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O Corpo da Deusa
2

Rachel Pollack

O corpo da Deusa
No mito, na cultura e nas artes

Tradução de MAGDA LOPES


3

EDITORA
ROSA DOS
TEMPOS
4

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Pollack, Rachel
P833c O corpo da Deusa: no mito, na cultura e nas artes /
Rachel Pollack; tradução de Magda Lopes. -
Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1998.

Tradução de: The body of the Goddess


Inclui bibliografia
ISBN 85-01-05251-5
l. Deusa. 2. Mitologia. 3 Imagem (Psicologia). 4. Deusas na arte.
I. Título.
CDD-291.211
98-1589 CDU- 291.214

Título original norte-americano


THE BODY OF THE GODDESS

Copyright © 1997 by Rachel Pollack

Publicado originalmente na Grã-Bretanha em 1997 por


Element Books Limited, Shaftesbury, Dorset.

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em


parte,
através de quaisquer meios.

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o


Brasil
adquiridos pela
EDITORA ROSA DOS TEMPOS
Um selo da
DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.
5

Rua Argentina 171 -Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 –


Tel.: 585-2000 que se reserva a propriedade literária desta tradução
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8

Sumário
Relação das Figuras ...............................................................................15

Relação das Fotos .....................................................................................16

Agradecimentos.........................................................................................18

INTRODUÇÃO ........................................................................................20

A Viagem Espiralada das Imagens ............................................... 20

1 - Como a Deusa Pode Ter um Corpo? ................................................27

O Nascimento de Artemis ............................................................ 27


Quem E o "Eu" que Possui um Corpo? ...................................... 28
Uma Religião de Realidades Básicas ........................................... 29
O Amor, a Sexualidade e o Corpo Divino ................................... 31
Medindo o Corpo de Deus ........................................................... 32
Formas Corporais na Natureza e nos Templos .......................... 33
A Lua e os Corpos das Mulheres .................................................. 36
O Corpo no Céu ........................................................................... 39
A Emergência do Masculino ....................................................... 40
O que É a Deusa? O que E o Corpo? .......................................... 44

2 - O Corpo Visível e o Corpo Invisível ..................................................46

O Corpo Visível ........................................................................... 46


Morte ............................................................................................. 48
Sexualidade ................................................................................... 50
As Aves, as Cobras e o Corpo Invisível ..................................... 51
Aspectos do Céu ........................................................................... 53
A Natureza e a Arte....................................................................... 54
As Criações Modernas que Imitam o Corpo da Deusa ............ 55
Participação Humana no Corpo da Deusa .................................. 57
Uma Montanha com Dois Picos e uma Colina Arredondada ..... 57
9

Vendo com os Próprios Olhos ..................................................... 60


Juntando a História e a Vida ......................................................... 61
O Pessoal E o Espiritual ............................................................... 62
O Espiritual É o Político .............................................................. 63
"The Teaching Rock" .................................................................... 64
Entalhes e Fissuras Naturais ........................................................ 66
Transportando Significados Sagrados para Novos Locais........... 66
A Sobrevivência da Deusa na Vida Cotidiana dos Malteses ...... 68

3 - O Corpo de Pedra Pintado .................................................................70

Primitivismo ............................................................................... 72
Poder de Lascaux.......................................................................... 74
Primórdios da Arte ........................................................................ 76
Primeiras Imagens Femininas ....................................................... 77
A "Explosão Criativa" .................................................................. 78
Abstração Simbólica .................................................................... 79
Impressões de Mãos..................................................................... 80
Bastões Entalhados ....................................................................... 82
O Trabalho de Alexander Marshack ............................................ 82
Marcas em Ossos .......................................................................... 83
A Vênus de Laussel ....................................................................... 84
As Histórias e a Determinação do Tempo .................................... 85
Economia do Caçador-Coletor .................................................... 86
Pensando Sobre a Arte nas Cavernas ........................................... 88
Estados de Transe .......................................................................... 89
O Xamã de Lascaux ..................................................................... 90
Os Cultos da Fertilidade e as Vênus ............................................ 91
A Pornografia e o Corpo Divino ................................................ 93
Os Rituais da Menstruação e da Gravidez................................... 93
A Caverna como o Corpo Interior — Pêch-Mèrle ..................... 95

4 - O Corpo de Pedra Construído — Parte l ........................................98

Os Primórdios da Agricultura ..................................................... 99


Os Megálitos Além da Europa...................................................... 99
Observatório de Chaco Canyon ................................................ 100
A Beleza dos Megálitos ............................................................. 101
10

Mistérios dos Megálitos ............................................................. 102


Astro-Arqueologia ..................................................................... 103
0 Sol de Newgrange e o Bando Lunático .................................... 105
Formas Corporais ....................................................................... 107
Um Dia do Ano ........................................................................... 107
As Tumbas e os Arqueólogos ................................................... 108
Local de Marcação ...................................................................... 110
As Canções Orientadoras dos Aborígines Australianos............ 112

5 - O Corpo de Pedra Construído – Parte 2 .........................................117

A Era da Não-Violência ............................................................. 118


Glastonbury Tor e Avebury ........................................................ 119
A Não-Violência e a Arte .......................................................... 120
A Igualdade Social e a Questão do Matriarcado ........................ 121
O Registro dos Sepultamentos ................................................... 122
Túmulos Individuais ................................................................... 123
Uma Multiplicidade de Deusas ................................................ 124
A Senhora das Bestas ................................................................. 126
Escarnação ................................................................................... 128
Arvores, Montanhas e Outras Incorporações .............................. 129
Os Nós ........................................................................................ 131
O Nó Górdio .............................................................................. 133
A Era das Invenções ................................................................... 134
Hipóteses sobre a Criatividade .................................................. 135
Como Tudo Isso Desapareceu? ................................................. 138
A Descoberta da Paternidade ...................................................... 138
As Leis Reprimindo as Mulheres .............................................. 140
A Demonização das Mulheres .................................................... 141
Padrões Universais ...................................................................... 142
Lilith ............................................................................................ 143
Uma Interpretação Esotérica ..................................................... 144
Um Irmão e uma Irmã Japoneses ........................................ 145
Mitos Distorcidos ....................................................................... 146
Eva e a Maçã ............................................................................... 147
Um Mito Explícito ..................................................................... 149
Matando um Dragão .................................................................. 150
Apropriação Masculina ............................................................... 151
11

Uma Visão Diferente dos Tabus Menstruais .............................. 152


Uma Religião Baseada na Realidade da Vida, Não no Poder .. 153

Fotos .........................................................................................................156

6- O Corpo na Terra ..............................................................................169

Uma Cultura Mais Antiga que a Grega....................................... 170


O Mito Grego como um Quebra-Cabeça.................................... 171
Pasífae e o Touro ........................................................................ 172
O Minotauro ................................................................................ 173
O Machado Duplo ...................................................................... 174
Sacrifício Humano ..................................................................... 176
A Dança do Touro....................................................................... 177
Teseu e o Labirinto ...................................................................... 178
O Poder da Terra .......................................................................... 180
A Natureza e a Política .............................................................. 181
As Formas Específicas da Paisagem Natural ............................ 182
Diferenças Sutis .......................................................................... 183
Os Chifres da Consagração ......................................................... 184
Outros Alinhamentos ................................................................. 185
Procissões .................................................................................... 186
Creta e os Mistérios de Elêusis .................................................. 188
O Caminho da Procissão: Do Mar para o Palácio no Interior ..... 188
A Beleza de Festos .................................................................... 191
O Cone e a Montanha ................................................................ 192

7 - O Corpo na Canção............................................................................194

Os Deuses Imortais ..................................................................... 195


Camadas do Significado: Psique ............................................... 197
Uma Viagem no Mar ................................................................. 198
A Conquista de Delfos ............................................................... 199
O Terror do Conquistador ........................................................... 200
Chegando a Delfos ...................................................................... 203
As Pedras de Gaia ....................................................................... 205
A Individualidade e a União das Deusas .................................... 206
Artemis e a Maternidade ............................................................. 206
12

Artemis e as Mulheres Modernas ................................................ 207


Solidão e Sexualidade ................................................................ 208
Deusas da Lua ............................................................................ 211
Artemis e Apolo ......................................................................... 211
Leões e Abelhas .......................................................................... 212
Elos Entre as Deusas .................................................................... 213
Cibele .......................................................................................... 214
O Sacrifício Genital e a Mudança de Sexo ................................. 215
Uma Prática Difundida ............................................................... 216
Auto-Escolhidos, Escolhidos da Deusa ..................................... 217
O Mito de Cibele e Átis ............................................................. 218
A Criação de Afrodite ................................................................ 219
O Xamanismo e a Mudança de Sexo ........................................... 220
Dionísio, "O Efeminado" .......................................................... 221
Artemis e Afrodite ..................................................................... 222
Afrodite e a Sexualidade ............................................................ 222
Santuários para Afrodite ............................................................. 225
Afrodite e a Natureza ................................................................. 225
Sexualidade e Maternidade .......................................................... 226
Afrodite, Adonis e Perséfone ..................................................... 227

8 - Corpo com o Morto ..........................................................................230

Elêusis — Então e Agora ........................................................... 232


Mitos e Rituais que Expressam o Desenvolvimento Humano234
A Tesmofória.............................................................................. 235
Os Mistérios e Suas Estações .................................................... 236
A Procissão ................................................................................. 238
Narciso e a Romã ....................................................................... 239
O Rapto ....................................................................................... 240
Deméter Disfarçada .................................................................... 241
A Terra Inanimada ...................................................................... 243
A Romã ....................................................................................... 244
Os Poderes de Deméter ............................................................... 245
A Conspiração das Mulheres ..................................................... 247
O Poder do Conhecimento .......................................................... 248
A Mãe e a Filha .......................................................................... 249
O Poder de Perséfone: A Consciência Brilhando na Escuridão 250
13

Perséfone e Dionísio: A Consciência Casada com o Êxtase .. 253


O Presente da Agricultura .......................................................... 254
Sexualidade, Perda e Reconciliação .......................................... 255

9 - O Corpo Vivo .....................................................................................258

A Teoria de Gaia ......................................................................... 259


O Calor do Corpo ........................................................................ 260
Suposições Culturais ................................................................... 261
Estendendo a Definição da Vida ................................................ 262
O Corpo Desmembrado ............................................................. 263
Um Universo Autocriado ........................................................... 264
A Vida Como Cooperação .......................................................... 265
O Lugar da Mente ........................................................................ 267
O Nosso Lugar ............................................................................ 268
Uma Crise Anterior..................................................................... 270
Uma Visão Diferente .................................................................. 270
Desmembramento e Unidade .................................................... 271
Um Ritual e um Sonho .............................................................. 272

Bibliografia .............................................................................................274

Indice Remissivo .....................................................................................285


14
15

Relação das Figuras

1. Esboço do templo de Ggantija, Gozo, Malta, c. 4000 a.C. - p. 31


2. Estatueta feminina em forma fálica encontrada em Starçevo,
Hungria, c. 5600-5300 a.C. – p.39
3. Desenho de uma cabeça de touro da Sardenha, c. 4000 a.C., com
parada com o útero humano e as trompas de Falópio. – p. 40
4. O "xamã" e o bisão, caverna de Lascaux, França, c. 15000 a.C. – p. 86
5. Desenho de mulheres grávidas dançando, sem cabeça e com cabeça de
pássaro, Pêch-Mèrle, França, c. 20000 a.C. - p. 92
6. Desenho do caminho do Sol. - P. 110
7. Estatueta da Deusa de Cucuteni — uma cultura da Romênia — c.
4300 a.C. – p. 111
8. A coroa de Isis comparada com os Chifres Cretenses da Consagra
ção de Cnossos, Creta. – p. 124
9. Desenho do nó sagrado de Cnossos, Creta, c. 1700 a.C. – p. 128
10. O labirinto de Creta. - p. 170
16

Relação das Fotos


1. O marco de pedra em Newgrange, Irlanda, c.3300-3200 a.C.
2. O Monte da Serpente no sul de Ohio, possivelmente c. 1000 a.C.
3. A Deusa Nana, criada por Niki de St. Phalle.
4. A formação montanhosa de "Artemis" em Brauron, na Grécia.
5. Fissuras naturalmente "escavadas" nas rochas próximo a "Teaching
Rock", em Peterborough, no Canadá.
6. Espirais entalhadas no templo de Tarxien, Malta, c. 3000 a.C.
7. Pinturas de touros na caverna de Lascaux, França, c. 15000 a.C.
8. A "Vênus de Willendorf", Áustria, c. 30000 a.C.
9. A "Vênus de Laussel", França, c. 15000 a.C.
10.Stonehenge, Inglaterra, c. 2800 a.C.
11.Pedras de pé em Avebury, Inglaterra, c. 2500 a.C.
12.Arcos em um marco dopassage moundem Dowth, Irknda, c. 3500 a.C.
13.Glastonbury Tor, Inglaterra.
14.Vaso da cidade escavada de Kato Zakros, Creta, c. 1400 a.C.
15.Machados duplos do Museu de Heraklion, Creta.
16.O Monte Jouctas visto de Cnossos, Creta.
17.As ruínas de Gournia, Creta, c. 1500 a.C.
18.O Monte Ida visto de Festos, Creta, c. 1700 a.C.
19. Os picos de Fedríades e a pedra de Gaia, Delfos, Grécia.
20.A grande pedra no Velho Templo de Atena Pronaia, Mármara,
Grécia, c. 700 a.C.
21.O Portão do Leão, Micenas, Grécia, c. 1350 a.C.
22. O Recinto Sagrado de Elêusis, Grécia, c. 400 a.C.
23. Monte de pedra nos bosques do Estado de Nova York.
17

O Corpo da Deusa é dedicado a todos aqueles


que viajaram comigo aos lugares sagrados:
Edith Katz, Maryanne-Renee Vrijdaghs, Helle Agathe Beierholm,
Witta Jensen, K. Frank Jensen, Sol Pollack, Tana Dineen,
Ann Ogborn,
Susan Coker, Alma Routsong, Leslie Hunt, Fiona Green,
Margaret McWilliams, Marian Green, EvaM. Donna Hutchinson,
Fará Shaw Kelsey, Paul Shaw Malboeuf...

e especialmente Maria Fernandez, que me ofereceu amizade,


um abrigo
e uma semente de romã, tudo no momento certo.
18

Agradecimentos

Alguém certa vez definiu um especialista como uma pessoa que sabe
cada vez mais sobre cada vez menos. Enquanto escrevia este livro, muitas
vezes achei que sabia cada vez menos sobre cada vez mais. Ao tentar seguir
o tema do corpo da Deusa, baseei-me demasiado na obra de muitas pessoas
de diversos campos de estudo e expressão — historiadores, arqueólogos,
artistas, sacerdotisas, cientistas, psicólogos, adivinhadores, romancistas,
teólogos, classicistas e simplesmente amigos que têm viajado e realizado sua
própria pesquisa. Se interpretei mal as idéias ou as descobertas das pessoas
— e estou certa de que o fiz, apesar de todas as melhores intenções —, a culpa
é inteiramente minha, e peço desculpas por isso. Quando me afastei da
pesquisa das outras pessoas e me lancei em caminho próprio, tentei deixar isto
claro. Se turvei o trabalho de alguém com minhas próprias especulações, mais
uma vez peço desculpas.
Este livro não pretende ser um compêndio de história ou um trabalho
acadêmico, e muito menos de teologia (ou tealogia). A religião da Deusa
não é simplesmente um tema da história, mas está vivo hoje na vasta
pesquisa de pessoas como Marija Gimbutas, e também na poesia e na arte, e
nos rituais que as pessoas realizam sozinhas e em grupos, em templos e
cavernas, e também em seus próprios quintais e cozinhas. Tentei
homenagear todos estes níveis da religião ressurgente da Deusa e expressar
minha gratidão por todas as contribuições que tais pessoas proporcionaram,
tanto os acadêmicos quanto os adoradores, e sobretudo aqueles cujo desejo
de saber mais conduziu-os a uma rigorosa pesquisa, assim como aqueles que
acharam que a academia os conduziu à crença e a um compromisso
apaixonado.
Estes acadêmicos merecem menção especial. O primeiro é Marija
Gimbutas, a arqueóloga que reuniu sua ampla pesquisa com a coragem de se
afastar da ideologia acadêmica oficial e reconhecer a realidade de uma
religião complexa e diversificada em toda a arte e nas ruínas escavadas da
Europa pré-histórica. A segunda escritora, menos conhecida atualmente, é
Gertrude Rachel Levy. Quando comecei a ler os escritores modernos que
falam sobre a Deusa, tive acesso a uma obra sempre mencionada desta
19

autora: The Cate of Horn. Escrevendo meio século atrás, Levy conseguiu a
proeza de reunir e apresentar uma quantidade fantástica de informações e,
ao mesmo tempo, sintetizá-las e pensar em conceitos originais e amplos.
Foi Gertrude Rachel Levy quem primeiro observou que a forma dos
templos pré-históricos de Malta formava o contorno do corpo de uma
mulher. A última personagem eminente é Vincent Scully, autor de The Earth,
the Temple, and the Gods. Recentemente aposentado, Scully foi um respeitado
professor de história da arquitetura da Universidade de Yale. Ao voltar sua
atenção para os templos gregos e os primeiros palácios de Creta, perseguiu
sempre a verdade da paisagem, com uma paixão pelas formas sagradas vivas
na beleza da Terra.
20

INTRODUÇÃO

A Viagem Espiralada das Imagens

No fim do século XX testemunhou algo realmente fantástico — a


reemergência de uma religião aparentemente morta durante tantos anos
que o mundo quase havia se esquecido de que ela um dia existira. Essa
religião é a adoração de uma Grande Deusa que pode ter muitos nomes e
imagens, mas sempre representa a divindade como uma presença feminina:
doadora da vida, protetora, às vezes apavorante, mas sempre ligada à
natureza e à verdade dos nossos corpos. E não apenas os corpos femininos.
Os homens também têm descoberto uma realidade espiritual na imagem de
uma Deusa viva e abrangente que cria o mundo e toda a vida a partir do
Seu corpo, não apenas uma vez muito tempo atrás, mas continuamente, nos
processos desdobrados da existência.
Em parte, essa religião ressurgiu através das descobertas da arqueo-
logia. À medida que as escavações revelavam cada vez mais do passado
humano, iam também revelando uma grande abundância de imagens
femininas: entalhes nas paredes das cavernas; símbolos da vulva marcados
em tumbas como que para prometer o renascimento a partir do corpo
divino; afrescos das Deusas revelados por adoradores em um jardim do
paraíso; estátuas de mulheres selvagens de seios nus segurando serpentes;
estatuetas de 30.000 anos de idade de mulheres com seios e quadris
enormes; Deusas dando à luz serenamente sentadas em tronos ladeados
por leões; templos com forma semelhante à silhueta idealizada de uma
mulher. Quando estas imagens foram ligadas ao conhecimento existente
das Deusas na índia, no Antigo Egito, no México antes da conquista, na
África e em outros lugares, as pessoas perceberam, como em um
vislumbre de insight sagrado, que toda a humanidade terrena outrora
adorara a divindade sob a forma de uma mulher, e continuara a fazê-lo
durante milhares, até dezenas de milhares de anos.
21

Descobrir que alguma coisa já existiu um dia possibilita que ela


venha a existir novamente. Se a humanidade adorou as Deusas no pas-
sado, por que não o faria agora? E como essa adoração diferiria da religião
de uma cabeça de Deus masculina, separada do mundo? Algumas pessoas
começaram a escrever livros sintetizando toda essa informação revelada
pela arqueologia. Outras esculpiram novas estátuas, construíram templos
ou viajaram até cavernas ou ruínas para reviver antigos rituais. Outras
ainda formaram círculos de adoradores em suas comunidades para saudar
as estações do ano e os momentos especiais de suas vidas. De tudo isso,
emergiu algo novo e totalmente moderno, mesclando o conhecimento do
passado com a percepção de quem somos agora.
Na melhor das hipóteses, essa alguma coisa não somente substitui a
Deusa pelo Deus, mas também explora as possibilidades da religião
baseada no corpo. Enquanto um Deus deve criar o mundo a partir do
espírito puro, a Deusa irá criá-lo da maneira que as mulheres sempre o
fizeram, dando à luz através do Seu fértil útero. Este simples fato enseja a
emergência de uma religião que aceita a natureza e nossos corpos como
eles realmente são, não como inimigos, ou prisões da alma, ou tentações
do mal, mas como criações milagrosas, com todas as suas forças e
fragilidades.
As pessoas às vezes criticam os adoradores contemporâneos da
Deusa por misturar pesquisa e fantasia, arqueologia e realização dos
anseios. Parece-me que essa crítica não capta o principal. A religião da
Deusa moderna não está tentando recriar as condições exatamente como
elas eram na Idade da Pedra, na antiga Creta ou em qualquer outra
época ou lugar. Ao contrário, procuramos aprender com essas pessoas
como podemos dar vida à Deusa de uma maneira que corresponda à
nossa própria experiência. Para mim, a qualidade doméstica da moderna
adoração à Deusa, especialmente os rituais, sempre foi uma de suas
atrações.
Em, The Laughter of Aphrodite, Carol Christ descreve um ritual que
ela e Alexis Masters realizaram em homenagem a Afrodite na Ilha de
Lesbos, lar de Safo, a grande poetisa de Afrodite. Quando se encami-
nharam ao templo, escolheram os objetos e as roupas que usariam para o
ritual a partir de coisas que encontraram nas lojas e ao longo do
caminho — um cartão-postal de uma mulher tecendo, um abridor de
garrafas do Deus Príapo com uma gigantesca ereção e um vestido branco
com fios dourados. Naquele momento, as duas mulheres perceberam que
precisavam se vestir de branco e dourado para solicitar à Deusa iniciação
22

em Seus mistérios. Dirigiram-se então a um armazém em busca de vinho


tinto, retsina1 dourada, biscoitos dourados, leite, mel e iogurte, todos
alimentos que simbolizam o corpo da Deusa.
Usando os objetos que encontramos e as características de nossas
vidas cotidianas, permitimos que o nosso instinto religioso se una à nossa
realidade imediata. Quando eu e Maria Fernandez fomos a Elêusis para
celebrar o primeiro dia dos Mistérios (durante 2.000 anos o principal
evento religioso do mundo antigo), consultamos vários livros sobre o que
os gregos e os romanos levavam. Mas também levamos alimentos, pedras
encontradas ao longo do caminho, flores silvestres e objetos de nosso uso
pessoal. Assim, Elêusis, local tão carregado de história, tornou-se real em
nossas vidas.
Ao escrever este livro, baseei-me em trabalhos acadêmicos, na arte,
em especulações e em minhas experiências pessoais do sagrado, tanto em
locais assim reconhecidos como em outros, incluindo o bosque próximo à
minha casa. Enquanto o escrevia, tentei ao máximo manter uma
distinção entre todas essas fontes, especialmente entre as informações
históricas e minhas próprias idéias. Não obstante, todos esses fios se
entrelaçam na narração, como acredito que aconteça na própria religião da
Deusa.
Originalmente, concebi este livro como uma série de viagens a
locais sagrados. Eu visitaria os templos da Grécia e as cavernas pré-
históricas da França, e descreveria os locais e sua importância. Quando
comecei a pesquisar o passado e a arqueologia desses lugares, o livro
tomou uma forma diferente. O mundo da Deusa tornou-se um mundo de
conhecimento e idéias, de história e de arte, um mundo de imagens,
brilhando diante de nós com todo o seu significado e mistério. Em minha
jornada por este mundo afora, as excursões físicas permaneciam
importantes, pois podemos descobrir com nossos próprios olhos coisas
que jamais vamos encontrar na pesquisa. Ao mesmo tempo, porém, o
conhecimento coletivo e as especulações de todos que nos antecederam
podem nos abrir para maravilhas inesperadas. E o simples pensamento
também se torna vital. A consciência religiosa se desenvolve enquanto
ponderamos sobre o significado de uma imagem, as conexões entre a
crença religiosa e a vida cotidiana, ou o que pode significar para as
pessoas basear seu conhecimento da verdade sagrada na realidade direta
dos corpos.

1
Resina aromacizada com vinho grego. (N. da T.)
23

É pouco provável que algum livro sobre o sagrado possa cobrir


todos os aspectos da nossa abordagem desta experiência. Isto se torna
especialmente verdade em um livro baseado parcialmente em viagens
pessoais. No início deste trabalho, decidi me concentrar antes de tudo nos
lugares que iria realmente visitar. Como nessa época eu estava morando
na Europa, o livro se baseia muito nas antigas tradições das Deusas
européias (e em menor extensão das Deusas norte-americanas), deixando
de fora fontes importantes como a índia, a China, o Japão, a América
Central e do Sul, e as muitas tradições da África e da Diáspora africana.
Embora tenha reunido o conhecimento, as idéias e as maneiras de ver de
minhas leituras sobre outras tradições, citando-os sempre que me pareceu
correto fazê-lo, mantive-me primordialmente fiel a minha decisão de
equilibrar a pesquisa com as viagens.
Este enfoque na experiência direta significou que não tentei discutir
cada Deusa dentro das tradições européias. Por exemplo, os capítulos
sobre a Grécia referem-se pouco a Atena e menos ainda a Hera. Confiei
em minha intuição para me conduzir àquelas Deusas que expressavam
mais a idéia do corpo.
O livro em si é uma viagem, que cobre desde a Idade da Pedra até a
ciência contemporânea. Mas mesmo que se mova através do tempo, não é
uma viagem linear. Ao contrário, eu a descreveria como uma espiral,
constantemente voltando para si mesma a fim de olhar as imagens
previamente vistas de uma maneira nova. Em sua grande obra The Earth,
the Temple, and the Gods, o professor Vincent Scully detalhou o processo
dos iniciados que viajaram de Atenas para Elêusis para celebrar os
Grandes Mistérios das Deusas Deméter e Perséfone. Scully descreve como
as imagens naturais do poder da Deusa (uma montanha em forma de cone,
um pico com uma fissura dupla) apareciam, desapareciam e reapareciam
novamente em diferentes etapas da viagem. De uma maneira muito
semelhante, diferentes imagens, temas, idéias e até personagens
aparecem neste livro, contam-nos suas mensagens e depois desaparecem
— para reaparecer mais tarde, mais detalhados ou em outro contexto.
A própria religião da Deusa não é linear. Mas também não é sim-
plesmente um círculo, no sentido de algo estático que fica se repetindo
sem se modificar. Seus ciclos são aqueles de uma progressão em espiral,
deslocando-se para a frente e para trás novamente. Durante dezenas de
milhares de anos, o poder criativo do corpo feminino divino dominou a
consciência espiritual. Com a ascensão dos Deuses guerreiros e da religião
transcendente desligada da natureza e dos corpos, a Deusa pareceu
24

desaparecer. Em muitos lugares, nem mesmo a memória sobreviveu.


Entretanto, Ela de repente voltou para nós nesta mais improvável das
épocas. Embora parte deste retorno envolva aquelas descobertas da ar-
queologia e a decodificação de textos e imagens antigos, Ela não c a
mesma Deusa de milhares de anos atrás. Uma religião baseada no corpo
divino é uma religião de mudança, desse movimento espiralado que volta e
se abre para novas experiências. Como um corpo individual, a própria
Terra muda, não apenas ciclicamente com as estações, mas também de
uma maneira mais permanente, durante longos períodos de tempo, como
as montanhas surgindo ou sendo desgastadas pela erosão, as geleiras se
erguendo e desmoronando, e mesmo a atmosfera alterando sua composição
química.
Embora acompanhe a Deusa desde a Idade da Pedra até a ciência
moderna, o livro começa com uma preparação para a viagem. Os dois
primeiros capítulos apresentam uma meditação sobre o próprio conceito do
corpo da Deusa. Examinam o que significa, para nós, existir enquanto
corpos, ou permitir que a nossa consciência do sagrado emerja da união da
natureza com a imaginação. Estes dois capítulos movem-se através de todo
o mundo de imagens e idéias que envolvem o corpo divino.
A viagem se inicia propriamente no Capítulo 3, quando descemos às
cavernas da Antiga Idade da Pedra, na Europa. Lá, encontramos as grandes
pinturas feitas 20.000 anos atrás e também os muitos entalhes do corpo
feminino, alguns com imensos seios e quadris, alguns sem rosto ou
inteiramente sem cabeça, e até alguns com longos pescoços fálicos que nos
levam a ponderar sobre a fusão do masculino e do feminino no corpo divino.
Os Capítulos 4 e 5 dedicam-se à Nova Idade da Pedra e às grandes
mudanças que ocorrem com o desenvolvimento da agricultura. O Capítulo 4
desloca-se entre os círculos de pedra, gigantescas fortificações no caminho,
e outros monumentos que permanecem tão misteriosamente na paisagem
natural da Europa e de outros locais. O Capítulo 5 examina os padrões
culturais dessa época, especialmente a evidência de sociedades que viveram
durante milhares de anos sem violência. O capítulo termina com a pergunta
de como e por que a civilização da Deusa se perdeu, não somente na
Europa e no Oriente Médio, mas também em locais tão isolados um do
outro, como o Japão e a Terra do Fogo.
O Capítulo 6 nos leva a Creta, onde a religião da Deusa européia
abriu-se para seu último e maior florescimento. Aprendemos a olhar
profundamente as formas do corpo vivas na natureza. Da Creta "Minoana" nos
deslocamos para a cultura posterior dos gregos, onde as Deusas arcaicas
25

conseguiram sobreviver e assumiram novos significados, apesar de sua


transformação nos personagens menos importantes da mitologia clássica.
No Capítulo 7, encontramos todo o poder dessa sobrevivência quando
nos aproximamos dos Mistérios de Elêusis. Tentei observar profundamente
esses ritos, buscando a Deusa Perséfone, cujo nome significa "aquela que
brilha na escuridão", pois ela surge brilhante nos medos da escuridão e
curiosa sobre nossas próprias vidas. Após escrever o primeiro rascunho deste
livro, comecei a revisá-lo e descobri uma personagem importante
emergindo, como a heroína de um romance. Trata-se de Perséfone, que se
lança repetidamente para diante nos primeiros capítulos, mostrando-se e
depois recuando mais uma vez até o momento apropriado para Sua plena
aparição.
No mito, a Deusa sem nome aparece primeiro como uma inocente
Kore ("virgem" ou "filha") colhendo flores, quando a Morte sai rugindo do
chão para arrastá-la para as Profundezas. Em vez de aceitar o que os Deuses
descrevem como irreversível, até adequado, a mãe de Perséfone, Deméter, a
Deusa das Sementes, detém o crescimento de toda a vida vegetal até que
Zeus concorda em ordenar à Morte que permita o retorno de Perséfone. Mas
Perséfone não volta a mesma de antes. Encontrou Seu verdadeiro poder como
a Rainha da Morte, voltando às profundezas durante parte de cada ano para
brilhar na escuridão. Quanto mais meditamos sobre esta história, mais
descobrimos muitas de nossas próprias questões: os ciclos do ano; nosso
próprio medo da morte; a separação e a reconciliação com nossas mães; a
luta contra a brutalidade do estupro e do incesto; a coragem para enfrentar a
autoridade institucionalizada; e até questões mais amplas. O mito simboliza
o próprio retorno da religião da Deusa da aparente morte após 5.000 anos de
domínio de um Deus transcendente separado do mundo. Finalmente,
podemos descobrir, nesta história da Mãe e da Filha separadas por um
homem invasor, a origem codificada da sexualidade e da morte.
A descoberta de realidades biológicas na história de Perséfone conduz
ao capítulo final e à "Teoria de Gaia" da ciência contemporânea. Nesta idéia
da Terra como um único organismo vivo, descobrimos que a espiral
realmente retornou e se abriu, trazendo de volta, de uma maneira nova e
vital, a Deusa pré-histórica. Tanto os Mistérios de Elêusis quanto a Teoria de
Gaia referem-se à nossa profunda percepção do mundo como composto de
fragmentos isolados, cada um aparentemente isolado, mas todos eles, todos
nós, conectados em algum nível fundamental. A biologia moderna nos faz
voltar àquela mesma idéia representada pela Deusa Perséfone surgindo da
terra da morte — de que estamos todos vivos, todos ligados uns aos outros,
26

aos animais e às plantas, às estrelas e às cinzas, juntos no corpo da Deusa.


27

1 - Como a Deusa Pode Ter um Corpo?

Como nos lembramos. Como sua memória trouxe-me a minha memória. Como eu
sabia o que ela sabia, como seus seios também perceberam, seu corpo, como estávamos
inundadas de memória.
Susan Griffin

Nós entramos no corpo da Deusa como entraríamos em um país


estrangeiro: inseguros, excitados porém confusos, maravilhados diante dos
costumes desconhecidos e de uma língua estranha. Como falamos destas
coisas? Como os povos antigos encaram o corpo divino e sua realidade física?
E o que vamos descobrir de nós mesmos e dos nossos corpos, quando
abrirmos nossa consciência e nossas vidas à Deusa?

O Nascimento de Artemis
O que significa escrever sobre o corpo da Deusa? Preocuparmo-nos com o
corpo, pensar na idéia, tentar conceber (uma palavra que se origina dos
corpos das mulheres) Deus(a) tendo um corpo? Para muitas pessoas, a idéia
é absurda, quase impensável. Nos anos que passei escrevendo este livro, eu às
vezes dizia às pessoas em que estava trabalhando e só recebia de volta um
olhar confuso e a pergunta: "Como a Deusa pode ter um corpo?"
Um calendário sagrado publicado algum tempo atrás relacionou, entre
os rituais sazonais pagãos e os feriados das religiões oficiais, os nascimentos de
várias divindades da Antiga Grécia e de outras culturas. O dia 28 de abril foi
apresentado como o nascimento de Buda e da Deusa Artemis (cujo corpo
preenche estas páginas até mesmo quando se ergue tranqüilo nas colinas e
montanhas da Grécia). Para homenagear Artemis, fui a uma cachoeira nas
montanhas próximas da minha casa. Quando contei às pessoas o que havia
feito, muitas delas me olharam surpresas, ou até riram. "Artemis tem uma
data de aniversário?" — perguntaram. Algumas dessas pessoas eram pagas,
que, na verdade, adoravam Artemis como Diana, a deusa romana da Lua.
28

Outras não se surpreenderam com o fato de Buda ter um aniversário, pois,


afinal, ele foi um homem mortal, o Príncipe Sidarta. E a maioria dessas
pessoas comemorava o aniversário de Yehoshua ben Miryam, um judeu radical
que dizia ser filho de Deus, e cujos seguidores diziam ser o Messias, ou Cristo.
Além disso, a idéia de uma Deusa, um ser totalmente divino, realmente ter
nascido era por elas considerada bizarra. Podiam ter lido mitos sobre o Seu
nascimento, junto com seu irmão Apoio — mas um aniversário de verdade?

Quem E o "Eu" que Possui um Corpo?


Para a maioria das pessoas que pensam em todas essas coisas, os mortais
possuem corpos; as Deusas, não. E isto que nos torna mortal, o fato de
estarmos "confinados" a nossos corpos. Muitos anos atrás, uma amiga minha
(que passou muito tempo meditando e salmodiando) escreveu em uma parede:
"Se você possui um corpo, deve ter feito algo errado. RS.: Sou uma mulher."
Mas quem é esse "eu" que possui um corpo? De que maneira estamos
separados desses corpos que se movimentam, dormem, comem, fazem amor,
choram e dão à luz? A própria linguagem que usamos nos isola da realidade
do corpo. Estamos falando do "meu" corpo, dos "meus" braços, pulmões ou
rosto. Quem possui tais objetos físicos?
O corpo é a nossa realidade básica. A partir da nossa conexão com
o mundo externo, ele fornece tudo aos nossos sistemas artístico e
intelectual. Por exemplo, as pessoas que estudam simbolismo têm
frequentemente observado a maneira como o número quatro aparece em
muitas culturas — a paisagem dividida em quartos, quatro estações,
quatro "elementos" (em geral, fogo, água, ar e terra), quatro cores
espirituais básicas (normalmente ligadas às quatro direções) e assim por
diante. Daí, então, passam a concluir que o número quatro é de alguma
forma fundamental para a mente humana, ou possivelmente está
incorporado em algum lugar nos lobos do cérebro. Mas há uma explicação
mais simples sobre a importância do quatro, uma explicação relacionada
aos nossos corpos e ao caráter físico — o corpo — da Terra. Há quatro
estações, ou antes, quatro pontos solares do ano, os solstícios e os
equinócios. Não se trata de invenções, mas de fatos da nossa existência. Se
ficamos de pé, eretos, nossos corpos nos conduzem a quatro direções, pois
podemos olhar adiante de nós, girar o corpo e olhar atrás de nós, e estender
nossos braços para a direita ou para a esquerda.
E, na verdade, há também quatro direções na natureza, indepen-
dentemente de nós. A Terra gira sobre um eixo, criando pólos ao norte e
29

ao sul. Nos equinócios, o Sol nasce no leste, ou seja, a um ângulo de


noventa graus do eixo polar, e se põe no oeste, mais uma vez a um ângulo
de noventa graus. Se a lua cheia cai no equinócio, podemos perceber as
quatro direções diretamente em nosso corpo. No poente, fique de pé com
os braços estendidos lateralmente. Se apontar sua mão direita para onde o
Sol está se pondo, sua mão esquerda apontará para o ponto de nascimento
da Lua, e seu rosto estará de frente para o norte, com o sul diretamente
atrás de você.
Podemos pensar em um "símbolo" como uma imagem que abre a
nossa consciência para diferentes maneiras de entender. Um símbolo sugere
idéias, reúne conceitos e percepções diferentes. Toca alguma parte de nós que
não podemos explicar facilmente ou colocar em palavras. Os símbolos e as
imagens fazem todas essas coisas porque têm sua origem nos corpos — em
nossos próprios corpos, nos corpos dos animais ou em características do céu
ou da Terra. Sabemos que um símbolo nos afeta naquele nível profundo
quando nosso cabelo se eriça na nuca ou ficamos arrepiados ou
sexualmente excitados. Apesar disso, ainda descrevemos os símbolos como
abstrações intelectuais.
Assim como tende a separar o corpo da mente — ou da alma —,
nossa linguagem também inclui, quase como alguma camada enterrada,
uma identificação da natureza e dos corpos das mulheres. Estamos falando
da Mãe Terra — ou Mãe Natureza —, referimo-nos às nações (sem falar nas
batalhas) como "elas", podemos até batizar os furacões com nomes
femininos. (Reclamações das mulheres alteraram a prática, e agora se
alternam nomes masculinos com femininos, mas ninguém sugeriu aboli-los
totalmente.) O elo entre a natureza e os corpos das mulheres desloca-se
também em outra direção. Os seios das mulheres são descritos como
colinas, as vaginas como selvas ou pântanos, ou até mesmo vulcões. Para a
maioria de nós, entretanto, tudo isso são metáforas, variedades de
expressão. A Deusa não pode ter um corpo.

Uma Religião de Realidades Básicas


Pensar no corpo da Deusa é pensar em nossos corpos. Pensar no nascimento
de Artemis é recordar nossos próprios nascimentos. Na melhor das
hipóteses, o recente (re)despertar da religião da Deusa é uma religião, e um
movimento, de realidades básicas, de nascimento e morte, dos ciclos da Lua
e do Sol, da menstruação e da gravidez, da excitação e do orgasmo. Gertrude
Rachel Levy, autora de The Gate of Horn, caracterizou a religião como "a
30

manutenção de um relacionamento contínuo". Este relacionamento fracassa


e a religião se transforma em superstição, ou talvez filosofia (ou
psicologia), quando perdemos esse relacionamento original para o divino no
mundo físico, quando as idéias e os símbolos se desligam dos corpos.
O corpo permanece nossa verdade fundamental. Com isso, não me
refiro apenas ao corpo humano. A Deusa africana Oya expressa-se como
relâmpagos e rios. As Deusas pré-históricas da Europa e do Oriente Médio
assumem as formas de peixes, abelhas, árvores, sapos ou abutrês. Para nós,
hoje em dia, tais imagens parecem estranhas, até infantis. Estamos
acostumados a pensar em Deus como uma abstração. Mas essas imagens não
eram arbitrárias, muito menos triviais. Elas se originaram de um
conhecimento profundo e específico dos animais e das plantas, e dos
processos da vida. Esse conhecimento uniu-se a uma consciência espiritual,
uma sensação de que a realidade divina movimentava-se nas vidas das
pessoas em todos os momentos. Como algo natural, real, unir o
conhecimento da existência física à intuição de que a espiritualidade fluía
através de toda experiência.
Esse relacionamento contínuo estendia-se a todos os aspectos da vida,
incluindo a existência cotidiana. Hoje em dia, raramente pensamos no ato de
cozinhar como algo sagrado. Podemos fazer refeições especiais para os feriados
religiosos, mas em geral apenas como uma tradição familiar. Mas quando
James Mellaart e outros escavaram uma cidade de 10.000 anos de idade
próximo à aldeia de Çatai Hüyük, na Turquia, encontraram estátuas de Deusas
com a forma de mulheres grávidas, colocadas no alto de fornos para assar pão.
Isto pode nos parecer estranho, mas pense — não é o pão, e todo alimento
cozido, um milagre? Vários ingredientes misturados, assumindo uma
determinada forma (como seria maravilhoso conhecer as formas que os povos
neolíticos davam a seus pães!), entram em um lugar quente e fechado, e algo
totalmente diferente emerge, algo nutritivo e sensualmente agradável. E
pense no milagre da gravidez, de um feto se formando e adquirindo vida,
como o pão, na escuridão aquecida de um corpo de mulher. O pão e os bebês
são da mesma forma milagrosos — divinos. Nós perdemos a percepção do
maravilhoso nas coisas cotidianas da vida justamente porque tendíamos a
enxergar Deus como abstrato, situado em algum lugar distante daqui —
separado de nossos corpos.
Ainda assim, será que o vínculo entre o pão e os bebês é realmente tão
forçado? Nós descrevemos uma mulher grávida como tendo "um bolo no
31

forno". 2Será que esta expressão pode remontar à Turquia pré-histórica? Ou


simplesmente mostra que a imaginação moderna fez a mesma associação
dos bebês com o pão que era feita na Idade da Pedra? Entretanto, há uma
diferença. A expressão moderna não inclui o elo desaparecido, a
espiritualidade. As estatuetas no alto dos fornos não exibem mulheres
comuns; exibem Deusas grávidas.

O Amor, a Sexualidade e o Corpo Divino


Até o amor tornou-se abstrato. Pensamos no "verdadeiro" amor como
uma essência pura, e no amor físico como suspeito, um truque ou ilusão,
até mesmo sujo. "Deus é amor", dizemos, mas como Deus não tem um
corpo, não devemos contaminar o amor divino com o desejo e a satisfação
físicos. Dizemos que o amor sexual nos transforma em animais e
consideramos esta uma razão para suprimi-lo. Em outras culturas e
épocas, as pessoas não separavam amor sagrado e sexualidade. Em Sua
forma inicial, Afrodite, Deusa da paixão sexual, era também uma Deusa
do nascimento, da morte, do movimento do mar e das aves do céu. Era
uma mãe da mudança e da transformação, assim como do desejo, e tinha
conexões históricas com aquelas antigas culturas centralizadas na mulher
da região da Anatólia, no oeste da Turquia. Com o passar dos séculos, os
gregos patriarcais reduziram o seu poder, limitando a sua imagem à de
uma insignificante cortesã.
Paul Friedrich, em The Meaning of Aphrodite, conta-nos que Afrodite
inspirava paixão em heterossexuais e lésbicas, enquanto seu filho Eros
excitava os homens homossexuais, isto é, os homens sem mulheres. Isso
tem alguma relação com a atitude da nossa cultura para com as mulheres,
ao chamar a sexualidade de "erotismo" e não de "afrodisia", os nomes
Afrodite e Vênus — Vênus é o nome romano de Afrodite — sobrevivendo
em termos sexuais negativos ou triviais, como "afrodisíaco" e doença
"venérea".
Quando a religião cristã assumiu o poder, os padres da Igreja bani-
ram Afrodite. Segundo Friedrich, a maioria das divindades gregas tor-
naram-se santas na nova religião — exceto Afrodite, que simplesmente
desapareceu (embora aspectos de Sua adoração — sem o sexo — tenham
sido enxertados em Maria, mãe de Jesus). Mesmo reduzida, a realidade

2
"a bua in tbt wen" — expressão da língua inglesa para indicar que uma mulher está grávida.
(N. da T.)
32

do corpo (feminino) de Afrodite ameaçava o paradoxo cristão — de uma


divindade totalmente masculina que ao mesmo tempo não possuía corpo.
O mito cristão descreve os anjos como desencarnados, desprovidos
de sexo, embora eles também sejam homens, com nomes masculinos
ainda usados atualmente, como Gabriel e Miguel. No cristianismo, a
masculinidade tornou-se distinta da sexualidade. A "Razão" passou a cons-
tituir a principal qualidade masculina, isolada, no controle do corpo, em
permanente o risco de ser poluído, especialmente pelas mulheres. A nova
religião considerava o corpo, com seus desejos animais, inimigo da razão
verdadeira. A Igreja via as mulheres como mais próximas dos animais. As
mulheres tentavam os homens e os afastavam de Deus.

Medindo o Corpo de Deus


Após milhares de anos de um Deus abstrato e impessoal, torna-se quase
impossível pensar no corpo de Deus como algo além de uma metáfora. Em
muitas culturas, no entanto, como os jainistas da índia, há uma tradição
de se ver o universo como um corpo único. As escrituras de Jain
descrevem este corpo em muitos detalhes. A idéia não está limitada à
Ásia. Na tradição esotérica judaica da Cabala encontramos a imagem de
Adam Kadmon, o cosmos como um grande ser primordial assumindo a
forma de um homem. Às vezes, os cabalistas descrevem Adam Kadmon
como hermafrodita, com características tanto femininas quanto
masculinas. (Ver Capítulo 5 para um Adão mais andrógino e outros
hermafroditas míticos.)
Adam Kadmon é uma criação de Deus, não o Próprio Deus. A
Cabala, no entanto, vai além disso, descrevendo uma idéia chamada
"Shiur Komah", expressão hebraica que significa "Medição do Corpo", na
qual os místicos tentam descobrir as características físicas de Deus.
Gershom Scholem, o grande estudioso da Cabala, descreveu esta idéia
como "absurda" e "monstruosa", embora também a descreva como
inspirada pelo Cântico dos Cânticos e sua descrição do Corpo do Amado.
Apesar de sua exploração dos mistérios antigos, Scholem era ainda um
modernista, herdeiro da tradição ocidental de Deus como um pensamento
puro desprovido de corpo físico.
É provável que Scholem soubesse que a idéia de Shiur Komah não era
privilégio dos judeus. Assim como os jainistas, com suas medições muito
precisas dos lábios, dedos dos pés, cotovelos e assim por diante, encontramos
33

em muitas culturas uma tradição do mundo físico tendo sido formado a


partir de um único corpo. Em geral, o corpo é o de uma Deusa. Em muitas
versões deste mito, Ela é desmembrada, fragmentada em milhões de
pedaços, freqüentemente em decorrência da violência masculina. Estes são
mitos das culturas dominadas por homens, e suscitam muitas questões
complexas (algumas das quais vamos considerar em capítulos posteriores).
Entretanto, além do dilaceramento ou da Deusa fragmentada, encontramos
uma profunda intuição — de que o cosmos, como tudo que nele existe, cada
pedra e cada gota de água, está vivo, tal como nós, e é feminino, como as
mães que nos deram vida.
Na verdade, os cabalistas medievais seguiram sua própria intuição de
divindade feminina. Eles descreviam um Deus andrógino, "tanto masculino
quanto feminino", como diz o Gênese, fragmentando parte de "Si" para que
algo pudesse existir para venerar e espelhar o esplendor de Deus. Este algo é
em geral considerado como feminino. Alguns o identificam com a Shekinah,
um termo bíblico que originalmente significava a "presença viva" de Deus,
ou seja, a manifestação física de Deus no santuário dos santuários. Na Idade
Média e posteriormente, Shekinah tornou-se uma presença feminina,
abrigando o fiel com suas asas. A metade feminina de Deus também recebeu o
nome de Chokmah, ou Sabedoria. Os gregos deram a esta Deusa o nome
grego para sabedoria, Sophia.

Formas Corporais na Natureza e nos Templos


Este livro começou como uma idéia para uma série de viagens. Durante
alguns anos, e através da influência de amigos, livros e do meu trabalho com
as imagens e o simbolismo do Taro, fiquei interessada na religião da Deusa
e quis tratar deste tema em meu trabalho. Eu sabia que muitas pessoas
estavam revivendo a prática das peregrinações, viajando para os lugares
poderosos e os templos antigos de muitos países. Cerca de dez anos antes, eu
havia visitado várias cavernas da França contendo entalhes de pinturas de
mais de 20.000 anos de idade. Essa experiência comoveu-me
profundamente e eu sabia que desejava voltar atrás e ver estas obras em um
contexto de conhecimento sagrado, sobretudo a idéia da caverna como o
útero da Deusa.
Quando comecei a realizar minha pesquisa, tive uma idéia surpreen-
dente. Em vários lugares, particularmente na Ilha de Malta, os templos
dedicados à Deusa tinham a forma simplificada do corpo de uma mulher —
34

ou seja, com aposentos arredondados, como seios e quadris, com um


aposento menor no fundo, como se fosse uma cabeça (ver Figura 1). O
adorador que nele entrava sentia-se como se estivesse entrando em um corpo
divino. As pessoas contemporâneas que viajaram até Malta descreveram uma
enorme sensação de proteção, até de amor.

figura l : Contorno estrutural do templo de Ggantija, na ilha de G c. 4000 a.C.

Não só as construções humanas eram vistas assumindo a forma do


corpo da Deusa. A própria ilha podia assumir essa forma se observada da
maneira correta. Em um artigo de autoria da arquiteta Mimi Lobell (o
mesmo artigo em que li sobre Malta), deparei-me com uma idéia
apresentada inicialmente por Vincent Scully, professor de história da
arquitetura da Universidade de Yale. Scully descobriu que os chamados
"palácios" da antiga Creta (o termo "palácios" deriva das suposições de uma
monarquia grega, jamais provadas) estavam situados em formações naturais
específicas. Os cretenses colocaram cada uma das grandes edificações em um
eixo (aproximadamente) norte-sul, diante de uma colina cônica, além desta,
uma montanha cornuda continha uma caverna, usada como santuário
religioso. Segundo Lobell:

O próprio local do palácio acentuava o significado da


paisagem natural como o corpo da Deusa. O vale eram seus
braços em círculo; a colina cônica, seu seio ou função
nutriente; a montanha cornuda, seu "colo" ou vulva fendida, o
poder ativo da Terra; e o santuário da caverna, seu útero que
dá à luz.
35

(Lobell, "Temples of the Great Goddess",


Heresias, Número 5)

Esta idéia me cativou. Como muitas pessoas, primeiro suspeitei que o


conceito da Grande Deusa fosse uma invenção moderna, um mito feminista.
Embora minhas primeiras leituras tenham mudado minha opinião e me
mostrado a sólida pesquisa que está por trás da imagem da Deusa, foram as
idéias de Lobell e Scully que proporcionaram à Deusa uma realidade física.
Jamais experimentei uma realidade desse tipo nas idéias religiosas
tradicionais da minha própria sociedade.
Comecei a ler e a pensar sobre a Deusa, sobre o Seu corpo. Sua
presença no mundo, a conexão com o meu próprio corpo e com os corpos
das mulheres (e dos homens) em geral. O uso cretense das cavernas como
santuários sugeria um vínculo com as cavernas de arte pré-histórica da
França e da Espanha. Se a Terra é nossa Mãe, então uma caverna torna-se
uma imagem do Seu útero e um lugar para se entrar em Seu corpo real.
Será que foi por isso que os artistas Cro-Magnon escolheram pintar e
entalhar seu trabalho nas cavernas? Não há como saber. Eles não deixaram
outro registro senão a própria arte. Apesar disso, quanto mais eu leio sobre
as cavernas, mais acho natural — e muitos outros também têm achado —
compará-las ao interior do meu próprio corpo. E quando fui com uma amiga
visitar a caverna de Pêch-Mèrle, com seus imensos túneis e câmaras, e suas
paredes embebidas de vermelho, nós duas (independentemente) nos
sentimos como micróbios dentro de um corpo gigantesco.
Em muitas áreas montanhosas, alguns picos vão se assemelhar a um
rosto de perfil, ou a uma mulher deitada de costas, e o folclore
freqüentemente vai tornar este vínculo explícito. Este uso de uma imagem
fixada pode se tornar simplista. Há outras maneiras de se considerar a Deusa
fisicamente presente na terra. Os povos nativos da América do Norte sempre
consideraram a Terra a mãe de todas as pessoas — com as "pessoas"
incluindo as plantas e os animais, além dos humanos. Quando eu era criança,
aprendi em minhas aulas de história que os homens americanos nativos
recusavam-se a se tornar agricultores porque a agricultura era um "trabalho
das mulheres". Na verdade, como vim a saber muito mais tarde, alguns
povos nativos resistiram a praticar a agricultura porque ela envolvia cortar a
Terra com o arado, um ato que consideravam igual a cortar os seios de suas
mães com uma faca.
36

A Lua e os Corpos das Mulheres


Assim como a idéia da terra como o corpo da Deusa, eu conhecia as
tradições que consideravam aspectos específicos da natureza como es-
sencialmente femininos devido à sua semelhança simbólica com as ca-
racterísticas físicas das mulheres. Muitas culturas identificavam a Lua como
uma Deusa, diretamente ligada aos corpos das mulheres. (Alguns livros vão
descrever esta conexão como uma idéia universal; entretanto, as idéias
universais raramente existem. Os antigos japoneses e alemães estavam entre
a minoria das culturas que consideravam a Lua como masculina e o Sol
como feminino.)
Mais obviamente, os ciclos menstruais da maioria das mulheres
tinham mais ou menos a mesma duração do ciclo da Lua, de nova para cheia,
para minguante, para nova. Estudos realizados em dormitórios de
faculdades e aldeias isoladas têm sugerido que um grupo de mulheres que
mora muito próximo tende a menstruar na mesma época, em geral durante a
Lua cheia ou a Lua nova. Alguns pesquisadores acreditam que esta
capacidade das mulheres para unir seus ciclos pode ter iniciado o processo
da comunidade e da cultura humana. (Para mais informações sobre esta
questão, ver Capítulo 5.)
Há também uma conexão mais sutil. A Lua se desloca através de três
fases distintas. Nasce da escuridão como uma faixa que vai aumentando
consistentemente até alcançar a magnificência da Lua cheia, e depois,
decorridos três dias, vai diminuindo, diminuindo, até finalmente morrer,
desaparecendo durante três dias, para em seguida nascer novamente. As
mulheres e os homens chegam ao mundo vindos da escuridão do útero de
sua mãe. As mulheres, no entanto, passam da infância para a fertilidade adulta
através de uma aguda divisão em suas vidas — a menarca, a primeira
menstruação. Permanecem férteis, capazes do milagre de desenvolver
crianças em seus próprios corpos, até a ocorrência (gradual) de um evento
distinto — a menopausa.
Estas fases — virgem, mãe, anciã — formam uma comparação
natural com as luas crescente, cheia e minguante. As várias Deusas
Tríplices em diferentes mitologias (especialmente as mitologias do Leste
Europeu) identificaram uma presença poderosa na moderna religião da
Deusa. As wiccans (bruxas modernas) adoram a Lua, não como um corpo
celestial, mas como uma manifestação da verdade e do poder femininos.
37

Conscientes como todo mundo de que a Lua é uma pedra que gira na órbita
da Terra, elas têm estudado mais profundamente a sua importância em
nossas vidas. Como os antigos, incorporaram-na como um símbolo da
fertilidade das mulheres.
Mas será "apenas" um símbolo? Ou alguma de suas qualidades físicas
afeta diretamente os corpos das mulheres? As pessoas às vezes consideram:
se o impulso gravitacional da Lua controla as marés, por que não controlaria
o fluxo mensal da menstruação? Entretanto, o efeito das marés sobre os
oceanos ocorre devido à grande dimensão da Terra. Ou seja, a Terra é tão
grande, que a gravidade lunar afeta o lado mais próximo da Lua de uma
maneira diferente da que afeta o lado mais distante. Esta diferença na força
da gravidade provoca as marés. Os corpos das mulheres não são maciços o
bastante para criar uma diferença tão significativa. Mas há uma maneira mais
direta da Lua influenciar a fertilidade: a qualidade especial da luz lunar.
Quando a mulher tem problemas com seus ciclos menstruais, como
períodos irregulares, os médicos em geral receitam-lhe hormônios. Nos
últimos anos, entretanto, alguns médicos (e mulheres por sua própria conta)
têm tentado uma abordagem diferente. As mulheres dormem à luz da Lua
ou de uma luz que proporcione o mesmo tipo de luz que a Lua. Em muitos
casos, seus ciclos regularizaram-se após algumas semanas.
Quando pensamos na Deusa Tríplice, tendemos a pensar na Grécia
antiga ou na Irlanda celta. Entretanto, Marija Gimbutas observou que a
imagem remonta pelo menos ao período magdaleniano, na França, 12.000 anos
atrás, pois a caverna de Abri Du Roc Aux Sorciers, em Angles-sur-Anglin, na
França, contém um relevo do que Gimbutas chama de "três presenças
femininas clássicas com vulvas expostas". A partir de 3200 a.C.,
encontramos uma imagem tríplice mais abstrata, uma espiral tríplice
magnificamente entalhada no marco de pedra situado na entrada do imenso
passage mound 3em Newgrange, no vale do Rio Boyne, na Irlanda (ver Foto
l).
Não podemos dizer com certeza se essas formas pré-históricas re-
presentam uma Deusa lunar ou as fases da vida de uma mulher. Entretanto,
elas mostram a surpreendente longevidade das imagens tríplices. E as
espirais têm sido encontradas em muitas esculturas e templos da Deusa,
possivelmente como símbolos de nascimento, morte e renascimento. A
espiral não é apenas filosófica. Embora em geral apareça na arte abstrata,

3
Tipo de passagem de acesso. (N. da T.)
38

trata-se na verdade, de uma forma fundamental da natureza, encontrada


muito mais comumente do que o círculo, que raramente aparece em outra
imagem além do Sol e da Lua. As cobras se enrolam em espirais, a água
desce em espiral, as aves às vezes voam para o alto em espiral para usar as
correntes de vento, as galáxias têm forma espiral, e os chifres dos carneiros
e de outras criaturas freqüentemente saem de suas cabeças em forma de
espiral.
Mas e quanto à quarta fase da Lua, a escuridão? A resposta óbvia é
que, assim como uma mulher morre e volta para a terra, também a Lua
morre quando desaparece na escuridão. Mas a Lua renasce após três dias (a
mesma extensão de tempo da Lua cheia), o que sugere fortemente que a
morte não é final, que a Deusa promete renascimento. Joseph Campbell
observou que muitas figuras das Deusas Tríplices vão mostrar uma quarta
figura lateral — em geral, mas nem sempre, um Deus ou um homem
mortal. Jesus permanece sepultado durante três dias, até que ressurge no
Domingo de Páscoa. O nome "Easter" (Páscoa, em inglês) deriva de Eostre,
uma Deusa alemã da primavera, cujo nome é por sua vez ligado a "estrus",
fertilidade feminina. A Terra dá à luz as plantas da mesma maneira que as
mulheres dão à luz os bebês — a partir de uma escuridão oculta. Aqui
também encontramos uma promessa de renascimento, pois as próprias
plantas que "morrem" no inverno retornam na primavera.
A Água, os Corpos das Mulheres e a Deusa
Assim como a extensão do ciclo da Lua vincula-a aos corpos das
mulheres, existem também grandes semelhanças entre o corpo feminino e os
corpos oriundos da água. Um bebê que cresce no útero de sua mãe flutua
em uma bolsa de líquido, e quando a mulher dá à luz, "as águas fluem". O
próprio nascimento envolve sangramento, de forma que encontramos dois
fluxos vermelhos — durante a menstruação e durante o nascimento.
O mar sobe e desce como os ritmos internos de uma mulher. A
própria Lua que parece governar a menstruação provoca o ritmo das marés.
Os mares são salgados, como as lágrimas e o sangue das mulheres e dos
homens. E, tanto quanto sabemos atualmente, toda a vida originalmente
veio dos mares, transformando o mar em nossa Grande Mãe.
Antes de começar este trabalho, escrevi algumas dessas coisas em
livros anteriores, especialmente em um comentário a respeito de um
baralho de Taro pintado pelo artista alemão Hermann Haindl. Ali, tentei
deixar expresso que essas coisas compunham uma realidade fundamental.
Eis o que escrevi na época:
39

Muitos povos modernos podem reconhecer todas estas


correlações. Podem até acreditar que a gravidade da Lua, de
alguma maneira "científica", afeta o potencial da mulher de
dar à luz. Mas os povos antigos viam isso de maneira
diferente. Eles consideravam a Lua, os mares e as mulheres
tudo a mesma coisa, um mistério da vida que eles adoravam
através dos rituais da Lua e das estátuas de Deusas grávidas.

À medida que continuei minha leitura e comecei minhas viagens, co-


mecei a encontrar mais conexões entre o corpo feminino e a água. Um dos
primeiros lugares que visitei foi a cidade inglesa de Bath, com seu elegante
spa, usado pelos romanos e, muito mais tarde, pelos vitorianos. Embora os
arcos e as colunas obscureçam muito da forma original do lugar, o visitante
ainda pode observar as águas aquecidas fluindo de um grande buraco na
rocha nativa. A escritora Marian Green, que me orientou no local, comentou
que a água era tingida de vermelho devido a depósitos de ferro na pedra, e
que a combinação do calor e da vermelhidão produzia uma intensa imagem
das águas do nascimento fluindo do útero da Terra.
Mais tarde, visitei Glastonbury, onde a nascente também flui em
vermelho. E li que muitas catedrais foram construídas sobre antigos
templos pagãos, que por sua vez foram construídos sobre rios submersos.
Quando fui até Silbury Hill, uma gigantesca colina feita pelo homem na
Inglaterra, milhares de anos atrás, descobri que as pessoas da Idade da Pedra
a construíram na confluência de dois rios submersos.

O Corpo no Céu
Para muitas pessoas que procuram o corpo divino na mitologia, tor-
nou-se um lugar-comum que Terra = Deusa, e Céu = Deus. Na cultura
européia, esta idéia provém em grande parte da mitologia grega e romana,
com o Deus Céu, Urano, engravidando a Deusa Terra, Gaia. Algumas
culturas americanas nativas falam no Avô Céu e na Avó Terra. Obviamente, a
dualidade reconhece os "fatos da vida", uma expressão interessante, embora
ultrapassada. Mas serão estes "fatos" do envolvimento masculino e
feminino na reprodução a verdade final da criação?
O mito grego não fala de Urano surgindo ao mesmo tempo que
Gaia. Ao contrário, a existência tem início simplesmente com Gaia, que
depois dá à luz Urano de seu corpo, onde ela teria um parceiro e consorte.
40

O corpo da Deusa torna-se a origem de todas as coisas, incluindo o


Deus Céu, cuja ruína, na verdade, tem início com sua arrogante suposição de
superioridade sobre seu criador. (Esta ruína, segundo algumas versões da
mitologia grega, envolve a separação dos genitais de Urano, da qual emerge
Afrodite — para mais informações sobre esta surpreendente história, e suas
implicações, ver Capítulo 7.) Muitas culturas têm considerado a Via Láctea
literalmente como o leite fluindo dos seios da Deusa. Elisabet Sahtouris, em
seu livro Gaia: The Human journey from Chaos to Cosmos, descreve um mito
grego da criação em que Gaia dança e a Via Láctea flui espiralada do Seu
corpo. Trata-se de uma imagem notável, quando consideramos que a Via
Láctea é realmente nossa galáxia, e os modernos telescópios têm mostrado
que as galáxias se originam a partir de um movimento espiralado, algo não
aparente apenas a partir da observação da Via Láctea.

A Emergência do Masculino
Os achados da biologia e da evolução reforçam a primazia do feminino. Os
biólogos descrevem os primeiros organismos como femininos, reproduzidos
pela separação entre a "filha" e a "mãe". No decorrer da longa evolução, a
introdução do masculino ocorre bem mais tarde, e pode ser chamada de
uma mutação do feminino.
Várias décadas atrás, os biólogos descobriram que todos os fetos
humanos começam como femininos e nos dois primeiros meses seguem um
padrão de desenvolvimento que resultaria em um bebê do sexo feminino.
Na quinta semana, desenvolve-se uma gônada indiferenciada que
eventualmente vai se transformar nos órgãos sexuais femininos ou
masculinos. Um sexo com cromossomos XX vai então desenvolver ovários
na sexta semana. Entretanto, se o feto contém cromossomos XY, o
cromossomo Y vai fazer com que as gônadas secretem um "organizador
testicular". Esta química promove a "diferenciação", ou seja, envia as
gônadas para uma nova linha de desenvolvimento, formando os testículos.
Um artigo publicado em 4 de agosto de 1992, no The New York Times,
descreve como o processo se inicia com a proteína conhecida como "fator
de determinação dos testículos" subjugando o DNA para que os diferentes
genes entrem em comunicação.
Segundo Monica Sjoo e Barbara Mor, em seu livro The Great Cosmic
Mother, no início os fetos portam possibilidades reprodutoras tanto femininas
quanto masculinas. À medida que um conjunto se desenvolve, o outro
41

degenera. Externamente, no entanto, os órgãos no começo são os mesmos,


tanto no feto feminino quanto no masculino. Poderíamos dizer que, sob a
influência dos andrógenos, o clitóris transforma-se em um pênis, e os
grandes lábios na bolsa escrotal.
Há duas maneiras de se observar esta realidade do desenvolvimento
fetal, estes fatos da vida. Uma abordagem chauvinista feminina pode
descrever os homens como uma espécie de reflexão tardia no esquema da
existência. Se os homens são ramos de uma realidade fundamental, então
são claramente inferiores. Entretanto, está implícito na religião moderna da
Deusa um respeito por todos os seres, e uma rejeição do que Riane Eisler
chama de modelo "dominante" em prol de um modelo de "parceria". Por
isso, podemos optar por uma visão mais sutil da evolução, um modelo que
acredito esteja apoiado pela religião da Deusa de nossos mais antigos
ancestrais. Ou seja, a idéia de que homens e mulheres não são espécies
estranhas, não são inimigos eternos, mas parte do mesmo ser sagrado.
As representações da Deusa na religião da Idade da Pedra mostram
um profundo entendimento de que o corpo da Deusa contém tanto o
masculino quanto o feminino. As chamadas estatuetas de "Vênus" de mais
de 30.000 anos atrás são conhecidas por suas formas femininas exageradas:
seios e quadris enormes, vulvas super desenvolvidas, às vezes separadas
em triângulos na área pubiana, nádegas esteatopígicas pronunciadas.
Menos conhecidas são as estatuetas de mulheres com longos pescoços
fálicos, ou os entalhes de cavernas mostrando apenas um pescoço muito
comprido, seios caídos e grandes nádegas, como se reduzindo a forma
humana às características essenciais femininas — e masculinas. Um chifre
de rena entalhado, datado de 15000-13000 a.C, na França, aparece
simplesmente como uma vulva acima de um longo pescoço marcado com
cortes diagonais de diversos comprimentos. Alexander Marshack
demonstrou a possibilidade de essas marcas (e outras em entalhes de ossos
similares) poderem ter contado a progressão das fases lunares e/ou dos
ciclos menstruais (ver Capítulo 3). Um entalhe muito posterior, datado de
5600-5300 a.C., na Hungria, é mais claramente hermafrodítico. O corpo
cilíndrico, com pequenos seios pontudos e um rosto comum, tem uma
distinta qualidade fálica, enquanto as nádegas pronunciadas na parte
inferior (há pequenos pés, mas não pernas) claramente se assemelham a
testículos. O resultado é uma elegante fusão das imagens masculina e
feminina (ver Figura 2). (Para outra visão da Deusa fálica, ver Capítulo 3.)
42

Figura2. Desenho de frente e costas de uma estatueta feminina de forma fálica de Starçevo, Hungria, datada
de c. 5600-5300 a.C. (extraída de Gimbutas).

As estatuetas datam primariamente do período paleolítico, ou Idade


da Pedra Lascada, período das cavernas. No neolítico, ou Idade da Pedra
Polida, encontramos o início dos templos, dos círculos de pedra e das
monumentais fortificações. Aí também encontramos combinações sutis de
imagens masculinas com formas essencialmente femininas. O artista
Michael Dames demonstrou a forte possibilidade de Silbury Hill formar a
escultura de uma Deusa gigantesca. (Vista de cima, a colina, com um fosso
de forma irregular à sua volta, lembra muito a estatueta de uma Deusa
grávida encontrada na Bulgária.) Além disso, os escavadores têm
encontrado chifres de veados adultos na colina, e também evidência de que
os trabalhadores usavam chifres de veado vermelho como pegadores. O
veado é uma criatura masculina primai, cheia de força e dinamismo.
Já examinamos (p. 31) a idéia de que os templos pré-históricos, em
Malta, formavam o contorno de um corpo feminino. Este contorno é
bastante abstrato, consistindo de formas ovais conectadas por passagens
estreitas. As estatuetas encontradas dentro dos templos mostram uma
interpretação mais realista do corpo da Deusa. Além disso, as estatuetas,
algumas das quais muito grandes, freqüentemente parecem andróginas, com
grandes quadris femininos e rostos femininos, porém com seios
completamente achatados. Longas saias agitadas escondem qualquer
sugestão de genitais. Essas estatuetas maltesas podem representar uma
43

fusão das imagens masculina e feminina, mas também podem mostrar


uma mistura mais literal dos sexos. Muitas culturas antigas escolhem suas
sacerdotisas entre homens efeminados que usam roupas femininas e
desempenham papéis femininos. Estas sacerdotisas "transexuais" (pedindo
emprestado um termo contemporâneo) podem ter demonstrado a fusão das
formas masculina e feminina dentro do corpo divino (para mais
informações sobre estas práticas, ver Capítulo 7).
Em Çatai Hüyük, seios entalhados nas paredes às vezes exibem
cabeças e presas de javalis emergindo dos mamilos. Cabeças de touros
muitas vezes aparecem nas paredes, particularmente nos aposentos de
nascimento. Aí encontramos o elo mais notável entre um animal masculino
poderoso e o corpo da Deusa. Podemos supor que o touro representasse o
poder gerador masculino, uma vez que um único touro de um rebanho
emprenhava várias vacas. Muito possivelmente, esta idéia estava em parte
subjacente nas cabeças de touros proeminentes em Catai Hüyük. O elo, no
entanto, torna-se mais íntimo, mais direcionado para o corpo, onde
observamos um desenho anatômico da fêmea humana. Por isso,
descobrimos que o útero e as trompas de Falópio portam uma incrível
semelhança com a cabeça de um touro (ver Figura 3)

Figura 3: Desenho de uma cabeça de touro de uma tumba mediterrânea em S. Lesei, Bonnanaro, Sardenha, c. 4000
a.C. (à esquerda), comparado com a forma do útero humano e as trompas de Falópio (à direita), (segundo
(Gimbutas e Cameron).

Algumas feministas têm argumentado que isto significa que origi-


nalmente o touro não representava de modo algum o poder masculino, mas
apenas a Deusa. Além disso, é impossível olharmos para um touro no campo
e não nos impressionarmos com sua força masculina. O touro, então, torna-
se um exemplo da unidade da experiência masculina e feminina dentro da
realidade física.
44

Tudo isso — os fatos biológicos e também as imagens sagradas —


sugere uma saída para a dualidade da maneira de pensar sobre os sexos, u
tendência para discutir sobre a igualdade entre os sexos ou a superioridade de
um sobre o outro. Estas duas posições aceitam a suposição do feminino e do
masculino como fundamentalmente diferentes, embora, no útero, todos os
fetos comecem iguais. Em vez de ver uma separação c um conflito essencial
entre os homens e as mulheres (que podem cooperar, mas permanecer
separados), podemos vê-los como unidos dentro do corpo divino — não
metaforicamente, ou mesmo apenas na parceria, mas nos níveis físicos mais
fundamentais.

O que É a Deusa? O que E o Corpo?


Quando iniciei este trabalho, buscava o corpo da Deusa de forma mais
literal, procurando montanhas que parecessem seios ou o perfil de uma
mulher deitada de costas. Logo, a pesquisa abriu minha mente para idéias
mais sutis. As formações da Deusa na natureza podiam exibir outras
características, como montanhas em forma de cone ou o alinhamento
cretense com o norte e o sul. Os templos e os círculos de pedra podiam
formar o corpo de uma mulher, mas também podiam funcionar como
marcadores da natureza ou observatórios astronômicos para registrar os
solstícios, equinócios ou outros momentos do ano.
Então, o que é para nós "a Deusa"? E, nesse sentido, o que é para nós
"o corpo"? Ao trabalhar neste livro, ao realizar as pesquisas, durante as
viagens que realizei sozinha e com amigos, e ao pensar no que estas coisas
significam para mim e para os outros, pouco a pouco cheguei a um
conhecimento mais amplo desses dois termos. Para mim, "a Deusa" significa
as divindades históricas femininas das diferentes culturas. Mas também
significa o ser divino, ou o poder espiritual, quando ele surge em nós
mesmos e no universo que nos cerca.
Alguns podem chamar esta realidade espiritual de Deus; outros
consideram-na um gênero impessoal, transcendente. Eu uso o termo
"Deusa" por duas razões: primeiro, ele une o nosso reconhecimento do
divino àquela longa tradição que remonta a nossos primeiros ancestrais,
com seus elegantes entalhes femininos; segundo, proporcionar ao divino um
título feminino — Deusa — enfatiza o poder de dar a vida e nos nutrir com o
leite da beleza espiritual. Hallie Inglehart Austen escreve, em The Heart of
the Goddess: "Por fim, vejo a Deusa como a incorporação do amplo espectro
45

da existência, não apenas do 'feminino'." E prossegue: "A Deusa representa


uma unidade e o todo... Todos nós, tudo que tem vida, somos divinos."
Na Idade da Pedra, a Deusa era a doadora da vida mas também da
morte; a Deusa da natureza mas também da arte; da plantação e do
crescimento, mas também dos sonhos. A Deusa é a realidade fundamental.
A linguagem torna-se aqui um espelho. Nos últimos anos, muitos
lingüistas e críticos sociais feministas têm assinalado para o poderoso efeito
que a linguagem exerce sobre a maneira como formulamos nossos próprios
pensamentos. A maioria das línguas européias e asiáticas originam-se de
estruturas patriarcais onde os homens e a experiência masculina compõem
o campo da realidade. A palavra "Deusa" deriva claramente de "Deus",
assim como "feminino" (femalé) deriva de "masculino" (male). A qualidade
derivativa da palavra "Deusa" torna difícil não ver a palavra como estrita e
exclusiva de algo da experiência masculina. Apesar disso, se usarmos a
palavra "Deus", vamos cair na cilada da rejeição cultural da experiência
feminina.
Se falamos na Deusa—e na feminilidade — como verdade funda-
mental, pode parecer que estamos apenas invertendo as coisas. Mas a
novidade da moderna religião da Deusa nos proporciona a oportunidade de
ver as coisas sob um novo prisma — de incluir em vez de excluir, de explorar
a experiência espiritual, não simplesmente limitá-la.
E o corpo? Pouco a pouco, passamos a ver o corpo como qualquer
coisa que exista no mundo. Sentados nas colinas de Delfos na Grécia,
caminhando entre as fendas de calcário próximas à "Teaching Rock" 4de
Peterborough, no Canadá, penetrando na escuridão dos passage mounds do
norte da Europa, ou participando de um ritual em um apartamento na
cidade, para comemorar a chegada da primavera, nós nos conscientizamos
de que o corpo é mais que um objeto. O corpo abrange todas as nossas
experiências. O corpo da Deusa não representa apenas as formas da Terra ou
das estrelas, mas suas características e o seu significado. O corpo é qualquer
coisa que vivenciemos como real e presente em nossas vidas.

4
A pedra que ensina. (N. da T.)
46

2 - O Corpo Visível e o Corpo Invisível


Onde quer que você esteja,
De onde quer que venha
do ser campo sagrado,
você do mar,
você que voa,
é ela que o nutre.

Hino Homérico à Terra,


Traduzido por Charles Boer

Como acontece com qualquer idéia radical, o corpo da Deusa nos atrai
pelo caráter estranho e maravilhoso do seu tema básico, evocando algo
antigo em nós mesmos que não sabíamos existir até o momento do seu
despertar. Mas uma vez que entramos nesse mundo, ele começa a se abrir,
revelando sutilezas cada vez maiores. As pessoas que adoravam a Deusa não
a viam apenas em seus corpos divinos mais impressionantes, nas conjunções
mais óbvias da natureza e da reprodução humana. Procuravam encontrá-la no
terror da morte ou na energia espiralada das serpentes. Retrataram-na nas
formas de seus templos. E quando começamos a seguir estes caminhos,
descobrimos nossas próprias ramificações e transformações ao descobrirmos
a realidade do corpo da Deusa na arte, nos mistérios do desejo e no júbilo da
contemplação.

O Corpo Visível
A Deusa tem ao mesmo tempo um corpo visível e um corpo invisível. O
visível é qualquer coisa física e substancial. O invisível surge como qualquer
coisa real mas que não pode ser tocada. Inclui esses aspectos da imaginação,
do desejo e do pensamento. O corpo sagrado envolve o Céu e a Terra, não
somente em sua existência física, mas também como expressões da
imaginação mítica. Ou seja, o mundo simplesmente existe. Quando
consideramos essa existência, e começamos a percebê-la em termos
espirituais, nós mesmos permitimos ao corpo da Deusa tornar-se visível.
47

Tanto o visível quanto o invisível são mediados pela cultura. Ou


seja, os humanos designaram alguns animais, algumas formas da natureza,
algumas imagens artísticas, algumas idéias e expressões ou alguns tipos de
fala e escrita como especialmente evocativos da realidade física da Deusa.
O corpo visível assume forma na natureza, nos templos e nas árvores,
especialmente nos bosques sagrados e em determinadas espécies de
árvores, como os ciprestes e os plátanos. Vive em todos os animais, mas
especialmente naqueles vistos como Seus companheiros ou que expressem
Suas qualidades especiais, incluindo porcos, carneiros, peixes, ursos, aves
de rapina e, especialmente, vacas, touros e serpentes. O corpo visível surge
no mar, fonte de toda a vida, cuja água salgada corresponde ao nosso
sangue. Encontramos Seu corpo nos rios e nos córregos, e na chuva, sem a
qual não podemos viver.
Encontramos o corpo da Deusa no nascimento e na menstruação,
especialmente quando atribuímos a estas funções físicas um valor sagrado e
cerimonial. Mas também o encontramos na doença e na morte, pois estas
não são erros — ou punições —, mas parte da existência. Aqui chegamos a
uma diferença fundamental entre a religião da Deusa (especialmente como
ela emerge hoje) e as religiões que nos são familiares através da nossa
educação e da história oficial. Se consideramos Deus como perfeito, imortal
e imutável, a morte torna-se uma violação e uma marca da nossa distância de
Deus. Parafraseando o graffito da minha amiga: "Se o seu corpo morre, você
deve ter feito alguma coisa errada." Mas uma vez que aceitemos a morte
como um aspecto genuíno do corpo sagrado, começamos a aceitar também a
nossa própria morte. A aceitação não vem automaticamente. Não podemos
banir o terror da morte simplesmente dizendo a nós mesmos que tudo morre
e retorna à natureza. Mas podemos nos mover nessa direção e afastar a
hipótese da culpa diante do fato da morte inevitável.
Estas não são apenas especulações modernas. Se compararmos as
miologias de Creta centralizadas na Deusa e a religião patriarcal posterior do
continente grego, obteremos uma sensação de que a idéia dos “Deuses
imortais", vivos para sempre, para sempre os mesmos, isolados da natureza
e do sofrimento humano, só se desenvolvia quando a sociedade se separava
da Deusa cíclica da morte e do renascimento. Zeus, o Pai Celeste do
Olimpo, realmente começou como um Deus da vegetação sazonal em
Creta. Segundo o folclore, Dikte, o monte cornudo cretense, é o "local do
sepultamento" de Zeus. Embora eu não tenha conseguido visitar a caverna
em minha visita a Creta, tenho esta descrição em uma carta do escritor
Samuel R. Delaney: "A boca da caverna, quando você se aproxima dela, é
48

uma grande vagina natural, inclinada para trás, com um imenso clitóris de
pedra pendente de seu centro, atrás dos lábios de pedra."

Morte
O visível e o invisível movem-se para dentro e para fora um do outro.
Encontramos este movimento no jogo entre o nascimento, a vida e a morte.
Entretanto, por mais que saibamos do esperma, do óvulo e do
desenvolvimento do feto, cada nascimento continua recriando o milagre de
algo visível — um ser humano individual — emergindo de um mistério
vasto e invisível. E com cada morte, a alma, a pessoa, retorna ao nada.
As plantas desaparecem em uma suposta morte no outono, sumindo
no mundo subterrâneo invisível, e só se tornam novamente visíveis na
primavera. Quando contemplamos a morte, temos a sensação de que o
corpo invisível da Deusa é mais vasto, e talvez mais verdadeiro, que o
visível. Mais de 90 por cento de todas as espécies que já viveram na Terra
estão extintas e, entre as espécies vivas, o número de indivíduos vivos em
cada momento é uma pequena fração daqueles que já viveram.
Isto é verdadeiro em relação a todas as espécies, exceto uma — os
seres humanos, de quem há mais vivos agora do que em toda a história.
Este simples fato provavelmente distorce — mais que qualquer outro
aspecto de nossas vidas — o nosso relacionamento com a natureza e com
a nossa própria existência. Não somente abarrota aquelas partes do
mundo propícias à vida humana, mas também nos permite negar o local
dominante da morte no mundo natural.
A distorção, no entanto, é um fenômeno moderno. Durante a maior
parte da história humana, os mortos sempre excederam em número os
vivos. E se hoje são mais numerosos, talvez possuam também mais poder
espiritual. Afinal, a vida é curta, mas a morte é eterna. E a vida é cheia de
limitações. Nós, os vivos, podemos controlar o tempo, ou desastres
naturais como os terremotos. Não podemos adivinhar o futuro. Mas é
possível — apenas possível — que os mortos possam. Muitas culturas têm
atribuído grande poder aos ancestrais ou a outras figuras mortas há muito
tempo. Nos mitos, o herói frequentemente vai visitar a Terra dos Mortos
em busca de conhecimento ou de ajuda. Os maiores mágicos são aqueles
que podem despertar espíritos mortos.
A primazia da morte emerge de uma maneira incomum na
cosmologia do povo de Bella Coola da Colúmbia Britânica, como conta
Joseph Campbell em The Way of the Animal Powers. Para o povo de Bella
49

Coola, o Sol, conhecido como "Nosso Pai", gerou a humanidade atuando


junto com uma Deusa chamada Alkuntam. Entretanto, apropria Alkuntam
era filha de uma Deusa mais primal, uma figura canibal que devora os
cérebros dos seres humanos. Os dois filhos de Alkuntam inspiram um
frenesi canibalístico nos seres humanos, e por isso a sociedade humana é
cercada pela destruição.
Através do canibalismo, o terror invisível da aniquilação emerge
no mundo visível. O ato de comer uma pessoa morta destrói a inte-
gridade dos corpos visíveis. Mas algo mais acontece além disso. Não
apenas a vida é destruída, mas também as estruturas e os costumes
sociais, o verdadeiro recipiente da civilização. Nossa civilização moderna
convenceu-se de que a moralidade e as convenções da civilização são de
alguma forma a realidade básica. A maior parte das pessoas (em
reconhecido que impomos a nós mesmos estruturas sociais que nos
possibilitam viver juntos. Através das ações dos prestidigitadores ou dos
palhaços sagrados — ou ainda do canibalismo —, as pessoas permitem
que a selvageria não reprimida da vida coexista com a civilização.
Campbell relata a descrição de Ruth Benedict de uma iniciação na
sociedade canibal dos kwakiutls (como os bella coolas, os kwakiutls origi-
nam-se do noroeste do Pacífico). O iniciado possuído morde os especta-
dores, e "antigamente", segundo Campbell, chegava até a consumir
partes dos escravos assassinados. Mas o próprio ato que o iniciava no
poder sagrado do mundo espiritual dos kwakiutls também o aviltava para
as relações humanas, de modo que ele tinha de ficar isolado, em um
quarto pequeno, durante até quatro meses, guardado por um Urso
Dançarino. Ao aparecer, fingia se esquecer como é ser humano, e
reaprendia a andar, a falar e a comer.
Vários tabus sociais podiam durar muitos anos, até um cerimonial
do inverno, em que um velho atuaria como "isca" para o canibal. Quando se
aproximava do velho, como que para mordê-lo, o canibal se via cercado,
sendo então atraído a uma casa onde uma mulher dançava nua com um
cadáver nos braços — oferecendo-lhe, em outras palavras, a dupla força
da vida, de comida e sexo. Dentro da casa, ocorria uma purificação, em
que se utilizava, entre outros agentes, "casca de cedro impregnada com o
sangue menstrual de quatro mulheres nobres".
50

Sexualidade
O corpo visível expressa-se mais ainda e vem à tona na sexualidade — a
procriação dos animais e das plantas, o sexo elétrico do céu e da terra no
trovão e no relâmpago, e a grande variedade de experiência sexual
humana. E aqui a religião da Deusa, tanto antiga quanto moderna,
difere muito da religião do Deus transcendente. Pois se Deus não tem
corpo, e existe separado do universo que criou, então os seres humanos
tornam-se almas que ou possuem corpos, como objetos ou roupas, ou
estão presas dentro de corpos, prisioneiras em uma cela de carne. A
religião torna-se um anseio de escapar do corpo, assim como um co-
mando para controlá-lo. Na religião de um Deus desprovido de corpo e de
sexo, a sexualidade humana torna-se um fracasso e uma traição, um
afastamento de Deus rumo a uma natureza menosprezada, um pecado.
Uma religião que adora o corpo da Deusa não precisa dessa separa-
ção entre a espiritualidade e a sexualidade. Como algo básico à vida, o
sexo assume o seu lugar como sagrado... "Todos os atos do amor e do
prazer são meus rituais", escreve a bruxa contemporânea Starhawk — um
manifesto de libertação em uma única frase.
Os cientistas e os filósofos frequentemente debatem sobre o que
torna os humanos únicos e os separa dos outros animais. Alguns dizem que
é a linguagem, outros o pensamento abstrato etc. De certa maneira, a
questão em si traduz uma necessidade ansiosa de nos isolarmos da
natureza. Entretanto, há uma característica humana que na verdade nos
torna únicos — o clitóris. As fêmeas humanas são os únicos mamíferos
para os quais o desejo sexual e o prazer não estão diretamente relacio-
nados com a reprodução.
Isto torna o sexo humano mais cultural do que simplesmente bio-
lógico. O sexo torna-se comunicação e uma expressão da nossa hu-
manidade. Quando os cristãos fundamentalistas e outros descrevem o
sexo como a nossa parte "animal", estão realmente distorcendo a realidade
em sua cabeça. A idéia de que só devemos fazer amor para produzir bebês
inverteria a evolução, pois é isso que os animais fazem. A sexualidade é
visível, envolvendo o toque e outras sensações, inclusive o orgasmo, que é
um evento físico no corpo. Além disso, o sexo nos abre para o corpo
invisível do desejo. Como um toque nos lábios, no seio ou no ombro
produz uma reação em uma parte do corpo não tocada, os genitais? E por
51

que isso acontece com algumas pessoas, mas não com outras? E qual a
resposta dos nossos corpos quando vemos, sem tocar, alguém bonito, ou
sexy — um amante, um total estranho ou simplesmente uma fotografia?
E que dizer das fantasias que não existem fisicamente no mundo, mas
apenas nas nossas mentes? Que linha Invisível as conecta com nossos
genitais? Dizer que a sexualidade existe no cérebro simplesmente
comprova a questão. Não conseguimos responder ao mistério do desejo
com descrições do funcionamento biológico.
Assim como a morte conduz ao corpo invisível, o mesmo acontece
com o nascimento. Quando uma criança pergunta "De onde vêm os
bebês?”, não está querendo conhecer a mecânica da relação sexual. Nosso
nervosismo sobre este tema leva-nos a falar sobre a reprodução biológica, e
"uma mamãe e um papai que se amam" — o que talvez satisfaça a
criança, que pelo menos recebeu uma resposta. A questão, no entanto,
toca um mistério básico da vida. De onde vêm os bebês? Nós sabemos
como os fetos crescem, mas o que torna um feto uma pessoa viva? Como
um indivíduo emerge do nada para se formar em torno de um corpo
físico?

As Aves, as Cobras e o Corpo Invisível


As aves e os objetos do céu formam um aspecto do corpo visível. O ar, no
entanto, conduz-nos ao reino do invisível. Podemos senti-lo quando ele
sopra sobre nós, e o conhecemos em nosso corpo quando respiramos. A
respiração transmite vida e espírito, uma palavra que deriva do latim
spiritus, que significa "respiração, sopro de vida". Mas na nossa extensão
normal dos sentidos, não conseguimos ver ou tocar o ar.
A idéia do corpo invisível da Deusa foi-me sugerida pela primeira
vez quando pensei no significado das aves nas religiões e nas mitologias do
mundo. Na arte neolítica, descobrimos uma grande série de esculturas,
cerâmicas e pinturas de Deusas aladas. Muitas Deusas, como Afrodite ou
Atena, têm aves como companheiras. Outras Deusas e Deuses trans-
formam-se em aves, ou recebem mensagens de aves, como o Deus
escandinavo Odin, cujos corvos gêmeos, Hugin e Munin — o Pensa-
mento e a Memória — trazem-lhe notícias do mundo todo. E os xamãs de
muitas terras vestem-se como aves para viajar pelas terras dos espíritos.
As aves representam a Deusa porque viajam no ar. Seu corpo invi-
sível, enquanto os humanos só podem viajar no corpo visível da Terra
52

(para viajar no mar, precisamos criar barcos, que com sua forma seme-
lhante a um útero adquirem o caráter de fêmeas). E como estas aves
"falam" sob a forma de canto, podem portar a sabedoria codificada da
Deusa, assim como a inspiração para a arte, outra maneira do Seu corpo
invisível movimentar-se rumo ao visível.
As aves nos ligam às cobras, mesmo que apenas através de sua
oposição simbólica. E se movem através do ar invisível. Já as cobras,
mais que qualquer outra criatura, deslizam através do corpo invisível da
imaginação. As mitologias de todo o mundo descrevem a conexão íntima
— frequentemente a antipatia — existente entre as aves e as cobras. Em
quase toda cultura, ambas aparecem como as criaturas primárias da Deusa.
E nem sempre são inimigas. Muitos mitos e histórias de fadas contam a
história de um herói que prova o sangue de uma cobra (ou dragão) e
aprende "a linguagem das aves", ou seja, todo o conhecimento. A ave
viaja para os mundos invisíveis do alto; e a cobra desliza pelos mistérios
que há embaixo da terra.
As aves e as cobras parecem representar a cisão (ou o jogo) entre o
consciente e o inconsciente, a racionalidade e o instinto. É fácil com-
preender o fascínio através das aves e de sua capacidade de voar com
graça rumo ao céu. Mas o que proporciona às cobras o seu mistério, a sua
acalentada resistência em quase toda mitologia?
Podemos considerar várias possibilidades. Para se desenvolver, as
cobras precisam trocar sua pele periodicamente. Isto lhes proporciona
uma aura de imortalidade. As cobras têm uma qualidade andrógina —
esticadas, parecem falos, enquanto enroladas assemelham-se às dobras da
vulva. Além disso, seu poder vai além do simbolismo intelectual. Marija
Gimbutas fala da cobra como a energia enrolada.
Embora pensemos nas cobras como venenosas, elas podem atuar
sobre o corpo de maneiras positivas. O veneno de muitas cobras, espe-
cialmente o das najas, atua como alucinógeno, produzindo visões
extáticas. Em 1989, na Califórnia, o Dr. Richard Kunin decidiu pesquisar o
óleo de cobra, frequentemente usado como símbolo de curas inúteis e
fraudulentas. Descobriu que o óleo das cobras d'água chinesas contém um
alto teor de importantes ácidos e outros nutrientes, incluindo a
concentração mais elevada de ômega-3derivado do ácido eicosa-
pentanóico (AEP). Em Fats That Heal, Fats That Kill, Udo Erasmus
afirma que o The New England Journal of Medicine recusou-se a publicar o
estudo do Dr. Kunin.
53

Uma das descrições mais notáveis da cobra está na meditação, na


extensão do livro, de Roberto Calasso sobre os mitos gregos, The Marriage
of Cadmus and Harmony: "Onde há cobra, há fluxo de água. Sob suas
espirais flui a água do mundo subterrâneo. Sempre. Suas escalas são
uniformes, sua boca ondulada e constantemente auto-renovada, como as
ondas." Quando olhamos para as cobras, parecemos estar olhando para
trás no tempo e profundamente na raiz dos nossos seres primais. As
cobras incorporam um estágio de evolução ainda incorporado na raiz do
nosso cérebro. Com sua mistura de imagens masculina e feminina, as
cobras são a sexualidade encarnada. E quando observamos as (obras
enroladas em volta dos braços da Deusa, ou se movendo através do seu
cabelo, vemos a força de nossos mais antigos primórdios unindo-se à
imagem do poder divino.

Aspectos do Céu
A luz em todas as suas frequências, incluindo as ondas de rádio, viaja
através do corpo invisível do espaço — e do tempo — e nos traz as
imagens e o conhecimento das estrelas, dos quasares e das galáxias há
muito desaparecidos. Quando olhamos para as estrelas, ou mesmo para o
Sol, cuja luz demora oito minutos para chegar até nós, o passado torna-
se visível. O tempo torna-se uma revelação da realidade divina. Quanto
mais profundamente olhamos para o espaço, mais para trás nos vemos no
tempo, até nos aproximarmos da própria origem da existência.
Nossos corpos surgem da realidade passada, pois tudo em nosso
sistema solar, incluindo nós mesmos e o Sol, formou-se da poeira das
estrelas explodidas. E não podemos viver sem o Sol, cuja luz viaja até nós
através do corpo invisível do espaço, do ar e do tempo.
Lembre-se dos mitos da nossa galáxia, da Via Láctea fluindo dos
seios da Deusa (frequentemente descrita como o corpo visível de uma vaca
ou de um búfalo), ou das estrelas como parte de Sua roupa, manto ou dança.
E pense como os círculos e morros de pedra marcam o nascente (ou o
poente) em determinados dias do ano. Eles servem ao propósito de tomar
conta do tempo, indicar quando plantar ou colher, mas também servem
claramente a um propósito ritual. Parte desse propósito pode ter sido trazer o
corpo invisível dos céus para o corpo mais visível de todos, a pedra e a lama.
Quando o feixe de luz do solstício do inverno penetra na caverna artificial de
Newgrange, na Irlanda, a luz toma forma na presença dos adoradores.
Durante alguns momentos, os túneis de pedra moldam a luz em uma espécie
de escultura, uma forma como um ser humano de pé.
54

Em uma maneira muito diferente de enraizar o Céu invisível na Terra


visível, os "Sonhadores" dos aborígines australianos são às vezes chamados
de Heróis do Céu, seres ancestrais que desceram do Céu, realizaram suas
façanhas na superfície da Terra e depois foram para o mundo subterrâneo,
aparecendo apenas como determinadas facetas da natureza: rochas, plantas,
animais, lagos etc. Aqui há uma interessante semelhança com uma
meditação atualmente popular no Ocidente. A pessoa começa imaginando-
se banhada de luz branca. Esta luz serve como um meio para proporcionar
determinadas qualidades de que a pessoa precisa ou que deseja —
qualidades abstratas como amor, cura ou força. Para tornar estas qualidades
reais, o pensador as exala diretamente dentro do corpo. Finalmente, "ancora"
estas qualidades enviando-as simbolicamente de volta à Terra.
Todos conhecem a imagem das bruxas viajando pelo céu monta
das em vassouras. Provavelmente a imagem remonta aos xamãs e aos
curandeiros vestidos como aves ou "voando" nos tambores — ou seja,
viajando para o mundo dos espíritos através de um transe induzido por
tambores. O elo entre os xamãs e as bruxas sobre as vassouras fica claro
quando pensamos que as "bruxas" européias eram em geral curandeiras
da aldeia ou mulheres sábias com conhecimentos especiais sobre ervas.
O manejo de uma vassoura sugere um falo, e por isso uma união com o
poder sexual masculino, quer através da verdadeira mágica sexual ou
do mesmo tipo de unidade dos sexos encontrado naquelas esculturas
pré-históricas de Deusas com pescoços fálicos. A vassoura também vincula o
trabalho diário doméstico realizado pelas mulheres comuns —
outra emergência física do corpo da Deusa — com o mistério e o êxtase
espiritual. Também devemos nos lembrar que a palha da vassoura,
quando emerge do meio das pernas, parece-se um pouco com a cauda
de uma ave.

A Natureza e a Arte
A realidade visível do mundo também nos conduz para o invisível. O poder
da terra repousa em parte no fato de dependermos dela para viver
e em parte na sensação de que algo maior que aquilo que conseguimos
ver vive dentro dela e dá significado ao mundo dos sentidos.
O ato de tornar a Deusa visível torna-se mais do que reconhecimento
passivo. Os esforços da imaginação tornam visível o corpo invisível. O
período neolítico (Idade da Pedra Polida) foi um tempo dedicado a grandes
55

monumentos. A Montanha Silbury, na Inglaterra, os gigantescos


passagemounds de Newgrange, Knowth, e Dowth na Irlanda, e a Planície de
Cahokia em Illinois (cujo "Morro do Monge" é a maior estrutura terrestre
pré-histórica do mundo, abrangendo 5,6 hectares) juntam-se todos para —
entre suas outras funções — tornar visível uma percepção humana do cosmos
como ordenado, significativo e vivo. Eles proporcionam forma física à idéia
de beleza, ritmo e propósito.
Os construtores das primeiras pirâmides e zigurates estavam pro-
vavelmente imitando as montanhas. Um monte de terra constitui uma
imitação ainda mais direta. A passagem interna em Newgrange ou
Knowth (ver Capítulo 4) ocupa uma parte pequena da imensa construção.
Essas passagens imitam os santuários das cavernas naquelas montanhas
em que as pessoas de locais como Creta iam adorar a Deusa. Os montes
gigantescos com suas passagens pequenas e estreitas imitam também a
forma humana, pois o útero e o canal do nascimento constituem apenas
uma pequena parte do corpo de uma mulher. Do mesmo modo que os
templos malteses podem ter apresentado o contorno da imagem de uma
mulher, um monte ou colina pode ter sugerido o corpo da Deusa,
especialmente seu ventre grávido.
Além de criar círculos e montes, as pessoas da Idade da Pedra, em
terras (e épocas) diferentes, criaram esculturas gigantescas. O trabalho na
terra realizado no Morro da Serpente, em Ohio, estende-se por 400
metros, da ponta do rabo até a boca da serpente (ver Foto 2).
Uma escultura semelhante próxima ao Lago Nell, na Escócia, mede
quase cem metros e atinge uma altura de seis metros. As duas serpentes
têm suas caudas apontando para oeste, e cada uma delas originalmente
defendia um altar voltado para leste, para o Sol nascente. Nos dois
casos, como em outras dessas obras, a forma da terra nesses lugares
sugeria a de uma serpente. Não obstante, esta forma só existia na união
invisível da natureza com a imaginação — algo que as pessoas podiam
"ver" apenas em suas mentes —, até que os construtores a trouxeram
para a permanente visibilidade.

As Criações Modernas que Imitam o Corpo da Deusa


Alguns artistas contemporâneos têm revivido a prática de criar obras
gigantescas formando o corpo literal da Deusa. Entre estes, a escultora
norte-americana Christina Biaggi criou um morro de concreto cujo interior
56

imita os contornos do interior de um corpo de mulher. Durante os últimos


anos, Biaggi e a arquiteta Mimi Lobell trabalharam na criação de uma
colina gigantesca, como a Montanha Silbury, que vai funcionar tanto
como um observatório astronômico quanto como um templo. Os
adoradores vão viajar através do interior do outeiro para vivenciar a
experiência de renascer do ventre da Deusa.
Outros artistas criaram imagens ainda mais literais, em uma imensa
escala. A artista franco-americana Niki de St. Phalle cria estátuas da
Deusa — "Nanas", como as chama — tão grandes, que elas funcionam
como prédios. Enquanto os construtores das primeiras culturas trans-
formavam suas estruturas em abstrações dos corpos, de St. Phalle usa a
tecnologia moderna para tornar suas imagens muito diretas. Para uma
leira na Suécia, ela criou uma Deusa deitada de costas, com 25 metros de
comprimento, um cinema (exibindo um filme de Greta Garbo) no braço
esquerdo, um cérebro de madeira na cabeça, um planetário no leio
esquerdo, uma lanchonete no seio direito etc. As pessoas entravam c saíam
através da vagina (ver Foto 3).
Mais recentemente, ela fez uma escultura gigantesca de um jardim
com cartas de Taro tridimensionais. Várias destas são ao mesmo tempo
Nanas e prédios. Tradicionalmente, a carta da Imperatriz do Taro significa
a Grande Mãe. Para esta "carta", de St. Phalle fez uma esfinge, que
também serviu como sua casa durante os vários anos de trabalho no
projeto.
Muitos artistas têm usado seus próprios corpos para expressar o
corpo da Deusa. Alguns têm feito peregrinações para reviver rituais
antigos em cavernas, outros têm se vestido com trajes e objetos que
evocam imagens tradicionais da Deusa. As pessoas em geral acham que
essa arte confere poder aos nossos corpos, comparando-os aos seres e
tradições sagrados. Também poderíamos dizer que quando usamos nossos
corpos na arte da Deusa, damos poder a Ela, ajudando-a a sair da história
e mais uma vez emergir na realidade física.
A união do visível com o invisível abre caminho para a arte. Quase
todo artista tem expressado a sensação de ser um agente para a obra criar
a si mesma. Falamos no "meio" de uma obra de arte referindo-nos l
substâncias usadas, como tinta, pedra, impressão ou som gravado. O
verdadeiro meio é o artista, que abre caminho para que quaisquer ne-
cessidades surjam do corpo invisível.
Os mitos e o folclore, assim como as profecias e os oráculos, são
também o corpo da Deusa, pois todas essas expressões orais dão forma e
57

substância intelectual a uma sensação intuitiva de realidade sagrada. Esta


realidade é informe até a incorporarmos em palavras, figuras ou pedras.
E assim como nossos corpos mudam e se desenvolvem, crescendo e
envelhecendo, trocando de pele, menstruando ou engravidando, se excitando
e morrendo com o desejo, também o corpo visível da Deusa, em todos os
seus aspectos, não é fixo nem eterno, mas muda, se desenvolve, dá à luz,
morre e renasce continuamente através do corpo invisível do tempo.

Participação Humana no Corpo da Deusa


Em todas essas coisas, nós conhecemos e reconhecemos o corpo da Deusa
através da realidade dos nossos próprios corpos. Ao relatar sua opinião
sobre o propósito de a Montanha Silbury e o Círculo de Avebury na
Inglaterra, Michael Dames escreveu que podemos considerar essas
construções antigas como um "código" baseado no corpo humano,
especialmente nas transformações provocadas pela gravidez e pelo
nascimento. A experiência humana torna-se o meio para compreender e
expressar nossa consciência do sagrado.
Na concepção patriarcal de Deus, os seres humanos são a criação e os
súditos de Deus, sem papel real a desempenhar no divino, exceto como
dominadores dos súditos menores de Deus, as plantas e os animais. Quando
enxergamos a própria existência como o corpo divino, criamos um
relacionamento mais recíproco. A plena realização desse corpo requer
consciência humana para perceber sua presença, e ação humana para traze-
la mais completamente à tona.
Na descrição de Vincent Scully dos palácios cretenses e dos templos
gregos, os prédios não somente tiram proveito das formações particulares da
natureza, mas completam as formas da paisagem natural através da sua posição
em um determinado ponto e dentro de uma perspectiva em que um
observador perceba todos os elementos da paisagem natural no
relacionamento exato que evoca aquela percepção de um corpo feminino.

Uma Montanha com Dois Picos e uma Colina


Arredondada
Como parte de suas idéias sobre a paisagem natural sagrada, Scully sugere
que uma colina entre dois picos incorpora a Mãe. Em Earth Wisdom,
58

Dolores La Chapelle amplia esta idéia, comentando que uma criança recém-
nascida emerge plenamente consciente (se não estiver dopada por drogas
administradas à mãe) e vê o corpo de sua mãe antes de tudo como os montes
veneris e o ventre, com os seios assomando acima deles. Quando ela é
erguida, vê então o rosto de sua mãe. Por isso, quando vemos a formação
tripla da paisagem natural, inconscientemente esperamos que a face da Deusa
Mãe esteja simplesmente fora da vista.
Na Grécia, a formação tripla das colinas suscita particularmente
Artemis — que cuidava das mulheres quando elas davam à luz. Ela
também pertencia às montanhas, onde vivia com Suas ninfas, que tanto
caçavam quanto protegiam os animais. As gravuras arcaicas de Artemis
às vezes mostram-na com Suas asas abertas. Esta imagem pode ter
derivado daquele mesmo pico tríplice, com a colina central como o Seu
corpo e as montanhas laterais como Suas asas.
Se aceitamos que essa imagem da paisagem natural incorpora a
Deusa, isso vai requerer antes de tudo um ser humano para percebê-la e
homenageá-la; depois que ele fique de pé e olhe para um ponto específico o.
Passei a compreender isso melhor em um local na Grécia onde não estava
particularmente procurando essa explicação. Próximo ao templo de Artemis
em Brauron (Vavrona, em grego moderno), há um exemplo da imagem da
Mãe de Scully e La Chapelle (ver Foto 4).
O relacionamento entre as três montanhas pode ser melhor visto
como um ponto ao longo da estrada, a cerca de dois quilômetros do templo.
Não sei se a estrada moderna está no mesmo lugar que a antiga, mas
certamente é possível que as jovens que vinham em procissão de Atenas
para servir Artemis passassem por este ponto. Muitas estradas atuais
realmente seguem os antigos caminhos.
Caminhando ao longo da estrada a partir do templo de Brauron,
você vai experimentar uma sensação do corpo da Deusa lentamente se
tornando realidade. Primeiro, você vê apenas a montanha mais próxima e
parte da seguinte. Depois, quando as duas montanhas laterais se separam,
percebe um vislumbre da montanha menor entre elas. Mas a visão dessa
montanha permanece justaposta por aquela próxima de você, de tal modo
que a forma essencial, um morro no centro ladeado por dois picos iguais,
só fica visível (e essa é a sensação, pelo menos para um observador
moderno) no ponto preciso da estrada em que você vê a montanha central
se erguer equidistante das duas maiores. Por isso, esta pequena visão da
paisagem natural da Deusa só vem à tona quando um observador humano
fica de pé e observa a partir de um determinado ponto.
59

Em todos os locais em que vemos o corpo da Deusa como uma


forma da paisagem natural, precisamos do ponto de visão adequado. Se
aceitamos as análises de Scully, os cretenses construíram seus palácios
para proporcionar aos celebrantes da Deusa um lugar permanente para ver
Seu corpo e assim permitir-lhe emergir na realidade física. Quando visitei
o palácio de Festos no sul de Creta, sabia que havia chegado antes de ver
o prédio na tabuleta da estrada, porque fiz uma curva e de repente vi uma
montanha em forma de cone, em um cenário de montanhas aladas,
assomando quase ao lado da estrada. Alguns momentos mais tarde, o
carro atingiu um ponto em que a formação da paisagem natural ficou
livre de montanhas baixas — e ali estava a entrada para os jardins do
palácio.
O Deus transcendente, separado do universo físico, não requer que
os observadores humanos tragam-no à vida. Não possuindo um corpo, Ele
não precisa de participação para torná-lo real. Dado o nosso desen-
volvimento em uma cultura baseada em um Deus desse tipo, pode-nos
parecer estranho adorar uma Deusa capaz de aparecer fisicamente para
nós, mas somente quando estamos de pé em um determinado lugar.
Apesar disso, essa participação proporciona uma beleza e um poder. Não
estou sugerindo que a Deusa não exista no momento anterior àquele em que
atingimos o ponto correto na estrada de Brauron, perdendo
imediatamente sua existência no momento em que nos afastamos. En-
tretanto, há uma certa realidade que requer um observador, um obser-
vador que aprendeu para onde olhar, e especialmente como olhar — com
respeito, humildade e aceitação da beleza e do poder da Deusa de dar a
vida.
De uma maneira curiosa, a física quântica, a mais intelectual de
todas as ciências, tem revivido o jogo antigo do observador criando a
realidade. Segundo a teoria quântica, as partículas elementares não existem
até um observador inteligente medi-las. Antes desse momento, elas
habitam os vários níveis de probabilidade, como descrito em uma onda.
Só quando alguém realmente olha, a onda "cai" em uma realidade fixa.
Alguns físicos argumentam que a necessidade de um observador
comprova até mesmo objetos maciços como a Lua. Essa visão desaparece
diante do que chamamos de senso comum. Parece absurdo dizer que um
elétron — quanto mais a Lua — realmente não existe até que um humano
olhe para ele. No entanto, as experiências mais sofisticadas têm provado
repetidamente que a teoria quântica está correta. Talvez devamos
reconhecer que a física das partículas, como as formações da paisagem
60

natural da Deusa, restaura o observador humano para um papel vital na


própria realidade da existência. Talvez a "existência" em si, como uma
realidade fixada, seja realmente uma função da mente humana.
Os templos de Malta, os passage mounds, a Montanha Silbury, o
gigantesco Monte da Serpente onde atualmente é o Estado de Ohio, estes
também manifestam o corpo da Deusa. E também só poderiam existir
através da consciência humana, do esforço humano e de uma contínua
ação humana. Somente a forma não constitui o corpo da Deusa. Ela deve
ser observada, compreendida e associada em um ato de reverência e ado-
ração. Quando Gertrude Rachel Levy e, mais tarde, Mimi Lobell sugeriram
que os templos de Malta formavam esculturas gigantescas de uma mulher
sentada ou deitada, deram o primeiro passo para trazer esse aspecto do Seu
corpo à realidade contemporânea. Quando outros, inspirados por esta idéia,
viajaram até esses templos e buscaram Sua presença nas paredes, na lama e
na pedra, quando lá realizaram rituais ou simplesmente se sentaram e
contemplaram o poder da Mãe, deram o passo seguinte para completar o Seu
corpo naquele lugar especial.
Na idéia que Michael Dames faz do corpo como um código, o poder
sagrado do Círculo de Avebury e da Montanha Silbury deriva em parte das
fontes naturais, em parte das formas esculpidas das pedras e da montanha
tornada humana, e em parte das procissões de mulheres e homens jovens
que Dames imaginava percorrerem os caminhos megalíticos. A
"escultura" assumiu sua forma a partir da terra, das estruturas e do preciso
movimento ritual dos seres humanos. Sem esse elemento final, a união
sexual e o nascimento divinos não podiam ocorrer. Como os elétrons, a
Deusa requer participação.

Vendo com os Próprios Olhos


A palavra autópsia, derivada do grego, significa literalmente "ver com os
próprios olhos". Em uma autópsia médica, os médicos desmembram um
corpo morto para investigar suas partes. A Deusa está viva, mas pareceu
morta durante muitos séculos. Esse foi o período do patriarcado, em que nos
foi dito que o Deus Pai criou o mundo, e que a civilização, se não a própria
existência, começou cerca de 5.000 anos atrás, com as primeiras sociedades
patriarcais do Oriente Médio, centralizadas no rei. (No século XIX, um
certo bispo Ussher dizia ter calculado não somente o ano da criação —
4004 a.C. —, mas também o dia, 23 de outubro, e até a hora, nove da
manhã.)
61

Atualmente, através do trabalho de arqueólogos, mitólogos, artistas e


historiadores da arte, sacerdotisas, cientistas, classicistas, historiadores,
antropólogos, filósofos e psicólogos, a evidência fragmentada da religião da
Deusa está tomando forma. Templos têm sido escavados, textos traduzidos,
esculturas, pinturas e mitos catalogados, analisados e explorados. Mas todas
essas peças permanecem separadas, isoladas uma da outra e do significado,
até serem "vistas", observadas com reverência e respeito pelas pessoas que
buscam esse "relacionamento permanente" com a Deusa viva.
Ao contrário do corpo morto, que uma autópsia desmembra, a
Deusa é um corpo vivo em fragmentos, e quando a vemos com nossos
próprios olhos, quando vamos a Seus templos ou a encontramos nas
montanhas ou nos rituais criados em nossas próprias casas, nós a
remembramos, a reintegramos ao todo. E este ato de ver nos reintegra
também ao todo, pois curamos os pedaços de nossas vidas fragmentadas
encontrando os elos entre nossos corpos e o corpo da Deusa.
Há outro sentido em que a Deusa é fragmentada. Já mencionei
anteriormente os muitos mitos do universo criados a partir de um corpo
desmembrado. Eles nos ensinam que a Deusa está sempre à nossa volta,
viva em todas as coisas, mas em tantos pedaços que não percebemos que
estamos caminhando e vivendo em meio a Ela a todo momento. Quando
vamos aos locais da Deusa ou realizamos rituais, quando vemos com nossos
próprios olhos, reunimos os aspectos isolados da Sua realidade.

Juntando a História e a Vida


Comemorar nossas próprias experiências em lugares sagrados permite-nos
(incluindo aqueles com quem compartilhamos nossas histórias) superar a
divisão entre a história e a vida. Muito frequentemente pensamos na Deusa
como um aspecto da arqueologia, como uma mostra em um museu. Se
conseguimos provar alguma coisa historicamente, pensamos nela como real
ou autêntica. Tendemos a considerar frívola ou sentimental qualquer coisa
que nós próprios experimentamos. E verdade que não vivemos mais nas
culturas que produziam os grandes templos ou círculos de pedra ou aterros
de terra. E em muitos casos não sabemos praticamente nada sobre suas
verdadeiras crenças e práticas. Mas apesar disso podemos dar significado a
esses lugares através de nossas próprias experiências.
Em The Laughter of Aphrodite, Carol E Christ defende o que ela
chama de "tealogia da história" ("tealogia" é a forma feminina de "teologia",
62

o estudo de thea, ou Deusa, em vez de theos, Deus). "Posso ouvir coros de


crítica", escreve ela, "chamando-me de 'reducionista', 'auto-indulgente',
'narcisista'." E acrescenta: "Não proponho 'reduzir' a tealogia à
autobiografia." Ao mesmo tempo, no entanto, insiste que o conhecimento e
as visões das mulheres originavam-se de um campo da experiência pessoal.
Segundo Carol Christ, a teologia acadêmica tradicional segue um
"mito de objetividade", como se, pelo fato de não escreverem sobre suas
próprias experiências, os teólogos, historiadores e até mesmo os
arqueólogos, de alguma forma, produzissem obras de verdade absoluta. Este
mito origina-se do contexto mais amplo daquele Deus sem corpo, todo
mente, desligado do envolvimento com o mundo físico. A academia tenta
"transcender" a pessoa para imitar seu suposto estado puro.
Na ciência, esta pureza mítica fracassou. Os pesquisadores de campo
que estudam os animais reconhecem atualmente sua própria influência sobre
o comportamento de seus objetos de estudo, além da necessidade de
minimizar esta influência permanecendo durante longos períodos de tempo
nos seus habitats naturais. Na física, o famoso "princípio da incerteza" de
Werner Heisenberg demonstrou que não podemos estudar o universo como
se não fizéssemos parte dele. Quando "olhamos" para partículas
subatômicas, o ato físico de observá-las modifica seu estado. Em outras
palavras, Heisenberg declarou que são os corpos, não as mentes desligadas,
que realizam as experiências. E temos observado mais uma extensão do
princípio da incerteza: a idéia de que as partículas nem sequer existem até
que as observemos.

O Pessoal E o Espiritual
Nos estágios iniciais do movimento das mulheres modernas, uma expressão
tornou-se a pedra fundamental do pensamento feminista. "O pessoal é o
político" tem obtido várias interpretações, mas talvez dois dos principais
significados possam ser descritos: primeiro, as mulheres individualmente
desenvolvem conhecimento e entendimento político através da observação
de suas próprias experiências; segundo, isto acontece porque o que
experimentamos nos relacionamentos, no trabalho ou em nossas famílias
ocorre em um contexto político. Colocado de outra maneira, uma estrutura
social inteira existe quando um homem e uma mulher discutem sobre o
trabalho doméstico, o fato de a mulher querer fazer um aborto ou a luta por
remuneração igual. Quando as mulheres começam a examinar e
compartilhar suas experiências, passam a conhecer a política. A ação na
63

comunidade e a mudança em nossas vidas começam com este


conhecimento.
Também podemos dizer que o pessoal é o espiritual. A espiritualidade
não é exclusividade dos tempos antigos ou dos livros. Ela existe — emerge
para a existência — através dos nossos próprios encontros com o sagrado.
Alguns desses encontros vão ocorrer em locais sagrados conhecidos, outros
através de nossas tentativas para reconhecer a Deusa com nossas vidas
cotidianas. Quando celebramos nossa sexualidade como parte da natureza,
quando vinculamos os ritmos de nossas vidas à Lua e ao Sol, quando
encontramos nossas próprias maneiras de comemorar os, meigos festivais,
quando exploramos nossas emoções em locais sagrados, quando vemos com
nossos próprios olhos, transformamos o pessoal em espiritual.
A idéia de que o pessoal é político permitiu às mulheres reconhecer
sua própria realidade como válida, escapar da crença de que apenas os
especialistas poderiam nos dizer como olhar para nossas vidas. Dizer que o
pessoal é espiritual valida as experiências sagradas das mulheres e dos
homens, individualmente. Informa-nos que tanto o que fazemos quanto
a maneira como compreendemos o mundo são importantes. Para aqueles
que buscam (re)criar a religião da Deusa, esta validação é vital. As religiões
estabelecidas apóiam sua autoridade com textos antigos e rituais realizados
pelos padres oficiais, e com frequência grande riqueza e organizações políticas.
Na religião da Deusa, recuperamos muitos mitos e imagens,
mas perdemos muitos mais. Precisamos respeitar as orações e os rituais
que criamos juntos, as danças que realizamos sob a Lua, as verdades que
contamos em nossos círculos e os pequenos milagres que encontramos
em nossas peregrinações e em nossas ações diárias.

O Espiritual É o Político
Assim como seus outros significados, a expressão "o pessoal é político"
significa que qualquer coisa que façamos tem um valor e um impacto políticos.
A política não ocorre apenas nas cabines de votação ou nas passeatas. A
maneira como vivemos nossas vidas carrega significado político tanto para a
sociedade como para as pessoas que nos cercam. O mesmo acontece com a
expressão "o pessoal é espiritual". Não experimentamos a Deusa apenas
quando vamos aos templos ou realizamos rituais. Ao contrário, fazemos essas
coisas para nos tornarmos mais conscientes do sagrado dentro e à volta de
nós o tempo todo, para reconhecermos o sagrado em nossos relacionamentos,
em nossas famílias, nos alimentos que comemos, na maneira como
64

caminhamos sobre a Terra. A Deusa não criou os seres humanos como um


evento único milhares de anos atrás. Ela cria cada um de nós, todos os dias.
Assim como nós a criamos.
Se o pessoal é o espiritual, o espiritual é também o político. As
religiões patriarcais estabelecidas freqüentemente descrevem suas revelações
e ensinos como política transcendente (outra vez essa palavra). Mas não há
religião desprovida de efeitos políticos. Adorar um Deus-cabeça (uma
cabeça sem corpo) masculino, desprovido de corpo, implica uma sociedade
que trate as mulheres como inferiores, ou como propriedade dos homens.
Adorar um Deus guerreiro zangado, um monarca, pode conduzir a uma
sociedade baseada na escravidão (como na Grécia de Homero). Adorar um
Deus "ciumento" e monoteísta encoraja uma visão monolítica da
personalidade, em que as pessoas jamais podem mudar uma suposta
personalidade básica, e cada pessoa é considerada tendo como base o
gênero, a raça ou a classe.
Como diz Carol Christ: "Os símbolos têm efeitos tanto psicológicos
quanto políticos." E quando comparamos as diferentes sociedades baseadas
em diferentes estruturas religiosas, descobrimos diferenças políticas básicas.
Nas culturas que adoram a Grande Deusa, com freqüência encontramos
evidência de comunidades extremamente desenvolvidas existindo há
centenas de anos sem fortificações, sem guerras ou armas, sem virtualmente
qualquer sinal de morte violenta.

"The Teaching Rock"


Quando viajamos para um lugar sagrado, descobrimos seu poder espiritual
dentro do seu ambiente real. Uma das primeiras viagens que realizei neste
trabalho foi até uma grande pedra localizada nos bosques próximos à cidade
de Peterborough, no Canadá. Descoberta em 1956 (um ano depois que o
governo canadense revogou uma lei proibindo os nativos canadenses de
praticar suas próprias tradições), a pedra contém cerca de 900 entalhes (300
dos quais são claramente distinguíveis), que podem ser vistos removendo-se
a camada exterior de calcário branco cristalino para que a pedra mais escura
possa aparecer. O Serviço Provincial de Parques refere-se ao achado como
os Petróglifos de Peterborough, mas os índios chamam-no de "The Teaching
Rock", acreditando que ela existe para transmitir urna mensagem de paz para o
mundo.
65

As imagens que aparecem na pedra incluem símbolos abstratos,


como uma grande flecha em V, figuras compostas de traços em forma de
varas que podem ser xamãs em transe, imagens solares, aves, tartarugas,
cobras e um navio fantasma aparentemente com mastros, que indica a
possível influência de encontros com navios vikings chegando da Europa.
As figuras maiores incluem o entalhe de uma mulher, seus seios
vistos de perfil, o abdômen de frente (ver Capítulo 3 para a "perspectiva
dupla" dos touros da caverna de Lascaux). Segundo os arqueólogos Joan e
Roman Vastokas, há quatro figuras femininas, todas enfatizando os
genitais, mas sete sinais de vulva, isolados. O que é notável com relação à
grande figura é que ela foi entalhada em volta de dois grandes buracos na
pedra, um na altura do coração e o outro na altura do útero. Um sulco
mineral vermelho corre ao longo da imagem, de forma que sentimos uma
poderosa sensação do sangue vital da Mulher, bombeado pelo coração e
fluindo pela vagina com a menstruação e o nascimento.
A grande imagem da Deusa proporciona à rocha toda uma qualidade
feminina, de doação de vida. Visitei a rocha com Tana Dineen, que
mencionou a seu guarda/zelador, Lorenzo, que eu estava escrevendo um livro
sobre a Deusa. Lorenzo contou-nos que muitas pessoas acreditavam que os
entalhes foram feitos por mulheres, pois nenhuma das centenas de imagens
mostra qualquer sinal de violência nem de guerra nem de caça. (A mesma
observação foi feita sobre a caverna pré-histórica francesa de Pêch-Mèrle.)
Os Vastokas também descreveram todo o local como possivelmente um
útero simbólico, o centro do mundo (como o omphalos, ou umbigo grego,
em Delfos), e uma entrada para o Mundo subterrâneo.
Há uma sensação, uma sensação corporal, algo que conhecemos pro-
fundamente em nossos corpos, de que o Mundo subterrâneo, a Terra dos
Mortos, é também a fonte da vida, do nascimento e do renascimento.
Embora tentemos nos esquecer disso, com nosso enfoque no mundo
exterior da luz, sabemos, tanto racionalmente quanto em um nível bem
mais profundo, que viemos da escuridão e do sangue do útero. Os Vastokas
comentam que os pesanas amazônicos consideram as fendas das montanhas
"o útero onde ocorre a gestação da fauna".
No sítio arqueológico de Peterborough, um cartaz diz: "A própria
rocha, penetrada e perfurada, pode ter sido considerada um símbolo
feminino idealizado e um meio de acesso do xamã aos poderes ocultos ou à
energia sexual da natureza."
66

Entalhes e Fissuras Naturais


O que levou os algoriquinos, mil anos atrás (ancestrais dos algonquinos
modernos que moram na mesma área), escolherem esta rocha particular para
seus entalhes? Além da adequação da pedra calcária e da grande superfície
plana, precisamos observar os arredores. A própria "Teaching Rock" e todas
as pedras menores em torno dela são cortadas com profundas fissuras
naturais. Quando as examinei, realizei também leituras sobre o assunto e
descobri que quase todas as fissuras percorrem o eixo norte-sul ou noroeste
rumo ao sudeste. Além disso, um riacho subterrâneo corre sob a pedra.
Como na Montanha Silbury, a corrente invisível proporciona uma sensação
da força vital da Deusa. Os rios subterrâneos evocam o sangue fluindo sob a
superfície de nossos próprios corpos. Na "Teaching Rock", as fissuras
permitem-nos ouvir o riacho correndo na escuridão, sob nossos pés.
Mas há algo mais sobre essas fissuras, algo que precisa ser visto, até
mesmo sentido. As fendas formam imagens naturais de grande beleza,
vulvas, figuras humanas claras, um xamã rezando e uma forma parecida com
a Deusa, com samambaias crescendo no coração e flores multicoloridas nos
genitais — uma combinação perfeita para o entalhe n.i grande pedra (ver
Foto 5).
Processos naturais "entalharam" todas as imagens dessas pedras
menores. Será que elas inspiraram os algonqueiros que foram até lá ira criar
suas próprias figuras na grande pedra que mais tarde receberia o nome de
"The Teaching Rock"? Assim como os dois buracos com o sulco vermelho
correndo entre eles, "The Teaching Rock" contém várias fissuras naturais
próprias, incluindo uma fenda na forma de um pássaro, que segue toda a
extensão da base da pedra.

Transportando Significados Sagrados para Novos


Locais
Quando saímos do nosso país natal para visitar os lugares sagrados de outras
terras, agimos como abelhas transportando pólen de uma planta para outra,
para que as diversas espécies possam continuar a viver. Levamos o nosso
conhecimento de uma cultura para outra e carregamos conosco experiências
que podemos depois aplicar em nossas próprias vidas e sociedade.
67

Originalmente, a religião constituía um relacionamento contínuo, não


somente com a divindade, mas até mais com o lugar. As pessoas encaravam
o sagrado como inseparável da terra. Dolores La Chapelle relata que os
primeiros exploradores europeus freqüentemente achavam que os povos
indígenas não tinham nenhuma religião, porque não conseguiam dar um
nome específico para Deus; mas para as pessoas daqueles lugares, Deus
vivia em volta delas, na natureza e em seus próprios rituais.
Com a ascensão dos impérios, como a Grécia helênica e Roma, a
religião tornou-se algo a ser exportado. As religiões evangélicas do cris-
tianismo e do islamismo transformaram a religião em uma questão de
doutrinas e leis, uma religião mais de livros que da natureza. Pode ser
quase desconcertante para um judeu ou para um cristão visitar Israel e
descobrir que os locais descritos na Bíblia são lugares de verdade. Por
exemplo, a idéia cristã do inferno deriva originalmente de um mito
hebreu de "Geena". Geena, no entanto, é um atual vale deserto localizado
a sudoeste de Jerusalém.
Aqueles que buscam Artemis ou Inana ou Oya, ou vão da América
ou da Inglaterra para os templos de Malta, correm o risco de importar
espiritualidades estranhas para nossas terras nativas. Este problema é
grave para os euro-americanos. Nossa espiritualidade ancestral deriva de
lugares que jamais habitamos, que muitas vezes nunca vimos. O que
estamos criando quando celebramos o festival celta de Beltane na América
do Norte? Se não temos herança grega, mas sentimos uma familiaridade
com as Deusas gregas ou romanas, como Artemis/Diana ou
Afrodite/Vênus, então estamos pegando Deusas de um lugar estranho
para nós e trazendo-as para um lugar estranho a elas. Por outro lado, se
buscarmos as tradições indígenas das Américas, e tentarmos seguir esses
caminhos, com suas realidades difíceis e indagações fantasiosas, podemos
estar nos vinculando a uma espiritualidade estranha à nossa educação
cultural. E os próprios nativos americanos podem achar uma exploração
de nossa parte estarmos usando suas tradições. Isto é particularmente
verdade quando as pessoas brancas cobram um alto preço para realizar
cerimônias no estilo nativo.
Talvez uma resposta para este dilema esteja em se aproximar com
humildade das várias culturas e tradições nativas, embora ainda con-
fiando na verdade da nossa própria experiência — o que vemos com
nossos próprios olhos.
Assim como as abelhas transportam o pólen de planta para planta,
também os humanos migradores transportam as idéias e as experiências
68

espirituais de uma terra para outra. Espero que possamos aprender a fazê-
lo sem o imperialismo dos cristãos ou dos maometanos, que tentaram
obrigar os povos indígenas de todo o mundo a abandonar seus próprios
Deuses e Deusas. O valor da polinização cruzada é ver as coisas de uma
maneira nova.

A Sobrevivência da Deusa na Vida Cotidiana dos


Malteses
Quando vamos aos locais sagrados, às vezes podemos encontrar algo que
não esteja descrito nos textos porque não pertence à evidência ar-
queológica. Em alguns casos, trata-se de uma justaposição cultural. No
oeste da Irlanda, um pequeno santuário de beira de estrada em honra à
Virgem Maria está situado quase ao lado de um igualmente modesto
círculo de pedra. Esses dois lugares sagrados estão situados nos pastos
silenciosos de uma fazenda moderna, onde as vacas — uma forma da
Deusa reconhecida em todo o mundo — pastam na grama.
A Ilha de Malta contém muito poucos dolmens entre seus muitos
templos. Em um deles, no entanto, podemos nos ajoelhar e ver uma
igreja moderna através da estrutura do arco pré-histórico. Na ilha vizinha
de Gozo, há uma justaposição ainda mais fascinante. Gozo é o local de
"Ggantija" (o nome significa "mulher gigante"), o mais antigo dos
templos malteses e um daqueles cuja forma mais se assemelha a um
corpo de mulher (ver esboço de sua estrutura na p. 31). Ggantija tem
6.000 anos de idade, o que lhe proporciona uma reivindicação da mais
meiga construção do mundo de pé sobre suas próprias fundações. Como
acontece em tantas tradições pré-históricas e indígenas, os templos e as
estátuas freqüentemente eram pintados de ocre vermelho, uma sugestão
do sangue vital da Deusa. As cercas de pedra construídas pelos
fazendeiros nos campos às vezes contêm pedras com vestígios do ocre
vermelho de milhares de anos atrás.
Um vermelho similar domina a arquitetura contemporânea de
Gozo. As igrejas são pintadas de um vermelho-terra, com domos e
cúpulas vermelhas, e grossas cortinas de veludo vermelho decoram os
inferiores. Mesmo as decorações internas das casas parecem apresentar o
mesmo vermelho profundo. E as formas das igrejas, com uma ênfase nos
domos e nas paredes redondas, evocam o corpo feminino de uma histórica
da Deusa aparentemente morreu com as pessoas que deslocaram aquelas
enormes pedras, para compor a forma de um corpo de mulher. Mas a
69

descoberta desses templos e a maravilha de sua forma têm inspirado pessoas


como Mimi Lobell, ou Eva e eu, ou aquela mulher silenciosa, ou muitas
outras que vêm em grupos ou sozinhas, a despertar nosso próprio
conhecimento da Deusa, em nossas vidas, em nossos corpos, no mundo que
nos cerca. O corpo invisível da história transforma-se no corpo visível da
celebração, do ritual, e muda as vidas das pessoas. Em vez de casas de
caracol, os templos, as cavernas, os círculos de pedra e todos os outros
locais tornaram-se crisálidas, e a religião da Deusa é uma borboleta que
emerge mais uma vez à luz brilhante do mundo vivo.
70

3 - O Corpo de Pedra Pintado

As vezes eu durmo, volto ao início, recuando de um ponto culminante no


céu, levado pelo meu estado natural como o dorminhoco da natureza, e nos
sonhos eu flutuo, acordando aos pés de pedras gigantescas.
Pablo Neruda

As maneiras de fazer as coisas podem ser novas, as coisas a serem feitas


em geral não são.
Judith Guest, Miss Manners

Eles viviam sob as sombras das geleiras que tinham até um quilômetro e
meio de espessura, compartilhando seu mundo com rebanhos de renas e
vacas e touros selvagens, chamados bisões. Nós separamos luas fogueiras,
catalogamos seus instrumentos e escavamos seus restos mortais para examinar
seus ossos sob microscópios. Criamos fantasias de suas vidas, retratando
homens selvagens golpeando as mulheres na cabeça para arrastá-las de volta
às cavernas. Entretanto, um aspecto das vidas de nossos ancestrais mais
remotos ainda nos impressiona. Contra tudo que poderíamos esperar, essas
tribos da Idade da Pedra, dezenas de milhares de anos atrás, criaram uma
arte magnífica, desde imensos desenhos de touros e cavalos até estatuetas
delicadamente entalhadas do corpo feminino, muitas delas extremamente
estilizadas e abstratas. De que maneira essas imagens se comunicam
conosco? Que histórias podemos descobrir (e criar) sobre elas? Quando
pensamos no corpo da Deusa, pensamos mais frequentemente na Mãe Terra,
de forma que as cavernas pintadas se traduzem por um retorno ao Seu útero.
Será que os próprios pintores as consideraram dessa maneira? Os sinais da
vulva escavados nas paredes sugerem isso. Assim como as esculturas, pois
ainda que seus criadores as tenham feito pequenas o bastante para caberem
em uma só mão, também as escavaram em um estilo maciço, reminiscente
71

das próprias montanhas. Na caverna, a imagem da fêmea humana, o poder


selvagem dos animais e a presença eterna da montanha se fundem.
72

Primitivismo
Observar o mistério da arte das cavernas significa antes de tudo observar
nossos próprios preconceitos. Quando os etnógrafos europeus começaram a
investigar as crenças e o comportamento dos nômades e de outros povos
tradicionais, criaram o termo "primitivo", ou seja, pessoas que não foram
além dos estágios iniciais do desenvolvimento humano. Ao examinar os
africanos do deserto de Kalahari ou os aborígines australianos, os europeus
supostamente podiam olhar para trás no tempo, para seus próprios
primórdios. Alguns textos comparavam a visão de mundo das "tribos
primitivas" com aquela das crianças ocidentais.
Não foi por acaso que essa abordagem da antropologia desenvolveu-
se no período após a publicação da Origem das Espécies, de Charles Darwin.
O conceito de evolução mudou a maneira dos europeus considerarem as
outras culturas. Anteriormente, até europeus que rejeitavam a doutrina
cristã, segundo a qual Deus criou o mundo 5.000 anos atrás, ainda tendiam a
considerar as culturas não-européias como ignorantes e desprezíveis. Depois
de Darwin, os europeus começaram a descrever a humanidade como
evoluindo de um estágio para outro.
A própria cultura européia certamente parece ter feito isso. A Idade da
Pedra Lascada evoluiu para a Idade da Pedra Polida com o desenvolvimento
da agricultura e das construções monumentais. Os metais produziram
primeiro a Idade do Bronze, depois a Idade do Ferro. O
patriarcado e os governos centralizados parecem ter substituído as
comunidades tribais, e assim por diante.
Por isso, para os europeus torna-se natural encarar cada mudança
como um avanço para uma cultura "mais elevada". De fato, isto é
literalmente verdadeiro na arqueologia, pois se encontra evidência de culturas
mais antigas escavando mais fundo na Terra. É possível, contudo, que este
seja o único ponto verdadeiro. Pois à medida que exploramos o
conhecimento, a sofisticação e as vidas cotidianas dos povos da Idade
da Pedra, tanto da Pedra Lascada quanto da Pedra Polida, começamos a
questionar se as mudanças necessariamente desenvolveram a sociedade
humana ou o conhecimento humano. Somente com os computadores e
os microscópios começamos a recuperar parte do conhecimento perdi
do com a Idade da Pedra. E ainda temos um longo caminho a percorrer
antes de recuperarmos a sabedoria.
73

Como a cultura européia parecia ter se "desenvolvido" a partir de


raízes primitivas, os europeus consideravam as sociedades tribais — e
especialmente as sociedades não-agrícolas — como subdesenvolvidas,
Ignorantes. Pessoas como os aborígines australianos pareciam ter ficado
paralisadas na Idade da Pedra Lascada. Os europeus usaram (e ainda usam)
esta atitude para justificar a conquista de territórios tribais e a destruição
dos povos indígenas.
Hoje em dia, podemos achar natural fazer comparações culturais
cruzadas entre culturas tribais diferentes ou observar as culturas
contemporâneas de caçadores e coletores para compreender a Idade da Pedra
Lascada européia. Precisamos reconhecer as limitações de uma abordagem
desse tipo, porque cada cultura é singular. Podemos encontrar inspiração e
possibilidades nos aborígines australianos, por exemplo, mais explicações
para o nosso próprio passado. Os aborígines têm toda uma civilização
extremamente complexa, uma civilização que existiu 60.000 anos atrás. Ela
também está viva e dinâmica.
Durante muitas décadas, as pessoas consideraram a arte existente nas
cavernas pré-históricas da França e da Espanha uma mistura de coisas, sem
nenhum sentido de composição. Supunha-se que os pintores pintavam
qualquer coisa que quisessem em qualquer lugar que parecesse um espaço
disponível. Os especialistas também supunham que povos isolados tivessem
realizado as pinturas no decorrer de longos períodos de tempo, com pouca
consideração pelo que havia ocorrido antes. Afinal, esses foram os povos
mais primitivos de todos, nossos mais antigos ancestrais.
A partir da década de 1950, estudiosos da pré-história como André
Leroi-Gourhan e Annette Laming estudaram o esquema das pinturas,
usando tanto análise estatística quanto um sentido de estética para
demonstrar a possibilidade da caverna de Lascaux e outras terem sido
criadas como um todo, uma composição gigantesca, por uma mesma equipe
de artistas dedicados. Animais de um tipo podem ter complementado outro
— Leroi-Gourhan cita particularmente o equilíbrio entre os equinos e os
bovinos. Grupos de animais criam efeitos especiais. Uma série de cinco
cabeças de veados desenhadas em alturas variadas e em ângulos variados
sugere o ritmo de uma onda, como se os animais estivessem atravessando
um rio.
74

Poder de Lascaux
Uma vantagem de ver com nossos próprios olhos é que isso pode nos ajudar
a tirar da mente a ideologia do primitivismo. Ironicamente, quando
observamos os monumentos da pré-história européia — os círculos como
Stonehenge, ou as cavernas muito mais antigas, como Lascaux ou Pêch-
Mèrle —, podemos emergir desprovidos da idéia de que sempre houve isso
que chamamos de ser humano primitivo.
Ver Lascaux é ver, de uma maneira esmagadora, o brilhantismo e a
complexidade dos humanos Cro-Magnon de 17.000 anos atrás. Em 1963, o
governo francês fechou Lascaux devido à contaminação bacteriana dos
muitos visitantes. (Foi feita uma cópia, a mais exata possível em termos de
pigmentação e dos contornos das paredes, explodindo uma segunda caverna
no mesmo declive da montanha, algumas centenas de metros de distância
dali. Imagina-se como os arqueólogos do futuro, incapazes de decifrar
nossas línguas, considerariam essa duplicação, com um intervalo de quase
20.000 anos separando as duas cavernas)
Ainda é possível ver a original, solicitando permissão com bastante
antecedência. Como ela só recebe quatro ou cinco pessoas de cada vez, os
guias desenvolveram uma maneira dramática para mostrar a caverna em sua
glória. Primeiro, conduzem o visitante até uma antecâmara cortada na
encosta da montanha. Depois, apagam todas as luzes antes de abrir a porta
para a caverna em si. Se, como alguns suspeitam, a caverna foi usada para
iniciações, esta pode ter sido a maneira como os membros das tribos originais
penetravam no segredo — isto é, na escuridão total, até seus líderes
acenderem suas tochas ou lamparinas.
Os guias conduzem você até a câmara e ligam as luzes elétricas. E ali
fica você, de pé, entre enormes paredes brancas cobertas de animais
saltando, correndo, bufando, alguns com até cinco metros e meio de
comprimento, parecendo manadas de cavalos, ou touros, alguns com outros
animais emergindo de seus corpos, todos pintados com cores brilhantes. O
efeito é um desejo de gritar ou chorar de assombro e júbilo, enquanto o
tempo todo você pensa: "Isto tem 17.000 anos de idade. As pessoas
pintavam estas obras-primas 17.000 anos atrás" (ver Foto 7).
O tamanho das pinturas, as cores brilhantes ou o ambiente gran-
dioso — não é apenas isso que liberta você das ideologias do
primitivismo. É a técnica, a beleza do trabalho. Os detalhes anatômicos são
75

precisos e elegantes (em outras cavernas, os pré-historiadores concluíram


distinguir três raças de cavalos, assim como ursos marrons e lucros, por
suas diferenças anatômicas). Ao mesmo tempo, alguns touros exibem uma
espécie de perspectiva dupla, com a cabeça de perfil e dois chifres vistos
como se apenas três quartos estivessem visíveis. Como em outras cavernas,
os pintores usaram a forma das paredes para dar um efeito tridimensional
às formas pintadas. Em algumas figuras, os artistas entalharam em torno da
pintura, para aumentar a sensação de dinamismo. Ao contrário das figuras
em algumas das outras cavernas, os animais de Lascaux aparecem em uma
movimentação selvagem, incluindo um cavalo pintado de cabeça para
baixo, com as pernas separadas para parecer que está caindo desamparado
através do ar.
Segundo uma história antiga, a prostituição é a profissão mais antiga
do mundo. Ver Lascaux é reconhecer que a mais antiga profissão pode
muito bem ser a de artista. Não há virtualmente a menor possibilidade de
que um grupo de pessoas que estivesse perambulando, sem tradição ou
treinamento, encontrasse uma caverna interessante e decidisse fazer alguns
desenhos. Elas eram, antes de tudo, pessoas dotadas de talento. Pegue um
livro de fotos de Lascaux. Tente reproduzir alguns desenhos em uma folha de
papel comum — e depois imagine as pessoas pintando-os e entalhando-os,
com três metros e meio ou cinco metros e meio de comprimento, em uma
parede de pedra irregular, enquanto estão sentadas ou deitadas em andaimes.
Os artistas de Lascaux tinham de ser pessoas talentosas, pessoas especiais
em sua comunidade. E tinham de ter recebido treinamento nas técnicas
especiais — e na tradição artística — usadas em seu grandioso projeto.
Lascaux também não é primitiva do ponto de vista intelectual.
Menos notada que os animais maciços é uma série complexa de sinais
abstratos que pontilham as paredes. Leroi-Gourhan e seus discípulos
catalogaram cerca de 400 deles.
Para nós, que não temos o treinamento de Leroi-Gourhan, este é inda
o ato de enxergar, de nos abrir ao maravilhoso, que exibe a ideologia da
humanidade primitiva e nos permite reconhecer o milagre arte
incorporando o sagrado.
76

Primórdios da Arte
Antes de examinar os possíveis propósitos da arte nas cavernas, devemos
observar o desenvolvimento dessa arte. Isso não somente vai nos instruir no
que os cientistas aprenderam da história inicial da humanidade, mas vai
também ajudar a demonstrar a primazia da arte na cultura humana. Talvez
esta última frase devesse falar na cultura dos "primatas". John Pfeiffer, em
The Creative Explosion, conta-nos sobre um chimpanzé do Jardim
Zoológico de Londres, chamado Congo, que produziu 384 desenhos aos
quatro anos de idade, "progredindo desde rabiscos até círculos e cruzes
toscos", alguns deles tendo sido até vendidos em uma exposição. Nos
Estados Unidos, um chimpanzé chamado Moja, com três anos e meio, fez
um desenho de "quatro segmentos de linha, um ângulo reto e uma curva
ampla". Moja fazia parte de uma experiência de comunicação entre espécies
e aprendeu um vocabulário limitado da Linguagem Americana de Sinais.
Quando parou de desenhar, o humano que estava assistindo comunicou-lhe
com sinais: "Faça mais." Moja sinalizou como resposta: "Terminado." O
humano perguntou: "O que é isso?" Moja respondeu: "Pássaro." Mais tarde,
Moja prosseguiu, desenhando "grama", "frutinha" e "flor". Possivelmente, o
impulso para criar a linguagem e a arte teve um desenvolvimento si-
multâneo.
Entre as primeiras criações humanas estão os "machados de mão",
pedras escolhidas por sua forma alongada e arredondada, aplanadas e depois
aparadas lateralmente para produzir tanto uma extremidade cortante quanto
uma simetria. Eles aparecem cerca de um e meio milhão de anos atrás. Será
que seus fabricantes os moldaram simetricamente por razões estéticas? Um
exemplar encontrado em Norfolk, na Inglaterra, contém uma concha
fossilizada, exatamente no meio, como se tivesse sido colocada ali para
embelezá-lo.
Os historiadores da pré-história referem-se a tais objetos como
machados de mão, mas na verdade, segundo Pfeiffer, "não são machados e
não eram usados para cortar nem para qualquer outro tipo de trabalho
pesado". Seriam realmente ferramentas? Os famosos machados duplos de
Creta eram feitos de um metal mole demais para ser usado como
ferramentas ou armas. Variando em tamanho desde alguns centímetros até
mais de dois metros de altura, eles eram usados como oferendas votivas,
objetos de devoção à Grande Deusa. Os muitos brasões e outras imagens
77

deles mostram-nos associados apenas às mulheres, nunca aos homens. O


nome dos machados cretenses, labrys, está relacionado a "lábia"', os lábios
da vulva.
Não podemos comparar a Creta de 4.000 anos atrás com o Homo
erectus de um e meio milhão de anos antes. Mas é importante observar que,
de acordo com as evidências, durante um longo tempo depois dos humanos
terem descoberto como fazer o fogo, ele não foi usado para seu
aquecimento ou para cozinhar alimentos, mas para realizar rituais. Logo
iremos examinar o trabalho de Alexander Marshack, que indica que a arte e
as "histórias", não as ferramentas, distinguem os primeiros humanos.

Primeiras Imagens Femininas


Em The Civilization of the Goddess, Marija Gimbutas relata que as esculturas
de pederneira de figuras femininas já existiam 500.000 anos atrás. Segundo
John Pfeiffer, o mais antigo objeto cuidadosamente registrado, encontrado
na França, data de 2-300.000 anos atrás. Consiste em uma costela de boi
com cerca de quinze centímetros de comprimento, assemelhando-se a um
par de linhas paralelas curvas. Somente quando examinadas em microscópio,
elas se revelam como linhas duplas, executadas com precisão. A professora
Gimbutas descobriu a proeminência precisamente dessa imagem — linhas
paralelas curvas — na arte posterior da Deusa. Elas aparecem
repetidamente, na cerâmica e nas esculturas.
Os humanos de hoje descendem do grupo evolucionário conhecido
como Cro-Magnon. Nossos primeiros concorrentes, os homens Neandertal,
também parecem ter contribuído para o desenvolvimento da arte e da
religião na cultura humana. Uma caverna no norte do Iraque revelou restos
de um funeral neandertal de 60.000 anos de idade, com porcos deitados,
como se estivessem dormindo, sobre um leito de flores, possivelmente
plantas curativas. Alguns restos do grupo Neandertal indicam que eles
pintavam os cadáveres de ocre vermelho. Sabemos, por culturas posteriores,
que o ocre vermelho simboliza a vida e, especialmente, o sangue menstrual
e do parto da Deusa. Ele aparece freqüentemente nas tumbas ou na arte das
tumbas, sobretudo nos entalhes enterrados enfatizando o útero da Deusa.
Similarmente, muitas estatuetas e esculturas em relevo da Deusa
encontradas nas cavernas posteriores foram pintadas em ocre vermelho. O
mesmo aconteceu com as estátuas e as pedras do templo em Malta e em
outros lugares. 11 m artigo recente do U.S. News and World Report descreve
78

uma estrutura de pedra de quatro paredes construída pelos homens Neandertal


bem ao fundo de uma caverna. A idéia de uma construção em uma caverna
sugere algum propósito ritual.
A arte muito antiga inclui marcas de "xícaras" datadas de cerca de
125.000 anos atrás. Estes círculos côncavos entalhados provaram ser um
símbolo surpreendentemente duradouro, encontrado na arte da pedra em
todo o mundo, desde a Europa até a América do Norte e a Austrália. A
forma côncava sugere a qualidade interior do corpo feminino, o útero. Os
índios pomos do norte da Califórnia chamam essas rochas entalhadas de
"rochas bebês". Os casais que desejam ter filhos dirigem-se às rochas com
oferendas e orações aos Espíritos. Depois, escavam um pouquinho de
esteatita dos buracos, moem-na bem fino e misturam-na com água para fazer
uma pasta que então pintam no abdômen e na região púbica das mulheres.

A "Explosão Criativa"
Cerca de 35-40.000 anos atrás, a humanidade Cro-Magnon sofreu o que John
Pfeiffer chama de "explosão criativa", com o surgimento de entalhes na
parede, ossos delicadamente entalhados e estatuetas elaboradamente
esculpidas, que continuaram a ser criados durante milhares de anos.
Isto não significa que a cultura humana teve início apenas na Europa.
A maior parte do nosso conhecimento do período paleolítico vem de uma
pequena área do sul da França e do norte da Espanha, particularmente os
vales dos rios Dordogne e Vézère, na França. Entretanto, pelo menos a
China e a índia são também conhecidas como tendo experimentado
desenvolvimento na Idade da Pedra, embora pouca arte tenha sido lá
encontrada, possivelmente devido a uma exploração menos extensiva. A
arte na pedra aparece virtualmente em toda parte, e sua fonte mais rica é o
sul da África, onde foram encontrados cerca de 6.000 sítios arqueológicos,
contendo cerca de 175.000 pinturas. As pesquisas arqueológicas recentes
deslocaram o início da arte — e do comércio — da Europa para épocas
muito anteriores na África. Pelo menos 100.000 anos atrás, os humanos
na África desenvolveram redes comerciais de longa distância para vários
produtos, incluindo contas.
A arte inicial, especialmente a arte mural e as estatuetas, mostra o
poder espiritual do corpo feminino. As gravuras murais européias co-
meçaram com imagens da vulva, e embora os animais mais tarde tenham
79

adquirido maior proeminência, a vulva permaneceu um símbolo poderoso,


nas cavernas, nos abrigos de pedra e nas esculturas. Os historiadores da
pré-história encontraram na Europa mais de 770 placas gravadas com
desenhos de vulvas. Na caverna de La Bastide, pedras gravadas com vulvas
foram encontradas colocadas de face para baixo em um círculo. (A idéia
de um círculo de pedra dentro de uma caverna é fascinante, quando
consideramos o costume recente de supor que todos os círculos de pedra
servem como observatórios astronômicos.)
Em Lês Eyzies, na região da Dordogne francesa, os escavadores
descobriram cadáveres pintados com ocre vermelho e enterrados com
conchas de cauri. Em geral, associamos as conchas de cauri à África,
onde elas eram usadas para arte religiosa feita de contas, colares, ornatos
para o cabelo e dinheiro, e também como símbolos de poder e de
adivinhação. Os cauris formam uma imagem natural da Deusa, pois o
lado da fenda se assemelha à abertura vaginal, enquanto o lado arredon-
dado sugere o inchaço de uma barriga grávida. Segurado verticalmente, o
cauri se assemelha aos grandes lábios. Horizontalmente, a concha lembra
olhos. Os grandes olhos amendoados característicos de algumas esculturas
e máscaras africanas derivam de conchas de cauri. Existe um
relacionamento simbólico entre o olho e a vagina. Ambos abrem para o
corpo. Através do seu vínculo com a mente, o olho traz à tona idéias
criativas, da mesma maneira que a vagina traz à tona os bebês. Segundo RJ.
Stewart (escrevendo sobre o termo "Sil" de Montanha Silbury), sul ou
suil, em irlandês antigo, significa "olho" ou "cavidade", e também
"vagina".

Abstração Simbólica
As vulvas entalhadas não eram imagens realísticas dos genitais femininos,
mas fendas ou triângulos abstratos. Em outras palavras, eram símbolos. E
quando encontramos símbolos, podemos falar de idéias e de um sentido
do sagrado. As pessoas daquela época não viviam nas cavernas escuras e
inacessíveis, mas em abrigos de pedra, que também pintavam e
entalhavam. No abrigo de pedra de L'Abri Pataud, os arqueólogos
encontraram uma mulher e uma criança enterradas em frente a uma
vulva escavada na pedra. Repetidas vezes, essa mesma conjunção aparece
diante de nós: o cadáver e a vulva; ocre — a cor da vida — e o morto; a
morte e o renascimento; voltando milhares de anos.
80

Mais tarde, os entalhes murais das mulheres mostram ainda mais


abstração simbólica. As imagens tornam-se reduzidas às características
essenciais dos seios, nádegas e vulva. Às vezes, não encontramos cabeça ou
pés. As estatuetas também mostram o corpo abstraído. Como mencionado
antes, as nádegas parecem exageradas, os pés muitas vezes desaparecem,
os quadris e os seios parecem montanhosos e a cabeça pode parecer plana,
como a das aves, ou marcada com buracos. Os arqueólogos encontraram
mais de 1.000 estatuetas da Idade da Pedra. Quase todas representam
imagens femininas.
Uma das figuras esculpidas mais antigas conhecidas no mundo, a
chamada "Vênus" de Willendorf, datada de cerca de 30.000 anos atrás, r
uma mulher com grande barriga e seios, braços truncados desaparecendo
nas laterais (ou se tornando linhas estreitas que atravessam a parte
superior dos seios), pernas grossas sem pés (possivelmente para assentar
na lama ou nas cinzas de uma fogueira) e uma grande cabeça com rosto,
parecendo um favo de mel (ver Foto 8). A imagem do favo de mel antecede
a Deusa Abelha, encontrada milhares de anos mais tarde cm Creta, Canaã
etc. Significativamente, a estátua parece ter sido colo-i ida com ocre
vermelho, um indício para o seu status como arte sagrada.
Apesar do título de "Vênus", a Senhora de Willendorf (se podemos
mudar a expressão) não está esculpida como grávida. Nem a maioria das
outras estatuetas da Deusa. Embora elas representem o poder feminino, com
seus enormes seios, quadris e nádegas, não representam apenas a fertilidade,
mas algo mais amplo, mais abstrato e abrangente. A vulva não significa
apenas o nascimento, mas a sacralidade e a criatividade do corpo da Deusa
como um todo. William Irwin Thompson relata (em The Time Falling
Bodies Take To Light) que o elo entre a menstruação e o ciclo lunar transforma
a vulva em um símbolo, não da fisiologia, mas do cosmos. Mas por que
estas duas coisas se opõem uma à outra? O poder da religião da Deusa está
na precisão com que o corpo humano reflete o cosmos — e lhe proporciona
significado.

Impressões de Mãos
As outras formas de arte aparecem cedo e continuam através do período
paleolítico: bastões entalhados e impressões de mãos. Como as marcas de
xícaras, as impressões de mãos aparecem no mundo todo na arte da pedra.
Às vezes as encontramos junto com outras imagens; outras vezes, apenas
elas. Os artistas usavam dois métodos. As impressões de mãos "positivas"
81

eram a imersão das mãos na tinta e depois sua pressão contra a parede. As
impressões de mãos "negativas" parecem ter sido feitas pressionando-se a
mão contra a parede, com os dedos abertos, e depois soprando a tinta
através de um tubo na área em torno da mão. Algumas impressões de mãos
aparecem com parte de um dedo faltando. Na caverna de Maltrevieso, no
oeste da Espanha, todas as impressões de mãos se caracterizam pela ausência
das duas articulações superiores do dedo mínimo. Embora isto possa ter
resultado de uma amputação ritual, talvez como uma oferenda aos
Espíritos, Mark Newcomer, um arqueólogo experimental, demonstrou a
possibilidade de se falsificarem essas imagens dobrando o dedo antes de
soprar a tinta.
O tamanho das mãos indica que as mulheres faziam tais impressões,
dando suporte à idéia de que artistas mulheres criaram as pinturas. Na índia
rural, pintoras mulheres contemporâneas incluem as impressões das mãos
como parte do seu trabalho.
À semelhança que ocorre com toda a arte pré-histórica, desconhe-
cemos o significado específico das impressões das mãos. Podemos supor, em
um sentido genérico, o que levaria as pessoas a deixar esses tipos de marcas.
Quando vamos a um lugar sagrado, onde experimentamos grande respeito,
em geral desejamos tocar o chão, as pedras ou as árvores. Queremos
pressionar nossas mãos como uma extensão da nossa consciência, pois elas
de alguma forma transportam uma carga especial de energia. Não somente
nossas mãos nos distinguem dos outros animais, mas as usamos para
reconstruir o mundo que nos cerca. As impressões das mãos fazem uma
declaração poderosa. Deixam uma marca da consciência. Constituem tanto
um ato de submissão quanto uma atitude ousada de participação no poder
espiritual vivo, presente naquele lugar. Com as impressões das mãos
absorvemos o poder de um lugar sagrado e entregamos em troca algo de nós.
Pressionamos a realidade do nosso próprio corpo no corpo da Terra.
Na caverna de Pêch-Mèrle, impressões de mãos negativas cercam um
desenho de dois cavalos. As mãos permanecem fora dos corpos,
transmitindo uma sensação de que os humanos podem não penetrar em algo
tão venerável quanto um espírito animal. Esta separação estrita torna-se
mais interessante quando consideramos que os artistas das cavernas em geral
desenhavam um animal surgindo de outro, como em Lascaux, ou ainda
superpondo muitos desenhos, um acima do outro.
82

Bastões Entalhados
Os bastões entalhados são uma questão mais complexa, pelo menos pelo
fato de conterem mais informações. Eles consistem em ossos ou chifres
entalhados e decorados, às vezes com uma série de marcas simples,
aparentemente abstratas, mas outras vezes com figuras de animais c de
plantas cuidadosamente entalhadas. A maioria deles tem pelo menos um
buraco perfurando-os; alguns têm vários. Os arqueólogos costumavam se
referir a eles como "batons de commandant", presumindo que fossem um
símbolo de autoridade de um chefe tribal — uma suposição que talvez diga
mais sobre os arqueólogos do que sobre a cultura da Idade da Pedra. O
museu da arte das cavernas, em Lês Eyzies, na França, descreve atualmente
os poucos bastões exibidos como "objetos enigmáticos".
Das várias imagens de humanos com animais na arte paleolítica,
nenhum dos humanos porta armas. Alguns poucos, no entanto, carregam
objetos ou discos cerimoniais, indicando que eles procuravam encontrar
animais sagrados, não matá-los ou subjugá-los.

O Trabalho de Alexander Marshack


Alexander Marshack foi um dos pioneiros do estudo de ossos e chifres
entalhados, trabalhando com objetos da África e da Europa. Ele usou dois
instrumentos em seu trabalho: um microscópio e uma mente disposta a
pensar nas coisas de uma maneira nova. Ao contrário de muitos escritores,
Marshack jamais reivindica a verdade absoluta para suas interpretações, mas
apenas que os artistas pré-históricos poderiam (o itálico é dele) ter tido esta e
aquela idéia.
O microscópio conduziu a várias descobertas. Primeiro, há a técnica
notável desses artistas de mais de 10.000 anos atrás. Marcas cuidadosamente
espaçadas em padrões regulares misturadas com imagens graciosas de veados
e cabritos monteses, plantas e brotos, salmões e outros peixes. Em muitos
casos, só com o microscópio podemos enxergar a precisão biológica da arte,
com as espécies particulares claramente distinguíveis. (As facas de pederneira
não são os instrumentos toscos que vemos nas imagens populares da vida nas
cavernas. André Leroi-Gourhan escreve: "A pederneira tem características
cortantes que, para trabalhar no entalhe ou na escultura, podem se equiparar às
ferramentas de metal.")
83

A teoria mais comum da arte das cavernas descreve as figuras como


mágica da caça. As evidências incluem supostamente figuras de arpões e
setas farpados. Entretanto, os "arpões" na verdade apontam para a direção
errada. Marshack demonstrou a possibilidade de tais sinais farpados
representarem plantas, abrindo assim toda uma nova extensão de
interpretações para a arte paleolítica, que se pensava mostrar apenas
animais.
As plantas são importantes por várias razões. Por um lado, mostram
uma preocupação com as propriedades alimentares, e possivelmente
curativas, do cultivo das coisas. Em Lascaux, os sinais farpados .i parecem
ao lado de animais prenhes e imagens de vulvas. Eles podem estar
representando plantas medicinais usadas para a gravidez. O conhecimento
herbático dos povos não-agrícolas é com freqüência extremamente detalhado
— bem mais, na verdade, que aquele das culturas agrícolas. Os agricultores
plantam apenas algumas culturas, enquanto os coletores recolhem uma
grande variedade de plantas silvestres.
Os sinais de plantas, especialmente ao lado de vulvas ou animais
prenhes, podem simbolizar a renovação da vida na primavera. Marshack
enfatizou este ponto, encontrando sobre um dos chifres estudados toda uma
série de imagens da primavera: salmões desovando e focas, brotos novos,
flores. Podemos pensar nisso simplesmente como uma imagem agradável,
mas Marshack observou implicações revolucionárias. Os historiadores da pré-
história sempre supuseram que os humanos só tomaram consciência da
regularidade do tempo depois da invenção da agricultura no período
neolítico. Um grupo de imagens da primavera conectadas à gravidez
mostra uma consciência das estações e dos processos biológicos, milhares
de anos antes da agricultura.

Marcas em Ossos
O estudo das marcas abstratas nos ossos sugere mais fortemente ainda essa
consciência. Se Marshack estiver correto, essas séries de linhas regulares
gravadas, sempre consideradas rabiscos sem significado, realmente
representam uma cuidadosa contagem de dias, ou meses. As linhas podem
marcar dois tipos de tempo, ambos associados aos corpos das mulheres;
primeiro, as fases da Lua, tão vitalmente ligadas à menstruação; segundo, a
duração da gravidez.
Em vez de serem varas fálicas representando o poder de um chefe,
os "batons" podem ter funcionado como bastões-calendários para as
84

parteiras que precisavam acompanhar as gestações. Se foi assim, esse ca-


lendário, entre outras coisas, indicaria o conhecimento de que os bebês
começam a crescer com o primeiro período falho, se não uma consciência
da conexão com a relação sexual. Alternativamente, os bastões podem ter
ajudado as mulheres a alinhar o poder sagrado dentro de seus próprios
corpos com a espiritualidade irresistível da Lua. Uma interessante
conjunção de significados de culturas bem posteriores defende esta
possibilidade. Segundo Elinor Gadon, em The Once and Future Goddess, a
palavra "ritual" deriva do sânscrito rtu, que significa "mens-truação". O
Klein's Comprehemive Etymological Dictionary ofthe English Language
localiza "ritual" na raiz indo-européia ri, que significa "contar, numerar".
Da mesma forma, na arte das cavernas encontramos a idéia de que a
consciência sagrada remonta à consciência do tempo periódico criado pela
menstruação.

A Vênus de Laussel
Uma das imagens mais famosas da arte das cavernas é a chamada "Vênus
de Laussel", uma incrível escultura em relevo de mais de 20.000 anos de
idade, encontrada em um abrigo de pedras no vale do Rio Dordogne (ver
Foto 9).
Como acontece com várias outras obras em relevo, o artista usou a
curva e a protuberância da parede para proporcionar à imagem qualidade
tridimensional. A evidência indica que essa figura também foi pinta- \ da
com ocre vermelho, aquele símbolo ubíquo do sangue vital da Deusa. Aqui
a mulher aparece grávida. Sua mão esquerda se apóia em sua barriga,
enquanto a direita segura o chifre de um bisão marcado com 13 linhas. O
chifre detém uma importância simbólica imensa. Um ano contém 13 luas
cheias ou 13 luas novas (um mês lunar dura 29,5 dias), e o chifre do bisão,
ou da vaca, se parece com a Lua crescente ou minguante, como uma
barriga grávida se assemelha à Lua cheia.
Lembre-se de que os bovinos, touros e vacas, são os animais mais
comuns na arte das cavernas. E lembre-se de que, nas culturas posteriores
de todo o mundo, a vaca ou o búfalo incorpora a Grande Deusa, com
figuras como a Mulher Búfalo Branco entre os sioux de Lakota,' Oya como
um búfalo na África Ocidental, na Europa e na mitologia, grega, Hator no
Egito, e a vaca no mito escandinavo, que lambeu um bloco de água
salgada congelada para formar o mundo. A Via Láctea, o nome que damos
à nossa galáxia, refere-se ao mito das estrelas como leite da Deusa (vaca)
85

escorrendo no céu. É incrível encontrar esta conjunção complexa de


imagens e idéias tanto tempo atrás, milhares de anos antes do início da
criação de gado. A conjunção dos bovinos e das mulheres na imagem da
Deusa pode ter se originado, em parte, do fato tia prenhez dos bovinos
durar nove meses.

As Histórias e a Determinação do Tempo


Para Marshack, a qualidade especial que marca os seres humanos não é a
fabricação das ferramentas, mas o que ele chama de "histórias" e
"determinação do tempo". Isto significa a capacidade de perceber o
processo e a repetição das coisas — em outras palavras, os ciclos — no
inundo que nos cerca e em nossas próprias vidas, e dar significado a cias.
Eu acrescentaria: atribuir-lhes um significado sagrado. Os mitos, a arte
simbólica, os sinais abstratos e os calendários dão significado à
experiência pura.
As histórias e a determinação do tempo surgem com o desenvolvi-
mento do cérebro e, por isso, pertencem ao corpo. Se as primeiras
"histórias" originam-se da menstruação e da gravidez, vinculando-se estas
experiências à Lua e às vacas, então as histórias, como a própria criação,
emergem do corpo da Deusa — ou seja, do corpo feminino percebido
como divino.
Podemos remontar muitas de nossas histórias fundamentais ao cor-
po, à experiência do nascimento, à consciência da morte, ao fluxo
periódico da menstruação, à excitação urgente e à queda do falo, ao fato da
posição de pé sobre duas pernas, e assim por diante. Isto não reduz a
espiritualidade a "meros" fatos físicos. Ao contrário, mostra a unidade dos
corpos e a verdade sagrada.
Posteriormente, a arte paleolítica por vezes descreveu as imagens
femininas essenciais — seios, nádegas, vulvas — como umas poucas
marcas, por exemplo, um círculo com uma linha atravessando-o para a
vulva. Alguns historiadores da pré-história descrevem isso como uma
"degeneração" da arte. Marshack, no entanto, sugere que a "história", o
significado simbólico da imagem, tornou-se tão conhecida, que um sinal
simples podia transmitir todo o peso do significado (pense em todos os
significados cristãos codificados na forma simples da cruz). Marshack
escreve: "O que está sendo simbolizado não é a origem sexual anatômica,
mas as histórias, os personagens e os processos com os quais o símbolo
86

tornou-se associado." A experiência, os fatos da vida, destilados para o


símbolo e o mito.
A visão padronizada do desenvolvimento humano pressupõe que os
mitos da Deusa só surgem após a descoberta da agricultura. Em outras
palavras, uma revolução tecnológica supostamente conduziu a novos
significados simbólicos. Além disso, a estátua de Willendorf tem 30-50.000
anos de idade. Assim como os primeiros artefatos parecem servir mais a
propósitos rituais que a usos práticos, a tecnologia pode ter seguido a arte e
não outros meios. As imagens femininas da Idade da Pedra Lascada
continuaram na da Pedra Polida. Marshack descreve-as como parte de uma
"herança intelectual, determinada pelo tempo e determinante do tempo que
preparou o caminho para a agricultura". Essa herança intelectual originou-
se do reconhecimento do poder e da verdade do corpo.

Economia do Caçador-Coletor
Durante muitos anos, os historiadores da pré-história descreveram as
pinturas nas cavernas como "mágica da caça". Preocupados em garantir um
suprimento constante de carne, os "homens das cavernas" supostamente
faziam desenhos da presa desejada e esperavam que isso lhes desse poder
sobre as criaturas. Contudo, as evidências arqueológicas corroem esta idéia.
Antes de tudo, a partir do que conhecemos dos ossos e dos restos
fósseis, a caça não era de modo algum escassa, mas abundante. A maioria de
nós foi criada com a imagem dos "homens das cavernas" levando uma
existência miserável e desesperada. Isto também pertence à ideologia do
primitivismo, pois nos diz que estamos muito melhor servidos com nossa
sociedade tecnológica avançada, e que toda a história seguiu um progresso
contínuo para condições cada vez melhores. Se consideramos nossas vidas
atualmente insatisfatórias, podemos nos dizer que não temos escolha, e que
os povos mais antigos sofriam muito mais que nós. Essa visão da vida na
Idade da Pedra Lascada justifica não apenas as chamadas "grandes
civilizações" começando com a Suméria, mas até o capitalismo tardio.
Quando ecologistas e outros atacam nossa aproximação da natureza baseada
no consumo, os conservadores freqüentemente citam a suposta miséria que
existia antes do homem dominar a natureza. Entretanto, a pesquisa tem
corroído esta visão da vida pré-histórica. Em um artigo intitulado "The First
Affluent Society", Marshall Sahlins demonstrou que os povos paleolíticos só
87

precisavam trabalhar 14 horas por semana para se alimentar, se vestir e se


abrigar.
Esta informação surpreendente e revolucionária traz à tona nossas
suposições sobre a vida que levamos hoje, com as pessoas trabalhando 60
horas por semana ou mais simplesmente para sobreviver. Reflete vários
momentos da história, como os Atos de Anexação do século XVIII na Grã-
Bretanha, que transformaram a terra comunal em propriedade privada de
uma pequena classe de proprietários de terra, sob a alegação de que isso era
feito em nome do progresso e da eficiência econômica. Isso nos ajuda com a
tarefa necessária e difícil de questionar a própria suposição da história
humana como uma marcha de progresso da selvageria e da dificuldade para a
civilização e o conforto. E nos leva a imaginar o que os seres humanos fazem
quando só precisam trabalhar apenas 14 horas por semana? Bem, uma coisa
nós sabemos: eles dedicam tempo, energia e recursos da comunidade para
criar grandes obras de arte espiritual.
Os proponentes da mágica da caça como explicação para a arte das
cavernas sugeriram que, embora a caça fosse abundante durante a maior parte
do tempo, os rebanhos às vezes entravam em "colapso" e os caçadores
esperavam que a mágica os ajudasse a evitar essas possíveis calamidades.
Entretanto, os povos da Idade da Pedra aparentemente não caçavam os
animais que pintavam. Pela evidência dos ossos e dos restos de alimentos, sua
dieta de carne consistia quase inteiramente de renas. Mas estas aparecem
com muito menos frequência entre as pinturas do que outras espécies,
especialmente os bovinos e os eqüinos. É como se os pintores
deliberadamente escolhessem os animais com os quais não compartilhavam
um relacionamento doméstico. (Leroi-Gourhan observou que a heráldica
européia descreve animais como leões e águias, mais do que vacas e porcos,
comidos pela nobreza medieval.) Existe uma situação similar com os entalhes
em "The Teaching Rock", no Canadá, produzidos cerca de 16.000 anos atrás.
A rocha contém muitas imagens de animais, mas não imagens dos animais
que as pessoas realmente comem.
Também devemos compreender que muitas pessoas, especialmente
intelectuais feministas, desafiaram a idéia de que a carne domina a dieta
dos povos caçadores-coletores. A carne é valiosa, mas a vida cotidiana
depende da grande variedade de plantas colhidas pelas mulheres. Já vimos
como o microscópio de Alexander Marshack revelou a importância
negligenciada das imagens das plantas entre as dramáticas imagens dos
animais.
88

Pensando Sobre a Arte nas Cavernas


Se as imagens não são mágica de caça, então por que foram feitas? Por que
pintar ou entalhar figuras de animais no fundo de uma caverna escura,
onde os artistas tinham de trabalhar à luz de lamparinas de sebo feitas de
pedra, muitas vezes sobre andaimes? Mais uma vez, jamais poderemos
saber, apenas supor. E essas suposições vão surgir mais do nosso próprio
sentido de significado e beleza do que das verdadeiras crenças dos artistas
das cavernas. A objetividade está apenas no registro dos fatos físicos;
qualquer declaração sobre o propósito é uma declaração sobre nós mesmos.
Em Marks in Place, um livro de fotografias de artistas contemporâ-
neos da arte na pedra, Polly Schaafsma comenta que não há "significados
universais". Há, no entanto, imagens que são quase universais, como a cruz ou
a espiral. E embora as espécies descritas mudem de lugar para lugar, os
animais parecem tocar alguma coisa nos seres humanos que os conduz à arte.
Quando a mente consciente luta para extrair sentido de imagens poderosas,
para delas compor símbolos, então a arte assume significados culturalmente
específicos.
Apesar disso, os significados simbólicos não derivam apenas das
culturas. Os humanos de toda parte e em todos os tempos compartilham as
mesmas condições — mais ou menos a mesma estrutura genética, a mesma
necessidade de alimento e abrigo e realização sexual, o elo com os filhos
surgindo dos corpos de sua mãe, dos relacionamentos com as estações e das
diferentes fases da Lua. Em um sentido muito amplo, podemos declarar que
conhecemos o "propósito" das pinturas das cavernas. O propósito de toda
arte é intermediar o mundo do espírito invisível e o corpo visível da
natureza. Tornar visível o invisível.
As várias teorias para a arte nas cavernas incluem a alegria estética do
trabalho (a arte pela arte), a criação das câmaras de iniciação para os
membros jovens da comunidade e expressões das experiências extáticas dos
próprios pintores. Esta última idéia sugere que os pintores eram "xamãs"
que viajavam em transe para o mundo dos espíritos, encontravam os seres
divinos sob a forma de animais e retornavam para pintá-los. A palavra xamã
origina-se dos povos tungus da Sibéria. Quando a Era Glacial terminou na
Europa Ocidental e os rebanhos de renas deslocaram-se para o leste, os povos
os seguiram. A Sibéria tornou-se um centro para a mesma cultura que
produziu as pinturas nas cavernas.
89

Estados de Transe
A arte das cavernas originou-se de viagens de transe? David Lewis-
Williams desenvolveu essa teoria baseado na neuropsicologia das pessoas
em estados de transe, comparando suas visões com as imagens nas cavernas.
Por exemplo, as pessoas em estados de transe vêem formas geométricas e
figuras abstratas similares às centenas de "sinais" encontrados em Lascaux e
em outros locais. Vêem seres animais poderosos — e conversam com eles.
Também podem encontrar "tierantropos", criaturas parte humanas e parte
animais, ou eles próprios podem se tornar essas criaturas. Embora as
paredes das cavernas exibam principalmente animais, encontramos algumas
misturas de humanos e bestas — por exemplo, uma forma com
características humanas com cabeça e chifres de veado. As pessoas em transe
geralmente iniciam suas viagens experimentando uma descida através de
um túnel descendente. Uma caverna proporciona realidade física a este túnel
psíquico. Lewis-Williams estudou a arte na pedra dos !Kungs, da África do
Sul, como parte de sua pesquisa. Entre os !Kungs, os xamãs desenham
enquanto estão em transe, muitas vezes pintando borrões e outras
abstrações que lhes aparecem em seus estados alterados.
O que é interessante nesta teoria do transe é sua base no corpo. Ela
procura apontar o conhecimento do mundo dos espíritos como a fonte das
pinturas. Mas não trata essas viagens como alucinações; ao contrário,
considera-as experiências do corpo.
Há um conjunto — corpo — de informações relacionadas aos estados
de transe. Grande parte dele diz respeito a medições da eletricidade do
cérebro e assim por diante. Só recentemente, os ocidentais começaram a
considerar as próprias viagens como experiências reais. Só recentemente
começamos — de uma maneira muito nervosa — a ver o mundo dos
espíritos como um lugar real, e os seres que lá habitam como algo além de
projeções das nossas próprias fantasias. Apesar disso, esta é exatamente a
maneira como, há centenas de anos, as pessoas de todas as culturas têm
encarado o mundo dos espíritos.
Acreditar na realidade das viagens de transe requer dois tipos de
confiança. Primeiro, precisamos confiar no fato de que as pessoas que
fizeram estas viagens durante um período de dezenas de milhares de anos
sabiam o que estavam fazendo. Segundo, precisamos confiar na experiência
dos nossos próprios corpos. Felicitas D. Goodman, em Where the Spirits Ride
the Wind, documentou uma série de experiências usando posturas corporais
90

para guiar as pessoas em diferentes viagens espirituais. Goodman estudou


gravuras e esculturas de povos tribais e pré-históricos em várias posições
— sentados com os pés voltados para dentro, ou para o lado, deitados em
um determinado ângulo, até usando determinada pintura no rosto ou uma
roupa específica. Depois instruiu seus médiuns para duplicar estas posturas
o mais precisamente possível. Uma vez isto feito, costumavam respirar e
estertorar ritmicamente para induzir os estados de transe. Não apenas as
diferentes posturas produzem tipos diferentes de experiência, mas vários
indivíduos que usaram a mesma postura vão relatar viagens e encontros
muito semelhantes. Através do corpo, podemos descobrir o mundo espiritual
como um lugar real.

O Xamã de Lascaux
Uma das posturas de Goodman veio de Lascaux. A única imagem humana
nesta grande galeria mostra, em um bastão, a figura de um homem, deitado
de costas ao lado de um bisão (Ver Figura 4).

Figura 4 - O "xarnã" e o bisão de Lascaux, caverna de Lascaux, França, c. 15000a.C.

De início, ele parece estar deitado no plano, mas quando olhamos


novamente, percebemos que o corpo está colocado a um ângulo de 37 graus.
Seus braços estão estendidos, e seu pênis ereto. Goodman construiu
plataformas para que seus médiuns pudessem duplicar esta pose o mais
proximamente possível. Em transe, tanto os homens quanto as mulheres
experimentaram uma grande onda de energia, iniciando ou se concentrando
nos genitais, e às vezes emergindo através da cabeça ou do peito para subir
para o céu. Uma gravura do antigo Egito, datada de 12.000 anos após
91

Lascaux, mostra o Deus Osíris subindo aos céus no mesmo ângulo de 37


graus da figura tipo bastão de Lascaux.
O que nos surpreende de maneira mais significativa quando olhamos
o desenho de Lascaux é a representação tosca do homem. Capazes de pintar
animais com tantos detalhes anatômicos que podemos distinguir até as
subespécies, esses artistas escolheram descrever sua figura humana isolada
da maneira mais simples possível — embora, como observa Goodman,
tomando grande cuidado com a postura. (Para comparação, as gravações na
pedra de Kwakiutl, na América do Norte, contêm o que Campbell Grant
chama de "pequenas figuras humanas tipo bastão" ao lado de um "carneiro
de grandes chifres bem mais realístico".) Isto sugere que os artistas não
consideravam importante sua própria aparência. Em outras palavras, eles
estavam pintando viagens ao mundo espiritual, não auto-retratos. O que
importava era a forma do corpo — os braços estendidos de tal maneira, as
costas em tal ângulo, os genitais excitados.
As idéias de David Lewis-Williams e Felicitas Goodman podem
sugerir que os pintores das cavernas não tinham interesse no mundo
comum, só se importando com o mundo do transe. Mas se os animais das
cavernas originam-se das viagens espirituais, também existem na vida real.
Quando passamos a ver o corpo divino como tudo que nos cerca,
começamos a pôr fim à divisão entre a natureza e o "outro mundo", o mundo
dos espíritos. E começamos também a adquirir um sentido mais amplo do
"corpo". Pois se realizar certas coisas físicas — adotar determinadas
posturas, sentar em uma caverna escura, respirar profundamente, não comer
etc. — vai produzir reações específicas, incluindo uma sensação de
abandonar nossos corpos, então o que estamos abandonando é realmente
apenas uma visão limitada de quem somos e do que é um corpo.

Os Cultos da Fertilidade e as Vênus


O conceito dos "cultos da fertilidade" ou "fertilidade mágica" começou como
um ramo da idéia da mágica da caça. Supostamente, os artistas pintaram
vulvas e criaram estatuetas de mulheres semi-abstratas para garantir
magicamente que os animais de caça continuariam a dar à luz e reabastecer
os rebanhos. Mais uma vez, encontramos a imagem das pessoas "primitivas"
como simplistas, impulsionadas por desejos grosseiros, sem percepção real
do sagrado.
92

Até hoje, a maioria dos textos sobre a arte paleolítica refere-se às


estatuetas maravilhosamente esculpidas, ou às esculturas em relevo, como
"Vênus". Lemos sobre a "Vênus de Willendorf" ou sobre a "Vênus de
Laussel". O termo refere-se à Deusa romana do amor sexual, conhecida
como Afrodite na Grécia. Ironicamente, o nome pode carregar mais
significado do que originalmente pretendia. Afrodite/Vênus era uma Deusa
muito mais poderosa do que o caráter sexual jocoso encontrado na mitologia
grega posterior. Ela era originalmente uma Deusa dos mares, mas também
do céu; da vida, mas também da morte. Elinor Gadon nos informa que os
romanos chamavam as necrópoles, os mausoléus e as catacumbas de
"pombais", em honra à companheira sagrada de Vênus, a pomba.
Originalmente, a Deusa do Amor simbolizava o poder criativo e o prazer
físico. Encontramos Sua história arcaica sugerida no mito de Sua origem, pois
ele a descreve como uma geração mais velha do que Zeus e os outros
Deuses do Olimpo.
Em uma versão da origem de Afrodite, Ela emerge do mar — com u
pomba — e vai primeiro a Chipre. Muitos mitólogos acham que Ela foi
originalmente a Grande Deusa de Chipre, mais tarde assimilada no mito
grego homérico. Uma imagem de barro de Chipre, datada de 3000 a.C.,
mostra uma Deusa com quadris enormes e pernas finas terminando em ponta.
Esta se parece muito com aquelas mesmas "Vênus" paleolíticas louvadas com
o nome romano de Afrodite. A mesma imagem cipriota apresenta um nariz
tipo bico e olhos enormes como os de um pássaro.
Chamar a Grande Deusa da Idade da Pedra pelo nome de Deusa da
sexualidade nos remete de volta à percepção de que a Deusa significa
mais que uma abstração intelectual. Ela é real e física e está presente no
mundo. Ela tem, ela é, um corpo. Essas estatuetas, delicadamente es-
culpidas e pequenas o bastante para caber em uma mão (o que era ne-
cessário para uma cultura nômade), carregam na forma e no estilo o peso
e o poder bruto das montanhas. Embora pequenas, correspondem aos
úteros da caverna na intensidade do seu significado.
Aqui há um paradoxo. Embora imensas, as cavernas nos mostram
apenas um aspecto da forma da Deusa, uma visão localizada do Seu útero
(ou, mais geralmente, o interior do Seu corpo). Mas a Terra toda é o Seu
corpo. Em contraste, os entalhes feitos a mão nos proporcionam uma
imagem completa da Deusa.
93

A Pornografia e o Corpo Divino


Vários desenhos e esculturas paleolíticas do corpo feminino mostram
apenas a área dos seios até as nádegas, sem cabeça, braços ou pernas.
Alguns historiadores da pré-história têm sugerido que tais imagens cons-
tituem a pornografia da Idade da Pedra, como os desenhos nas revistas
masculinas contemporâneas. Ultrajados por essa sugestão, outros de-
fendem a santidade da Deusa e insistem em que essas figuras parcial-
mente abstraídas significam poder criativo — como se a criatividade e o
desejo sexual não tivessem relação um com o outro. Alguns anos atrás,
uma das revistas masculinas mais grosseiras exibiu fotos de mulheres
fotografadas do pescoço até os joelhos, provocando a imaginação das
feministas com a total objetificação do corpo feminino. Provavelmente
nenhum deles, de nenhum lado da batalha, pensou nas muitas esculturas
femininas sem cabeças nem pés da Idade da Pedra Lascada e da Pedra
Polida. Será possível que as imagens impessoais contemporâneas da
sexualidade feminina realmente remontem — de uma maneira muito
distorcida — a uma percepção das mulheres como portadoras de um
grande poder que vai além de suas vidas individuais? Talvez a
criatividade sexual transcenda à personalidade. Mostrar a forma feminina
dessa maneira — apenas o torso — eleva o corpo ao nível de um símbolo,
algo de significado universal que, não obstante, ainda possui forma e se
expressa nos corpos reais das mulheres.
O problema da pornografia não decorre das figuras de mulheres
nuas, mas da suposição de que as partes sexuais das mulheres de algum
modo "pertencem" aos homens. A atitude de que as mulheres existem
apenas para satisfação dos homens drena o poder real das imagens dos
corpos das mulheres. Impulsiona as mulheres para formas não naturais i-
poses ridículas. A obscenidade não está na sexualidade das mulheres. Está
na idéia das mulheres como propriedade dos homens, para serem usadas,
sem identidade ou propósito próprios.

Os Rituais da Menstruação e da Gravidez


A maioria das pessoas que escrevem sobre as "Vênus" e os "cultos da
fertilidade" admitem que os homens criaram essas estatuetas para seu-m
usadas por eles para eles. Mas e se as mulheres as tiverem criado para
rituais femininos? Em lugares tão distantes um do outro como África e
índia, e entre os esquimós, as mulheres usam esculturas das Deusas, sem
94

pés ou até com pescoços fálicos, em rituais que envolvem o nascimento


ou a puberdade, ou seja, a primeira menstruação. Elas inserem as
estatuetas na vagina e as removem como parte da cerimônia.
Se os europeus da Idade da Pedra usassem suas estatuetas da "Vênus"
de uma maneira similar, isso abriria toda uma série de significados. Antes
de tudo, explicaria por que tantas estatuetas não têm pés. As pernas eram
necessárias para se ter um ponto mais afilado para fácil inserção. E isso
nos proporcionaria uma nova visão das estatuetas com pescoços fálicos ou
outras representações da sexualidade masculina. Usando-as em um ritual
para mulheres, o órgão masculino torna-se parte do corpo feminino
sagrado, não apenas em um sentido simbólico abstrato, mas na prática
real.
Lembre-se de que tais estatuetas eram freqüentemente pintadas com
ocre vermelho. Usadas nos rituais do nascimento ou da menstruação, elas
teriam unido o sangue da mulher ao sangue da Deusa, tão abundante na
vida e no significado. Considere também que o ato imita a relação sexual.
Realizado durante um ritual de nascimento, esta penetração tornaria a
Deusa o pai simbólico e também a mãe. Essa idéia não reduz a importância
do pai real. Ao contrário, une-o também ao corpo da Deusa, através da
similaridade das duas ações, a relação sexual e a penetração ritual. E observe
que isso indica um conhecimento da necessidade da relação sexual para a
concepção.
Quando consideramos a idéia da penetração da Deusa em meninas
que entram na puberdade, as possibilidades tornam-se ainda mais
provocativas. Antes de tudo, o ritual uniria o sangue recém-fluído da j
jovem mulher ao sangue da Deusa, e, através da Deusa, a todo o longo ' rio
do sangue vital das mulheres. Em segundo lugar, reivindicaria sua j
sexualidade para a mulher antes de ela ter se entregado aos homens. Isso
tornaria muito mais difícil para qualquer homem tomá-la como sua
propriedade, para ser usada para sua própria satisfação. (Vista sob l esta luz,
a fantasia dos homens das cavernas surrando as mulheres torna-se cada vez
mais uma projeção das atitudes modernas com relação às relações
masculinas-femininas.) E, finalmente, a penetração por uma estatueta da
Deusa abriria o hímen, preparando a menina para a relação sexual. A
sacralidade do ritual ajudaria a elevar a ação além de qualquer nível de
brutalidade ou medo. E, é claro, afastaria a questão, tão obsessiva nas
culturas posteriores, da virgindade de uma mulher.
95

A Caverna como o Corpo Interior — Pêch-Mèrle


A percepção da caverna como o interior do corpo da Deusa nos atinge como
uma idéia provocativa da primeira vez que lemos a seu respeito. Pode se
tornar muito intensa quando visitamos as cavernas reais. Na caverna
francesa de Pêch-Mèrle, as câmaras são grandes e irregulares, os túneis
amplos e sinuosos, em geral com uma visão dos grandes salões. Estalactites
e estalagmites em formações magníficas diminuem a sensação de paredes de
pedra nuas. Além disso, uma forte presença de oxido ferroso nas paredes
proporciona-lhes uma coloração vermelha. O gotejamento das pedras
calcárias torna-as úmidas e também vermelhas. O efeito é extremamente
orgânico, tanto que eu e minha amiga Leslie Hunt nos sentimos como
micróbios no interior de um corpo imenso. A escultora Christina Biaggi,
depois de visitar Pêch-Mèrle, criou um "Morro" com uma forma interior
moldada no interior do corpo de uma mulher.
Biaggi visitou Pêch-Mèrle no inverno, após a temporada do turismo,
o que lhe propiciou fazer um tour privado. A mulher que a guiou enfatizou
que Pêch-Mèrle era uma "caverna feminina", mostrando-lhe as vulvas
entalhadas nas paredes. Outras pessoas também têm observado a qualidade
feminina de Pêch-Mèrle. As impressões de mãos nas paredes correspondem
ao tamanho das mãos dos restos dos esqueletos das mulheres paleolíticas. Da
mesma forma que em "The Teaching Rock" no Canadá, nenhuma das
imagens exibe qualquer tipo de violência. A bem da verdade, aliás, a
violência raramente aparece em algum lugar na arte paleolítica. Lembre-se
de que Marshack e outros observaram que, embora alguns humanos
portassem objetos cerimoniais, nenhum deles segurava uma arma — uma
situação estranha, pois a arte supostamente significava uma mágica da
caça. Vamos encontrar a mesma ausência de armas na arte cretense, mais
de 10.000 anos depois do período paleolítico.
Alexander Marshack escreve sobre Pêch-Mèrle: "Na caverna, as
figuras femininas estão associadas também a símbolos, impressões de mãos,
uma série de pontos coloridos, arcos em forma de ferradura e sinuosidades
em espiral", proporcionando uma indicação de que os sinais supostamente
abstratos, lá e em outros locais, podem ter pertencido a uma iconografia da
Deusa. Como já foi mencionado, estes mesmos sinais aparecem nas estátuas
posteriores da Deusa e nos vasos da Idade da Pedra Polida. Isto não garante
que eles signifiquem a mesma coisa em ambos os períodos de tempo.
Entretanto, em ambos os casos, tanto em Pêch-Mèrle quanto no período
96

neolítico, vemos as formas simbólicas associadas a símbolos femininos


evidentes.
Pêch-Mèrle também contém alguns entalhes relativamente raros das
formas femininas humanas. Estas incluem uma figura com seios caídos,
apontados para o chão, nádegas pronunciadas e uma cabeça com um bico,
que Buffie Johnson descreve como a "primeira divindade-pássaro
conhecida".

Figura 5: Desenho de mulheres grávidas dançando, sem cabeça e com cabeça de pássaro, feito em barro, da
caverna de Pêch-Mèrle, na França, c. 20 000 a.C. (conforme Vicki Noble).

Juntamente com as Deusas-Pássaros encontramos duas mulheres


sem cabeça (Ver Figura .5). Monica Sjoo e Barbara Mor descrevem três
figuras juntas como a Deusa Tríplice presidindo danças extática Quando eu
e minha amiga Leslie visitamos a caverna, a guia nos mostrou um grande
disco de pedra próximo a uma área plana aberta. As experiências com varas
de pedra como baquetas de tambor demonstraram a possibilidade de que a
pedra fosse um tambor, e o espaço um campo de dança.
Devemos lembrar que, em locais como o Haiti e grande parte da
África, as pessoas usam a dança como os meios primários para entrar cm
transe. Ao contrário dos transes dos xamãs, em que os próprios xamãs saem
em viagens, estes estados induzidos pela dança em geral envolvem a
possessão. Ou seja, um Deus ou Deusa assume o corpo da pessoa. Podemos
dizer que o dançarino temporariamente afastou o self, para que o Espírito
pudesse assumir uma forma física.
97

Os artistas das cavernas podem ter usado o som para aumentar o


Intenso poder das pinturas. O mesmo artigo do U.S. News and World Report
anteriormente mencionado descreve experiências provocativas tom som em
várias cavernas. As pessoas caminharam através de várias cavernas
assobiando e marcaram os locais onde os sons ressoavam deu ma forma
mais potente. Quase sempre, esses mesmos lugares exibem pinturas nas
paredes. Lascaux apresentou resultados ainda mais interessantes. Nas áreas
que mostram touros e cavalos correndo, os pesquisadores descobriram que as
batidas de suas mãos faziam com que o som ecoasse na frente e atrás,
produzindo o efeito de um estouro de animais. Finalmente, as cavernas
podem ter sido locais para a celebração do corpo divino na dança e
também em viagens extáticas.
98

4 - O Corpo de Pedra Construído — Parte l

O Corpo da Deusa é a fonte Encarnada.

Marija Gimbutas

Nossos mais antigos ancestrais eram nômades, viajavam em grupos


pequenos e seguiam as plantas sazonais e os rebanhos de renas.
Sociedades estabelecidas e culturas urbanas não podiam se desenvolver sem
uma descoberta tecnológica importante, possivelmente a mais importante de
todos os tempos — o desenvolvimento da agricultura. Embora não se saiba
o que a sociedade humana possa ter perdido abandonando a vida nômade, a
verdade é que a agricultura abriu caminho para novos mundos de experiência,
incluindo novas maneiras de ver — e de criar — o corpo divino. A revolução
do plantio gerou outras revoluções — casas estáveis, templos, cidades — e
um grupo de construções tão notáveis que ainda nos detemos e olhamos
maravilhados quando nos deparamos com elas em uma estrada rural —
megálitos, monumentos de pedra.
Anteriormente, as pessoas entravam nas cavernas para se unir ao
corpo da Deusa. Agora elas mesmas criavam as cavernas, e até mesmo
montanhas inteiras, alterando a própria superfície da terra. E se os
megálitos expressavam a presença física da Deusa, muitos deles faziam mais
que isso. Codificavam um conhecimento científico profundo e complexo de
coisas como o movimento do ano, através de suas diferentes estações e da
maneira como o ano solar cruza com as fases e os ciclos da Lua.
Vivemos à custa desses grandes seres do céu. Nosso alimento de-
pende do Sol. A fertilidade das mulheres depende da Lua. Através da
incrível audácia e dedicação dos construtores de megálitos, as pessoas da
Idade da Pedra Polida uniram diferentes aspectos do corpo sagrado, a
99

delicadeza e a abertura do céu, os ciclos matemáticos do Sol e da Lua, e a


duradoura solidez da pedra. Em tantas dessas construções, desde os
círculos até os morros e as passagens internas, uma estética particular
parece ter inspirado os construtores — a forma arredondada e a opulência do
corpo feminino.

Os Primórdios da Agricultura
Os escritores cuja temática são os primórdios da cultura humana oferecem
épocas e locais diferentes para o início do plantio e da colheita deliberados.
Segundo Joseph Campbell, a agricultura começa em torno da mesma época,
10000 a.C., em quatro áreas distintas — as Américas, o sudeste da Ásia e o
Pacífico, o sudoeste da Ásia e a África. Concentrando-se no Oriente Médio,
Merlin Stone escreveu que a primeira evidenciada agricultura data de cerca
de 8 500 a.C., na Síria, no Jordão e em Jerico. James Mellaart data os
instrumentos agrícolas de 9000 a.C., assinalando que as pessoas primeiro
domesticaram os carneiros, por volta de 8900 a.C., e que existem evidências
de comércio (in obsidian) já em 8300 a.C., entre a Anatólia, na Turquia, e a
cidade de Jerico, próximo à margem oeste do Rio Jordão.
Na maior parte da Europa, essas grandes mudanças culturais só
ocorreram algum tempo depois. A disciplina acadêmica da arqueologia
origina-se da cultura européia, o que explica por que sabemos tão mais sobre
as primeiras sociedades agrícolas européias e do Oriente Médio do que
sobre as culturas da Ásia, da África ou das Américas.
Outra razão são os próprios megálitos, o vasto numero de morros,
círculos de pedra, túmulos, dolmens, marcos de pedra e outras construções
que se estendem desde a Irlanda e a Grã-Bretanha e atravessam a Europa
ocidental até a Escandinávia, Malta, Sicília, Creta e mais além. Os megálitos
comandam nossa atenção, inspirando-nos com devoção e curiosidade. Quem
realmente os construiu? A que propósito serviam? Por que aparecem ao
mesmo tempo que a agricultura? E, acima de cudo, o que significam?

Os Megálitos Além da Europa


Há megálitos e restos de terra em outros lugares. Encontramos círculos de
pedra, dolmens, pedras de pé e outras estruturas na Nova Inglaterra, no
Alasca, em Madagascar, no Peru, no arquipélago de Vanuatu etc. O
processo de colonização, no entanto, ocultou-os ou até mesmo os destruiu.
O que é atualmente o Estado de Ohio, nos Estados Unidos, continha milhares
100

de morros de sepultamento de um povo extinto quando os primeiros europeus


chegaram. Os índios posteriores não foram os construtores dos morros, mas
não os destruíram. Os fazendeiros europeus, no entanto, araram quase todos,
de forma que apenas uma fração minúscula sobrevive, preservada em
parques estaduais e nacionais. Em tua forma suavemente intumescida, eles
também evocam a imagem de uma barriga grávida.
A maioria dos americanos já ouviu falar e já viu fotos de Stonehenge.
Muito poucos têm conhecimento dos morros de sepultamento de Ohio mi da
escultura de 400 metros de comprimento na forma de uma serpente no sul
de Ohio, ou de Cahokia Plain em Illinois, com seu monte de terra duas
vezes maior que a Grande Pirâmide, alinhado segundo a posição e o
movimento dos astros.
Conhecendo a intimidade das serpentes com as Deusas em grande
parte do mundo, podemos supor que essas elegantes esculturas falem de um
tempo e de uma cultura em que nenhum Deus zangado "colocou
inimizade" entre a mulher e a serpente?

Observatório de Chaco Canyon


Os americanos podem ter ouvido dizer que o nascer do sol no solstício do
inverno penetra no chamber mound (morro de sepultamento) de Newgrange,
na Irlanda, quando os primeiros raios do solstício ao verão tocam a pedra da
base em Stonehenge. Entretanto, muito poucos terão ouvido falar do Chaco
Canyon, no Novo México. Lá, o povo anasazi — que viveu há 1.000 anos
— criou um calendário solar de pedra, redescoberto em 1977 por Anna
Sofaer, uma artista. No alto de um monte íngreme de 130 metros de altura,
os anasazis inscreveram dois petróglifos (gravuras entalhadas na pedra) em
espiral, abrigados por três placas de pedra inclinadas. (Em seguida,
veremos que a espiral, juntamente com seu outro simbolismo, mapeia com
clareza a órbita do Sol durante o ano.) Todos os dias, ao meio-dia, a luz
passa através das fendas entre as placas. No solstício do verão, com o Sol
do meio-dia em seu ponto mais elevado no céu, uma adaga de luz perfura o
centro da espiral maior. No solstício do inverno, duas adagas tocam a parte
externa da espiral. Nos equinócios, a luz perfura o centro da espiral menor.
Além disso, uma sombra passa pelo centro da espiral maior a cada 19 anos,
no dia em que o sol se eleva a uma posição alcançada pela Lua cheia. A
sombra corta os 19 anéis da espiral (a órbita da Lua também forma espirais)
101

e se alinha com um sulco entalhado. A própria Lua projeta uma sombra


tangencial à extremidade esquerda da espiral.
Como a maioria dos outros americanos, eu não sabia nada sobre essa
maravilha de arte e ciência existente em minha própria terra. Devo essa
descrição de Chaco Canyon a Lucy Lippard, que em seu livro Overlay declara
que a criação desse calendário envolveu um conhecimento detalhado de
astronomia, a física das superfícies curvas e um exame minucioso para
realizar os entalhes no lugar preciso e exatamente na dimensão precisa.
Podemos acrescentar que também envolveu um desejo de fixar o corpo em
movimento do céu na permanência da pedra.
Apesar dessas maravilhas em meu próprio país, este capítulo vai
focalizar primeiramente o período neolítico na Europa. Tendo vivido na
Europa durante a pesquisa deste livro, visitei primeiro os sítios
arqueológicos europeus; como já mencionei, o registro arqueológico para a
Europa é muito mais detalhado que o de qualquer outro lugar.

A Beleza dos Megálitos


Os megálitos europeus variam desde a grandeza do Círculo de Pedra de
Avebury (tão grande que atualmente uma aldeia moderna está situada em
seu centro) até Stonehenge e círculos de pedra de apenas alguns metros na
zona rural de Sligo, na Irlanda. Variam desde os montes cobertos de
Newgrange e Knowth, cada um deles com meio hectare, até pequenos
outeiros artificiais na Escandinávia e montinhos de pedra na Irlanda que mal
permitiam alguém rastejar dentro deles. Até mesmo as pedras,
individualmente, podem portar grande mistério. Maciças, sofrendo as
intempéries de milhares de anos de vento e de chuva, elas evocam formas
estranhas, como imagens saídas de sonhos (ver Foto 11).
Visitar os megálitos, especialmente os círculos, nos insere na longa c
misteriosa história da humanidade. Por mais que possamos investigar ou
intuir sobre o seu significado e propósito, seus construtores, assim como os
pintores das cavernas antes deles, não deixaram outros registros além das
próprias obras. Os círculos e os montes simplesmente
existem, atualmente anexados à paisagem natural, parte do grande corpo
composto de terra, céu e água. Feitos de pedras ajustadas umas às
outras ou de seixos individuais, despidos ou cobertos com lama, eles
transmitem uma imagem de simplicidade, apesar da complexidade de
lua construção. Parecem pertencer totalmente ao lugar onde estão. Se
102

penetramos nos montes ou nos sentamos no interior dos círculos, também


nos tornamos ligados a esta união da história humana com os cidos da
vida e da morte, ao ano decisivo e ao corpo de nossa Mãe, a
Terra.

Mistérios dos Megálitos


Os megálitos europeus têm inspirado muitas teorias com relação às luas
origens e propósitos. A lenda britânica conta-nos que o mágico/profeta
Myrrdin, do País de Gales, conhecido na França como Merlin, construiu
magicamente Stonehenge para o pai do rei Artur. Para as j pessoas das
culturas posteriores, que perderam a tecnologia sofisticada da Idade da
Pedra, deve ter parecido que apenas mágica poderia transportar e erguer
essas pedras enormes até seus devidos lugares.
Relatos posteriores dizem que foram os druidas que fizeram
Stonehenge, onde supostamente praticavam sacrifício humano. Quando as
pessoas souberam que os megálitos antedatavam culturas como a dos druidas
celtas, passaram a supor que os construtores os edificaram sob a influência
da cultura egípcia ou de outras culturas "avançadas" do Mediterrâneo. Só
recentemente, com a datação por carbono e calibragem das árvores, os
arqueólogos descobriram que há, na verdade, três Stonehenges,
construídos durante um período de 1.500 anos, o mais antigo construído
em cerca de 3100 a.C, séculos antes das pirâmides.
As discussões sobre os megálitos continuam. Parafraseando o poema
Thirteen Ways of Looking at a Blackbird, de Wallace Stevens, há 13
maneiras de se olhar um megálito, cada uma delas uma teoria
contemporânea que pode ser encontrada em um ou mais livros:
Um megálito forma uma escultura gigantesca.
Um megálito marca um local de poder sagrado na Terra.
Um megálito fixa a energia fluida da Terra.
Um megálito gera energia de "ultrassom" e elétrica através
de cristais de quartzo ativados pela luz.
Um megálito é um computador, seguindo elipses,
alinhamentos extremos do Sol e da Lua, surgimentos de
planetas e constelações, e outros eventos no céu.
Um megálito marca limites territoriais.
103

Um megálito harmoniza elementos estéticos da paisagem


natural.
Um megálito é um local de festivais.
Um megálito é um local de sepultamento.
Um megálito é um local de renascimento.
Um megálito é um local de sacrifício.
Um megálito marca um ponto de convergência de linhas.
Um megálito indica um ponto de acupuntura do corpo
planetário.

Os proponentes dessas diferentes interpretações em geral


competem uns com os outros, como se os construtores dos megálitos
pudessem ter tido apenas um propósito em mente. Os defensores da
astronomia insistem em que os arcos e os círculos nos passage mounds
irlandeses ou nas pedras de pé em Gravinis, na Bretanha, significam apenas
os padrões da Lua e do Sol. Escarnecem da sugestão de que as imagens for-
mam algo antropomórfico ou religioso. Outros insistem, com a mesma
ênfase, que os arcos simbolizam a regeneração pela água. E muitos (embora
não todos) arqueólogos consideram os arcos gravados mera decoração,
"rabiscos" (ver Foto 12).

Astro-Arqueologia
Nos últimos anos, concentrou-se a atenção na "astro-arqueologia", a
descoberta de amplos alinhamentos entre os círculos de pedra e eventos
celestiais como os solstícios e os equinócios. Gerald Hawkins, cujo livro
Stonehenge Decoded foi o primeiro a trazer essas idéias ao povo em geral,
descreve Stonehenge como um computador gigante que segue o rastro das
eclipses, determina as posições extremas do Sol e da Lua e, é claro, o famoso
nascer do sol do meio do verão.
Por exemplo, a Lua cheia não nasce nem se põe no mesmo lugar
todos os meses, mas se move em um ciclo que dura, em média, 18,61 anos
para se completar. Como o número inclui uma fração (0,61), e como o
tempo realmente varia entre um ciclo e o seguinte, Hawkins calcula que o
melhor número inteiro para seguir a órbita da Lua durante várias décadas é
56 anos. Segundo seu descobridor do século XVII, o sítio arqueológico de
Stonehenge contém um círculo de 56 buracos, conhecidos como buracos de
Aubrey. Se os marcadores mudassem de buraco para buraco durante 56
anos, poderiam ter mapeado o progresso d a Lua.
104

Hawkins escreve que a ciência moderna usou os computadores para


processar todos os dados requeridos para se determinar o amplo espectro de
alinhamentos de Stonehenge. Também podemos acrescentar que isto exigiu
um salto gigantesco do pensamento. A ideologia do primitivismo em
geral torna difícil dar este crédito aos povos pré-históricos de terem
conseguido um conhecimento tão complexo. Mesmo nos dias de hoje, o
argumento contra a astro-arqueologia muitas vezes vem junto com o
argumento de que os povos primitivos jamais poderiam ter feito algo tão
complicado.
Nem todos os megálitos estão alinhados com o céu. Em seu livro
Beyond Stonehenge, Hawkins descreve a testagem necessária antes de
podermos pretender que um local particular siga os eventos astronômicos.
Mas mesmo que não aceitemos os círculos de pedra maiores como
computadores, isto realmente não explica por que as pessoas o fizeram. O
reconhecimento dos eclipses, os ciclos da Lua ou até mesmo os solstícios
e os equinócios não servem na verdade a nenhum propósito prático. Por
exemplo, de acordo com o solstício do verão em 21 de junho, os
alimentos deviam estar há muito tempo plantados no solo. O conhecimento
científico em si é uma possibilidade (assim como a arte pela arte é uma
possibilidade, quando se considera a arte nas cavernas). Alguns dos
maiores projetos científicos da sociedade moderna, como os
"superimpactantes", não servem a nenhum propósito imediato. A
fragmentação do núcleo nos ajuda a compreender os primeiros momentos da
criação, mas não a atuarmos em nossa vida diária. Será; que as pessoas da
Idade da Pedra encaravam o conhecimento como um benefício em si,
compensando o grande investimento de recursos e trabalho requeridos para
criar um Stonehenge?
Experimentemos uma hipótese. Suponhamos que os rituais ocor-
ressem em Stonehenge e em outros locais megalíticos, que os eventos do
céu se ajustassem a um padrão religioso e também a um padrão científico.
Alguns podem achar estranho que pessoas capazes de observações
astronômicas precisas, análises complexas e feitos monumentais de
engenharia pudessem ver a coisa toda em termos de Deusa e de cerimônias
e histórias míticas. Mas talvez nossa própria cultura seja estranha. Nós
separamos a ciência da religião, como se a religião se baseasse apenas nos
livros e nas emoções, e não no mundo físico. Como se uma busca científica
pelo início do universo não tenha nada a ver j com a religião.
105

0 Sol de Newgrange e o Bando Lunático


Muitos arqueólogos profissionais menosprezam as sugestões—e a pesquisa
séria — dos não-arqueólogos, reunindo-os todos como "o bando lunático",
sobre o qual P. R. Giot escreve: "Como eles são uma bobagem permanente
para os arqueólogos, em geral é difícil lhes dar crédito pelas poucas idéias que
se deve a eles." (Giot, "The Megaliths of France", em The Megalithic Monuments
of Western Europe, ed. C. Renfrew.) Mas os arqueólogos têm seus próprios
preconceitos. Se os amadores aceitam muito prontamente novas idéias, talvez
os profissionais as rejeitem também muito prontamente — junto com
algumas velhas idéias.
Assim como o primeiro surgimento do sol no meio do verão toca ti
pedra de base de Stonehenge na Inglaterra, o nascer do sol no meio do Inverno
envia um forte raio de luz à câmara central do passage mound de Newgrange,
na Irlanda. A luz caminha lentamente, movendo-se pelo chão até alcançar a
parede do fundo, onde se eleva em um feixe de luz
vertical; permanece ali durante algum tempo, depois retorna pelo mesmo
caminho por onde entrou, deixando o observador mais uma vez na
escuridão dessa incrível caverna artificial. Quando o monte foi construído,
5.000 anos atrás, seus construtores alinharam-no cuidadosamente, para
permitir que a luz entrasse pela manhã, tanto antes quanto depois do
meio do inverno, todos os dias tocando um lugar preciso na parede, de
tal forma que mesmo que as nuvens obscurecessem o Sol no meio do
Inverno, as pessoas ainda saberiam que dia era contando as marcas.
Desde essa época, a inclinação da Terra deslocou-se ligeiramente, tornando o
efeito menos perfeito, embora ele ainda seja claro e visível.
A partir de 1849, Newgrange foi escavado o suficiente para qualquer
um testemunhar esse evento anualmente. Em 1867, George Russell, que
escrevia como A. E., descreveu uma visão do Deus Aengus aparecendo
como luz em "uma caverna imponente em forma de cruz", que podia
descrever Newgrange. Na virada do século, o raio de luz tornou-se uma
"lenda", espalhada pelo zelador do lugar, Robert Hickey, que levava os
visitantes locais para observá-lo e contava sua história para eles. Além
disso, em 1909, Sir Norman Lockyear, diretor do Solar Physics
Observatory, escreveu em seu livro Stonehenge and Other British Stone
Monuments Ástronomically Considered que Newgrange estava orientado
para o solstício do inverno. Mais ou menos na mesma época, W. Y Evans-
106

Wentz, um antropólogo que estava estudando o folclore irlandês,


descreveu Newgrange e os montes em Gravinis como orientados para o
Sol. (Segundo Marija Gimbutas, Gravinis está alinhado
fundamentalmente com as posições extremas da Lua.) Lockyear e Evans-
Wentz não viram a luz nem escreveram sobre ela. Mas Hickey a viu, e a
mostrou a outros, ano após ano.
Apesar disso, em 1960, Glyn Daniel, talvez o arqueólogo de maior
destaque de sua época, escreveu sobre essa "lenda": "É um estranho
relato duvidoso, que precisa de citação quase in totum como um exemplo
da confusão de bobagens e delírios daqueles que preferem os prazeres do
irracional e as alegrias do absurdo aos esforços de consideração exigidos
pela arqueologia." O estranho nesta rejeição do relato de Hickey é que tudo
que eles tinham de fazer era olhar. Somente em 1969, um arqueólogo
chamado Michael J. O'Kelly entrou em Newgrange antes do amanhecer,
no meio do inverno, e observou a luz. Quando publicou suas observações,
foi recebido com grande resistência, incluindo sugestões de que a luz fosse
uma ocorrência casual e até mesmo acusações de que O'Kelly tivesse
falsificado as evidências.
Este relato foi extraído do livro The Stars and the Stones, de Martin
Brennan (para dar ao professor Daniel o devido crédito sobre esta
questão, a edição em brochura do livro de Brennan inclui um endosso
positivo de Daniel). Brennan às vezes vai ainda mais longe em suas
declarações, e seus escritos iniciais apresentam algumas idéias, mas seu
trabalho incluiu notáveis descobertas de complexos alinhamentos solar e
lunar em toda a Irlanda. A maioria dessas descobertas originou-se de
observações diretas feitas por Brennan e Jack Roberts (tanto Brennan
quanto Roberts são artistas, colocados no mesmo nível de Merlin Stone,
Buffie Johnson, Vincent Scully, Monica Sjoo, Barbara Mor, Dorothy
Cameron, Anna Sofaer e Michael Dames). Além dei seus achados
encontrarem uma enorme resistência, eles muitas vezes tiveram de
rastejar até os vários montes para observar os efeitos dos diferentes
alinhamentos (Brennan chama isso de "espionagem arqueológica"). E,
mais uma vez, aqueles que tentaram desacreditar o trabalho de Brennan
e Roberts só precisavam repetir a experiência — para ver com seus
próprios olhos.
107

Formas Corporais
O próprio Brennan rejeita a idéia de qualquer representação
antropomórfica nos montes. Além disso, a forma não é estritamente
funcional. As passagens precisam ter uma determinada extensão para a luz
penetrar corretamente, mas não está claro que precisem ser cruciformes,
uma forma que a arquitetura sagrada sempre usou para retratar o corpo
humano. E a grande dimensão dos montes, sem falar em sua forma
arredondada, implica alguma importância simbólica, se não
ginecomorfismo (moldado como uma mulher). O amplo monte de
Newgrange cobre muito mais espaço do que seria necessário para cobrir
o interior. A passagem nos lembra uma caverna em uma montanha — ou
um útero.
Além de montes maiores, a Irlanda contém muitos "court cairns"
(montes da corte), assim chamados devido à entrada semicircular for-
mada por duas fileiras curvas de grandes pedras. Estes também contêm
aquela forma interior como um corpo com os braços e as pernas para
(ora. Podemos vê-la também no Grande Túmulo de West Kennet, o
passage mound retangular próximo ao Círculo de Pedra de Avebury, na
Inglaterra. E a encontramos também em santuários neolíticos na Polônia na
região anteriormente ocupada pela Iugoslávia.

Um Dia do Ano
Uma das descobertas de Brennan diz respeito a Dowth, terceiro na MTÍC
de montes gigantescos que incluem Knowth e Newgrange. Ao contrário
dos outros dois locais, Dowth não foi restaurado, de forma que aparece
como uma pequena colina verde, com árvores e grama alta. Quando
olhamos mais de perto, percebemos que esta colina, que parece natural,
contém uma "caverna" em sua base, com um portão de ferro bloqueando a
entrada. E se examinarmos a rocha nua na base da colina gramada,
descobriremos espirais entalhadas.
Segundo Brennan, a luz que penetra em Dowth vem do pôr-do-sol no
meio do inverno, e não do nascente como em Newgrange. Talvez as pessoas
que a tenham construído observassem um "dia" ritual no decorrer do ano.
Essa cerimônia com um ano de duração pode ter ocorrido em intervalos
especiais — digamos, a cada sete anos. (A importância do número sete na
108

religião não é arbitrária nem "arquetípica", derivando dos sete "planetas" —


incluindo o Sol e a Lua — visíveis aos povos antigos sem telescópios.)
O dia do ano se teria iniciado em Newgrange na madrugada do
solstício do inverno, continuando através do ano em locais diferentes
(possivelmente unindo diferentes comunidades de toda a ilha), com eventos
especiais em Knowth para os equinócios. Knowth, o maior e possivelmente
o mais complexo dos montes, tem duas passagens opostas, uma abrindo para
leste e a outra para oeste, para marcar tanto o nascente quanto o poente nos
dois equinócios — ou talvez o nascente no equinócio invernal e o poente no
equinócio outonal, quando o "dia do ano" se aproximasse do seu fim.
Finalmente, o dia ritual terminaria novamente no meio do inverno, mas
agora no pôr-do-sol, em Dowth.
Jamais poderemos testar essa especulação. Reconheço espontanea-
mente que ela é fantasiosa, mas acho que proporciona uma simetria à
grande rede de monumentos. E se liga à maneira como outras culturas
encaravam o mundo, e aos grandes eventos solares do ano, como uma única
criação, viva e plena de poder sagrado.
Os arqueólogos preferem evitar essas fantasias (e devem, pois pre-
cisam lidar com as evidências reais). Os arqueólogos contemporâneos
optaram por ignorar as questões religiosas (sem mencionar a evidência do
folclore) em favor da concentração nas condições econômicas e sociais dos
povos antigos. No livro The Megalithic Monumnts of Western Europe, editado
por C. Renfrew, Michael J. O'Kelly cita um artigo de autoria de A. Fleming
publicado em 1969, o mesmo ano em que o próprio O'Kelly confirmou a
luz em Newgrange: "A mãe-deusa já nos deteve por muito tempo; vamos
nos soltar do seu abraço." Ao que aqueles de nós que estamos explorando a
religião (re)emergente da Deusa poderíamos simplesmente responder: "Não
vamos não."

As Tumbas e os Arqueólogos
A arqueologia profissional descreve os megálitos de toda a Europa como
"tumbas", às vezes descrevendo a cultura neolítica como obcecada com a
morte, ou centralizada em torno de um culto do morto. Para um não-
arqueólogo, a insistência em ver todo monumento como uma tumba pode
parecer obsessiva. Os escavadores têm encontrado restos de esqueleto e
restos cremados em algumas estruturas megalíticas, mas de modo algum
em todas. Escrevendo sobre as estruturas circulares da Itália, Ruth
Whitehouse (em The Megalithic Monttments of Western Europe) cita a
109

observação de Lilliu de que apenas cerca de 50 mostravam sinais de uso para


sepultamento. "Na verdade," escreve Whitehouse, "somente três tumbas
têm realmente material proveniente de esqueletos." Whitehouse prossegue,
dizendo: "A maior parte dos dolmens (...) não tem mostrado remanescentes
de esqueletos nem artefatos (...) não sabemos se os dolmens destinavam-se
a sepultamentos individuais ou coletivos." Ela não parece considerar a
possibilidade de que eles não fossem de modo algum destinados a
sepultamentos.
A sociedade que construiu Newgrange presumivelmente usou-o
durante centenas de anos. Em 1967, as escavações revelaram ossos humanos
queimados e não queimados — para um total combinado de cerca de cinco
pessoas. Cinco — para uma estrutura tão complexa e imensa. Em Á Concise
Guide to Newgrange, Claire O'Kelly descreve esses restos como "suficientes
para mostrar que a tumba foi usada para sepultamento, e não, como tem sido
sugerido, como um cenotáfio ou um templo". Cinco, em uma vasta
montanha construída para captar precisamente o nascer do sol no inverno
durante milhares de anos.
Em muitos casos, ninguém datou os restos humanos encontrados nos
locais megalíticos, deixando aberta a possibilidade de que culturas
posteriores, ou comunidades individuais, os tenham utilizado como locais de
sepultamento. Mas mesmo que os restos pertençam a pessoas da cultura
original, porque isso as tornaria primariamente tumbas? Brennan comenta que
a Catedral de Westminster contém muito mais corpos do que Newgrange,
com um período de uso muito mais curto. Podemos considerar estes restos
mortais "suficientes" para dizer que Westminster não é usada para propósitos
religiosos? Aqueles que consideram todos os monumentos como tumbas
alegam que os assaltantes de tumbas removeram as evidências. Mas os
assaltantes de tumbas em geral procuram ouro e jóias. Por que carregariam
ossos? E mesmo que isso fosse possível, não há evidência real.
A hipótese da tumba tem uma longa linhagem. A lenda celta des-
crevia Newgrange como o local de sepultamento dos antigos reis de Tara.
Durante séculos, as pessoas de Wiltshire, na Inglaterra, consideraram a
Montanha Silbury uma tumba gigantesca para um imaginado Rei Sil. E
ainda que em geral não considerassem os círculos de terra ou os dolmens
como cemitérios, muitas pensavam neles como locais de sacrifício humano.
Estas crenças, entretanto, originaram-se das atitudes de culturas posteriores
que nada tinham a ver com tais monumentos.
O termo "culto do morto" pode se referir mais à nossa própria
cultura do que ao período neolítico. Que outra sociedade já enterrou cada
110

cadáver em seu próprio pedaço de terra particular, em caixões


ornamentados com metal e veludo, embalsamando-o, vestindo-o e ar-
rumando-o para parecer vivo, e homenageando-o com uma grande lápide de
mármore esculpida?
Questionar a hipótese da tumba para os megálitos não significa que
jamais se tenha pensado nelas como locais de sepultamento. É óbvio que
algumas estruturas megalíticas serviram inicialmente para sepultamentos.
Das 76 "tumbas" das Ilhas Orkney, somente 26 continham ossos
humanos. Entretanto, duas delas continham, respectivamente, 157 e 341
pessoas, o bastante, segundo Marija Gimbutas, "para representar todos os
mortos de uma comunidade inteira". Questionamos a hipótese da tumba
para podermos considerar uma variedade de possibilidades, científicas e
também religiosas, que podem ter coexistido na mente dos construtores. Se
os morros foram usados como tumbas, então a forma escolhida — e um
alinhamento para o nascer do sol nos cquinócios, ou meio do inverno —
sugere uma idéia de renascimento, com o morro circular como o útero, e o
de passagem como o canal do nascimento.

Local de Marcação
O arqueólogo Colin Renfrew sugere que os monumentos funcionavam como
"marcadores territoriais", significando que um grupo particular dominava
uma área de terra. É um pouco difícil entender como isto podia funcionar,
como um círculo de pedra, por exemplo, indicaria que porção de terra estava
sendo "reivindicada", ou por que alguns locais requeriam vários morros
imensos ou círculos tão próximos um do outro, e outros nada, ou por que
um montinho de pedra seria suficiente em um lugar, um dólmen em outro e
um passage mound gigantesco em um terceiro. Mas por que devemos rejeitar
a idéia, como alguns defensores da espiritualidade megalítica parecem fazer?
As pessoas frequentemente sentem necessidade de marcar sua presença.
Na Nova Inglaterra e no Estado de Nova York, inúmeras casas, igrejas,
bancos e shopping centers exibem pedras verticais bastante grandes (e em
geral bonitas), ou até linhas inteiras ou semicírculos feitos de pedra, em
entradas para automóveis, gramados, portões ou áreas de estacionamento.
Na minúscula cidade de North Salem, em Nova York, pode-se ver uma
enorme pedra de cerca de 90 toneladas, com a forma um pouco parecida
com a cabeça de uma cobra ou de uma tartaruga, apoiada sobre várias
pedras pequenas de calcário, todas de forma cônica c dispostas em um
triângulo isósceles. Os defensores dos megálitos norte-americanos
111

consideram este um dólmen (e alguns sugerem que as pessoas passavam sob


ele para um renascimento ritual). A arqueologia oficial o considera um
remanescente casual de uma geleira. Dólmen ou não, a pedra está muito
próxima da igreja local, e diante desta estão duas imponentes pedras
verticais, como um portão para o mundo espiritual.
Por que os megálitos não poderiam funcionar ao mesmo tempo
como marcadores e como realidades espirituais? Os seres humanos parecem
precisar se imprimir na terra. A semelhança do que ocorre com as
impressões de mãos na arte da pedra (elas também aparecem nas paredes de
Çatai Hüyük, incluindo a de uma criança em uma estátua do corpo da
Deusa), as construções de pedra muito maiores podem ter estabelecido um
local como território sagrado. Podem representar uma necessidade de tornar
visível no mundo o corpo invisível do poder espiritual.
As impressões de mãos em uma grande caverna transmitem uma
qualidade experimental, uma pequena atitude de presença. Na época dos
neolíticos, os humanos da Europa haviam adquirido confiança, de forma que
na Inglaterra podiam alterar a própria paisagem natural através da construção
de montanhas inteiras, como Silbury, ou esculpir o ladc de uma montanha já
existente em uma forma labiríntica, transformando a terra natural em algo
feito pelo homem, como em Glastonbur (ver Capítulo 5 para o "labirinto"
de Glastonbury).
A idéia do "selvagem" como algo intocado e puro parece ser conceito
europeu relativamente moderno, em que criamos uma dualidade em nosso
mundo civilizado ou seja, lugares habitados pelos próprios humanos, e a
selva, habitada por animais e selvagens. Com a urbanização do mundo,
temos nos tornado nostálgicos do "selvagem", mas isto é realmente apenas o
outro lado daquela antiga crença na natureza come perigosa, má, estranha —
e feminina.
Muitas culturas não estabeleceram uma dicotomia entre território
humano, seguro, e o selvagem fora dali. Veja o mundo todo como o corpo, e ele
se torna sagrado. Isto pode conduzir a um desejo de entender a paisagem
natural e mapeá-la de maneira muito precisa, assim como os místicos vão a
Shiur Komah "medir o corpo" de Deus (ver Capítulo 1). Este mapeamento é
espiritual, mas também prático, pois as pessoas precisam conhecer os
padrões da natureza. Precisam saber como encontrai caça e água. Onde
começa e termina o território de cada grupo, não apenas para que possam
evitar conflitos, mas também para que possa cuidar da terra e ser
responsáveis por ela. Estas necessidades prática não excluem, mas antes
complementam, a urgência espiritual de unirmos nossos próprios corpos aos
112

corpos da terra. Ou, para inverter isso, podemos dizer que perceber a
paisagem natural como o corpo divino proporciona um contexto poderoso
para o valor prático do território mapeado.

As Canções Orientadoras dos Aborígines Australianos


Os aborígines australianos consideram todos os aspectos da paisagem
natural como o corpo de um "Sonhador", um ancestral mítico que entrou
dentro da terra e agora aparece como uma fonte de água, uma montanha ou
um arbusto. Cada aspecto é mapeado. As pessoas conhecem a terra
intimamente, e podem percorrer, às vezes sozinhas, grandes distâncias
seguindo estes mapas, que são ao mesmo tempo precisos e espirituais.
Nas últimas décadas, as pinturas elegantes e abstratas dos povos
aborígines tornaram-se famosas em todo o mundo. Elas retratam a
paisagem natural em grandes detalhes simbólicos. Apesar disso, os
aborígines não as utilizam como seus mapas. Estes não são feitos com
desenhos, mas com canções. Isto pode parecer estranho para as pessoas de
descendência européia, na medida em que consideramos uma canção-mapa
quase uma façanha psíquica, uma variedade de mágica ou telepatia. Mas por
que um diagrama ou um pedaço de papel funcionaria melhor como mapa do
que uma canção? Qualquer mapa é uma criação humana, uma metáfora para
o mundo. Seu valor está na maneira precisa e acurada como a metáfora
descreve o território. Dolores La Chapelle escreve que os índios do deserto
californiano seguiam rastros que mapeavam com canções. Há evidência de
comércio e migração através do Oceano Pacífico no período pré-histórico,
desde a Nova Guiné até as Américas. Alguns acreditam que os marinheiros
que cruzavam essas grandes distâncias, indo de ilha para ilha, usavam
canções-mapas para seguir as estrelas e as correntes.
Além de guiar as viagens, as "canções orientadoras", como as
chamou o escritor inglês Bruce Chatwin, definem o território. Grupos
tribais ou indivíduos sentam-se nos marcos de delimitação e cantam suas
canções, compartilhando-as segundo um sistema complexo de res-
ponsabilidade pessoal e grupal. O sistema funciona prática e eficientemente
em muitos níveis e tem ajudado as pessoas a viver há dezenas de milhares de
anos em vários ambientes, frequentemente adversos. E é também sagrado. O
prático e o sagrado não se contradizem, mas apóiam um ao outro. O poder
sagrado das canções permite às pessoas lembrar-se delas e proporciona-lhes
a autoridade que já dura tanto tempo. Na Austrália contemporânea, o
113

governo nacional tem aceitado a arte e as canções sagradas como


testemunho em casos de direitos de terra.
Embora os aborígines australianos vivam em uma terra e em uma
cultura muito afastadas em tempo e lugar dos construtores megalíticos
europeus, podemos aprender com eles que ver a terra como o corpo divino
não exclui, antes aumenta, um relacionamento prático com a Terra.

As Espirais do Sol e da Lua


Em nosso tempo, a ciência tem se esforçado para se separar da religião e
oferecer um quadro "puro" das realidades físicas. Esta situação surge em
parte porque a religião separou-se da ciência na Idade Média e na
Renascença, com as doutrinas oficiais da Igreja se tornando mais rígidas,
não mais preocupadas em refletir o que as pessoas realmente sabiam da
existência. Isto, por sua vez, derivou de uma religião baseada em um Deus
transcendente, que é mais importante que o mero mundo físico, e do
conhecimento que vem mais de um livro que da observação da natureza. Para
se libertar desse embrutecimento, a ciência assumiu toda religião como uma
superstição. Somente agora começamos a descobrir as grandes profundidades
das observações codificadas nas estruturas religiosas neolíticas e em outras
estruturas religiosas "primitivas".
Quando se vincula ao corpo divino da natureza, quando se torna um
aspecto desse corpo, o conhecimento científico ganha em poder também
em significado. As imagens extraídas da natureza tornam-se símbolos
sagrados, os quais depois retornam rumo a um conhecimento mais
sofisticado do mundo. O conhecimento não se move em linha reta, mas em
espiral, abrindo-se a partir de uma observação central para uma consciência
cada vez mais ampla. A imagem é adequada não apenas porque
encontramos espirais na arte sagrada de todo o mundo, mas também porque
a própria espiral é um exemplo da mistura de conhecimento científico e
simbolismo espiritual.
Já vimos como as imagens das espirais podem ter derivado de caracóis
e outras formas naturais, desde as conchas do mar até as galáxias. As
imagens de espirais podem também seguir os padrões do Sol e da Lua. O
Sol nascendo e se pondo sugere um círculo (com a metade inferior do círculo
invisível), mas este fica maior ou menor com a mudança de posição do Sol a
cada dia. Quando nos movemos do solstício do inverno para o solstício do
verão, o círculo começa em um ponto mais amplo cada dia, de forma que o
movimento aparente realmente forma uma espiral no sentido horário
114

(quando de frente para o sul, a direção do Sol). Na outra metade do ano, a


espiral aparente mantém-se no sentido horário, mas se encolhe, em vez de
se expandir.
Uma espiral mais complexa se desenvolve se mapeamos a posição
diferente do Sol ao meio-dia no decorrer de um ano. Charles Ross — outro
artista — mapeou o Sol usando uma lente no telhado do seu estúdio em
Nova York para queimar uma marca na madeira todos os dias ao meio-dia.
A ordenação de todas as marcas revela uma espiral dupla, invertendo a
direção do inverno para o verão (ver Figura 6). A forma da espiral dupla
aparece nos passage mounds irlandeses, compondo também um símbolo de
migração para nativos americanos do sudoeste dos Estados Unidos (ou seja,
um marcador ao longo do caminho que seguiriam no decorrer do ano, o
mesmo período de tempo que o Sol leva para criar essa imagem da espiral
dupla).
O caminho da Lua é mais sutil, pois embora ela nasça no leste e se
ponha no oeste, seu caminho através do mês forma, segundo Martin
Brennan, "uma espiral cujos saltos sucessivos cruzam a eclíptica em um
movimento anti-horário, na direção oeste, oposta à direção do Sol e dos
planetas" (Brennan, The Stars and the Stone).

Figura 6: Desenho do caminho do Sol no decorrer de um ano. Construção de Charles Ross, "Sunlight
Convergence, Solar Burn: The\fear Shape", 1972. j

Podemos interpretar as espirais opostas como representações do Sol e da


Lua. Por isso, várias espirais traçam os padrões de nossos mais importantes
corpos celestes. Mas o Sol e a Lua não são simplesmente objetos no céu
proporcionando luz e calor; são também símbolos. Significam as diferentes
qualidades do dia e da noite. Representam a simplicidade e a complexidade, a
racionalidade e a intuição e, em algumas culturas, o masculino e o feminino.
Em um nível psicológico mais complexo, o movimento das espirais de
sentido horário nos conecta com o Sol. As espirais de sentido horário evocam
envolvimento com o mundo e com o aumento da energia. As espirais de
115

sentido anti-horário podem provocar separação e desprendimento do mundo


externo (uma sensação de "voltar para dentro") ou uma liberação de energia. E
elas fazem isso em um nível subconsciente. Conseguimos esta reação no
movimento corporal, com danças espiraladas. As espirais frequentemente
surgem de forma espontânea nas mentes das pessoas durante a meditação. Esta
reação emocional intuitiva às espirais acontece por causa do Sol e da Lua, e do
que ambos significam em nossas vidas. Estes símbolos — o Sol, a Lua, seus
movimentos e seus caminhos espiralados — não são intelectuais. Eles afetam
nossos corpos de maneira consciente e inconsciente.
As imagens de espiral dupla aparecem em muitos lugares, como os
templos de Malta, onde há pouca sugestão de alinhamentos astronômicos.

Fígura 7: Desenho de espirais em uma estatueta da Deusa encontrada em Cucuteni — uma cultura da Ro-
mênia—, c. 4300 a.C. (segundo Gimbutas).

(Paul I. Micallef elaborou um estudo sobre o templo maltês, Mnajdra, como um


calendário marcando os solstícios e os equinócios; entretanto, ele considera Mnajdra
único entre os monumentos malteses.) As espirais duplas também aparecem em muitas
estatuetas da Deusa — tantas, na verdade, que O. G. S. Crawford descreveu espirais
duplas (e outras formas) como "as Deusas Olhos", sugerindo que, onde ocorreram, as
formas "oculi” por si só significam a Deusa através do seu poder de visão.
116

Nas pedras irlandesas, perto de Newgrange e Knowth e em morros menores e


nos montículos de pedra, espirais isoladas e duplas (e às vezes triplas) aparecem sem
nenhuma imagem circunjacente. Em outros lugares, contudo, elas aparecem diretamente
no corpo da Deusa. Uma maravilhosa figura da Romênia, em Cucuteni, c. 4300
a.C., exibe espirais opostas nas nádegas (ver Figura 7).
Quando pensamos nos montes e no corpo feminino, pensamos primeiramente
nos seios ou na barriga grávida. No entanto, a arte paleolítica e neolítica
frequentemente enfatiza as nádegas, às vezes exagerando-as para uma sugestão de
colinas ou montanhas. Na maioria dos mamíferos, o macho monta na fêmea
por trás. Os primeiros hominídeos podem ter feito o mesmo, com a prática
continuando até o Homo sapiens. Na relação sexual, portanto, as nádegas vão
se elevar antes da entrada para a misteriosa escuridão da vagina, fonte da vida
e passagem para os segredos invisíveis do corpo feminino. As espirais
opostas nas nádegas da Deusa de Cucutenipodiam significar a presença mais
poderosa do mundo iluminado visível, o Sol e a Lua, na própria abertura
para o local invisível da escuridão criativa.
117

5 - O Corpo de Pedra Construído – Parte 2

Nossos corações são chagas para o ultraje à ordem das antigas deusas.

Jane Ellen Harrison

Quando pensamos na Idade da Pedra Polida, pensamos nos círculos e nos


montes, e talvez nas fantasias hollywoodianas de pessoas com túnicas longas
realizando rituais sob a luz da Lua. Mas também podem nos vir à mente
aspectos menos óbvios desse mundo distante. Era um tempo em que a
adoração dos animais e do corpo feminino por parte dos paleolíticos se
fundia, de forma que junto a estátuas da Deusa como mulher encontramos a
Deusa adorada como uma abelha, ou como uma vaca. E além do mundo
animal nós a encontramos incorporada em algumas árvores, e até em coisas
feitas pelo homem, como os nós. Era uma época em que a humanidade
penetrava em um tempo revolucionário de invenções, desenvolvendo tanto
tecnologias quanto estruturas sociais que iriam possibilitar todas as
sociedades posteriores, inclusive a nossa. E o mais incrível de tudo é que
era uma época em que as pessoas não se matavam umas às outras.
Quando observamos essa época, e o recorde surpreendente de não-
violência, nos deparamos fazendo várias perguntas. Primeiro, e acima de
tudo, ela realmente existiu? Ou estamos criando uma fantasia a partir de
evidências parciais e dos nossos próprios anseios? Poderia ter realmente
existido uma cultura composta de seres humanos adoradores da Deusa, sem
assassinatos nem guerras? E como tudo isso terminou? Será que nos
movemos de um mundo matrifocal pacífico para um patriarcado violento
devido a algum passo necessário da evolução, ou tudo de alguma forma
118

simplesmente deu errado, ficando perdido em uma tragédia que não


conseguimos sequer começar a avaliar?
A Era da Não-Violência
A cultura neolítica tem recebido muita atenção na religião contemporânea
da Deusa. Há várias razões para isso. Como no período paleolítico anterior, os
remanescentes do período neolítico estão repletos de imagens femininas,
desde pinturas nas paredes dos santuários até grandes esculturas e pequenas
estatuetas. E há também os megálitos, com sua evocação mais abstrata do
feminino em formas arredondadas e interiores que se assemelham a úteros. O
mais incrível de tudo, no entanto, e até mesmo revolucionário, é que este
período que durou vários milhares de anos não mostra virtualmente
nenhuma evidência de guerra, agressão ou violência cotidiana.
Se estas pessoas realmente viveram sem violência, podemos supor que
conseguiram isso através de uma religião concentrada em torno da
maternidade. Também podemos supor que essa calma seria proveniente de
uma visão de mundo enraizada na Terra e em nossos próprios corpos.
A ausência de evidência de violência no período neolítico é tão
completa que chega a ser quase inacreditável. Nos locais em que os
escavadores encontraram sepultamentos em massa, seja de grandes
comunidades ou de pequenos grupos durante um longo período de tempo,
virtualmente nenhum dos corpos mostra qualquer sinal de morte violenta
— nem de guerra, nem de ataques, nem mesmo de luta entre vizinhos.
Possivelmente, as pessoas daquela época consideravam a morte violenta um
aviltamento e não enterravam as vítimas de violência junto com as outras
pessoas. Entretanto, ninguém encontrou qualquer evidência nesse sentido, e
mesmo que tal ocorresse, isso só indicaria uma profunda aversão pela
violência. Compare essa atitude com a glorificação da matança heróica das
culturas posteriores.
A evidência da não-violência vai além das mortes individuais. A
cidade neolítica escavada próximo a Çatal Hüyük, em Anatólia, na Turquia
(em geral chamada simplesmente de Çatai Hüyük), é uma das cidades mais
antigas do mundo, datando de 7250-6150 a.C. O arqueólogo James Mellaart
encontrou evidência de 800 anos de habitação contínua. Nem uma vez o
registro arqueológico mostra sinais de um saque ou de um massacre —
nenhum em 800 anos.
Os construtores da Çatai Hüyük neolítica, como os de muitas outras
cidades da Idade da Pedra Polida, nem mesmo parecem pensar na defesa
como um critério quando escolhem o seu território. Altas fortalezas em
119

montanhas cercadas por muros só aparecem na Idade do Bronze, quando os


invasores indo-europeus destroem a civilização anterior, que havia durado
mais de 3.000 anos. Em alguns exemplos, os habitantes de uma cidade
parecem ter escolhido o seu território em função principalmente da estética,
no desejo de um ambiente agradável. Em Creta, que sustentou as estruturas
sociais e religiosas neolíticas até um período posterior de desenvolvimento,
as cidades e os palácios foram construídos em locais em harmonia com
determinadas formações naturais. Embora isso frequentemente deixasse seus
habitantes em posições militarmente vulneráveis, não encontramos nenhum
muro ou fortificações. Outras considerações para a localização dos
povoados neolíticos incluíam boa água e bom solo, e terra de pastagem
conveniente para os animais recém-domesticados.

Glastonbury Tor e Avebury


Nos locais onde as sociedades posteriores investiram grande volume de
recursos na fortificação, os neolíticos construíram monumentos.
Glastonbury Tor, na Inglaterra, é uma incrível montanha que se tornou
famosa por sua associação com a lenda do Rei Artur. Em algum ponto do
passado, as pessoas acentuaram a beleza natural da montanha moldando um
lado dela em uma série de terraços. Estes formam uma espécie de labirinto
que alguns acreditam tenha sido usado para danças processionais. (Os
neopagãos contemporâneos têm realizado procissões alegres em Glastonbury,
ver Foto 13)- Um panfleto sobre Glastonbury Tor apresenta razões muito
interessantes para as pessoas da Idade da Pedra terem realizado a escavação.
Primeiro, a montanha não é adequada para a defesa ou a agricultura, e por
isso deve ter servido a um propósito religioso. Segundo, as culturas
posteriores gastaram tempo, recursos e energia demais defendendo-se dos
invasores. Podemos acrescentar que as culturas posteriores não se dedicaram
ao que poderíamos chamar de estética sagrada — transformando toda uma
montanha em um campo de dança cerimonial.
Assim como os cretenses harmonizavam a paisagem natural através
da construção de um palácio, ou os aborígines australianos mapeavam todas as
características da terra como um ancestral divino, ou os pintores da Idade da
Pedra Lascada usavam a forma da parede da caverna para expor imagens de
animais, também a escultura da montanha de Glastonbury implica ver um
poder divino no interior da terra e sentir a necessidade da ação humana
trazer à vida esse corpo escondido.
120

Os construtores neolíticos criaram monumentos para rivalizar com as


próprias montanhas, uma atividade que requeria uma dedicação maciça dos
recursos. O Círculo de Pedra de Avebury forma uma parte de um grupo de
monumentos que inclui a Montanha Silbury e um comprido monte
retangular chamado Grande Túmulo de West Kennet. Os arqueólogos
estimam que deve ter sido necessário um milhão e meio de horas de trabalho
para construir o complexo de Avebury.

A Não-Violência e a Arte
No período neolítico, não encontramos a glorificação da guerra e da
matança, tão proeminente nas sociedades posteriores. Em Çatai Hüyük, 150
pinturas sobreviveram nas paredes. A arte era evidentemente importante
nesta cidade bastante antiga (Mellaart enfatiza que era realmente uma
cidade, não uma colônia temporária), e, entre essas 150 pinturas, nenhuma
mostra batalha, guerra ou tortura.
Em Creta, também, a arte elegante encontrada em todas as ruínas não
mostra cenas de guerra. Os arqueólogos encontraram armas nesses locais.
James Mellaart relata evidências em Çatal Hüyük do uso de estilingue, arco
e flecha, e lanças. Mas todos estes artefatos eram tanto instrumentos de caça
quanto armas, e por isso não podemos supor que representem evidência de
guerra. O mais significativo é que nenhuma arma aparece na arte. Segundo
Stylianos Alexiou, no livro Minoan Civilization, Creta tinha uma marinha e
travou batalhas no mar. Entretanto, na própria Creta as fortificações
permaneceram desconhecidas e nenhuma batalha naval aparece na arte. Os
cretenses podem ter combatido estrangeiros, mas viviam pacificamente entre
eles.
Assim como não mostra evidências de violência, a arte neolítica não
exibe glorificação de um chefe ou governante, seja homem ou mulher. Nos
afrescos e brasões murais cretenses, vemos principalmente grupos de pessoas
realizando juntas atividades como danças ou sacrifícios de touros. Algumas
mulheres são em geral Deusas, ou talvez sacerdotisas, mas não rainhas. Só
uma vez aparece uma imagem masculina individual, e esta figura, um jovem
gracioso segurando flores, dificilmente sugere o todo-poderoso "Rei Minos",
descrito pela posterior lenda grega patriarcal.
121

A Igualdade Social e a Questão do Matriarcado


Juntamente com as indicações de que havia uma ausência de violência,
encontramos sinais de igualdade social. Os remanescentes neolíticos não
mostram indicações de escravidão, tão comum nas culturas posteriores. Não
mostram uma estrutura de um Deus-rei todo-poderoso (e rico) ou de uma
classe dominante, e não parecem mostrar grandes desigualdades entre
homens e mulheres.
Este é um tema difícil. Em alguns casos, encontramos sinais claros de
mulheres em uma posição superior, de forma que enfrentamos a
possibilidade de que o que vimos nos últimos 5.000 anos foi uma simples
reviravolta do que havia antes. Quando os historiadores e antropólogos
começaram a investigar a questão das culturas pré-patriarcais, formularam
duas hipóteses. Primeiro, que essas culturas formaram um estágio
evolucionário anterior no desenvolvimento da humanidade, necessário até
certo ponto — como também sua destruição em favor de um patriarcado
mais civilizado e mais dinâmico foi necessário. Na verdade, como veremos
mais adiante neste capítulo, o período neolítico foi possivelmente o mais
criativo da história humana.
A segunda hipótese dizia respeito à idéia do "matriarcado". Se os
homens não dominavam nem subjugavam as mulheres, então as mulheres
devem ter dominado e subjugado os homens. A intelectualidade feminista
moderna desenvolveu um modelo diferente para a cultura neolítica, ou seja,
de uma sociedade "matrifocal" ou "matrística". Estes dois termos referem-se
à idéia de uma sociedade "centralizada na mulher", não governada pela
mulher. (Na verdade, para ser mais precisa, "matrifocal" significa
"centralizado na mãe", e "patriarcado" significa literalmente "liderança dos
pais".) Nessa situação, o pensamento e as práticas espirituais giravam em
torno de uma Deusa, e o nome e a propriedade passavam de mãe para filha.
Neste modelo, conselhos de mulheres tomavam as decisões para o clã,
mas não escravizavam os homens nem os excluíam do poder na sociedade
nem da tomada de decisões. O modelo depende em parte da idéia da Deusa
Mãe amando igualmente Seus filhos homens e mulheres, e em parte
daquelas imagens de homens que aparecem na arte neolítica, como uma
pintura em Çatal Hüyük de um homem e uma mulher se abraçando.
122

O Registro dos Sepultamentos


Os sepultamentos e as honras prestadas aos indivíduos e aos grupos podem
nos contar muita coisa sobre as posições relativas dos diferentes membros
da sociedade. A evidência de registro de sepultamentos não proporciona
um quadro consistente em relação ao status dos homens e das mulheres no
período neolítico europeu. Em alguns lugares, encontramos muito pouca
distinção entre homens e mulheres. Em outros, vemos evidência de
mulheres extremamente homenageadas e homens quase negligenciados.
Em parte alguma, no entanto, encontramos diferenças tão extremas quanto
aquelas que apareceram mais tarde, na era dos guerreiros e dos reis.
Nas culturas de Sesklo, Starçevo e Karanovo, de 7000-6000 a.C, no
sudeste da Europa, as crianças e as pessoas jovens de ambos os sexos,
como também as mulheres adultas, eram sepultadas sob os pisos das casas.
Não aparecem túmulos de homens adultos. Em contraste, os túmulos das
Ilhas Orkney, da Bretanha, da Normandia e do sul da Inglaterra mostram
números iguais de homens e mulheres. Embora em alguns lugares as
mulheres e os homens fossem sepultados separadamente, em outros
mulheres e homens, crianças e adultos são encontrados em sepultamentos
coletivos. Em geral, não vemos nenhum padrão distinto de diferenças
extremas de poder entre mulheres e homens.
Os objetos encontrados nos túmulos também sugerem os diferentes
papéis de homens e mulheres. A julgar pelos instrumentos e com eles
objetos sepultados, os homens em geral aparecem como artesãos, e as
mulheres como ceramistas. As mulheres às vezes parecem dedicadas à
beleza e à arte, tanto para o adorno pessoal quanto para o simbolismo
espiritual. A cultura Lengyel, da bacia do Rio Danúbio, sepultava os
homens com machados de pedra e martelos-machados feitos de chifres, e
as mulheres com jóias e vasos decorados com espirais e meandros. Estes
símbolos significam mais que adorno. As espirais e os meandros aparecem
na arte e nas estatuetas da Deusa durante milhares de anos (para
informações sobre os túmulos, ver Gimbutas, Civilization of the Goddess.
Em Çatai Hüyük, as mulheres dormiam em grandes plataformas de
frente para o leste, em direção ao Sol nascente. Os homens dormiam em
pequenas plataformas que não estavam voltadas para nenhuma direção
específica. Será que isto significa que os homens não importavam? Ou que
os corpos das mulheres carregavam o poder sagrado da fertilidade?
123

Se as mulheres receberam mais atenção e respeito que os homens na


cultura neolítica, isto certamente ocorreu em um nível sutil em comparação
com as desigualdades surgidas mais tarde. Nas sociedades patriarcais,
encontramos a escravização das mulheres, mulheres enterradas vivas com
um chefe morto, mulheres tratadas como propriedade e mulheres
confinadas por lei à casa do seu marido, de forma que não podiam sequer
sair à rua. Não há evidência de tratamento similar para os homens em
época nenhuma do período neolítico, quer no registro dos sepultamentos,
na arte ou nos restos escavados.
Nas culturas posteriores, encontramos o rei ou chefe enterrado com
grande riqueza e frequentemente com escravos. Por outro lado, as figuras
honradas na cultura neolítica — mulheres idosas e em alguns casos meninas
adolescentes — recebem oferendas e objetos bonitos, mas nada que sugira a
exploração das classes "inferiores".

Túmulos Individuais
As vezes, a honra nos sepultamentos envolvia mais simbolismo do que
riquezas. Na Polônia, os arqueólogos encontraram um túmulo de uma
mulher de 50-60 anos de idade. O túmulo continha um recipiente "cheio até a
borda" — segundo a professora Gimbutas — de ocre vermelho. Isto pode
ter significado mais que honra ou até mesmo simbolismo. O ocre vermelho
implica poder sagrado, e um recipiente cheio dele representa riqueza
espiritual (compare com a grande quantidade de ouro enterrada com os
chefes guerreiros posteriores). Se as mulheres agiram como chefe durante a
vida, as pessoas podem ter buscado sua benevolência como um espírito
ancestral após a morte.
Nas culturas neolíticas, a comunidade pode ter homenageado as
mulheres mais velhas em parte por sua sabedoria e experiência de vida, mas
também porque era menos comum as pessoas viverem após a meia-idade. As
mulheres, particularmente, teriam sido homenageadas porque,
individualmente, incorporavam o poder criativo da Deusa, e porque esse
poder era transmitido de mãe para filha pelo meio mais natural possível — o
ato de dar à luz.
A incorporação da Deusa nas mulheres proporciona-lhes autoridade.
Como esse poder chega muito naturalmente, as mulheres mais velhas
podem não ter sentido necessidade de subjugar os homens. O poder viria então
de seus corpos, não simplesmente dos controles sociais. Em algumas nações
norte-americanas, em especial os povos da confederação dos iroqueses, as
124

pessoas criavam um equilíbrio em que o conselho das mulheres mais velhas


tomava decisões mas também indicava homens para posições de autoridade
na comunidade. Alguns anos atrás, a nação dos mohawks organizou um
levante contra os governos canadense e norte-americano. Antes de ir para a
batalha, os guerreiros mohawks contaram à mídia que precisavam consultar
suas avós. "Avó" é um termo usado pelos nativos americanos para indicar uma
mulher idosa poderosa.
Se uma mulher idosa recebia homenagem como anciã, como con-
sideramos os exemplos de meninas adolescentes sepultadas com tributos? No
cemitério de Cernica, descoberto em Bucareste, o túmulo mais rico, com dez
pulseiras e muitas pérolas, continha uma garota de cerca de 16 anos. Em um
cemitério do período dos cucuteni posteriores, na Moldávia, os escavadores
encontraram dois túmulos de meninas de cerca de nove-dez anos de idade. Os
túmulos dos cucuteni continham vasos, contas, espirais finas e delgadas, e três
estatuetas da Deusa em cada um deles. Nenhuma outra sepultura continha
três estatuetas. (Observe o grau ainda modesto de riqueza nesses túmulos
especiais.) A comunidade pode ter homenageado as jovens simplesmente
pela emoção de sua morte precoce. Possivelmente, eram filhas de uma líder
da comunidade, uma sacerdotisa ou anciã.
A importância das mulheres idosas e das garotas adolescentes pode ler
derivado do poder da menstruação e do parto. Em algumas culturas, as
pessoas acreditam que as mulheres após a menopausa mantêm o poder do
sangue menstrual contido dentro de seus corpos. Em geral, em uma
comunidade de adoração à Deusa, quando uma mulher passava da idade de ter
filhos, aumentava não só sua sabedoria, como, frequentemente, seu poder de
cura. Ao contrário, uma garota que morria antes de dar à luz a próxima
geração podia levar seu poder ao túmulo como uma bênção à terra, ajudando
as plantas a crescer.

Uma Multiplicidade de Deusas


Se as pessoas do neolítico realmente viviam sem violência ou desigualdade
em massa, será que isso necessariamente derivava da adoração à Deusa?
Nem todos aceitam a idéia do período neolítico concentrado nas mulheres.
Alguns intelectuais e críticos têm censurado Marija Gimbutas por ver
Deusas em tudo. Muitas vezes, os críticos supõem que "Deusa" significa a
"Mãe Deusa", como se as mulheres só realizassem uma única função. Se as
imagens não as mostram como maternais, elas não podem ser Deusas.
125

Entretanto, a professora Gimbutas sugere que a Deusa exibia características


diferentes, descrevendo quatro categorias de divindades na "Velha Europa"
neolítica: 1) forças geradoras da natureza, particularmente o nascimento e a
manutenção da vida, uma categoria que incluiria o cultivo das plantas e o
leite dos seios da Deusa; 2) morte; 3) regeneração, ou seja, os ciclos da vida;
e 4) divindades masculinas, que compreendem três-cinco por cento das
imagens religiosas, e que em geral aparecem com uma figura feminina,
como o amante ou filho da Deusa. Cada uma destas áreas sagradas deriva
diretamente do corpo, e sua expressão no nascimento, na morte e na sexu-
alidade.
As imagens femininas aparecem em muitas formas, em grande
abundância através dos milhares de anos da Idade da Pedra Polida, assim
como apareceram na Idade da Pedra Lascada. Aparecem também em maior
variedade. Encontramos entalhes realistas e "nus rígidos" quase
geométricos, às vezes com longos pescoços sem cabeças. A escultura de
estatuetas continua a ser encontrada, e também estátuas monumentais. Em
Malta, os escavadores encontraram pequenas esculturas, que cabem
facilmente nas mãos, de uma Deusa dando à luz, uma mulher dormindo em
um diva, uma figura em estilo paleolítico com grandes seios e quadris, outras
figuras com os peitos planos e quadris amplos, algumas nuas, outras
usando saias, e assim por diante; mas encontraram também enormes
estátuas, incluindo a metade inferior de uma grande versão das figuras com
saias, em que só a saia e as pernas tinham um metro de altura.
Quando os arqueólogos escavaram Jerico (uma cidade milhares de
anos mais velha que o relato dos hebreus de sua destruição), encontraram
estátuas da Deusa em todos os aposentos. A expressão bíblica "terra
abundante de leite e mel" provavelmente derivou-se da religião da Deusa,
pois o leite sai de seus seios, enquanto as abelhas, fabricantes do mel,
permaneceram sagradas para a Deusa durante milênios, até os tempos
clássicos.
Como Jerico, Nínive (descrita no livro de Jonas como uma cidade
totalmente pecaminosa) foi uma cidade neolítica próspera e culturalmente
desenvolvida. Os escavadores encontraram estatuetas sem cabeça da Deusa,
agachadas em posturas de dar à luz. A Bíblia descreve as duas cidades como
más precisamente porque as pessoas de lá adoravam a Deusa.
Os modelos de construção encontrados em vários locais tornam
explícita a conexão entre a Deusa e os templos ou moradias. Eles mostram
um corpo sobrepujado pela cabeça, ou cabeça e corpo, de uma mulher. Na
verdade, até mesmo no mundo de hoje, muitos povos, como os dogons da
126

África, consideram as casas como o corpo de uma mulher. (Os dogons


equilibram isso projetando toda a aldeia como a silhueta de um homem.)
Mellaart comenta que as estruturas vistas nos restos de Çatai Hüyük
mudaram no decorrer de centenas de anos, mas a posição de determinadas
coisas na casa permaneceu constante, como a escada (as pessoas entravam
pelo teto), a lareira e o forno. Cada um desses itens sugere o corpo da Deusa.
Descer do teto por uma escada poderia simbolizar a entrada do grande
mundo, do céu, no útero da Mãe. A lareira proporciona o calor da própria
vida, enquanto o forno demonstra o milagre da criação. Como vimos no
Capítulo l, Mellaart encontrou estatuetas da Deusa no alto dos fornos.

A Senhora das Bestas


Nas cavernas paleolíticas, o relacionamento entre as imagens da
Deusa e as pinturas dos animais implicava a idéia da Deusa como senhora dos
animais, ou, como a chama Buffie Johnson, Senhora das Bestas. No
período neolítico (e períodos posteriores), isto se torna muito mais ex-
plícito e vemos a Deusa com vários animais. Uma pintura em Çatai
Hüyük mostra-a calmamente dando à luz sentada em uma cadeira tipo
trono, flanqueada por leões. Ela vai aparecer muitas vezes com uma
cabeça de pássaro ou com cobras enroladas em volta do corpo. Os próprios
animais muitas vezes representam a Deusa. Eles incluem cobras, veados,
peixes, ursos, ouriços, borboletas, porcos, sapos e rãs.
Esses animais não eram a divindade, mas sim incorporações de
Seu grande e variado poder. Mellaart não encontrou evidência de
adoração animal efetiva em Çatai Hüyük. Na verdade, diz ele, a Deusa
foi retratada na forma humana. Ao mesmo tempo, as qualidades de
determinados animais incorporavam aspectos do Seu corpo humano.
Por exemplo, o sapo e a rã tornaram-se importantes porque sua forma
lembra a de uma mulher agachada para dar à luz. A divindade egípcia
mais antiga conhecida, a Deusa Heket, assume a forma de um sapo.
Mais tarde, Heket apareceu como parreira para o nascimento do Sol.
O touro e em particular a cabeça e os chifres do touro tornaram-se
especialmente importantes no período neolítico. Em Çatai Hüyük, as
cabeças de touro, oubucrania, aparecem em uma câmara aparentemente
usada para dar à luz. A incrível semelhança entre a cabeça e os chifres de
127

um touro e o útero e as trompas de Falópio de uma mulher foi percebida


pela primeira vez por Dorothy Cameron, quando ela estava trabalhando
com James Mellaart. Grandes chifres de touro foram encontrados em
túmulos na Sardenha. Possivelmente, eles simbolizam a regeneração.
Algumas comunidades neolíticas enterravam as crianças sob o chão da
casa, com bucranias e chifres colocados ao lado delas.
Os chifres das vacas e dos touros assemelham-se à Lua crescente e
minguante, demonstrando uma razão para sua importância para a Deusa.
Através da Lua, os chifres tornaram-se ligados ao poder corporal da
menstruação. As pessoas podem ter considerado o chifre o foco da tre-
menda vitalidade do touro. Em Creta, os rapazes e as moças dançavam
com os touros agarrando seus chifres e se lançando acrobaticamente
sobre as suas costas. Conhecemos o esporte por um afresco no palácio de
Cnossos. Nele, as mulheres e os homens aparecem quase idênticos, seus
corpos graciosos e fluidos, muito diferentes do matador rígido dos séculos
posteriores, que não vê o touro como uma fonte de vida, mas como um
meio de testar seu próprio domínio da natureza, através da conquista e
do abate.
É interessante notar que as pinturas mostram as dançarinas-touros
usando artefatos que dão à virilha a imagem dos genitais masculinos. Por
outro lado, os quadros dos homens nas cerimônias religiosas mostram-nos
vestidos com saias guarnecidas de babados. Os dois tipos de pintura
contam-nos que os cretenses consideravam algumas atividades, como o
esporte e a dança do touro, masculinas, e outras, inclusive o sacrifício
dos mesmos touros, femininas. Entretanto, precisamos entender que eles
consideravam o "masculino" e o "feminino" como idéias culturais, não
fatos biológicos. Tanto os homens quanto as mulheres podiam participar
dos dois tipos de atividades. Em outras palavras, a adoração derivava do
corpo feminino, mas os homens podiam participar, em certo sentido,
tornando-se femininos durante a ocasião do ritual. Do mesmo modo, o
atletismo aparentemente pertencia à vitalidade masculina. Para
acomodar isso, as mulheres simplesmente tornavam-se masculinas na
dança do touro. Esta fluidez do gênero ilustra a idéia que vimos no
Capítulo l, de que o masculino e o feminino silo finalmente ramos do
mesmo corpo original. Em vez de uma estrutura rígida, o gênero torna-se
uma casa aberta para homens e mulheres entrarem e saírem.
Quando Arthur Evans escavou e "restaurou" o palácio cretense de
Cnossos (a partir do início do século XX), encontrou os restos de um
grande entalhe abstrato de chifres, que desde então se tornaram
128

conhecidos como os "chifres da consagração". Eles lembram a coroa da


Deusa egípcia Isis (ver Figura 8).
A coroa de Isis simboliza a Lua em suas três fases, e podemos supor
que os chifres cretenses também a representavam. Os chifres da coroa
egípcia relacionavam igualmente Isis à anterior Hator, versão egípcia da
Deusa-Vaca universal. É muito provável que os chifres cretenses da
consagração significassem a vaca ou o touro. Evans encontrou-os nos pés do
muro que está em frente ao Monte Jouctas, a montanha cornuda com sua
caverna-santuário dedicada à Deusa. A escultura humana com chifres
provavelmente estruturava uma visão dos chifres de pedra maiores esculpidos
pela natureza. Entretanto, a forma dos chifres da consagração não se
originou com Creta. Nós a conhecemos desde a cultura neolítica de Vinca,
no sudeste da Europa, 3000 anos antes do seu aparecimento em Creta.

Figura 8: Desenho da coroa de Isis (esquerda), comparada com os Chifres Cretenses da Consagração encontrados
em Cnossos, Creta (direita, segundo Al exiou).

Escarnação
Os povos antigos podem ter observado a conjunção da cabeça do touro e do
útero através da escarnação, um processo fúnebre pelo qual um corpo é
exposto à natureza antes do sepultamento o u desenterrado para um segundo
sepultamento. Não somente as pessoas podiam ter visto o interior do corpo
feminino através deste processo, mas também teriam visto o útero enquanto
o corpo estava deitado, quando as trompas de Falópio assumem mais
obviamente a forma dos chifres de um touro.
Em Çatai Huyük e em outros locais, as pessoas praticavam a
escarnação através da exposição do corpo a abutres que iriam remover a
129

carne podre para revelar os ossos. Os ossos significam o corpo eterno que
não se deteriora. Os xamãs, em seus transes iniciatórios, muitas vezes
experimentam o dilaceramento de seus corpos, ou sua exposição à água
fervendo, para que o osso seja exposto e depois preenchido com o poder de
cura. Consta que os xamãs recebem o poder de ver os ossos de uma pessoa
através da carne. (Para mais informações sobre o desmembramento
xamânico e sua relação com o mito grego posterior, particularmente com
Dionísio, ver Capítulo 7.)
Os agentes da escarnação, os abutres, aparecem muito dramatica-
mente nas pinturas murais encontradas em Çatai Huyük. Uma pintura,
cobrindo várias paredes, mostra abutres estilizados, com enormes asas tipo
vassouras e pés humanos. Os pés indicam que eles incorporam mais a
Deusa do que propriamente as aves.
Em Çatai Huyük, as imagens da vida e da morte misturam-se de uma
maneira que podemos achar bizarra. A equipe de Mellaart descobriu os
crânios de abutres, raposas ou doninhas incorporados em representações de
seios. Às vezes, as mandíbulas dos animais ou de varrões selvagens
projetam-se dos mamilos. Mellaart descreve um santuário com uma cabeça
de touro, e depois seios duplos com mamilos abertos dos quais emergem os
bicos de abutres. Havia uma construção, decorada com uma série de cabeças
de abutres, que fora queimada. Quando a revestiram de gesso, cada
mandíbula de abutre foi transformada em um seio de mulher.
De outro ponto de vista moderno, tendemos a considerar a
sacralidade da natureza como ingênua ou filosófica. Isto é, desde que
aprendemos a ver Deus como apartado da natureza, supomos que as
pessoas adoravam diretamente os animais ou os consideravam símbolos de
algo mais. Eu tenho usado o termo "incorporação" para indicar uma
alternativa que proporciona aos povos antigos uma sutileza intelectual,
embora não os afastando (nem a nós) do encontro direto com o sagrado nas
criaturas vivas. Ver a Deusa incorporada em um abutre ou em um touro (e
não há razão para a Deusa não poder se incorporar em um animal macho ou
em um animal fêmea, em homens e também em mulheres) significa
reconhecer que estas criaturas contêm o poder vivo do divino.

Arvores, Montanhas e Outras Incorporações


Não eram apenas os animais que se considerava incorporarem a Deusa. As
árvores, a água e até as pedras e as montanhas expressavam o Seu poder.
Já vimos quantos monumentos neolíticos, como a Montanha Silbury,
130

foram construídos sobre rios subterrâneos. As pedras verticais, quaisquer


que sejam suas outras funções e significados, incorporam ai força da
Terra elevando-se diante de nós. As montanhas, em especial, contêm o
poder da Deusa. Em Creta, Vincent Scully encontrou um padrão
repetido de palácios e cidades construídos em alinhamento com
montanhas cornudas. Possivelmente, essa reverência pelas montanhas
cornudas remonta ao período neolítico. James Mellaart, em sua descrição
do sítio de Çatai Hüyük, menciona um vulcão de dois picos 135
quilômetros a oeste, e há alguma evidência indicando que as pessoas da
região anatoliana de Çatai Hüyük colonizaram Creta.
As árvores incorporaram a Deusa durante todo o período neolítico e
também depois. Segundo Gertrude Rachel Levy, os egípcios consideravam
o plátano o "corpo vivo" de Hator, a Deusa-Vaca, possivelmente porque o
fruto dá um líquido branco. Como um plátano, Hator amamentou os
faraós bebês. Os textos egípcios descrevem o assassinado Deus da
Vegetação, Osíris, encerrado em um plátano. Levy também descreve o
castiçal de sete velas dos hebreus como derivado da Deusa da Arvore
neolítica. O livro bíblico do Deuteronômio denuncia o plantio de uma
"Asherah" — ou seja, uma árvore ou um pilar que representa a Deusa —
ao lado dos altares de Jeová.
Eu poderia citar muitos outros exemplos de árvores como a Deusa,
especialmente sua Arvore da Vida. No filme The Goddess Remembered, de
Donna Read, o zelador de um templo em Malta, referindo-se à imagem da
Arvore da Vida no Hipogeu (um templo subterrâneo), conta aos
cinegrafistas que "A árvore era o intermediário entre a Mãe Terra e o
homem". Em um período muito posterior ao neolítico, o alquimista
Paracelso escreveu sobre a mulher: "Ela é a árvore que cresce da terra, e a
criança é como o fruto que nasce da árvore."
Os santuários em Creta e em outros lugares incluíam um pilar no
centro de um aposento. Estes pilares podem ter representado colunas de
pedra ou estalagmites, mas também podem ter representado árvores.
Vincent Scully descreve colunas de madeira cilíndrica nos palácios
cretenses como a pessoa da Deusa encerrada em um "ser feminino". Ele
escreve: "Desse modo, todo o palácio tornou-se seu corpo, pois a própria
terra estava na Idade da Pedra."
A árvore conecta o Céu, a Terra e o Mundo Subterrâneo. Também
representa a vida em si. Onde uma árvore cresce, a vida pode existir, e isto
é especialmente reconhecido em um país quente. O palácio é feminino
porque abriga, encerra, nutre — como um vale. Por isso, uma árvore
131

(coluna de madeira) em um palácio situado em um vale torna-se uma


imagem de muitas camadas da vida crescendo no interior do amor protetor
da Deusa.
Uma árvore incorpora a Deusa em termos mais do que simbólicos.
Ela contém a energia da Terra e do Sol concentrada em forma de vida.
Toda árvore é única, com formas que evocam uma pessoa de pé com os
braços levantados. As oliveiras, em especial, podem incorporar a Deusa,
pois vivem um longo tempo. Quando ficam mais velhas, tornam-se
nodosas e densamente carregadas de energia, às vezes assumindo formas
sugestivamente femininas, como uma mulher idosa curvada.
Por sua forma, os pilares significavam árvores, mas também colu-
nas de pedra. Durante as Idades da Pedra Lascada e Polida, as pessoas
decoravam as estalactites e as estalagmites para que elas se assemelhassem
a aglomerados de seios. Mellaart relata ter descoberto estalactites com
estatuetas sagradas "em praticamente todas as oportunidades". O Templo
de Artemis, em Éfeso, na Turquia, uma das sete maravilhas do mundo
antigo, continha uma famosa estátua da Deusa. A escultura a retratava
como uma coluna reta, como uma árvore, com Seu torso coberto com
globos redondos, como ovos ou seios.
Nos períodos posteriores, os povos adoraram a Deusa como uma
pedra, frequentemente negra e/ou cônica. Cibele, a Grande Mãe dos
Deuses, entrava cerimoniosamente em Roma todos os anos como um
meteorito cônico carregado em uma carruagem puxada por leões. Cibele era
originalmente a Deusa de Frígia, outro nome para a ocidental Anatólia.
Segundo Monica Sjoo e Barbara Mor, os habitantes de Canaã adoravam a
Deusa Astarte no Monte Sinai como uma pedra. O nome "Sinai" significa
"montanha da Lua". O Ka'aba, a enorme pedra negra conservada como
relíquia em Meca, e ponto final da Moslem Haj (peregrinação),
originalmente incorporava a Deusa. Sjoo e Mor contam-nos que os árabes
antigos imprimiam vulvas em sua superfície. Quando os sacerdotes tomaram
o lugar das sacerdotisas, receberam o título de "Beni Shaybah", ou seja,
"filhos da mulher idosa".

Os Nós
Não somente os aspectos do mundo natural eram considerados incorporação
da Deusa. Em muitos lugares, os nós significavam o Seu poder, e imagens dos
132

nós aparecem nos pilares sagrados das criptas subterrâneas. Frequentemente,


os desenhos ou entalhes de nós mostram a corda dando um laço;
curiosamente, a forma do nó em si se assemelha ao moderno nó de gravata
(ver Figura 9).
Um nó parece simbolizar o conceito de Levy de religião como um
relacionamento contínuo. Ela descreve o nó como um emblema da Deusa
em Creta, acrescentando que o sinal egípcio da cruz ansada era um "sinal
amarrado de vida", descrito no Book of the Dead como colocado diante do
"portão cornudo da montanha rachada". Já conhecemos a importância dos
chifres e uma montanha de pico duplo. A Deusa egípcia Ísis também exibia
um nó como Seu emblema. Um caixão de chumbo escavado na Palestina
estava decorado com nós e vinhas, e quando os arqueólogos o abriram,
descobriram que a boca do esqueleto continha nós feitos de ouro em folha.
Se os nós significam os elos entre a Deusa e o mundo, representam
também as restrições, particularmente as restrições sexuais. Nós os
soltamos para liberar nossos desejos. Em muitas culturas, as mulheres
casadas só soltam seus cabelos e afrouxam suas roupas quando fazem amor
ou dão à luz. Por outro lado, as virgens solteiras andam em público com seus
cabelos soltos. Na cultura ocidental moderna, ainda nos referimos ao
casamento como "se amarrar".
133

Figura 9: Desenho do nó sagrado de Cnossos, Creta, C. 1700 a.C. (segundo Alexiou).

Mas os nós simbolizam mais do que repressão. Como uma


construção humana, representam a cultura, as idéias e as imagens que nos
vinculam. A importância do nó sobreviveu até séculos posteriores no
folclore e em práticas mágicas. Barbara Walker, em The Woman's
Encyclopedia of Myths and Secrets, descreve vários nós mágicos, incluindo
nós especiais feitos pelas parreiras nos cordões umbilicais. O nó simboliza
tanto a nossa origem em nossas mães quanto nossa separação como seres
individuais. Um nó une as forças mágicas da vida. Ao amarrar os nós,
demonstramos nosso conhecimento e capacidade para lidar com os poderes
do mundo.

O Nó Górdio
Os nós também simbolizam a tradição. Muitos de nós conhecem a lenda de
Alexandre, o Grande, e o Nó Górdio. Este nó extremamente complexo
derrotou vários pretensos conquistadores da Ásia, e uma profecia declarava
que quem o desatasse se tornaria o governante de toda a Ásia. Alexandre,
sabemos muito bem, simplesmente pegou sua espada e cortou-o ao meio.
(Não está claro exatamente que lição nossos professores queriam que
extraísse-mos disso — destruir nossos problemas em vez de tentar
resolvê-los?). Esta pequena fábula adquire maior profundidade quando
descobrimos que Górdio foi a principal cidade da Frígia, terra natal de
Cibele, a Grande Mãe (e também de Afrodite, que no Quinto Hino
Homérico descreve-se como filha de Frígia). Barbara Walker conta-nos
que o nó representava o vínculo no casamento místico da Mãe com Seu
filho/consorte/rei. (Compare a imagem moderna — negativa — de um
homem amarrado às fitas do avental de sua mãe.) Cortar esse nó represen-
tava uma espécie de infanticídio, o assassinato dos filhos da Deusa,
assim como uma tentativa de assassinar a própria Deusa. E, realmente, a
conquista de Alexandre trouxe a morte — e também a violação e a
escravidão — para um grande número de pessoas.
A complexidade dos nós simbolizava os milhares de anos de
tradição, ciência e conhecimento sagrado da Deusa. O patriarcado
ascendente, simbolizado por Alexandre, não tentou compreender esta
grande civilização, ou sequer mudar suas crenças e estruturas atuando
através de suas várias tradições. Ao contrário, simplesmente a conquistou
através do poder da espada, e continuou a fazê-lo a partir de então — nas
Américas, na Austrália, na África e, mais recentemente, nas profundezas
134

das florestas tropicais, onde o genocídio conhecido como


"desenvolvimento" destrói culturas inteiras de seres humanos e extingue
espécies de plantas e animais a uma proporção de três por hora.
Entretanto, o nó permanece. Os herdeiros de Alexandre na verdade
não têm outra escolha a não ser cortá-lo, repetidamente, pois ele é o
cordão umbilical que nos vincula à natureza e ao divino, e reaparece —
repetidamente — religado com cada bebê, com cada ciclo de vida.

A Era das Invenções


A evidência de que a cultura neolítica na Europa era concentrada na
Deusa, e desprovida de violência, parece muito forte. Esta é uma
informação radical, pois nos dá conta de que a natureza humana não
abraça automaticamente a violência. Nem guerra nem a desigualdade são
inevitáveis. Muitos resistem a esta idéia, dizendo que gostariam de acredi-
tar nela mas duvidando que os humanos pudessem agir de maneira
diferente. Na verdade, provavelmente não gostam de acreditar nisso. Nós
aceitamos a guerra e a violência nos assegurando de que não temos
escolha, que os seres humanos não podem se comportar de nenhuma
outra maneira.
Geneticamente, não somos diferentes dos nossos ancestrais. Ao
contrário, nossa cultura mudou, e nos ensinou que nunca existiu nada
diferente. Este também é o método de conquista alexandrino, esquecer o
passado. Como já vimos, não é por acaso que a Bíblia nos diz que Deus
criou o mundo, intacto, 6.000 anos atrás, ou que nossos livros de história
começam com as primeiras culturas patriarcais e as chamam de início da
civilização.
Alguns que aceitam a vida pacífica do período neolítico como um
fato reconhecem os benefícios de um "estágio" desse tipo na cultura
humana, mas insistem em que a humanidade "progrediu" para o patriar-
cado. A cultura centralizada na Mãe, sustentam eles, torna-se estática
demais, plácida demais, e carece de criatividade. O patriarcado pode ter
trazido a guerra, a violência, a escravidão, a desigualdade e o
confinamento das mulheres, mas também (supostamente) trouxe dina-
mismo.
Agora, isto faz parte da ideologia e da falácia do primitivismo. A
sociedade matrifocal foi boa em sua época, argumentam eles, mas não
135

abriu caminho para a "verdadeira" civilização. A Mãe ama o sufocamento. A


cultura humana não pode crescer sob a influência da Deusa Mãe.
Ficamos tão imbuídos da doutrina do "progresso", que ficou difícil pensar
em outros termos.
Na verdade, o neolítico foi possivelmente o período mais dinâmico
da história humana. Ele presenciou o desenvolvimento da agricultura, a
domesticação dos animais, o crescimento do intercâmbio e do comércio,
a criação da escrita e da matemática, a invenção da cerâmica, da
construção de casas e templos, a edificação de monumentos, a astronomia
e, sem dúvida, sistemas conceituais dos quais não temos registros. Além
disso, a mudança para o patriarcado não fortaleceu a civilização — antes a
enfraqueceu, pois esta mudança ocorreu através da guerra e da conquista.
Quando os povos da cultura micenense da Grécia invadiram Creta,
adaptaram grande parte da cultura e da religião cretenses, incluindo a
adoração da Deusa. No entanto, destinando tantos recursos à guerra e à
grande riqueza de um único chefe, não adquiriram nada da qualidade de
vida anteriormente desfrutada pelos cretenses. Quando os dórios posteriores
invadiram a Grécia, trazendo com eles seu panteão de Deuses da guerra,
deram início ao que os historiadores da antiga Grécia chamam de "a Idade
das Trevas", um período de 400 anos durante os quais (segundo Vincent
Scully) os gregos não construíram nada duradouro ou substancial. (A criação
de grandes edifícios não é a única medida da civilização. Passaram-se quase
exatamente 400 anos, e os invasores bárbaros da Europa iniciaram sua con-
quista da América do Norte, uma conquista que prossegue até hoje. Apesar
dos resultados desta invasão — dinamismo, grandes edifícios —, é mais
provável que os povos nativos do continente considerassem esses últimos
400 anos a Idade das Trevas.)

Hipóteses sobre a Criatividade


A idéia de que a sociedade precisa de energia masculina para a
criatividade, em vez da energia combinada das mulheres e dos homens,
suscita um preconceito muito antigo, talvez tão antigo quanto o próprio
patriarcado. As mulheres criam a partir de seus corpos. De alguma forma,
aprendemos que isto não representa a "verdadeira" criatividade, que na
verdade ela tem origem na mente, no pensamento abstrato. E aprendemos
que os homens são excelentes nisso pelo fato de serem homens. É como se
considerássemos que o mundo devesse de alguma forma se equilibrar dando
às mulheres o poder de criar bebês e aos homens o de criar idéias — e que
136

as idéias são melhores que os bebês. Além de tudo, segundo o preconceito,


qualquer mulher pode ter um bebê. Para isso não é necessário nenhum
talento especial. Oraciocínio requer talento. E, supostamente, os homens
pensam melhor que as mulheres. Supostamente, as mulheres estão limitadas a
seus corpos simplesmente porque podem desenvolver outros corpos dentro
de si, enquanto os homens, como o Deus masculino transcendente, existem
em um nível abstrato, separados de seus corpos.
Essa antiga distorção estabelece dicotomias falsas. Consideramos as
mulheres que pensam ou criam arte ou simplesmente trabalham fora de casa
como imitações dos homens. Alguns consideram-nas superiores às mulheres
que têm bebês, às quais chamamos "vacas", desconhecendo que a vaca
antigamente simbolizava Deus para os povos do mundo todo. Outros
acham as mulheres com bebês superiores às mulheres que pensam, em
virtude de seguirem sua "verdadeira" natureza.
Não existe nenhuma evidência de divisão real entre a criatividade do
corpo e a criatividade da mente, ou entre criatividade feminina e
masculina. Podemos supor que muitas inovações neolíticas vieram das
mulheres. Por exemplo, se as mulheres colhiam plantas no período
paleolítico (como o faziam na maioria das sociedades caçadoras-coletoras
que conhecemos dos tempos históricos), faria sentido que as mulheres
tivessem observado os processos de semeadura e cultivo que iriam
conduzir à agricultura. Seguindo a mesma lógica, os homens caçadores,
através de seu grande conhecimento dos animais, podem ter liderado o
caminho para a domesticação dos carneiros e de outras espécies.
A atividade da caça requer que os homens permaneçam silenciosos e
se comuniquem com sinais (uma linguagem corporal). Como coletoras de
alimentos e cuidadoras dos filhos, as mulheres teriam se comunicado com
palavras. Como resultado, elas podem ter inventado a escrita, assim como o
conhecimento científico e outros sistemas intelectuais que envolveram o
compartilhamento de informações complexas. Não podemos provar isso.
Não há razão para supor que as mulheres criaram toda a cultura humana
sozinhas nem também aceitar a suposição comum (ainda encontrada na
maioria dos livros sobre a pré-história) de que os homens inventaram tudo,
enquanto as mulheres apenas pariam os filhos. Não podemos sequer supor
que somente os homens caçavam e somente as mulheres coletavam plantas.
Arte rupestre nos limites do deserto de Saara, na África, retrata grupos de
mulheres caçadoras.
Assim como nossa sociedade nos ensina que "os homens pensam e
as mulheres fazem", também nos ensina que o pensamento não está ligado
137

aos corpos. "Penso, logo existo." (Vicki Noble menciona uma inscrição
antiga cuja tradução é: "Tenho seios, logo existo.") Em nossa época, temos
visto como cientistas e engenheiros bélicos "criam" excitadamente sistemas
destinados a matar grandes números de pessoas, e nunca parecem conectar
este trabalho intelectual com a morte de seres humanos reais. Apesar disso,
o corpo invade a si mesmo. A gíria do Pentágono descreve os mísseis e as
bombas avançadas como "sexy". Quando os cientistas em Los Alamos
explodiram a primeira bomba atômica, distribuíram charutos e
anunciaram: "É um menino”.
A valorização do pensamento abstrato e da designação da criatividade
aos homens pode ter surgido com a necessidade de contradizer o fato mais
óbvio sobre o nosso mundo — que as mulheres criam a partir de seus
corpos. A visão de Deus como feminino apresenta poucos problemas. O
feminino dá à luz e assim o faz a Deusa. Só há problema se os homens
desejarem, primeiro, se separar das mulheres; e, segundo, estabelecer o
domínio sobre as mulheres e o mundo. Para isso, precisam separar a
criatividade da natureza. Só assim podem vislumbrar um Deus masculino
criando o universo.
Alguns mitos da criação masculina descrevem o Deus criador como se
cortando para extrair o mundo do Seu corpo. Podemos imaginar os homens
rejeitando esta imagem. Ela envolve uma imitação muito óbvia do que as
mulheres fazem naturalmente. É muito mais satisfatório supor um Deus que
cria a partir do pensamento "puro" (desincorporado), que cria o cosmos e a
vida simplesmente falando ou, melhor ainda, a partir de um livro, pois os
homens não permitiam que as mulheres aprendessem a ler. (Em setembro
de 1996, rebeldes muçulmanos fundamentalistas tomaram o controle do
Afeganistão. Quase como sei. primeiro ato, interromperam a educação das
meninas.) Nos últimos 150 anos, começamos a emergir deste aspecto
particular da nossa própria idade das trevas. E, no entanto, as antigas
suposições ainda detêm muito poder, pois a nossa cultura as construiu mais
de 50 séculos atrás. A descoberta das culturas centralizadas na Deusa no
período neolítico, c suas grandes realizações, pode nos ajudar a nos
libertarmos dessas visões limitadas da criatividade, tanto nas mulheres
quanto nos homens.
138

Como Tudo Isso Desapareceu?


Para onde foi o mundo dos povos neolíticos? Como e por que a cultura
humana se transformou de uma sociedade pacífica e dinâmica baseada na
natureza e na Deusa em uma sociedade baseada na guerra, na estrutura de
classe, nas desigualdades entre homens e mulheres, e em um Deus
totalmente masculino exigindo temor e obediência? Se realmente existiu
uma cultura matrifocal dezenas de milhares de anos atrás, e esse período
testemunhou o desenvolvimento da ciência e da civilização estruturada,
incluindo as cidades e a agricultura, por que os humanos a abandonaram?
Se não consideramos o patriarcado um passo necessário e inevitável na
evolução cultural humana, como ele se estabeleceu?
Vários escritores têm apresentado relatos detalhados da posse do
patriarcado, especialmente na Europa e no Oriente Médio. Merlin Stone, com
When God Was a Woman, acompanha as mudanças que ocorreram na
Palestina. Marija Gimbutas apresenta uma cronologia detalhada da
mudança na região que ela chama de Velha Europa. Descreve as invasões
indo-européias a partir do que chama de "áreas limítrofes" da civilização e
mostra como se distorceram ou substituíram os símbolos mais antigos da
cultura da Deusa. O touro, por exemplo, deixou de ser um símbolo da
vitalidade e do útero e passou a ser um símbolo do Deus Trovão do Céu.
Os relatos feministas da queda da cultura matrística na Europa em
geral atribuem a mudança a grupos tribais que adoravam um Deus
guerreiro masculino. Mas isto suscita a questão. Como esses grupos
particulares desenvolveram sua ideologia baseada na guerra?

A Descoberta da Paternidade
Muitos admitem que o patriarcado se desenvolveu quando os homens
descobriram sua importância na reprodução humana. Segundo este
argumento, os primeiros povos, "primitivos", não compreendiam a conexão
entre sexo e gravidez. Afinal, as mulheres não ficam grávidas toda vez que
fazem sexo, nem a gravidez é imediatamente percebida. As mulheres eram
olhadas com reverência e temor, por sua capacidade mágica de produzir
bebês, mas quando os homens descobriram seu próprio lugar neste processo,
tornaram-se arrogantes e insistiram na supremacia masculina.
139

Este argumento parece-me baseado em várias suposições


questionáveis. Por que a descoberta da paternidade deveria automaticamente
conduzir a uma tomada de poder por parte dos homens? A idéia
aparentemente origina-se daquela antiga crença no matriarcado como a única
alternativa para o patriarcado. Em outras palavras, quando as pessoas não
conheciam a importância dos homens, deram todo o poder às mulheres, que
reprimiam os homens. Quando os homens descobriram seu valor, passaram
a reprimir as mulheres. Que razão inerente poderia requerer que os
humanos se comportassem desta maneira?
A descoberta da paternidade não destrói a importância das mulheres
ficarem grávidas. Os homens contribuem com o esperma essencial, mas o
bebê ainda precisa crescer dentro da mulher. Entregar todo o poder aos
homens requer uma extrema distorção das realidades mais óbvias. Algumas
culturas patriarcais têm feito exatamente isso. Os gregos desenvolveram a
idéia de que os humanos existem inteiramente devido ao esperma e que a
mulher serve simplesmente como um depósito, uma incubadora, para o
bebê crescer até poder emergir para a vida. E precisamente esta distorção da
realidade que conduz à separação entre o pensamento e a observação, entre a
ideologia religiosa (e científica) e a natureza. Mas não podemos aceitar que
os humanos iriam natural ou inevitavelmente desenvolver essas idéias
distorcidas.
Mais fundamentalmente, por que devemos presumir que os povos da
Idade da Pedra desconheciam a contribuição do homem para a procriação?
Podemos supor que pessoas que domesticavam animais e criavam rebanhos
de espécies diferentes durante muitos milhares de anos conheciam muito
bem a mecânica da reprodução sexual. E mesmo na Idade da Pedra Lascada,
a intensa observação dos animais, a fusão das imagens fálicas com as
imagens de vulvas e do corpo da Deusa, e o uso do ocre vermelho,
possivelmente para simbolizar a menstruação e o nascimento, sugerem a
possibilidade de que essas pessoas também conheciam a reprodução. As
marcas gravadas em ossos e outros objetos podem ter contado os meses de
gravidez, sugerindo um conhecimento de que a concepção começa com a
relação sexual. O conceito da supremacia masculina não se origina de
quaisquer observações da natureza, mas justamente do oposto — de uma
ideologia que deliberadamente vira a realidade pelo avesso para se justificar.
Uma teoria levemente revista da ignorância da paternidade envolve a
idéia de que as mulheres e os homens levavam vidas extremamente
separadas. Aqueles que defendem esta idéia sustentam que as mulheres
provavelmente desenvolveram a agricultura e dirigiram as aldeias, de forma
140

que só precisavam dos homens para a procriação. A teoria então sugere que
as mulheres conheciam a mecânica da reprodução mas deliberadamente
escondiam esta informação dos homens, relegando-os à periferia da
sociedade. Tendo pouco a fazer exceto testar sua força, os homens
desenvolveram bandos de saqueadores que começaram a descobrir o poder
da violência. Quando descobriram sua própria importância na procriação,
tomaram inteiramente o poder. Este argumento assume a marginalidade dos
homens em uma cultura matrifocal, mas os registros dos sepultamentos e da
arte o rejeita.

As Leis Reprimindo as Mulheres


Grande parte do que consideramos natural ou básico para os seres humanos
pode ter derivado da necessidade do patriarcado de reprimir as mulheres
para manter suas próprias estruturas. De muitas maneiras, nossa moralidade
sexual origina-se em grande parte da instituição de descendência da
linhagem paterna, ou seja, da propriedade passando de pai para filho, em vez
do antigo padrão da linhagem materna, pelo qual a propriedade passava de
mãe para filha. Quando a propriedade é transmitida através da mãe, há
poucos problemas, pois todos os filhos, tanto os homens quanto as mulheres,
podem saber com certeza quem os deu à luz. Entretanto, quando a
propriedade é transmitida através do pai, como um homem pode ter certeza
de que um menino é realmente seu filho? Controlar a paternidade significa
controlar as mulheres e os produtos de seus corpos. As leis devem estabelecer
que uma mulher dorme com um homem e só com ele. Ela deve permanecer
virgem até o casamento e jamais deve ter nenhum outro amante além do
seu marido. Para se assegurar de que este sistema funcione, as mulheres
devem ser convencidas de que desejam o "recato" e que a monogamia é
natural para elas. Isso sequer implica punições extremas para as mulheres
que se "extraviam" ou mesmo sofrem estupro. O que explica por que os
códigos legais patriarcais às vezes condenam ao ostracismo e punem mais a
vítima que o perpetrador do estupro.
Será que as mulheres são naturalmente monógamas? Será que elas
desejam instintivamente encontrar um companheiro e nunca se "extraviar"?
Depois de 5.000 anos de patriarcado, é difícil dizer quanto do nosso
comportamento, e até dos nossos desejos, origina-se da nossa própria
natureza e quanto dos padrões culturais.
Em nossas escolas, aprendemos que as civilizações começaram com os
grandes legisladores — Moisés, Hamurabi, Confúcio, Sólon, Zoroastro,
141

Maomé —, que tiraram a humanidade da ignorância e da superstição


através da instituição dos códigos morais. Sabemos agora que a cultura
humana desenvolveu-se em altíssimo grau de organização c da tecnologia
muito antes de tais figuras terem instituído seus sistemas patriarcais. E
quando olhamos esses códigos legais, descobrimos que em todos os casos
eles envolvem a restrição sistemática do poder das mulheres, dos seus
direitos à propriedade, do seu conhecimento e da sua liberdade de
movimento. As leis mosaicas tornam as mulheres propriedade, primeiro, de
seus pais e, depois, de seus maridos, de forma que um homem literalmente
compra sua noiva do pai desta. As mulheres não podem participar dos
serviços religiosos, e sua sexualidade torna-se extremamente restrita. "Sólon,
o Legislador", como era chamado na Grécia, instituiu o confinamento das
mulheres na antiga Atenas, tornando ilegal para as mulheres até deixar os
pátios de seus maridos e andar na rua. O confinamento não apenas excluía as
mulheres do poder c da propriedade, mas também evitava que elas se
comunicassem umas com as outras e compartilhassem seus pensamentos,
desejos e experiências.

A Demonização das Mulheres


O mito zoroastriano da criação, como está registrado no último texto, o
Bundahish, nos dá uma idéia da imagem das mulheres projetada pelos
grandes legisladores patriarcais. O Bundahish descreve como o princípio do
mal, Angra Mainyu, dormiu após criar a Mente Má e a Mentira. Um
demônio feminino chamado Jahi veio acordá-lo, ameaçando causar miséria
no mundo, envenenar "o homem correto" e os animais, a água, as plantas,
até mesmo o fogo, e toda a criação. Segundo Joseph Campbell, o nome
"Jahi" significa "menstruação". Um texto separado conta a história de uma
visita à vida posterior de Zoroastro, onde, como na Divina Comédia de
Dante, o visitante vê as almas sofrendo um tormento individual. Ele vê a
alma de uma mulher obrigada a beber xícaras cheias "das impurezas e
sujeiras dos homens". Quando pergunta que crime provocou esta punição, é
informado de que a mulher "se aproximou da água e do fogo durante a
menstruação". (Citações de Joseph Campbell, Occidental Mytbology.)
O padrão dos "avanços" na civilização à custa das mulheres
continuou nos tempos modernos. Aprendemos a pensar na Renascença como
um grande despertar da cultura, uma época de renascimento após um
142

período de ignorância e medo. Só recentemente os historiadores feministas


demonstraram que as mulheres na Idade Média detinham um certo poder e
influência, com direitos econômicos e legais, que a Renascença
sistematicamente aboliu, deixando-as muito mais dependentes de seus
maridos. Similarmente, a ascensão da medicina moderna desenvolveu-se à
custa das parteiras e dos curandeiros das aldeias, cuja maioria eram
mulheres. A queima das bruxas, que causou a morte de um grande número
de mulheres, possivelmente milhões delas, não ocorreu na Idade Média, como
muitas pessoas pensam, mas na Renascença, quando a medicina estava se
tornando uma "profissão", requerendo uma educação formal aberta apenas
aos homens. Para extirpar o poder de cura das mulheres, a sociedade
passou a chamar as curandeiras de adoradoras de Satã, supostamente
usando seus corpos em sexo ritual com demônios.

Padrões Universais
O problema da mudança da sociedade matrística para patriarcal torna-se
mais complicado quando descobrimos que pessoas do mundo todo, em
muitos tipos diferentes de culturas, incluindo os caçadores-coletores não
tecnológicos, mostram sinais de terem sofrido uma transição do poder
centralizado na mulher para o poder centralizado no homem.
Grande parte desta evidência está nos mitos. O padrão comum
descreve uma Deusa arcaica conquistada, demonizada e frequentemente
desmembrada por um Deus homem que agora emerge como todo-
poderoso. Outras histórias falam de um tempo em que as mulheres
possuíam grande poder, simplesmente em virtude de seus corpos femi-
ninos, e de como os homens ascenderam e tomaram o poder. Outras ainda
ensinam uma lição "moral" do próprio domínio masculino, mas com um
tom subjacente de transformação de uma ordem mais antiga.
Vamos examinar daqui a pouco alguns desses mitos, mas agora
precisamos considerar o que eles nos contam em geral. Os mitos e os
registros arqueológicos parecem implicar um padrão universal do poder
retirado das mulheres. Muitos escritos sobre este tema, incluindo o de
muitas feministas, duvidam que, historicamente, tenha havido um
momento em que os homens tomaram o poder. Argumentam que os mitos
das sociedades matrifocais e do poder das mulheres realmente derivam das
ansiedades do homem e do medo das mulheres. Algumas feministas vêem
mitos de uma época de poder feminino como uma justificativa dos homens
para explorar e reprimir as mulheres. Peggy Sanday, em seu livro Female
143

Power and Male Dominance: On the Origins of Sexual Inequality, declara


que as histórias do antigo controle feminino indicam que as mulheres
detiveram um "poder informal considerável" dentro da sociedade existente,
um poder que tornava desconfortável o domínio dos homens.
Mas por que devemos rejeitar o que os mitos realmente contam? Se
os homens de uma determinada cultura dizem realmente: "As mulheres
antigamente detinham o poder, mas nós o tomamos delas" (e alguns relatos
tribais dizem exatamente isso), por que devemos supor que eles
simplesmente inventaram isso — especialmente quando o registro
arqueológico, pelo menos na Europa, mostra indicações tão fortes de
sociedades concentradas em torno do poder (sagrado e criativo) das
mulheres? E ainda há mais. Se os mitos refletem as ansiedades dos homens
em relação ao "poder informal" das mulheres, que ansiedade pode se
originar de algo mais profundo — por exemplo, do poder comercial das
mulheres no mercado de trabalho? O poder das mulheres pode nunca
desaparecer, seja qual for a estrutura social, pois ele se apóia
fundamentalmente no milagroso corpo feminino, aquele corpo que sangra
com a Lua e que proporciona vida — tanto a meninos quanto a meninas.

Lilith
O método de usar o mito e a religião para controlar as mulheres envolvia
lições morais e também a demonização. Em uma história característica, uma
mulher ou Deusa realiza uma determinada ação que resulta em um desastre.
Outra figura feminina atua de uma maneira "adequada" e o mundo é
corrigido. Esses mitos justificam o controle masculino como necessário para
evitar o suposto caos resultante quando as mulheres assumem o controle. Ao
mesmo tempo, com frequência trata-se de histórias que aludem a sociedades
anteriores, quando as mulheres detinham mais poder, e muitas vezes
envolvem a sexualidade ou algum outro aspecto do corpo.
Os antigos israelitas desenvolveram grande parte de seus temas
mitológicos e lendários durante seu exílio na Babilônia. Por exemplo, ai
Torre de Babel pode ter sido baseada nos zigurates da Babilônia,
construídos pelo trabalho escravo de muitas terras diferentes. (As estu-
diosas feministas consideram a Mesopotâmia, ou Babilônia, uma terra de
transição, com uma cultura mais antiga da Deusa ainda presente, mas
demasiado distorcida sob o domínio do patriarcado. Uma Deusa
144

babilônica, Lilith, foi transformada de uma maneira que diz algo sobre os
próprios israelitas.)
Lilith, cujo nome significa "coruja que guincha", tornou-se o
centro de uma série de lendas hebraicas que a descrevem como primeira
esposa de Adão. Segundo estas histórias, Deus criou Adão e Lilith ao
mesmo tempo, da mesma lama. (O nome Adão deriva do hebraico
adama, que significa "terra"; similarmente, a palavra latina humanus
deriva de húmus, "lama"). Outra versão da história contém o detalhe
extremo de que, enquanto criou Adão da lama, Deus criara Lilith da
sujeira e do excremento. Quando eles foram fazer sexo, Lilith recusou-se
a permitir que Adão ficasse por cima, dizendo que Deus os criara iguais.
Por este pecado, Deus a baniu e criou Eva. Como Eva saiu de Adão, deve
demonstrar-lhe a devida subserviência.
O escritor de livros humorísticos Neil Gaiman descobriu outra
história explicativa, descrevendo uma criação feminina entre Lilith com
Eva. Deus fez este corpo de mulher sem nome, pedaço por pedaço, de
dentro para fora, com Adão observando. Adão recusou-se a fazer sexo
com ela, porque, segundo o texto explicativo, "viu-a cheia de secreções e
sangue".
Podemos considerar a história de Lilith e Eva (e sua irmã sem nome)
simplesmente como uma fábula para manter as mulheres em seu lugar —
ou como uma alusão a uma época em que as mulheres e os homens
desfrutavam de igualdade. Para afastar essa igualdade e se certificar de que
as mulheres aceitavam uma posição inferior como "natural", oi rabinos
criaram esta lição moral.
Além de seus significados políticos, os mitos das outras esposas de
Adão dizem-nos algo sobre as ansiedades relacionadas ao corpo. Lilith,
uma mulher próxima à natureza, foi feita dos excrementos. Adão não
podia suportar sua segunda esposa porque viu o funcionamento interno do
seu corpo. Por outro lado, a Eva mágica é criada a partir de Adão, e não
dos processos naturais do mundo físico.

Uma Interpretação Esotérica


O último sistema judeu de idéias esotéricas, conhecido como Cabala, que
floresceu do século XII ao século XVI, reviveu a idéia da igualdade entre
homens e mulheres, chegando a descrever Deus como andrógino.
145

Seguindo uma interpretação talmúdica anterior, os cabalistas sustentaram


que a frase do Gêneses "Homens e mulheres, Ele os criou" descreve Deus
como ambos, masculino e feminino. Prosseguiram reexaminando a
história da criação de Eva a partir de uma costela de Adão, a história que
a maioria dos cristãos e judeus fundamentalistas cita para demonstrar que
as mulheres são seres inferiores. Segundo esta versão posterior, Deus
criou Adão como um ser andrógino, um homem e uma mulher, unidos na
prisão da costela. (Ver também a descrição de "Adam Kadmon" e do Deus
andrógino no Capítulo 1.) Entretanto, este ser não teve companhia com
quem compartilhar a experiência. Por isso, Deus separou as duas partes.
A história de tirar uma costela de Adão e dela fazer uma mulher torna-se
uma metáfora para a separação (algumas versões descrevem Lilith, e
não Eva, como a outra parte do Adão hermafrodita).
Embora chegue até nós a partir dos cabalistas medievais, esta
história lembra histórias muito mais antigas. O mito de Zoroastro inclui a
idéia de que Ahura Mazda separou um primeiro ser andrógino. Platão
conta uma história de Deus — Zeus — separando um ser humano
anteriormente completo. Em O Simpósio, Platão faz Aristófanes descrever
Prometeu criando humanos metade homens metade mulheres. Furioso
diante desta inteireza divina, Zeus os separa com um relâmpago. Platão
conta-nos que alguns dos seres originais eram homens duplos ou mulheres
duplas, destinados ao amor homossexual.
Estas várias histórias podem refletir o mistério dos dois sexos e a
maneira como as pessoas anseiam por um parceiro — ou sugerir uma
sociedade anterior que reconhecia tanto o feminino quanto o masculino
como partes de uma realidade física maior.

Um Irmão e uma Irmã Japoneses


Um mito japonês ensina uma lição similar à de Lilith. Ele conta como
vários seres da criação passaram a existir através das ações de um irmão e
irmã Deus e Deusa, Izanagi e Izanami, o Homem-que-atrai e a MuIher-
que-atrai. Quando eles se encontram, movem-se em torno de um "Pilar
Celestial Venerável", uma indicação de uma dança ritual mais antiga que
pode nos lembrar a Deusa adorada como um pilar na remota Creta.
Izanami louva Izanagi, e este retribui com elogios a ela, embora fique
aborrecido pelo fato de a mulher falar primeiro. Apesar disso, eles se
146

acasalam e produzem a Sanguessuga e a Ilha da Espuma, dois seres


considerados fracassados.
Então, consultam um oráculo e, como podemos imaginar, ficam
sabendo que a criação deu errado porque a mulher usurpou o direito do
homem de falar primeiro. A repetição de suas ações da maneira "ade-
quada" produz uma criação adequada.
A criação continua depois da morte de Izanami, pois quando Izanagi
parte para trazê-la de volta, fica horrorizado com seu corpo deteriorado e
foge dela. Quando ela e seus criados o perseguem, vários aspectos de
todos os seus corpos transformam-se em aspectos da criação. A história
sugere um terror masculino, tanto do corpo feminino quanto das
realidades da morte.
Mais uma vez, esta história pode servir apenas como uma
propaganda, ou pode indicar uma cultura anterior em que as mulheres
detinham o poder. Os imperadores japoneses remontam sua linhagem
mitológica não a um Deus homem, mas à Deusa do Sol e criadora,
Amaterasu Omikami. Suponhamos ou não uma cultura matrística
anterior, ainda somos deixados com a fascinante semelhança entre as
histórias de Lilith e Izanami. E também em relação à história da reação de
Adão a sua segunda esposa sem nome, o mito japonês expressa o terror da
realidade física dos corpos.

Mitos Distorcidos
Mitos que nos parecem bizarros ou estranhos às vezes derivam de uma
necessidade patriarcal de distorcer, ou virar de cabeça para baixo, um
mito anterior da Deusa. A Deusa grega Atena foi originalmente uma
figura de grande poder e muitos aspectos, cujos animais incluíam a
coruja e a cobra, símbolos de diferentes níveis de consciência. (Ver Capítulo
l para comentários adicionais sobre as conexões entre as aves e as
serpentes.) Para mantê-la sob o controle de Zeus, os gregos desenvolveram
a história de que Zeus engoliu sua primeira esposa, Metis, para evitar
que ela desse à luz uma criança que poderia derrubá-lo. Quando uma
terrível dor de cabeça assaltou Zeus, o Deus Hefesto abriu o crânio de
Zeus com um machado. Atena irrompeu, armada como um guerreiro. Da
perspectiva de uma religião anterior da Deusa, podemos decodificar este
mito como uma história da conquista do patriarcado, engolindo a cultura
da Deusa. Essa cultura recusou-se a morrer, dando ao patriarcado uma dor
147

de cabeça. E na verdade a cabeça deve doer, pois eles elevaram o


pensamento acima da criação do corpo.
Quando os dóricos invadiram a Grécia, encontraram a poderosa
Deusa Atena. Como Atena não ia embora, deram-lhe nova forma
segundo a própria imagem deles — de guerreira. E descreveram sua
versão dela como saindo da cabeça de Zeus já totalmente crescida, como
se Ela jamais tivesse existido antes de Zeus tê-la "criado". Ao mesmo
tempo, podemos observar que, quando Hefesto abriu o crânio de Zeus, a
cabeça do Deus transformou-se em uma vagina. Será que Hefesto usou
um machado duplo arrebatado de Creta?
Uma transformação similar ocorre com a história de Pandora e sua
caixa de males e tormentos. O nome Pandora significa literalmente
"Doadora de tudo", uma indicação de que ela originalmente significava
uma Deusa Mãe, não uma criança tola. Outro indício emerge de um
comentário feito por Nor Hall em Those Women, de que a palavra grega
kista, que significa "cesta" ou "caixa", era usada na antiga Grécia para um
trocadilho com kustus, ou "boceta".

Eva e a Maçã
A história de Adão, Eva e a maçã pode nos parecer estranha até
aprendermos suas primeiras versões. Quando criança, eu jamais consegui
extrair nenhum sentido desta história, que, é claro, aprendi como um fato
histórico. ("O mundo está repleto de mitos sobre a origem", escreve Joseph
Campbell, "e todos eles são na verdade falsos.") Por que, fico imaginando,
Deus faria aquelas duas árvores se não queria que Adão e Eva comessem
delas? Por que se incomodar com isso? E por que fazer todo aquele jardim
para eles e depois expulsá-los dele devido a um único erro? Meus
professores explicavam que Deus dera ao homem o livre-arbítrio e colocara
as duas árvores ali como um teste, mas isso parecia um truque sórdido,
especialmente porque as duas árvores representavam a glória do jardim — e
porque um Deus onipotente deveria conhecer antecipadamente o resultado.
Isso simplesmente não faz sentido. Somente quando li When God was a
Woman, de Merlin Stone, e The Masks of God: Occidental Mythology, de
Joseph Campbell, comecei a entender o que estava acontecendo nessa história
confusa.
Nós já vimos como os povos neolíticos e os primeiros povos da
Idade do Bronze adoravam a Deusa como uma árvore, estabelecendo
148

templos em bosques de árvores. E vimos como em toda parte a serpente


incorpora a energia vital da Deusa. Há uma passagem curiosa no Gêneses,
em que Deus amaldiçoa a serpente, dizendo: "Vou criar inimizade entre
você e a mulher." Esta declaração também só faz sentido quando
aprendemos que as serpentes se enrolavam nos braços da Deusa e entre os
seus cabelos. Estátuas da Deusa cretense mostram-na segurando cobras nas
duas mãos. As imagens mais antigas de Atena mostram-na, não como uma
guerreira, mas como uma Deusa Serpente. Na Grécia, também, Deus
estabelece inimizade entre a mulher e a serpente, pois no mito grego
clássico a deusa serpente transforma-se na Medusa. Atena ajuda Perseu a
matar Medusa e cortar Seu cabelo — mas Medusa era originalmente a
própria Atena.
A maçã também incorpora a Deusa. Corte uma maçã na metade c o
centro vai exibir um perfeito pentagrama. O planeta Vênus, visto a partir da
Terra, segue um caminho parecido com um pentagrama, ou uma flor de
cinco pétalas, durante um período de oito anos (para mais informações sobre
este padrão, e seu relacionamento com as plantas, ver Imaginary
Landscapes, de William Irwin Thompson). Assim, a maçã forma uma conexão
terrestre com o caminho celestial do planeta Vênus, identificado com Ishtar,
Astarte, Afrodite, a Vênus romana, e outras Deusas.
Muito mais simples que o mito bíblico do Éden, a versão da Deusa
não envolve proibições, ou um Deus "ciumento", ou ainda desobediência e
expulsão. Na verdade, tem início com a realidade das nossas vidas e nos
oferece uma promessa. A Deusa plantou uma Arvore da Vida dentro do Seu
jardim de alegria, onde Ela espera com Sua serpente. Ela nos entrega Sua
maçã, e embora seja a maçã da "imortalidade", é também a maçã do
conhecimento, pois somente através ao conhecimento de que a Deusa vive
em todas as coisas podemos nos libertar do nosso medo de extinção pessoal
na morte.
A história bíblica vai além da distorção do mito mais antigo. Ela
codifica a derrota do mundo centralizado na Deusa. O conhecimento que
Eva recebe da serpente significa a consciência da realidade sagrada — mas
também simboliza o conhecimento da própria história. Pois o jardim é o
mundo neolítico da Grande Deusa, e quando as tribos guerreiras o derrotam,
expulsam-no até mesmo da memória, de forma que até as grandes
descobertas da arqueologia moderna ele só existia no folclore e em histórias
confusas sobre um paraíso perdido.
149

Um Mito Explícito
Possivelmente, a história mais específica sobre o controle masculino vem
dos onas, da Terra do Fogo, um povo do qual não se tem dúvida de sua
evolução dos estágios "primitivos" para os "mais elevados" da civilização. Em
Primitive Mythology, Joseph Campbell reconta-nos como os onas explicavam
a origem do Hain, local da sociedade secreta dos homens. No início do
mundo, disseram os onas a um certo Lucas Bridges, as mulheres detinham
todo o poder, e os homens "viviam em abjeto medo e sujeição". Então, os
homens mataram todas as mulheres, deixando apenas as menininhas que
ainda não haviam aprendido sobre o poder feminino. Para se certificarem de
que as futuras gerações de mulheres jamais se reuniriam novamente para
redescobrir sua força mágica, os homens criaram um alojamento totalmente
masculino. Depois inventaram vários seres espirituais que horrorizariam as
mulheres e as manteriam afastadas do alojamento e do conhecimento. Os
próprios homens personificariam estes seres. O que surpreende nesta
história não é apenas sua explícita brutalidade, mas sua clara descrição da
religião institucionalizada como uma fraude estabelecida para confundir e
subjugar as mulheres.
Os homens onas personificam os Deuses para reprimir as mulheres.
As personificações e as mascaradas tornam-se uma estratégia para os
homens também em outras culturas. Judith Gleason escreve que, entre os
iorubas, "O feminino é primário", e além disso também perigoso, de forma
que os homens devem contê-lo através das "estruturas masculinas de
pensamento e linguagem". Um aspecto desta contenção consiste em trajes
elaborados, em parte projetos abstratos, em parte imagens sobrenaturais e
em parte imitações de mulheres, ou ainda qualidades femininas (por
exemplo, seios e quadris extremamente exagerados). Na maioria dos lugares,
estes rituais de egungun, ou mascaradas, pertencem apenas aos homens.
Entretanto, vários mitos do oeste africano descrevem-nos como uma arte
originalmente feminina, usada para aterrorizar e dominar os homens até que
os homens a arrancaram das mulheres.
150

Matando um Dragão
Muitos mitos patriarcais falam da ordem do mundo estabelecida a partir do
caos, através da destruição de um dragão, uma serpente gigantesca ou uma
serpente marinha. Encontramos isto especialmente nas mitologias grega e
do Oriente Próximo. O Deus hebreu mata Leviatã; Apoio mata Píton, e
assim estabelece controle sobre o Oráculo de Delfos; Zeus mata Tifeus (ou
Tifon), que é o último filho de Gaia, a Terra, e assim por diante. Muitas
dessas histórias identificam explicitamente a serpente/monstro como
feminina, ou a associam com uma Deusa arcaica, ou com o local do poder
feminino.
A mais famosa dessas histórias fala do herói babilônico Marduk, que
mata Tiamat, a Deusa Mãe serpente original, que é também tetravó de
Marduk. Tiamat, segundo nos conta Enuma Elisb, transformou-se no mal e
deu à luz monstros.
Para defender a criação, os Deuses coroam Marduk, dizendo-lhe:
"Nós lhe entregamos a soberania sobre o mundo todo. Esta arma nunca
deverá perder o seu poder", uma frase que sugere a adoração do falo e a
ansiedade resultante quando o poder do homem reside em um órgão que,
por sua própria natureza, tanto pode cair quanto subir. (A adulação, e até
adoração, das espadas e de outras armas pode se desenvolver do fato de que
as espadas jamais se tornarão moles.) Os Deuses dão a Marduk o raio e o
trovão, além de outras armas, e ele segue adiante para destruir Tiamat. Não
somente a mata, mas quebra o seu crânio e divide seu corpo como se fosse
um molusco.
Anne Baring e Jules Cashford, em The Myth of the Goddess, analisam a
história como uma mensagem política. Esta não apenas simboliza a
ascensão do patriarcado, mas também coincide com a conquista
babilônica da Suméria. Na Suméria, segundo a história, a Deusa extrai o
mundo do Seu corpo, formando uma montanha celestial. Então, nas palavras
de Baring e Cashford, Marduk, tendo aberto sua tetravó, "cria novamente a
criação". Ele empilha uma montanha sobre a cabeça de Tiamat, mais
monumentos sobre Seus seios, fura seus seios e olhos para lazer rios, usa o
espaço entre Suas pernas para sustentar o céu, e assim por diante. Também
estabelece os 12 meses do ano, coloca o Sol e a Lua em seus lugares, e em
geral dispõe o mundo de uma maneira ordenada. Finalmente, cria o homem
151

como uma criatura inferior para servir aos Deuses a fim de que "eles possam
ficar à vontade".
Tudo nesta história funciona para validar o sistema político
"dominador", em que os homens dominam as mulheres, e o rei, o Deus sobre
a Terra, vive do trabalho de seus escravos, assim como os Deuses recebem os
sacrifícios e as orações da humanidade. Mas também precisamos detectar
outra camada desta história, e todos os outros assassinatos da
serpente/dragão. Vários pesquisadores e autores modernos que escrevem
sobre a Deusa, como Luisa Francia, autora de Dragon Time, e Mary K. Greer,
líder dos mistérios menstruais das mulheres, têm sugerido que o "dragão" é a
menstruação, e que a destruição deste dragão significa o fim do poder
mágico/religioso que chega às mulheres através do seu sangue. Um dragão
é uma serpente mítica, uma serpente com consciência. As serpentes agitam-
se na terra como líquido, como um rio encarnado — ou como sangue. E há
outra associação: na menstruação, o útero verte seu conteúdo da mesma
maneira que uma serpente deixa cair sua pele para "renascer".
Nós já vimos (no Capítulo 1) que a cultura humana pode ter se
iniciado através das mulheres experimentando o poder da "sincronia
menstrual", ou seja, menstruando durante a Lua nova ou cheia. A maior parte
dos "dragões" ocidentais são, na verdade, serpentes marinhas, como Tiamat e
Leviatã, que vivem naquela água salgada que é semelhante ao sangue.
Outras, como a Píton Délfica, vivem em cavernas escuras e úmidas.
Muitas culturas têm demonizado a menstruação. Zoroastro chamou a
própria menstruação de fonte de todos os males. Medusa, a gêmea
aterrorizante de Atena, pode ter recebido sua imagem monstruosa, com seu
cabelo feito de cobras e seus olhos capazes de transformar os homens em
pedras, do medo masculino da menstruação. Freud descreveu Medusa como
uma projeção masculina dos genitais femininos.

Apropriação Masculina
Em alguns lugares, um patriarcado emergente pode ter assumido o poder
associado à menstruação. Em um artigo intitulado "Menstrual Synchrony
and the Australian Rainbow Snake", no livro Blood Maga (editado por
Buckley e Gottlieb), Chris Knight conta-nos que os reis das antigas culturas
européias não tinham permissão para ver o Sol ou tocar o chão — os mesmos
tabus que foram colocados sobre as meninas menstruando. Os mitos chineses
descrevem os imperadores como nascidos da cópula com um dragão, que os
mitos descreviam como "molhado", "perigoso" — e feminino.
152

Knight traça os elos entre a menstruação e a Serpente do Arco-íris,


que atua como criadora em muitos mitos australianos. Temerosos deste
poder feminino, os homens procuraram controlá-lo estabelecendo seus
próprios rituais de sangue. Em alguns lugares da Austrália, a iniciação dos
rapazes envolve cortar e marcar o pênis através de uma subincisão. Durante
a iniciação, os meninos experimentam o renascimento das profundezas de
um útero coletivo. Os homens idosos descrevem o útero feminino (original)
como uma cova de serpentes devoradoras, e o poder feminino (que Knight
iguala à sincronia menstrual) como um "monstro canibal" do qual a
humanidade tinha de ser salva. (Comparativamente, os homens dos países
ocidentais acreditavam que uma vagina podia ter dentes, um conceito
conhecido pelos folcloristas como vagina dentata.) Knight conta-nos como
os homens abrem as feridas da subincisão em rituais que têm lugar na
ocasião da Lua nova. Como na Terra do Fogo, algumas sociedades secretas
masculinas australianas descrevem o poder como "coisa de mulher", dizendo
que os homens as enganaram e roubaram sua mágica.
Os homens do povo ona contam sobre o assassinato de todas as
mulheres velhas o bastante para conhecer o poder das mulheres. Isto
implica a menstruação. Mas as gerações futuras vão menstruar. A mágica
não se origina apenas da menstruação, mas de uma compreensão do que ela
significa. O conhecimento do corpo e do seu poder é tão importante quanto o
próprio corpo.

Uma Visão Diferente dos Tabus Menstruais


A maioria das pessoas ouviu falar dos tabus complicados que envolviam a
menstruação das mulheres em culturas tão distantes como o Oriente Médio
e a América do Norte. Sabemos de mulheres confinadas em cabanas escuras,
sem permissão para tocar em alimentos, e assim por diante. Muitos destes
tabus originam-se de sociedades patriarcais que assumem o poder das
mulheres e o colocam sobre sua própria cabeça.
Por exemplo, os nutrientes do sangue menstrual ajudam as plantas a
crescer. Para mudar isso, o judaísmo inicial ensinou que as mulheres
menstruadas deveriam ser mantidas distantes das plantas, por medo de que as
destruíssem. Esta superstição persiste até hoje. Alguns anos atrás, minha irmã
me disse que seu rabino insistiu que uma gota de sangue menstrual podia
matar uma planta. Com essas idéias no mundo, torna-se possível imaginar
153

homens que acreditavam que a "Medusa" (sangue menstrual) iria


transformá-los em pedra.
Ao mesmo tempo, alguns antropólogos começaram a questionar
todo o conceito dos "tabus menstruais", pelo menos na sociedade tribal.
Thomas Buckley e Alma Gottlieb, editores de BIood Magic, declararam que
a maioria dos antropólogos têm sido mulheres, e por isso conversaram com
informantes homens da cultura em observação. Deste ponto de vista, a
menstruação pode parecer assustadora e perigosa, com as ações que a
cercam como uma proteção contra a energia mágica das mulheres.
Entretanto, quando os antropólogos buscam a perspectiva das mulheres,
em geral encontram as mesmas ações vistas sob uma luz mais positiva. Os
homens podem considerar o "alojamento das mulheres" como um local para
confiná-las e impedi-las de pôr em risco a comunidade. As mulheres, por
outro lado, podem considerá-lo como um local de poder e celebração. De
uma maneira similar, algumas mulheres judias ortodoxas começaram a
olhar para o lado positivo da proibição contra a relação sexual durante e
depois da menstruação. Em vez de vê-la apenas como "suja", consideram-
na como um tempo à parte, quando podem estabelecer um relacionamento
diferente com seus parceiros, e especialmente com seus próprios corpos.

Uma Religião Baseada na Realidade da Vida, Não no


Poder
As pessoas que criticam o movimento moderno da Deusa às vezes
perguntam: Se a Deusa é assim tão poderosa, por que as mulheres perderam
seu lugar? Como os homens assumiram o controle em toda parte e
dominaram as mulheres, mantendo-as ignorantes e escravizadas? Aqueles que
acreditam na Deusa podem também achar essas questões perturbadoras.
Alguns desenvolvem idéias míticas de que a Deusa abandonou Seus filhos ou
nos puniu por alguma ausência de adoração adequada, ou pela ruptura de
algum tabu. Outros recaem na hipótese do progresso, dizendo que a Deusa
permitiu que os homens assumissem o poder como uma etapa necessária no
desenvolvimento humano.
De certa forma, estas próprias perguntas surgem de um modelo
patriarcal de divindade. Nós descrevemos Deus (a Deusa) como Todo-
poderoso (Todo-poderosa), controlando e direcionando tudo que acontece
com deliberação, propósito e poder impossíveis de serem detidos. Este é o
154

Deus feito à imagem do homem (ou antes, as fantasias de onipotência do


homem), particularmente o modelo "dominador" senhor-escravo do mundo,
segundo a denominação de Riane Eisler. Nessa religião, Deus situa-se à parte
do mundo e dirige a sua atuação, comandando-nos acima de tudo mais para
temê-lo ("O Temor ao Senhor é o início da sabedoria", reza a Bíblia).
A religião da Deusa não é um "relacionamento contínuo" com um ser
controlador todo-poderoso que existe aparte do mundo. Ao contrário,
podemos chamá-lo de um relacionamento com o mundo como ele realmente
é, com seus ciclos, sua vida abundante e a morte sempre-presente, sua
alegria e seu sofrimento. O relacionamento contínuo emerge do corpo do
mundo e de nossos próprios corpos. A Deusa não está encarregada da
história. Ela é a história, com todo o seu sofrimento e o seu horror, e também
com suas belezas e descobertas.
As evidências do período neolítico nos ensinam que a Deusa não
requer uma cisão entre a natureza, a ciência e o sagrado. A beleza de lugares
como Stonehenge, Newgrange ou Chaco Canyon está em sua evocação do
sagrado através da canalização da luz para a pedra — dando forma ao corpo
mutante do mundo natural. Quando reconhecemos a criação como feminina,
não precisamos pressupor um Deus que crie apenas a partir do pensamento, e
que por isso determina tudo que acontece. Não precisamos buscar a religião
em algo "mais elevado" do que o mundo bem diante dos nossos olhos.
Uma religião baseada no mundo como ele é liberta tanto os homens
quanto as mulheres. Mencionei antes que o poder e o controle fundamental
do falo necessariamente produzem ansiedade, porque o pênis tanto cai
quanto sobe. Em culturas em que a Deusa incorpora a vida, o falo torna-se
um instrumento de vida, e por isso de libertação, mas não de conquista. O
historiador e filósofo Michel Foucault sugeriu que o conceito de Santo
Agostinho de se "levantar contra Deus" derivou da própria incapacidade de
Santo Agostinho de controlar seus anseios sexuais. Seguindo um Deus
transcendente constituído apenas de pensamento, Agostinho acreditava que
sua mente deveria dominar sua sexualidade. O fato de seu pênis subir sem
sua ordem parecia-lhe uma desobediência primal, conduzindo ao seu
conceito de pecado original, de cada geração infectada pelo crime de
Adão, do próprio esperma infectado (Agostinho concordava com
Aristóteles, que ensinava que o bebê existia integralmente no esperma), de
forma que a nossa criação através da sexualidade garante a nossa danação.
Entretanto, se baseamos nossa religião no mundo como ele é, o falo faz
exatamente o que deve fazer — nada mais.
155

Não precisamos travar grandes batalhas, ou sofrer martírio, para


"restaurar" a Deusa, pois Ela jamais foi embora. Só precisamos olhar,
reconhecer a realidade da natureza e de nós mesmos. De certa maneira,
estamos todos vivendo o mito do povo ona da Terra do Fogo. Uma religião
distorcida virou o mundo de cabeça para baixo, negando a existência de
qualquer coisa anterior a ela. Através da recuperação do conhecimento —
através da ciência, da arqueologia, dos atos das mulheres, das minorias e dos
povos nativos explorando suas histórias começamos a nos recuperar.
156

Fotos

Foto 1: O marco de pedra em Newgrange,


Irlanda, c. 3300-3200 a.C. A espiral tríplice
aparece no lado esquerdo da pedra.

Foto 2: O Monte da Serpente no sul de


Ohio, de data desconhecida, possivelmente c.
1000 a.C. Reproduzida com permissão de
Courtney Milne.

Foto 3: A Deusa Nana criada por Niki de St. Phalle para uma feira
sueca. Foto de Hans Hammerskiold; com permissão de Niki de St. Phalle.
157
158

Foto 4: A formação montanhosa de "Artemis" próxima do templo de Artemis em


Brauron, na Grécia.

Foto 5: Fissuras naturalmente


"escavadas" nas rochas próximo à
Teaching Rock em Peterborough,
no Canadá.

Foto 6: Espirais entalhadas no


templo de Tarxien, em Malta, c.
3000 a. C.
159

Foto 7: Pinturas de touros ma


caverna de Lascaux, na França. C.
15.000 a. C. Reproduzida com
Permissão dos arquivos Aras,
Instituto Junguiano, São Francisco.

Foto8(Esquerda):A “Vênusde
Willendorf”, Áustria, c. 30.000a. C.
Reproduzida com permissão dos
Arquivos Aras, Instituto Junguiano,
São Francisco.

Foto9(Direita): A “Vênus de
Laussel”, França, c. 15.000 a. C.
Reproduzida com permissão dos
Arquivos Aras, Instituto Junguiano,
São Francisco.

Foto 10: Nascer da Lua sobre


Stonehenge, na Inglaterra, construída
c. 2.800 a. C. Reproduzida com
permissão de Courtney Milne.
160

Foto 11: Pedras de pé do cìrculo de


Pedra de Avenbury, Inglaterra, c.
2.500 a. C.

Foto12: Arcos em um marco de


pedra de passage mound de Dowth,
Irlanda, c. 3.500 a. C.

Foto 13: Glastonbury Tor, Inglaterra, no pôr-do Sol. Reproduzida com permissão de Marilyn Bridges.
161
162

Foto 14: Vaso Mostrando


uma borboleta com asas
parecendo machados, da
cidade escavada de Kato
Zakrois, Creta, c. 1.400 a.
C.

Foto 15:Grandes Machados duplos do Museu de


Heraklion, Creta.
163

Foto 16: O Monte Jouctas, visto do Palácio de Cnossos, em Creta.


164

Foto17: As ruínas da antiga cidade de Gournia, Creta, c. 1.500 a. C.


165

Foto 18: O Monte Ida visto do pátio do palácio de Festos, Creta, c. 1.700 a. C.
166

Foto 19: Os Picos de Fedríade, Delfos,


Grécia. A Pedra de Gaia está embaixo, à
esquerda.

Foto 20: A grande pedra do Velho Templo de Atena Pronaina, Mármara, Grécia, c. 700 a. C.
167

Foto21: O portão do Leão, Micenas, Grécia, c. 1.350


a. C.

Foto 22: O precinto sagrado de Elêuses, Grécia, 400 a. C. O pico fendido do Monte Kerata
pode ser visto ao fundo.

Foto 23: O incrível montículo


de pedra que encontrei nos
bosquesperto da minha casa,
no Estado de Nova York.
168
169

6- O Corpo na Terra

Toda viagem é a partir da Mãe, para a Mãe, dentro da Mãe.

Nor Hall

O período neolítico europeu não destruiu tudo de uma vez só. Enquanto
algumas áreas sucumbiram aos invasores, outras continuaram a se
desenvolver e florescer. Esta "civilização da Deusa", como a chamou Marija
Gimbutas, atingiu seu auge na ilha de Creta 4.500 anos arás. Até seu mundo
ser destruído por uma combinação de terremotos e sucessivas invasões do
continente, os cretenses desfrutaram de uma sociedade ao mesmo tempo
complexa e graciosa, com grandes e complexos palácios estabelecidos em
harmonia com a presença física da Deusa na paisagem natural. Os cretenses
celebravam a sensualidade da vida em suas montanhas cornudas e seus
santuários nas cavernas, nos elegantes afrescos que exibiam coisas como
flores viçosas e golfinhos saltando, em suas danças de touros, e até mesmo em
seus sacrifícios animais, que retrataram em sua arte como jubilosas
procissões. Os gregos que vieram depois deles distorceram tudo isso, criando
particularmente histórias de pesadelo de um personagem metade homem
metade touro, o minotauro, devorando jovens e desamparadas atenienses.
Através da arqueologia e de introjeções de historiadores da arte e adoradores
da Deusa, despertamos deste pesadelo para descobrir uma veneração da vida.
Como os gregos posteriores, os cretenses cultuaram o corpo e beleza.
Ao contrário dos gregos, que procuravam a perfeição equilibrada, os cretenses
expressavam a vitalidade do corpo. Observamos isso nas estatuetas da própria
Deusa, de seios nus, cheia de energia, segurando serpentes em ambas as mãos.
E nós mesmos podemos experimentar um eco distante dela quando seguimos
os antigos caminhos das procissões em torno e dentro dos palácios, situados
diante da presença eterna das montanhas cornudas.
170

Uma Cultura Mais Antiga que a Grega


Do ponto de vista da história da Deusa, a Ilha de Creta representa uma cultura
distinta do restante da Grécia. Embora Creta tenha pertencido à nação grega
durante milhares de anos, desde que os micenenses a colonizaram e uniram
seus próprios Deuses às Deusas cretenses, a cultura original, com seus grandes
palácios, sua arte elegante e sua reverência pelas montanhas cornudas, era pré-
grega, uma extensão da cultura neolítica.
Grande parte do que conhecemos desta civilização chega até nós
distorcida pela criação de mitos da cultura grega posterior. Embora os nomes e
as histórias sobre Creta venham da própria ilha, eles na verdade refletem esta
religião posterior, patriarcal, e não o que o mito centralizado na Deusa revelou
nos afrescos, escudos e outros vestígios descobertos pela arqueologia. O próprio
Zeus, chefe dos Deuses do Olimpo, provavelmente iniciou sua existência
mítica como uma Vegetação Cretense ou Deus-touro. O folclore descreve
uma das montanhas cornudas dominando a paisagem natural próxima dos
principais palácios cretenses: o Monte Ida como o local de nascimento de
Zeus; o Monte Dikte, supostamente contendo sua tumba. Como os mitos
gregos enfatizam a imortalidade de Zeus, parece estranho falar em sul tumba.
Outro mito descreve o Monte Dikte como o local do "casamento" de Zeus com
Europa; mas a história padronizada conta que Zeus assume a forma de um
touro e violenta Europa. Elinor Gadon, em The Once and Future Goddess,
conta-nos que Europa significa "Lua cheia", e que o personagem de Europa
incorporava a Deusa como uma "vaca da Lua". Juntando esses indícios,
podemos supor que em certa época Zeus pode ter sido o consorte-touro da
Deusa em Creta, casando-se com a terra e sacrificando-se para garantir a
renovação da terra todos os anos, a partir do inverno ou a partir da seca sem
vida do verão. As muitas descrições de touros na arte cretense incluem
imagens de touros sacrificados à Deusa em procissões jubilosas.
O mito grego descreve abelhas alimentando o bebê Zeus em sua
caverna do Monte Ida. Mais uma vez, quando remontamos aos escudos e às
jóias gregas, descobrimos abelhas com a Deusa. As abelhas incorporam a
Deusa em todo o sul da Europa e o Oriente Médio. O escritor da antiguidade
Porfírio chama a grande Deusa Deméter de abelha, e o mito grego conta-nos
que Deméter veio de Creta. Placas de Cnossos, na própria Creta, gravadas na
escrita micenense conhecida como Linear B, descrevem oferendas de mel à
Deusa do parto, Eileitia.
Outro Deus-touro grego, Dionísio, Deus do Vinho, também pode ter se
originado em Creta. Os vasos gregos mostram Europa segurando vinhas
171

carregadas de uvas. No mito clássico, Dionísio casa-se com Ariadne, princesa


— mas talvez originalmente Deusa — de Creta. Na história, o casamento de
Ariadne com Dionísio eleva-a ao nível do divino. Originalmente, poderia ter
funcionado de outra maneira, com o touro tornando-se um Deus através do seu
casamento com Ariadne. O nome Ariadne significa "mais sagrado", um
epíteto aplicado também a Afrodite. Veremos mais sobre Dionísio, este
enigmático Deus do Êxtase, nos dois próximos capítulos.

O Mito Grego como um Quebra-Cabeça


Muitas de nossas imagens de Creta chegam até nós através das lentes
confusas da mitologia grega. A vivacidade do mito grego deriva cm parte de
sua conjunção do pensamento claro e lúcido — exemplificado nas
elegantes colunas dos templos gregos — com a violência selvagem,
incluindo assassinato, canibalismo, incesto, estupro, mutilação e
desmembramento. Por tudo isso perpassa uma sensação de camadas mais
profundas, de outras histórias e significados disfarçados e distorcidos,
alguns elementos unidos, outros separados, de forma que, quando se
interpretam os mitos, percebe-se que é quase — mas não completamente
— possível captar uma verdade mais simples. É como se um gênio
particularmente neurótico tivesse moldado tais histórias, recheando-as
com seu próprio bilhantismo e com sua esmagadora ansiedade. Daqui a
pouco vamos examinar a possibilidade de que esta ansiedade derive da
destruição da religião da Deusa, uma religião que os próprios gregos
reconheceram como mais antiga e mais profundamente ligada à terra e aos
fatos naturais da existência do que aquela de seus Deuses guerreiros
brutais. Aqui, no entanto, podemos observar, de maneira bastante breve,
como o tal gênio distorce os fatos dessa civilização pré-histórica que
Arthur Evans chamou de "minoano".
Podemos começar com o próprio termo "minoano", criado por Evans
quando ele escavou o palácio de Cnossos no início do século XX. O título
deriva de um Rei Minos, filho de Zeus e Europa, que supostamente
governou Creta antes de sua queda. Esta suposição ainda afeta a discussão
de Creta. Os arqueólogos chamaram alguns aposentos dos vários palácios
de "mégaros do rei", e outros aposentos menores de "mégaros da rainha".
Evans e seus seguidores profissionais descreveram uma cadeira de pedra
encontrada em um desses aposentos em Cnossos como o trono do rei. A
172

cadeira é simples e elegante, com pinturas na parede atrás dela, flanqueada


com grifos, mas nada nela indica necessariamente que tenha sido o trono de
um rei. Pode ter servido para uma sacerdotisa ou um sacerdote, ou para
alguém que recebesse homenagens em um determinado momento do tempo,
ou para algum propósito específico da cultura e desconhecido para nós. O
único indício vem de afrescos e vasos que retratam grifos protegendo uma
Deusa sentada. Talvez os cretenses quisessem indicar que a cadeira e as
pinturas na parede atrás dela davam vida ao quadro, com uma mulher
sentada majestosamente no lugar da Deusa.
Marija Gimbutas questionou o próprio termo "palácio" para o grande
complexo de ruínas descoberto por Evans. Em The Civilization of the
Goddess, ela escreve: "Os palácios não eram centros de administração de um
governante, mas templos onde ocorriam rituais religiosos elaborados dentro
de um sistema teacrático."
Textos escritos encontrados em Creta apresentam um quadro de
burocracia complexa. A escrita destes textos, Linear B, é na verdade grego,
dos invasores micenenses que pouco a pouco assumiram o controle de
Creta. A escrita anterior, estritamente cretense, conhecida
arqueologicamente como "Linear A", jamais foi decifrada. Quando obser-
vamos a arte cretense, não encontramos imagens de governantes todo-
poderosos, homens ou mulheres, mas apenas uma Deusa recebendo
homenagens e o encanto de Seus adoradores.

Pasífae e o Touro
Segundo o mito grego, Minos casou-se com uma mulher chamada Pasífae,
filha de Hélio e Perseu. Pasífae significa "toda iluminada", enquanto Hélio e
Perseu são o Sol e a Lua. Os nomes revelam a mulher mortal como a Deusa
do Céu. Será que os gregos tomaram o nome de uma Deusa do Céu
cretense e deram-lhe um papel secundário como esposa do Rei Minos? O
mito conta-nos como Poseidon, o Deus do Mar grego, enviou um touro
branco pelo mar até Minos, para que este sacrificasse o animal em honra ao
Deus. (Outras versões dizem ter sido Zeus quem enviou o touro, o que faz
sentido, porque Zeus assumiu a forma de um touro para violentar Europa.
Zeus, Deus do Céu, Poseidon, Deus do Mar, e Hades, Deus da Morte, eram
irmãos no mito, mas podem ter sido uma única figura dividida em três
funções.)
O sacrifício de touros, que aparece na arte cretense como um aspecto
tão poderoso da religião, pode ter derivado da domesticação de animais. No
173

tempo da caça e da coleta, os humanos tinham pavor das bestas. Fortes


imagens de touros, imensos, pintados em grandes detalhes e também em
movimentos selvagens, dominam Lascaux. Domes-ticar e controlar criaturas
como os touros deve ter produzido ansiedade ou culpa. Paradoxalmente, o
abate ritual e o oferecimento do animal à Deusa podem ter aliviado a
percepção de que a domesticação reduzira, ou trivializara, o poder das
bestas. Em um nível mais prático, mais de um touro em um rebanho
produzem um risco de violência quando os machos disputam o domínio. O
criador de gado pode castrar os touros em excesso, criar novilhos ou abatê-
los. E por que não atribuir ao abate desta jovem c magnífica criatura um
significado sagrado igual à experiência de lhe dar a morte?
No mito clássico, Minos não conseguiu suportar a separação deste
grande touro e então matou outro em seu lugar. Foi como se ele achasse que
Poseidon de algum modo não perceberia. O zangado Poseidon inspirou
Pasífae com uma paixão pelo próprio touro. Ela recorreu a Dédalo, um mestre
das artes manuais, e lhe ordenou que fizesse uma vaca de madeira na qual
ela pudesse entrar para seduzir o touro. Deste modo, no mito grego, a
Deusa-vaca do tamanho do mundo é reduzida a uma piada de mau gosto.

O Minotauro
Da união da mulher e do touro, Pasífae dá à luz um filho, o “minotauro” ou
"touro de Minos", como se o próprio Minos de alguma forma fosse seu pai,
ou até tivesse dado à luz o monstro. Agora, Dédalo constrói um labirinto
gigantesco para esconder este marco da vergonha de Minos, este metade-
homem, metade-touro, que na verdade, como Zeus ou Dionísio, representa
o consorte da Deusa. Para a mente patriarcal, a adoração da natureza e da
terra como a Deusa, o corpo feminino é aterrorizante, e qualquer coisa que
resulte desta "rendição" ao feminino só pode ser monstruosa. Assim, Dédalo
constrói seu "labirinto" para esconder o minotauro, e o Rei Minos exige
que Atenas, a cada nove anos, envie sete rapazes e sete virgens para serem
sacrificados ao minotauro. Assim como o número sete evoca os planetas
visíveis, o nove é o número supremo da Deusa, devido às nove Luas da
gravidez c à mágica do três vezes três, isto é, a Deusa Tríplice lunar
triplicada. Assim, os dois números sugerem movimentos celestiais. O
minotauro, na verdade, porta um nome grego, Astério, que significa
174

"(Rei) das Estrelas", embora haja outro indício de que ele originalmente
representou o parceiro da vaca cujas tetas deram origem à Via Láctea.
A história do próprio Dédalo, mestre dos artesãos, pode ter se ori-
ginado dos guerreiros gregos encontrando a complexa civilização
tecnológica de Creta, com suas cidades, palácios com muitas histórias,
encanamentos internos, rede de estradas e portos desenvolvidos. Os piratas
gregos provavelmente jamais viram nada remotamente parecido com isso.
Do mesmo modo, a idéia do labirinto pode ter se originado da complexidade
e do esplendor dos palácios, pois a palavra labirinto significa "casa do
machado duplo", e o machado duplo forma o símbolo ubíquo da Deusa em
toda Creta.

O Machado Duplo
Como foi mencionado no Capítulo 3, o machado duplo não funcionava como
arma, e a imagem nunca aparece na arte com figuras masculinas, mas apenas
isolada, nos pilares sagrados da Deusa ou nas cenas da Deusa e de suas
adoradoras, às vezes ao lado da Arvore da Vida no jardim do paraíso. (Um
guia de turismo de Creta descreve o machado duplo como um símbolo de
Zeus, um exemplo da maneira como a distorção patriarcal continua na cultura
moderna.)
A professora Gimbutas sugeriu que o labrys derivava da borboleta; e,
na verdade, aparecem borboletas gravadas em alguns dos primeiros
machados, enquanto outros mais ornamentados se assemelham a desenhos
de borboletas. No museu da capital cretense de Heraklion, um vaso da
cidade escavada de Kato Zakros exibe uma borboleta com asas como
machados duplos (ver Foto 14). A palavra grega psyche significa tanto "alma"
quanto "borboleta", uma conjunção que pode remontar à antiga cultura
cretense. A alma, como borboleta, implica uma visão da vida humana como
um estágio para uma existência mais plena.
As asas da borboleta e as lâminas curvas dos machados significam a
Lua crescente e minguante, e também os lábios da vulva humana. Labrys e
lábia são etimologicamente relacionados. O machado duplo pode nos sugerir
outras imagens. O cabo se assemelha a um galho ou um tronco de árvore,
estendendo-se em direção ao poder da Terra. A lâmina em si forma um laço
infinito, como um sinal do infinito na matemática moderna. Devido à
175

oposição nas curvas — côncavas na horizontal, convexas na vertical —, há


uma sensação de se atingir o ápice de uma onda e depois voltar para o lado
contrário. (Experimente traçar o padrão da lâmina dupla no ar com um braço
estendido, deixando sua mão se mover no ar em ambas as direções. O
movimento pode produzir um aumento e uma liberação intensos de
energia.)
O machado duplo pode aparecer muito simples ou decorado, às
vezes com guirlandas de folhas ou com leões ou grifos. Os machados que
foram encontrados variam em tamanho, desde alguns centímetros até cerca
de dois metros (ver Foto 15).
O machado duplo aparece também em outros lugares, incluindo
Çatai Hüyük, na Anatólia, e já mencionei a teoria de que os anatolienses
fundaram Creta. O nome Cyèele, a Grande Deusa da Frígia (Anatólia) e de
Roma, é um cognato de cybella, ou caverna, e cybellis — machado' duplo.
Na África, Xangô, o Deus dos iorubas, carrega um machado duplo que ele
usa como arma (como o martelo de Tor, equivalente escandinavo de
Xangô). O próprio Xangô é o companheiro de Oya, que Judith Gleason
descreve como "Mulher Búfalo", conectando-a à pintura de uma rocha
neolítica do Saara que mostra uma Deusa dançando com seios cornudos.
Uma imagem semelhante a um machado duplo aparece na caverna
paleolítica de Niaux, na França, e na cultura neolítica de Tel Halaf, no Iraque.
Christina Biaggi declara que o machado duplo pode ter se originado das
nádegas exageradas das escavações da Deusa paleolítica (compare com as
espirais nas nádegas da Deusa de Cucuteni, na p. 129)- Em Creta, também
encontramos o machado duplo entalhado nas colunas de estalactite das
cavernas.
Na década de 1970, muitas feministas radicais passaram a usar
réplicas dos labrys como bijuteria. Como um interessante reflexo de nossa
cultura guerreira, a maioria destas mulheres não consideravam que o
machado pudesse não ser uma arma. Encarando a imagem como uma
ferramenta das amazonas resistentes ao patriarcado, elas usaram o labrys
como um sinal de militância. Quando visitei o palácio de Cnossos,
encontrei, em um aposento chamado de "santuário do machado duplo",
uma moderna estrutura de madeira onde alguém com uma lâmina de ponta
escavou a imagem dos labrys ao lado de um sinal feminino (ou da Vênus)
duplo, símbolo contemporâneo das lésbicas feministas.
176

Sacrifício Humano
A história grega dos sete rapazes e das sete virgens sacrificados ao
minotauro levanta a possibilidade de sacrifício humano, e também de touros,
em Creta. Tanto os gregos quanto os hebreus citaram supostos sacrifícios
humanos como justificativas para sua derrubada da antiga religião da Deusa.
Na verdade, encontramos evidência em Creta de um — apenas um —
sacrifício humano. Este ocorreu bem no fim do período minoano, durante
uma época de terremotos. Ninguém sabe ao certo a razão da aniquilação da
cultura cretense e da destruição dos palácios, particularmente de Cnossos,
em torno de 1400 a.C. Entretanto, a maioria dos arqueólogos supõe que a
aniquilação ocorreu devido a uma série de terremotos, o mais poderoso tendo
ocorrido em 1450 a.C. Este terremoto concentrou-se na ilha próxima de
Thera, mas as ondas por ele provocadas destruíram as cidades e os palácios
de Creta. Um terremoto anterior, ocorrido em 1700 a.C., destruiu a primeira
versão do palácio. O fato de não o terem reconstruído após o segundo
grande abalo implica um enfraquecimento fatal na estrutura social durante os
250 anos decorridos entre os desastres.
Segundo Vincent Scully, os cretenses construíram Cnossos em um
local de perturbação císmica máxima, como se quisessem sentir o poder da
Terra dando vida às paredes. Podiam não ter compreendido o perigo antes
do primeiro terremoto e depois reconstruíram o palácio no mesmo local
porque acreditavam que ali fosse o seu lugar. Ou, como os habitantes
contemporâneos de Los Angeles, podem ter decidido ficar e correr o risco de
outro maior.
Terremotos mais fracos, anteriores ao de Thera, ameaçaram a
cultura do palácio durante um certo tempo, período em que as pessoas
podiam perceber o que estava acontecendo e buscar, através de orações,
evitar esta catástrofe que não podiam esperar controlar por seus próprios
esforços. Isto ocorreu durante um período em que os micenenses proto-
gregos estabeleceram o domínio em Cnossos, levando para lá chefes
guerreiros e adaptando grande parte da religião da Deusa.
Evidência arqueológica mostra que, próximo ao final do período dos
terremotos, um sacerdote levou um rapaz para um altar em um local agreste
nas colinas e enfiou uma faca em suas costas. Só recentemente os
arqueólogos descobriram este lugar. A pequena ruína está no alto de uma
montanha íngreme no campo. Em contraste com a área do porto ou com as
177

amplas planícies do interior, a terra ali não parece receptiva nem


envolvente. Ao contrário, os picos íngremes e as rochas cortantes elevam-se
da terra como facas. O local do sacrifício (demasiado rústico e improvisado
para ser chamado de templo) situa-se em um eixo norte-sul, com as
montanhas atrás e o mar à frente. Eu visitei o local no final de setembro, no
fim da seca do verão, com a terra cinzenta e sem vida. Contrastando com as
ruínas muito mais "desenvolvidas", como os palácios, o local está
cuidadosamente cercado, sem tabuletas, e protegido por arame farpado.
Sabemos o que aconteceu nesse lugar porque outro terremoto ocorreu
no momento exato do sacrifício. As pedras enterraram o matador no chão,
ao lado de sua vítima, a faca ainda enterrada nas costas do cadáver. Se na
verdade as pessoas imaginavam que uma morte humana pudesse aplacar a
Deusa, obviamente entenderam mal. A mensagem diz: "Não, não, eu não
queria absolutamente dizer isso."

A Dança do Touro
A partir das evidências arqueológicas, pode parecer que o assassinato
isolado contrasta com toda a prática anterior. Então, por que os atenienses
imaginam um "Rei das Estrelas" com cabeça de touro devorando as
crianças de Atenas? Além do valor óbvio da propaganda, podiam estar
distorcendo a famosa dança do touro cretense, em que rapazes e moças
seguram os chifres do touro e saltam graciosamente sobre suas costas —
uma distorção realmente enorme de algo tão positivo e alegre.
A arte que mostra a dança do touro não apenas homenageia o corpo
jovem, mas ajuda a demonstrar a igualdade das mulheres e dos homens na
sociedade cretense. Milhares de anos antes de nossos estilos "unissex"
ocidentais, os cretenses praticavam esta mistura livre das imagens dos dois
sexos discutida no Capítulo 5- As mulheres com artefatos masculinos para
cobrir os órgãos sexuais, e os homens nos rituais — outro tipo de dança —
com suas saias farfalhando graciosamente. A arte mostra ambos os sexos
com cinturas finas e muitas jóias. As mulheres e os homens também foram
mostrados caçando juntos. Mas não eram assexuados ou desatentos às
diferenças entre os sexos, pois outras imagens mostram mulheres com
seios nus ou homens com pênis eretos.
A dança do touro, como as danças religiosas de toda parte, expressam
o poder e a beleza do corpo sagrado. Já vimos a possibilidade de campos de
178

dança em pelo menos uma caverna paleolítica, Pêch-Mèrle. A dança é tão


instintiva quanto o sexo, quanto dar à luz. Nor Hall comenta que tanto a
dança quanto o parto dão vazão a ritmos instintivos. Um hino grego
descreve Artemis — responsável pelas mulheres no parto, mãe das
montanhas, protetora dos animais — colocando de lado o Seu arco para
dançar com as nove musas diante da casa de Seu irmão, Apoio (para mais
informações sobre Artemis e Suas companheiras de dança, ver Capítulo 7).
Através da dança, experimentamos nossos próprios corpos como se
estivessem vivos, e experimentamos a vida que flui ritmicamente através de
toda a criação. Nas maravilhosas palavras de uma canção dos pigmeus do
Gabão (coletada na antologia de Jerome Rothenberg, Technicians of the
Sacred), "Tudo vive, tudo dança e tudo é sonoro".
As células dançam, os elétrons dançam, as galáxias dançam em seu
movimento espiralado. A dança religiosa coloca-nos fora de nós, em um
estado de êxtase (literalmente, "ficar fora de si"). Mas também contribui
para um bem comum, pois, unindo-nos em uma dança ritual, oferecemos
nossos corpos isolados, "sacrificamos" nossos egos individuais e entregamos
nossos corpos para evocar o poder da Deusa.
A dança aparece como um tema em grande parte da arte cretense.
Stylianos Alexiou descreve as pinturas em um sarcófago que mostram a
execução de música em um sacrifício de touro. Mais adiante, descreve um
suporte para frutas mostrando dançarinas dos dois lados de uma Deusa
segurando flores, uma cena semelhante em uma tigela, figuras de barro
mostrando quatro homens dançando em círculo com seus braços nos ombros
um do outro, um círculo com mulheres dançando com os seios nus, e uma
pintura de Cnossos de sacerdotisas dançando em um bosque sagrado de
oliveiras. No dia em que escrevi esta passagem, recebi informações sobre a
"Primeira Celebração Internacional do Minoano da Parceria". A capa do
panfleto mostra uma foto de museu de três figuras de barro apresentando
uma dança em círculo em torno de uma figura central tocando uma lira.

Teseu e o Labirinto
O espiritual é político. Toda religião carrega uma mensagem social. A maior
parte da mitologia grega patriarcal apoiava o regime da época, ao mesmo
tempo em que denegria a cultura anterior. No mito ateniense, Dédalo — um
gênio masculino isolado — constrói o "labirinto", uma estrutura
179

supostamente impenetrável, tão complicada que ninguém conseguia fugir


dela. O herói ateniense Teseu mata o minotauro e depois retorna do labirinto
seguindo uma linha que lhe foi dada por Ariadne. Desenrola-a ao penetrar no
labirinto, e só tem de segui-la de volta para fugir.
Mais uma vez encontramos um mistério de distorções, tanto da
psique quanto dos fatos históricos da prática religiosa cretense. O projeto
conhecido hoje como labirinto não é de forma alguma um quebra-cabeça,
mas um caminho rumo a um centro, com a característica especial de voltar
sobre si mesmo sem cruzar nenhuma linha. O caminho só conduz ao centro,
e só se pode voltar seguindo de volta os próprios passos (ver Figura 10).

Figura 10: 0 padrão do labirinto de Creta.

O labirinto simboliza o útero da Deusa, através do qual viajamos cm


uma dança extática, de volta à fonte da nossa existência, depois mais uma
vez voltamos ao mundo externo de nossas vidas cotidianas. A distorção
deste padrão claro, uma espécie de dança, em um quebra-cabeça em que se
pode ficar perdido para sempre demonstra os mistérios e as confusões da
própria mitologia grega. Também representa o medo de perder o ego nas
danças em procissão rumo ao coração da Deusa. A linha da história pode
ter originalmente significado o cordão umbilical e a eterna conexão com a
Mãe da vida, outra versão daquele nó que vimos ligando nossas vidas à
Deusa. Na história do Teseu, no entanto, a linha passa a ser a conexão com
a racionalidade e o controle.
180

Há muitas sugestões com relação à origem do padrão do labirinto. Ele


pode ter derivado de uma dança erótica realizada na primavera. Na Ilíada,
uma das cenas sobre o escudo de Aquiles descreve um piso de dança
supostamente projetado por Dédalo para Ariadne. G. R. Levy escreve sobre
um selo cretense retratando "Ariadne" quando ela assistia a uma dança
extática (a identificação da figura sem nome com "Ariadne" provavelmente
deriva do mito grego). Nor Hall sugere que a dança do labirinto pode ter
copiado os padrões de movimento dos grous durante o acasalamento,
enquanto Robert Graves relata que o desenho do labirinto origina-se de uma
armadilha colocada para perdizes, que realizam uma dança claudicante na
estação do acasalamento.
Embora tenha recebido o título de "o labirinto de Creta", o padrão do
labirinto não aparece com muita freqüência na arte minoana. Sabemos de
sua existência em Creta principalmente a partir do desenho em moedas. É
estranho que a mesma imagem apareça na arte rupestre do sudoeste
americano. Ao contrário de símbolos como a cruz ou a espiral, o labirinto
parece complicado demais para aparecer independente- j mente em
diferentes culturas. Será que os cretenses viajaram para ai América do
Norte 3.500 anos antes dos vikings?
A idéia de uma dança sinuosa pode assinalar um elemento essencial da
religião cretense: um caminho em procissão que se inicia fora do palácio e
segue para o seu interior em um padrão sinuoso ou espiralado, até o mistério
oculto da cripta do pilar, no centro do palácio.

O Poder da Terra
As idéias de Vincent Scully sobre as paisagens sagradas receberam muito
pouca atenção dos arqueólogos clássicos, embora Donald Preziosi, em seu
livro Minoan Architectural Design, comente que Scully merece mais
consideração do que lhe tem sido prestada. Embora crítico de alguns
detalhes de Scully, Preziosi reconhece a total plausibilidade dos dois pontos
principais de Scully: que os cretenses deliberadamente orientaram seus
palácios em um eixo norte-sul, e que os associaram a características
particulares da paisagem natural.
O próprio Scully, no prefácio da edição de 1979 de The Earth, the
Temple, and the Gods, expressa sua exasperação com o fato de que, para a
maioria dos autores que escrevem sobre os locais sagrados gregos, "a
181

paisagem natural ainda não exista". Ele comenta que os seres humanos
"observam seletivamente, não empiricamente", e sua visão é condicionada
pela "estrutura conceituai de sua cultura".
Se os arqueólogos profissionais não deram atenção à estética da
paisagem natural de Scully, o movimento para redespertar a religião da
Deusa inspirou-se muito em seu trabalho. Isto aconteceu em parte através da
disseminação das idéias de Scully em outros escritos, como o artigo de Mimi
Lobell em Heresies, ou o livro de Elinor Gadon, The Once and Future
Goddess, ou ainda Earth Wisdom, de Dolores La Chapelle. Assim como a obra
de Marija Gimbutas, os escritos do professor Scully vão além do
fornecimento de informações. Transmitem uma sensação do poder e da
beleza da Deusa, cujo corpo na terra só emerge integralmente através das
ações simbióticas dos seres humanos.
Scully descreve a arquitetura antiga como "um milagre da reconci-
liação" entre as necessidades humanas e a natureza. Na Grécia continental,
este equilíbrio delicado pendeu para o humano, de forma que o templo
assume uma imagem de "vitória". Na cultura cretense anterior, os palácios
buscavam a harmonia da paisagem natural como o corpo da Deusa. Não
havia templos, em parte porque os cretenses, como os pintores do período
paleolítico, adoravam a Deusa em sua caverna-útero. A construção dos
templos significa uma religião em que os Deuses começaram a se separar da
terra. Com a construção dos templos para sua adoração, os Deuses
assumiram personalidades distintas da natureza. Embora os templos gregos
ainda se insiram na paisagem natural, suas elegantes colunas e estátuas
evocam uma divindade mais inspirada pela cultura humana do que pelos
ciclos da Terra. Entretanto, os santuários encontrados nos palácios cretenses
não impediram os cretenses de conservar sua atenção nas montanhas e nas
cavernas.

A Natureza e a Política
Scully declara que a qualidade da terra, em si, ajuda a criar a sensação do
sagrado que é especial para uma sociedade. Embora Creta tenha algumas
regiões inóspitas, as montanhas são em geral acessíveis, os montes
arredondados. Scully observa que o "horror" às vezes encontrado na visão
que outras culturas têm da Deusa Mãe—que Erich Neumann chamou de "a
Mãe Terrível" — não existe em Creta. Diferente, digamos assim, da feroz
Deusa hindu Kali, a Deusa cretense não devora, mas inspira encantamento.
182

O arqueólogo Nicholas Platon escreve sobre Creta: "Um hino à Natureza,


como se fosse uma Deusa, parece ser ouvido em toda parte, um hino de
alegria e vida." A arte de Creta jamais é estática, mas repleta de
movimentos graciosos.
Se situamos uma religião desenvolvendo-se a partir das realidades da
natureza, então certamente os aspectos especiais de um lugar ajudariam a
condição da experiência religiosa. Ao mesmo tempo, a religião também se
desenvolve a partir de condições políticas. Na medida em que a Mãe
Terrível existe no mito e não é uma invenção dos psicólogos modernos, Ela
pode refletir ansiedades patriarcais sobre a destituição em uma cultura
anterior. Na índia encontramos, assim como Kali, outras Deusas canibais
que bebem sangue. Os intérpretes modernos têm realizado análises sutis
destas imagens. Entretanto, devemos reconhecer que a índia, como a Grécia
e a Antiga Europa, sofreu invasão e conquista de indo-europeus que levaram
com eles seus Deuses guerreiros do Céu para derrotar as Deusas dos
drávidas, que têm sua base na Terra. Até hoje, a Deusa permanece
reverenciada em muitas aldeias, e a figura de Kali, a própria imagem da
Mãe Devoradora, conserva seu lugar de honra nos altares domésticos.
Na verdade, o professor Scully não reduz a importância das neces-
sidades políticas e até mesmo militares. Ele declara que os micenenses
aceitaram os princípios cretenses, porém os adaptaram à sua situação
guerreira (especialmente na própria Micenas), enquanto os dórios recusaram-
se a aceitar as "condições" da harmonia cretense, "incluindo a promessa
oculta da imortalidade", e situavam Zeus acima da Mãe.

As Formas Específicas da Paisagem Natural


Segundo Vincent Scully, desde 2000 a.C. todo palácio cretense passou a
compartilhar alguns elementos da paisagem natural. Estes envolvem um
vale fechado em que o palácio se situa; um monte suavemente arredondado,
ou cônico, situado em um eixo com o palácio na direção norte ou sul; e, no
mesmo eixo, "uma montanha fendida, mais elevada, com um pico duplo".
Esta montanha pode possuir outras características, mas o pico duplo ou a
fenda chanfrada permanecem constantes. Esta forma proporciona à
montanha um perfil de chifres, embora possa também sugerir braços
levantados, ou asas, ou seios, dependendo um pouco do tamanho e da forma
do pico duplo. Como o aspecto mais notável da paisagem natural, tanto a
montanha como o cone diante dela atraem o olhar do observador. O palácio
enfatiza esse aspecto através do seu longo pátio plano, que nos conduz
183

diretamente aos chifres elevados. Scully descreve o cone como "a forma
maternal da terra", e a montanha cornuda como "o símbolo do seu poder
ativo".
Vale a pena repetir aqui a descrição de Mimi Lobell da paisagem
natural como o corpo. "O vale representava seus braços envolventes; a
montanha cônica, seu seio... a montanha cornuda, seu "colo" ou vulva
fendida... e o santuário da caverna, seu útero que dá à luz."
No mais famoso palácio de Creta, Cnossos, o Monte Jouctas surge
impressionante atrás dos muros (ver Foto 16).
Jouctas também é visto claramente, ao sul, do antigo porto de
Cnossos. Na verdade, também pode ser visto claramente, também ao sul, da
linha litorânea da moderna capital de Heraklion, um fato que descobri
enquanto caminhava rumo a uma montanha cônica a oeste do porto
moderno.
Jouctas, como Ida e Dikte, contém santuários em cavernas onde os
cretenses adoravam a Deusa. Mais tarde, essas mesmas cavernas tornaram-se
residências de Zeus, inclusive o local da "tumba" do Deus imortal. Em todo o
Oriente Médio, a religião se concentrava na montanha sagrada. Nos países
planos, como a Mesopotâmia, as pessoas construíam zigurates e pirâmides
para imitar o corpo montanhoso da Deusa. Em Earth Wisdom, Dobres La
Chapelle descreve as montanhas como um local natural de revelação,
citando sua própria experiência de ver uma "glória", um magnífico jogo
óptico de luz e sombra, visível apenas em altitudes elevadas.

Diferenças Sutis
Na verdade, apenas o palácio de Festos situa-se em um eixo norte-sul
preciso em relação à sua montanha, o Monte Ida. Em Mallia, um palácio
situado na costa norte, o Monte Dikte realmente aparece sobre o canto sul-
leste, enquanto em Cnossos vemos o Monte Jouctas a alguns graus de
distância do eixo norte-sul. Como os construtores estavam lidando com
uma conjunção de princípios, como os alinhamentos direcionais e a
praticidade de colocar seu palácio alinhado com os contornos do chão,
teríamos que esperar alguma variação.
Fachadas de dois ou três andares de altura cercavam os palácios. Do
pátio, dentro dos muros, só os picos das montanhas podiam ser vistos. Isto
na verdade enfatizava as montanhas cornudas. Os adoradores ainda teriam
184

considerado os montes mais baixos durante as procissões religiosas fora dos


muros, e eles seriam conhecidos por outras características, ainda que só
pudessem ser vistos de fora do palácio. Donald Preziosi observa que as
mesquitas de todo o mundo têm alguns pontos que apontam para Meca,
ainda que a cidade seja invisível de virtualmente todos os locais.
Em todos esses três palácios importantes as pessoas podem ver o
pico da montanha do centro do pátio, diretamente oposto aos principais
santuários do lado oeste. Os santuários podiam ter comemorado a criação
dos próprios palácios. Ao se afastar da montanha natural e rumar para o
santuário criado pelos homens, os adoradores teriam expressado o início
simbólico da cultura humana.

Os Chifres da Consagração
Segundo Preziosi, Cnossos possuía uma grande entrada na fachada sul. Esta
entrada não ficava no centro da parede, o que parece incomum. Na verdade,
abria diretamente para uma visão do Monte Jouctas. Os primeiros
escavadores de Cnossos encontraram os grandes Chifres da Consagração
colocados precisamente na frente desta entrada. Se colocados na linha do
teto acima da porta, teriam moldado a montanha fendida.
Em certas ocasiões do ano, os Chifres teriam também moldado o Sol
em sua graciosa curva. Esta combinação teria feito eco às imagens egípcias
do disco do Sol entre dois picos. Similarmente, quando a Lua cheia aparecia
entre os Chifres, a visão duplicaria a coroa egípcia de Ísis.
Será que Creta e o Egito influenciaram um ao outro ou se inspiraram
em uma fonte comum? Mimi Lobell descreveu a procissão anual de barcos
descendo o Nilo entre dois picos, um de cada lado do rio. O faraó, em sua
barcaça, incorporava Amon-Ra, o Deus Sol, viajando para se encontrar
com a Deusa Nut. Em uma conferência, Lobell vinculou a viagem a Creta.
Mostrou um slide da Deusa cretense com os braços levantados, chifres em
Sua cabeça e um cone de pé atrás Dela e visto entre Seus braços. Se ficarmos
nesta posição, com os pés juntos e os braços levantados e curvados, como
chifres, vamos experimentar uma abertura no corpo, uma abertura para o
universo. Isto é especialmente verdadeiro se ficamos nesta posição olhando
para o Sol — e mais ainda se ficamos de frente para os picos de uma
montanha cornuda.
185

Outros Alinhamentos
O alinhamento com picos cornudos ou fendidos aparece em outros lugares
além dos três principais palácios. Na cidade de Gournia, situada na encosta
de um monte ao longo da costa norte (ver Foto 17), podemos perceber uma
sensação da Terra nos protegendo, com a montanha dupla próxima parecendo
mais seios que chifres.
Tanto Gournia quanto Kato Zakros, um palácio situado na extre-
midade oriental da ilha, contêm pátios orientados para as montanhas.
Escavando um santuário de um aposento no alto do monte em Gournia, os
arqueólogos encontraram um altar com três pés, pedestais, um modelo dos
Chifres da Consagração e uma Deusa Serpente de barro.
Andar à beira do mar em Gournia e entrar na cidade é comparável
a entrar no corpo da Deusa nos templos de Malta. Gournia dificilmente l
foi contemporânea dos templos malteses em Mnajdra, o único grupo de l
templos que está diante do mar (e os únicos alinhados com os eventos
solares). Na verdade, os templos de Mnajdra estão de frente para a
pequena Ilha de Filfla, que tem um perfil de pico duplo.
Gournia parece ter sido, em sua época, uma cidade próspera. Atual-
mente, as ruínas possuem uma quietude tranqüila (devida em parte, sem
dúvida, à ausência de grandes levas de turistas). Situadas na encosta de
uma colina verde e com árvores, elas ficam de frente para o mar. Ao
mesmo tempo, o lugar apresenta contrastes rítmicos de paisagem l
natural áspera e suave. Uma cordilheira parece cercar a cidade, e além j
dela elevam-se as montanhas denteadas do acidentado interior de Creta. Os
montes arredondados como seios erguem-se ao sul, mas rochas es-
carpadas elevam-se diante deles. O mar parece ser a única abertura.
Até as residências particulares seguem o mesmo padrão. Próximo à
praia de Amnissos, fora da capital, Heraklion, situa-se a ruína de uma j
aldeia, em um eixo norte-sul com um pico duplo atrás dela, mais um j
monte que uma montanha, mais adequado para uma residência que para
um "palácio".
Amnissos, próximo de Heraklion, tornou-se uma popular praia de
turistas. A mitologia clássica, no entanto, une a praia a Artemis. Zeus j
pergunta a Artemis, com três anos de idade, que dons Ela gostaria de
possuir como Seus atributos. (Parte do programa para proporcionar su-
premacia a Zeus incluía transformar a arcaica Artemis em filha de uma
186

geração mais jovem dos Deuses do Olimpo.) Rindo, a Deusa diz que
gostaria de se livrar do casamento, além de um arco e o direito de caçar,
o domínio das montanhas e a companhia das ninfas de Amnissos. j O nome
Artemis é de origem incerta e não é grego. Aparece pela primeira vez em
placas de Pilos, na escrita Linear B. Por isso, remonta pelo menos ao
período micenense, e possivelmente à Creta minoana ou até mesmo à
Idade da Pedra. Três Deusas cretenses ficaram ligadas a Artemis —
Diktynna, "A Mulher da Rede", Britomartes, ou "Doce Virgem", e
Eileitia, a Deusa do Parto. Segundo Anne Baring e Jules Cashford, os
festivais da primavera no grande templo de Artemis em Éfeso, na
Anatólia, incluíam uma tourada e sacrifício.

Procissões
A idéia de um caminho de procissões para os palácios de Creta deriva de
várias fontes. Antes de tudo, caminhos claros, freqüentemente con-
tornados com afrescos, sugerem um movimento ritual. As imagens dos
brasões e dos próprios afrescos exibem pessoas se movendo majestosa-
mente em costumes cerimoniais para os locais do sacrifício. A mitologia
grega posterior fala-nos sobre os kouretes, guardas do infante Zeus,
martelando os escudos para encobrir os gritos do Deus escondido en-
quanto ele estava em sua caverna de Creta, alimentado por abelhas. Esta
imagem pode ter se originado das procissões de Creta, que incluíam o
martelar de escudos com a forma do número 8. Evans encontrou esses
escudos, e também pinturas deles, em sua escavação de Cnossos. O
número 8 traz à mente os seios e os quadris arredondados do corpo
feminino e recorda as "Venus" da Idade da Pedra Lascada e o chão plano
dos templos malteses.
As imagens cretenses mostram uma Deusa viajando em um barco
com Seus adoradores. Também temos conhecimento de viagens para
santuários em cavernas e de danças de touro no pátio, à vista do pico
cornudo. Finalmente, podemos presumir os rituais das procissões ob-
servando suas práticas posteriores na Grécia, onde a adoração das Deusas
freqüentemente envolvia procissões, como aquela doarktoi, ou "elas
rumam" — meninas com cerca de nove anos de idade que viajavam de
Atenas para o templo de Artemis em Brauron.
187
188

Creta e os Mistérios de Elêusis


A mais famosa procissão grega era aquela dos mystae, os iniciados que
viajavam de Atenas — ao longo da costa da Atica — para Elêusis, onde
homenageavam os Grandes Mistérios de Deméter e Perséfone (ver Ca-
pítulo 8). Muitos observadores dos Mistérios, tanto os antigos quanto os
modernos, declararam que os Mistérios de Elêusis, e os posteriores Mistérios
helênicos, representavam a sobrevivência e até o retorno da religião cretense
da Grande Deusa. E, na verdade, o local dos Mistérios fica além de um pico
cornudo na Ilha de Salamis, enquanto o caminho da procissão aparece e
desaparece da vista de uma montanha em forma de cone. G. R. Levy
descreve uma imagem fúnebre de Creta mostrando a Deusa em um barco, e
retrata isso como um elo entre o florescimento da Terra e o renascimento do
morto, conceito que se tornou a idéia básica dos Mistérios.
Anne Baring e Jules Cashford apontam várias pinturas cretenses que
sugerem uma origem cretense para o mito de Deméter e Perséfone, a história
que está no centro dos Mistérios. Citam, particularmente, uma linha
simples desenhada em uma xícara de c. 2000 a.C. A pintura mostra duas
mulheres inclinadas para baixo, como se estivessem chorando, diante de
uma terceira que pode estar colhendo um narciso. No mito eleusiano, um
narciso atrai Perséfone para um local onde Hades, o Deus das Trevas, a
seqüestra. Uma segunda pintura, no mesmo estilo, mostra o trio de pé, com a
figura do meio agora segurando duas flores.

O Caminho da Procissão: Do Mar para o Palácio no


Interior
O caminho da procissão de Cnossos pode ter se iniciado no porto. Scully
descreve o caminho para o palácio como uma sinuosa "serpentina" através dos
montes mais baixos, até as colinas mais altas que definem o vale. A entrada
cerimonial pode parecer ter sido no muro ao norte, onde encontramos
escadas duplas conduzindo a uma área às vezes chamada de "teatro"
(embora o teatro só tenha se desenvolvido muito mais tarde, na Grécia
continental). As escadas são atingidas ao longo de um piso alto tão estreito,
que as pessoas precisam caminhar em fila indiana. O professor Scully encara
isso como olhar atrás, para as cavernas paleolíticas, como Lascaux, em que as
pessoas passavam em fila indiana através do corredor de entrada para o
aposento mais amplo das pinturas, com seus formidáveis touros. Se o palácio
189

e a paisagem natural, juntos, significam o corpo da Mãe, então entrar um de


cada vez teria recordado aos adoradores que todos nós saímos um de cada
vez dos corpos de nossas mães para o mundo.
Agora os caminhos dividem-se em dois. Um segue para leste, en-
trando em um saguão de pilares, depois volta para o sul e sobe uma rampa
para sair na extremidade leste. Aí a linha de visão sai do pátio aberto para
os montes que "fecham" o vale. Adiante, eleva-se o Monte Jouctas. Já
tivemos uma percepção do movimento do labirinto, o caminho voltando
sobre si mesmo quando se eleva até o campo de visão. Seguindo esse
caminho, através do vale e agora do palácio, uma procissão de seres
humanos forma o corpo de uma serpente. Junto com a paisagem natural e a
construção, a procissão traz à vida a Deusa cretense com suas serpentes
enroladas em Seu corpo. Aqui, como na visão de Avebury de Michael
Dames, os corpos humanos precisam se unir à paisagem natural e às
construções humanas para compor uma escultura viva da Deusa e das
serpentes que a acompanham.
O segundo caminho segue uma via ainda mais labiríntica, derivada do
fato de que o pátio não se situa precisamente em um eixo com a montanha.
Este caminho, também estreito, move-se, a partir do "teatro", para o lado
oeste do palácio, onde vemos mais uma vez o monte e a montanha. Em um
espaço aberto, o "pátio oeste", onde se junta um novo caminho do oeste,
encontramos um altar, e além dele o pórtico oeste da construção, com uma
coluna entre suas paredes. Já vimos como uma coluna, ou pilar, incorporava a
Deusa como símbolo do Seu poder na Terra, lembrando as estalagmites das
cavernas e também Sua eterna Arvore da Vida.
Agora o caminho nos conduz através de um corredor, também muito
estreito e coberto de afrescos de procissões (igualmente reminiscentes das
pinturas das cavernas), até um "lugar escuro" (Scully) e depois novamente
para fora, para a luz que está além do terraço sul, onde mais uma vez o
monte suave e os chifres austeros da montanha tornam-se dramaticamente
visíveis.
O caminho continua, movendo-se através da luz e da escuridão, até
que emergimos na luz brilhante do pátio. Ali ocorrem as danças dos touros,
com os rapazes e moças graciosos saltando sobre os chifres do touro,
enquanto os igualmente graciosos Chifres da Consagração destacam-se
orgulhosamente nas paredes acima deles.
O movimento da procissão não somente serpenteia continuamente,
apresentando visões do Monte Jouctas e depois se afastando dele, mas
também se move entre espaços estreitos e abertos, contraindo e se
190

expandindo, uma réplica da respiração e também das contrações da mulher


no trabalho de parto. Move-se entre escadas e rampas e no chão plano, e na
luz e na escuridão. O efeito geral é sinuoso, como uma serpente sem pele,
com uma sensação de mudança que tanto é espiritual quanto física.
A procissão não termina no pátio. A reconstrução do professor Scully
agora nos leva à direita, do pátio aberto para o "o santuário da Deusa, tipo
caverna, baixo e escuro". Este é um aposento conhecido hoje como a "cripta
dos pilares", contendo pilares escuros, oferecendo covas para sacrifícios e
um símbolo entalhado do machado duplo. Tendo emergido na luz jubilosa
do pátio do touro, onde os dançarinos celebravam sua exuberância, o
caminho trouxe-nos agora à escuridão dos mistérios internos, o local mais
íntimo da Deusa, onde a solenidade do sacrifício do touro pode ter
equilibrado a cultura habitual da sociedade, concentrada na vida. O professor
Scully escreve que

O movimento da procissão da luz para a escuridão para a


luz e novamente para a escuridão — culminando no
santuário da caverna mais interna onde encontravam ao
mesmo tempo a terra profunda da deusa e o pilar que
simultaneamente dá entrada e suporta a terra, sendo por
isso também seus — transforma o palácio minoano como
um todo naquele labirinto cerimonial em torno do local
secreto que os gregos recordaram em seus mitos.

Recordavam - e distorceram, transformando-o em um lugar de mons-


tros e de assassinato, de terror e não de santidade. Será que foi simplesmente
a propaganda que levou os gregos a contar que seu herói, Teseu, I derrotou
um matador selvagem dentro de um labirinto? Ou eles carregavam seu
próprio medo de algo profundo dentro de si, algo não reconhecido — um medo
do escuro, da umidade, do interior do corpo feminino? Na arte das cavernas
paleolíticas e em outras artes rupestres, a vulva muitas vezes aparece como
uma fenda como a letra V. Encontramos esta imagem básica, em forma
gigantesca, na montanha cornuda. O Monte Jouctas é cônico e também
fendido, de forma que os cretenses podem tê-lo visto como o mons veneris
(monte de Vênus) da Deusa na terra. Entrar em uma caverna em uma
montanha dessas produz uma sensação profunda de estar entrando em um
corpo. O palácio pode ter duplicado esta propriedade de uma maneira bem
mais sutil.
191

A Beleza de Festos
Minha própria percepção das formas da Deusa na paisagem e nos palácios
não vem tanto de Cnossos (eternamente repleto de turistas guiados), mas do
palácio de Festos, situado em uma colina ao sul de Creta, em uma área mais
acidentada que Cnossos. Do rio que fica na base da colina do palácio, o
Monte Ida é eclipsado por outra colina, mas do próprio Festos, o Monte Ida
surge magnífico, parecendo mais próximo e mais íntimo do que o Jouctas
em Cnossos.
Vincent Scully descreve o Monte Ida como uma "mulher aconche-
gante", descendo de seus chifres amplos e simétricos "em escarpas redondas
e espalhadas, cortadas por chifres escuros" (ver Foto 18).
Outro Monte Ida, na Frígia, era o lar de Cibele, a "Grande Mãe dos
Deuses". Cibele pode alcançar todo o caminho para Çatai Hüyük, pois
algumas de suas imagens parecem-se muito com aquelas encontradas na
velha cidade de 8.000 anos. O primeiro hino homérico a Afrodite descreve
o Ida frígio como sagrado para a Deusa do Amor. Segundo o mito, lá ela se
deitou com Anquises e mais tarde deu à luz Enéas, herói da Eneida de
Virgílio.
Devido ao fato de Festos estar situado em uma colina, temos uma
percepção mais ampla do vale e das montanhas que o cercam. A uma curta
distância está outro "palácio", na verdade mais uma grande mansão,
chamado Agia Tríada (o nome, que significa "Santíssima Trindade", deriva
de uma capela cristã próxima). Apesar da proximidade das duas
construções, a diferença entre elas é notável. Agia Tríada foi construído
diante de uma colina curva e transmite uma sensação de sossego e
tranqüilidade, apesar das visões do Monte Ida e de um par de colinas em
forma de cone.
Os estudiosos em geral se referem a Festos como um "palácio de
verão" dos governantes minoanos para fugir do comércio e do burburinho de
Cnossos. O professor Scully comenta que o termo "não descreve de maneira
adequada seu poder assustador", e prossegue comentando que Festos
"parece propositalmente estendido como um ar de adoração por toda a terra
(...) possuído pelo invencível mistério da terra, louvando a amplitude do
vale, o terror da montanha". Eu acrescentaria que caminhar através das
ruínas de Festos, ficar de pé no pátio aberto ou no "teatro", descansar e
olhar além das colinas e para o Monte Ida, tudo isso proporciona uma
sensação de ligação com aquele mistério da Terra, sem necessidade de
resolvê-lo ou de buscar revelações milagrosas. Festos, como Delfos no
continente, é um lugar que pertence à Terra. B à semelhança do que ocorre
192

com Delfos, não posso prestar maior tributo a Festos do que dizer que o
simples fato de pensar e escrever sobre o palácio e sua paisagem natural me
dá uma enorme vontade de voltar. Como descrevi no Capítulo 2, observei as
formas da paisagem natural sagrada e sabia que havia chegado antes mesmo
de realmente me encontrar no palácio. Seguindo a estrada para Festos, surge
uma montanha em forma de cone em um local elevado, cercado por
colinas baixas, enquanto uma montanha cornuda torna-se visível no
horizonte. No momento em que as duas formações ficam visíveis das colinas
mais baixas, a estrada moderna faz uma curva e lá está a placa anunciando
Festos.

O Cone e a Montanha
Como descobri quando segui o que poderia ter sido o caminho das
procissões, o cone desempenha um papel importante na conexão com a terra.
O Monte Ida está ao norte do pátio de Festos, o alinhamento mais preciso
de todos os palácios. O cone eleva-se a noroeste. O caminho da procissão tem
início na entrada do noroeste, com o cone situado bem atrás de nós. O
caminho segue para oeste, em direção ao teatro aberto, onde desce as
escadas e atravessa o teatro na diagonal, em sentido sudeste, com o cone
atrás de nós. Na extremidade do teatro, o caminho retorna, de forma que
de repente nos percebemos diante da poderosa imagem da montanha
cornuda, com o cone à esquerda. O caminho move-se para o leste, depois
retorna, como um labirinto, segue a direção norte e sobe as escadas.
Continua a subir, rumo a um aposento com os restos de um pilar. A
partir daí, parece voltar sobre si novamente e sobe uma rampa, mais uma
vez ficando de frente para o Monte Ida. O propileu do teatro conduz a uma
escada estreita e escura que desce em direção à luz e ao pátio principal.
Olhando na direção norte a partir do sul do pátio, o Monte Ida eleva-se
tanto acima do muro quanto abaixo da entrada para os apartamentos da ala
norte do palácio. Ao mesmo tempo, a extremidade sul do pátio abre-se para
o vale, oferecendo uma visão das suaves colinas.
Estando do lado de fora do palácio, o cone aparece atrás de nós.
Quando realmente entramos no prédio, o cone desaparece, bloqueado pela
parede. Ao mesmo tempo, uma colina cônica menor e arredondada pode ser
vista a oeste do teatro aberto.
193

Da mesma forma, quando Ida assoma às nossas costas, sem ser vista,
uma suave colina de pico duplo eleva-se diante de nós à esquerda, a sudeste,
mais ou menos em um eixo com o cone mais pontiagudo e mais escarpado.
Esta colina tem ainda um montículo à sua frente, que parece uma versão
menor e mais acessível da montanha sagrada.
Os dois picos cornudos, a montanha e a colina são todos visíveis do
pátio, pois enquanto Ida se eleva acima do palácio, o pátio se abre às suaves
colinas. Do alto dos degraus do teatro, o ponto mais elevado, aparecem as
quatro formas. Entretanto, quando nos movemos dentro do palácio, as
formas suaves desaparecem. O efeito torna-se uma suavização humana da
natureza. Os picos escarpados dominam quando entramos no palácio, dando
lugar apenas visualmente a suas contrapartes mais acessíveis. Estas colinas
baixas ainda contêm o corpo da Deusa, mas em uma escala mais humana,
em uma forma mais sensível à agricultura e ao desenvolvimento. Aqui,
como de tantas maneiras, a cultura da antiga Creta de algum modo reúne —
como as duas metades do machado duplo ou das duas serpentes carregadas
pela Deusa de seios nus em Sua longa saia — o humano e o divino, um não
se sobrepondo ao outro, mas os dois se misturando de maneira radiosa e
elegante.
194

7 - O Corpo na Canção

Adeus
Filhos de Zeus e Leto,
A jovem de lindos cabelos,
Nesta
E na próxima canção
Vou me lembrar de vocês.

Hino a Artemis,
Traduzido por Jules Cashford

De todos os Deuses e Deusas que conhecemos, os Deuses e Deusas gregos


são os que conhecemos melhor. Temos visto as graciosas estátuas e os
templos com suas proporções matemáticas, temos lido as histórias dos casos
de amor e das batalhas, as manipulações dos mortais desamparados, as
transformações dos humanos em árvores, estrelas ou rios. Apesar disso,
quanto mais de perto examinamos os mitos gregos, mais misteriosos eles se
tornam, repletos de uma estranha mistura de violência e beleza, inteligência
e medo. Começamos a adquirir uma percepção mais clara deles quando
observamos o caminho que representam na conquista de uma ordem mais
antiga, uma ordem construída cm torno das muitas Grandes Deusas, cada
uma delas de uma diferente região, destruídas por invasores. Esta não é
apenas uma interpretação moderna. Os próprios gregos antigos elogiavam
seus Deuses do Olimpo por livrar o mundo das divindades "crônicas", seres
que eles descreviam como escuros, perigosos, terrenos, monstruosos — e
femininos.
Parte desta conquista envolveu reduzir a Deusa complexa e arcaica a
emblemas de atributos específicos. Artemis torna-se uma espécie de
195

bandeirante correndo pelas florestas. Afrodite é surpreendida em inter-


mináveis casos de amor, enquanto Hera vive furiosa com as traições de Zeus.
Atena, anteriormente uma Deusa todo-poderosa da serpente e da coruja,
agora salta da cabeça de Zeus, como se Ele próprio a tivesse criado. Apesar
desta aparente trivialidade, as Deusas também foram exaltadas no mito
grego, pois na verdade essa própria individualidade permitiu-lhes nos
mostrar reflexos de nós mesmos. Há espelhos com infinita profundidade,
pois quanto mais olhamos neles, mais vemos uma imagem dupla: as
figuras que conhecemos das histórias, e suas contrapartes muito mais
velhas, aquelas Deusas da terra, do céu e da água, das aves e das serpentes e
da paixão humana, tão antigas quanto a pedra, a nós conectadas, através de
todos os anos de distorção, pela eterna verdade do corpo.

Os Deuses Imortais
Vincent Scully descreve a arquitetura do templo da Grécia continental
como uma imagem de "vitória", em que o equilíbrio pende para o domínio
humano do cosmos. Certamente, poucas culturas perceberam os Deuses
em termos tão absolutamente humanos quanto os gregos. Só precisamos
pensar, por um lado, no realismo gracioso das estátuas, ou, por outro, nas
brigas domésticas nas histórias de Zeus e Hera.
Ao mesmo tempo, à medida que os Deuses tornam-se mais humanos,
os próprios humanos tornam-se diminuídos. Os palácios cretenses serviam
como casas, locais de trabalho e, provavelmente, bases do governo para o
povo, assim como pontos focais para se perceber a Deusa na terra. Os
templos gregos alojam estátuas, não pessoas.
Em Creta, encontramos a idéia de Zeus como o Deus que morre e se
regenera, incorporando o milagre da vida vegetal, que morre e vai para o
lar subterrâneo da Deusa da Morte apenas para retornar como uma nova
criança com a chegada da primavera. Os dórios, no entanto, perceberam
seus Deuses como imortais, desprovidos de corpo, livres dos ciclos da
natureza. Eles podem ter caracterizado seus Deuses em termos muito
humanos, mas também os descreveram como energia pura.
O conceito de imortalidade deriva do medo e da dor da morte. Mais
sutilmente, pode surgir da necessidade de separar a idéia de Deus da Deusa,
ou seja, separar a divindade do corpo essencialmente feminino do mundo
natural. (Até mesmo a nossa cultura monoteísta refere-se à "Mãe Terra" ou
196

"Mãe Natureza".) O corpo da Deusa nos envolve nos ciclos constantes da


morte e do renascimento. A separação da Deusa permite a possibilidade da
perfeição imortal.
Mas ainda que possa satisfazer o desejo patriarcal de ver o ser fun-
damental como masculino e separado da natureza (feminina), esta visão da
Deusa também cria um abismo entre os Deuses e a humanidade. Como o
resto da natureza, os humanos se enfraquecem e morrem. O próprio ato de
imaginar os Deuses isentos de sofrimento assegura que os humanos não
participam da divindade. No cosmos grego, os humanos existem apenas para
servir os Deuses, que podem atingi-los e destruí-los a qualquer momento.
A ânsia pela imortalidade pode ter surgido em chefes orgulhosos que
odiavam a idéia da morte, ao mesmo tempo em que temiam a sua chegada a
qualquer momento, durante suas muitas batalhas. E, assim, podem ter
fantasiado como seria viver para sempre, nunca morrer ou sequer sentir dor,
esperar tributo de todo o mundo, matar qualquer um que se opusesse a eles
ou mesmo os aborrecesse, e possuir qualquer mulher que desejassem. Estes
são os atributos de Zeus, chefe dos Deuses.
A religião da Deusa era uma religião de lugar e corpos, com os dois
idos na paisagem natural e no palácio. Os deuses divorciam-se da terra, e
mesmo que assumam a forma de humanos idealizados e possam se unir a
atividades humanas como o sexo e a guerra, são realmente desincorporados.
Enquanto os cretenses e micenenses retratavam a Deusa recebendo os
adoradores em Seu jardim, por Sua Árvore da Vida, o mito grego posterior
retrata os Deuses como inatingíveis, terríveis, dispostos a derrubar ou
dilacerar qualquer mortal que cruze o seu caminho. Os Deuses perambulam
pelo mundo e invadem as questões humanas, mas o fazem segundo seu
próprio capricho. Não pertencem ao mundo. Vivem para sempre em seu
esplendor no Monte Olimpo, afastados da lama e do trabalho da vida
humana.
A religião grega une-se à natureza em todas as histórias da origem de
coisas como constelações de estrelas ou tipos particulares de árvores (é
importante observar que muitas dessas histórias envolvem estupro ou
assassinato). Quase como os aborígines australianos, os gregos imaginavam
cada árvore e rio habitados por uma ninfa ou dríade. Os principais objetos da
religião, entretanto, o Panteão Olímpico, separaram-se da natureza.
Quando os humanos morrem, não renascem, mas existem apenas
como sombras frias e vazias. Em A Odisséia, o morto Aquiles diz a Ulisses
que preferia cultivar os campos como um escravo vivo a governar os mortos.
Somente nos Grandes Mistérios de Elêusis isto muda, com a promessa de
197

renascimento trazendo alegria a todos que participam deles — e os


Mistérios podem ter se originado diretamente das comemorações da Deusa
na Creta minoana.

Camadas do Significado: Psique


Parte do fascínio do mito grego está na qualidade dilacerante das histórias
que parecem mascarar camadas rnais profundas de significado. Muito
freqüentemente no mito grego temos a sensação de que algumas grandes
verdades internas estão expostas, mas ao mesmo tempo ocultas. O quebra-
cabeça torna-se um pouco mais claro quando consideramos que muitos mitos
distorcem algum mito anterior ou atuam como justificação para o controle
patriarcal da religião da Deusa. Além disso, o gênio da religião grega nos dá
uma sensação de que um verdadeiro mistério espiritual emergiu deste
violento conflito entre a Deusa Mãe e o Deus Guerreiro.
Como acontece com alguns mitos hebreus, como a história do Jardim
do Éden, precisamos explorar aspectos das histórias que parecem não fazer
sentido. Um desses aspectos ocorrem em uma história de uma mulher e o
Deus do Amor.
Nossa palavra moderna psique deriva da palavra grega que significa
"alma". Mas Psique é também a personagem de uma história. A história de
Psique conta-nos sobre o seu amor por Eros, Deus do Amor e filho de
Afrodite. Para conseguir a união com o seu amado, para poder ver Seu rosto
e ficar a Seu lado, Psique precisa realizar tarefas para Afrodite, incluindo
uma viagem até Perséfone, Rainha dos Mortos e a Deusa cujo estupro e
seqüestro dão início ao mito fundamental dos Mistérios de Elêusis.
No início da história, Psique encontra seu amante misterioso apenas à
noite, pois Eros sabe que ela não poderia suportar a força plena da Sua beleza.
Suas irmãs ficam com ciúmes e escarnecem dela, dizendo que deve haver
algo errado com seu marido, se ela nunca pode olhar para ele na luz. Até
agora, tudo isso parece certo. Mas então ficamos sabendo que as irmãs de
Psique sugerem-lhe que seu amante não é um homem — mas uma serpente.
Por que elas dizem uma coisa tão estranha? E por que Psique dá atenção a
esta idéia tão peculiar?
Só quando tomamos conhecimento da grande intimidade entre a
Deusa e as serpentes, começamos a perceber um sentido mais profundo
198

nesta história. As estátuas da Deusa do Minoano retratam-na com .is


serpentes enroladas em torno de Seus braços e corpo. Atena era
originalmente uma Deusa das serpentes e também da coruja. As pessoas
que criaram estas imagens dos seres divinos e das serpentes não o fizeram
arbitrariamente. Os mitos e as estátuas expressam aquele fascínio profundo e
misterioso pelas serpentes e por seu poder de excitar algum lugar oculto na
psique. Entre outros atributos, as serpentes evocam a energia fundamental
da sexualidade. Em alguma camada mais antiga da história, a alma —
Psique — foi na verdade amante da serpente — Eros. E se a serpente
tornou-se amante da mulher e da Deusa, então a alma, o eu individual e o
Eu maior do divino tornam-se interligados.
A psique torna-se uma figura do poder feminino antigo, que perdeu
Seu conhecimento de Si mesma, que se tornou reduzida a uma jovem
apavorada com medo do escuro. Como no relato do Gênese da serpente
condenada, Deus colocou inimizade entre a mulher e a serpente. As irmãs
de Psique, os símbolos da sociedade, dizem à psique que tome cuidado e não
deixe que sua paixão e o seu desejo a dominem, pois ela pode descobrir que
tais sentimentos a conduzem para longe do racional, do seguramente
humano, para algo mais profundo — para a serpente, o antigo poder
enterrado do corpo. Sua rendição ao amor vai conduzir Psique ao Reino das
Trevas, aonde ela deve ir para recuperar o poder da vida na Terra dos
Mortos.
Podemos observar nossos cérebros como estruturados em camadas
construídas no decorrer da evolução. A mais jovem, o neocórtex, governa
nossos processos de pensamento racional. A mais antiga, o sistema
límbico, dirige nossas reações automáticas. Em termos evo-lucionários, o
sistema límbico pertence às cobras. Algumas pessoas interpretam isso
como significando que o neocórtex nos torna humanos e devemos dominar
a serpente límbica que há entre nós. Mas grande parte do nosso poder e da
nossa fonte vem de nossas paixões instintivas. Se as negarmos, negamos a
nós mesmos, à nossa humanidade.

Uma Viagem no Mar


A passagem anterior, relacionando Psique e a serpente, vem de anotações
escritas primeiro na barca que atravessou o Mar Egeu à noite, do continente
grego até a Ilha de Creta, uma viagem de um retorno no tempo e também
199

através da escuridão e sobre as águas de nossa mais antiga Mãe. Esta


viagem, assim como a escrita, ocorreu na quinta noite dos Mistérios de
Elêusis, que duraram nove dias, de forma que o quinto torna-se a metade da
viagem para dentro e para fora do Mundo das Trevas. Nessa quinta noite, os
mystae —os iniciados — banharam-se no mar e depois caminharam com
tochas, representando a busca de Perséfone, a Deusa que a Morte roubou,
levando-a para as trevas.
No movimento rumo à sua própria divindade, Psique visita
Perséfone, pois Afrodite deu-lhe uma pyxis — uma pequena caixa—e
ordenou-lhe que a enchesse com um creme que contivesse a beleza de
Perséfone. Mas a palavra pyxis, como a palavra para aiaixa de Pandora (ver
p. 165), era um termo popular para indicar os genitais femininos (se
fizermos a conexão em um nível literal, o creme passa a representar as
secreções vaginais), de forma que a beleza real da Deusa pertence ao poder
do útero — a vida extraída da morte; a sexualidade extraída da escuridão.
No mito grego, a viagem dos mortos em barcas atravessa o Rio Styx.
A barca moderna para Creta, um enorme navio com muitos con-veses,
restaurantes, locais de descanso e cabines privadas, ainda realiza a antiga
jornada, uma viagem pelo mar, cujas águas oscilantes e escuras
correspondem ao sangue salgado que há no interior dos nossos corpos. E
essa viagem particular, para Creta, consistiu para mim em uma viagem de
retorno à Deusa das Serpentes, ancestral de Perséfone, cujos braços
caminham em ambas as direções, como que para incorporar o movimento
fluido da vida e da morte.

A Conquista de Delfos
O mito grego parecia permitir que todas as camadas de significado
existissem ao mesmo tempo, a religião pré-histórica do corpo bem abaixo
da superfície da religião da abstração e da racionalidade, iluminada pelo Sol.
Mas esta não era uma coexistência fácil. Os olímpicos substituíram a
religião mais antiga através da conquista. O fato de que não poderiam
simplesmente bani-la proporcionou uma fonte de tensão e ansiedade.
Encontramos isto até em Delfos — talvez principalmente cm Delfos —,
principal santuário de Apoio, Senhor da Luz do Sol e da razão ponderada.
Porque Delfos era um local de profecias, o principal centro de adivinhação
do mundo antigo, um lugar para onde até os inimigos da Grécia se
200

dirigiam com o propósito de saber o futuro e descobrir a vontade dos


Deuses. Mas não podemos representar a profecia como um ato racional.
Precisamos atingir aquelas camadas mais escuras da mente, onde nossos
corpos se fundem com o corpo da Terra e com o corpo fluido do tempo.
A conquista de Delfos por Apoio foi um ousado golpe de gênio para
a religião olímpica. Impôs o domínio da racionalidade exatamente no lugar
com maior probabilidade de resistir a ela. Ao mesmo tempo, no entanto, não
conseguiria simplesmente expulsar a antiga religião. Sem as mulheres e sua
conexão com a Terra, quem revelaria as profecias?
O templo de Apoio em Delfos exibia o lema "Conhece a ti mesmo".
Apesar disso, podemos descrever a religião de Apoio como um movimento
que vai além do autoconhecimento, como uma defesa contra o poder do
corpo, o corpo da Deusa. Vincent Scully escreve que os gregos invocavam o
Apoio racional iluminado pelo Sol "onde as características mais terríveis da
antiga deusa da terra tornavam-se manifestas". Originalmente, Delfos
manifestava a Deusa da Profecia em uma caverna nevoenta onde os vapores
induziam a transes visionários. Construir um templo geométrico sobre aquele
buraco na Terra, aquele local arcaico e escuro da profecia que incorpora a
fonte do nosso ser, significa precisamente não conhecer a nós mesmos, mas
nos ocultarmos dói autoconhecimento das nossas origens, da nossa
realidade.
Grande parte da ansiedade que envolve tanto do mito grego pare se
originar de uma consciência reprimida de ter coberto (literalmente) o corpo
da Deusa, ocultando-o da vista. A mesma agressão contra feminino
ocorreu no corpo político, pois os gregos confinaram as mi lheres,
ocultando-as em suas casas, negando-lhes a cidadania e retiran-do seus
antigos direitos à propriedade, ao mesmo tempo em que consideravam o
estupro como um ato divino. O poder sexual e reprodutivo das mulheres
também foi suprimido, com as mulheres desprezadas terem filhos, e
Aristóteles descrevendo o orgasmo feminino como uma abominação,
prescrevendo a remoção do clitóris como uma cura este mal.

O Terror do Conquistador
Quando um grupo de pessoas oprime outro, uma fúria se desenvolve, não
apenas no grupo oprimido, mas também no grupo dos opressores. A fúria
deste segundo grupo surge como um reflexo de negação do que os opressores
fizeram. Suas vítimas permanecem ali como um constante lembrete, tanto de
seus crimes quanto da realidade que eles tentaram subverter. E por isso eles
201

odeiam e temem o povo que conquistaram. Onde os homens oprimem as


mulheres, os corpos das mulheres transformam-se em um local de terror. A
menstruação, de alguma coisa mágica passa a ser algo mau ou nojento. As
vaginas desenvolvem dentes para morder a sexualidade do homem.
O mito grego carrega uma sensação da religião patriarcal afastada da
Mãe. Quando o Deus Sol Apoio mata píton (descrita como a "Filha de
Hera"), diz-lhe: "Agora apodrece aqui sobre o solo que alimenta os
homens." Tanto a Terra como a Deusa tornam-se amedrontadas e des-
prezadas. O nome do herói Héracles significa "Glória de Hera". Nos mitos
clássicos, no entanto, ele se torna mais um filho bastardo de Zeus, para que
Hera se torne seu tormento, colocando-o louco de ciúmes. Édipo segue a
ordem de Apoio para conhecer a si mesmo e descobre que matou sua
parceira e se casou com sua mãe. Entretanto, ao fazê-lo só representou um
ritual arcaico, em que a rainha incorporava o eterno poder de dar a vida na
terra, e o velho rei a vegetação que precisa morrer no inverno para que as
plantas jovens, incorporadas no filho, possam ocupar o seu lugar na
primavera. Sem querer saber estas coisas, sem querer olhar para si mesmo,
Édipo arranca seus olhos.
A própria Terra transforma-se em um lugar de Terror — úmida,
lodosa, viva e monstruosa —, tendo o Céu como um refúgio, um lugar todo
limpo e brilhante em comparação com a lama escura da terra sob nós. O mito
grego descreve as divindades pré-olímpicas como "crônicas", da Terra, e ao
mesmo tempo como demoníacas, insanas, sedentas de sangue — e
femininas. Apoio, o Deus Sol, todo brilhante e limpo, se esforça para
conquistar e enterrar sob seu templo ritual essas confusas Deusas da lama.
Como símbolo da Deusa, e expressão da Sua intensa energia, tanto
profética quanto sexual, a serpente torna-se o inimigo, assim como
acontece no Gênese. Em contraposição à serpente instintiva, Apoio
estabelece a "luz" da racionalidade, supostamente dominando as perigosas
paixões das antigas Deusas da Terra. Mas se consideramos a Terra como o
corpo, como nosso corpo coletivo, então Apoio afasta-nos de nossos corpos e
nos situa naquela desligada transcendência do céu olímpico. Faz isso
precisamente matando píton e construindo seu templo calmo e abstrato,
com todas as suas colunas e proporções matemáticas, sobre a úmida caverna
délfica — a vulva da Terra — onde as bruxas extraíam suas profecias dos
vapores e da fumaça. Escrevendo sobre Apoio matando píton, Buffie Johnson,
em The Lady of the Beasts, cita o irônico comentário de Jane Ellen Harrison:
"Para que o glorioso e brilhante Apoio precisa de uma serpente?"
202
203

Chegando a Delfos
Os antigos peregrinos do oráculo podiam viajar para Delfos por terra ou por
mar. O próprio Apoio veio da água, trazendo marinheiros cretenses para
serem seus sacerdotes. Creta continuava sendo a terra da autoridade religiosa,
até mesmo — ou talvez especialmente — para aqueles que derrubaram suas
tradições pré-históricas. Tanto Zeus quanto Deméter vieram de Creta. Para
aumentar sua autoridade, Apoio arrancou a palmeira e o túmulo sagrados
da Deusa cretense. O Deus atraiu os marinheiros disfarçando-se de golfinho.
No palácio de Cnossos, enterrado séculos antes da construção do templo de
Apoio em Delfos, golfinhos brincalhões e saltitantes podem ser vistos nos
afrescos da parede. O nome Delfos está relacionado a duas palavras gregas:
delphis, ou golfinho, e delphys, útero.
Para aqueles que viajavam para Delfos a pé, o caminho era difícil e
montanhoso. Atualmente, no entanto, estradas modernas e as luzci elétricas
das cidades atenuam a viagem. Nada, no entanto, pode diminuir a incrível
beleza das colinas. O local de Delfos está sob a fenda profunda de Parnaso, a
montanha de inspiração poética, lar das nove musas (o nove mais uma vez,
o mágico três vezes três). Acima do grupo de templos, acima da sagrada
fonte castaliana, eleva-se uma colina "maravilhosamente coroada por
imensos chifres que se abrem ameaçadoramente para o céu" (Scully). Estes
são os Fedríades, os Brilhantes (ver Foto 19). A fonte, onde os peregrinos
despejavam água sobre suas cabeças para se purificar, desce do rochedo
abaixo dos chifres. Tendo nos treinado para isso, reconhecemos esta fonte,
mesmo que jamais a tenhamos visto. É a mesma água que emerge da
Montanha Silbury, ou Glastonbury, ou que passa sob as fissuras de "The
Teaching Rock", no Canadá. A fonte que jorra de uma montanha fendida é
o sangue da Deusa.
Todo o local está voltado para um vale e para uma fenda nas mon-
tanhas. Uma fenda incorpora a vulva da Deusa, seja ela uma linha estreita na
parede de uma caverna, ou uma fissura no chão ou os enormes chifres de
uma montanha. E com o fluxo da água da fonte, mais a caverna original do
oráculo, conseguimos uma série de imagens da vulva, tornando-se mais
íntimas à medida que nos aproximamos do santuário, da forma montanhosa
contra o céu para a água emergente, para os vapores escuros agora
encobertos pelo templo. Os simples vapores, elevando-se dos locais mais
ocultos da Terra, já inspiravam profecia.
Na época clássica, o templo realmente não cobria a fenda de vapores,
mas a envolvia. Embora Apoio tenha matado a serpente, as mulheres ainda
fazem oferendas ao oráculo, como se a nova religião não pudesse banir a
204

autoridade (e a realidade) da antiga. Chamada de Pítia, devido a píton, a


profetisa banhava-se na fonte, mastigava uma folha de louro (o louro crescia
do corpo de uma ninfa que fugiu das tentativas de Apoio de estuprá-la) e
depois sentava-se em um banco de três pés sobre a fenda, onde inalava os
vapores e expressava sua "previsão". Freqüentemente a profecia surgia
como sons sem palavras, que um poeta (homem) então interpretava em
versos coerentes.
No auge da fama de Delfos, havia três profetisas, esse número in-
vocando a Deusa Tríplice da Lua e os três estágios de vida das mulheres.
(Plutarco descreveu a voz de Sibil — a Pítia — como transportada da fuce
da Lua.) Os bancos de três pés triplicam isso novamente, mais uma vez nos
apresentando o número sagrado nove, os meses da gravidez. Entretanto, em
vez de virgem, mãe e anciã, as pítias eram todas mulheres com mais de 50
anos, anciãs pós-menopausa. Também mulheres camponesas, elas
conservavam a conexão com a Terra, Gaia.
Alguns relatos de Delfos descrevem o oráculo como disponível para
todos os peregrinos que chegavam e se purificavam. Na verdade, as regras
de Apoio proíbem as mulheres de buscar conselho. Seus sacerdotes podem
ter necessitado do poder do corpo feminino, mas isso não significava que
tolerassem as mulheres recebendo qualquer benefício.
O local fantástico de Delfos levou seus adoradores a considerá-lo o
centro do mundo. Mesmo após Apoio ter conquistado o santuário, o
mphalos — ou umbigo — permanecia o objeto mais sagrado. O omphalos era
incorporado em uma pedra cônica, com uma serpente entalhada enrolada
em torno dela, como que para protegê-la. De Creta, sabemos que uma pedra
(ou montanha) cônica projeta o poder da Deusa. A pedra do omphalos
adquiriu maior importância por ser um presente do Céu — um meteorito. A
semelhança do que ocorreu com Cibele e seu meteorito negro cônico, ou
com o imenso meteorito de Ka'aba em Meca, o l omphalos, com sua
serpente, demonstra a unidade da Terra e do Céu, l dois aspectos do mesmo
corpo.
205

As Pedras de Gaia
Os gregos às vezes chamavam a caverna de Delfos de entrada para ai Terra
dos Mortos. Este aspecto subterrâneo, juntamente com as formas da
paisagem natural, a serpente e o meteorito, recorda-nos que o santuário
originalmente pertencia à Deusa da Terra, Gaia, também chamada de
Têmis. O santuário original de Gaia era um círculo de pedras, reminiscência
daqueles da Idade da Pedra, cercando a fenda aberta. Atualmente, ainda se
pode ver a grande pedra de Sibil, onde a antiga tradição descrevia o oráculo
como sentado para expressar suas profecias. Cercado por todos os prédios
clássicos, a pedra imensa e sem adornos transporta-nos de volta ao poder da
terra.
Uma pedra ainda maior evoca a Terra em um templo situado curta
distância da colina de Delfos, em um lugar chamado Mármara. Ali estão
os restos do Antigo e Novo Templos de Atena Pronaia, cujo título significa
"diante (ou guardiã) do santuário". Enquanto Delfos eleva-se junto à encosta
da colina, voltado para o céu, Mármara situa-se em uma área abaixo do
caminho, dando ao visitante uma sensação de proximidade com a terra.
Colocada atrás do Velho Templo (as escavações revelaram uma colônia
micenense neste lugar), uma enorme pedra, sugerindo uma forma humana,
volta bastante no tempo, recordando-nos que Atena, Deusa da sabedoria,
das corujas e das serpentes, representava bem mais — e era bem mais
velha — que um guerreiro armado que supostamente saltou já adulto da
cabeça de Zeus (ver Foto 20).
Embora eu não possa dizer que recebi alguma mensagem oracular
direta em Delfos, achei-o um lugar de grande beleza e cura pessoal. Maria
Fernandez e eu viajamos até Delfos com alguma apreensão, temendo
encontrá-lo, como o Partenon em Atenas, repleto de turistas. Na verdade, às
vezes se vêem até 20 ônibus de turismo estacionados ao lado da estrada.
Apesar disso, o poder da terra resiste a qualquer banalização. O visitante
pode passar dias, semanas, estudando a arquitetura dos diferentes
monumentos — ou simplesmente se sentar e observar as colinas.
206

A Individualidade e a União das Deusas


A separação da Grande Deusa — selvagem, antiga, multifacetada, forte
como a pedra e a água, próxima como nossas próprias mães e impenetrável
como a morte — em muitos personagens, cada um com Sua própria
variação estreita, faz parte do "ultraje" que Jane Ellen Harrison descreveu
como tendo sido feito "à antiga ordem das Deusas". Apesar disso, essa
própria fragmentação suscita o brilho do mito grego. Estreitando o escopo de
cada personagem, as histórias gregas permitem-nos olhar de perto para
atributos como a liberdade (Artemis), sabedoria e dedicação (Atena),
maternidade (Deméter), renascimento (Perséfone) e paixão sexual (Afrodite).
Quando as Deusas são individualizadas, correm o risco de perder sua
grandeza e mistério. Mas também se tornam pessoas, personagens das
histórias, e, conhecendo-as, podemos descobrir reflexos (ou quem sabe
ampliações) de nós mesmos.
Mas também ganhamos muito com a recuperação das conexões entre
elas. Fazemos isso quando começamos a olhar de perto para seus atributos e
as práticas e símbolos a elas associados. Ao mesmo tempo em que mantêm
sua individualidade, as Deusas começam a se mover juntas, atraindo-nos de
volta no tempo à Deusa multifacetada da Idade da Pedra. De todas as Deusas
do Olimpo, aquela mais próxima à Deusa pré-histórica da natureza selvagem
é a menos provável de todas elas — Artemis, irmã gêmea de Apoio.

Artemis e a Maternidade
Deusa da Lua, habitante das florestas montanhosas distantes do mundo dos
homens, servida por ninfas, caçadora mas também protetora dos animais
selvagens, Artemis certamente remonta a até antes da Idade da Pedra Polida,
à Idade da Pedra Lascada. Mas só quando conhecemos outro de Seus
atributos, a imagem da Grande Deusa começa a emergir da "bandeirante" da
mitologia clássica. Vigorosa, virgem, Artemis era a Deusa das mulheres no
parto.
O mito clássico nos proporciona justificativa para esta anomalia, ao
descrever Artemis e Apoio como gêmeos, filhos de Leto e (é claro) Zeus. A
história conta-nos que Artemis nasceu primeiro, sem dificuldade, e depois
207

Sua mãe suportou mais nove dias de trabalho de parto para dar à luz Apoio.
Como resultado, as mulheres mortais passaram a chamar por esta figura
incrível durante seu próprio trabalho de parto. Para algumas, Artemis
aplacava a dor. No entanto, para aquelas não destinadas a sobreviver, Suas
flechas prometiam uma morte rápida e misericordiosa.
Poderia parecer mais uma vez que a história distorce as tradições
mais antigas, em que a Mãe das montanhas e dos animais selvagens
naturalmente ajuda as mães humanas em seu trabalho de parto. Algumas
histórias de Leto contam como Zeus transformou-a em uma Ioba durante 12
dias, enquanto outras descrevem lobos escoltando a mãe e seus filhos
gêmeos.
O relato clássico parece quase uma racionalização. Poderosa, antiga,
amada pelas pessoas comuns que preferiam os antigos costumes, a Artemis
das Montanhas teria ameaçado a nova religião de Zeus e Apoio. Tornando-a
filha de Zeus e irmã de Apoio, eles não apenas a colocavam na mesma
linhagem dos olímpicos, como teriam se apropriado de Sua autoridade com
as pessoas. Mas as mulheres ainda a reverenciavam e buscavam o Seu
auxílio no parto, como o faziam desde tempos imemoriais. Para acomodar
este atributo especial — e ainda tornar Apoio o centro da história —, o
mito grego nasceu da história de Artemis cuidando de Leto.

Artemis e as Mulheres Modernas


Artemis tornou-se muito importante para muitas mulheres contemporâneas,
não obstante dos livros gerais sobre mitologia grega tratarem-na como uma
divindade menor. Como Deusa da Lua Nova, Artemis (ou Diana, como a
chamavam os romanos) evoca o poder espiritual do ciclo menstrual. Os
atuais adoradores e escritores interessados em Artemis têm enfatizado Suas
raízes antigas, vinculando-a à Deusa da Idade da Pedra Lascada. Ao fazê-lo,
resgatam Artemis do quadro clássico, em que Ela é vista como uma versão
traquinas de Apoio.
Ao mesmo tempo, a personalidade de Artemis nos mitos clássicos
atrai muitas mulheres. Ela é independente, forte, dedicada às mulheres, aos
animais e à natureza, ao mesmo tempo hábil e selvagem. Volta Suas costas
às cidades e à civilização feita pelo homem, optando pelas florestas e pelas
montanhas. Acima de tudo, permanece livre. Virtualmente isolada das
Deusas gregas, Artemis não se liga aos homens, quer através do casamento
208

ou de ligações, como a maioria das Deusas, quer através da proteção a heróis


e cidades, como acontece com Atena. No entanto, atende às mulheres no
momento do parto.
Muitos autores que escrevem sobre o mito grego têm comentado
sobre o aparente paradoxo da Deusa virgem auxiliar as mães durante seu
trabalho de parto. Para mim, isto jamais foi um problema, pois tenho
conhecido mulheres como Ela. Na década de 1970, todo um movimento de
lésbicas radicais decidiu recusar totalmente a ajuda dos homens. E não
apenas dos homens individualmente, mas de toda a estrutura da sociedade
tecnológica urbana. Foram viver com outras mulheres em comunidades
onde plantavam sua própria comida e cuidavam dos animais. Vestiam-se
simplesmente, com roupas toscas, e tentavam seguir os padrões e os ritmos
da natureza. Estudaram a medicina das ervas como uma alternativa para as
drogas da medicina tradicional. Muitas tornaram-se pagas, adoradoras de
Diana, criando rituais das mulheres baseados na Lua, nas estações e em seus
próprios corpos. Ao mesmo tempo, muitas se comprometeram com o
cuidado da saúde das mulheres, não somente delas próprias ou de outras
lésbicas, mas de todas as mulheres. Algumas destas "lésbicas separatistas de
volta à terra" tornaram-se parteiras. Adoradoras de Diana/Artemis, elas
próprias a imitavam.

Solidão e Sexualidade
Alguns escritores, como Ginette Paris, descrevem Artemis como uma
Deusa (ou "arquétipo") da solidão, vivendo eternamente só nas florestas,
uma espécie de bandeirante virtuosa, sem interesse por sexo. O que estes
escritores parecem indicar é que Artemis não se envolveu com homens. Mas
como podemos descrevê-la como solitária, quando os mitos falam de Suas 20
ninfas do rio de Amnissos, ou das arktoi ("elas rumam"), as meninas de nove
anos de idade que se uniam ao Seu serviço, ou as companheiras que a
serviam e se banhavam com Ela?
Com referência a sexo, Arthur Evans (em The God of Ecstasy) faz uma
colocação interessante. "Na verdade", escreve ele, "Artemis era muito
famosa por suas explorações sexuais — com outras mulheres." Evans
descreve as mulheres que "realizavam danças orgíacas selvagem em Sua
honra, às vezes usando máscaras". Marija Gimbutas fala-no$ das pinturas de
vasos mostrando as adoradoras de Artemis com máscaras de animais, como
209

se elas se juntassem àqueles animais selvagens tão amados pela Deusa.


Gimbutas também descreve as mulheres da Lacedemônia realizando
"danças orgíacas para glorificar Artemis". Segundo Evans, o culto da dança
sexual das mulheres de Artemis espalhou-se tanto que deu origem a um
ditado: "Onde Artemis não dançou?" A expressão é claramente um
eufemismo para as escandalosas práticas sexuais das adoradoras da Deusa.
Aqui também os mitos clássicos tentam atrair o poder da Deusa, com a
história de Artemis pondo de lado Seu arco para se unir às musas na dança
diante de Seu irmão Apoio, para entretê-lo.
Um mito interessante sugere o envolvimento sexual com Seu grupo
de seguidores. A história descreve a raiva de Artemis quando Sua
companheira Calisto fica grávida. Em algumas versões, Artemis mata-a
instantaneamente, depois se arrepende e envia Calisto para o céu como a
constelação da Ursa, por Calisto ter assumido a forma de uma ursa quando
Zeus (quem mais?) a estava possuindo. Em outra versão, no entanto, antes
de morrer, Calisto conta a Artemis que não percebeu que era Zeus quem se
aproximava dela, pois o Deus disfarçou-se como Artemis, sugerindo que
Artemis e Calisto eram amantes. Devido à inocência de Calisto, Artemis
elevou-a aos céus. Como acontece com inúmeros mitos, muitas coisas
ocorrem simultaneamente nesta história. A própria Artemis freqüentemente
aparece como uma ursa, evocando mais uma vez aquelas Deusas que
retomam seu caminho para a Idade da Pedra Lascada, e até mesmo para o
início da humanidade, quando os homens Neandertal realizavam rituais com
os esqueletos de ursos.
Anne Baring e Jules Cashford referem-se ao epíteto de Artemis,
Keladeine, ou "A Sonora", e descrevem a Deusa como "evoluindo" a partir
dos sons da natureza selvagem. Também consideram "inevitável" que a
virgem Artemis deva presidir o parto, pois Ela incorpora os instintos
animais existentes dentro de nós e também os instintos de uma mãe com
relação ao seu bebê. Durante o parto, as mulheres devem se render a este
instinto, abandonar sua "identidade cultural e permitir que a profunda
sabedoria do corpo assuma a liderança".
Parte desta rendição parece ter incluído o abandono das roupas,
como emblemas da cultura, e o uso de outras roupas. As roupas das
mulheres que morriam no parto eram oferecidas a Artemis em Brauron, o
mesmo templo em que as meninas vestiam-se com peles de urso para servir a
Artemis como animais selvagens. As meninas que planejam se casar
dançavam em Seus festivais e depois consagravam suas túnicas a Artemis
210

antes do seu casamento, como se reconhecessem que a estavam


abandonando para se unir ao sistema patriarcal.
211

Deusas da Lua
No mito grego, três Deusas simbolizavam a Lua — Artemis, Selena (às
vezes associada com Deméter) e Hecate. Elas formam o trio composto pela
Virgem (Lua crescente), a Mãe (Lua cheia) e a Anciã (Lua minguante). Por
outro lado, podem ter sido uma Deusa cujos diferentes lados foram
destinados a diferentes personalidades. Tanto Artemis quanto Hecate são
freqüentemente retratadas com cães. No mito de Perséfone, Artemis (junto
com Atena) está colhendo flores com Perséfone quando Hades sai do chão e
a seqüestra. O hino homérico conta-nos que somente Hecate testemunhou
o que aconteceu, e somente Hecate vai contar a Deméter o que aconteceu
com Sua filha. Com Artemis, Deméter e Hecate, os três aspectos da Lua
aparecem na história de Perséfone.
As características das três Deusas evocam as diferentes qualidades
simbolizadas pela Lua nas mutações de sua apresentação. A jovem Lua
crescente, tão parecida em sua forma com o arco tenso de Artemis, exibe as
muitas possibilidades da juventude, quando todas as coisas se abrem diante
de nós e ansiamos por correr selvagens e livres, experimentando nossa
força e coragem. A Lua cheia estimula emoções poderosas, mas também
nos exibe uma imagem de completude. O rosto baixa suavemente sobre
nós como uma mãe olhando para seus filhos. A Lua minguante, movendo-
se rumo à escuridão, exige rendi cão mesmo quando nos oferece a
sabedoria de ter atravessado todo o ciclo da vida.

Artemis e Apolo
No mundo grego antigo, os templos do Deus Sol Apoio pouco a pouco
assumem os lugares associados com a Artemis lunar. Como já foi descrito,
os gregos podem ter unido Apoio a Artemis para pedir emprestado (roubar)
um pouco da Sua autoridade. Em Delos, o templo mais antigo e maior
pertence a Artemis, com o santuário de Apoio sendo muito menor e
localizado na periferia. Delos também continha um altar cornudo,
supostamente construído por Teseu depois que ele matou o minotauro e em
seguida abandonou Ariadne na Ilha de Naxos (onde ela celebrou um
casamento divino com Dionísio, o Deus que Kerenyi considera o marido
212

secreto de Perséfone). Segundo a história grega, Teseu construiu os chifres


em estilo cretense e depois ensinou uma dança do labirinto aos rapazes e às
moças da ilha. Podemos provavelmente encarar isso como outra apropriação,
pois os chifres simbolizam a Deusa através de sua associação com a Lua e
com as montanhas cornudas. E, é claro, elas realmente remontam a Creta.
Em contraste com Delos, em Delfos não encontramos nenhum
templo dedicado a Artemis. Apesar disso, as formas das colinas e das
montanhas falam do Seu antigo poder. Se é verdade que os picos e as
fendas cornudas, assim como as formações montanhosas triplas, nos
encaminham a Artemis e a Gaia, a Deusa mais velha nos cerca em Delfos,
o local mais dedicado ao vitorioso irmão mais moço de Artemis. No próprio
local vêem-se as Fedríades e as fendas profundas que atravessam os vales,
mas mesmo nas aldeias vizinhas pode-se de repente deparar com aquela
paisagem natural de Artemis alada sobre as colinas.

Leões e Abelhas
Muitas placas e pinturas antigas de Artemis mostram-na com animais, em
geral leões, uma associação encontrada em todo o sul da Europa e no
Oriente Próximo. Inana e Ishtar da Suméria e da Babilônia, Isis e Sekhmet
no Egito, e as Deusas cretenses aparecem todas acompanhadas por leões.
Leões puxam a carruagem de Cibele através de Roma. De Çatai Hüyük, na
região natal de Cibele na Anatólia, vem aquela estátua da Deusa da Idade da
Pedra dando à luz sentada calmamente em uma pedra, com as mãos
apoiadas nas cabeças de dois leões. Milhares de anos mais tarde, a estátua
da Virgem Maria retrata-a sentada em um trono com cabeças de leão
esculpidas nos braços.
Os micenenses invocavam a Deusa de formas diferentes em sua
grande fortaleza de Micenas na Grécia continental, um local tradicio-
nalmente associado a Artemis. Vemos leões no famoso portão de entrada no
local, na base da colina (ver Foto 21).
Os leões estão de pé, uma expressão orgulhosa dos guerreiros de
Micenas. Entretanto, o pilar que lhes dá suporte nos retorna à Deusa, pois
temos conhecimento pelas "criptas em pilares" dos palácios cretenses de que
esses pilares evocavam Sua presença, quer como árvores, colunas de pedra
ou estalagmites nos santuários das cavernas. Em Micenas, os leões e os
pilares juntos formam um cone, uma forma da Deusa tão importante quanto
a montanha cornuda. Dolores La Chapelle descreve como o "Cone de Mukli"
213

aparece centralizado entre os chifres de uma passagem estreita, do lado


oposto ao templo de Artemis no Monte Artemísio.
A forma cônica do portão do leão também sugere a forma de uma
colmeia. Tanto a Deusa do Minoano quanto Artemis foram retratadas como
abelhas. Um camafeu datado de 1.500 a.C. mostra dois leões agressivos
vestidos como abelhas, enquanto uma placa de ouro de Rodes, cerca de 700
anos mais tarde, mostre uma Deusa com asas como as de Artemis e uma
colmeia como a parte inferior do Seu corpo. A associação com as abelhas
vem da abelha rainha como uma deusa da sua colmeia. O enxame de abelhas
simbolizava a vida abundante, e por isso os micenenses construíam suas
tumbas tholos na forma de colmeias.
As primeiras placas e pinturas de Artemis com seus animais selvagens
mostram-na com asas que saem de Seus ombros e se enrolam para cima nas
extremidades. A paisagem natural de Micenas dá vida a esta imagem, pois
as colinas de cada lado da fortaleza estendem-se amplamente antes de se
espiralar para seus picos pronunciados.

Elos Entre as Deusas


Através da herança da mitologia grega clássica, nós nos acostumamos a
pensar nas Deusas gregas como unidades distintas, totalmente separadas
uma da outra. Alguns livros contemporâneos chegam a apresentar quadros
das Deusas e de seus atributos, para que os leitores possam escolher a
Deusa que melhor se adapte à sua própria personalidade. Na verdade, não
podemos isolá-las assim tão nitidamente.
Em quase toda parte, observamos as Deusas justapondo-se umas às
outras. Pense na dança, por exemplo. Através de gritos, música e danças, nós
adoramos a Deusa com corpos prazenteiros. Os adoradores de Artemis
chamam-na de a sonora e celebram-na ruidosamente. Os adoradores de
Cibele e Deméter batem címbalos em sua honra, assim como os cretenses
podem ter batido em conchas em suas procissões e rituais. E podemos nos
lembrar do tambor de pedra encontrado em Pêch-Mèrle, ao lado de uma área
aberta que pode ter servido como campo de dança. A imagem das danças
fecha o seu círculo com Artemis e Suas mulheres mascaradas de animais
dançando em selvagem abandono sexual.
As flores expressam a beleza da Deusa e a riqueza da vida. Os
romanos enfeitavam Cibele e Vênus (Afrodite) com rosas. Também na
214

Grécia, os seguidores de Afrodite a homenageavam com rosas, uma razão


por que atualmente, milhares de anos depois, oferecemos rosas para
expressar devoção apaixonada. Na época do cristianismo, a rosa ficou
associada a Maria, chegando até Ela tanto através de Cibele, a Mãe dos
Deuses, quanto de Afrodite, a Rainha do Amor. A visão do Paraíso de
Dante (retirada do poema francês anterior Lê Roman de Ia Rose) retratou
Maria no centro de uma grande rosa criada pelos anjos que voavam em
torno dela, adorando-a.
Na verdade, muitos atributos de Maria são extraídos das Deusas
anteriores, particularmente de Cibele, de Afrodite e da Artemis de Efeso. O
nome Maria (em hebreu, Míriam) significa "o mar". Afrodite significa
"nascida da espuma", pois a Deusa do Amor ascende da água salgada para
entrar na praia de Chipre, onde os espíritos conhecidos como as Horas
adornavam-na com rosas.
A Grande Mãe Cibele dá à luz primeiro Átis, que, como Jesus,
morre e ressuscita. Similarmente ao que ocorre com Maria mais tarde,
Cibele não precisa de um homem para engravidá-la. O primeiro Concilio
Cristão que estabeleceu Maria oficialmente como a Mãe de Deus teve lugar
em Efeso, local do grande templo de Artemis, com Sua estátua de árvore
com muitos ramos. Como Artemis, Maria tornou-se a patrona protetora das
mulheres na hora do parto.

Cibele
As romãs, assim como as rosas, pertenciam a Cibele. Uma estátua antiga da
Deusa retrata-a segurando romãs. A estátua vem da Síria, na extremidade
leste do império hitita, que conquistou a Anatólia e a Frígia em torno de
1740 a.C. Mil anos mais tarde, em Roma, as estátuas de Cibele ainda a
mostravam com romãs. As romãs vinculam Cibele mais obviamente com
Perséfone, que deve retornar todos os anos à Terra dos Mortos por ter
comido duas sementes de romã dadas a ela por Hades, o Deus da Morte.
Mas a arte romana às vezes exibe Cibele ao lado de Deméter, mãe de
Perséfone. Deméter deu o conhecimento da agricultura aos humanos como
uma expressão da Sua alegria quando Sua filha voltou para Ela.
Comparativamente, o escritor romano Lucrécio citou os frígios como o
primeiro povo a cultivar o solo. O filho de Cibele, Átis, que morria e
ressuscitava todos os anos, simbolizava o alimento, assim como Zeus havia
215

feito em Creta ou Osíris no Egito. (Osíris começou como Deus da


Vegetação, mas com o tempo Seu papel foi alterado. Tendo morrido e
ressuscitado, tornou-se comandante e consolador dos mortos, prometendo-
lhes renascimento, da mesma forma que o fizeram Perséfone, e
posteriormente Jesus.) No final dos Mistérios de Deméter e Perséfone, o
hierofante cerimoniosa-mente ergueu uma espiga de trigo diante das mystae.
No império dos hititas, Cibele teve o nome de Kubaba. Este nome
possivelmente significa "cubo", referindo-se a um meteorito em forma de
cubo adorado como o corpo celeste da Deusa em Anatólia. Os arqueólogos
encontraram uma pedra negra em forma de cubo em Petra, uma cidade
helênica no local onde hoje fica a Jordânia, e até hoje o Ka'aba, um
meteorito gigantesco em Meca, continua sendo o centro de adoração de
Maomé. A carruagem de Cibele, puxada por leões, carregava uma pedra
negra cônica para a cidade durante Seu grande festival em março-abril.
Assim como a pedra negra, outros objetos incorporavam Kubaba,
incluindo uma porta e um portão, símbolos da vagina se abrindo para os
mistérios do corpo. Também incluíam uma pomba, a ave mais sagrada para
Afrodite (e associada pelos judeus a Noé, e pelos cristãos ao Espírito Santo
que engravidou Maria), e o machado de lâmina dupla, aquela borboleta da
Lua crescente, símbolo da Deusa, que remonta à Idade da Pedra, passando
por Creta e na verdade por Anatólia.

O Sacrifício Genital e a Mudança de Sexo


A conexão mais forte e mais incomum entre Artemis, Cibele e Afrodite vem
dos mitos e das práticas que envolvem o sacrifício dos genitais masculinos
e uma espécie de mudança ritual do sexo. Essas imagens e ações derrubam
as supostas paredes existentes entre os sexos. Elas nos lembram que todos
nós pertencemos ao Seu corpo, e até as categorias mais fixas podem se
tornar mutáveis sob o Seu poder e influência. Quase sempre, a transposição
dos limites entre os sexos ocorreu durante ritos extáticos envolvendo
procissões com música alta e dança selvagem.
Embora encontremos os rituais de mudança de sexo e de sacrifícios
fundamentalmente entre os adoradores frígios de Cibele e na origem do mito
de Afrodite, o mesmo elo aparece nas histórias de Artemis. As mulheres
que dançavam tão selvagemente em Seus ritos às vezes usavam chifres de
veados e outros aspectos da incorporação masculina, incluindo grandes falos.
216

Em The Goddesses and Gods of Old Europe, Marija Gimbutas conta-nos que "As
oferendas a Artemis incluem falos e todas as espécies de animais e frutas (...)
Animais selvagens mutilados, dos quais 'um membro foi cortado', eram
sacrificados em honra a Artemis na Beócia, Eubéia e Ática".
A expressão mais plena do sacrifício genital vem com os gallae, que
acompanharam Cibele da Frígia para Roma. (Muitos autores que escrevem
sobre este tema usam a forma masculina da palavra, ou seja, galli. Como o
poeta romano Catulo, uma importante fonte de informação sobre os ritos,
usei o sufixo feminino como um reconhecimento de que a autocastração dos
gallae envolvia um movimento deliberado de um estado masculino para um
estado feminino. Similarmente, a maioria dos textos sobre este tema usa o
termo "autocastração" para as ações dos gallae. A castração, no entanto,
significa somente a remoção dos testículos. Os gallae castravam-se
inteiramente, como que para remover toda a masculinidade de seus corpos.)
Os gallae faziam sua oferenda, como parte dos longos ritos de Cibele e
Atis, em 24 de março, o "Dia do Sangue". Mais uma vez, a música c a dança
faziam parte do ritual, pois os gallae mais velhos ajudavam oi iniciantes a
atingir um estado de êxtase. As rosas também estavam presentes — segundo
Randy E Conner, em Blossom of Bone, "os devotos de Cibele e Átis
mostravam os galli [sic] com moedas e rosas brancas". Os gallae podem ter
eles próprios se castrado ou os idosos podem tê-lo feito para eles. Seja como
for, os órgãos removidos tornaram-se objetos de poder mágico. Alguns
relatos dizem que os gallae armazenavam-nos em aposentos subterrâneos
para serem usados em ritos secretos.
Depois de sua autocastração, osgallae recebiam cerimoniosamente
roupas femininas. Sir James Prazer descreveu-os usando trajes de noiva para
sua iniciação no serviço de sua Deusa.

Uma Prática Difundida


O culto aos gallae teve início na Frígia, provavelmente já na Idade da Pedra.
De lá se expandiu para Roma e também para Atenas, e até Londres sob o
domínio romano. Mas também o conhecemos de outras culturas, incluindo
a África do Norte, índia, Arábia, Canaã e outros locais. Encontramos uma
chave para sua prática disseminada no Capítulo 23 do Deuteronômio, onde
lemos: "Nenhum homem... cujo órgão foi cortado, deve se tornar membro
da assembléia do Senhor." Comentando esta passagem, o rabino J. H. Hertz
217

escreveu: "Os primeiros a serem excluídos são os automutilados ou não-


sexuados a serviço de algum culto pagão."
Atualmente, na índia, ainda encontramos o equivalente aos gallae,
com pessoas conhecidas como hijras. Segundo Anne Ogborn, uma mulher
transexual americana (do masculino para o feminino) que se tornou uma hijra
iniciada, os hijras removem seus órgãos masculinos em uma cirurgia
realizada por um dai ma, em geral um líder da comunidade bijra local.
Antes dos britânicos proibirem oficialmente a prática em 1888, a cirurgia
ocorria nos templos da Deusa Bahuchera, uma variante da mais conhecida
Deusa Durga. Os hijras, como osgallae, vestem-se como mulheres e com
freqüência referem-se a si mesmos, especialmente entre si, como mulheres
(embora a maioria dos indianos refira-se a eles como neutros, "nem homem
nem mulher"). Entre suas funções rituais, eles dançam em casamentos e
abençoam os bebês do sexo masculino. Na época dos moghuls5 os hijras
realizavam um ritual conhecido como solah shringar a fim de preparar as
cortesãs para encontrar seus amantes.

Auto-Escolhidos, Escolhidos da Deusa


Os gallae, assim como os hijras hoje em dia, jamais obrigaram alguém a
participar do seu culto. A lei romana, na verdade, restringiu as práticas aos
frígios e proibiu qualquer cidadão romano de se tornar um galla. Tanto os
gregos quanto os romanos abominavam os gallae, reconhecendo sua própria
existência como uma ameaça ao domínio do falo.
Os gallae em perspectiva se apresentavam pedindo para se juntar ao
serviço da Deusa. Entretanto, embora claramente se oferecessem, também
podiam ter sentido que a Deusa os tocara ou convocara. Embora os gallae
possam ter incluído alguns poucos homens que abusaram de mulheres e
buscaram se expiar, a grande maioria deles sentia algo dentro de si
impulsionando-os a este ato extremo de alterar seus corpos.
Os gallae assemelhavam-se aos contemporâneos "transexuais", uma
palavra que significa "além do próprio sexo". Tocados por uma forte
sensação de pertencer ao sexo "oposto", as pessoas transexuais buscam
cirurgia e outros meios para mudar seus corpos. O corpo torna-se então uma
expressão, ou um meio, para um desejo profundo e apaixonado. Muitas
5
Muçulmanos indianos. (N. da T.)
218

mulheres transexuais identificavam-se com os gallae, chegando a estabelecer


templos modernos para Cibele e celebrando Seus festivais. Outras, como
Anne Ogborn, vêem uma conexão com os hijras. Embora a maioria não se
vincule diretamente a essas culturas, muitos têm considerado a transposição
do gênero e do sexo como uma jornada espiritual. Davina Anne Gabriel,
editora de TransSisters: the Journal of Transsexual Feminism, escreveu que
não podemos compreender a transexualidade sem a idéia da
"transcendência". E Dallas Denny, escrevendo sobre as lições aprendidas
desde a cirurgia de Christine Jorgensen, em 1952 (a primeira operação
moderna de "mudança de sexo" anunciada ao mundo), começou com a
afirmação de que "O transexualismo é uma experiência religiosa/espiritual".

O Mito de Cibele e Átis


Embora os gallae admitissem que seu ato extremo expressava uma tendência
interna, também o realizaram imitando Cibele e Átis. Em algumas versões
do mito, Cibele começa como Agdisto, um Deus/Deusa hermafrodita de
duplo sexo. O arrogante Agdisto representava um perigo para os Deuses.
Para domá-lo, Dionísio rapta-o enquanto ele dorme e amarra seu órgão
masculino a uma árvore. Quando Agdisto acorda, o falo se dilatou e um
movimento repentino o corta. Este ato horrível não faz com que Agdisto se
sinta aleijado, retraído, ou mesmo furioso. Ao contrário, Ele se torna Cibele,
a Grande Mãe dos Deuses. (Outra versão da história fala de Agdisto e
Cibele como rivais pelo amor de Átis.)
Segundo Randy Conner, uma romãzeira cresceu do sangue de
Agdisto; vamos ver no próximo capítulo que outros relatos descrever a
romã como o coração de um desmembrado Dionísio. Comendo fruta, uma
ninfa do rio de nome Nana engravidou e deu à luz Átis, que depois se tornou
amante de Cibele. Outras versões do mito descrevem Átis como filho de
Cibele. A confusão pode derivar dos primeiros mitos da Deusa tomando Seu
filho como Seu consorte.
Anne Baring e Jules Cashford contam-nos que, na versão mais antiga
da história de Átis, os genitais masculinos cortados da andrógina Cibele
deram origem a uma amendoeira e não a uma romãzeira, e Nana ficou
grávida por comer as amêndoas.
219

Átis castra-se em imitação a Agdisto. Como um Deus da vegetação,


deveria retornar na primavera. Posteriormente, ascendeu ao céu para ser
coroado com estrelas.
A Criação de Afrodite
Átis e os gallae podem chocar os leitores modernos como sombrios e até
perturbadores. Entretanto, algumas questões semelhantes surgem em torno
de uma figura ainda considerada fundamental para a mitologia grega:
Afrodite, a Deusa do Amor.
A origem de Afrodite remonta aos elementos mais básicos da na-
tureza, da Terra e do Céu. Segundo o mito, algo deu errado. Urano, a
primeira criação de Gaia, tornou-se arrogante, separando-se da Terra. Ele
vai se deitar com Ela, mas odeia os filhos nascidos da sua união, como se
não pudesse suportar a lembrança do poder dela de gerar a partir do
próprio corpo. E então os esconde, separando-os de sua Mãe assim que eles
nascem.
Gaia cria uma foice de pedra, um instrumento cuja forma evoca a
Lua, assim como o arco tenso de Artemis e o chifre que está nas mãos da
Deusa Paleolítica entalhada em Laussel, na França. (Os achados ar-
queológicos sugerem que as mulheres podem ter inventado a foice como uma
ferramenta para colher plantas. Em uma das mais antigas cavernas escavadas,
os arqueólogos encontraram uma lâmina curva, que admitiram ser a arma de
guerra de algum chefe — até que alguém resolveu examiná-la com um
microscópio e encontrou vestígios de plantas, mas não de sangue.)
Gaia dá a foice a seu filho, Cronos, identificado com o planeta
Saturno. Cronos corta os genitais de Urano e atira-os ao mar, entregando-
os ao corpo feminino primitivo. Não sabemos o que acontece com o
órgão em si, mas o mito nos conta como a ação estimula uma espuma
sobre a água, da qual surge o ser feminino perfeito, Afrodite.
Alguns feministas interpretam a história de Hesíodo sobre o nasci-
mento de Afrodite como uma tentativa de declarar que a Deusa do amor é
uma criação masculina, comparando-a àquela de Atena irrompendo da
cabeça de Zeus. Entretanto, o destino de Urano parece tão carregado pela
ansiedade em relação aos homens, tão aterrorizante para a maioria deles,
que dificilmente vai defendê-los contra o poder das mulheres. E Afrodite
não retém as características masculinas, como Atena, nem se vincula às
questões masculinas ou políticas, como Esquilo descreve Atena se
comportando em sua peça As Eumênides. Afrodite não é tanto a filha de
220

Urano, mas Sua substituta. Depois que ele fica "não sexuado", retira-se na
escuridão.
Será que Afrodite tem Sua origem na Idade da Pedra? O mito revela-a
como uma geração mais velha que Zeus e os outros olímpicos primários.
Sua adoração inclui originalmente figuras como os gallae que adoravam
Cibele? No hino homérico a Afrodite, a Deusa descreve-se como filha de
Frígia, que era o lar de Cibele. Esta veio para Roma devido a uma profecia
do oráculo de Delfos, segundo o qual a Mãe de Ida iria salvar a cidade da
invasão. O mito conta-nos que Afrodite deitou-se com Anquises na encosta
do Monte Ida em Anatólia, e que quando Anquises descobriu a identidade de
sua amada, implorou à Deusa que não o tornasse impotente. Em
comparação com este mito, os homens na índia acreditam que os hijras
detêm o poder de amaldiçoar um homem com a impotência.
Na região de Amarthus, os devotos da Deusa local que assimilaram
Afrodite, descreviam sua divindade como "possuidora de um sexo duplo". E
chamavam-na/no de Afroditos. Nosso próprio ternv "hermafrodita"
origina-se de Hermafroditos, um filho de Hermes Afrodite que funde seu
corpo com o de uma ninfa do rio chamac1
Salmacis. E Robert Graves, em The Greek Myths, conta a história de
uma Deusa hitita que arranca com uma mordida os genitais do Deus do Céu,
Anu, e cospe sua semente em uma montanha para criar a Deusa do Amor.
A Deusa que realiza este ato é Kubaba, o nome hitita para Cibele.

O Xamanismo e a Mudança de Sexo


A estrutura religiosa de âmbito mundial conhecida como xamanismo, às
vezes considerada a religião mais antiga do mundo, freqüentemente inclui
uma mudança de sexo. O xamã, seja masculino ou feminino, usa as roupas e
assume o papel social do sexo "oposto". Em algumas culturas, especialmente
entre vários povos nativos norte-americanos, as mulheres ou os homens
mudam de sexo como uma expressão de escolha pessoal. Essa ação destrói
as barreiras artificiais de oposição entre homens e mulheres. Entretanto, as
pessoas interessadas não mudam de sexo para estabelecer uma perspectiva
filosófica. Ao contrário, como os gallae ou os transexuais modernos, seguem
uma inclinação ou compulsão interna. Escrevendo sobre os rituais de
Dionísio (outra figura de sexo duvidoso), Nor Hall nos diz que "O abandono
ao desejo do corpo é em si uma fonte de revelação".
221

Das muitas correntes que dão origem à religião grega, uma pode ter
derivado dos xamãs que superaram as barreiras do sexo: os homens, através
do sacrifício de seus genitais; as mulheres, usando roupas masculinas e
falos artificiais. As divindades e os heróis que mudam de sexo aparecem de
vez em quando no mito grego. Níobe zomba de Leto, a mãe de Apoio e
Artemis, por ter uma filha masculinizada e um filho efeminado. Tanto
Héracles quanto Aquiles usam às vezes roupas femininas. Tirésias, o profeta
grego, começa sua jornada para a profecia mudando de sexo. Cruzando com
duas serpentes copulando, ele mata a fêmea e se vê transformado em
mulher. Após sete anos, durante os quais se torna "uma famosa prostituta"
(Robert Graves), Tirésias tem a mesma visão, e, matando o macho,
novamente se transforma em homem. A história é filosófica, pois sugere que
podemos nos transformar em qualquer coisa que tentemos matar. E também
que o homem e a mulher são incompletos, e que o poder sagrado vem da
superação dessa divisão — dentro de um só corpo.

Dionísio, "O Efeminado"


O próprio Dionísio carrega o epíteto de "efeminado" por ter sido criado
como uma menina. Segundo Arthur Evans em The God of Ecstasy, os
seguidores de Dionísio às vezes o incorporavam como um bastão decorado
com um vestido e uma barba. Evans descreve como as adoradoras do Deus
vestiam-se como homens, com longos falos, enquanto os homens usavam
roupas femininas e desempenhavam papéis femininos. Evans cita esta descrição
de Dionísio feita por Diodoros da Sicília: "... corpo muito macio e delicado,
superando em muito os outros em sua beleza e dedicado ao prazer sexual". A
descrição aproxima Dionísio de Afrodite, recordando-nos que o "êxtase" nos
tira de nós, mas não dos nossos corpos.
Diz-se que o disfarçado Aquiles revela-se quando escolhe uma espada
em vez de presentes mais femininos. Dionísio, entretanto, quando lhe foram
apresentados muitos brinquedos quando criança, escolheu um espelho, um
artigo feminino, não apenas por sua preocupação com a beleza, mas também
por seus poderes de reflexão como os da Lua. O espelho capta a Sua
imagem, e forças demoníacas o desmembram e i atiram em um caldeirão
fervente. Esta história reflete exatamente o terrores do transe de muitos
xamãs, que são cortados em pedaços, queimados vivos e de outras maneiras
destruídos para permitir um renascimento como um novo ser, em geral de
222

outro sexo. Os mênades seguidores de Dionísio eram descritos como


rigidamente eretos, como falos. Também adquiriam poderes xamânicos.
Corriam descalços através da neve durante quilômetros e enrolavam
serpentes em seus cabelo sem serem picados. Os mênades não alteravam o
corpo através de cirurgia, mas através do transe. Tornavam-se, em certo
sentido, transexuais.

Artemis e Afrodite
À primeira vista, não há outras duas Deusas que pareçam mais diferentes que
Artemis e Afrodite. Artemis é rude, selvagem, ereta e forte, vivendo
escondida na floresta, inclemente, misteriosa como a Lua prateada. Afrodite
é sensual, dourada e macia como a aurora, apaixonada, perigosa,
voluntariosa, sempre se apaixonando e despojando os outros de razão e bom
senso. Artemis é a incorporação da força; Afrodite é a incorporação do
desejo.
Entretanto, quanto mais profundamente observamos, mais achamos
que estas duas Deusas se pertencem. As duas originam-se de raízes antigas,
remanescentes claras da Grande Deusa. Ambas podem ter sua origem fora
da Grécia, pois seus nomes são de origem e significado incertos. Mas estas
são comparações superficiais. Um poder mais profundo vincula as duas.
Ambas as Deusas incorporam uma selvageria, uma urgência física que nos
conduz, como diz Vincent Scully, "além do alcance da razão ou do controle".
Elas permanecem, em todas as épocas, fiéis a si mesmas.
Encontramos também algumas conexões explícitas. Quando
Afrodite faz amor com Anquises no Monte Ida, o local para isso é um diva
"onde estão espalhadas peles de ursos e leões, enquanto as abelhas zumbem
sonolentas em volta deles" (Robert Graves). Estes três animais pertencem a
Artemis.

Afrodite e a Sexualidade
Ao contrário de algumas divindades, Afrodite não mantém uma distância
entre Ela e aqueles que caem sob o Seu poder. Ela se entrega ao amor de
uma maneira tão selvagem e insensata quanto qualquer de Seus súditos,
deitando com mortais e também com Deuses. "Então o amor abalou meu
coração como o vento que cai sobre os carvalhos nas montanhas", escreveu
223

Safo, talvez a maior devota da grande Deusa. Afrodite também permite que
o vento abale Seu próprio coração, pois como Ela pode compreender e
libertar o poder do desejo sem Ela própria se render a ele?
Apesar de todas as tentativas para reassegurar nossa sexualidade nos
últimos cem anos, ainda desconfiamos deste aspecto primitivo de nossas
vidas. Tentamos manter o sexo como um aspecto dos relacionamentos
emocionais. Se ouvimos falar de alguém que contraiu AIDS através do
sexo casual, falamos desta terrível doença como culpa da própria pessoa.
Sentimo-nos culpados se desejamos pessoas que não respeitamos, ou
fantasiamos sobre ações que não aprovamos. Tentamos controlar nossas
fantasias até em nossas mentes, e por isso elas não vão trair nenhum aspecto
desagradável ou ameaçador de nós mesmos. Assumimos contentes imagens
da Deusa como nutrientes, protetoras, fortes, doadoras da vida, destemidas
— mas evitamos retratos dela como libertinas, descontroladas, insaciáveis.
A Deusa Inana, freqüentemente considerada uma contraparte
sumeriana de Afrodite/Vênus, tornou-se uma favorita dos adoradores
modernos da Deusa, principalmente devido à Sua adoradora-cantora (para
usar uma expressão africana), Enheduana, filha do Rei Sargão, talvez a
poeta mais antiga do mundo. Aplaudimos a história de Inana de ir do
"Grande Acima para o Grande Abaixo", ou seja, do Céu para a Terra dos
Mortos, onde Ela enfrenta Sua todo-poderosa irmã, Ereshkigal, Deusa da
Morte. Vemos isto como um todo, enfrentando a Deusa das trevas dentro de
nós mesmos. Mas ignoramos as descrições de Inana como violenta, infiel,
patrona das prostitutas que visitam "tavernas", uma Deusa que copula com
cavalos e também com homens. Sentimo-nos desconfortáveis com as
descrições sumerianas de Sua vulva como o barco do céu, ou um campo
baldio esperando pelo arado. E não A mencionamos como a Deusa do beijo,
pois estas coisas parecem triviais e, pior, podem conduzir ao reconhecimento
de Sua função como Deusa da Masturbação.
Não amarramos mais as mãos das menininhas para evitar que elas se
toquem "lá embaixo", mas ainda achamos difícil ver a masturbação como
algo mais que uma brincadeira, ou um alívio de um aborrecimento, como
tomar uma pílula. Preferimos considerá-la uma substituição para "a coisa
real", não uma expressão de amor-próprio ou cor um poder do corpo para nos
conduzir à verdade. A masturbação pertence a toda uma variedade de
expressões sexuais inaceitáveis, desde o sexo casual até o fetichismo, o
sadomasoquismo e a dança orgíaca. Quando Nor Hall escreve sobre o
abandono ao desejo do corpo, não fala apenas na segurança de um
casamento apaixonado.
224
225

Santuários para Afrodite


Assim como os locais de Artemis invocam a força feminina das montanhas,
os locais e os templos de Afrodite às vezes expressam a beleza do corpo
feminino. Segundo o arqueólogo Donald White, Seus templos
freqüentemente assumem formas arredondadas, como seios. Scully escreve
sobre um templo em Segesta, na Sicília, como sendo cartaginês, e não
grego, mas que ainda recorda Afrodite, pois está no topo de uma colina
arredondada "como um mamilo em um seio". Mas Ela não é suave. Seus
santuários freqüentemente aparecem em topos de montanhas. Assim como a
paixão que Ela domina, Seus locais sagrados podem invocar "aparições
explosivas" (Scully). Assumem a forma de massas de terra elevando-se do
mar, assim como Ela própria saiu da espuma, assim como o desejo jorra em
nós das águas profundas e secretas de nossos corpos.
Os santuários em honra a Asclépios, o Deus da Cura, continham
templos para Afrodite. Asclépios curava com a cobra, a antiga energia da
Deusa tão poderosamente vinculada à sexualidade. Em Seu principal centro,
Epidauro, colinas montanhosas cercam o local, enquanto a vista na direção
norte, olhando-se para o topo do famoso estádio, mostra uma série de
colinas baixas. Epidauro não está muito longe de Micenas, mas a terra muda
dramaticamente entre os dois locais.
Afrodite pertence ao local da cura, pois embora o amor penetre no
coração, a paixão cura. O sexo afasta a dor, liberta o corpo.

Afrodite e a Natureza
Afrodite pertence à Terra, às montanhas e ao mar, de onde ela primeiro
surgiu nua da água. Nós a vemos acompanhada de gansos e golfinhos. Com
frutas, com flores, com rosas e jacintos, com papoulas e romãs. Seu amante
Adônis, nascido de uma árvore de mirra, morre em um campo de alface,
uma planta cujo crescimento rápido, de abundante folhagem, faz com que
ela apareça com freqüência nos mitos da Deusa. Consta que a alface forma
os pêlos púbicos de Inana. Pelo menos um tipo de alface, o raponço, tem
uma flor de cinco pétalas, um elo com o planeta Vênus (nome romano de
Afrodite), com seu caminho de cinco pétalas até o céu. (Os leitores de
226

histórias de fadas devem saber que o nome alemão de "raponço" é


rapunzel.) Mais freqüentemente, vemos Afrodite segurando uma maçã, o
que a conecta a Eva e àquelas deusas exibidas oferecendo suas maçãs da
imortalidade aos iniciados. A maçã também nos vincula a Vênus, pois se a
cortarmos na metade, no sentido horizontal, vamos encontrar uma perfeita
estrela de cinco pontas.
O céu é Seu lugar, Seu Lar, Sua origem. O Deus do Céu, Urano,
sacrificou Seu próprio sexo para criá-la. Afrodite remonta às antigas Deusas
Pássaros, pois as pombas a obedecem e Ela anda no ar em charretes de
cisnes e gansos, aves conhecidas por sua ferocidade e também por sua
beleza. Quando Ela descansa, senta-se em um trono de cisnes.

Sexualidade e Maternidade
O mito grego fala nas quatro Rainhas do Céu: Artemis, Atena, Hera
Afrodite. Em termos sexuais, podemos caracterizá-las como uma lê bica,
uma virgem casta, uma esposa e uma amante. Embora Homer6 descreva
Afrodite casada com Hefesto, o casamento não aparece muito em suas
histórias. Jamais a vemos como uma virgem, pois enquanto um mito pós-
homérico descreve Hera readquirindo seu hímen todos c anos, nenhum mito
fala de Afrodite "perdendo" sua virgindade. Além disso, nenhum Deus ou
mortal jamais a estuprou, raptou ou a tome contra a sua vontade. Ela se
rende à sua própria paixão, ao seu próprio poder de inflamar o corpo, não
forçar ou obrigar.
As Rainhas não suscitam imagens de maternidade, apesar das suj sições
de muitas pessoas de que "Deusa" sempre significa "Grande Mãe”. Tanto Hera
quanto Afrodite tiveram filhos, mas é muito raro vermos tais Deusas nesta
função. Artemis assiste outras mulheres no parto, mas ela própria não fica
grávida. Para a imagem da maternidade, precisamos recorrer às Deusas da
Terra, e principalmente a Deméter, através do seu relacionamento com
Perséfone, sua filha.
A divisão grega entre a paixão sexual e a maternidade faz eco à
nossa sociedade atual, onde muitas pessoas acham quase doloroso imaginar
suas mães como seres sexuais, e onde as mulheres com famílias acreditam
que precisam agir como duas pessoas diferentes em seus papéis como mãe e
amante.
6
Homero
227

Tentamos esquecer que o parto e o desejo envolvem as mesmas áreas


do corpo, ou que muitas mulheres acham amamentar seus bebês sensual e
erótico. As mulheres que experimentam o "orgasmo do nascimento" quando
libertam o bebê de suas vaginas podem se sentir culpadas, ou perturbadas,
por uma experiência que ninguém jamais lhes disse que era "normal".
Paul e Deborah Friedrich, em seu livro The Meaning of Aphrodite,
chamam a atenção para as poderosas correspondências entre a excitação
sexual e o parto: 1) respiração profunda seguida por respirações curtas; 2)
gemidos e soluços; 3) expressão facial tensa; 4) contrações rítmicas; 5)
relaxamento da mucosa que envolve a nuca; 6) contrações abdominais
periódicas; 7) perda de inibições e do comportamento convencional; 8)
grande aplicação de força; 9) anestesia natural da vulva; 10) insensibilidade
ao que está em volta; e 11) fluxo de emoção jubilosa. A diferença óbvia é a
grande dor do parto em comparação com o prazer do sexo.
Os Friedrich vêem Afrodite e Deméter como derivadas de uma
Deusa anterior (temos visto vínculos entre elas e Cibele e Artemis). No
período patriarcal, a unidade da sexualidade e da maternidade torna-se uma
ameaça, pois proporciona às mulheres um enorme poder. O que poderia
parecer a mais óbvia conexão fica separado, como no mito cristão das duas
Marias, a primeira uma mãe virgem assexuada, a segunda uma prostituta,
com a suposição de que uma prostituta é alguém que deve ser desprezada.

Afrodite, Adonis e Perséfone


Se o mito grego não mostra um elo explícito entre Afrodite e Deméter,
estabelece um vínculo entre Afrodite e a filha de Deméter, Perséfone. O
elo aparece no mito do amante mortal de Afrodite, Adonis (cujo nome
significa "senhor" e está relacionado com "Adonai", um título hebreu
para Deus). Em parte por causa de Adonis, alguns mitógrafos
consideram Afrodite asiática, pois sua história se assemelha àquelas
histórias de Inana e Dumuzi na Suméria, Ishtar e Tamuz na Babilônia
("Adonis" era originalmente um título dado a Tamuz), e Cibele e Atis na
Anatólia.
A história de Afrodite inclui uma referência oblíqua a Deméter.
Começa com uma rainha que a desprezou. Como castigo, a Deusa do
Amor inflama Smirna, filha da rainha, de paixão por seu próprio pai.
Smirna o seduz na escuridão, durante o festival de Tesmofória. Tesmofória
era um ritual de mulheres realizado em nome de Deméter (ver Capítulo 8).
228

Incluía o sacrifício de um porco em uma cova cheia de serpentes, e exigia


que as mulheres se abstivessem de contato com os homens. Amando seu
pai durante esta época, Smirna o atrai, um símbolo do patriarcado, para
o mundo pré-histórico dos corpos das mulheres.
Ele recupera seu controle quando descobre sua filha grávida de um
filho seu. Pega uma espada (aquele falo cortante) e a expulsa do palácio.
Pouco antes da espada atingir Smirna, Afrodite a transforma em uma
árvore de mirra. A espada corta a árvore ao meio e Adonis sai de dentro
dela. Algumas versões dizem que ele emerge nove meses depois.
Afrodite esconde Adonis em uma arca (como uma caixa, um sím-
bolo do útero) e o entrega a Perséfone, para que ela o esconda na escura
Terra dos Mortos, assim como as plantas se escondem no útero da Terra até
a chegada da primavera. Perséfone, entretanto, abre a arca. Impressionada
com a beleza de Adonis, reivindica-o para si. Quando Afrodite reclama,
Zeus decide que Adonis deve passar um terço do ano com cada Deusa,
um terço sendo deixado à sua própria escolha. Robert Graves conta-nos
que na Síria, na Ásia Menor e na Grécia as pessoas dividiam "o ano
sagrado da deusa" em três partes, governadas pelo leão pelo ganso e pela
serpente. A primeira parte era consagrada à Deusa do Parto (uma versão
de Artemis), "que não reivindicava a posse de Adonis", a parte
intermediária era consagrada a Afrodite (o ganso continuou a simbolizar
a sexualidade na era cristã), e a última parte, a serpente, pertencia a
Perséfone.
Segundo o mito, a Deusa da Morte fica zangada quando Afrodite
usa sua mágica para reivindicar o amor de Adonis pela terça parte do ano
deixada vaga pela Deusa do parto. Perséfone incita Ares (algumas versões
referem Apoio, e outras, Artemis) a enviar um javali para dar uma
chifrada mortal em Adonis. O mito pode encobrir a prática, na Síria, no
Egito e na Grécia, de usar os porcos para debulhar os grãos. Adonis
morre na primavera, o período de renovação das plantas e do estro,
excitação sexual feminina. Anêmonas brotam do sangue de Adonis.
Com a morte de Adonis causada por um porco, a história fecha o
círculo, voltando ao porco sacrificial da Tesmofória. Embora os povos
antigos considerassem Adonis um Deus morto e ressuscitado, e cele-
brassem seus ritos todos os anos, a história realmente não fala de Afrodite
restaurá-lo à vida. Isto contrasta com histórias como aquela dos egípcios
Isis e Osíris, em que a Deusa ressuscita seu amante. Para a expressão mais
completa do ser sagrado que morre e ressuscita, que, na verdade, adquire
uma percepção plena da vida através do conhecimento íntimo da morte,
229

devemos recorrer, não ao Filho, mas à Filha, a própria Rainha dos Mortos,
Perséfone.
230

8 - Corpo com o Morto

O mistério vem sempre de um corpo


O mistério vem sempre de um corpo de mulher
... O mistério do mistério é ser mulher
... o mistério vem
Sempre do corpo no corpo de uma mulher

Helene Cixous

Eles vinham literalmente aos milhares, viajando em procissão ao longo


da beira do mar até o mais famoso santuário religioso do mundo antigo.
Eram os mystae, os celebrantes de um ritual de nove dias em honra da
Grande Mãe e de Sua Filha, a moça desamparada que se tornou Rainha
dos Mortos e no processo mudou o significado da própria morte.
Até agora, ninguém conhece os segredos finais revelados no final
dos nove dias dos Mistérios de Elêusis. Conhecemos muitos detalhes: o que
os celebrantes vestiam, o que faziam em cada um dos dias, as palavras
especiais que diziam, os alimentos que comiam. Mas a revelação final
permanece oculta.
Entretanto, sabemos de algo que é vital. Conhecemos a história —
uma história de incesto e estupro, de terror e de transformação — e
sabemos que ela fala do amor e da determinação de uma mãe, de uma
Deusa e de uma mulher, que insistia na verdade e rejeitava a acomodação,
que deteve o mundo todo até os Deuses devolverem Sua filha.
Esta é a história literal, o movimento dos personagens e o enredo.
Entretanto, quanto mais profundamente a examinamos, mais descobri-
mos. Descobrimos a criação da agricultura e os primórdios da lei e da
sociedade humanas, a sobrevivência e o retorno sutil da religião da
231

Deusa no mundo patriarcal, e, finalmente, a própria origem da sexuali-


dade e da morte.
232

Elêusis — Então e Agora


A pequena cidade de Elêusis ficava longe de Atenas, a um dia de
caminhada para os mystae, os iniciados que partiam de Atenas pela manhã
e chegavam à noite no Precinto Sagrado. Atualmente, o subúrbio indus-
trial de Elefsis cerca o Precinto, que está em ruínas desde 400 a.C
quando Alarico e seus godos saquearam os templos, aparentemente par
agradar o bispo cristão. Muitos guias arqueológicos e turísticos descrevem
Elêusis como destruída, uma massa de pedras esmagada pelos estaleiros e
fábricas vizinhos. Em vista disso, poucos visitantes fazem curta viagem
da capital até lá. Isto é ao mesmo tempo uma pena e um bênção — uma
pena porque muitas pessoas perdem uma intensa conexão com o passado,
e uma bênção porque beneficia aqueles que querem evitar as multidões
tagarelas que enchem o Partenon. Afinal, mesmo que a arquitetura esteja
danificada, o próprio tamanho do Precinto — quase uma aldeia — e o
muro que o separa da cidade moderna dotam no de um poder só seu. À
primeira vista, a sagrada Elêusis pode parece algo que morreu e não vai
retornar. Mas caso se conheça um pouco d" que aconteceu ali, dos 2.000
anos de homenagem à Mãe e à Filha, com todo o mistério dos Mistérios
(pois a revelação principal permanece um segredo), os pedaços
fragmentados de Elêusis convertem-se num lugar de esperança e conexão.
Quando eu e Maria Fernandez visitamos o local, encontramos
apenas mais quatro pessoas, um casal de turistas que não ficou lá muito
tempo e mãe e filha da Inglaterra, ela uma estudante que morava na
Grécia. Embora eu não tenha falado com ela, desconfio de que viera em
peregrinação, pois fez o que muitas adoradoras da Deusa fazem nesses
locais — simplesmente sentou-se, observou e ouviu a Terra. Falei com
sua mãe, que me contou do seu fascínio pela idéia das vidas passadas
(como um grupo de turistas em Ggantija, em Malta) — ou seja, de
morrer e viver novamente.
Nos períodos helênico e romano, as religiões e os cultos de mistério
disseminaram-se através do mundo antigo. Elêusis, no entanto, manteve
seu status único, o lugar real onde a Mãe deu Seus dois grandes presentes
ao mundo: o cultivo dos grãos e os ritos secretos dos próprios Mistérios.
Alguns escritos antigos sugerem que a própria Deusa aparece no fim do
rito. E no hino homérico a Deméter (talvez devêssemos chamar um
233

poema dedicado a uma Deusa de hyrrh) esta espera por Sua Filha no
templo construído pelos eleusianos em sua honra.
234

Mitos e Rituais que Expressam o Desenvolvimento


Humano
Os Mistérios eleusianos podem ter se desenvolvido de outro ritual, um
ritual fundamentalmente em honra a Deméter, a Tesmofória. Thesmoi
significa "leis", e vem de thesmos — "o que é estabelecido", dizendo
respeito a Deméter como legisladora não apenas das leis civis ou humanas,
mas das leis da natureza, do enraizamento e do crescimento da vida.
Devido ao poder da lei natural de Deméter, os gregos na verdade
associaram-na também à lei civil. Os atenienses mantiveram os registros
escritos de suas leis em um templo da Deusa chamado Metroõn.
Encontramos uma conexão similar — uma Deusa que dá a vida e as leis —
com a Inana sumeriana, a Isis egípcia e a Cibele frígia. Qs gallae de
Cibele em Atenas realizavam seu auto-sacrifício diante do Metroön. As
leis e a agricultura caminham juntas, pois ambas são "não-naturais".
Representam um movimento da cultura humana fora dos ciclos diretos da
natureza e rumo às instituições humanas.
O nome Deméter significa Mãe Terra, extraído de De, uma variação
de Ge ou Gaia, ou ainda da Mãe Grão, oriunda da expressão cretense para
grãos de cevada, dyai. Gaia incorpora a arcaica Terra, a partir de seus
momentos mais precoces, durante a época dos caçadores e coletores.
Deméter, Deusa da Agricultura, assume o comando, em certo sentido,
disseminando uma civilização humana mais complexa que realmente
remonta ao período neolítico. A mudança de Gaia para Deméter traça o
caminho da Idade da Pedra Lascada para a Idade da Pedra Polida. Não
obstante, as leis da morte, da decomposição e do renascimento
permanecem. São as leis da Mãe. Através da intervenção da Filha,
Perséfone, o espírito humano vai além dessas leis de desintegração e da nova
vida. Dessa maneira, Deméter entrega ao mundo as leis da natureza,
aparentemente implacáveis; juntas, porém, ela e Perséfone entregam as leis
transformadoras da cultura e da espiritualidade humanas. Veremos também
que o mito da Filha separada da Mãe por um homem invasor descreve a
mudança da reprodução unissexual para a reprodução bissexual, embora a
reunião dos dois nos dê conta de que o corpo da vida permanece integral e
unificado, apesar da aparente separação em sexos isolados. Embora a
Tesmofória pertencesse somente às mulheres, e Apoio tivesse restringido o
oráculo de Delfos apenas aos homens, em Elêusis, tanto os homens quanto as
235

mulheres participavam juntos. Mas também se fundiam, pois todos os


celebrantes, homens e mulheres, assumiam o papel da Deusa, não da Filha,
mas da Mãe primai, que experimenta a perda e o retorno.

A Tesmofória
A Tesmofória durava três dias e envolvia a preparação da Terra para:
semeadura dos grãos para o crescimento do inverno (como os Mistérios).
Na religião do corpo humano, os seres não observam passivamente
enquanto a natureza assume o seu próprio curso, ou Deus atua sem se
preocupar com a vontade humana. Na verdade, as ações humanas, os corpos
humanos unem-se ao mundo. O primeiro dia recebia i título de "Kathodos
e Anodos", ou seja, "o caminho para baixo e caminho para cima". As
mulheres levavam porcos e os atiravam em uma fenda cheia de serpentes
(lembre-se da píton profética da fenda em Delfos). Depois traziam para cima
os restos apodrecidos dos porcos sacrificados no ano anterior.
O segundo dia exigia o jejum, "Nestia", quando as mulheres imi-
tavam o período estéril da terra — quando as sementes ficavam escondidas
sob a terra — e a tristeza de Deméter por Sua filha ser banida da vida. A
semente e a Filha eram uma só, pois o nome da Filha no início do hino
homérico, Kore, ou "virgem", também significa "broto".
No terceiro dia, havia um banquete de carne, quando as mulheres
invocavam Kalligeneia, "a deusa do belo parto" (Baring e Cashford) e
espalhavam os restos dos porcos desintegrados nos campos, onde eles se
reintegrariam com os grãos.
Durante a Tesmofória, as mulheres abstinham-se de sexo. Em nossa
cultura, pensamos na abstinência como uma maneira de permanecer "pura",
ou talvez de manter a energia do corpo dentro do ser. Eu desconfio, no
entanto, que em rituais como a Tesmofória, a abstinência podia ter outro
significado — o significado de uma separação dos homens e um retorno à
primazia da Terra como fêmea. Também poderia haver um propósito
político, pois em uma cultura dominada pelos homens, como a Grécia, as
mulheres teriam de se separar dos homens para conhecer e expressar o seu
poder.
236

Os Mistérios e Suas Estações


Dois conjuntos de Mistérios ocorriam em Elêusis, os Menores e os Maiores.
Os Mistérios Menores, celebrados no inverno, preparavam os iniciados para
participar dos Mistérios Maiores, no outono seguinte. Os Menores
concentravam-se principalmente nos anodos — ou "caminhos para cima" —
de Perséfone. Da mesma forma que a Tesmofória e os Mistérios Maiores, os
Mistérios Menores envolviam o sacrifício de um porco, substituto talvez da
própria morte do iniciado.
Muitas discussões modernas do mito de Perséfone supõem que Ela
desce à terra no inverno e emerge na primavera. Isto aconteceria em um
clima ao norte. Na Grécia, no entanto, grande parte da terra é árida no verão,
período da seca. Assim, os Mistérios Maiores ocorrem mais ou menos no
outono, não na primavera, no equinócio, e terminam com a água sendo
despejada em fendas na Terra e os celebrantes gritando "Hye!Kye!", ou seja,
"Chover! Conceber!" Durante o verão, as pessoas armazenavam os grãos em
silos subterrâneos.
Segundo informações do arqueólogo Donald White, não está claro em
que momento do ano e durante quanto tempo Perséfone permanece no
mundo subterrâneo. Algumas fontes realmente garantem que isso acontece
no inverno, o que sugeriria uma conexão com os eventos solares e também
agrícolas. O período varia de três meses (a temporada do verão) a um terço
do ano e a seis meses. Com a história do ano, vimos que os gregos dividiam
o ano em três partes, uma delas como a época de Perséfone com os mortos.
Carl Kerenyi comenta que isto rompe a conexão estrita com os grãos, pois
nenhuma semente permanece quatro meses debaixo da terra. O terço do ano
de Perséfone é chamado de "Serpente", a criatura que desliza para as áreas
escuras mas também muda sua pele, em uma espécie de renascimento.
Perséfone significa "Aquela que briga no escuro". Segundo o
Comprehensive Etymological Dictionary of the English Language, persona deriva
de Perséfone, em Seu papel como Guia para as almas mortas (psiques).
Embora a palavra inglesa person (pessoa), a percepção de um eu individual,
origine-se de persona, tendemos a pensar em persona como uma fraude,
uma máscara. Na verdade, a palavra significava uma máscara usada pelos
atores no teatro romano, mas não como uma maneira de ocultar suas
identidades. Ao contrário, as persona e amplificavam suas vozes, ao mesmo
237

tempo que lhes davam as identidades dos Deuses ou heróis que estavam
representando.
238

A Procissão
Uma estrada moderna alinhada com os locais industriais atualmente
margeia grande parte de um caminho de procissões que liga Atenas a
Elêusis (chamada Elefsis em grego moderno). Apesar disso, ainda é possível
traçar o caminho e observar as mesmas formas da paisagem natural que os
celebrantes teriam visto em sua viagem sagrada. As formas da Deusa
aparecem e desaparecem ao longo do caminho.
A caminhada começa com uma subida ao Desfiladeiro de Dafne.
Uma colina cônica guarda o desfiladeiro no lado de Atenas. Através do
desfiladeiro, o pico cornudo do Monte Kerata surge à vista. O próprio nome
Kerata significa "cornudo". Vincent Scully descreve o Monte Kerata como
"incrivelmente feminino". Estas duas formas, o cone e o pico cornudo,
levam-nos de volta a Creta e às paisagens ao longo dos caminhos das
procissões em Cnossos e Festos. Todos os mitos antigos de Deméter
concordam que Ela veio para a Grécia proveniente de Creta, assim como
muitas outras figuras, incluindo o próprio Zeus. Na época de Homero, as
mulheres que participavam dos Mistérios Menores carregavam machados
duplos, o grande símbolo da religião de Creta. A propriedade intrínseca dos
Mistérios, assim como as formas da montanha, sugere uma linha direta dos
Deuses cretenses, mas eles têm adquirido seu próprio caráter por terem
sofrido a violência da cultura patriarcal simbolizada pelo rapto e pelo estupro
da filha da Deusa, que apesar disso ganha um poder especial por ter feito
aquela passagem para a morte.
Bem longe, o Monte Kerata desaparece da vista e o caminho se
torna estéril e rígido — uma incorporação para os caminhantes da viagem
de Perséfone no Mundo Subterrâneo, fora da vista de Sua mãe. Segundo
Scully, "Não é vista nenhuma abertura, nem qualquer objetivo acena para a
visão". Mas, depois, "as colinas que ficam à esquerda explodem",
revelando uma massa de pedras, o tipo do forma abrupta que assinala
Afrodite, e, na verdade, um santuário dedicado à Deusa do Amor aponta
diretamente. Embora os mitos gregos pareçam isolar o amor materno e a
paixão física, a viagem a Elêusis reúne as duas Deusas, Deméter e Afrodite.
Do santuário de Afrodite pode-se observar a Ilha de Salamis, fora da costa
de Elêusis. (Os navios gregos registram uma importante vitória de Salamis
contra os persas no mar.) Uma fenda distinta aparece nas colinas da ilha,
239

reminiscente das imagens da vulva escavadas nas paredes da caverna como


a mais antiga expressão da humanidade do poder vital da Deusa.
O caminho sagrado move-se rumo à colina fendida e a um
desfiladeiro que se abre para a própria Elêusis. Quando Salamis emerge
mais plenamente à vista, assume o aspecto de um corpo deitado de costas,
uma forma também encontrada nas montanhas próximas ao santuário de
Afrodite em Troezen. Elêusis aparece primeiro como uma colina
arredondada sob o Monte Kerata, exatamente a disposição que aparece em
Cnossos e Festos. No próprio Precinto Sagrado, o pico duplo do Monte
Kerata aparece muito nitidamente, proporcionando mais uma sensação de
lábios que de chifres (ver Foto 22).
O nome Elêusis significa "portão" ou "local da chegada feliz".
Gertrude Rachel Levy identificou Elêusis como o Portão do Chifre, entrada
de Virgílio para os sonhos verídicos na Eneida.

Narciso e a Romã
Conhecemos a história de Deméter e Perséfone principalmente a partir do
hino homérico a Deméter. Outros mitos nos proporcionam indícios
importantes para implicações da história central, mas a tradição conecta os
próprios Mistérios com a versão homérica. (Embora a tradição atribua o
poema a "Homero", ele realmente se origina de um período cerca de 700
anos após a composição da Ilíada e da Odisséia.)
No início da história, Perséfone não tem outro nome além de Kore,
"virgem" ou "moça". O poema começa com Ela inocente, colhendo flores
com as filhas de Oceano. Outras versões descrevem Kore acompanhada por
Artemis e Atena, Deusas virgens como a própria Kore. Um templo
dedicado a Artemis e Poseidon localiza-se fora do Precinto de Deméter
(Poseidon pode ter sido o consorte de Deméter, pois o nome significa
"marido de De [Terra]").
Enquanto colhe flores, Kore não percebe que uma armadilha a espera.
O Deus Hades decidiu tomá-la como Sua noiva, e convenceu Seu irmão,
Zeus, a ajudar a arranjar este "casamento". Zeus, por sua vez, consegue a
ajuda de Gaia, a Terra, que faz com que um magnífico narciso cresça como
isca para atrair a moça para longe de Suas amigas e de Sua mãe e de
qualquer pessoa que possa ouvi-la.
Segundo o Cambridge lllustraled Dictionary of Natural History, o narciso
é uma espécie de lírio, uma flor sagrada para as Deusas de muitos locais, em
parte por sua semelhança com a vulva. Barbara Walker associa o lírio com
240

Lilith e Astarte, e, através de Astarte, a Eostre. Também nos dá conta de


suposições de que Maria concebeu Jesus com o auxílio de um lírio. O
Cambridge Dictionary informa-nos também que os lírios possuem a
característica de "morrer todos os anos" e contêm "um ovário superior com
muitas sementes", atributos que o relacionam a Perséfone e à Sua iniciação
sexual na Terra dos Mortos.
O narciso é uma das duas plantas em torno das quais gira a história. O
narciso brilhante, com sua flor exposta ao ar, forma um enfoque para o
mundo que está acima. Entretanto, sua beleza é ilusória, ou antes um truque,
pois conduz ao escuro Mundo Subterrâneo. No Mundo Subterrâneo,
Perséfone vai comer duas sementes de romã, uma fruta que concebe sua
abundância em uma casca escura e vermelha. Como Ela as comeu lá, não
pode partir para sempre. Assim, ambas as plantas pertencem à morte. Uma
planta não pode nascer a menos que morra. Da mesma forma que o lírio
contém um "ovário superior", a romã contém uma química muito
semelhante na estrutura molecular ao hormônio sexual feminino mamário,
o estrógeno (uma palavra em si derivada do próprio Eostre).

O Rapto
O narciso provoca encantamento em todos que o contemplam, mesmo o
céu, a terra e os mares. Mas quando Kore se inclina para pegá-lo, a terra se
abre e Hades aparece em Sua carruagem de ouro. O Deus a rapta e a
carrega, gritando, para o Mundo Subterrâneo. Kore grita pedindo a Seu pai,
Zeus, que a ajude, "Mas ninguém, nenhum dos Deuses imortais, nenhum
homem mortal, ouve a sua voz". Como Zeus tomou as providências para o
rapto, podemos dizer que Ele se recusa a ouvir Sua filha, que o mundo todo
se recusa a ouvir o sofrimento e o terror do Seu rapto. À exceção de Hecate,
Deusa da Lua escura, e Hélio, o Sol (os atenienses consideravam Hecate filha
de Deméter, e por isso um alter ego de Perséfone). Ambos ficam afastados
dos Deuses. Como a luz do Sol e a escuridão da Lua, eles formam uma
completa dualidade em si.
Deméter também ouve a angústia de Sua filha, descobre que Ela
partiu, e embora atravesse terras e mares, ninguém vai lhe dizer nada.
Durante nove dias, vaga tristemente pelas florestas, com tochas em ambas
as mãos. Devido a esta busca, os Mistérios duram nove dias, com uma
procissão de tochas no meio da noite. O nove, como sabemos, não é
241

arbitrário. Três vezes três, ele aumenta o poder da Deusa da Lua. E, é claro,
nove é o número dos meses em uma gravidez (originalmente, um mês não
era uma categoria arbitrária, mas a extensão do ciclo lunar, vinte e nove
dias e meio). Os Mistérios ocorriam na segunda metade do mês lunar,
quando a Lua se perde para a escuridão, assim como Deméter (às vezes
identificada com a Lua cheia) perde Perséfone.
Finalmente, na nona manhã, Hecate, segurando Sua própria tocha,
aparece diante de Deméter para lhe contar que ouviu, mas não viu, o rapto
de Perséfone (o nome da Deusa aparece aqui pela primeira vez no poema).
Juntas, vão até Hélio, que coloca a culpa em quem de direito: Zeus, que "a
deu a Hades, seu próprio irmão, para lhe servir de esposa". Hélio aconselha
Deméter a não protestar, pois Hades vai ser um bom marido.
Deméter, no entanto, recusa-se a conciliar. Nem mesmo tenta, a esta
altura, se opor ao seu irmão todo-poderoso. Podemos pensar que Ela irá
secar o mundo porque perdeu Sua filha, mas isto não acontece. Ela se retira
na Sua tristeza, vagando pelo mundo disfarçada como uma anciã. E assim
chega a Elêusis.

Deméter Disfarçada
A família real acolhe Deméter, aceitando-a como pajem. Oferecem-lhe
vinho, mas Ela recusa, preferindo uma bebida de cevada de Sua própria
invenção. Uma bebida similar, chamada kykeon, é retratada nos Mistérios. R.
Gordon Wasson e outros têm declarado que o kykeon continha um
alucinógeno derivado dos grãos, a ergotina, que aumentava as revelações no
clímax do ritual. Carl Kerenyi interpreta a recusa do vinho de uma maneira
diferente. A recusa sugeriria um segredo — o fato de o marido de Perséfone
ser Dionísio, o Rei do Vinho.
Qualquer que tenha sido a razão, a Deusa recusou o vinho. Uma luz
entra na história neste ponto, como uma mulher que chega para animar a
velha pajem. Algumas versões chamam-na de lambe, filha do rei, outras de
Baubo, esposa de um criador de porcos que, segundo uma versão, perdera
seus porcos quando Hades os levara para o Mundo Subterrâneo com
Perséfone. Seja lambe ou Baubo, ela dança e conta histórias lascivas. Na
procissão vinda de Atenas, quando os mystae passavam por uma ponte, as
pessoas que incorporavam Baubo realizavam danças lascivas diante deles.
Alguns relatos descrevem-nas como mulheres, outras como homens
242

vestidos com roupas de mulheres. (É possível que fossem as duas coisas,


pois tanto as mulheres quanto os homens que participavam dos rituais
usavam túnicas simples, que significavam sua identificação com Deméter.)
Exceto pelo possível casamento místico de Perséfone e Dionísio, a dança
representa o único elemento diretamente sexual do mito. Sugere o poder da
sexualidade, e da vida, para se afirmar diante da tristeza.
G. R. Levy conta-nos que os gregos às vezes equiparavam os anodos
de Perséfone à saída de Afrodite do mar. Gravuras de ambos mostram as
mulheres ajudando a Deusa a emergir das profundezas — em termos
psicológicos, a se separar da fonte informe do ser, seja do mar ou do Mundo
Subterrâneo. Nor Hall escreve: "A maternidade é uma preparação para a
pureza. A gravidez é uma preparação para a virgindade." Podemos
acrescentar: "A morte é uma preparação para o nascimento." O nome Baubo
significa "ventre", sugerindo uma conexão não somente com a gravidez, mas
também com os antigos movimentos mágicos que chegaram até nós como
a dança do ventre.
Como uma bênção para a família, Deméter decide tornar o filho da
rainha, Demofoonte, imortal, um Deus. Toda noite, Ela deita a criança no
fogo que o Seu poder carregou como um agente contra a morte. Em certo
sentido, Ela desafia Zeus, tanto literal quanto figurativamente.
Literalmente, porque sabemos por outros mitos que Zeus, como o Deus dos
hebreus, não gostava que os mortais fossem elevados à categoria de deus. E,
figurativamente, porque Zeus roubara uma criança imortal, e agora Deméter
iria substituí-la por outra. O esforço é pouco mais que um gesto quase de
desespero, pois, mesmo que tivesse sido bem-sucedido, não teria alterado as
relações entre a vida e a morte. Deméter ainda não havia atingido o estágio
em que ousaria fazer isso.
A feitura do deus fracassa, pois a mãe de Demofoonte espreita a
pajem certa noite. Vendo seu filho no fogo, grita e corre para salvá-lo. A ira
de Deméter explode — não contra os Deuses, diante dos quais ainda se
sente impotente, mas contra a pobre humanidade. A Deusa revela sua
identidade e denuncia a ignorância humana, que não lhe permite julgar a
diferença entre o bem e o mal. "Conhecer a ignorância é força", escreveu
Lao-tse, antigo sábio chinês. "Ignorar o conhecimento é doença."
243

A Terra Inanimada
Deméter exige que os eleusianos construam-lhe um templo acima do Poço
das Belas Danças, local onde as virgens a encontraram e recolheram. Lá ela
se retira, e assim fazendo arruína o mundo, pois sem a Mãe nenhuma planta
pode crescer. Há algumas ironias sutis na ação de Deméter. Ela também
teve de reconhecer Sua própria ignorância, pois até Hecate e Hélio
chegarem para ajudá-la, nada sabia do destino de Sua filha. E embora Sua
raiva se origine da perda de Kore para a Morte, Ela reage ameaçando de
morte o mundo todo. Ou talvez a vida não estivesse inteiramente nas suas
mãos. Pois se kore significa "broto", e o brotar das plantas permanece
contido sob o solo, o que poderia ela, mesmo sendo a mãe dos Grãos fazer
sozinha?
Segundo Kerenyi, algumas versões do mito descrevem a própria Deméter
descendo ao Mundo Subterrâneo para trazer Sua filha de volta, devolver a
vida ao mundo. Em Homero, ela permanece oculta em Seu templo. Embora
aja contra a humanidade, também atinge os Deuses. Perturbou o equilíbrio
natural do mundo, incluindo a ecologia da Terra e do Céu. Assim como os
humanos dependem das plantas para viver, os Deuses dependem dos
sacrifícios humanos para uma espécie de sustentação. Os corpos mortais
atuam como uma ponte entre o corpo bruto da natureza e o corpo etéreo do
Espírito.
A angústia e a raiva de Deméter não conseguiram alterar o decreto de Zeus.
Sua obstinação, entretanto, e Sua simples recusa em desistir e aceitar a morte
finalmente convencem os Céus. Os Deuses não podem existir sem os
sacrifícios da humanidade. Zeus envia Hermes ao Mundo Subterrâneo para
recuperar Perséfone. Mas a Morte não é tão facilmente derrotada. Fingindo
obedecer, Hades dá a Perséfone duas sementes de romã, que ela come antes
de retornar à luz. Por causa deste ato, porque comeu o fruto da Terra dos
Mortos, Perséfone não pode permanecer o tempo todo na luz, devendo
retornar por um período, todos os anos, ao Seu lugar ao lado de Hades, como
Rainha do Mundo Subterrâneo.
244

A Romã
A romã aparece em outras histórias acompanhando Perséfone. Devido à
abundância de suas sementes, sua coloração vermelha e seu estrógeno
natural, ela simboliza o renascimento. No entanto, Perséfone tem de ficar
com a Morte devido ao fato de ter comido a romã, como se se permitisse
nascer na morte. Durante o veloz dia da Tesmofória, as mulheres comem
apenas um alimento, sementes de romã, mas somente aquelas que não
tocaram o chão. Quando eu e Maria Fernandez estivemos em Elêusis, um
visitante anterior espalhara romãs partidas sobre o chão de uma caverna rasa
às vezes identificada como o local por onde Hades levara Perséfone para a
escuridão. Assumindo deliberadamente a identidade de Hades, Maria abriu
uma, extraindo-lhe as sementes. O corte, com as sementes brancas
gotejando, parecia a boca de um cadáver, cheia de vermes.
O mito também liga a romã a Dionísio. Quando os espíritos pularam do
espelho para desmembrar o jovem Deus, a romã brotou do Seu coração.
Quando Perséfone come a semente, está comendo a semente de Dionísio,
ou seja, o Seu esperma. Nesta versão do mito, Ela fica grávida e dá à luz
laço, cujo nome os mystae gritam em sua procissão de tochas durante os
Mistérios.
Algumas versões descrevem laço como Filho de Deméter, um sinal
de que Deméter e Perséfone são a mesma pessoa. No final dos Mistérios,
eleva-se o clamor de que a Deusa deu à luz um filho, que "Brimo pariu
Brimos". Brimo, como seu equivalente masculino, Brimos, significa "o forte".
As identidades aqui se fundiram, a Mãe e a Filha (pois o choro não distingue
que Deusa é Brimo), e a Mãe e o Filho, pelo mesmo nome para ambos.
Podemos descrever os Mistérios simplesmente como uma fusão dos seres,
Deusa e mortal, mãe e filho, feminino e masculino, vida e morte.
Ao mesmo tempo, a ingestão da semente da morte conduz da fusão
para a individualidade. Perséfone nunca retorna completamente ao seu
estado desconhecido como a Virgem/Filha sem nome de Sua Mãe. Assume,
isto sim, o Seu próprio poder como Rainha do Reino das Trevas.
245

Os Poderes de Deméter
Tendo se tornado rainha por direito próprio, Perséfone conduz a carruagem de
ouro de Hades de volta à luz e à Sua Mãe. Quando chega, Sua Mãe exige que
Ela diga a verdade, tudo que lhe aconteceu. Sabendo das sementes de romã,
Deméter instantaneamente reconhece o vínculo de Sua filha com o Reino das
Trevas. Apesar disso, fica exultante com o retorno de Sua filha.
Agora Ela recompensa Elêusis e toda a humanidade. Não apenas
devolve a vida às plantas, mas ensina os segredos da agricultura, oferecendo
aos humanos o controle do seu suprimento alimentar. Transmite estas
informações a Triptólemos e o instrui para disseminar a mensagem pelo
mundo todo. Alguns historiadores identificam Triptólemos com um
autêntico rei de Elêusis. O nome significa "três vezes guerreiro" ou "três
vezes agricultor", implicando uma transformação de um para o outro. (Os
cristãos e os judeus podem recordar a previsão bíblica de que os homens
iriam fundir suas espadas para transformá-las em escavadeiras.) Junto com
o conhecimento, Triptólemos deu três ordens: honrar seus pais, honrar os
Deuses com frutos e poupar os animais.
Deméter ofereceu a agricultura como um presente para todo o
mundo. Deu outro presente, também muito especial, a Elêusis — os
Mistérios. No mundo antigo, qualquer pessoa podia ter acesso aos
Mistérios, contanto que falasse grego e não tivesse derramado sangue.
Qualquer um podia ir até lá, desde que fosse com este objetivo.

Estupro e Incesto
Um mito que atinge tantos níveis em nossas vidas — nossos anseios
espirituais, nossa percepção de nós mesmos, o próprio alimento que nos
mantém vivos — pode nos conduzir apenas a interpretações sutis. Só por um
momento, vamos observar a história de um ângulo diferente, como uma
história de estupro, incesto e resistência.
Julgar o significado do incesto nos mitos torna-se difícil, quando nos
lembramos que os Deuses e Deusas da maioria das mitologias formam uma
família. A energia divina é Una, e só se torna diferenciada através das várias
personalidades (personae) dos Deuses. Assim, as histórias descrevem-nos
como relacionados um ao outro. Quando um irmão e uma irmã se casam ou
246

copulam, como Isis e Osíris, ou Izanami e Izanagi, ou Adão e Eva


(originalmente provenientes do mesmo corpo, eles formam um "irmão" e
uma "irmã"), podemos ver isto como a reunião de aspectos divididos do
divino. Entretanto, quando uma história nos conta que um pai, ou irmão, ou
tio estupra uma Deusa, podemos considerar o evento da mesma maneira que
consideramos o incesto na sociedade humana.
A importância do estupro na história aumenta quando encontramos a
persistência da violentação nas diferentes versões. Deméter também é
estuprada. Na versão arcadiana da história, Poseidon estupra Sua irmã depois
que Ela se transformou em uma égua, e Ele em um garanhão. A Deusa torna-
se Deméter Erinis, Deméter a Furiosa, até que, apaziguada, se banha em
um rio e se torna Deméter Luísa. Dá à luz uma filha, a principal figura do
mito arcadiano, mas sem nome, chamada apenas de Despoina, Amante.
Em outras versões, Zeus estupra Deméter e se torna pai de Perséfone. O
Deus aproxima-se dela como um touro, implicando a mesma conversão da
Deusa Vaca do período neolítico e Seu consorte touro que vimos com Zeus
e Europa. Na religião do corpo da Deusa, o touro serve a vaca
emprenhando-a, para que Ela possa dar à luz. Na separação violenta do poder
do homem da natureza, o estupro torna-se um instrumento político. Zeus
faz valer Sua autoridade para tomar qualquer coisa que queira, a serviço
apenas de Sua própria vontade violenta.
Tendo estuprado Deméter, Sua irmã, como um touro, volta-se para
Sua filha/sobrinha, pois uma história órfica conta como Zeus se aproxima de
Perséfone sob a forma de uma serpente. Lembre-se de Psique, cujas irmãs
lhe dizem que seu marido é na verdade uma serpente, e que visita Perséfone
sob as ordens de Afrodite; e lembre-se também de que o terço do ano de
Perséfone trazia o nome de "serpente".
Desta união, Perséfone dá à luz Dionísio. Como já foi comentado,
Kerenyi e outros descrevem Dionísio como o amante secreto de
Perséfone. Ele também aparece como um touro e uma serpente, os dois
principais animais da Deusa de Creta. (Para complicar ainda mais as
relações, Ovídio identifica o amante de Deméter, e pai de Perséfone, como
Zagreus, um Deus Caçador de Creta. Zagreus torna-se identificado tanto com
Dionísio quanto com Hades.)
Roberto Calasso conta-nos que Deméter era às vezes também con-
siderada Rhea, mãe de Zeus. Se combinarmos as histórias, Zeus estupra sua
própria mãe, depois dá sua filha para Seu irmão Hades. Começamos a
rumar aqui para o burlesco, com Perséfone sendo simultaneamente irmã,
247

cunhada, filha e sobrinha de Zeus. Não podemos realmente unir todas as


histórias em uma só. O importante, entretanto, é o caleidoscópio de
imagens de estupro. Zeus estende a regra do estupro para diante e para trás
no tempo, para Sua própria mãe e para Sua própria filha.
Poseidon ou Zeus estupra Deméter. Zeus ou Hades estupra Perséfone.
Mas muitos mitógrafos consideram Poseidon e Hades outras versões de Zeus.
E o hino homérico implica que Zeus e Hades são a mesma criatura, pois
descreve ambos como "aquele filho de Cronos com tantos nomes". Assim,
Zeus rapta Sua própria irmã e depois seqüestra e estupra Sua filha/sobrinha.
Se pensarmos por um momento em Deméter como se Ela fosse uma mulher
humana, podemos bem imaginar Sua fúria e agonia.
Se considerarmos superficialmente a versão homérica, o sofrimento
presente na história dificilmente se reduz. Pois um dos irmãos de Deméter,
Zeus, a estupra, e o outro, Hades, estupra a filha de Deméter. Além disso,
Hades não age sozinho. Todo o patriarcado estupra Perséfone, pois Hades
primeiro combina isso com Zeus, o Grande Pai que governa o mundo. Na
história, Hades vai até Zeus e conta-lhe sobre o Seu desejo por Perséfone.
Zeus então planeja o seqüestro. Os dois Deuses decidem quem vai possuir
Perséfone. Mais uma vez, isso se passa dentro de uma família. O chefe da
família estupra sua irmã. Quando a criança se torna uma jovem, um irmão
mais moço vai até o chefe e diz que a quer. Os dois então combinam uma
maneira de arranjar este segundo estupro, em segredo, para que nenhum
deles seja apanhado.

A Conspiração das Mulheres


O método que os Deuses usam para atrair Kore envolve a ajuda de Gaia. A
Terra faz com que o glorioso narciso brote, atraindo Kore ao local onde
Hades vai sair de dentro da terra. Isto pode parecer estranho para nós, até que
nos lembramos das maneiras como as mães e as avós têm traído
repetidamente suas filhas, em nome da tradição. Alguns anos atrás, li uma
entrevista realizada com uma feminista egípcia. Ela descreveu o horror que
experimentou na infância quando as mulheres foram até ela, sem nenhum
aviso (e certamente nenhum consentimento), e, cirurgicamente, extirparam-
lhe o clitóris. Contou como gritou para sua mãe salvá-la, só conseguindo
ver sua mãe segurando a faca. Este é um exemplo extremo, pois são casos de
mulheres vendidas para casamentos obrigados, prostituição ou escravidão.
248

Mas também na nossa sociedade "moderna" as mulheres repetem a traição de


Gaia ao obrigar suas filhas a assumir papéis que não interessam em nada a
elas, ou a permanecer com um marido que abusa delas, ou manter silêncio
sobre incesto ou estupro conjugai, ou ainda, no caso de lésbicas, reprimir seus
desejos naturais para agir de uma forma "normal".
Mas se Gaia trai Sua bisneta, Deméter não trai Sua Filha. Ela se
precipita pelo mundo, buscando notícias de Sua Filha. Em um artigo sobre
os Mistérios, Pam Wright comenta que somente Hecate se recusa a participar
da conspiração. Hecate, o aspecto obscuro da Deusa, enfrenta ao mesmo
tempo a ameaça de Zeus e a terrível raiva e tristeza de Deméter. Só ela vai
contar à Mãe o que aconteceu com Sua Filha. Só quando Hecate "rompe o
silêncio" (para usar uma expressão atual), Deméter pode procurar Hélio e
se informar dos detalhes.
Wright, uma educadora em questões de abuso e negligência infantil,
comenta sobre a importância da verdade na história. Quando Perséfone
retorna, Deméter pede-lhe, antes de qualquer outra coisa, que diga a
verdade, que conte tudo que lhe aconteceu. O absoluto compromisso de
Deméter com Sua Filha e com a verdade dita abertamente dá-lhe o poder de
derrubar os decretos de Zeus, promulgados em segredo. Como as mulheres
nas sociedades patriarcais, Deméter é importante para travar uma guerra
contra o Olimpo. No fim, no entanto, Sua vontade, Sua simples recusa em
abandonar Sua filha, mostra-se mais forte que os raios e trovões de Zeus.

O Poder do Conhecimento
Como a história de Deméter e Perséfone é um mito, vai além das lições de
moral do drama familiar. O mito incorpora tanto a verdade histórica quanto
a psicológica. A recusa de Deméter em aceitar a perda de Sua Filha simboliza
a recusa da cultura matrifocal em desaparecer ou abandonar sua sabedoria. A
sobrevivência e o retorno de Perséfone falam a tantos homens e mulheres
atualmente porque descrevem o dramático retorno da religião da Deusa. Em
nossa ignorância do passado, temos representado o mito do povo ona, cujos
homens mataram todas as mulheres com conhecimento (como a queima das
bruxas européias matou centenas de milhares, talvez milhões, de mulheres) e
impediram as meninas de tomar conhecimento do seu poder. E
representamos o mito do Gênese, permitindo que um Deus (Seu termo para
Ele próprio) "ciumento" desenvolvesse uma inimizade entre nós e a serpente,
249

a portadora do conhecimento. Os patriarcas não somente atacaram a religião


da Deusa; eles a raptaram, a roubaram e a enterraram debaixo da terra,
com sua insistência em que a história e a civilização humanas começaram há
5.000 anos na Mesopotâmia.
Entretanto, como Deméter, finalmente nos rebelamos contra a acei-
tação. Insistimos na verdade. E, como Perséfone, vamos voltar a nós
mesmas e aos nossos primórdios ancestrais. E vamos retornar não mais
inocentes ou ingênuas, mas com conhecimento da morte e dos terríveis
efeitos do poder da luxúria, especialmente como foi demonstrado de tantas
maneiras no último século. Mas o conhecimento em si — o conhecimento
dos perigos que vamos enfrentar e também o conhecimento de outras
culturas e de outros tempos—vai nos ajudar a enfrentar nosso próprio risco
de extinção e de um planeta sem vida.

A Mãe e a Filha
O corpo da Deusa não pode ser destruído. Paul Friedrich traça os muitos
momentos em que o estupro da Deusa produz uma filha, como se, quando o
Deus patriarcal buscasse violentar a Deusa, Ela ao contrário transferisse Seu
poder para a próxima geração. Zeus estupra Leto, que dá à luz Artemis
(também Apoio, mas Artemis primeiro). Zeus estupra Deméter, que dá à
luz Perséfone. Poseidon (Zeus do mar) estupra Deméter Erinis, que dá à luz
"a Amante". Outra versão mostra Poseidon estuprando a Górgona, Medusa,
que dá à luz Perséfone.
Mas quando Hades estupra Perséfone, algo diferente ocorre. Não
nasce nenhuma criança. Os mystae chamam o nome "laço" durante os
Misrérios; mas não é descrito nenhum nascimento no Reino das Trevas. Só
no fim, quando a Deusa retorna, Brimo gera Brimos.
Faz sentido que nenhuma nova vida surja na Terra dos Mortos. Mas
também podemos dizer que a transferência se interrompeu. Perséfone não
renuncia ao Seu poder e o transmite a uma filha. Na verdade, encontra sua
própria força e torna-se por direito próprio governante, pois enquanto Hades
simplesmente preside as almas mortas, não lhes dá nada. Perséfone dá-lhes
conforto e algo mais: através da participação nos Mistérios, a alegria e a
salvação prometidas.
Quando Zeus estupra Deméter, a Deusa se vê impotente e busca
conforto em Sua filha. Mas quando Hades, com a ajuda de Zeus, se
250

aproxima de Kore, finalmente Deméter resiste. Dessa maneira, não


aceitando mais este estupro, tanto a Mãe quanto a Filha encontram seu
poder. E o resto do mundo se beneficia. Enquanto Perséfone proporciona a
vida após a morte, Deméter traz-nos vida em forma de conhecimento, e um
envolvimento profundo na produção dos grãos que alimentam nossos
corpos.
Em seu livro The Laughter of Aphrodite, Carol Christ descreve como
ela e um grupo de mulheres realizaram o que podem ter sido os primeiros
rituais organizados realizados em Elêusis desde 400 a.C. Em vez de tentar
repetir o que pode ter acontecido na antiga Grécia, as mulheres criaram seu
próprio ritual, que celebrava o elo entre mães e filhas, incluindo tempo para
cada uma das mulheres contar sua própria história de separação e cura.
Como parte desta cura, elas rejeitaram os mitos patriarcais que chegaram até
nós, e em seu lugar usaram uma versão criada por Charlene Spretnak. Nesta
história, ninguém rapta Perséfone. Ao contrário, quando Perséfone cresce e
se torna uma mulher, sabe que precisa "encontrar seu próprio caminho".
Começa a andar cada vez para mais longe, aprendendo sobre a alegria e o
sofrimento, até que um dia "chega a uma fenda e ouve os gritos dos mortos.
Pegando uma tocha, desce lentamente. Os gritos dos mortos cessaram
quando eles viram a luz que ela trouxe para eles" (Carol Christ). Mas
Deméter fica desolada, e assim Perséfone concorda em passar parte do ano
sobre a terra e parte debaixo dela.
Esta versão do mito ajuda as mulheres a se considerarem por direito
próprio poderosas, e a definir as relações entre as mulheres em seus próprios
termos, sem os homens como intermediários. Entretanto, as versões
clássicas também podem nos ensinar lições poderosas. Em um nível
sociológico, podem nos ajudar a enfrentar, como Deméter exigindo a verdade
sobre a experiência de Perséfone, a realidade do estupro na nossa sociedade.
Nos Estados Unidos, especialmente, a incidência de estupro é incrivelmente
elevada — assim como o incesto e o abuso de crianças.

O Poder de Perséfone: A Consciência Brilhando na


Escuridão
Até agora, encaramos os encontros de Perséfone apenas como terror e
destruição, e o Seu retorno como um triunfo sobre a violência. De certa
maneira, esta abordagem assume o ponto de vista de Deméter, assim como
251

os próprios Mistérios. Mas o Deus que rapta Perséfone é o próprio Deus da


Morte, e Ela simplesmente não escapa dele. Torna-se íntima da Morte,
amante da Morte, literalmente conduzindo a Morte para dentro do Seu
corpo imortal. De certa maneira, a Morte rapta todos nós, pois ninguém
realmente espera morrer, apesar de nossa consciência de que não podemos
escapar dela. E devido a esta crença obstinada em nossa própria imunidade, a
Morte violenta todos nós, entrando em nossos corpos um a um.
Entretanto, Perséfone simplesmente não sucumbe ao Deus da Morte.
Nem o derrota, da maneira como o herói patriarcal mata o dragão. Ela se
une à Morte, e assim fazendo torna-se a Rainha do Reino das Trevas. Sua
maneira de confortar e a promessa de uma nova vida depõem Hades,
embora oficialmente Ela reine ao lado dele.
Nós já vimos como a idéia grega da vida após a morte tornou-se
sinistra e pessimista quando a religião olímpica separou-se dos ciclos auto-
renovadores da natureza. Os Mistérios superaram o terror da morte quando
restauraram a identificação dos seres humanos com a semente que cai da
planta que está morrendo para ficar sob a terra, escondida da vida, somente
para brotar, miraculosamente viva. No fim do ritual final, o Hierofante
mostrava uma espiga do trigo aos celebrantes. Alguns dizem que o trigo
crescia milagrosamente diante de seus olhos, ou simplesmente que não devia
existir trigo fresco após a seca do verão. A visão prometia duas coisas: o
renascimento das plantas e a vida após a morte.
Em geral, a história descreve Perséfone comendo as sementes de
romã como um erro, até mesmo uma tragédia, porque isso dá à Morte
poder sobre Ela. Podemos modificar o mito, dizendo que Ela escolhe
abraçar a realidade da Morte, transformar a Morte em Seu amante, para
não abandonar as almas mortas que dependem dela.
Se pensarmos em Kore/Perséfone como um personagem de uma
história, e não simplesmente como um símbolo manipulado, surge uma
pergunta. Como Perséfone assume o Seu poder? Nós sabemos o que
proporciona a Deméter o Seu poder. Conhecemos a Sua raiva, e o Seu
amor por Sua filha transformam-na de uma vítima triste em Brimo, a
forte. Mas o que dá a Perséfone o Seu poder? O que a transforma de uma
"virgem" sem nome em Rainha dos Mortos?
Calasso conta-nos que kore significa "pupila do olho" e também
"moça", e sugere que Kore adquire consciência quando se vê refletida nos
olhos de Hades. Vamos pensar um momento na visão e na consciência. O
caráter mítico de Narciso termina quando sua própria imagem na água o
cativa. Kore separa-se de Seus amigos quando a visão da flor do narciso a
252

atrai para longe deles. Desse modo, a visão afasta ambos os personagens
da consciência e os aproxima da morte.
E depois se modifica. Na morte, Kore toma consciência porque
não volta atrás. A morte e a visão são inimigas. Quando alguém morre, nós
fechamos suas pálpebras. Mas Perséfone olha. A consciência não é algo
que simplesmente acontece conosco. É uma decisão que precisamos
tomar. Quando opta pela consciência na Terra dos Mortos, Kore entra em
Seu poder, se torna Perséfone, aquela que brilha na escuridão. A Morte
leva-a, como a todos os mortais, mas, ao contrário destes, a Deusa não
lhe permite destruí-la. Através do Seu movimento para a
autoconsciência, Ela muda os termos da morte para todos nós — mas
somente se nós também nos tornarmos conscientes.
Sófocles escreveu: "Bem-aventurados aqueles mortais que viram
estes ritos e assim entram em Hades; só para eles há vida, para os outros
tudo é infelicidade." (Fragmento citado em Burkert, Greek Religion.) Aqueles
que não transpuseram os Mistérios continuavam a experimentar a morte da
maneira antiga, como sombras vazias. O iniciado percebia a morte de uma
maneira totalmente diferente, e por isso era salvo. Não à maneira de
Cristo, que nos salva a todos, contando que Lhe deu permissão,
"aceitando-o". Perséfone pedia algo mais de Seus adoradores, que eles se
tornassem plenamente conscientes dela durante os nove dias dos Seus
Mistérios.
Em nossa época, com os Mistérios Maiores há muito desaparecidos
do mundo, Perséfone pode se tornar uma imagem da nossa própria
consciência. Podemos pensar especialmente em estupro e incesto.
Perséfone é a Deusa daqueles que sofreram violações. A mensagem que
Ela lhes transmite é simples: não se tornar inconsciente, não se tornar
negligente. Penetre nesta morte e irá transformá-la. Ela fará de você algo
maior que a destruição de sua inocência.
Perséfone retorna através da lealdade e da raiva de Sua mãe. Mas
não retorna para sempre, deixando Sua experiência para trás. Aqui também
Ela assume o Seu poder, o Seu nome. Afinal, como poderia brilhar na
escuridão, se só aparecesse na luz? Todos os anos, Ela desce ao Reino de
Hades durante parte do ano — o período da Serpente.
253

Perséfone e Dionísio: A Consciência Casada com o


Êxtase
Não desejo sugerir que tenhamos uma visão tão sutil desta história, a
ponto de terminarmos justificando o estupro. Alguns escritores modernos
parecem sugerir que Perséfone precisa de Hades para estuprá-la, para que
possa se separar de Sua mãe e se tornar Sua própria pessoa. Será que
existe outra maneira de interpretar esta história, outra versão? Nós já
tentamos modificar o momento fundamental das sementes de romã,
sugerindo que Perséfone opta por comer as sementes, transformando
assim a Morte de Seu captor em Seu consorte. Podemos levar isto
adiante?
Aqui, a idéia de Carl Kerenyi (desenvolvida a partir de Friedrich
Schelling, Jane Ellen Harrison e outros) de que Perséfone realmente não
se une à figura sombria de Hades, mas ao ser muito mais vital de
Dionísio, torna-se na verdade importante. Pois Dionísio é o Deus do
Êxtase, e ser arrebatado pelo êxtase é muito diferente de ser estuprado pela
violência. A palavra êxtase significa "ficar fora", ou seja, fora de nós,
transportados para fora da caixa estreita da percepção habitual. Mas se o
êxtase nos arrebata de nós mesmos, leva-nos para dentro de nossos corpos,
para as revelações que surgem quando abandonamos nossos eus ao desejo do
corpo.
O hino homérico conta-nos que as aberturas da Terra abrem-se na
Planície de Nisan, "que tem este nome em homenagem à montanha
dionisíaca de Nisa" (Kerenyi). O poema também diz que Hades conduz
Kore pelo mundo em Sua carruagem antes de levá-la para o Reino das
Trevas através do Rio Kefsos, perto de Elêusis. O nome para o lugar onde isto
acontece é Erineus, a palavra para uma figueira silvestre que fica no
caminho. A figueira silvestre era consagrada a Dionísio. Uma máscara do
Deus foi entalhada em sua madeira em Naxos. Entretanto, na Grécia, a
figueira silvestre freqüentemente significava uma entrada no Reino das
Trevas. Mesmo hoje, alguns gregos temem que dormir sob uma figueira
possa lhes trazer má sorte — ou morte.
O filósofo Heráclito escreveu: "Hades e Dionísio são a mesma
criatura." Ambos, morte e êxtase, levam-nos além das limitações do ego.
Kerenyi declara que a recusa de Deméter em tomar vinho vem de Sua raiva
do Deus do Vinho, que levou Sua Filha. Mais importante, a pintura em um
254

vaso arcaico mostra Perséfone com Dionísio em uma pose que sugere
casamento (Dionísio segura uma xícara para Ela), enquanto Deméter e
Hermes observam de lado. Similarmente, os vasos que mostram
Triptólemos em geral retratam Dionísio do outro lado. Já vimos como a
versão arcadiana do mito descreve Dionísio como filho de Perséfone. Há
uma profunda diferença entre um Deus Pai que estupra Sua Filha e uma
Deusa Mãe que toma Seu Filho como seu amante voluntário. O primeiro
estabelece o domínio da força. A segunda reencena o drama pré-histórico
da unidade entre a Mãe e o Filho que cresceu em Seu corpo, entre a eterna
Terra e as plantas que Crescem e morrem e retornam.
O consorte de Deméter em Creta, Zagreus, foi também identificado
com Dionísio. Assim, Deméter e Perséfone tornam-se um só, enquanto
Zagreus/Hades/Dionísio tornam-se o amante que morre, vai para debaixo
da terra e substitui a si mesmo. Uma vez mais lembramos o
desmembramento de Dionísio. A derrubada do consorte identificou o Deus
com o trigo colhido, e o retorno da semente à Terra. Podemos identificar
Brimos, filho da Deusa, como Dionísio renascido, e Perséfone como Brimo,
Sua mãe, para que no final dos Mistérios o círculo se feche, incólume.
Lembre-se do trigo ou da cevada milagrosamente crescidos no ritual final.
Será que a verdadeira identidade do raptor de Perséfone era parte do
segredo do fim dos Mistérios? O que não pode ser falado pode ter incluído
uma manifestação da própria Perséfone, quer retratada como uma
sacerdotisa ou como uma visão induzida pela oração e pela intensidade de
nove dias de celebração mística. (Uma visão não é o mesmo que uma
alucinação, uma diferença sendo que, numa visão, todos vêem a mesma
coisa.) Será que esta revelação poderia ter incluído o conhecimento de um
casamento sagrado, na Terra dos Mortos, entre a Deusa da Vida e o Deus
do Êxtase?

O Presente da Agricultura
Politicamente, o mito de Deméter e Perséfone simboliza a invasão das tribos
patriarcais na velha ordem matrifocal. O mundo sagrado que anteriormente
se movia entre a Mãe e Sua filha e Filho/consorte agora tem seu controle
assumido pelo dominador Zeus/Poseidon/Hades. Deméter resiste a esta
mudança, dizendo que se Sua filha deve morrer, também o mundo deve
morrer. Quando Perséfone retorna, Ela não restaura o status quo; o mundo
255

matrifocal desapareceu. Na verdade, traz um triunfo sobre a simples


violência dos invasores. A vida — a vida da semente que deseja retornar ao
solo — torna-se mais forte que a morte. A violência não pode destruir o
corpo da Deusa, pois Seu corpo é o próprio mundo. Os humanos que
compreendem o poder da vida, e abraçam seu gêmeo, a morte, superam seu
medo, e seu próprio terror e fúria. Tornam-se "bem-aventurados", livres do
medo, livres da raiva, livres para se unir à Terra.
Deméter reconhece que não pode restaurar os velhos costumes. Dá ao
mundo Seus dois grandes presentes: os Mistérios e a agricultura. Juntos,
eles estabelecem a cultura humana em um novo nível. Kore e Suas
companheiras que colhem flores silvestres incorporam o velho costume dos
caçadores-coletores. O consorte de Deméter, Zagreus, foi chamado de
caçador e também de senhor do Reino das Sombras. Mas agora a
humanidade move-se rumo à agricultura. O círculo realmente não se fecha,
antes se abre em uma espiral.
Deméter vai além da resistência, até a criação do novo conhecimento.
No início da história, Hades ruge em Sua carruagem para roubar Kore.
Perséfone volta na carruagem sem Ele. As pinturas nos vasos mostram
Triptólemos conduzindo sua carruagem ao redor do mundo para ensinar a
agricultura à humanidade. Quando o "três vezes guerreiro" transformou-se
no "três vezes agricultor", a verdade eterna da Mãe transformou a agressão
dos invasores originais.
O mito e os Mistérios dão-nos uma saída para superar a culpa de
violar a Terra através da agricultura. Pois o arado, assim como a espada,
constitui uma agressão, agora dirigida contra o corpo da Mãe. Nós já vimos
que os nativos americanos e outros povos consideram a agricultura um
pecado, um corte no seio da Mãe. Como Perséfone enfrenta a morte,
Deméter pode dar a agricultura como um presente, removendo toda a culpa
da humanidade.

Sexualidade, Perda e Reconciliação


Em um sentido cultural estrito, a história nos fala das tribos indo-européias
com seus Deuses guerreiros derrubando os milhares de anos de domínio da
Deusa na Velha Europa. Entretanto, o mito também reconta a história muito
mais ampla do desenvolvimento da sexualidade. Durante a maior parte da
história da vida na Terra, a reprodução ocorreu através da "divisão" das
256

células. A "mãe" separou-se em duas "filhas", que compuseram cópias


exatas do original. A arte grega e a arte romana descreveram Deméter e
Perséfone como idênticas. Em certo ponto, ocorreu uma mutação,
trazendo algo novo à luz, o homem. Que invadiu a perfeita união entre
mãe e filha. A partir desse momento, as filhas não seriam mais cópias de
sua mãe.
O desenvolvimento da sexualidade traz a morte. Os organismos
unicelulares jamais morrem realmente; eles se dividem, com as duas filhas
como uma continuação direta da vida da mãe. Quando resultam da
combinação de um homem e uma mulher, as filhas e os filhos se tornam
algo novo, crianças únicas que não são igual a um dos pais e são mais que
uma combinação dos dois. Mas, agora, o pai/mãe morre em vez de
reproduzir cópias de si. O rapto de Perséfone simboliza esta perda da
imortalidade celular. Seu retorno significa a possibilidade de reconciliação,
embora não da restauração da condição prévia. Pois Ela não volta à Sua
inocência. Comeu as sementes da morte e do conhecimento. Tornou-se
algo mais do que era, com uma consciência — e existência — tanto no
mundo dos vivos quanto no mundo dos mortos. "O mito da mãe e da filha",
escreve a poeta Diane di Prima, "não é um mito de destruição (como os
mitos do filho e do pai) (...) mas um mito de perda e recuperação." Como
tal, fala a todos nós, homens e mulheres, pois todos nós perdemos a
unidade que conhecemos como fetos, quando vivíamos dentro do universo
dos ventres de nossas mães. Em Elêusis, todos os celebrantes tornavam-se
identificados com Deméter. Os homens que participavam recebiam nomes
com finais femininos. Todos os mystae usavam as mesmas roupas, túnicas
simples, que mais tarde passaram a ser usadas como fraldas para bebês.
Um imperador romano que foi iniciado em Elêusis recebeu o título de "Deu-
sa" nas moedas que mostram seu rosto. Nos estágios iniciais dos Mistérios,
todos os iniciados sentam-se em banquinhos, chorando a perda de Kore,
como Deméter sentou-se ao lado do poço em Elêusis. Tornar-se Deméter
permite a todas as pessoas sofrerem a perda da filha e sentirem a alegria do
Seu retorno.
Em nossa sociedade, é comum as mulheres representarem o mito
masculino de destruir o pai, particularmente no local de trabalho, ou em
outras áreas em que enfrentam tarefas e problemas do mundo externo. E
menos comum os homens, e até mesmo, de certa forma, as mulheres
representarem o mito da perda e da recuperação inerente nos Mistérios.
Tanto para os homens quanto para as mulheres, a identificação com Deméter
lhes teria permitido experimentar o sofrimento de qualquer coisa que
257

tivessem perdido. As mulheres precisam tanto disso quanto os homens, pois


a "feminilidade" de um mito não significa que todas as mulheres
automaticamente a experimentem. Ao contrário, todas precisamos de meios
para assumir os mitos em nossas vidas. O fato de milhares de pessoas
celebrarem os Mistérios, vivendo como uma comunidade durante nove
dias, todas fazendo as mesmas coisas, deve ter proporcionado aos momentos
finais uma intensidade esmagadora.
Todas as pessoas tornavam-se a Mãe nos Mistérios. Também podem
ter se identificado poderosamente com Perséfone quando Ela retorna no final,
especialmente se Ela aparecia para eles em uma visão. E podem ter visto, a
si próprios no Filho proclamado no fim, o Brimos gerado por Brimo.
O milagre da reprodução pode ser descrito como aquele de um se
tornando dois se tornando muitos. O organismo unicelular se divide e se
torna dois, mas realmente permanece um, pois eles são iguais. Com a
introdução do homem, um tipo diferente de dois torna-se possível. A partir
da sua união, emergem muitos, toda a diversidade da vida. Entretanto,
carregamos dentro de nós uma sensação de algo perdido. A morte nos faz
retornar à unidade, pois nossos corpos voltam todos para o corpo da Terra.
Os Mistérios dão aos celebrantes a possibilidade de retornar através de uma
outra verdade além da morte. Através do ritual coletivo, muitos (mais de
5.000) se reúnem, passam pela experiência das duas — a Mãe e a Filha — e
retornam finalmente ao conhecimento do uno, à unidade e à vida contínua
encontradas dentro do corpo da Deusa.

Hye! Kye!
Chover. Conceber.
258

9 - O Corpo Vivo

Tudo vive, tudo dança e tudo é sonoro.

Canção dos pigmeus do Gabão

Na Antiga Grécia, a Deusa assumia vida através da narração de


histórias, rituais, procissões, construção de templos e sacrifício.
Atualmente, Ela retorna a nós através da arqueologia, revelações intui-
tivas, narração de histórias, rituais, arte, e de um modo de conhecimento
que muitas pessoas acreditam ser o oposto da religião — a ciência. A
Teoria de Gaia de James Lovelock, Lynn Margolis e seus colaboradores
descreve a Terra como um organismo vivo, um corpo independente
construído em parte de muitos organismos menores que vivem sobre a sua
superfície. Não sugerem isto como uma metáfora, mas como uma
descrição real do mundo. Nós nos acostumamos de tal maneira a pensar
nos mitos, nos Deuses e nas Deusas como simbólicos, que podemos
precisar de algum tempo para compreender a radicalidade de descrever o
planeta como uma criatura realmente viva. O conceito permite-nos
readquirir o pleno poder do mito como uma história que é genuinamente
verdadeira, física? metaforicamente. A Teoria de Gaia reintegra o mito à
ciência e a ciência ao mito.
Quando consideramos a Teoria de Gaia, podemos achar que ela vai
além de nos devolver uma imagem literal de uma Deusa viva. Uma vez
que aprendemos a contemplar o planeta como uma criatura, podemos
estender essa consciência em direções diferentes. O sistema solar está vivo?
As galáxias estão vivas? E se nós e as outras criaturas que vivem na Terra
somos ao mesmo tempo criaturas independentes e partes de um ser maior,
que dizer do número enorme de microorganismos invisíveis que vivem
259

sobre e dentro dos nossos corpos? Que papel eles desempenham na


construção dos nossos corpos? E se podemos aprender com o organismo
maciço Gaia, o que podemos aprender com as bactérias?
A Teoria de Gaia
Até agora, a maioria das pessoas tem visto as fotos da Terra tiradas do
espaço pelos astronautas. A elegante bola azul com espirais brancas tem
sensibilizado muitos com uma sensação da singularidade do planeta, e às
vezes com uma sensação da sua fragilidade. Para um grupo de cientistas
liderados por James Lovelock e Lynn Margolis, as fotos inspiraram uma
idéia mais revolucionária — de que a Terra pode ser um organismo vivo,
isolado. Em Gaia: A New Look at Life on Earth, Lovelock chama este
conceito de "Hipótese de Gaia", uma expressão sugerida pelo romancista
William Golding (cujos livros freqüentemente têm explorado a verdade
psicológica do mito). Em escritos recentes, Lovelock tem declarado que
ele e seus colegas reuniram evidências suficientes para mudar a
"Hipótese de Gaia" para a "Teoria de Gaia".
A primeira vista, a Teoria de Gaia soa como uma extensão da eco-
logia. Elisabet Sahtouris, em seu livro Gaia: The Human Journey from Chãos
to Cosmos (virtualmente todos os livros recentes sobre este tema começam
com "Gaia:"), aponta a diferença essencial. A ecologia estuda a unidade da
vida na terra. A Teoria de Gaia descreve a própria Terra como viva. A
diferença é algo entre descrever todos os microorganismos que vivem na pele
e na casca de uma tartaruga — e reconhecer a própria tartaruga como uma
criatura distinta.
As origens da idéia de Gaia realmente remontam a vários anos
antes das famosas fotos dos astronautas. Em 1965, a NASA pediu a
Lovelock e Dian Hitchcock que examinassem experiências planejadas para
determinar se existia vida em Marte. Em sua tentativa para se afastar das
suposições de que a vida em Marte teria de se parecer com a observada na
Terra, os dois cientistas decidiram examinar a atmosfera marciana por
processos que não conseguiriam justificar apenas pela química inorgânica.
Eles descobriram, na verdade, que a atmosfera de Marte permanece sempre
quimicamente estável.
Entretanto, quando examinaram a Terra, encontraram a presença de
metano, um gás instável, como "prova" de vida (ou seja, uma prova
independente da observação de criaturas reais à mão). O metano é um
subproduto de organismos vivos. Isto levou-os a ponderar como a Terra
conseguia manter uma composição atmosférica constante, apesar da
presença de gases extremamente instáveis. Ocorreu-lhes que o ar podia
260

compor uma parte básica da vida, e não ser apenas um ambiente


inanimado. Lovelock compara o ar com o pêlo que cobre um gato, ou o
papel de um ninho de vespas — não realmente vivo em si, mas "feito por
coisas vivas para sustentar um ambiente".
Lovelock e seus colegas têm insistido que não estão reivindicando
consciência para a Terra, muito menos uma consciência divina. Não estão
sugerindo que o planeta seja a mesma coisa que a Deusa grega. Para
muitos, no entanto, é justamente esta possibilidade que torna a idéia uma
abertura tão importante para novas maneiras de pensar. William Irwin
Thompson, em seu livro Imaginary Landscapes (para não considerarmos
Thompson uma exceção, por não intitular seu livro "Gaia: ...", ele intitula seu
capítulo sobre este tema: "Gaia: a Cosmologia Readquirida"), sugere que
Lovelock e sua equipe escolheram este nome em parte por seu impacto
dramático. Segundo Thompson, se chamassem a hipótese de "Mecanismos
Homeorréticos da Dinâmica Planetária", ela não teria recebido a mesma
atenção do público.
Thompson sugere que o nome inspirou o salto do público para supor
que "Gaia" é consciente e viva. Mas não considera isto um erro. Um
estudioso da unidade entre mito e ciência encontrada na Idade da Pedra, ele
escreve sobre "a antiga cosmologia se esgueirando por trás das pedras e
riachos da hipótese de Gaia".

O Calor do Corpo
Se os cientistas não consideram a Terra um ser consciente, o que significa
dizer que a Terra tem vida? Um ponto básico da Teoria de Gaia envolve a
idéia da auto-regulação. Os organismos vivos mudam coisas como
temperatura do corpo em resposta a mudanças no ambiente. Segundo
Lovelock, a Terra faz exatamente isso, mantendo a temperatura ambiental
mais ou menos constante durante milhões de anos, apesar do fato de o sol ter
ficado cada vez mais quente durante este longo período de tempo. Lovelock
calcula que a produção de calor do Sol aumentou entre 30 e 50 por cento
desde a origem da vida. Entretanto, por todas as evidências, a temperatura da
Terra permaneceu constante.
Uma maneira de isto poder ter acontecido seria uma camada de
algum gás, amônia ou dióxido de carbono, ter mantido a Terra aquecida
durante o período inicial, quando o Sol não gerava tanto calor. Quando o Sol
261

ficou mais quente, a camada teria sido prontamente afastada, mantendo


constante a temperatura do planeta. Atualmente, isto parece simples, mas na
verdade teria sido um processo notável, sugerindo que a Terra, de algum
modo, poderia remover seu excesso de gases de aquecimento precisamente no
passo correto durante bilhões de anos, nunca rápido demais nem devagar
demais, para manter a temperatura constante.
Podemos supor que o próprio aumento do calor determinava a quan-
tidade de gás que desaparecia. Segundo Lovelock, não é assim tão simples.
Ele declara que a temperatura da Terra não é uniforme em todo o planeta; ela
se altera dos pólos gelados ao calor do equador. Isto ocorre porque a mesma
intensidade de luz não cai em toda parte do planeta. Essa complexidade
torna difícil aceitar um processo químico rígido que possa se responsabilizar
pela temperatura média constante da Terra diante do calor sempre
crescente do Sol. Em vez disso, segundo a Teoria de Gaia, o planeta regula
o seu próprio calor.

Suposições Culturais
E difícil para nós reconhecer a Terra como um ser vivo, em parte porque
nós mesmos vivemos nela, e em parte porque ela é muito maior que nós
— e em parte porque aprendemos a pensar nela como uma rocha
inanimada contendo as plantas e animais que consideramos seres vivos.
Outras culturas achariam a idéia menos estranha, pois muitas pessoas têm
imaginado o planeta como orgânico, como a antiga Mãe, a Deusa.
Amadou Hampote Ba escreve que no Sudão "considera-se a Terra um ser
vivo. Ela cresce, diminui e morre".
Nossos corpos também contêm uma infinidade de seres vivos. Po-
demos imaginar que não nos reconhecem como vivos devido ao nosso
enorme tamanho. Um ser vivo é composto de outros seres vivos, cada um
sendo um organismo independente. Ao mesmo tempo, atua como um
todo, com um limite que lhe dá forma e o distingue do que o cerca. O pêlo
de um gato, a pele humana e a atmosfera da Terra realizam todos funções
similares. Entretanto, o limite nunca é absoluto, jamais uma barreira, para
nós ou para a Terra. As criaturas vivas não podem permanecer totalmente
separadas do ambiente. A vida exige que troquemos energia com o mundo
que nos cerca. Os seres humanos comem outras criaturas, sejam elas plantas
ou animais. Transformamos sua substância e energia em partes dos nossos
próprios corpos. Excretamos dejetos de volta ao ambiente, onde eles então
atuam como um fertilizante, ou seja, nutrientes para criaturas
262

independentes de nós. Com toda respiração que executamos, recebemos o


presente do oxigênio das plantas que nos cercam, e devolvemos dióxido de
carbono. A Terra como um todo recebe luz do Sol e das outras estrelas, e
exala calor e gases para o espaço.
Nossa educação tem nos ensinado que nós, as plantas e os animais
somos vivos, mas outros aspectos do nosso mundo não. Muitas outras
culturas consideraram todas as partes do mundo como vivas. Tendemos a
considerar esta visão primitiva, ou ingênua, mas talvez sejamos aqueles
que têm uma visão simplista da vida.

Estendendo a Definição da Vida


A distinção entre vida e não-vida começa a desaparecer quando observamos
nosso próprio corpo e os corpos das outras criaturas. Ossos, cabelos,
estruturas e proporções podem ser todos descritos como inorgânicos.
Segundo Sahtouris, 95 por cento de uma sequóia canadense (ou pau-brasil)
são na verdade madeira morta, mas a árvore vive. Ela também escreve que
no decorrer de um longo tempo a rocha se transforma em criaturas vivas
que depois finalmente voltam a se transformar em rocha. Quase todas as
rochas existentes na superfície do planeta são feitas de átomos que um dia
pertenceram a criaturas vivas. E esses átomos vieram originalmente das
pedras de períodos anteriores. Grande parte do pó das nossas casas vem da
pele que se soltou de nossos corpos no decorrer do dia. E a própria Terra e
tudo que nela existe provêm da luz estelar, pois a poeira que originalmente
formou os planetas começou como restos de estrelas que explodiram.
Quando começamos a observar o planeta como vivo, passamos a
estender mais ainda a nossa definição de vida. Apesar de constante expansão
e movimento através do espaço, as galáxias mantêm uma forma e limites
definidos. Podemos pensar nas galáxias como orgânicas? Em nosso planeta,
a natureza produz muito mais células e sementes que o estritamente
necessário. O excesso permite que um grande número delas morra,
enquanto uma pequena percentagem viva e forme organismos. Os planetas
mortos podem formar as células excedentes das galáxias.
A Teoria de Gaia começa a nos levar de volta à poderosa intuição de
que a vida — e, sim, a consciência — existe em todos os níveis. "Tudo vive,
tudo dança, e tudo é sonoro." Muitos mitos da Deusa como sendo uma vaca
descrevem a Via Láctea, nossa galáxia, como o leite do Seu corpo. Entretanto,
para a maioria de nós, tudo isso permanece como histórias bonitas, talvez
263

metáforas psicológicas, mas não uma descrição do mundo real. A Teoria de


Gaia abre caminho a uma nova unidade entre a ciência, o mito e a intuição.
Nesta unidade, a ciência da biologia torna-se vital e excitante —viva.
Quando eu era criança e tinha aulas de ciência na escola, a biologia não me
parecia muito interessante. Na escola, ela consistia principalmente de
taxonomia, longas listas de classificações. Naquela época, recorríamos à
física em busca de poesia, de mistério. Com o repentino surgimento de Gaia
onde menos a esperávamos, a biologia torna-se um novo enfoque de
suposições. Assim como o retorno da Deusa significa o retorno da história, o
retorno de Gaia significa o retorno do corpo, o conhecimento de que o
corpo — nosso corpo, o corpo da Terra — existe simultaneamente no
mundo dos objetos e no mundo das histórias.

O Corpo Desmembrado
Os muitos mitos do corpo desmembrado da Deusa surgem de uma
percepção de que tudo está vivo, mas fragmentado. Esta não é uma
construção intelectual, mas uma intuição profunda. E assim criamos
histórias de uma Deusa que sacrifica Seu corpo para construir o mundo. Na
teoria do Big Bang da ciência moderna, toda a existência iniciava como
uma unidade, ligada em uma espécie de ovo perfeito chamado ylem. Oylem
explodiu em luz e energia, e parte disso converteu-se em partículas de
matéria.
A conversão da energia da luz em matéria segue a fórmula E = me2,
de Einstein. Isto envolve um elo de quantidades maciças de energia, pois a
fórmula se traduz como "energia igual a massa vezes o tempo de velocidade
da luz ao quadrado". A velocidade da luz é tão grande, que uma pequena
quantidade de matéria contém uma enorme energia. As bombas nucleares
demonstram este fato de uma maneira terrível, mas se observarmos essa
aplicação destrutiva, a relação da matéria com a energia nos dá muito o que
pensar. Podemos descrever nossos próprios corpos, juntamente com tudo
mais, como luz reduzida.
Na tradição da Cabala do misticismo judeu, encontramos uma idéia
incrivelmente semelhante à do Big Bang. Lá, aprendemos que Deus enviou
Sua luz de um ponto isolado desconhecido. Dirigiu a luz em "vasos" que
passaram a ser muito frágeis para conter a energia. Eles se romperam e
formaram nosso universo. Vivemos, portanto, em um universo composto de
264

fragmentos. Daí vem nosso sofrimento e o nosso medo, nossas esperanças


não concretizadas, nossa covardia e nosso ódio, nossos amores fracassados e
toda a fragilidade que nos separa um do outro e dos nossos próprios eus.
Entretanto, a luz do ser perfeito permanece incorporada nos fragmentos.
Inúmeros mitos (incluindo os científicos) vêem o universo como
fragmentado, pedaços sem fim que não mais se ajustam, não mais compõem
um todo e um ser vivo. A Teoria de Gaia leva-nos à possibilidade de que o
corpo da Deusa permaneça inteiro, embora ao mesmo tempo contenha as
partes sem fim da criação.
A teoria responde a algo profundo em nós mesmos, uma consciência
que insiste na idéia de que se eu estou vivo, tudo mais também está. As
bactérias vivem suas próprias existências, mas fazem parte dos nossos
corpos. Nossos corpos participam da vida do planeta, que por sua vez ocupa
o seu lugar no corpo do sistema solar. Uma unidade em si, o sistema solar
ajuda a compor a galáxia. As galáxias participam de uma complexa dança de
"aglomerados" e "superaglomerados" que finalmente compõem o universo,
cujo próprio nome descreve sua inteireza. Será que podemos confiar em
que o sentido interno do universo seja um vasto organismo, física e
espiritualmente vivo?
O nome Gaia ajusta-se muito bem ao ser planetário, apesar de sua
origem limitada de uma cultura específica, a européia. Pois Gaia incorporava
a Terra na forma mais básica do planeta. Gaia foi o primeiro ser autocriado,
anterior a todos os estágios posteriores da evolução e do desenvolvimento
humano. Podemos também pensar no termo "Avó" para a primeira criação.
(Imagine se Lovelock e os outros tivessem chamado sua idéia de "a
Hipótese da Avó".) A ciência nos informa que o nosso planeta não surgiu do
nada, transformando-se, isto sim, bilhões de anos atrás, da poeira em um
universo. Mitologicamente, no entanto, podemos pensar em Gaia como o
cosmos, até mesmo o ylem, usando também o nome para o organismo
planetário.

Um Universo Autocriado
Os seguidores da religião transcendente freqüentemente fazem objeção à
idéia do universo como autocriado. De onde vem o universo? perguntam eles.
Algo — Alguém — deve tê-lo criado. Mas podemos dizer a mesma coisa
sobre Deus. De onde veio Deus? Deus não veio do nada, alguém deve tê-lo
feito. Em algum ponto, precisamos deixar a discussão para trás. Na
265

insistência de que Deus deve ter feito a natureza está a suposição de que a
natureza é muito imperfeita, muito confusa, muito viva, para compor o
mundo "real". Nós morremos na natureza. Nossos corpos desejam coisas
impossíveis: voar, viver para sempre, fundir-se totalmente com outros
seres. Não conseguimos controlar nossos desejos, ou nossos corpos. Eles se
tornam doentes e inúteis. Nos constrangem com seus anseios e com seu
sofrimento. E ansiámos por algo mais perfeito, algo desligado da confusão
dos corpos. E que aceitemos como real, como autocriado.
Mas pagamos um preço por esta transcendência. Abandonamos nossa
própria realidade. Ficamos insatisfeitos, no sentido mais profundo, com a
vida como ela existe. Se pensamos em Deus como perfeito e desligado,
vamos tentar também nos tornar perfeitos, desligados dos corpos,
imutáveis. Na Antiga Grécia, Pitágoras e Platão descreveram a verdadeira
existência como geometria, formas ideais acessíveis através da razão
"pura".
Em grande parte da ciência moderna, temos buscado outro tipo de
perfeição, aquela da máquina, que sempre conserva a mesma forma e faz a
mesma coisa repetidamente. Tentamos descrever o corpo, e especialmente o
cérebro, como algum tipo de mecanismo — um sistema de sondagem, um
relógio, uma conversa telefônica, um computador —, qualquer coisa ditada
pela moda atual. Mas existe uma diferença vital entre as máquinas e os
organismos. Os organismos não atuam da mesma maneira em todos os
momentos. Através da Teoria de Gaia, começamos a recaptar uma
percepção de nós mesmos, e do universo, como dinâmicos, como se
decompondo e se desenvolvendo, como em constante mutação. Vivos.

A Vida Como Cooperação


A idéia de que não há limites entre a vida e a não-vida conduz-nos à visão
do mundo baseada mais na cooperação do que na competição. William
Irwin Thompson aponta duas teorias rivais sobre a origem da cultura
humana. Numa, a humanidade começa fazendo ferramentas e,
especialmente, armas. A tecnologia de matar torna-se o ato humano
básico, distinguindo-nos das outras espécies. Na outra, no entanto, a
cultura humana começa com o compartilhamento dos alimentos. Embora a
primeira teoria ainda tenha muita influência em nosso mundo tecnológico
e militar, um número cada vez maior de evidências aponta para a segunda.
Na verdade, a caça e também a coleta requerem cooperação e troca de
266

informações. Segundo Thompson, Glynn Isaac encontrou indicações de


que os primeiros pré-humanos, os proto-hominídeos, fizeram esforços em
grupo para transportar alimentos de locais perigosos para locais onde todos
eles pudessem compartilhá-los em segurança. E lembre-se da idéia de
Alexander Marshack, de que a cultura humana começou com as "histórias".
As histórias também implicam compartilhamento, pois a sua narração exige
uma audiência.
Lynn Margolis, em seu trabalho sobre as bactérias, desenvolveu uma
teoria de cooperação como a base real da vida. Enquanto Lovelock
concentrou-se principalmente na própria longa escala de "dinâmica pla-
netária", Margolis olhou na outra direção, para os organismos que vivem no
interior das criaturas maiores que normalmente reconhecemos como seres
vivos. Margolis considera as bactérias a forma de vida primária no interior
de Gaia. Do ponto de vista das bactérias, poderíamos descrever os humanos
como o transporte e os mecanismos de alimentação das bactérias.
Em nossas aulas de ciências, muitos de nós aprendemos a pensar nas
bactérias como inimigos, portadores de doenças. Evidentemente, há verdade
nesta visão. Ao mesmo tempo, a idéia se origina em parte do desejo de
considerar nossos corpos como completamente separados do mundo: egos
encapsulados em fortalezas impenetráveis. Margolis recorda-nos que não
podemos viver sem as bactérias que nos ajudam a digerir nosso alimento.
Mais importante ainda, Margolis demonstrou que as bactérias são
capazes de transmitir informações genéticas. Em sua pesquisa, ela encontrou
situações em que as bactérias vão romper as paredes de sua célula e fundir
material genético de seus núcleos. Para aqueles de nós não treinados em
ciência, esta descoberta pode parecer obscura, ou enigmática. Na verdade, é
também revolucionária.
Por um motivo: ela conduz a uma teoria da evolução baseada mais na
cooperação do que na competição, com tudo que isso implica para a nossa
visão de mundo e para o nosso lugar dentro dele. O conceito darwiniano da
seleção natural sustenta que a mudança genética só pode ocorrer através de
mutação casual do DNA. Os organismos produzem várias mutações em si
mesmos e aqueles que melhor se adaptam ao seu ambiente sobrevivem,
enquanto outros morrem. O trabalho de Margolis abre a possibilidade das
bactérias recombinarem seu DNA em uma resposta direta às pressões
ambientais. Como um exemplo de mudança rápida e complexa, podemos
pensar nas maneiras como as bactérias se adaptam aos antibióticos.
Segundo Margolis, estas adaptações carregam um elemento de deliberação
compartilhada.
267

O Lugar da Mente
Será que podemos pensar na "mente" como de algum modo envolvida neste
compartilhamento bacteriano da informação? Como cientista, Margolis
presumivelmente rejeitaria tal sugestão, assim como Lovelock e outros
negam qualquer sugestão de consciência para a Gaia planetária. Mas talvez
as bactérias — e Gaia — possam nos ajudar a encontrar uma definição mais
ampla de mente. Se o trabalho desses biólogos conduzem-nos à percepção
"primitiva" ou "mística" de toda existência como viva, talvez devêssemos
honrar também a segunda metade dessa percepção, de que toda existência é
consciente. Sahtouris escreve: "Aqueles que acreditam que a vida é
autocriada em um universo dinamicamente vivo e não em um universo
mecânico também acreditam que a vida pode criar seu próprio significado e
propósito." Desde que escreveu seu livro sobre Gaia, a Dra. Sahtouris tem
trabalhado para criar uma rede em todo o mundo com o propósito de
defender o conhecimento científico dos povos indígenas.
Assim como os caçadores-coletores, a sociedade humana atual precisa
cooperar para obter sucesso. Precisamos comunicar conhecimento,
exigências, habilidades e informações. Assim como os proto-hominídeos,
precisamos transportar os alimentos. Em suma, precisamos criar um corpo
social cooperativo. As exigências continuam as mesmas, apenas em uma
escala muito maior. Uma visão de todo o planeta como um organismo
composto de organismos menores ajuda-nos a ver a sociedade humana
também como um organismo — não uma espécie de monstro que engole
indivíduos, mas um organismo em que os indivíduos compartilham
experiência e conhecimento para criar o organismo maior. E esta criação
prossegue o tempo todo, para sempre, não de uma vez só. Embora
mantenham uma forma exterior e processos de vida contínuos, os
organismos mudam constantemente, tomando e devolvendo energia. Uma
sociedade baseada no corpo também mudaria constantemente, ao mesmo
tempo mantendo uma percepção interna de sua forma, seus limites e seus
valores. E uma sociedade baseada no corpo divino manteria uma consciência
da unidade da ciência, da vida cotidiana e do sagrado — para os organismos
individuais e também para o organismo maior da cultura.
268

O Nosso Lugar
As discussões de Gaia como um organismo composto de organismos
menores parecem conduzir inevitavelmente a uma discussão da função da
humanidade neste corpo maior. Muitas vezes, a discussão segue a partir de
uma suposição de que a humanidade ocupa alguma posição vitalmente
importante na existência de Gaia. Alguns escritores tratam a humanidade
como uma ameaça, outros nos tratam como uma bênção para a vida
planetária — mas a maioria nos considera fundamental.
Uma teoria considera a humanidade uma experiência na consciência.
Com o cérebro humano, Gaia está experimentando a autoconsciência. Elisabet
Sahtouris descreve-nos como uma experiência na livre escolha, e sugere,
com otimismo, que nossos traços de egotismo, ansiedade, imprevidência,
medo e agressão são sinais de adolescência. Implicitamente, vamos superar
estas limitações e nos tornar um pouco melhores que a nossa história.
Peter Russel declara que os seres humanos formam o sistema nervoso
central de Gaia. Em sua opinião, o mundo logo vai conter tantos humanos
quanto um cérebro individual contém neurônios. Nesse ponto, os humanos
podem se organizar em uma inteligência planetária (esta idéia nos dá uma
visão totalmente nova da "explosão populacional" das últimas décadas).
Outros escritores defendem a visão mais convencional de que a
humanidade coloca em risco a vida no planeta e adaptam isso à Teoria de
Gaia. A. I. W Summers modifica a idéia da inteligência em seu raciocínio.
Ele compara a nossa destruição da natureza com as enfermidades
psicossomáticas. O "psicossomático" não descreve a doença como imaginária
ou ficcional. Na verdade, refere-se a situações em que a psique deixa o
corpo realmente doente. Se os humanos realmente representam o cérebro
de Gaia, então este distorceu seu relacionamento com o resto do corpo,
fazendo-o adoecer.
Outra idéia começa com a descrição do comportamento da huma-
nidade visto de fora. Ao contrário da maioria das outras criaturas, os
humanos espalham-se por todo o planeta. Aonde quer que vamos, nos
multiplicamos sem controle. Devido ao nosso crescimento populacional
incontrolável, consumimos todos os recursos de todo lugar que habitemos.
Como resultado, as criaturas que pertencem a esses locais morrem todas, e
os próprios locais sofrem grande dano, às vezes se transformando em desertos
ou águas mortas. Agora, se considerarmos o mesmo tipo de descrição e a
269

aplicarmos às células dentro de um animal, descobriremos que estamos


falando sobre o câncer. Assim, os seres humanos criam uma espécie de
câncer no corpo planetário, ameaçando de asfixia toda a vida.
Será que os seres humanos realmente ocupam um papel fundamental
na vida e no destino de Gaia? Será que somos as únicas criaturas dotadas de
consciência? As experiências na comunicação entre as espécies demonstram
a forte possibilidade de autoconsciência em criaturas como chimpanzés e
golfinhos. E qualquer pessoa que conviva com um cão e o observe dormir
vai admitir a possibilidade de que outros animais, além dos humanos,
também sonhem.
Para muitas pessoas que trabalham com a Teoria de Gaia, a idéia de
que a humanidade pode destruir toda a vida no planeta compõe outro
exemplo da arrogância humana. Lovelock considera aquela descrição
comum de Gaia "frágil" (como na expressão "nossa ecosfera frágil") e a
compara ao mesmo termo usado para sua avó e outras mulheres na era
vitoriana. Ele observa que os homens vitorianos descreviam as mulheres
como frágeis para justificar seu total controle da sociedade e até dos
corpos femininos. Da mesma maneira, quando descrevemos a Terra como
frágil, justificamos nosso próprio controle e manejo do ambiente.
Na verdade, comenta Lovelock, sua avó era muito rija. E também
Gaia. Se na verdade a Terra forma um organismo vivo com a capacidade de
regular suas condições para manter a vida, talvez faça os ajustamentos
necessários para lidar com as atuais ameaças ao nosso ambiente externo.
Algumas pessoas consideram isto um perigoso convite à compla-
cência. Para eles, parece que as pessoas de Gaia estão dizendo que podemos
poluir a Terra o quanto quisermos, porque Gaia vai cuidar disso. Na
verdade, a idéia de Gaia se adaptando não deve nos tornar de modo algum
complacentes. Segundo a teoria, Gaia não atua com nenhuma benevolência
particular com relação a qualquer espécie em particular. Ela cuida dos Seus
próprios interesses, não dos nossos. Quando ficamos doentes, fazemos o
necessário para melhorar, mesmo que isso envolva a morte de um grande
número de micróbios que vivem no interior de nossos corpos. Se
continuarmos provocando Gaia, Ela pode realmente se ajustar — e tornar a
vida muito difícil para nós.
270

Uma Crise Anterior


Gaia já enfrentou crises ambientais no passado. Os primeiros organismos
produziram energia através da fermentação. Quando sua população
explodiu, a energia começou a fluir e eles desenvolveram a capacidade de
usar a luz solar para dividir as moléculas em átomos e usá-los para construir
outras moléculas. Assim, desenvolveram a fotossíntese. Esta, entretanto,
produziu um veneno mortal: o oxigênio.
O aparecimento do oxigênio na atmosfera da Terra criou uma ameaça ao
ambiente muito maior que nossa poluição contemporânea. Sem nada para
consumir o oxigênio, a atmosfera atingiu um nível de combustão
espontânea — incendiou-se. As bactérias criadas começaram a queimar.
Em conseqüência disso, porém, aprenderam a formar colônias. Os níveis
externos queimariam, mas a matéria morta de seus "cadáveres" protegeria
as camadas internas. A vida tornou-se mais complexa. Durante um período
de dois bilhões de anos, Gaia desenvolveu criaturas, como nós mesmos, que
pudessem queimar oxigênio em troca de energia. Desde então, a atmosfera
tem permanecido estável. Se realmente conseguirmos ameaçar essa
estabilidade, não podemos saber que ajustes Gaia vai fazer para cuidar do
problema. Em vez de tentar lidar com a Terra, precisamos estudar Seus
processos na esperança de podermos aprender como lidar com nós mesmos.

Uma Visão Diferente


A estudiosa feminista e nativa americana Paula Gunn Allen apresentou uma
interpretação visionária e mítica da crise planetária. Segundo sua descrição a
Avó Terra dá à luz a Ela própria (a Teoria da Avó). A Terra está passando
por uma iniciação para um novo estado de consciência. Esta grande
mudança traz consigo o sofrimento do parto, à semelhança do sofrimento da
mulher, e a desordem aumenta progressivamente à medida que ela está
próxima de dar à luz o seu bebê. A percepção de Allen da emergência da
Terra exemplifica vários atributos da interpretação do mundo tendo como
base a Deusa. Primeiro, permite que tanto a intuição quanto as tradições
sagradas revelem idéias. Estas idéias e visões podem ou não corresponder à
atual análise científica, mas não vão contradizer as informações reais que
obtemos da ciência. Elas acrescentam um tipo diferente de conhecimento.
271

Muito freqüentemente, este conhecimento vem da consciência que


mulheres têm de seus corpos. Allen usa a experiência do parto para
compreender as revoltas do nosso planeta. E, finalmente, mostra a maneira
como as adoradoras da Deusa deliberadamente interpretam de maneira
otimista a experiência — vida nova em vez de destruição.

Desmembramento e Unidade
Acima de tudo mais, a Teoria de Gaia nos dá uma visão da inteireza da Terra.
Retorna aqueles mitos do corpo desmembrado da Deusa. As pessoas
percebem que tudo no mundo pertence a um só corpo, só que fragmentado.
Podemos sentir as conexões, mas vemos os fragmentos. E assim passamos a
acreditar que o mundo só pode existir, nós só podemos existir, porque a
Deusa sacrificou o Seu corpo. Ou Ela se dedicou livremente a criar a Terra,
o Céu e tudo mais que existe neles, ou alguma força a rompeu ou
despedaçou.
Em alguns lugares, esta percepção interna se mistura com a história
cultural da posse do homem. Na Babilônia, Tiamat torna-se um monstro, e
Marduk a dilacera como uma validação da civilização centralizada no
homem, que derrubou a anterior, matrística. No México, a Deusa
Coyolxauhqua foi selvagemente dilacerada por Seus dois irmãos, com uma
mensagem cultural semelhante. Quando lemos que o mito descreve os
irmãos como cobras, vamos nos encontrar atrás dos portões do Éden, onde o
patriarcado criou inimizade entre a mulher e a serpente.
A história mexicana também descreve a morte e o retorno da Lua, no
final de cada mês, para os irmãos a cortarem em 14 pedaços, apro-
ximadamente metade do ciclo lunar. No Egito, o Deus Set corta Seu irmão
Osíris em 14 pedaços. Os mitos sempre contêm muitas coisas
simultaneamente — mensagens políticas, descrições científicas, percepções
espirituais.
Podemos encontrar algo mais profundo aqui do que política sexual, ou
mesmo explicações da natureza. Esses mitos de desmembramento carregam
uma percepção de ansiedade sobre nossa própria existência. Nós só vivemos
porque comemos outras criaturas, sejam elas animais ou plantas (e evitando
que elas nos comam). Vivemos porque nossa Mãe sacrificou Sua perfeita
Unidade.
272

A Deusa desmembrada torna-se difusa, ou seja, disseminada em


tantas partes, que se encontra em toda parte e em lugar nenhum, visível e ao
mesmo tempo invisível em todas as coisas. As necessidades da criação
quebraram a integridade da Sua forma.
Na Teoria de Gaia, vemos uma possível resposta a esta ansiedade.
Aqui, Gaia não surge como unidade e se fragmenta. A unidade emerge do
jogo de todas as diferentes partes. E não somente das partes "vivas". As
montanhas, a chuva e os mares, o vento, a luz do Sol e as estrelas, as ondas
gravitacionais da Lua, a poeira e os ossos das criaturas mortas há milhões de
anos, tudo isso, além de nós, traz à vida o corpo de Gaia.

Um Ritual e um Sonho
Vou terminar este sonho com mais uma história, um sonho de Gaia. Em
outubro de 1990, mudei-me para minha casa perto do Rio Hudson no Estado
de Nova York. Algum tempo depois, descobri um incrível montículo de pedra
nos bosques do outro lado da entrada de carros (ver Foto 23).
Evidentemente, pessoas empilharam essas pedras em alguma ocasião,
mas quando e com que propósito eu não sei. A abertura está virada para o
leste, para o nascer do sol. Pedras brancas cristalinas estavam espalhadas
diante dele quando me aproximei. Tais pedras são comuns na região, mas
nunca tantas em um mesmo lugar.
Seja qual for a origem ou o propósito desse montículo, achei-o uma
maravilhosa surpresa após visitar montículos, círculos e templos arruinados
em tantos países. Quando o solstício do inverno se aproximou, decidi
realizar um ritual em minha nova casa, concentrando-me no montículo,
como uma maneira de agradecer à Deusa por me trazer para este lugar.
Duas amigas juntaram-se a mim no solstício. Então, realizamos uma
cerimônia simples. Pedi a cada uma delas que trouxesse algo que quisesse
oferecer à Terra. Como minha própria contribuição, fiz um bolo baixo na
forma de uma Deusa e o levei até lá, junto com sementes e pedras
encontradas em viagens a locais sagrados de outros países. Então
realizamos uma procissão, indo a diferentes árvores e outros lugares
especiais em volta da casa, cantando canções, carregando estátuas da Deusa e
tocando instrumentos. Quando chegamos ao montículo, cada uma de nós
falou de coisas da própria vida que desejava devolver à Terra. Fizemos uma
oração honrando a ascensão da luz neste ponto culminante do ano, quando o
Sol começa a readquirir o seu poder. Quando depositamos nossas oferendas
273

dentro do montículo, cortei o bolo em pedaços — o corpo da "Deusa" — e


os distribuí entre nós. Deixamos a parte de cima na lama para os animais.
Na noite anterior a este ritual, a noite mais longa do ano, Gaia veio
até mim em um sonho. Não apareceu sob nenhuma forma particular, mas
falou comigo e eu sabia com certeza que era a Sua voz. Confirmou-me que
havia rompido o Seu corpo em milhões de pedaços para compor o mundo.
Mas Seu Eu permanecia completo e inteiro em cada fragmento. Por isso, Seu
corpo permanece saudável, inteiro e perfeito em cada pedra ou pêlo, em cada
estrela ou beijo, em cada mariposa ou elefante. Ela se torna em cada
momento o que sempre foi, o Corpo da Deusa, em cada raio de luz, em cada
sonho e em cada suspiro.

Hudson Valley, Nova York


Terminado no 145° aniversário de
Sir Arthur Evans, escavador de Cnossos
274

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