente separadas; em moral, estão unidas
na consciência.

O critério da aplicação da justiça legal não torna o juiz (isolado como


pessoa ou como conjunto na jurisprudência) em mero “operador do
direito”, mas um interprete e interferidor da lei: um analisa os fatos a
partir de sua concepção subjetiva do mundo (o juiz), o outro dissipa
as noções confusas e equívocas da lei, estabelecendo o costume ou o
desuso (a jurisprudência).

A concepção de justiça que norteia a fórmula “a cada qual o que a lei


lhe atribui” é uma noção de justiça estabelecida pelos detentores do
poder (seja o povo ou o tirano).

Estudos de caso em Bioética

Os casos selecionados nos ajudarão a compreender como esses princípios


funcionam na prática. Eles foram tirados de importantes fontes, algumas
elaboradas especialmente com essa função, outras precisaram sofrer
pequenas adaptações. Em todos os casos será aplicado a seguinte

66 Curso de Bioética
investigação (evidente que nem todas as perguntas se aplicam a todos
os casos, no entanto procure aplicá-las em maior número possível):

Dados do contexto:

• Qual a questão, decisão, problema ou conflito bioético envolvido?

• Quem é o responsável por tomar as decisões nesse caso?

• Quais são os fatos? Quais as circunstâncias importantes envolvidas


na situação?

• Quem são as pessoas envolvidas?

• São conhecidos os valores de cada um dos envolvidos?

• Quais as prioridades que cada um dos participantes?

Alternativas e Acordos

• Existe algum acordo prévio sobre decisões nesta situação?

• Quais são as alternativas no atual curso de ação?

• Quais as consequências, para cada um dos participantes em cada


uma das alternativas?

Princípios e Direitos envolvidos

• Quais os princípios (Beneficência, Não-Maleficência, Autonomia e


Justiça) envolvidos?

• Quais os direitos humanos (individuais, coletivos ou de Estado)


envolvidos? Como eles se relacionam entre si?

Casos possíveis de serem relacionados à atual situação

• Quais são os caso possíveis de serem relacionados a presente


situação?

• Quais foram as alternativas consideradas e as consequências que


ocorreram?

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Além dessas questões, cada caso pode vir com questões adicionais
e outras podem ser elaboradas a partir da reflexão que cada mente
permitir.

Caso 1: - Ética em pesquisa

Um estudo de intervenção seriada com a participação de profissionais


do sexo foi iniciado com o objetivo de avaliar o impacto de se adicionar
a distribuição do preservativo feminino ao sistema de distribuição
do preservativo masculino, mensurado em termos de mudanças na
proporção de atos sexuais protegidos pelo uso de preservativos. A
utilização do preservativo foi avaliada através de entrevistas com os
participantes da pesquisa, com questionamentos sobre a aplicação de
medida de proteção nas últimas 10 relações sexuais. Essa mensuração
deverá ser realizada em 5 momentos distintos: duas vezes, logo após as
mulheres terem participado de atividades de promoção e distribuição
de preservativos masculinos; e 3 vezes, após a promoção e distribuição
dos dois preservativos: feminino e masculino.

O principal pesquisador, uma pessoa que conta com a confiança e


respeito das profissionais do sexo envolvidas, explicou que as mulheres
ficaram muito interessadas em participar de um estudo sobre a utilização
de preservativos femininos, uma vez que esta situação proporcionaria
o livre acesso a este método inovador de dupla proteção.

A primeira etapa de avaliação sobre a utilização de preservativos foi


completada conforme o planejado. Análises preliminares dos dados
revelaram que os participantes relataram o uso do preservativo
masculino em mais de 95% dos atos sexuais. Após avaliar a abordagem
e as técnicas utilizadas pelos entrevistadores, uma segunda etapa de
entrevistas foi concluída. Em conformidade com os dados anteriores, foi
observado um alto índice de utilização do preservativo masculino. Surgiu,
então, a preocupação de que a introdução de um produto novo poderia
ter um efeito negativo sobre a utilização de preservativos masculinos.
Além disso, não há real garantia de que haverá a disponibilidade e
financiamento de preservativos femininos após o término da pesquisa,
ainda que os mesmos sejam considerados muito positivos.

68 Curso de Bioética
(Extraído de Ministério da Saúde. Capacitação para
Comitês de Ética em Pesquisa. Brasília/DF: Ministério
da Saúde/Secretaria de Ciência, tecnologia e insumos
estratégicos/Departamento de Ciência e Tecnologia,
2006, v. 2. p.115).

Questão adicional

Com relação ao caso descrito, qual seria a melhor maneira de se


proceder? Continuar o estudo conforme planejado? Encerrar o estudo?
Suspender temporariamente o estudo até que possa ser assegurada
a disponibilidade de preservativos femininos caso seja comprovado o
sucesso de sua utilização?

Caso 2: - Executivos americanos retardam envelhecimento com


hormônios

Executivos e profissionais nos Estados Unidos vêm procurando um


polêmico e caro tratamento de reposição hormonal para combater
efeitos normalmente associados ao estresse e ao envelhecimento.

Com pouco mais de 30 anos, o executivo americano J.G. começou a se


sentir deprimido e ansioso. Tinha dificuldades para dormir, sua libido
já não era mais a mesma e, por mais que se esforçasse na academia
e cuidasse da alimentação, não conseguia atingir os resultados que
queria.

“O trabalho também ia mal. Ter que lidar com o estresse, e a competição


ampliava os sintomas, quando não era combustível para eles”, conta o
executivo, que pediu para não ter seu nome divulgado. “Isso acabava
com o desejo e ambição de ser bem sucedido”, disse.

Depois de tentar tratamentos com antidepressivos e ansiolíticos,


J.G. aceitou o conselho de um colega de academia e começou a fazer
reposição hormonal por conta própria.

Mesmo sem consultar um médico, experimentou tomar uma pequena


dose de testosterona, um hormônio secretado pelos testículos
do homem e em menor quantidade pelos ovários da mulher. Sua
concentração no corpo masculino diminui com a idade e devido a

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problemas de saúde. “Tomei minha primeira dose e, uau, pareceu que
tudo deu uma volta de 180 graus”, disse o executivo à BBC Brasil.

Desconfiado de que poderia estar sofrendo com os sintomas do


declínio de testosterona em seu corpo, procurou um médico. Após
alguns exames, ele receitou uma terapia de reposição hormonal.

Atualmente com 40 anos, J.G. segue com o tratamento. Duas vezes


por semana, injeta em si mesmo pequenas doses de testosterona e
garante que sua vida melhorou em vários aspectos. “Pergunte à minha
namorada modelo de 27 anos”, brinca o executivo, que dirige uma
consultoria de administração de capital de risco em Nova York.

Apesar dos elogios ao tratamento, alguns médicos têm dúvidas quanto


à eficácia e eventuais danos colaterais do uso de hormônios, que
poderiam incluir câncer e problemas no coração.

• Hormônios

A deficiência de testosterona entre homens pode estar ligada a


problemas congênitos, doenças, estresse e efeitos colaterais de certos
medicamentos. Além disso, a partir dos 30 anos de idade, inicia-se um
declínio gradual da produção do hormônio no organismo.

A maior parte da testosterona utilizada em terapias de reposição


hormonal é produzida em laboratório a partir de vegetais como soja e
inhame.

Embora o tratamento mais comum para a deficiência de testosterona


causada por problemas de saúde seja a reposição hormonal, não
há estudos conclusivos sobre a eficácia da injeção do hormônio no
combate a sintomas normalmente associados à idade.

Mesmo assim, um grande número de médicos defende os benefícios


do tratamento no combate ao envelhecimento. Eles vêm oferecendo
terapias de reposição hormonal a pacientes que se queixam de fadiga,
de dificuldades para perder peso, de concentração e de redução da
libido.

70 Curso de Bioética
Entre eles está Lionel Bissoon, que ficou conhecido por desenvolver
um tratamento para celulite e atualmente administra um programa de
reposição hormonal para homens e mulheres em sua clínica em Nova
York.

Segundo ele, até meados da década passada, a maior parte de seus


pacientes era formada por mulheres entre 45 e 69 anos. Mas a situação
se inverteu. Atualmente, cerca de 85% é de homens entre 30 e 69 anos,
muitos deles executivos de Wall Street.

“As maiores queixas dos homens são fadiga, cansaço e dificuldades de


concentração. Alguns reclamam de dores musculares. Muitos não têm
interesse em sexo. Alguns sentem que não são mais quem costumavam
ser”, disse Bissoon à BBC Brasil.

O médico conta que, após uma bateria de exames, o paciente pode


iniciar o tratamento. A reposição hormonal pode ser feita por meio de
injeções, adesivos ou via oral. O próprio paciente aplica suas doses de
testosterona.

“Eu ensino meus pacientes a se aplicarem, é bem fácil. Não é possível


para um executivo ocupado ter que ir a um consultório para tomar uma
injeção duas ou três vezes ao mês, não é prático”, diz.

• Custos

O grande interesse dos homens por tratamentos de reposição hormonal


não se restringe a Nova York.

Na filial que serve os Estados americanos da Carolina do Sul e da


Carolina do Norte da rede de clínicas Cenegenics, por exemplo, 68%
dos pacientes são homens entre 35 e 70 anos.

“Está se tornando mais comum homens mais jovens, com pouco mais
de 30 anos (procurarem o tratamento)”, diz Michale Barber, médica e
diretora-executiva da Cenegenics Carolinas.

Embora a aplicação dos hormônios possa ser feita pelo próprio


paciente, é necessário que ele passe por um acompanhamento

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periódico por médicos e seja submetido a exames regularmente, o que
pode aumentar os custos do tratamento.

Para realizar um tratamento hormonal de combate aos efeitos do


envelhecimento na Cenegenics, é preciso desembolsar em média US$
1 mil por mês.

“Os nossos pacientes estão pagando pelo acesso a médicos,


fisiologistas, nutricionistas e acompanhamento de laboratório”, diz
Barber.

Com 20 centros médicos espalhados pelos Estados Unidos e mais de


20 mil pacientes, a Cenegenics usa como garoto-propaganda o médico
Jeffry Life, que atua na empresa e é paciente do programa de combate
aos efeitos do envelhecimento.

Para mostrar os resultados do tratamento, a empresa usa fotos e


vídeos ao estilo “antes e depois” de Life. Na primeira foto, o médico
aparece com um corpo comum para um homem de meia-idade. A outra
é uma dessas imagens que à primeira vista parecem montagens (a
empresa garante que não é) e mostra a mesma pessoa com um corpo
de fisiculturista.

• Câncer

Apesar dos efeitos aparentemente milagrosos, ainda restam dúvidas


sobre a segurança dos tratamentos de reposição hormonal para
combater os efeitos do envelhecimento em homens saudáveis.

Embora os médicos adeptos da terapia garantam que ela é segura


e pode prevenir doenças, outros apontam que ela pode estimular o
desenvolvimento de câncer de próstata e causar problemas cardíacos.

Além disso, pesquisas apontam entre os possíveis efeitos colaterais do


tratamento atrofia dos testículos e infertilidade, problemas hepáticos,
retenção de líquidos, acne e reações de pele, ginecomastia (crescimento
anormal das mamas em homens) e apneia do sono.

72 Curso de Bioética
Embora tratamentos do tipo estejam sendo utilizados nos EUA desde a
década de 1990, há poucos estudos amplos sobre seus efeitos e riscos.

Em 2009, o National Institute of Health dos Estados Unidos deu início


a um amplo estudo sobre os efeitos do tratamento de reposição de
testosterona em homens acima de 65 anos. Os primeiros resultados,
no entanto, devem ser divulgados só em junho de 2015.

Enquanto isso, um relatório publicado em 2004 pelo Instituto de


Medicina da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, órgão
de consultoria do governo americano, alerta para a falta de pesquisas
conclusivas sobre o tema.

“Apesar da crescente popularidade do tratamento com testosterona,


não há uma quantidade considerável de dados que sugiram a eficácia
da terapia de testosterona em homens mais velhos que não se
encaixam na definição clínica de hipogonadismo. Além disso, os efeitos
da testosterona na próstata e suas implicações para o câncer inspiram
cuidados no uso não terapêutico extensivo”, diz o documento.

BBC Brasil: Executivos nos EUA tentam retardar


envelhecimento com hormônios. Disponível em: <http://
www1.folha.uol.com.br/bbc/1092222-executivos-nos-
eua-tentam-retardar-envelhecimento-com-hormonios.
shtml>. Acesso em 18 jun. 2012.

Caso 3: - Caso E.M

No início de junho de 1989 me foi encaminhado de uma importante


cidade do interior o menino E.M, então com um ano e dois meses
de vida e história de infecções de repetição. A suspeita clínica era de
fibrose cística, doença genética que cursa com diarreias e infecções
respiratórias. A escolha de meus serviços se deveu ao fato de ter
prestado atendimento médico ao filho de um casal amigo dos pais,
com diagnóstico de deficiência transitória de IgA secretória e com o
qual havia obtido ótimos resultados clínicos.

O casal tinha outro filho, uma menina de três anos de idade, saudável. O
pai era engenheiro, com característica de inventor de novos utilitários

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domésticos. Era irrequieto e tinha dificuldades em se firmar numa
empresa. Preferia trabalhar por conta própria. Já a mãe era professora
e parecia ter como objetivo maior de sua vida se dedicar aos filhos e ao
marido. Praticavam a sua religião.

A gestação de E.M havia transcorrido sem anormalidade. O parto havia


sido natural, com APGAR de 9 no primeiro minuto e de 10 no quinto
minuto. Pesava 3.200 gramas e media 50 centímetros. Seu perímetro
cefálico era de 34 centímetros. Até os dois meses de vida sua saúde
havia sido perfeita. A partir de então apresentava diarreias de repetição,
frequentemente tinha monilíase oral e eosinofilia no hemograma.
Com 7 meses de vida teve sua primeira broncopneumonia. Com 1
ano, sua primeira infecção do trato urinário. Tinha história de atopia
e frequentemente apresentava crises de sibilâncias, diagnosticadas
como asmáticas. Mamou no seio materno até quase completar 9
meses de vida, quando teve de ser desmamado, porque a mãe precisou
ser submetida a mastectomia esquerda por tumor mamário maligno.
Não havia outros dados relevantes na história familiar, alimentar,
mesológica, mórbida e de desenvolvimento. Havia sido imunizado de
acordo com as recomendações das autoridades sanitárias locais.

Ao primeiro exame físico apresentava desnutrição ponderal, mas


não estatural. Tinha sinais de atopia, monilíase oral, balanopostite,
distenção abdominal, sibilos e roncos à ausculta pulmonar e discreto
edema palpebral à esquerda.

Na primeira internação fizemos o diagnóstico de infecção do trato


urinário, com pequeno refluxo vésico-uretral à esquerda, monilíase
oral e perineal, balanopostite, atopia com crises de asma, desnutrição
com déficit ponderal apenas, importante eosinofilia no hemograma
e afastamos verminose e fibrose cística. Embora não se falasse muito,
na época, em imunodeficiências, quer congênitas, quer adquiridas,
afastamos AIDS e os níveis séricos das imunoglobulinas mostraram níveis
baixos de IgA, normais de IgM e IgE e níveis de IgG nos limites inferiores
da normalidade. Tratamos as patologias de acordo com as rotinas do
serviço à época e combinamos nova avaliação em dois meses.

Durante esta primeira internação já percebi muito claramente a


preocupação da mãe com a possibilidade de haver alguma relação

74 Curso de Bioética
entre a doença do filho e o fato de ele haver mamado em seu seio, já
com câncer. Tentei de todas as maneiras demover essas ideias de sua
cabeça e a estimulei a continuar o acompanhamento com seu médico
assistente, apesar dos problemas de seu filho.

A partir de então vivemos uma intensa relação médico-paciente-família,


com altos e baixos e que culminou com o óbito de E.M, nas vésperas do
Natal de 1994. como não posso relatar toda esta interação, vou me ater
apenas aos fatos mais relevantes para mim, para E.M e para sua família.

No início de novembro de 1989, fechamos o diagnóstico de


hipogamaglobulinemia, doença congênita que evolui com infecções
de repetição das vias aéreas, aparelho digestório e aparelho urinário.
Não havia tratamento curativo disponível. As infecções de repetição
poderiam ser atenuadas com infusões repetidas de plasma, ou
preferentemente de imunoglobulinas (ainda muito caras e raramente
disponíveis em nosso meio naquela época). Estes pacientes apresentam
uma incidência maior de doenças neoplásicas. O desfecho natural
dessa imunodeficiência, naquele momento, era o óbito por infecção
ou neoplasia.

No início de 1990, o pai, sempre muito irrequieto à procura de soluções


para seu filho, conseguiu viabilizar a vinda de imunoglobulinas de
São Paulo e iniciamos com esta abordagem terapêutica inovadora
e que encheu a todos nós de novas esperanças. Até setembro de
1990 conseguimos mantê-lo relativamente bem com a infusão de
imunoglobulinas, mesmo não tendo conseguido controlar as diarreias
e as crises de asmas. Foram, então, feitas várias tentativas de controle
das diarreias com o gastroenterologista do serviço, também sem
resultados satisfatórios.

Em setembro de 1990, eu e o pai iniciamos um estudo sistemático


das possibilidades terapêuticas para o problema de E.M na rede
internacional de informações médicas (Medline). De novidades
encontramos a possibilidade do uso de colostro de vaca para o controle
das diarreias. Mais uma vez o pai tornou possível essa terapêutica e
novamente sem grande sucesso. Nesta época, pela primeira vez, nosso
gastroenterologista conseguiu demonstrar a infestação maciça com o
criptosporidium no tubo digestório e que provavelmente perpetuava

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os episódios de diarreia. O único tratamento possível era o uso da
roxitromicina, que instituímos, com resultados pobres.

No início de 1991 apareceu a primeira crise. Os pais começaram a se


sentir inseguros em relação às possibilidades terapêuticas e eu, além
disso, comecei a me sentir impotente em relação à doença de E.M.
Concordamos, então, que talvez fosse bom procurar a avaliação e
opinião de um especialista renomado de São Paulo, o que veio a se
concretizar em julho de 1991. Muitos exames, muitas avaliações e o
mesmo diagnóstico e a mesma abordagem terapêutica. Tratava-se,
sem dúvida, de um caso difícil, sem possibilidades de cura naquele
momento. Foi sugerido manter as infusões de imunoglobulinas
e ganhar tempo. Talvez pudessem aparecer novas soluções. Esta
avaliação em São Paulo foi bastante desanimadora. Nova avaliação
em 1992 confirmou a primeira avaliação. Eu e a família preferimos, a
partir daquele momento, não conversar muito sobre o futuro de E.M.
Decidimos nos preocupar com o presente.

Desta época até meados de 1994, E.M consultou com vários


especialistas no país. Todas as tentativas resultavam infrutíferas.
Alguns medicamentos experimentais que julgamos não trazerem
riscos maiores que prováveis benefícios, foram mandados buscar
no exterior. Instituímos, de forma também inovadora, a nutrição
parenteral domiciliar, através de um cateter semi-implantado. Nas
tentativas feitas com consultas ao exterior, havia apenas terapêuticas
experimentais com transplante de medula óssea. Eis que nesse ínterim,
a mãe engravida e aparecem novos dramas: esta doença tem caráter
genético ou familiar? Quais os riscos? O que fazer? Forneci todas as
informações disponíveis e me mantive neutro em relação ao que fazer
com a gestação. Os pais decidiram ter o filho, aliás, uma filha, que nasceu
sadia. Após o nascimento e ainda motivados com as pesquisas com
transplante de medula, fizemos os estudos de histocompatibilidade:
as duas irmãs eram compatíveis entre si e incompatíveis com o irmão.
Como o transplante de medula com doadores não aparentados
apresentavam riscos muito grandes, necessitavam deslocamento
para o exterior e com benefícios incertos, descartamos a possibilidade
naquele momento.

76 Curso de Bioética
Muitas vezes, nesse período, os pais tiveram problemas com seus planos
de saúde, que ora não cobria determinados exames ou procedimentos,
ora venciam as possibilidades de internação. Os pais, muito dedicados
e criativos, se cercaram de outras famílias com problemas semelhantes
e conseguiram fornecimento gratuito de imunoglobulinas, através de
serviços de saúde pública.

A história de E.M também entrou no âmbito de minha família, tantas


eram as vezes em que programas familiares tiveram que ser suspensos
em função dos compromissos com seu cuidado. Outras tantas vezes,
vendo-me taciturno já perguntavam: Algum problema com E.M?

Por longo período E.M teve que ser alimentado por sonda nasogástrica,
que ficava permanentemente localizada em seu nariz. Pensamos
em colocar uma gastrostomia para que seus colegas de colégio não
percebessem seu problema, mas ele mesmo disse se sentir bem assim.
Gostava muito de roupas bem coloridas, de passear pelo pátio do
hospital e de fazer compras na lojinha do hospital. Sempre fazíamos de
tudo para que pudesse ter esses prazeres. Sempre que possível suas
irmãs estavam com ele. Como gostava muito de um time de futebol,
sempre cuidávamos para não fazer procedimentos ou interná-lo
quando seu time jogava, para que pudesse acompanhá-lo na TV.

Mas, de repente, E.M desapareceu. Seus pais não entravam mais em


contato comigo e, aparentemente não haviam entrado em contato
com nenhum outro médico. Fiquei, por um lado chateado e, por outro
lado, preocupado. Chateado por talvez não ter conseguido manter a
confiança da família ou não ter atendido as legítimas expectativas.
Preocupado com os melhores interesses de meu antigo paciente. Após
três meses, pedi ao pai do paciente que o havia referendado para mim
e amigo da família, para que averiguasse o que estava acontecendo.
Eis a surpresa: os pais, sentindo-se cansados e desesperançados,
haviam decidido não fazer mais nada e entregaram o menino “nas
mãos de Deus”. Eram muito religiosos, rezavam muito e tinham fé
de seu Deus faria o melhor por seu filho. Após várias tentativas e
com muito constrangimento, tive que ameaçá-los com denúncia no
Conselho Tutelar por maus tratos, caso não voltassem a procurar
ajuda para seu filho.

Unidade 3 | Bioética: princípios e aplicações 77


E. M voltou muito desnutrido, com distúrbios hidro-eletrolíticos severos,
alterações na coagulação sanguínea e infecção severa na perna direita,
que evoluiu com trombose, arterite e necrose do pé. Após todas as
medidas terapêuticas cabíveis, constatamos que não havia condições
de manter aquele pé necrosado, porque estava trazendo grande risco
de vida para E.M. Propusemos, então, a amputação. Foi penoso para
nós e para os pais. Estávamos começando a mutilar o menino. Mas
era sua única chance de sobreviver e os pais concordaram, após longa
explicação da necessidade do procedimento para E.M.

Em julho de 1994, nova internação, desta vez sem alta hospitalar até o
óbito, em dezembro. Todas as tentativas de controle das diarreias eram
infrutíferas. As infecções se repetiam. Sobreveio a falência de órgãos:
os rins não funcionavam direito, o fígado estava comprometido, a
ventilação mecânica foi instalada e drogas inotrópicas de suporte
à circulação foram introduzidas. A evolução do caso clínico parecia
irreversível e nossa preocupação, minha e da família, passou a ser
prioritariamente com o conforto de E.M. Os pais ainda alimentavam
a esperança de levá-lo para casa no Natal, nem que fosse para morrer
em casa, a casa nova com um quarto especialmente montado para
cuidar de seu menino. No dia 20 de dezembro pela manhã, ao visitá-
lo, constatamos que seu quadro clínico era terminal. Mesmo com a
ventilação mecânica, sua gasometria era péssima. Não urinava mais.
Estava muito ictérico. As arritmias eram frequentes, seu pulso débil e
a perfusão periférica muito comprometida. O abdômen estava muito
distendido. As pupilas estavam midriáticas e não reagiam à luz. Ao
aspirar suas vias aéreas superiores, junto com a secreção, veio parte
de sua mucosa. Os pais, segurando as mãos de seu filho, olharam para
mim. Foram momentos de silêncio, de reflexão e de reavaliações que
não esquecerei. Após alguns segundos, que pareciam séculos, lhes
perguntei: Chega? A resposta veio rápida e segura: Chega. Nos vinte
minutos seguintes foram suspensas as medicações e a ventilação
mecânica. Os pais, com um choro suave e abraçados acompanharam
os últimos batimentos cardíacos de seu filho.
Um ano depois fui visitar a família e fomos colher uvas juntos. Não
falamos de E.M, mas no abraço que me deram ao me despedir, senti o
quanto ele estava entre nós.

(Extraído de CLOTET, J. Bioética: Uma Aproximação. Porto Alegre: EDIPUCRS,


2003, p.49-54).

78 Curso de Bioética
Caso 4: - Caso Ryan Gracie

Preso numa sexta-feira (14/02/2008) sob acusação de roubo, o lutador


de jiu-jitsu Ryan Gracie foi encontrado morto na manhã do sábado
seguinte na carceragem do 91º DP (Ceagesp), na Vila Leopoldina em
São Paulo. O médico psiquiatra Sabino Ferreira de Farias Neto, que
acompanhou o lutador entre a noite de sexta-feira e a madrugada
do sábado, disse que o exame de urina feito por Gracie após a prisão
apontou presença de cocaína, maconha e outros medicamentos.

Segundo o que consta no Boletim de Ocorrência lavrado no 91o DP,


Gracie havia sido detido sob acusação de ter roubado o carro de um
idoso de 76 anos no Itaim Bibi, bairro nobre da zona oeste da cidade
de São Paulo. O lutador acabou contido por motobóis e foi preso, em
seguida, pela Polícia Militar. Na delegacia, Gracie chegou agitado e
dizendo que estava sendo “perseguido” quando foi preso. O delegado
Aílton Camargo Braga, que registrou a ocorrência, disse à imprensa
paulista que o lutador dizia que estava sendo perseguido “pelo pessoal
da favela e pelo PCC [Primeiro Comando da Capital]”.

Questionado, o advogado Rodrigo Souto disse que desconhecia se


Gracie apresentava problemas psicológicos, mas afirmou que ele dizia
o tempo todo que estava sendo perseguido. Segundo consta, Gracie
saiu de seu apartamento, no Itaim Bibi, zona sul, às 13h30, gritando que
precisava fugir.

O advogado alegou que o lutador não cometeu crime. No entanto,


testemunhas que presenciaram a ação de Gracie disseram à polícia
que, além de roubar o Corolla, o lutador agrediu o dono do veículo,
um senhor de 76 anos, com uma faca de cozinha cortando um dedo da
mão esquerda da vítima. Com o carro, Gracie andou por pouco tempo,
por aproximados 500 metros, e bateu em um banco de concreto sobre
a calçada.

Segundo a Polícia, ele ainda tentou roubar outro carro, mas, sem
sucesso, investiu contra um motoqueiro.

Quando abordou o motobói, Gracie teria mostrado uma faca e disse


que era assalto. “Desce da moto, senão eu te mato”, teria dito Gracie. O

Unidade 3 | Bioética: princípios e aplicações 79


motoqueiro Adriano Souza pegou a encomenda que levaria para Cotia
(Grande São Paulo), enquanto Gracie subiu na moto sem conseguir
ligá-la. Outros motobóis pararam no semáforo e encorajaram a vítima
a não deixar que Gracie levasse o veículo. O dono da moto afirmou que
bateu com o capacete na cabeça de Gracie, que caiu e foi imobilizado
pelo grupo de motociclistas, cerca de 30.

Foi a terceira vez que o atleta teve problemas com a Justiça. Em 2000,
passou 18 dias preso no Rio de Janeiro, acusado de esfaquear um
estudante e, cinco anos depois, teria agredido fisicamente um policial
e ofendido uma delegada do 78º DP, na região dos Jardins, em São
Paulo. Dessa vez foi a última, seu corpo foi encontrado por volta das
7h30 na cela, segundo a SSP (Secretaria da Segurança Pública). Ele
estava sentado em um dos cantos da cela. Os carcereiros encontraram
o lutador morto na troca de turnos.

A Polícia Civil abriu inquérito para investigar se o uso de drogas,


aliado aos medicamentos ministrados por um psiquiatra, podem ter
provocado a morte de Gracie.

Segundo o psiquiatra, ele conheceu o lutador há quatro anos, mas


que este não havia sido um de seus pacientes. Disse ter sido chamado
na noite da sexta-feira à delegacia pela namorada de Gracie e que
ministrou ao menos seis tipos de medicamentos ao lutador. Afirmou,
ainda, que ao chegar à delegacia acompanhou Gracie ao IML (Instituto
Médico Legal) durante a realização do exame toxicológico. Ele queria
ministrar medicamentos ao lutador, mas precisava saber se Gracie havia
consumido drogas. Segundo o médico, Gracie precisava ser medicado
pois “corria o risco de sofrer uma parada cardíaca ou respiratória
porque estava muito exaltado”.

Em algumas de suas palavras veiculadas pela imprensa, o médico teria


dito: “Ele [Gracie] dizia que precisava sair de lá [delegacia] porque a
cada minuto que ficasse lá ficaria mais ‘fissurado’”. Ainda segundo
esse depoimento, Gracie lhe teria afirmado na delegacia que injetou e
aspirou cocaína. Ele afirmou que ficou com Gracie das 22h30 da sexta-
feira às 5h do sábado. Antes de ir embora, ministrou pelo menos seis
tipos de tranquilizantes.

O laudo toxicológico feito pelos peritos indicaram que Ryan consumira


maconha e cocaína. Os medicamentos que Ryan tomou, depois de preso,

80 Curso de Bioética
também aparecem nos laudos: Midazolam, Alprazolam, Prometazina,
Clozapina, Haloperidol. Todas são substâncias usadas para combater a
ansiedade e acalmar o paciente. De acordo com o laudo oficial as doses
dadas foram terapêuticas. Mesmo assim, o promotor que investiga o
caso, Paulo D´Amico Jr., diz que foi a combinação de remédios, e não
as doses, que provocou a morte do lutador: “Reunidos num coquetel,
afetaram sobremodo a situação do coração do Ryan Gracie. Ele tinha
um coração já sofrido, sofrido por esse histórico de dependência”.

Em sua defesa, o psiquiatra Sabino de Farias Neto. disse: “Há 31 anos


eu atendo pacientes que usam maconha, cocaína, bebida. E uso
medicações exatamente nesse nível”.

Segundo a opinião da família, esta foi chamada à delegacia, logo após


a prisão de Gracie, tendo resolvido convocar um médico que, contrário
à declaração dele, já o havia atendido em outra ocasião: “O doutor
Sabino foi chamado para para isso, para poder transferir o Ryan para
um hospital”, contou Flávia Gracie, irmã de Ryan. Mas o ex-campeão
de Vale Tudo não foi transferido. Ficou na delegacia até ser levado, já
de madrugada, para fazer um exame no Instituto Médico Legal. Lá,
ele foi medicado pela primeira vez. “Quando a gente estava no IML,
o doutor Sabino apareceu com uma bandeja com uma quantidade de
remédios”, disse Flávia.

Segundo o psiquiatra Marcelo de Mello, o que mais chama a atenção


é a quantidade de drogas que foram usadas ao mesmo tempo. Uma
interage com a outra que pode aumentar o numero de efeitos colaterais.
Nesse caso, principalmente os cardíacos. O coração pode começar a
bater fora do ritmo, entrar num quadro mais grave, que pode levar a
parada cardíaca, conforme noticiou Marcelo Feijó De Mello, psiquiatra
da Unifesp.

O uso anterior de cocaína pode ter piorado ainda mais o quadro clínico.
Os problemas de Ryan se agravaram quando ele saiu no IML e voltou
para uma delegacia. O advogado do médico, Pedro Lazarini Neto, nega
a culpa de seu cliente.

(Compilado de várias fontes jornalísticas divulgadas na época do


acontecimento).

Unidade 3 | Bioética: princípios e aplicações 81


Considerações sobre o conteúdo da unidade

Pode-se operar em Bioética com princípios sem ser principialista? Sim.


Não é a utilização de uma ferramenta que faz o operário.

Os princípios de Bioética podem ser usados como norteadores,


balizadores ou diretrizes em muitas abordagens de Bioética. Eles
não são exclusivos dos principialistas. O que um principialista faz de
diferenciado é considerar que tais princípios têm existência ontológica.
Isto é, eles são. Em outras abordagens, eles não são, eles valem. Por
isso, essa unidade é para apresentar os princípios, não o principialismo
(que já foi apresentado em unidade anterior). Você poderá escolher
qualquer abordagem para trabalhar os casos apresentados.

São 4 princípios a serem considerados, desde o Relatório Belmont:

a) Autonomia, que pressupõe emancipação e se liga à capacidade


de decisão ou escolha dos indivíduos. Essa escolha não pode ser
forçada nem calcada em artefatos obscuros que prejudiquem a
clareza da decisão. A autonomia deve ser livre e esclarecida;

b) Beneficência, que se liga à ação de fazer o bem. Difere de


benevolência por seu caráter universal e obrigatório: a beneficência
diz que temos que tratar a todos que estão na mesma situação do
mesmo modo. Os protocolos são muito importantes para regular
esse princípio;

c) Não-maleficência, que se liga a duplicidade de não causar danos (a


regra primeira é sempre não fazer o mal) ou causar danos (fazer o
mal nos casos em que fazer o mal for necessário. Casos em que se
deve pesar qual o mal menor e a sua necessidade); e,

d) Justiça, que, apesar de sua complexidade, é um princípio fácil de


ser identificado, pois sempre envolve a materialidade de tratar
os indivíduos que estão na mesma situação sob uma mesma
concepção arbitrária de justiça.

Em todos os casos apresentados, um ou todos os princípios se


aplicam. É importante ressaltar o que é particular de cada um.

82 Curso de Bioética
No primeiro caso, nota-se a importância de um julgamento sobre
a assistência à comunidade pesquisada após o encerramento da
pesquisa, bem como a intervenção nas condutas já existentes.

No segundo caso, nota-se a relação entre as questões Bioéticas e


algumas necessidades contemporâneas: a necessidade de consumir
produtos novos e diferenciados no mercado, a necessidade de
manter uma aparência juvenil, competitiva e viril, e, principalmente,
a necessidade que o capitalismo tem de criar novas necessidades.
Esse caso pode ser uma evidência de que a medicalização da vida vai
ao encontro de antigos anseios, como a amortalidade (desejo de não
morrer, mesmo sendo mortal, ou de morrer sem a decrepitude).

O terceiro caso, bastante complexo, envolve diversas posturas diante


da possibilidade iminente da morte. Essas posturas são ambivalentes
e assim o caso deve ser analisado. Observaremos desde aproximações
com o acolhimento humanizado da morte à prática de distanásia
e obstinação terapêutica. Rico, é o único caso, dos que foram aqui
apresentados, que o relato está completo: contexto (com descrição
dos personagens, inclusive), histórico/anamnese, hipótese diagnóstica,
procedimentos terapêuticos e desfecho.

O último caso, de conhecimento da população por sua repercussão


na mídia, traz à tona a questão da manutenção da autonomia em
saúde mental e inúmeras questões que estão correlacionadas aos
procedimentos médicos e policiais em pauta.

A importância do estudo de casos em Bioética é fundamental, uma vez


que nessa disciplina não se discutem questões morais abstratas, mas
casos que realmente aconteceram ou são possíveis de acontecer caso
alguma decisão não seja tomada.

RESUMO

Nesta unidade tomamos conhecimentos dos princípios de Bioética


e suas definições, a partir daquilo que se conhece como Relatório
Belmont.

Unidade 3 | Bioética: princípios e aplicações 83


É importante ressaltar que a descoberta de campos de concentração
aos moldes nazistas, em pleno solo americano, mostrou ao mundo que
nenhum país está ileso desses desvios de conduta para com os seres
humanos. Que precisamos acordar algumas regras de conduta para
guiar as pesquisas clínicas, laboratoriais e experimentais, bem como
para guiar a assistência em saúde.

A existência desses princípios serve, portanto, de norte para as mais


diversas conferências e declarações que são emitidas em vários lugares
do mundo. Esses não são os únicos, são apenas os mais repetidos:

• Princípio de autonomia;

• Princípio de Beneficência;

• Princípio de Não-Maleficência; e,

• Princípio de Justiça.

A operação com esses princípios, como instrumentos ou diretrizes,


como realidades ontológicas ou valorativas, é importante para guiar as
condutas em Bioética.

Quais são os princípios em Bioética definidos a partir do


Relatório Belmont?

Qual a diferença entre beneficência e não-maleficência?

Quais são as definições de justiça, segundo Perelman?

4 Duas dessas concepções são impossíveis aos homens


aplicarem-nas em sua totalidade. Quais são?

5 Escolha um dos casos e procure respondê-lo de acordo


com as sugestões

84 Curso de Bioética
BBC BRASIL: Executivos nos EUA tentam retardar envelhecimento
com hormônios. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/
bbc/1092222-executivos-nos-eua-tentam-retardar-envelhecimento-
com-hormonios.shtml>. Acesso em 18 jun. 2012.

CLOTET, J. Bioética: Uma aproximação. Porto Alegre: EDPUCRS, 2003.

______. Kipper, D.J. Princípios da beneficência e não-maleficência.


COSTA, S.J.F, GARRAFA, V., OSELKA, G. Iniciação à Bioética. Brasília,
DF: Conselho Federal de Medicina, 1998, p.37-51.

GRACIA, D. Ética y Vida – Estudios de Bioética. v.1. Fundamentación y


enseñansa de la Bioética. Santa Fé de Bogotá, DC: Editorial El Búho,
1998.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Capacitação para Comitês de Ética em Pesquisa.


Brasília, DF: Ministério da Saúde/Secretaria de Ciência, tecnologia e
insumos estratégicos/Departamento de Ciência e Tecnologia, 2006, v. 2.

PERELMAN, C. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

THE BELMONT REPORT: Ethical Guidelines for the Protection of


Human Subjects. Washington: DHEW Publications (OS) 78-0012, 1978.

Unidade 3 | Bioética: princípios e aplicações 85

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