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O Corpo da Deusa
2
Rachel Pollack
O corpo da Deusa
No mito, na cultura e nas artes
EDITORA
ROSA DOS
TEMPOS
4
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Pollack, Rachel
P833c O corpo da Deusa: no mito, na cultura e nas artes /
Rachel Pollack; tradução de Magda Lopes. -
Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1998.
Sumário
Relação das Figuras ...............................................................................15
Agradecimentos.........................................................................................18
INTRODUÇÃO ........................................................................................20
Primitivismo ............................................................................... 72
Poder de Lascaux.......................................................................... 74
Primórdios da Arte ........................................................................ 76
Primeiras Imagens Femininas ....................................................... 77
A "Explosão Criativa" .................................................................. 78
Abstração Simbólica .................................................................... 79
Impressões de Mãos..................................................................... 80
Bastões Entalhados ....................................................................... 82
O Trabalho de Alexander Marshack ............................................ 82
Marcas em Ossos .......................................................................... 83
A Vênus de Laussel ....................................................................... 84
As Histórias e a Determinação do Tempo .................................... 85
Economia do Caçador-Coletor .................................................... 86
Pensando Sobre a Arte nas Cavernas ........................................... 88
Estados de Transe .......................................................................... 89
O Xamã de Lascaux ..................................................................... 90
Os Cultos da Fertilidade e as Vênus ............................................ 91
A Pornografia e o Corpo Divino ................................................ 93
Os Rituais da Menstruação e da Gravidez................................... 93
A Caverna como o Corpo Interior — Pêch-Mèrle ..................... 95
Fotos .........................................................................................................156
7 - O Corpo na Canção............................................................................194
Bibliografia .............................................................................................274
Agradecimentos
Alguém certa vez definiu um especialista como uma pessoa que sabe
cada vez mais sobre cada vez menos. Enquanto escrevia este livro, muitas
vezes achei que sabia cada vez menos sobre cada vez mais. Ao tentar seguir
o tema do corpo da Deusa, baseei-me demasiado na obra de muitas pessoas
de diversos campos de estudo e expressão — historiadores, arqueólogos,
artistas, sacerdotisas, cientistas, psicólogos, adivinhadores, romancistas,
teólogos, classicistas e simplesmente amigos que têm viajado e realizado sua
própria pesquisa. Se interpretei mal as idéias ou as descobertas das pessoas
— e estou certa de que o fiz, apesar de todas as melhores intenções —, a culpa
é inteiramente minha, e peço desculpas por isso. Quando me afastei da
pesquisa das outras pessoas e me lancei em caminho próprio, tentei deixar isto
claro. Se turvei o trabalho de alguém com minhas próprias especulações, mais
uma vez peço desculpas.
Este livro não pretende ser um compêndio de história ou um trabalho
acadêmico, e muito menos de teologia (ou tealogia). A religião da Deusa
não é simplesmente um tema da história, mas está vivo hoje na vasta
pesquisa de pessoas como Marija Gimbutas, e também na poesia e na arte, e
nos rituais que as pessoas realizam sozinhas e em grupos, em templos e
cavernas, e também em seus próprios quintais e cozinhas. Tentei
homenagear todos estes níveis da religião ressurgente da Deusa e expressar
minha gratidão por todas as contribuições que tais pessoas proporcionaram,
tanto os acadêmicos quanto os adoradores, e sobretudo aqueles cujo desejo
de saber mais conduziu-os a uma rigorosa pesquisa, assim como aqueles que
acharam que a academia os conduziu à crença e a um compromisso
apaixonado.
Estes acadêmicos merecem menção especial. O primeiro é Marija
Gimbutas, a arqueóloga que reuniu sua ampla pesquisa com a coragem de se
afastar da ideologia acadêmica oficial e reconhecer a realidade de uma
religião complexa e diversificada em toda a arte e nas ruínas escavadas da
Europa pré-histórica. A segunda escritora, menos conhecida atualmente, é
Gertrude Rachel Levy. Quando comecei a ler os escritores modernos que
falam sobre a Deusa, tive acesso a uma obra sempre mencionada desta
19
autora: The Cate of Horn. Escrevendo meio século atrás, Levy conseguiu a
proeza de reunir e apresentar uma quantidade fantástica de informações e,
ao mesmo tempo, sintetizá-las e pensar em conceitos originais e amplos.
Foi Gertrude Rachel Levy quem primeiro observou que a forma dos
templos pré-históricos de Malta formava o contorno do corpo de uma
mulher. A última personagem eminente é Vincent Scully, autor de The Earth,
the Temple, and the Gods. Recentemente aposentado, Scully foi um respeitado
professor de história da arquitetura da Universidade de Yale. Ao voltar sua
atenção para os templos gregos e os primeiros palácios de Creta, perseguiu
sempre a verdade da paisagem, com uma paixão pelas formas sagradas vivas
na beleza da Terra.
20
INTRODUÇÃO
1
Resina aromacizada com vinho grego. (N. da T.)
23
Como nos lembramos. Como sua memória trouxe-me a minha memória. Como eu
sabia o que ela sabia, como seus seios também perceberam, seu corpo, como estávamos
inundadas de memória.
Susan Griffin
O Nascimento de Artemis
O que significa escrever sobre o corpo da Deusa? Preocuparmo-nos com o
corpo, pensar na idéia, tentar conceber (uma palavra que se origina dos
corpos das mulheres) Deus(a) tendo um corpo? Para muitas pessoas, a idéia
é absurda, quase impensável. Nos anos que passei escrevendo este livro, eu às
vezes dizia às pessoas em que estava trabalhando e só recebia de volta um
olhar confuso e a pergunta: "Como a Deusa pode ter um corpo?"
Um calendário sagrado publicado algum tempo atrás relacionou, entre
os rituais sazonais pagãos e os feriados das religiões oficiais, os nascimentos de
várias divindades da Antiga Grécia e de outras culturas. O dia 28 de abril foi
apresentado como o nascimento de Buda e da Deusa Artemis (cujo corpo
preenche estas páginas até mesmo quando se ergue tranqüilo nas colinas e
montanhas da Grécia). Para homenagear Artemis, fui a uma cachoeira nas
montanhas próximas da minha casa. Quando contei às pessoas o que havia
feito, muitas delas me olharam surpresas, ou até riram. "Artemis tem uma
data de aniversário?" — perguntaram. Algumas dessas pessoas eram pagas,
que, na verdade, adoravam Artemis como Diana, a deusa romana da Lua.
28
2
"a bua in tbt wen" — expressão da língua inglesa para indicar que uma mulher está grávida.
(N. da T.)
32
Conscientes como todo mundo de que a Lua é uma pedra que gira na órbita
da Terra, elas têm estudado mais profundamente a sua importância em
nossas vidas. Como os antigos, incorporaram-na como um símbolo da
fertilidade das mulheres.
Mas será "apenas" um símbolo? Ou alguma de suas qualidades físicas
afeta diretamente os corpos das mulheres? As pessoas às vezes consideram:
se o impulso gravitacional da Lua controla as marés, por que não controlaria
o fluxo mensal da menstruação? Entretanto, o efeito das marés sobre os
oceanos ocorre devido à grande dimensão da Terra. Ou seja, a Terra é tão
grande, que a gravidade lunar afeta o lado mais próximo da Lua de uma
maneira diferente da que afeta o lado mais distante. Esta diferença na força
da gravidade provoca as marés. Os corpos das mulheres não são maciços o
bastante para criar uma diferença tão significativa. Mas há uma maneira mais
direta da Lua influenciar a fertilidade: a qualidade especial da luz lunar.
Quando a mulher tem problemas com seus ciclos menstruais, como
períodos irregulares, os médicos em geral receitam-lhe hormônios. Nos
últimos anos, entretanto, alguns médicos (e mulheres por sua própria conta)
têm tentado uma abordagem diferente. As mulheres dormem à luz da Lua
ou de uma luz que proporcione o mesmo tipo de luz que a Lua. Em muitos
casos, seus ciclos regularizaram-se após algumas semanas.
Quando pensamos na Deusa Tríplice, tendemos a pensar na Grécia
antiga ou na Irlanda celta. Entretanto, Marija Gimbutas observou que a
imagem remonta pelo menos ao período magdaleniano, na França, 12.000 anos
atrás, pois a caverna de Abri Du Roc Aux Sorciers, em Angles-sur-Anglin, na
França, contém um relevo do que Gimbutas chama de "três presenças
femininas clássicas com vulvas expostas". A partir de 3200 a.C.,
encontramos uma imagem tríplice mais abstrata, uma espiral tríplice
magnificamente entalhada no marco de pedra situado na entrada do imenso
passage mound 3em Newgrange, no vale do Rio Boyne, na Irlanda (ver Foto
l).
Não podemos dizer com certeza se essas formas pré-históricas re-
presentam uma Deusa lunar ou as fases da vida de uma mulher. Entretanto,
elas mostram a surpreendente longevidade das imagens tríplices. E as
espirais têm sido encontradas em muitas esculturas e templos da Deusa,
possivelmente como símbolos de nascimento, morte e renascimento. A
espiral não é apenas filosófica. Embora em geral apareça na arte abstrata,
3
Tipo de passagem de acesso. (N. da T.)
38
O Corpo no Céu
Para muitas pessoas que procuram o corpo divino na mitologia, tor-
nou-se um lugar-comum que Terra = Deusa, e Céu = Deus. Na cultura
européia, esta idéia provém em grande parte da mitologia grega e romana,
com o Deus Céu, Urano, engravidando a Deusa Terra, Gaia. Algumas
culturas americanas nativas falam no Avô Céu e na Avó Terra. Obviamente, a
dualidade reconhece os "fatos da vida", uma expressão interessante, embora
ultrapassada. Mas serão estes "fatos" do envolvimento masculino e
feminino na reprodução a verdade final da criação?
O mito grego não fala de Urano surgindo ao mesmo tempo que
Gaia. Ao contrário, a existência tem início simplesmente com Gaia, que
depois dá à luz Urano de seu corpo, onde ela teria um parceiro e consorte.
40
A Emergência do Masculino
Os achados da biologia e da evolução reforçam a primazia do feminino. Os
biólogos descrevem os primeiros organismos como femininos, reproduzidos
pela separação entre a "filha" e a "mãe". No decorrer da longa evolução, a
introdução do masculino ocorre bem mais tarde, e pode ser chamada de
uma mutação do feminino.
Várias décadas atrás, os biólogos descobriram que todos os fetos
humanos começam como femininos e nos dois primeiros meses seguem um
padrão de desenvolvimento que resultaria em um bebê do sexo feminino.
Na quinta semana, desenvolve-se uma gônada indiferenciada que
eventualmente vai se transformar nos órgãos sexuais femininos ou
masculinos. Um sexo com cromossomos XX vai então desenvolver ovários
na sexta semana. Entretanto, se o feto contém cromossomos XY, o
cromossomo Y vai fazer com que as gônadas secretem um "organizador
testicular". Esta química promove a "diferenciação", ou seja, envia as
gônadas para uma nova linha de desenvolvimento, formando os testículos.
Um artigo publicado em 4 de agosto de 1992, no The New York Times,
descreve como o processo se inicia com a proteína conhecida como "fator
de determinação dos testículos" subjugando o DNA para que os diferentes
genes entrem em comunicação.
Segundo Monica Sjoo e Barbara Mor, em seu livro The Great Cosmic
Mother, no início os fetos portam possibilidades reprodutoras tanto femininas
quanto masculinas. À medida que um conjunto se desenvolve, o outro
41
Figura2. Desenho de frente e costas de uma estatueta feminina de forma fálica de Starçevo, Hungria, datada
de c. 5600-5300 a.C. (extraída de Gimbutas).
Figura 3: Desenho de uma cabeça de touro de uma tumba mediterrânea em S. Lesei, Bonnanaro, Sardenha, c. 4000
a.C. (à esquerda), comparado com a forma do útero humano e as trompas de Falópio (à direita), (segundo
(Gimbutas e Cameron).
4
A pedra que ensina. (N. da T.)
46
Como acontece com qualquer idéia radical, o corpo da Deusa nos atrai
pelo caráter estranho e maravilhoso do seu tema básico, evocando algo
antigo em nós mesmos que não sabíamos existir até o momento do seu
despertar. Mas uma vez que entramos nesse mundo, ele começa a se abrir,
revelando sutilezas cada vez maiores. As pessoas que adoravam a Deusa não
a viam apenas em seus corpos divinos mais impressionantes, nas conjunções
mais óbvias da natureza e da reprodução humana. Procuravam encontrá-la no
terror da morte ou na energia espiralada das serpentes. Retrataram-na nas
formas de seus templos. E quando começamos a seguir estes caminhos,
descobrimos nossas próprias ramificações e transformações ao descobrirmos
a realidade do corpo da Deusa na arte, nos mistérios do desejo e no júbilo da
contemplação.
O Corpo Visível
A Deusa tem ao mesmo tempo um corpo visível e um corpo invisível. O
visível é qualquer coisa física e substancial. O invisível surge como qualquer
coisa real mas que não pode ser tocada. Inclui esses aspectos da imaginação,
do desejo e do pensamento. O corpo sagrado envolve o Céu e a Terra, não
somente em sua existência física, mas também como expressões da
imaginação mítica. Ou seja, o mundo simplesmente existe. Quando
consideramos essa existência, e começamos a percebê-la em termos
espirituais, nós mesmos permitimos ao corpo da Deusa tornar-se visível.
47
uma grande vagina natural, inclinada para trás, com um imenso clitóris de
pedra pendente de seu centro, atrás dos lábios de pedra."
Morte
O visível e o invisível movem-se para dentro e para fora um do outro.
Encontramos este movimento no jogo entre o nascimento, a vida e a morte.
Entretanto, por mais que saibamos do esperma, do óvulo e do
desenvolvimento do feto, cada nascimento continua recriando o milagre de
algo visível — um ser humano individual — emergindo de um mistério
vasto e invisível. E com cada morte, a alma, a pessoa, retorna ao nada.
As plantas desaparecem em uma suposta morte no outono, sumindo
no mundo subterrâneo invisível, e só se tornam novamente visíveis na
primavera. Quando contemplamos a morte, temos a sensação de que o
corpo invisível da Deusa é mais vasto, e talvez mais verdadeiro, que o
visível. Mais de 90 por cento de todas as espécies que já viveram na Terra
estão extintas e, entre as espécies vivas, o número de indivíduos vivos em
cada momento é uma pequena fração daqueles que já viveram.
Isto é verdadeiro em relação a todas as espécies, exceto uma — os
seres humanos, de quem há mais vivos agora do que em toda a história.
Este simples fato provavelmente distorce — mais que qualquer outro
aspecto de nossas vidas — o nosso relacionamento com a natureza e com
a nossa própria existência. Não somente abarrota aquelas partes do
mundo propícias à vida humana, mas também nos permite negar o local
dominante da morte no mundo natural.
A distorção, no entanto, é um fenômeno moderno. Durante a maior
parte da história humana, os mortos sempre excederam em número os
vivos. E se hoje são mais numerosos, talvez possuam também mais poder
espiritual. Afinal, a vida é curta, mas a morte é eterna. E a vida é cheia de
limitações. Nós, os vivos, podemos controlar o tempo, ou desastres
naturais como os terremotos. Não podemos adivinhar o futuro. Mas é
possível — apenas possível — que os mortos possam. Muitas culturas têm
atribuído grande poder aos ancestrais ou a outras figuras mortas há muito
tempo. Nos mitos, o herói frequentemente vai visitar a Terra dos Mortos
em busca de conhecimento ou de ajuda. Os maiores mágicos são aqueles
que podem despertar espíritos mortos.
A primazia da morte emerge de uma maneira incomum na
cosmologia do povo de Bella Coola da Colúmbia Britânica, como conta
Joseph Campbell em The Way of the Animal Powers. Para o povo de Bella
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Sexualidade
O corpo visível expressa-se mais ainda e vem à tona na sexualidade — a
procriação dos animais e das plantas, o sexo elétrico do céu e da terra no
trovão e no relâmpago, e a grande variedade de experiência sexual
humana. E aqui a religião da Deusa, tanto antiga quanto moderna,
difere muito da religião do Deus transcendente. Pois se Deus não tem
corpo, e existe separado do universo que criou, então os seres humanos
tornam-se almas que ou possuem corpos, como objetos ou roupas, ou
estão presas dentro de corpos, prisioneiras em uma cela de carne. A
religião torna-se um anseio de escapar do corpo, assim como um co-
mando para controlá-lo. Na religião de um Deus desprovido de corpo e de
sexo, a sexualidade humana torna-se um fracasso e uma traição, um
afastamento de Deus rumo a uma natureza menosprezada, um pecado.
Uma religião que adora o corpo da Deusa não precisa dessa separa-
ção entre a espiritualidade e a sexualidade. Como algo básico à vida, o
sexo assume o seu lugar como sagrado... "Todos os atos do amor e do
prazer são meus rituais", escreve a bruxa contemporânea Starhawk — um
manifesto de libertação em uma única frase.
Os cientistas e os filósofos frequentemente debatem sobre o que
torna os humanos únicos e os separa dos outros animais. Alguns dizem que
é a linguagem, outros o pensamento abstrato etc. De certa maneira, a
questão em si traduz uma necessidade ansiosa de nos isolarmos da
natureza. Entretanto, há uma característica humana que na verdade nos
torna únicos — o clitóris. As fêmeas humanas são os únicos mamíferos
para os quais o desejo sexual e o prazer não estão diretamente relacio-
nados com a reprodução.
Isto torna o sexo humano mais cultural do que simplesmente bio-
lógico. O sexo torna-se comunicação e uma expressão da nossa hu-
manidade. Quando os cristãos fundamentalistas e outros descrevem o
sexo como a nossa parte "animal", estão realmente distorcendo a realidade
em sua cabeça. A idéia de que só devemos fazer amor para produzir bebês
inverteria a evolução, pois é isso que os animais fazem. A sexualidade é
visível, envolvendo o toque e outras sensações, inclusive o orgasmo, que é
um evento físico no corpo. Além disso, o sexo nos abre para o corpo
invisível do desejo. Como um toque nos lábios, no seio ou no ombro
produz uma reação em uma parte do corpo não tocada, os genitais? E por
51
que isso acontece com algumas pessoas, mas não com outras? E qual a
resposta dos nossos corpos quando vemos, sem tocar, alguém bonito, ou
sexy — um amante, um total estranho ou simplesmente uma fotografia?
E que dizer das fantasias que não existem fisicamente no mundo, mas
apenas nas nossas mentes? Que linha Invisível as conecta com nossos
genitais? Dizer que a sexualidade existe no cérebro simplesmente
comprova a questão. Não conseguimos responder ao mistério do desejo
com descrições do funcionamento biológico.
Assim como a morte conduz ao corpo invisível, o mesmo acontece
com o nascimento. Quando uma criança pergunta "De onde vêm os
bebês?”, não está querendo conhecer a mecânica da relação sexual. Nosso
nervosismo sobre este tema leva-nos a falar sobre a reprodução biológica, e
"uma mamãe e um papai que se amam" — o que talvez satisfaça a
criança, que pelo menos recebeu uma resposta. A questão, no entanto,
toca um mistério básico da vida. De onde vêm os bebês? Nós sabemos
como os fetos crescem, mas o que torna um feto uma pessoa viva? Como
um indivíduo emerge do nada para se formar em torno de um corpo
físico?
(para viajar no mar, precisamos criar barcos, que com sua forma seme-
lhante a um útero adquirem o caráter de fêmeas). E como estas aves
"falam" sob a forma de canto, podem portar a sabedoria codificada da
Deusa, assim como a inspiração para a arte, outra maneira do Seu corpo
invisível movimentar-se rumo ao visível.
As aves nos ligam às cobras, mesmo que apenas através de sua
oposição simbólica. E se movem através do ar invisível. Já as cobras,
mais que qualquer outra criatura, deslizam através do corpo invisível da
imaginação. As mitologias de todo o mundo descrevem a conexão íntima
— frequentemente a antipatia — existente entre as aves e as cobras. Em
quase toda cultura, ambas aparecem como as criaturas primárias da Deusa.
E nem sempre são inimigas. Muitos mitos e histórias de fadas contam a
história de um herói que prova o sangue de uma cobra (ou dragão) e
aprende "a linguagem das aves", ou seja, todo o conhecimento. A ave
viaja para os mundos invisíveis do alto; e a cobra desliza pelos mistérios
que há embaixo da terra.
As aves e as cobras parecem representar a cisão (ou o jogo) entre o
consciente e o inconsciente, a racionalidade e o instinto. É fácil com-
preender o fascínio através das aves e de sua capacidade de voar com
graça rumo ao céu. Mas o que proporciona às cobras o seu mistério, a sua
acalentada resistência em quase toda mitologia?
Podemos considerar várias possibilidades. Para se desenvolver, as
cobras precisam trocar sua pele periodicamente. Isto lhes proporciona
uma aura de imortalidade. As cobras têm uma qualidade andrógina —
esticadas, parecem falos, enquanto enroladas assemelham-se às dobras da
vulva. Além disso, seu poder vai além do simbolismo intelectual. Marija
Gimbutas fala da cobra como a energia enrolada.
Embora pensemos nas cobras como venenosas, elas podem atuar
sobre o corpo de maneiras positivas. O veneno de muitas cobras, espe-
cialmente o das najas, atua como alucinógeno, produzindo visões
extáticas. Em 1989, na Califórnia, o Dr. Richard Kunin decidiu pesquisar o
óleo de cobra, frequentemente usado como símbolo de curas inúteis e
fraudulentas. Descobriu que o óleo das cobras d'água chinesas contém um
alto teor de importantes ácidos e outros nutrientes, incluindo a
concentração mais elevada de ômega-3derivado do ácido eicosa-
pentanóico (AEP). Em Fats That Heal, Fats That Kill, Udo Erasmus
afirma que o The New England Journal of Medicine recusou-se a publicar o
estudo do Dr. Kunin.
53
Aspectos do Céu
A luz em todas as suas frequências, incluindo as ondas de rádio, viaja
através do corpo invisível do espaço — e do tempo — e nos traz as
imagens e o conhecimento das estrelas, dos quasares e das galáxias há
muito desaparecidos. Quando olhamos para as estrelas, ou mesmo para o
Sol, cuja luz demora oito minutos para chegar até nós, o passado torna-
se visível. O tempo torna-se uma revelação da realidade divina. Quanto
mais profundamente olhamos para o espaço, mais para trás nos vemos no
tempo, até nos aproximarmos da própria origem da existência.
Nossos corpos surgem da realidade passada, pois tudo em nosso
sistema solar, incluindo nós mesmos e o Sol, formou-se da poeira das
estrelas explodidas. E não podemos viver sem o Sol, cuja luz viaja até nós
através do corpo invisível do espaço, do ar e do tempo.
Lembre-se dos mitos da nossa galáxia, da Via Láctea fluindo dos
seios da Deusa (frequentemente descrita como o corpo visível de uma vaca
ou de um búfalo), ou das estrelas como parte de Sua roupa, manto ou dança.
E pense como os círculos e morros de pedra marcam o nascente (ou o
poente) em determinados dias do ano. Eles servem ao propósito de tomar
conta do tempo, indicar quando plantar ou colher, mas também servem
claramente a um propósito ritual. Parte desse propósito pode ter sido trazer o
corpo invisível dos céus para o corpo mais visível de todos, a pedra e a lama.
Quando o feixe de luz do solstício do inverno penetra na caverna artificial de
Newgrange, na Irlanda, a luz toma forma na presença dos adoradores.
Durante alguns momentos, os túneis de pedra moldam a luz em uma espécie
de escultura, uma forma como um ser humano de pé.
54
A Natureza e a Arte
A realidade visível do mundo também nos conduz para o invisível. O poder
da terra repousa em parte no fato de dependermos dela para viver
e em parte na sensação de que algo maior que aquilo que conseguimos
ver vive dentro dela e dá significado ao mundo dos sentidos.
O ato de tornar a Deusa visível torna-se mais do que reconhecimento
passivo. Os esforços da imaginação tornam visível o corpo invisível. O
período neolítico (Idade da Pedra Polida) foi um tempo dedicado a grandes
55
Dolores La Chapelle amplia esta idéia, comentando que uma criança recém-
nascida emerge plenamente consciente (se não estiver dopada por drogas
administradas à mãe) e vê o corpo de sua mãe antes de tudo como os montes
veneris e o ventre, com os seios assomando acima deles. Quando ela é
erguida, vê então o rosto de sua mãe. Por isso, quando vemos a formação
tripla da paisagem natural, inconscientemente esperamos que a face da Deusa
Mãe esteja simplesmente fora da vista.
Na Grécia, a formação tripla das colinas suscita particularmente
Artemis — que cuidava das mulheres quando elas davam à luz. Ela
também pertencia às montanhas, onde vivia com Suas ninfas, que tanto
caçavam quanto protegiam os animais. As gravuras arcaicas de Artemis
às vezes mostram-na com Suas asas abertas. Esta imagem pode ter
derivado daquele mesmo pico tríplice, com a colina central como o Seu
corpo e as montanhas laterais como Suas asas.
Se aceitamos que essa imagem da paisagem natural incorpora a
Deusa, isso vai requerer antes de tudo um ser humano para percebê-la e
homenageá-la; depois que ele fique de pé e olhe para um ponto específico o.
Passei a compreender isso melhor em um local na Grécia onde não estava
particularmente procurando essa explicação. Próximo ao templo de Artemis
em Brauron (Vavrona, em grego moderno), há um exemplo da imagem da
Mãe de Scully e La Chapelle (ver Foto 4).
O relacionamento entre as três montanhas pode ser melhor visto
como um ponto ao longo da estrada, a cerca de dois quilômetros do templo.
Não sei se a estrada moderna está no mesmo lugar que a antiga, mas
certamente é possível que as jovens que vinham em procissão de Atenas
para servir Artemis passassem por este ponto. Muitas estradas atuais
realmente seguem os antigos caminhos.
Caminhando ao longo da estrada a partir do templo de Brauron,
você vai experimentar uma sensação do corpo da Deusa lentamente se
tornando realidade. Primeiro, você vê apenas a montanha mais próxima e
parte da seguinte. Depois, quando as duas montanhas laterais se separam,
percebe um vislumbre da montanha menor entre elas. Mas a visão dessa
montanha permanece justaposta por aquela próxima de você, de tal modo
que a forma essencial, um morro no centro ladeado por dois picos iguais,
só fica visível (e essa é a sensação, pelo menos para um observador
moderno) no ponto preciso da estrada em que você vê a montanha central
se erguer equidistante das duas maiores. Por isso, esta pequena visão da
paisagem natural da Deusa só vem à tona quando um observador humano
fica de pé e observa a partir de um determinado ponto.
59
O Pessoal E o Espiritual
Nos estágios iniciais do movimento das mulheres modernas, uma expressão
tornou-se a pedra fundamental do pensamento feminista. "O pessoal é o
político" tem obtido várias interpretações, mas talvez dois dos principais
significados possam ser descritos: primeiro, as mulheres individualmente
desenvolvem conhecimento e entendimento político através da observação
de suas próprias experiências; segundo, isto acontece porque o que
experimentamos nos relacionamentos, no trabalho ou em nossas famílias
ocorre em um contexto político. Colocado de outra maneira, uma estrutura
social inteira existe quando um homem e uma mulher discutem sobre o
trabalho doméstico, o fato de a mulher querer fazer um aborto ou a luta por
remuneração igual. Quando as mulheres começam a examinar e
compartilhar suas experiências, passam a conhecer a política. A ação na
63
O Espiritual É o Político
Assim como seus outros significados, a expressão "o pessoal é político"
significa que qualquer coisa que façamos tem um valor e um impacto políticos.
A política não ocorre apenas nas cabines de votação ou nas passeatas. A
maneira como vivemos nossas vidas carrega significado político tanto para a
sociedade como para as pessoas que nos cercam. O mesmo acontece com a
expressão "o pessoal é espiritual". Não experimentamos a Deusa apenas
quando vamos aos templos ou realizamos rituais. Ao contrário, fazemos essas
coisas para nos tornarmos mais conscientes do sagrado dentro e à volta de
nós o tempo todo, para reconhecermos o sagrado em nossos relacionamentos,
em nossas famílias, nos alimentos que comemos, na maneira como
64
espirituais de uma terra para outra. Espero que possamos aprender a fazê-
lo sem o imperialismo dos cristãos ou dos maometanos, que tentaram
obrigar os povos indígenas de todo o mundo a abandonar seus próprios
Deuses e Deusas. O valor da polinização cruzada é ver as coisas de uma
maneira nova.
Eles viviam sob as sombras das geleiras que tinham até um quilômetro e
meio de espessura, compartilhando seu mundo com rebanhos de renas e
vacas e touros selvagens, chamados bisões. Nós separamos luas fogueiras,
catalogamos seus instrumentos e escavamos seus restos mortais para examinar
seus ossos sob microscópios. Criamos fantasias de suas vidas, retratando
homens selvagens golpeando as mulheres na cabeça para arrastá-las de volta
às cavernas. Entretanto, um aspecto das vidas de nossos ancestrais mais
remotos ainda nos impressiona. Contra tudo que poderíamos esperar, essas
tribos da Idade da Pedra, dezenas de milhares de anos atrás, criaram uma
arte magnífica, desde imensos desenhos de touros e cavalos até estatuetas
delicadamente entalhadas do corpo feminino, muitas delas extremamente
estilizadas e abstratas. De que maneira essas imagens se comunicam
conosco? Que histórias podemos descobrir (e criar) sobre elas? Quando
pensamos no corpo da Deusa, pensamos mais frequentemente na Mãe Terra,
de forma que as cavernas pintadas se traduzem por um retorno ao Seu útero.
Será que os próprios pintores as consideraram dessa maneira? Os sinais da
vulva escavados nas paredes sugerem isso. Assim como as esculturas, pois
ainda que seus criadores as tenham feito pequenas o bastante para caberem
em uma só mão, também as escavaram em um estilo maciço, reminiscente
71
Primitivismo
Observar o mistério da arte das cavernas significa antes de tudo observar
nossos próprios preconceitos. Quando os etnógrafos europeus começaram a
investigar as crenças e o comportamento dos nômades e de outros povos
tradicionais, criaram o termo "primitivo", ou seja, pessoas que não foram
além dos estágios iniciais do desenvolvimento humano. Ao examinar os
africanos do deserto de Kalahari ou os aborígines australianos, os europeus
supostamente podiam olhar para trás no tempo, para seus próprios
primórdios. Alguns textos comparavam a visão de mundo das "tribos
primitivas" com aquela das crianças ocidentais.
Não foi por acaso que essa abordagem da antropologia desenvolveu-
se no período após a publicação da Origem das Espécies, de Charles Darwin.
O conceito de evolução mudou a maneira dos europeus considerarem as
outras culturas. Anteriormente, até europeus que rejeitavam a doutrina
cristã, segundo a qual Deus criou o mundo 5.000 anos atrás, ainda tendiam a
considerar as culturas não-européias como ignorantes e desprezíveis. Depois
de Darwin, os europeus começaram a descrever a humanidade como
evoluindo de um estágio para outro.
A própria cultura européia certamente parece ter feito isso. A Idade da
Pedra Lascada evoluiu para a Idade da Pedra Polida com o desenvolvimento
da agricultura e das construções monumentais. Os metais produziram
primeiro a Idade do Bronze, depois a Idade do Ferro. O
patriarcado e os governos centralizados parecem ter substituído as
comunidades tribais, e assim por diante.
Por isso, para os europeus torna-se natural encarar cada mudança
como um avanço para uma cultura "mais elevada". De fato, isto é
literalmente verdadeiro na arqueologia, pois se encontra evidência de culturas
mais antigas escavando mais fundo na Terra. É possível, contudo, que este
seja o único ponto verdadeiro. Pois à medida que exploramos o
conhecimento, a sofisticação e as vidas cotidianas dos povos da Idade
da Pedra, tanto da Pedra Lascada quanto da Pedra Polida, começamos a
questionar se as mudanças necessariamente desenvolveram a sociedade
humana ou o conhecimento humano. Somente com os computadores e
os microscópios começamos a recuperar parte do conhecimento perdi
do com a Idade da Pedra. E ainda temos um longo caminho a percorrer
antes de recuperarmos a sabedoria.
73
Poder de Lascaux
Uma vantagem de ver com nossos próprios olhos é que isso pode nos ajudar
a tirar da mente a ideologia do primitivismo. Ironicamente, quando
observamos os monumentos da pré-história européia — os círculos como
Stonehenge, ou as cavernas muito mais antigas, como Lascaux ou Pêch-
Mèrle —, podemos emergir desprovidos da idéia de que sempre houve isso
que chamamos de ser humano primitivo.
Ver Lascaux é ver, de uma maneira esmagadora, o brilhantismo e a
complexidade dos humanos Cro-Magnon de 17.000 anos atrás. Em 1963, o
governo francês fechou Lascaux devido à contaminação bacteriana dos
muitos visitantes. (Foi feita uma cópia, a mais exata possível em termos de
pigmentação e dos contornos das paredes, explodindo uma segunda caverna
no mesmo declive da montanha, algumas centenas de metros de distância
dali. Imagina-se como os arqueólogos do futuro, incapazes de decifrar
nossas línguas, considerariam essa duplicação, com um intervalo de quase
20.000 anos separando as duas cavernas)
Ainda é possível ver a original, solicitando permissão com bastante
antecedência. Como ela só recebe quatro ou cinco pessoas de cada vez, os
guias desenvolveram uma maneira dramática para mostrar a caverna em sua
glória. Primeiro, conduzem o visitante até uma antecâmara cortada na
encosta da montanha. Depois, apagam todas as luzes antes de abrir a porta
para a caverna em si. Se, como alguns suspeitam, a caverna foi usada para
iniciações, esta pode ter sido a maneira como os membros das tribos originais
penetravam no segredo — isto é, na escuridão total, até seus líderes
acenderem suas tochas ou lamparinas.
Os guias conduzem você até a câmara e ligam as luzes elétricas. E ali
fica você, de pé, entre enormes paredes brancas cobertas de animais
saltando, correndo, bufando, alguns com até cinco metros e meio de
comprimento, parecendo manadas de cavalos, ou touros, alguns com outros
animais emergindo de seus corpos, todos pintados com cores brilhantes. O
efeito é um desejo de gritar ou chorar de assombro e júbilo, enquanto o
tempo todo você pensa: "Isto tem 17.000 anos de idade. As pessoas
pintavam estas obras-primas 17.000 anos atrás" (ver Foto 7).
O tamanho das pinturas, as cores brilhantes ou o ambiente gran-
dioso — não é apenas isso que liberta você das ideologias do
primitivismo. É a técnica, a beleza do trabalho. Os detalhes anatômicos são
75
Primórdios da Arte
Antes de examinar os possíveis propósitos da arte nas cavernas, devemos
observar o desenvolvimento dessa arte. Isso não somente vai nos instruir no
que os cientistas aprenderam da história inicial da humanidade, mas vai
também ajudar a demonstrar a primazia da arte na cultura humana. Talvez
esta última frase devesse falar na cultura dos "primatas". John Pfeiffer, em
The Creative Explosion, conta-nos sobre um chimpanzé do Jardim
Zoológico de Londres, chamado Congo, que produziu 384 desenhos aos
quatro anos de idade, "progredindo desde rabiscos até círculos e cruzes
toscos", alguns deles tendo sido até vendidos em uma exposição. Nos
Estados Unidos, um chimpanzé chamado Moja, com três anos e meio, fez
um desenho de "quatro segmentos de linha, um ângulo reto e uma curva
ampla". Moja fazia parte de uma experiência de comunicação entre espécies
e aprendeu um vocabulário limitado da Linguagem Americana de Sinais.
Quando parou de desenhar, o humano que estava assistindo comunicou-lhe
com sinais: "Faça mais." Moja sinalizou como resposta: "Terminado." O
humano perguntou: "O que é isso?" Moja respondeu: "Pássaro." Mais tarde,
Moja prosseguiu, desenhando "grama", "frutinha" e "flor". Possivelmente, o
impulso para criar a linguagem e a arte teve um desenvolvimento si-
multâneo.
Entre as primeiras criações humanas estão os "machados de mão",
pedras escolhidas por sua forma alongada e arredondada, aplanadas e depois
aparadas lateralmente para produzir tanto uma extremidade cortante quanto
uma simetria. Eles aparecem cerca de um e meio milhão de anos atrás. Será
que seus fabricantes os moldaram simetricamente por razões estéticas? Um
exemplar encontrado em Norfolk, na Inglaterra, contém uma concha
fossilizada, exatamente no meio, como se tivesse sido colocada ali para
embelezá-lo.
Os historiadores da pré-história referem-se a tais objetos como
machados de mão, mas na verdade, segundo Pfeiffer, "não são machados e
não eram usados para cortar nem para qualquer outro tipo de trabalho
pesado". Seriam realmente ferramentas? Os famosos machados duplos de
Creta eram feitos de um metal mole demais para ser usado como
ferramentas ou armas. Variando em tamanho desde alguns centímetros até
mais de dois metros de altura, eles eram usados como oferendas votivas,
objetos de devoção à Grande Deusa. Os muitos brasões e outras imagens
77
A "Explosão Criativa"
Cerca de 35-40.000 anos atrás, a humanidade Cro-Magnon sofreu o que John
Pfeiffer chama de "explosão criativa", com o surgimento de entalhes na
parede, ossos delicadamente entalhados e estatuetas elaboradamente
esculpidas, que continuaram a ser criados durante milhares de anos.
Isto não significa que a cultura humana teve início apenas na Europa.
A maior parte do nosso conhecimento do período paleolítico vem de uma
pequena área do sul da França e do norte da Espanha, particularmente os
vales dos rios Dordogne e Vézère, na França. Entretanto, pelo menos a
China e a índia são também conhecidas como tendo experimentado
desenvolvimento na Idade da Pedra, embora pouca arte tenha sido lá
encontrada, possivelmente devido a uma exploração menos extensiva. A
arte na pedra aparece virtualmente em toda parte, e sua fonte mais rica é o
sul da África, onde foram encontrados cerca de 6.000 sítios arqueológicos,
contendo cerca de 175.000 pinturas. As pesquisas arqueológicas recentes
deslocaram o início da arte — e do comércio — da Europa para épocas
muito anteriores na África. Pelo menos 100.000 anos atrás, os humanos
na África desenvolveram redes comerciais de longa distância para vários
produtos, incluindo contas.
A arte inicial, especialmente a arte mural e as estatuetas, mostra o
poder espiritual do corpo feminino. As gravuras murais européias co-
meçaram com imagens da vulva, e embora os animais mais tarde tenham
79
Abstração Simbólica
As vulvas entalhadas não eram imagens realísticas dos genitais femininos,
mas fendas ou triângulos abstratos. Em outras palavras, eram símbolos. E
quando encontramos símbolos, podemos falar de idéias e de um sentido
do sagrado. As pessoas daquela época não viviam nas cavernas escuras e
inacessíveis, mas em abrigos de pedra, que também pintavam e
entalhavam. No abrigo de pedra de L'Abri Pataud, os arqueólogos
encontraram uma mulher e uma criança enterradas em frente a uma
vulva escavada na pedra. Repetidas vezes, essa mesma conjunção aparece
diante de nós: o cadáver e a vulva; ocre — a cor da vida — e o morto; a
morte e o renascimento; voltando milhares de anos.
80
Impressões de Mãos
As outras formas de arte aparecem cedo e continuam através do período
paleolítico: bastões entalhados e impressões de mãos. Como as marcas de
xícaras, as impressões de mãos aparecem no mundo todo na arte da pedra.
Às vezes as encontramos junto com outras imagens; outras vezes, apenas
elas. Os artistas usavam dois métodos. As impressões de mãos "positivas"
81
eram a imersão das mãos na tinta e depois sua pressão contra a parede. As
impressões de mãos "negativas" parecem ter sido feitas pressionando-se a
mão contra a parede, com os dedos abertos, e depois soprando a tinta
através de um tubo na área em torno da mão. Algumas impressões de mãos
aparecem com parte de um dedo faltando. Na caverna de Maltrevieso, no
oeste da Espanha, todas as impressões de mãos se caracterizam pela ausência
das duas articulações superiores do dedo mínimo. Embora isto possa ter
resultado de uma amputação ritual, talvez como uma oferenda aos
Espíritos, Mark Newcomer, um arqueólogo experimental, demonstrou a
possibilidade de se falsificarem essas imagens dobrando o dedo antes de
soprar a tinta.
O tamanho das mãos indica que as mulheres faziam tais impressões,
dando suporte à idéia de que artistas mulheres criaram as pinturas. Na índia
rural, pintoras mulheres contemporâneas incluem as impressões das mãos
como parte do seu trabalho.
À semelhança que ocorre com toda a arte pré-histórica, desconhe-
cemos o significado específico das impressões das mãos. Podemos supor, em
um sentido genérico, o que levaria as pessoas a deixar esses tipos de marcas.
Quando vamos a um lugar sagrado, onde experimentamos grande respeito,
em geral desejamos tocar o chão, as pedras ou as árvores. Queremos
pressionar nossas mãos como uma extensão da nossa consciência, pois elas
de alguma forma transportam uma carga especial de energia. Não somente
nossas mãos nos distinguem dos outros animais, mas as usamos para
reconstruir o mundo que nos cerca. As impressões das mãos fazem uma
declaração poderosa. Deixam uma marca da consciência. Constituem tanto
um ato de submissão quanto uma atitude ousada de participação no poder
espiritual vivo, presente naquele lugar. Com as impressões das mãos
absorvemos o poder de um lugar sagrado e entregamos em troca algo de nós.
Pressionamos a realidade do nosso próprio corpo no corpo da Terra.
Na caverna de Pêch-Mèrle, impressões de mãos negativas cercam um
desenho de dois cavalos. As mãos permanecem fora dos corpos,
transmitindo uma sensação de que os humanos podem não penetrar em algo
tão venerável quanto um espírito animal. Esta separação estrita torna-se
mais interessante quando consideramos que os artistas das cavernas em geral
desenhavam um animal surgindo de outro, como em Lascaux, ou ainda
superpondo muitos desenhos, um acima do outro.
82
Bastões Entalhados
Os bastões entalhados são uma questão mais complexa, pelo menos pelo
fato de conterem mais informações. Eles consistem em ossos ou chifres
entalhados e decorados, às vezes com uma série de marcas simples,
aparentemente abstratas, mas outras vezes com figuras de animais c de
plantas cuidadosamente entalhadas. A maioria deles tem pelo menos um
buraco perfurando-os; alguns têm vários. Os arqueólogos costumavam se
referir a eles como "batons de commandant", presumindo que fossem um
símbolo de autoridade de um chefe tribal — uma suposição que talvez diga
mais sobre os arqueólogos do que sobre a cultura da Idade da Pedra. O
museu da arte das cavernas, em Lês Eyzies, na França, descreve atualmente
os poucos bastões exibidos como "objetos enigmáticos".
Das várias imagens de humanos com animais na arte paleolítica,
nenhum dos humanos porta armas. Alguns poucos, no entanto, carregam
objetos ou discos cerimoniais, indicando que eles procuravam encontrar
animais sagrados, não matá-los ou subjugá-los.
Marcas em Ossos
O estudo das marcas abstratas nos ossos sugere mais fortemente ainda essa
consciência. Se Marshack estiver correto, essas séries de linhas regulares
gravadas, sempre consideradas rabiscos sem significado, realmente
representam uma cuidadosa contagem de dias, ou meses. As linhas podem
marcar dois tipos de tempo, ambos associados aos corpos das mulheres;
primeiro, as fases da Lua, tão vitalmente ligadas à menstruação; segundo, a
duração da gravidez.
Em vez de serem varas fálicas representando o poder de um chefe,
os "batons" podem ter funcionado como bastões-calendários para as
84
A Vênus de Laussel
Uma das imagens mais famosas da arte das cavernas é a chamada "Vênus
de Laussel", uma incrível escultura em relevo de mais de 20.000 anos de
idade, encontrada em um abrigo de pedras no vale do Rio Dordogne (ver
Foto 9).
Como acontece com várias outras obras em relevo, o artista usou a
curva e a protuberância da parede para proporcionar à imagem qualidade
tridimensional. A evidência indica que essa figura também foi pinta- \ da
com ocre vermelho, aquele símbolo ubíquo do sangue vital da Deusa. Aqui
a mulher aparece grávida. Sua mão esquerda se apóia em sua barriga,
enquanto a direita segura o chifre de um bisão marcado com 13 linhas. O
chifre detém uma importância simbólica imensa. Um ano contém 13 luas
cheias ou 13 luas novas (um mês lunar dura 29,5 dias), e o chifre do bisão,
ou da vaca, se parece com a Lua crescente ou minguante, como uma
barriga grávida se assemelha à Lua cheia.
Lembre-se de que os bovinos, touros e vacas, são os animais mais
comuns na arte das cavernas. E lembre-se de que, nas culturas posteriores
de todo o mundo, a vaca ou o búfalo incorpora a Grande Deusa, com
figuras como a Mulher Búfalo Branco entre os sioux de Lakota,' Oya como
um búfalo na África Ocidental, na Europa e na mitologia, grega, Hator no
Egito, e a vaca no mito escandinavo, que lambeu um bloco de água
salgada congelada para formar o mundo. A Via Láctea, o nome que damos
à nossa galáxia, refere-se ao mito das estrelas como leite da Deusa (vaca)
85
Economia do Caçador-Coletor
Durante muitos anos, os historiadores da pré-história descreveram as
pinturas nas cavernas como "mágica da caça". Preocupados em garantir um
suprimento constante de carne, os "homens das cavernas" supostamente
faziam desenhos da presa desejada e esperavam que isso lhes desse poder
sobre as criaturas. Contudo, as evidências arqueológicas corroem esta idéia.
Antes de tudo, a partir do que conhecemos dos ossos e dos restos
fósseis, a caça não era de modo algum escassa, mas abundante. A maioria de
nós foi criada com a imagem dos "homens das cavernas" levando uma
existência miserável e desesperada. Isto também pertence à ideologia do
primitivismo, pois nos diz que estamos muito melhor servidos com nossa
sociedade tecnológica avançada, e que toda a história seguiu um progresso
contínuo para condições cada vez melhores. Se consideramos nossas vidas
atualmente insatisfatórias, podemos nos dizer que não temos escolha, e que
os povos mais antigos sofriam muito mais que nós. Essa visão da vida na
Idade da Pedra Lascada justifica não apenas as chamadas "grandes
civilizações" começando com a Suméria, mas até o capitalismo tardio.
Quando ecologistas e outros atacam nossa aproximação da natureza baseada
no consumo, os conservadores freqüentemente citam a suposta miséria que
existia antes do homem dominar a natureza. Entretanto, a pesquisa tem
corroído esta visão da vida pré-histórica. Em um artigo intitulado "The First
Affluent Society", Marshall Sahlins demonstrou que os povos paleolíticos só
87
Estados de Transe
A arte das cavernas originou-se de viagens de transe? David Lewis-
Williams desenvolveu essa teoria baseado na neuropsicologia das pessoas
em estados de transe, comparando suas visões com as imagens nas cavernas.
Por exemplo, as pessoas em estados de transe vêem formas geométricas e
figuras abstratas similares às centenas de "sinais" encontrados em Lascaux e
em outros locais. Vêem seres animais poderosos — e conversam com eles.
Também podem encontrar "tierantropos", criaturas parte humanas e parte
animais, ou eles próprios podem se tornar essas criaturas. Embora as
paredes das cavernas exibam principalmente animais, encontramos algumas
misturas de humanos e bestas — por exemplo, uma forma com
características humanas com cabeça e chifres de veado. As pessoas em transe
geralmente iniciam suas viagens experimentando uma descida através de
um túnel descendente. Uma caverna proporciona realidade física a este túnel
psíquico. Lewis-Williams estudou a arte na pedra dos !Kungs, da África do
Sul, como parte de sua pesquisa. Entre os !Kungs, os xamãs desenham
enquanto estão em transe, muitas vezes pintando borrões e outras
abstrações que lhes aparecem em seus estados alterados.
O que é interessante nesta teoria do transe é sua base no corpo. Ela
procura apontar o conhecimento do mundo dos espíritos como a fonte das
pinturas. Mas não trata essas viagens como alucinações; ao contrário,
considera-as experiências do corpo.
Há um conjunto — corpo — de informações relacionadas aos estados
de transe. Grande parte dele diz respeito a medições da eletricidade do
cérebro e assim por diante. Só recentemente, os ocidentais começaram a
considerar as próprias viagens como experiências reais. Só recentemente
começamos — de uma maneira muito nervosa — a ver o mundo dos
espíritos como um lugar real, e os seres que lá habitam como algo além de
projeções das nossas próprias fantasias. Apesar disso, esta é exatamente a
maneira como, há centenas de anos, as pessoas de todas as culturas têm
encarado o mundo dos espíritos.
Acreditar na realidade das viagens de transe requer dois tipos de
confiança. Primeiro, precisamos confiar no fato de que as pessoas que
fizeram estas viagens durante um período de dezenas de milhares de anos
sabiam o que estavam fazendo. Segundo, precisamos confiar na experiência
dos nossos próprios corpos. Felicitas D. Goodman, em Where the Spirits Ride
the Wind, documentou uma série de experiências usando posturas corporais
90
O Xamã de Lascaux
Uma das posturas de Goodman veio de Lascaux. A única imagem humana
nesta grande galeria mostra, em um bastão, a figura de um homem, deitado
de costas ao lado de um bisão (Ver Figura 4).
Figura 5: Desenho de mulheres grávidas dançando, sem cabeça e com cabeça de pássaro, feito em barro, da
caverna de Pêch-Mèrle, na França, c. 20 000 a.C. (conforme Vicki Noble).
Marija Gimbutas
Os Primórdios da Agricultura
Os escritores cuja temática são os primórdios da cultura humana oferecem
épocas e locais diferentes para o início do plantio e da colheita deliberados.
Segundo Joseph Campbell, a agricultura começa em torno da mesma época,
10000 a.C., em quatro áreas distintas — as Américas, o sudeste da Ásia e o
Pacífico, o sudoeste da Ásia e a África. Concentrando-se no Oriente Médio,
Merlin Stone escreveu que a primeira evidenciada agricultura data de cerca
de 8 500 a.C., na Síria, no Jordão e em Jerico. James Mellaart data os
instrumentos agrícolas de 9000 a.C., assinalando que as pessoas primeiro
domesticaram os carneiros, por volta de 8900 a.C., e que existem evidências
de comércio (in obsidian) já em 8300 a.C., entre a Anatólia, na Turquia, e a
cidade de Jerico, próximo à margem oeste do Rio Jordão.
Na maior parte da Europa, essas grandes mudanças culturais só
ocorreram algum tempo depois. A disciplina acadêmica da arqueologia
origina-se da cultura européia, o que explica por que sabemos tão mais sobre
as primeiras sociedades agrícolas européias e do Oriente Médio do que
sobre as culturas da Ásia, da África ou das Américas.
Outra razão são os próprios megálitos, o vasto numero de morros,
círculos de pedra, túmulos, dolmens, marcos de pedra e outras construções
que se estendem desde a Irlanda e a Grã-Bretanha e atravessam a Europa
ocidental até a Escandinávia, Malta, Sicília, Creta e mais além. Os megálitos
comandam nossa atenção, inspirando-nos com devoção e curiosidade. Quem
realmente os construiu? A que propósito serviam? Por que aparecem ao
mesmo tempo que a agricultura? E, acima de cudo, o que significam?
Astro-Arqueologia
Nos últimos anos, concentrou-se a atenção na "astro-arqueologia", a
descoberta de amplos alinhamentos entre os círculos de pedra e eventos
celestiais como os solstícios e os equinócios. Gerald Hawkins, cujo livro
Stonehenge Decoded foi o primeiro a trazer essas idéias ao povo em geral,
descreve Stonehenge como um computador gigante que segue o rastro das
eclipses, determina as posições extremas do Sol e da Lua e, é claro, o famoso
nascer do sol do meio do verão.
Por exemplo, a Lua cheia não nasce nem se põe no mesmo lugar
todos os meses, mas se move em um ciclo que dura, em média, 18,61 anos
para se completar. Como o número inclui uma fração (0,61), e como o
tempo realmente varia entre um ciclo e o seguinte, Hawkins calcula que o
melhor número inteiro para seguir a órbita da Lua durante várias décadas é
56 anos. Segundo seu descobridor do século XVII, o sítio arqueológico de
Stonehenge contém um círculo de 56 buracos, conhecidos como buracos de
Aubrey. Se os marcadores mudassem de buraco para buraco durante 56
anos, poderiam ter mapeado o progresso d a Lua.
104
Formas Corporais
O próprio Brennan rejeita a idéia de qualquer representação
antropomórfica nos montes. Além disso, a forma não é estritamente
funcional. As passagens precisam ter uma determinada extensão para a luz
penetrar corretamente, mas não está claro que precisem ser cruciformes,
uma forma que a arquitetura sagrada sempre usou para retratar o corpo
humano. E a grande dimensão dos montes, sem falar em sua forma
arredondada, implica alguma importância simbólica, se não
ginecomorfismo (moldado como uma mulher). O amplo monte de
Newgrange cobre muito mais espaço do que seria necessário para cobrir
o interior. A passagem nos lembra uma caverna em uma montanha — ou
um útero.
Além de montes maiores, a Irlanda contém muitos "court cairns"
(montes da corte), assim chamados devido à entrada semicircular for-
mada por duas fileiras curvas de grandes pedras. Estes também contêm
aquela forma interior como um corpo com os braços e as pernas para
(ora. Podemos vê-la também no Grande Túmulo de West Kennet, o
passage mound retangular próximo ao Círculo de Pedra de Avebury, na
Inglaterra. E a encontramos também em santuários neolíticos na Polônia na
região anteriormente ocupada pela Iugoslávia.
Um Dia do Ano
Uma das descobertas de Brennan diz respeito a Dowth, terceiro na MTÍC
de montes gigantescos que incluem Knowth e Newgrange. Ao contrário
dos outros dois locais, Dowth não foi restaurado, de forma que aparece
como uma pequena colina verde, com árvores e grama alta. Quando
olhamos mais de perto, percebemos que esta colina, que parece natural,
contém uma "caverna" em sua base, com um portão de ferro bloqueando a
entrada. E se examinarmos a rocha nua na base da colina gramada,
descobriremos espirais entalhadas.
Segundo Brennan, a luz que penetra em Dowth vem do pôr-do-sol no
meio do inverno, e não do nascente como em Newgrange. Talvez as pessoas
que a tenham construído observassem um "dia" ritual no decorrer do ano.
Essa cerimônia com um ano de duração pode ter ocorrido em intervalos
especiais — digamos, a cada sete anos. (A importância do número sete na
108
As Tumbas e os Arqueólogos
A arqueologia profissional descreve os megálitos de toda a Europa como
"tumbas", às vezes descrevendo a cultura neolítica como obcecada com a
morte, ou centralizada em torno de um culto do morto. Para um não-
arqueólogo, a insistência em ver todo monumento como uma tumba pode
parecer obsessiva. Os escavadores têm encontrado restos de esqueleto e
restos cremados em algumas estruturas megalíticas, mas de modo algum
em todas. Escrevendo sobre as estruturas circulares da Itália, Ruth
Whitehouse (em The Megalithic Monttments of Western Europe) cita a
109
Local de Marcação
O arqueólogo Colin Renfrew sugere que os monumentos funcionavam como
"marcadores territoriais", significando que um grupo particular dominava
uma área de terra. É um pouco difícil entender como isto podia funcionar,
como um círculo de pedra, por exemplo, indicaria que porção de terra estava
sendo "reivindicada", ou por que alguns locais requeriam vários morros
imensos ou círculos tão próximos um do outro, e outros nada, ou por que
um montinho de pedra seria suficiente em um lugar, um dólmen em outro e
um passage mound gigantesco em um terceiro. Mas por que devemos rejeitar
a idéia, como alguns defensores da espiritualidade megalítica parecem fazer?
As pessoas frequentemente sentem necessidade de marcar sua presença.
Na Nova Inglaterra e no Estado de Nova York, inúmeras casas, igrejas,
bancos e shopping centers exibem pedras verticais bastante grandes (e em
geral bonitas), ou até linhas inteiras ou semicírculos feitos de pedra, em
entradas para automóveis, gramados, portões ou áreas de estacionamento.
Na minúscula cidade de North Salem, em Nova York, pode-se ver uma
enorme pedra de cerca de 90 toneladas, com a forma um pouco parecida
com a cabeça de uma cobra ou de uma tartaruga, apoiada sobre várias
pedras pequenas de calcário, todas de forma cônica c dispostas em um
triângulo isósceles. Os defensores dos megálitos norte-americanos
111
corpos da terra. Ou, para inverter isso, podemos dizer que perceber a
paisagem natural como o corpo divino proporciona um contexto poderoso
para o valor prático do território mapeado.
Figura 6: Desenho do caminho do Sol no decorrer de um ano. Construção de Charles Ross, "Sunlight
Convergence, Solar Burn: The\fear Shape", 1972. j
Fígura 7: Desenho de espirais em uma estatueta da Deusa encontrada em Cucuteni — uma cultura da Ro-
mênia—, c. 4300 a.C. (segundo Gimbutas).
Nossos corações são chagas para o ultraje à ordem das antigas deusas.
A Não-Violência e a Arte
No período neolítico, não encontramos a glorificação da guerra e da
matança, tão proeminente nas sociedades posteriores. Em Çatai Hüyük, 150
pinturas sobreviveram nas paredes. A arte era evidentemente importante
nesta cidade bastante antiga (Mellaart enfatiza que era realmente uma
cidade, não uma colônia temporária), e, entre essas 150 pinturas, nenhuma
mostra batalha, guerra ou tortura.
Em Creta, também, a arte elegante encontrada em todas as ruínas não
mostra cenas de guerra. Os arqueólogos encontraram armas nesses locais.
James Mellaart relata evidências em Çatal Hüyük do uso de estilingue, arco
e flecha, e lanças. Mas todos estes artefatos eram tanto instrumentos de caça
quanto armas, e por isso não podemos supor que representem evidência de
guerra. O mais significativo é que nenhuma arma aparece na arte. Segundo
Stylianos Alexiou, no livro Minoan Civilization, Creta tinha uma marinha e
travou batalhas no mar. Entretanto, na própria Creta as fortificações
permaneceram desconhecidas e nenhuma batalha naval aparece na arte. Os
cretenses podem ter combatido estrangeiros, mas viviam pacificamente entre
eles.
Assim como não mostra evidências de violência, a arte neolítica não
exibe glorificação de um chefe ou governante, seja homem ou mulher. Nos
afrescos e brasões murais cretenses, vemos principalmente grupos de pessoas
realizando juntas atividades como danças ou sacrifícios de touros. Algumas
mulheres são em geral Deusas, ou talvez sacerdotisas, mas não rainhas. Só
uma vez aparece uma imagem masculina individual, e esta figura, um jovem
gracioso segurando flores, dificilmente sugere o todo-poderoso "Rei Minos",
descrito pela posterior lenda grega patriarcal.
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