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O Corpo da Deusa
2

Rachel Pollack

O corpo da Deusa
No mito, na cultura e nas artes

Tradução de MAGDA LOPES


3

EDITORA
ROSA DOS
TEMPOS
4

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Pollack, Rachel
P833c O corpo da Deusa: no mito, na cultura e nas artes /
Rachel Pollack; tradução de Magda Lopes. -
Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1998.

Tradução de: The body of the Goddess


Inclui bibliografia
ISBN 85-01-05251-5
l. Deusa. 2. Mitologia. 3 Imagem (Psicologia). 4. Deusas na arte.
I. Título.
CDD-291.211
98-1589 CDU- 291.214

Título original norte-americano


THE BODY OF THE GODDESS

Copyright © 1997 by Rachel Pollack

Publicado originalmente na Grã-Bretanha em 1997 por


Element Books Limited, Shaftesbury, Dorset.

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em


parte,
através de quaisquer meios.

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o


Brasil
adquiridos pela
EDITORA ROSA DOS TEMPOS
Um selo da
DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.
5

Rua Argentina 171 -Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 –


Tel.: 585-2000 que se reserva a propriedade literária desta tradução
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8

Sumário
Relação das Figuras ...............................................................................15

Relação das Fotos .....................................................................................16

Agradecimentos.........................................................................................18

INTRODUÇÃO ........................................................................................20

A Viagem Espiralada das Imagens ............................................... 20

1 - Como a Deusa Pode Ter um Corpo? ................................................27

O Nascimento de Artemis ............................................................ 27


Quem E o "Eu" que Possui um Corpo? ...................................... 28
Uma Religião de Realidades Básicas ........................................... 29
O Amor, a Sexualidade e o Corpo Divino ................................... 31
Medindo o Corpo de Deus ........................................................... 32
Formas Corporais na Natureza e nos Templos .......................... 33
A Lua e os Corpos das Mulheres .................................................. 36
O Corpo no Céu ........................................................................... 39
A Emergência do Masculino ....................................................... 40
O que É a Deusa? O que E o Corpo? .......................................... 44

2 - O Corpo Visível e o Corpo Invisível ..................................................46

O Corpo Visível ........................................................................... 46


Morte ............................................................................................. 48
Sexualidade ................................................................................... 50
As Aves, as Cobras e o Corpo Invisível ..................................... 51
Aspectos do Céu ........................................................................... 53
A Natureza e a Arte....................................................................... 54
As Criações Modernas que Imitam o Corpo da Deusa ............ 55
Participação Humana no Corpo da Deusa .................................. 57
Uma Montanha com Dois Picos e uma Colina Arredondada ..... 57
9

Vendo com os Próprios Olhos ..................................................... 60


Juntando a História e a Vida ......................................................... 61
O Pessoal E o Espiritual ............................................................... 62
O Espiritual É o Político .............................................................. 63
"The Teaching Rock" .................................................................... 64
Entalhes e Fissuras Naturais ........................................................ 66
Transportando Significados Sagrados para Novos Locais........... 66
A Sobrevivência da Deusa na Vida Cotidiana dos Malteses ...... 68

3 - O Corpo de Pedra Pintado .................................................................70

Primitivismo ............................................................................... 72
Poder de Lascaux.......................................................................... 74
Primórdios da Arte ........................................................................ 76
Primeiras Imagens Femininas ....................................................... 77
A "Explosão Criativa" .................................................................. 78
Abstração Simbólica .................................................................... 79
Impressões de Mãos..................................................................... 80
Bastões Entalhados ....................................................................... 82
O Trabalho de Alexander Marshack ............................................ 82
Marcas em Ossos .......................................................................... 83
A Vênus de Laussel ....................................................................... 84
As Histórias e a Determinação do Tempo .................................... 85
Economia do Caçador-Coletor .................................................... 86
Pensando Sobre a Arte nas Cavernas ........................................... 88
Estados de Transe .......................................................................... 89
O Xamã de Lascaux ..................................................................... 90
Os Cultos da Fertilidade e as Vênus ............................................ 91
A Pornografia e o Corpo Divino ................................................ 93
Os Rituais da Menstruação e da Gravidez................................... 93
A Caverna como o Corpo Interior — Pêch-Mèrle ..................... 95

4 - O Corpo de Pedra Construído — Parte l ........................................98

Os Primórdios da Agricultura ..................................................... 99


Os Megálitos Além da Europa...................................................... 99
Observatório de Chaco Canyon ................................................ 100
A Beleza dos Megálitos ............................................................. 101
10

Mistérios dos Megálitos ............................................................. 102


Astro-Arqueologia ..................................................................... 103
0 Sol de Newgrange e o Bando Lunático .................................... 105
Formas Corporais ....................................................................... 107
Um Dia do Ano ........................................................................... 107
As Tumbas e os Arqueólogos ................................................... 108
Local de Marcação ...................................................................... 110
As Canções Orientadoras dos Aborígines Australianos............ 112

5 - O Corpo de Pedra Construído – Parte 2 .........................................117

A Era da Não-Violência ............................................................. 118


Glastonbury Tor e Avebury ........................................................ 119
A Não-Violência e a Arte .......................................................... 120
A Igualdade Social e a Questão do Matriarcado ........................ 121
O Registro dos Sepultamentos ................................................... 122
Túmulos Individuais ................................................................... 123
Uma Multiplicidade de Deusas ................................................ 124
A Senhora das Bestas ................................................................. 126
Escarnação ................................................................................... 128
Arvores, Montanhas e Outras Incorporações .............................. 129
Os Nós ........................................................................................ 131
O Nó Górdio .............................................................................. 133
A Era das Invenções ................................................................... 134
Hipóteses sobre a Criatividade .................................................. 135
Como Tudo Isso Desapareceu? ................................................. 138
A Descoberta da Paternidade ...................................................... 138
As Leis Reprimindo as Mulheres .............................................. 140
A Demonização das Mulheres .................................................... 141
Padrões Universais ...................................................................... 142
Lilith ............................................................................................ 143
Uma Interpretação Esotérica ..................................................... 144
Um Irmão e uma Irmã Japoneses ........................................ 145
Mitos Distorcidos ....................................................................... 146
Eva e a Maçã ............................................................................... 147
Um Mito Explícito ..................................................................... 149
Matando um Dragão .................................................................. 150
Apropriação Masculina ............................................................... 151
11

Uma Visão Diferente dos Tabus Menstruais .............................. 152


Uma Religião Baseada na Realidade da Vida, Não no Poder .. 153

Fotos .........................................................................................................156

6- O Corpo na Terra ..............................................................................169

Uma Cultura Mais Antiga que a Grega....................................... 170


O Mito Grego como um Quebra-Cabeça.................................... 171
Pasífae e o Touro ........................................................................ 172
O Minotauro ................................................................................ 173
O Machado Duplo ...................................................................... 174
Sacrifício Humano ..................................................................... 176
A Dança do Touro....................................................................... 177
Teseu e o Labirinto ...................................................................... 178
O Poder da Terra .......................................................................... 180
A Natureza e a Política .............................................................. 181
As Formas Específicas da Paisagem Natural ............................ 182
Diferenças Sutis .......................................................................... 183
Os Chifres da Consagração ......................................................... 184
Outros Alinhamentos ................................................................. 185
Procissões .................................................................................... 186
Creta e os Mistérios de Elêusis .................................................. 188
O Caminho da Procissão: Do Mar para o Palácio no Interior ..... 188
A Beleza de Festos .................................................................... 191
O Cone e a Montanha ................................................................ 192

7 - O Corpo na Canção............................................................................194

Os Deuses Imortais ..................................................................... 195


Camadas do Significado: Psique ............................................... 197
Uma Viagem no Mar ................................................................. 198
A Conquista de Delfos ............................................................... 199
O Terror do Conquistador ........................................................... 200
Chegando a Delfos ...................................................................... 203
As Pedras de Gaia ....................................................................... 205
A Individualidade e a União das Deusas .................................... 206
Artemis e a Maternidade ............................................................. 206
12

Artemis e as Mulheres Modernas ................................................ 207


Solidão e Sexualidade ................................................................ 208
Deusas da Lua ............................................................................ 211
Artemis e Apolo ......................................................................... 211
Leões e Abelhas .......................................................................... 212
Elos Entre as Deusas .................................................................... 213
Cibele .......................................................................................... 214
O Sacrifício Genital e a Mudança de Sexo ................................. 215
Uma Prática Difundida ............................................................... 216
Auto-Escolhidos, Escolhidos da Deusa ..................................... 217
O Mito de Cibele e Átis ............................................................. 218
A Criação de Afrodite ................................................................ 219
O Xamanismo e a Mudança de Sexo ........................................... 220
Dionísio, "O Efeminado" .......................................................... 221
Artemis e Afrodite ..................................................................... 222
Afrodite e a Sexualidade ............................................................ 222
Santuários para Afrodite ............................................................. 225
Afrodite e a Natureza ................................................................. 225
Sexualidade e Maternidade .......................................................... 226
Afrodite, Adonis e Perséfone ..................................................... 227

8 - Corpo com o Morto ..........................................................................230

Elêusis — Então e Agora ........................................................... 232


Mitos e Rituais que Expressam o Desenvolvimento Humano234
A Tesmofória.............................................................................. 235
Os Mistérios e Suas Estações .................................................... 236
A Procissão ................................................................................. 238
Narciso e a Romã ....................................................................... 239
O Rapto ....................................................................................... 240
Deméter Disfarçada .................................................................... 241
A Terra Inanimada ...................................................................... 243
A Romã ....................................................................................... 244
Os Poderes de Deméter ............................................................... 245
A Conspiração das Mulheres ..................................................... 247
O Poder do Conhecimento .......................................................... 248
A Mãe e a Filha .......................................................................... 249
O Poder de Perséfone: A Consciência Brilhando na Escuridão 250
13

Perséfone e Dionísio: A Consciência Casada com o Êxtase .. 253


O Presente da Agricultura .......................................................... 254
Sexualidade, Perda e Reconciliação .......................................... 255

9 - O Corpo Vivo .....................................................................................258

A Teoria de Gaia ......................................................................... 259


O Calor do Corpo ........................................................................ 260
Suposições Culturais ................................................................... 261
Estendendo a Definição da Vida ................................................ 262
O Corpo Desmembrado ............................................................. 263
Um Universo Autocriado ........................................................... 264
A Vida Como Cooperação .......................................................... 265
O Lugar da Mente ........................................................................ 267
O Nosso Lugar ............................................................................ 268
Uma Crise Anterior..................................................................... 270
Uma Visão Diferente .................................................................. 270
Desmembramento e Unidade .................................................... 271
Um Ritual e um Sonho .............................................................. 272

Bibliografia .............................................................................................274

Indice Remissivo .....................................................................................285


14
15

Relação das Figuras

1. Esboço do templo de Ggantija, Gozo, Malta, c. 4000 a.C. - p. 31


2. Estatueta feminina em forma fálica encontrada em Starçevo,
Hungria, c. 5600-5300 a.C. – p.39
3. Desenho de uma cabeça de touro da Sardenha, c. 4000 a.C., com
parada com o útero humano e as trompas de Falópio. – p. 40
4. O "xamã" e o bisão, caverna de Lascaux, França, c. 15000 a.C. – p. 86
5. Desenho de mulheres grávidas dançando, sem cabeça e com cabeça de
pássaro, Pêch-Mèrle, França, c. 20000 a.C. - p. 92
6. Desenho do caminho do Sol. - P. 110
7. Estatueta da Deusa de Cucuteni — uma cultura da Romênia — c.
4300 a.C. – p. 111
8. A coroa de Isis comparada com os Chifres Cretenses da Consagra
ção de Cnossos, Creta. – p. 124
9. Desenho do nó sagrado de Cnossos, Creta, c. 1700 a.C. – p. 128
10. O labirinto de Creta. - p. 170
16

Relação das Fotos


1. O marco de pedra em Newgrange, Irlanda, c.3300-3200 a.C.
2. O Monte da Serpente no sul de Ohio, possivelmente c. 1000 a.C.
3. A Deusa Nana, criada por Niki de St. Phalle.
4. A formação montanhosa de "Artemis" em Brauron, na Grécia.
5. Fissuras naturalmente "escavadas" nas rochas próximo a "Teaching
Rock", em Peterborough, no Canadá.
6. Espirais entalhadas no templo de Tarxien, Malta, c. 3000 a.C.
7. Pinturas de touros na caverna de Lascaux, França, c. 15000 a.C.
8. A "Vênus de Willendorf", Áustria, c. 30000 a.C.
9. A "Vênus de Laussel", França, c. 15000 a.C.
10.Stonehenge, Inglaterra, c. 2800 a.C.
11.Pedras de pé em Avebury, Inglaterra, c. 2500 a.C.
12.Arcos em um marco dopassage moundem Dowth, Irknda, c. 3500 a.C.
13.Glastonbury Tor, Inglaterra.
14.Vaso da cidade escavada de Kato Zakros, Creta, c. 1400 a.C.
15.Machados duplos do Museu de Heraklion, Creta.
16.O Monte Jouctas visto de Cnossos, Creta.
17.As ruínas de Gournia, Creta, c. 1500 a.C.
18.O Monte Ida visto de Festos, Creta, c. 1700 a.C.
19. Os picos de Fedríades e a pedra de Gaia, Delfos, Grécia.
20.A grande pedra no Velho Templo de Atena Pronaia, Mármara,
Grécia, c. 700 a.C.
21.O Portão do Leão, Micenas, Grécia, c. 1350 a.C.
22. O Recinto Sagrado de Elêusis, Grécia, c. 400 a.C.
23. Monte de pedra nos bosques do Estado de Nova York.
17

O Corpo da Deusa é dedicado a todos aqueles


que viajaram comigo aos lugares sagrados:
Edith Katz, Maryanne-Renee Vrijdaghs, Helle Agathe Beierholm,
Witta Jensen, K. Frank Jensen, Sol Pollack, Tana Dineen,
Ann Ogborn,
Susan Coker, Alma Routsong, Leslie Hunt, Fiona Green,
Margaret McWilliams, Marian Green, EvaM. Donna Hutchinson,
Fará Shaw Kelsey, Paul Shaw Malboeuf...

e especialmente Maria Fernandez, que me ofereceu amizade,


um abrigo
e uma semente de romã, tudo no momento certo.
18

Agradecimentos

Alguém certa vez definiu um especialista como uma pessoa que sabe
cada vez mais sobre cada vez menos. Enquanto escrevia este livro, muitas
vezes achei que sabia cada vez menos sobre cada vez mais. Ao tentar seguir
o tema do corpo da Deusa, baseei-me demasiado na obra de muitas pessoas
de diversos campos de estudo e expressão — historiadores, arqueólogos,
artistas, sacerdotisas, cientistas, psicólogos, adivinhadores, romancistas,
teólogos, classicistas e simplesmente amigos que têm viajado e realizado sua
própria pesquisa. Se interpretei mal as idéias ou as descobertas das pessoas
— e estou certa de que o fiz, apesar de todas as melhores intenções —, a culpa
é inteiramente minha, e peço desculpas por isso. Quando me afastei da
pesquisa das outras pessoas e me lancei em caminho próprio, tentei deixar isto
claro. Se turvei o trabalho de alguém com minhas próprias especulações, mais
uma vez peço desculpas.
Este livro não pretende ser um compêndio de história ou um trabalho
acadêmico, e muito menos de teologia (ou tealogia). A religião da Deusa
não é simplesmente um tema da história, mas está vivo hoje na vasta
pesquisa de pessoas como Marija Gimbutas, e também na poesia e na arte, e
nos rituais que as pessoas realizam sozinhas e em grupos, em templos e
cavernas, e também em seus próprios quintais e cozinhas. Tentei
homenagear todos estes níveis da religião ressurgente da Deusa e expressar
minha gratidão por todas as contribuições que tais pessoas proporcionaram,
tanto os acadêmicos quanto os adoradores, e sobretudo aqueles cujo desejo
de saber mais conduziu-os a uma rigorosa pesquisa, assim como aqueles que
acharam que a academia os conduziu à crença e a um compromisso
apaixonado.
Estes acadêmicos merecem menção especial. O primeiro é Marija
Gimbutas, a arqueóloga que reuniu sua ampla pesquisa com a coragem de se
afastar da ideologia acadêmica oficial e reconhecer a realidade de uma
religião complexa e diversificada em toda a arte e nas ruínas escavadas da
Europa pré-histórica. A segunda escritora, menos conhecida atualmente, é
Gertrude Rachel Levy. Quando comecei a ler os escritores modernos que
falam sobre a Deusa, tive acesso a uma obra sempre mencionada desta
19

autora: The Cate of Horn. Escrevendo meio século atrás, Levy conseguiu a
proeza de reunir e apresentar uma quantidade fantástica de informações e,
ao mesmo tempo, sintetizá-las e pensar em conceitos originais e amplos.
Foi Gertrude Rachel Levy quem primeiro observou que a forma dos
templos pré-históricos de Malta formava o contorno do corpo de uma
mulher. A última personagem eminente é Vincent Scully, autor de The Earth,
the Temple, and the Gods. Recentemente aposentado, Scully foi um respeitado
professor de história da arquitetura da Universidade de Yale. Ao voltar sua
atenção para os templos gregos e os primeiros palácios de Creta, perseguiu
sempre a verdade da paisagem, com uma paixão pelas formas sagradas vivas
na beleza da Terra.
20

INTRODUÇÃO

A Viagem Espiralada das Imagens

No fim do século XX testemunhou algo realmente fantástico — a


reemergência de uma religião aparentemente morta durante tantos anos
que o mundo quase havia se esquecido de que ela um dia existira. Essa
religião é a adoração de uma Grande Deusa que pode ter muitos nomes e
imagens, mas sempre representa a divindade como uma presença feminina:
doadora da vida, protetora, às vezes apavorante, mas sempre ligada à
natureza e à verdade dos nossos corpos. E não apenas os corpos femininos.
Os homens também têm descoberto uma realidade espiritual na imagem de
uma Deusa viva e abrangente que cria o mundo e toda a vida a partir do
Seu corpo, não apenas uma vez muito tempo atrás, mas continuamente, nos
processos desdobrados da existência.
Em parte, essa religião ressurgiu através das descobertas da arqueo-
logia. À medida que as escavações revelavam cada vez mais do passado
humano, iam também revelando uma grande abundância de imagens
femininas: entalhes nas paredes das cavernas; símbolos da vulva marcados
em tumbas como que para prometer o renascimento a partir do corpo
divino; afrescos das Deusas revelados por adoradores em um jardim do
paraíso; estátuas de mulheres selvagens de seios nus segurando serpentes;
estatuetas de 30.000 anos de idade de mulheres com seios e quadris
enormes; Deusas dando à luz serenamente sentadas em tronos ladeados
por leões; templos com forma semelhante à silhueta idealizada de uma
mulher. Quando estas imagens foram ligadas ao conhecimento existente
das Deusas na índia, no Antigo Egito, no México antes da conquista, na
África e em outros lugares, as pessoas perceberam, como em um
vislumbre de insight sagrado, que toda a humanidade terrena outrora
adorara a divindade sob a forma de uma mulher, e continuara a fazê-lo
durante milhares, até dezenas de milhares de anos.
21

Descobrir que alguma coisa já existiu um dia possibilita que ela


venha a existir novamente. Se a humanidade adorou as Deusas no pas-
sado, por que não o faria agora? E como essa adoração diferiria da religião
de uma cabeça de Deus masculina, separada do mundo? Algumas pessoas
começaram a escrever livros sintetizando toda essa informação revelada
pela arqueologia. Outras esculpiram novas estátuas, construíram templos
ou viajaram até cavernas ou ruínas para reviver antigos rituais. Outras
ainda formaram círculos de adoradores em suas comunidades para saudar
as estações do ano e os momentos especiais de suas vidas. De tudo isso,
emergiu algo novo e totalmente moderno, mesclando o conhecimento do
passado com a percepção de quem somos agora.
Na melhor das hipóteses, essa alguma coisa não somente substitui a
Deusa pelo Deus, mas também explora as possibilidades da religião
baseada no corpo. Enquanto um Deus deve criar o mundo a partir do
espírito puro, a Deusa irá criá-lo da maneira que as mulheres sempre o
fizeram, dando à luz através do Seu fértil útero. Este simples fato enseja a
emergência de uma religião que aceita a natureza e nossos corpos como
eles realmente são, não como inimigos, ou prisões da alma, ou tentações
do mal, mas como criações milagrosas, com todas as suas forças e
fragilidades.
As pessoas às vezes criticam os adoradores contemporâneos da
Deusa por misturar pesquisa e fantasia, arqueologia e realização dos
anseios. Parece-me que essa crítica não capta o principal. A religião da
Deusa moderna não está tentando recriar as condições exatamente como
elas eram na Idade da Pedra, na antiga Creta ou em qualquer outra
época ou lugar. Ao contrário, procuramos aprender com essas pessoas
como podemos dar vida à Deusa de uma maneira que corresponda à
nossa própria experiência. Para mim, a qualidade doméstica da moderna
adoração à Deusa, especialmente os rituais, sempre foi uma de suas
atrações.
Em, The Laughter of Aphrodite, Carol Christ descreve um ritual que
ela e Alexis Masters realizaram em homenagem a Afrodite na Ilha de
Lesbos, lar de Safo, a grande poetisa de Afrodite. Quando se encami-
nharam ao templo, escolheram os objetos e as roupas que usariam para o
ritual a partir de coisas que encontraram nas lojas e ao longo do
caminho — um cartão-postal de uma mulher tecendo, um abridor de
garrafas do Deus Príapo com uma gigantesca ereção e um vestido branco
com fios dourados. Naquele momento, as duas mulheres perceberam que
precisavam se vestir de branco e dourado para solicitar à Deusa iniciação
22

em Seus mistérios. Dirigiram-se então a um armazém em busca de vinho


tinto, retsina1 dourada, biscoitos dourados, leite, mel e iogurte, todos
alimentos que simbolizam o corpo da Deusa.
Usando os objetos que encontramos e as características de nossas
vidas cotidianas, permitimos que o nosso instinto religioso se una à nossa
realidade imediata. Quando eu e Maria Fernandez fomos a Elêusis para
celebrar o primeiro dia dos Mistérios (durante 2.000 anos o principal
evento religioso do mundo antigo), consultamos vários livros sobre o que
os gregos e os romanos levavam. Mas também levamos alimentos, pedras
encontradas ao longo do caminho, flores silvestres e objetos de nosso uso
pessoal. Assim, Elêusis, local tão carregado de história, tornou-se real em
nossas vidas.
Ao escrever este livro, baseei-me em trabalhos acadêmicos, na arte,
em especulações e em minhas experiências pessoais do sagrado, tanto em
locais assim reconhecidos como em outros, incluindo o bosque próximo à
minha casa. Enquanto o escrevia, tentei ao máximo manter uma
distinção entre todas essas fontes, especialmente entre as informações
históricas e minhas próprias idéias. Não obstante, todos esses fios se
entrelaçam na narração, como acredito que aconteça na própria religião da
Deusa.
Originalmente, concebi este livro como uma série de viagens a
locais sagrados. Eu visitaria os templos da Grécia e as cavernas pré-
históricas da França, e descreveria os locais e sua importância. Quando
comecei a pesquisar o passado e a arqueologia desses lugares, o livro
tomou uma forma diferente. O mundo da Deusa tornou-se um mundo de
conhecimento e idéias, de história e de arte, um mundo de imagens,
brilhando diante de nós com todo o seu significado e mistério. Em minha
jornada por este mundo afora, as excursões físicas permaneciam
importantes, pois podemos descobrir com nossos próprios olhos coisas
que jamais vamos encontrar na pesquisa. Ao mesmo tempo, porém, o
conhecimento coletivo e as especulações de todos que nos antecederam
podem nos abrir para maravilhas inesperadas. E o simples pensamento
também se torna vital. A consciência religiosa se desenvolve enquanto
ponderamos sobre o significado de uma imagem, as conexões entre a
crença religiosa e a vida cotidiana, ou o que pode significar para as
pessoas basear seu conhecimento da verdade sagrada na realidade direta
dos corpos.

1
Resina aromacizada com vinho grego. (N. da T.)
23

É pouco provável que algum livro sobre o sagrado possa cobrir


todos os aspectos da nossa abordagem desta experiência. Isto se torna
especialmente verdade em um livro baseado parcialmente em viagens
pessoais. No início deste trabalho, decidi me concentrar antes de tudo nos
lugares que iria realmente visitar. Como nessa época eu estava morando
na Europa, o livro se baseia muito nas antigas tradições das Deusas
européias (e em menor extensão das Deusas norte-americanas), deixando
de fora fontes importantes como a índia, a China, o Japão, a América
Central e do Sul, e as muitas tradições da África e da Diáspora africana.
Embora tenha reunido o conhecimento, as idéias e as maneiras de ver de
minhas leituras sobre outras tradições, citando-os sempre que me pareceu
correto fazê-lo, mantive-me primordialmente fiel a minha decisão de
equilibrar a pesquisa com as viagens.
Este enfoque na experiência direta significou que não tentei discutir
cada Deusa dentro das tradições européias. Por exemplo, os capítulos
sobre a Grécia referem-se pouco a Atena e menos ainda a Hera. Confiei
em minha intuição para me conduzir àquelas Deusas que expressavam
mais a idéia do corpo.
O livro em si é uma viagem, que cobre desde a Idade da Pedra até a
ciência contemporânea. Mas mesmo que se mova através do tempo, não é
uma viagem linear. Ao contrário, eu a descreveria como uma espiral,
constantemente voltando para si mesma a fim de olhar as imagens
previamente vistas de uma maneira nova. Em sua grande obra The Earth,
the Temple, and the Gods, o professor Vincent Scully detalhou o processo
dos iniciados que viajaram de Atenas para Elêusis para celebrar os
Grandes Mistérios das Deusas Deméter e Perséfone. Scully descreve como
as imagens naturais do poder da Deusa (uma montanha em forma de cone,
um pico com uma fissura dupla) apareciam, desapareciam e reapareciam
novamente em diferentes etapas da viagem. De uma maneira muito
semelhante, diferentes imagens, temas, idéias e até personagens
aparecem neste livro, contam-nos suas mensagens e depois desaparecem
— para reaparecer mais tarde, mais detalhados ou em outro contexto.
A própria religião da Deusa não é linear. Mas também não é sim-
plesmente um círculo, no sentido de algo estático que fica se repetindo
sem se modificar. Seus ciclos são aqueles de uma progressão em espiral,
deslocando-se para a frente e para trás novamente. Durante dezenas de
milhares de anos, o poder criativo do corpo feminino divino dominou a
consciência espiritual. Com a ascensão dos Deuses guerreiros e da religião
transcendente desligada da natureza e dos corpos, a Deusa pareceu
24

desaparecer. Em muitos lugares, nem mesmo a memória sobreviveu.


Entretanto, Ela de repente voltou para nós nesta mais improvável das
épocas. Embora parte deste retorno envolva aquelas descobertas da ar-
queologia e a decodificação de textos e imagens antigos, Ela não c a
mesma Deusa de milhares de anos atrás. Uma religião baseada no corpo
divino é uma religião de mudança, desse movimento espiralado que volta e
se abre para novas experiências. Como um corpo individual, a própria
Terra muda, não apenas ciclicamente com as estações, mas também de
uma maneira mais permanente, durante longos períodos de tempo, como
as montanhas surgindo ou sendo desgastadas pela erosão, as geleiras se
erguendo e desmoronando, e mesmo a atmosfera alterando sua composição
química.
Embora acompanhe a Deusa desde a Idade da Pedra até a ciência
moderna, o livro começa com uma preparação para a viagem. Os dois
primeiros capítulos apresentam uma meditação sobre o próprio conceito do
corpo da Deusa. Examinam o que significa, para nós, existir enquanto
corpos, ou permitir que a nossa consciência do sagrado emerja da união da
natureza com a imaginação. Estes dois capítulos movem-se através de todo
o mundo de imagens e idéias que envolvem o corpo divino.
A viagem se inicia propriamente no Capítulo 3, quando descemos às
cavernas da Antiga Idade da Pedra, na Europa. Lá, encontramos as grandes
pinturas feitas 20.000 anos atrás e também os muitos entalhes do corpo
feminino, alguns com imensos seios e quadris, alguns sem rosto ou
inteiramente sem cabeça, e até alguns com longos pescoços fálicos que nos
levam a ponderar sobre a fusão do masculino e do feminino no corpo divino.
Os Capítulos 4 e 5 dedicam-se à Nova Idade da Pedra e às grandes
mudanças que ocorrem com o desenvolvimento da agricultura. O Capítulo 4
desloca-se entre os círculos de pedra, gigantescas fortificações no caminho,
e outros monumentos que permanecem tão misteriosamente na paisagem
natural da Europa e de outros locais. O Capítulo 5 examina os padrões
culturais dessa época, especialmente a evidência de sociedades que viveram
durante milhares de anos sem violência. O capítulo termina com a pergunta
de como e por que a civilização da Deusa se perdeu, não somente na
Europa e no Oriente Médio, mas também em locais tão isolados um do
outro, como o Japão e a Terra do Fogo.
O Capítulo 6 nos leva a Creta, onde a religião da Deusa européia
abriu-se para seu último e maior florescimento. Aprendemos a olhar
profundamente as formas do corpo vivas na natureza. Da Creta "Minoana" nos
deslocamos para a cultura posterior dos gregos, onde as Deusas arcaicas
25

conseguiram sobreviver e assumiram novos significados, apesar de sua


transformação nos personagens menos importantes da mitologia clássica.
No Capítulo 7, encontramos todo o poder dessa sobrevivência quando
nos aproximamos dos Mistérios de Elêusis. Tentei observar profundamente
esses ritos, buscando a Deusa Perséfone, cujo nome significa "aquela que
brilha na escuridão", pois ela surge brilhante nos medos da escuridão e
curiosa sobre nossas próprias vidas. Após escrever o primeiro rascunho deste
livro, comecei a revisá-lo e descobri uma personagem importante
emergindo, como a heroína de um romance. Trata-se de Perséfone, que se
lança repetidamente para diante nos primeiros capítulos, mostrando-se e
depois recuando mais uma vez até o momento apropriado para Sua plena
aparição.
No mito, a Deusa sem nome aparece primeiro como uma inocente
Kore ("virgem" ou "filha") colhendo flores, quando a Morte sai rugindo do
chão para arrastá-la para as Profundezas. Em vez de aceitar o que os Deuses
descrevem como irreversível, até adequado, a mãe de Perséfone, Deméter, a
Deusa das Sementes, detém o crescimento de toda a vida vegetal até que
Zeus concorda em ordenar à Morte que permita o retorno de Perséfone. Mas
Perséfone não volta a mesma de antes. Encontrou Seu verdadeiro poder como
a Rainha da Morte, voltando às profundezas durante parte de cada ano para
brilhar na escuridão. Quanto mais meditamos sobre esta história, mais
descobrimos muitas de nossas próprias questões: os ciclos do ano; nosso
próprio medo da morte; a separação e a reconciliação com nossas mães; a
luta contra a brutalidade do estupro e do incesto; a coragem para enfrentar a
autoridade institucionalizada; e até questões mais amplas. O mito simboliza
o próprio retorno da religião da Deusa da aparente morte após 5.000 anos de
domínio de um Deus transcendente separado do mundo. Finalmente,
podemos descobrir, nesta história da Mãe e da Filha separadas por um
homem invasor, a origem codificada da sexualidade e da morte.
A descoberta de realidades biológicas na história de Perséfone conduz
ao capítulo final e à "Teoria de Gaia" da ciência contemporânea. Nesta idéia
da Terra como um único organismo vivo, descobrimos que a espiral
realmente retornou e se abriu, trazendo de volta, de uma maneira nova e
vital, a Deusa pré-histórica. Tanto os Mistérios de Elêusis quanto a Teoria de
Gaia referem-se à nossa profunda percepção do mundo como composto de
fragmentos isolados, cada um aparentemente isolado, mas todos eles, todos
nós, conectados em algum nível fundamental. A biologia moderna nos faz
voltar àquela mesma idéia representada pela Deusa Perséfone surgindo da
terra da morte — de que estamos todos vivos, todos ligados uns aos outros,
26

aos animais e às plantas, às estrelas e às cinzas, juntos no corpo da Deusa.


27

1 - Como a Deusa Pode Ter um Corpo?

Como nos lembramos. Como sua memória trouxe-me a minha memória. Como eu
sabia o que ela sabia, como seus seios também perceberam, seu corpo, como estávamos
inundadas de memória.
Susan Griffin

Nós entramos no corpo da Deusa como entraríamos em um país


estrangeiro: inseguros, excitados porém confusos, maravilhados diante dos
costumes desconhecidos e de uma língua estranha. Como falamos destas
coisas? Como os povos antigos encaram o corpo divino e sua realidade física?
E o que vamos descobrir de nós mesmos e dos nossos corpos, quando
abrirmos nossa consciência e nossas vidas à Deusa?

O Nascimento de Artemis
O que significa escrever sobre o corpo da Deusa? Preocuparmo-nos com o
corpo, pensar na idéia, tentar conceber (uma palavra que se origina dos
corpos das mulheres) Deus(a) tendo um corpo? Para muitas pessoas, a idéia
é absurda, quase impensável. Nos anos que passei escrevendo este livro, eu às
vezes dizia às pessoas em que estava trabalhando e só recebia de volta um
olhar confuso e a pergunta: "Como a Deusa pode ter um corpo?"
Um calendário sagrado publicado algum tempo atrás relacionou, entre
os rituais sazonais pagãos e os feriados das religiões oficiais, os nascimentos de
várias divindades da Antiga Grécia e de outras culturas. O dia 28 de abril foi
apresentado como o nascimento de Buda e da Deusa Artemis (cujo corpo
preenche estas páginas até mesmo quando se ergue tranqüilo nas colinas e
montanhas da Grécia). Para homenagear Artemis, fui a uma cachoeira nas
montanhas próximas da minha casa. Quando contei às pessoas o que havia
feito, muitas delas me olharam surpresas, ou até riram. "Artemis tem uma
data de aniversário?" — perguntaram. Algumas dessas pessoas eram pagas,
que, na verdade, adoravam Artemis como Diana, a deusa romana da Lua.
28

Outras não se surpreenderam com o fato de Buda ter um aniversário, pois,


afinal, ele foi um homem mortal, o Príncipe Sidarta. E a maioria dessas
pessoas comemorava o aniversário de Yehoshua ben Miryam, um judeu radical
que dizia ser filho de Deus, e cujos seguidores diziam ser o Messias, ou Cristo.
Além disso, a idéia de uma Deusa, um ser totalmente divino, realmente ter
nascido era por elas considerada bizarra. Podiam ter lido mitos sobre o Seu
nascimento, junto com seu irmão Apoio — mas um aniversário de verdade?

Quem E o "Eu" que Possui um Corpo?


Para a maioria das pessoas que pensam em todas essas coisas, os mortais
possuem corpos; as Deusas, não. E isto que nos torna mortal, o fato de
estarmos "confinados" a nossos corpos. Muitos anos atrás, uma amiga minha
(que passou muito tempo meditando e salmodiando) escreveu em uma parede:
"Se você possui um corpo, deve ter feito algo errado. RS.: Sou uma mulher."
Mas quem é esse "eu" que possui um corpo? De que maneira estamos
separados desses corpos que se movimentam, dormem, comem, fazem amor,
choram e dão à luz? A própria linguagem que usamos nos isola da realidade
do corpo. Estamos falando do "meu" corpo, dos "meus" braços, pulmões ou
rosto. Quem possui tais objetos físicos?
O corpo é a nossa realidade básica. A partir da nossa conexão com
o mundo externo, ele fornece tudo aos nossos sistemas artístico e
intelectual. Por exemplo, as pessoas que estudam simbolismo têm
frequentemente observado a maneira como o número quatro aparece em
muitas culturas — a paisagem dividida em quartos, quatro estações,
quatro "elementos" (em geral, fogo, água, ar e terra), quatro cores
espirituais básicas (normalmente ligadas às quatro direções) e assim por
diante. Daí, então, passam a concluir que o número quatro é de alguma
forma fundamental para a mente humana, ou possivelmente está
incorporado em algum lugar nos lobos do cérebro. Mas há uma explicação
mais simples sobre a importância do quatro, uma explicação relacionada
aos nossos corpos e ao caráter físico — o corpo — da Terra. Há quatro
estações, ou antes, quatro pontos solares do ano, os solstícios e os
equinócios. Não se trata de invenções, mas de fatos da nossa existência. Se
ficamos de pé, eretos, nossos corpos nos conduzem a quatro direções, pois
podemos olhar adiante de nós, girar o corpo e olhar atrás de nós, e estender
nossos braços para a direita ou para a esquerda.
E, na verdade, há também quatro direções na natureza, indepen-
dentemente de nós. A Terra gira sobre um eixo, criando pólos ao norte e
29

ao sul. Nos equinócios, o Sol nasce no leste, ou seja, a um ângulo de


noventa graus do eixo polar, e se põe no oeste, mais uma vez a um ângulo
de noventa graus. Se a lua cheia cai no equinócio, podemos perceber as
quatro direções diretamente em nosso corpo. No poente, fique de pé com
os braços estendidos lateralmente. Se apontar sua mão direita para onde o
Sol está se pondo, sua mão esquerda apontará para o ponto de nascimento
da Lua, e seu rosto estará de frente para o norte, com o sul diretamente
atrás de você.
Podemos pensar em um "símbolo" como uma imagem que abre a
nossa consciência para diferentes maneiras de entender. Um símbolo sugere
idéias, reúne conceitos e percepções diferentes. Toca alguma parte de nós que
não podemos explicar facilmente ou colocar em palavras. Os símbolos e as
imagens fazem todas essas coisas porque têm sua origem nos corpos — em
nossos próprios corpos, nos corpos dos animais ou em características do céu
ou da Terra. Sabemos que um símbolo nos afeta naquele nível profundo
quando nosso cabelo se eriça na nuca ou ficamos arrepiados ou
sexualmente excitados. Apesar disso, ainda descrevemos os símbolos como
abstrações intelectuais.
Assim como tende a separar o corpo da mente — ou da alma —,
nossa linguagem também inclui, quase como alguma camada enterrada,
uma identificação da natureza e dos corpos das mulheres. Estamos falando
da Mãe Terra — ou Mãe Natureza —, referimo-nos às nações (sem falar nas
batalhas) como "elas", podemos até batizar os furacões com nomes
femininos. (Reclamações das mulheres alteraram a prática, e agora se
alternam nomes masculinos com femininos, mas ninguém sugeriu aboli-los
totalmente.) O elo entre a natureza e os corpos das mulheres desloca-se
também em outra direção. Os seios das mulheres são descritos como
colinas, as vaginas como selvas ou pântanos, ou até mesmo vulcões. Para a
maioria de nós, entretanto, tudo isso são metáforas, variedades de
expressão. A Deusa não pode ter um corpo.

Uma Religião de Realidades Básicas


Pensar no corpo da Deusa é pensar em nossos corpos. Pensar no nascimento
de Artemis é recordar nossos próprios nascimentos. Na melhor das
hipóteses, o recente (re)despertar da religião da Deusa é uma religião, e um
movimento, de realidades básicas, de nascimento e morte, dos ciclos da Lua
e do Sol, da menstruação e da gravidez, da excitação e do orgasmo. Gertrude
Rachel Levy, autora de The Gate of Horn, caracterizou a religião como "a
30

manutenção de um relacionamento contínuo". Este relacionamento fracassa


e a religião se transforma em superstição, ou talvez filosofia (ou
psicologia), quando perdemos esse relacionamento original para o divino no
mundo físico, quando as idéias e os símbolos se desligam dos corpos.
O corpo permanece nossa verdade fundamental. Com isso, não me
refiro apenas ao corpo humano. A Deusa africana Oya expressa-se como
relâmpagos e rios. As Deusas pré-históricas da Europa e do Oriente Médio
assumem as formas de peixes, abelhas, árvores, sapos ou abutrês. Para nós,
hoje em dia, tais imagens parecem estranhas, até infantis. Estamos
acostumados a pensar em Deus como uma abstração. Mas essas imagens não
eram arbitrárias, muito menos triviais. Elas se originaram de um
conhecimento profundo e específico dos animais e das plantas, e dos
processos da vida. Esse conhecimento uniu-se a uma consciência espiritual,
uma sensação de que a realidade divina movimentava-se nas vidas das
pessoas em todos os momentos. Como algo natural, real, unir o
conhecimento da existência física à intuição de que a espiritualidade fluía
através de toda experiência.
Esse relacionamento contínuo estendia-se a todos os aspectos da vida,
incluindo a existência cotidiana. Hoje em dia, raramente pensamos no ato de
cozinhar como algo sagrado. Podemos fazer refeições especiais para os feriados
religiosos, mas em geral apenas como uma tradição familiar. Mas quando
James Mellaart e outros escavaram uma cidade de 10.000 anos de idade
próximo à aldeia de Çatai Hüyük, na Turquia, encontraram estátuas de Deusas
com a forma de mulheres grávidas, colocadas no alto de fornos para assar pão.
Isto pode nos parecer estranho, mas pense — não é o pão, e todo alimento
cozido, um milagre? Vários ingredientes misturados, assumindo uma
determinada forma (como seria maravilhoso conhecer as formas que os povos
neolíticos davam a seus pães!), entram em um lugar quente e fechado, e algo
totalmente diferente emerge, algo nutritivo e sensualmente agradável. E
pense no milagre da gravidez, de um feto se formando e adquirindo vida,
como o pão, na escuridão aquecida de um corpo de mulher. O pão e os bebês
são da mesma forma milagrosos — divinos. Nós perdemos a percepção do
maravilhoso nas coisas cotidianas da vida justamente porque tendíamos a
enxergar Deus como abstrato, situado em algum lugar distante daqui —
separado de nossos corpos.
Ainda assim, será que o vínculo entre o pão e os bebês é realmente tão
forçado? Nós descrevemos uma mulher grávida como tendo "um bolo no
31

forno". 2Será que esta expressão pode remontar à Turquia pré-histórica? Ou


simplesmente mostra que a imaginação moderna fez a mesma associação
dos bebês com o pão que era feita na Idade da Pedra? Entretanto, há uma
diferença. A expressão moderna não inclui o elo desaparecido, a
espiritualidade. As estatuetas no alto dos fornos não exibem mulheres
comuns; exibem Deusas grávidas.

O Amor, a Sexualidade e o Corpo Divino


Até o amor tornou-se abstrato. Pensamos no "verdadeiro" amor como
uma essência pura, e no amor físico como suspeito, um truque ou ilusão,
até mesmo sujo. "Deus é amor", dizemos, mas como Deus não tem um
corpo, não devemos contaminar o amor divino com o desejo e a satisfação
físicos. Dizemos que o amor sexual nos transforma em animais e
consideramos esta uma razão para suprimi-lo. Em outras culturas e
épocas, as pessoas não separavam amor sagrado e sexualidade. Em Sua
forma inicial, Afrodite, Deusa da paixão sexual, era também uma Deusa
do nascimento, da morte, do movimento do mar e das aves do céu. Era
uma mãe da mudança e da transformação, assim como do desejo, e tinha
conexões históricas com aquelas antigas culturas centralizadas na mulher
da região da Anatólia, no oeste da Turquia. Com o passar dos séculos, os
gregos patriarcais reduziram o seu poder, limitando a sua imagem à de
uma insignificante cortesã.
Paul Friedrich, em The Meaning of Aphrodite, conta-nos que Afrodite
inspirava paixão em heterossexuais e lésbicas, enquanto seu filho Eros
excitava os homens homossexuais, isto é, os homens sem mulheres. Isso
tem alguma relação com a atitude da nossa cultura para com as mulheres,
ao chamar a sexualidade de "erotismo" e não de "afrodisia", os nomes
Afrodite e Vênus — Vênus é o nome romano de Afrodite — sobrevivendo
em termos sexuais negativos ou triviais, como "afrodisíaco" e doença
"venérea".
Quando a religião cristã assumiu o poder, os padres da Igreja bani-
ram Afrodite. Segundo Friedrich, a maioria das divindades gregas tor-
naram-se santas na nova religião — exceto Afrodite, que simplesmente
desapareceu (embora aspectos de Sua adoração — sem o sexo — tenham
sido enxertados em Maria, mãe de Jesus). Mesmo reduzida, a realidade

2
"a bua in tbt wen" — expressão da língua inglesa para indicar que uma mulher está grávida.
(N. da T.)
32

do corpo (feminino) de Afrodite ameaçava o paradoxo cristão — de uma


divindade totalmente masculina que ao mesmo tempo não possuía corpo.
O mito cristão descreve os anjos como desencarnados, desprovidos
de sexo, embora eles também sejam homens, com nomes masculinos
ainda usados atualmente, como Gabriel e Miguel. No cristianismo, a
masculinidade tornou-se distinta da sexualidade. A "Razão" passou a cons-
tituir a principal qualidade masculina, isolada, no controle do corpo, em
permanente o risco de ser poluído, especialmente pelas mulheres. A nova
religião considerava o corpo, com seus desejos animais, inimigo da razão
verdadeira. A Igreja via as mulheres como mais próximas dos animais. As
mulheres tentavam os homens e os afastavam de Deus.

Medindo o Corpo de Deus


Após milhares de anos de um Deus abstrato e impessoal, torna-se quase
impossível pensar no corpo de Deus como algo além de uma metáfora. Em
muitas culturas, no entanto, como os jainistas da índia, há uma tradição
de se ver o universo como um corpo único. As escrituras de Jain
descrevem este corpo em muitos detalhes. A idéia não está limitada à
Ásia. Na tradição esotérica judaica da Cabala encontramos a imagem de
Adam Kadmon, o cosmos como um grande ser primordial assumindo a
forma de um homem. Às vezes, os cabalistas descrevem Adam Kadmon
como hermafrodita, com características tanto femininas quanto
masculinas. (Ver Capítulo 5 para um Adão mais andrógino e outros
hermafroditas míticos.)
Adam Kadmon é uma criação de Deus, não o Próprio Deus. A
Cabala, no entanto, vai além disso, descrevendo uma idéia chamada
"Shiur Komah", expressão hebraica que significa "Medição do Corpo", na
qual os místicos tentam descobrir as características físicas de Deus.
Gershom Scholem, o grande estudioso da Cabala, descreveu esta idéia
como "absurda" e "monstruosa", embora também a descreva como
inspirada pelo Cântico dos Cânticos e sua descrição do Corpo do Amado.
Apesar de sua exploração dos mistérios antigos, Scholem era ainda um
modernista, herdeiro da tradição ocidental de Deus como um pensamento
puro desprovido de corpo físico.
É provável que Scholem soubesse que a idéia de Shiur Komah não era
privilégio dos judeus. Assim como os jainistas, com suas medições muito
precisas dos lábios, dedos dos pés, cotovelos e assim por diante, encontramos
33

em muitas culturas uma tradição do mundo físico tendo sido formado a


partir de um único corpo. Em geral, o corpo é o de uma Deusa. Em muitas
versões deste mito, Ela é desmembrada, fragmentada em milhões de
pedaços, freqüentemente em decorrência da violência masculina. Estes são
mitos das culturas dominadas por homens, e suscitam muitas questões
complexas (algumas das quais vamos considerar em capítulos posteriores).
Entretanto, além do dilaceramento ou da Deusa fragmentada, encontramos
uma profunda intuição — de que o cosmos, como tudo que nele existe, cada
pedra e cada gota de água, está vivo, tal como nós, e é feminino, como as
mães que nos deram vida.
Na verdade, os cabalistas medievais seguiram sua própria intuição de
divindade feminina. Eles descreviam um Deus andrógino, "tanto masculino
quanto feminino", como diz o Gênese, fragmentando parte de "Si" para que
algo pudesse existir para venerar e espelhar o esplendor de Deus. Este algo é
em geral considerado como feminino. Alguns o identificam com a Shekinah,
um termo bíblico que originalmente significava a "presença viva" de Deus,
ou seja, a manifestação física de Deus no santuário dos santuários. Na Idade
Média e posteriormente, Shekinah tornou-se uma presença feminina,
abrigando o fiel com suas asas. A metade feminina de Deus também recebeu o
nome de Chokmah, ou Sabedoria. Os gregos deram a esta Deusa o nome
grego para sabedoria, Sophia.

Formas Corporais na Natureza e nos Templos


Este livro começou como uma idéia para uma série de viagens. Durante
alguns anos, e através da influência de amigos, livros e do meu trabalho com
as imagens e o simbolismo do Taro, fiquei interessada na religião da Deusa
e quis tratar deste tema em meu trabalho. Eu sabia que muitas pessoas
estavam revivendo a prática das peregrinações, viajando para os lugares
poderosos e os templos antigos de muitos países. Cerca de dez anos antes, eu
havia visitado várias cavernas da França contendo entalhes de pinturas de
mais de 20.000 anos de idade. Essa experiência comoveu-me
profundamente e eu sabia que desejava voltar atrás e ver estas obras em um
contexto de conhecimento sagrado, sobretudo a idéia da caverna como o
útero da Deusa.
Quando comecei a realizar minha pesquisa, tive uma idéia surpreen-
dente. Em vários lugares, particularmente na Ilha de Malta, os templos
dedicados à Deusa tinham a forma simplificada do corpo de uma mulher —
34

ou seja, com aposentos arredondados, como seios e quadris, com um


aposento menor no fundo, como se fosse uma cabeça (ver Figura 1). O
adorador que nele entrava sentia-se como se estivesse entrando em um corpo
divino. As pessoas contemporâneas que viajaram até Malta descreveram uma
enorme sensação de proteção, até de amor.

figura l : Contorno estrutural do templo de Ggantija, na ilha de G c. 4000 a.C.

Não só as construções humanas eram vistas assumindo a forma do


corpo da Deusa. A própria ilha podia assumir essa forma se observada da
maneira correta. Em um artigo de autoria da arquiteta Mimi Lobell (o
mesmo artigo em que li sobre Malta), deparei-me com uma idéia
apresentada inicialmente por Vincent Scully, professor de história da
arquitetura da Universidade de Yale. Scully descobriu que os chamados
"palácios" da antiga Creta (o termo "palácios" deriva das suposições de uma
monarquia grega, jamais provadas) estavam situados em formações naturais
específicas. Os cretenses colocaram cada uma das grandes edificações em um
eixo (aproximadamente) norte-sul, diante de uma colina cônica, além desta,
uma montanha cornuda continha uma caverna, usada como santuário
religioso. Segundo Lobell:

O próprio local do palácio acentuava o significado da


paisagem natural como o corpo da Deusa. O vale eram seus
braços em círculo; a colina cônica, seu seio ou função
nutriente; a montanha cornuda, seu "colo" ou vulva fendida, o
poder ativo da Terra; e o santuário da caverna, seu útero que
dá à luz.
35

(Lobell, "Temples of the Great Goddess",


Heresias, Número 5)

Esta idéia me cativou. Como muitas pessoas, primeiro suspeitei que o


conceito da Grande Deusa fosse uma invenção moderna, um mito feminista.
Embora minhas primeiras leituras tenham mudado minha opinião e me
mostrado a sólida pesquisa que está por trás da imagem da Deusa, foram as
idéias de Lobell e Scully que proporcionaram à Deusa uma realidade física.
Jamais experimentei uma realidade desse tipo nas idéias religiosas
tradicionais da minha própria sociedade.
Comecei a ler e a pensar sobre a Deusa, sobre o Seu corpo. Sua
presença no mundo, a conexão com o meu próprio corpo e com os corpos
das mulheres (e dos homens) em geral. O uso cretense das cavernas como
santuários sugeria um vínculo com as cavernas de arte pré-histórica da
França e da Espanha. Se a Terra é nossa Mãe, então uma caverna torna-se
uma imagem do Seu útero e um lugar para se entrar em Seu corpo real.
Será que foi por isso que os artistas Cro-Magnon escolheram pintar e
entalhar seu trabalho nas cavernas? Não há como saber. Eles não deixaram
outro registro senão a própria arte. Apesar disso, quanto mais eu leio sobre
as cavernas, mais acho natural — e muitos outros também têm achado —
compará-las ao interior do meu próprio corpo. E quando fui com uma amiga
visitar a caverna de Pêch-Mèrle, com seus imensos túneis e câmaras, e suas
paredes embebidas de vermelho, nós duas (independentemente) nos
sentimos como micróbios dentro de um corpo gigantesco.
Em muitas áreas montanhosas, alguns picos vão se assemelhar a um
rosto de perfil, ou a uma mulher deitada de costas, e o folclore
freqüentemente vai tornar este vínculo explícito. Este uso de uma imagem
fixada pode se tornar simplista. Há outras maneiras de se considerar a Deusa
fisicamente presente na terra. Os povos nativos da América do Norte sempre
consideraram a Terra a mãe de todas as pessoas — com as "pessoas"
incluindo as plantas e os animais, além dos humanos. Quando eu era criança,
aprendi em minhas aulas de história que os homens americanos nativos
recusavam-se a se tornar agricultores porque a agricultura era um "trabalho
das mulheres". Na verdade, como vim a saber muito mais tarde, alguns
povos nativos resistiram a praticar a agricultura porque ela envolvia cortar a
Terra com o arado, um ato que consideravam igual a cortar os seios de suas
mães com uma faca.
36

A Lua e os Corpos das Mulheres


Assim como a idéia da terra como o corpo da Deusa, eu conhecia as
tradições que consideravam aspectos específicos da natureza como es-
sencialmente femininos devido à sua semelhança simbólica com as ca-
racterísticas físicas das mulheres. Muitas culturas identificavam a Lua como
uma Deusa, diretamente ligada aos corpos das mulheres. (Alguns livros vão
descrever esta conexão como uma idéia universal; entretanto, as idéias
universais raramente existem. Os antigos japoneses e alemães estavam entre
a minoria das culturas que consideravam a Lua como masculina e o Sol
como feminino.)
Mais obviamente, os ciclos menstruais da maioria das mulheres
tinham mais ou menos a mesma duração do ciclo da Lua, de nova para cheia,
para minguante, para nova. Estudos realizados em dormitórios de
faculdades e aldeias isoladas têm sugerido que um grupo de mulheres que
mora muito próximo tende a menstruar na mesma época, em geral durante a
Lua cheia ou a Lua nova. Alguns pesquisadores acreditam que esta
capacidade das mulheres para unir seus ciclos pode ter iniciado o processo
da comunidade e da cultura humana. (Para mais informações sobre esta
questão, ver Capítulo 5.)
Há também uma conexão mais sutil. A Lua se desloca através de três
fases distintas. Nasce da escuridão como uma faixa que vai aumentando
consistentemente até alcançar a magnificência da Lua cheia, e depois,
decorridos três dias, vai diminuindo, diminuindo, até finalmente morrer,
desaparecendo durante três dias, para em seguida nascer novamente. As
mulheres e os homens chegam ao mundo vindos da escuridão do útero de
sua mãe. As mulheres, no entanto, passam da infância para a fertilidade adulta
através de uma aguda divisão em suas vidas — a menarca, a primeira
menstruação. Permanecem férteis, capazes do milagre de desenvolver
crianças em seus próprios corpos, até a ocorrência (gradual) de um evento
distinto — a menopausa.
Estas fases — virgem, mãe, anciã — formam uma comparação
natural com as luas crescente, cheia e minguante. As várias Deusas
Tríplices em diferentes mitologias (especialmente as mitologias do Leste
Europeu) identificaram uma presença poderosa na moderna religião da
Deusa. As wiccans (bruxas modernas) adoram a Lua, não como um corpo
celestial, mas como uma manifestação da verdade e do poder femininos.
37

Conscientes como todo mundo de que a Lua é uma pedra que gira na órbita
da Terra, elas têm estudado mais profundamente a sua importância em
nossas vidas. Como os antigos, incorporaram-na como um símbolo da
fertilidade das mulheres.
Mas será "apenas" um símbolo? Ou alguma de suas qualidades físicas
afeta diretamente os corpos das mulheres? As pessoas às vezes consideram:
se o impulso gravitacional da Lua controla as marés, por que não controlaria
o fluxo mensal da menstruação? Entretanto, o efeito das marés sobre os
oceanos ocorre devido à grande dimensão da Terra. Ou seja, a Terra é tão
grande, que a gravidade lunar afeta o lado mais próximo da Lua de uma
maneira diferente da que afeta o lado mais distante. Esta diferença na força
da gravidade provoca as marés. Os corpos das mulheres não são maciços o
bastante para criar uma diferença tão significativa. Mas há uma maneira mais
direta da Lua influenciar a fertilidade: a qualidade especial da luz lunar.
Quando a mulher tem problemas com seus ciclos menstruais, como
períodos irregulares, os médicos em geral receitam-lhe hormônios. Nos
últimos anos, entretanto, alguns médicos (e mulheres por sua própria conta)
têm tentado uma abordagem diferente. As mulheres dormem à luz da Lua
ou de uma luz que proporcione o mesmo tipo de luz que a Lua. Em muitos
casos, seus ciclos regularizaram-se após algumas semanas.
Quando pensamos na Deusa Tríplice, tendemos a pensar na Grécia
antiga ou na Irlanda celta. Entretanto, Marija Gimbutas observou que a
imagem remonta pelo menos ao período magdaleniano, na França, 12.000 anos
atrás, pois a caverna de Abri Du Roc Aux Sorciers, em Angles-sur-Anglin, na
França, contém um relevo do que Gimbutas chama de "três presenças
femininas clássicas com vulvas expostas". A partir de 3200 a.C.,
encontramos uma imagem tríplice mais abstrata, uma espiral tríplice
magnificamente entalhada no marco de pedra situado na entrada do imenso
passage mound 3em Newgrange, no vale do Rio Boyne, na Irlanda (ver Foto
l).
Não podemos dizer com certeza se essas formas pré-históricas re-
presentam uma Deusa lunar ou as fases da vida de uma mulher. Entretanto,
elas mostram a surpreendente longevidade das imagens tríplices. E as
espirais têm sido encontradas em muitas esculturas e templos da Deusa,
possivelmente como símbolos de nascimento, morte e renascimento. A
espiral não é apenas filosófica. Embora em geral apareça na arte abstrata,

3
Tipo de passagem de acesso. (N. da T.)
38

trata-se na verdade, de uma forma fundamental da natureza, encontrada


muito mais comumente do que o círculo, que raramente aparece em outra
imagem além do Sol e da Lua. As cobras se enrolam em espirais, a água
desce em espiral, as aves às vezes voam para o alto em espiral para usar as
correntes de vento, as galáxias têm forma espiral, e os chifres dos carneiros
e de outras criaturas freqüentemente saem de suas cabeças em forma de
espiral.
Mas e quanto à quarta fase da Lua, a escuridão? A resposta óbvia é
que, assim como uma mulher morre e volta para a terra, também a Lua
morre quando desaparece na escuridão. Mas a Lua renasce após três dias (a
mesma extensão de tempo da Lua cheia), o que sugere fortemente que a
morte não é final, que a Deusa promete renascimento. Joseph Campbell
observou que muitas figuras das Deusas Tríplices vão mostrar uma quarta
figura lateral — em geral, mas nem sempre, um Deus ou um homem
mortal. Jesus permanece sepultado durante três dias, até que ressurge no
Domingo de Páscoa. O nome "Easter" (Páscoa, em inglês) deriva de Eostre,
uma Deusa alemã da primavera, cujo nome é por sua vez ligado a "estrus",
fertilidade feminina. A Terra dá à luz as plantas da mesma maneira que as
mulheres dão à luz os bebês — a partir de uma escuridão oculta. Aqui
também encontramos uma promessa de renascimento, pois as próprias
plantas que "morrem" no inverno retornam na primavera.
A Água, os Corpos das Mulheres e a Deusa
Assim como a extensão do ciclo da Lua vincula-a aos corpos das
mulheres, existem também grandes semelhanças entre o corpo feminino e os
corpos oriundos da água. Um bebê que cresce no útero de sua mãe flutua
em uma bolsa de líquido, e quando a mulher dá à luz, "as águas fluem". O
próprio nascimento envolve sangramento, de forma que encontramos dois
fluxos vermelhos — durante a menstruação e durante o nascimento.
O mar sobe e desce como os ritmos internos de uma mulher. A
própria Lua que parece governar a menstruação provoca o ritmo das marés.
Os mares são salgados, como as lágrimas e o sangue das mulheres e dos
homens. E, tanto quanto sabemos atualmente, toda a vida originalmente
veio dos mares, transformando o mar em nossa Grande Mãe.
Antes de começar este trabalho, escrevi algumas dessas coisas em
livros anteriores, especialmente em um comentário a respeito de um
baralho de Taro pintado pelo artista alemão Hermann Haindl. Ali, tentei
deixar expresso que essas coisas compunham uma realidade fundamental.
Eis o que escrevi na época:
39

Muitos povos modernos podem reconhecer todas estas


correlações. Podem até acreditar que a gravidade da Lua, de
alguma maneira "científica", afeta o potencial da mulher de
dar à luz. Mas os povos antigos viam isso de maneira
diferente. Eles consideravam a Lua, os mares e as mulheres
tudo a mesma coisa, um mistério da vida que eles adoravam
através dos rituais da Lua e das estátuas de Deusas grávidas.

À medida que continuei minha leitura e comecei minhas viagens, co-


mecei a encontrar mais conexões entre o corpo feminino e a água. Um dos
primeiros lugares que visitei foi a cidade inglesa de Bath, com seu elegante
spa, usado pelos romanos e, muito mais tarde, pelos vitorianos. Embora os
arcos e as colunas obscureçam muito da forma original do lugar, o visitante
ainda pode observar as águas aquecidas fluindo de um grande buraco na
rocha nativa. A escritora Marian Green, que me orientou no local, comentou
que a água era tingida de vermelho devido a depósitos de ferro na pedra, e
que a combinação do calor e da vermelhidão produzia uma intensa imagem
das águas do nascimento fluindo do útero da Terra.
Mais tarde, visitei Glastonbury, onde a nascente também flui em
vermelho. E li que muitas catedrais foram construídas sobre antigos
templos pagãos, que por sua vez foram construídos sobre rios submersos.
Quando fui até Silbury Hill, uma gigantesca colina feita pelo homem na
Inglaterra, milhares de anos atrás, descobri que as pessoas da Idade da Pedra
a construíram na confluência de dois rios submersos.

O Corpo no Céu
Para muitas pessoas que procuram o corpo divino na mitologia, tor-
nou-se um lugar-comum que Terra = Deusa, e Céu = Deus. Na cultura
européia, esta idéia provém em grande parte da mitologia grega e romana,
com o Deus Céu, Urano, engravidando a Deusa Terra, Gaia. Algumas
culturas americanas nativas falam no Avô Céu e na Avó Terra. Obviamente, a
dualidade reconhece os "fatos da vida", uma expressão interessante, embora
ultrapassada. Mas serão estes "fatos" do envolvimento masculino e
feminino na reprodução a verdade final da criação?
O mito grego não fala de Urano surgindo ao mesmo tempo que
Gaia. Ao contrário, a existência tem início simplesmente com Gaia, que
depois dá à luz Urano de seu corpo, onde ela teria um parceiro e consorte.
40

O corpo da Deusa torna-se a origem de todas as coisas, incluindo o


Deus Céu, cuja ruína, na verdade, tem início com sua arrogante suposição de
superioridade sobre seu criador. (Esta ruína, segundo algumas versões da
mitologia grega, envolve a separação dos genitais de Urano, da qual emerge
Afrodite — para mais informações sobre esta surpreendente história, e suas
implicações, ver Capítulo 7.) Muitas culturas têm considerado a Via Láctea
literalmente como o leite fluindo dos seios da Deusa. Elisabet Sahtouris, em
seu livro Gaia: The Human journey from Chaos to Cosmos, descreve um mito
grego da criação em que Gaia dança e a Via Láctea flui espiralada do Seu
corpo. Trata-se de uma imagem notável, quando consideramos que a Via
Láctea é realmente nossa galáxia, e os modernos telescópios têm mostrado
que as galáxias se originam a partir de um movimento espiralado, algo não
aparente apenas a partir da observação da Via Láctea.

A Emergência do Masculino
Os achados da biologia e da evolução reforçam a primazia do feminino. Os
biólogos descrevem os primeiros organismos como femininos, reproduzidos
pela separação entre a "filha" e a "mãe". No decorrer da longa evolução, a
introdução do masculino ocorre bem mais tarde, e pode ser chamada de
uma mutação do feminino.
Várias décadas atrás, os biólogos descobriram que todos os fetos
humanos começam como femininos e nos dois primeiros meses seguem um
padrão de desenvolvimento que resultaria em um bebê do sexo feminino.
Na quinta semana, desenvolve-se uma gônada indiferenciada que
eventualmente vai se transformar nos órgãos sexuais femininos ou
masculinos. Um sexo com cromossomos XX vai então desenvolver ovários
na sexta semana. Entretanto, se o feto contém cromossomos XY, o
cromossomo Y vai fazer com que as gônadas secretem um "organizador
testicular". Esta química promove a "diferenciação", ou seja, envia as
gônadas para uma nova linha de desenvolvimento, formando os testículos.
Um artigo publicado em 4 de agosto de 1992, no The New York Times,
descreve como o processo se inicia com a proteína conhecida como "fator
de determinação dos testículos" subjugando o DNA para que os diferentes
genes entrem em comunicação.
Segundo Monica Sjoo e Barbara Mor, em seu livro The Great Cosmic
Mother, no início os fetos portam possibilidades reprodutoras tanto femininas
quanto masculinas. À medida que um conjunto se desenvolve, o outro
41

degenera. Externamente, no entanto, os órgãos no começo são os mesmos,


tanto no feto feminino quanto no masculino. Poderíamos dizer que, sob a
influência dos andrógenos, o clitóris transforma-se em um pênis, e os
grandes lábios na bolsa escrotal.
Há duas maneiras de se observar esta realidade do desenvolvimento
fetal, estes fatos da vida. Uma abordagem chauvinista feminina pode
descrever os homens como uma espécie de reflexão tardia no esquema da
existência. Se os homens são ramos de uma realidade fundamental, então
são claramente inferiores. Entretanto, está implícito na religião moderna da
Deusa um respeito por todos os seres, e uma rejeição do que Riane Eisler
chama de modelo "dominante" em prol de um modelo de "parceria". Por
isso, podemos optar por uma visão mais sutil da evolução, um modelo que
acredito esteja apoiado pela religião da Deusa de nossos mais antigos
ancestrais. Ou seja, a idéia de que homens e mulheres não são espécies
estranhas, não são inimigos eternos, mas parte do mesmo ser sagrado.
As representações da Deusa na religião da Idade da Pedra mostram
um profundo entendimento de que o corpo da Deusa contém tanto o
masculino quanto o feminino. As chamadas estatuetas de "Vênus" de mais
de 30.000 anos atrás são conhecidas por suas formas femininas exageradas:
seios e quadris enormes, vulvas super desenvolvidas, às vezes separadas
em triângulos na área pubiana, nádegas esteatopígicas pronunciadas.
Menos conhecidas são as estatuetas de mulheres com longos pescoços
fálicos, ou os entalhes de cavernas mostrando apenas um pescoço muito
comprido, seios caídos e grandes nádegas, como se reduzindo a forma
humana às características essenciais femininas — e masculinas. Um chifre
de rena entalhado, datado de 15000-13000 a.C, na França, aparece
simplesmente como uma vulva acima de um longo pescoço marcado com
cortes diagonais de diversos comprimentos. Alexander Marshack
demonstrou a possibilidade de essas marcas (e outras em entalhes de ossos
similares) poderem ter contado a progressão das fases lunares e/ou dos
ciclos menstruais (ver Capítulo 3). Um entalhe muito posterior, datado de
5600-5300 a.C., na Hungria, é mais claramente hermafrodítico. O corpo
cilíndrico, com pequenos seios pontudos e um rosto comum, tem uma
distinta qualidade fálica, enquanto as nádegas pronunciadas na parte
inferior (há pequenos pés, mas não pernas) claramente se assemelham a
testículos. O resultado é uma elegante fusão das imagens masculina e
feminina (ver Figura 2). (Para outra visão da Deusa fálica, ver Capítulo 3.)
42

Figura2. Desenho de frente e costas de uma estatueta feminina de forma fálica de Starçevo, Hungria, datada
de c. 5600-5300 a.C. (extraída de Gimbutas).

As estatuetas datam primariamente do período paleolítico, ou Idade


da Pedra Lascada, período das cavernas. No neolítico, ou Idade da Pedra
Polida, encontramos o início dos templos, dos círculos de pedra e das
monumentais fortificações. Aí também encontramos combinações sutis de
imagens masculinas com formas essencialmente femininas. O artista
Michael Dames demonstrou a forte possibilidade de Silbury Hill formar a
escultura de uma Deusa gigantesca. (Vista de cima, a colina, com um fosso
de forma irregular à sua volta, lembra muito a estatueta de uma Deusa
grávida encontrada na Bulgária.) Além disso, os escavadores têm
encontrado chifres de veados adultos na colina, e também evidência de que
os trabalhadores usavam chifres de veado vermelho como pegadores. O
veado é uma criatura masculina primai, cheia de força e dinamismo.
Já examinamos (p. 31) a idéia de que os templos pré-históricos, em
Malta, formavam o contorno de um corpo feminino. Este contorno é
bastante abstrato, consistindo de formas ovais conectadas por passagens
estreitas. As estatuetas encontradas dentro dos templos mostram uma
interpretação mais realista do corpo da Deusa. Além disso, as estatuetas,
algumas das quais muito grandes, freqüentemente parecem andróginas, com
grandes quadris femininos e rostos femininos, porém com seios
completamente achatados. Longas saias agitadas escondem qualquer
sugestão de genitais. Essas estatuetas maltesas podem representar uma
43

fusão das imagens masculina e feminina, mas também podem mostrar


uma mistura mais literal dos sexos. Muitas culturas antigas escolhem suas
sacerdotisas entre homens efeminados que usam roupas femininas e
desempenham papéis femininos. Estas sacerdotisas "transexuais" (pedindo
emprestado um termo contemporâneo) podem ter demonstrado a fusão das
formas masculina e feminina dentro do corpo divino (para mais
informações sobre estas práticas, ver Capítulo 7).
Em Çatai Hüyük, seios entalhados nas paredes às vezes exibem
cabeças e presas de javalis emergindo dos mamilos. Cabeças de touros
muitas vezes aparecem nas paredes, particularmente nos aposentos de
nascimento. Aí encontramos o elo mais notável entre um animal masculino
poderoso e o corpo da Deusa. Podemos supor que o touro representasse o
poder gerador masculino, uma vez que um único touro de um rebanho
emprenhava várias vacas. Muito possivelmente, esta idéia estava em parte
subjacente nas cabeças de touros proeminentes em Catai Hüyük. O elo, no
entanto, torna-se mais íntimo, mais direcionado para o corpo, onde
observamos um desenho anatômico da fêmea humana. Por isso,
descobrimos que o útero e as trompas de Falópio portam uma incrível
semelhança com a cabeça de um touro (ver Figura 3)

Figura 3: Desenho de uma cabeça de touro de uma tumba mediterrânea em S. Lesei, Bonnanaro, Sardenha, c. 4000
a.C. (à esquerda), comparado com a forma do útero humano e as trompas de Falópio (à direita), (segundo
(Gimbutas e Cameron).

Algumas feministas têm argumentado que isto significa que origi-


nalmente o touro não representava de modo algum o poder masculino, mas
apenas a Deusa. Além disso, é impossível olharmos para um touro no campo
e não nos impressionarmos com sua força masculina. O touro, então, torna-
se um exemplo da unidade da experiência masculina e feminina dentro da
realidade física.
44

Tudo isso — os fatos biológicos e também as imagens sagradas —


sugere uma saída para a dualidade da maneira de pensar sobre os sexos, u
tendência para discutir sobre a igualdade entre os sexos ou a superioridade de
um sobre o outro. Estas duas posições aceitam a suposição do feminino e do
masculino como fundamentalmente diferentes, embora, no útero, todos os
fetos comecem iguais. Em vez de ver uma separação c um conflito essencial
entre os homens e as mulheres (que podem cooperar, mas permanecer
separados), podemos vê-los como unidos dentro do corpo divino — não
metaforicamente, ou mesmo apenas na parceria, mas nos níveis físicos mais
fundamentais.

O que É a Deusa? O que E o Corpo?


Quando iniciei este trabalho, buscava o corpo da Deusa de forma mais
literal, procurando montanhas que parecessem seios ou o perfil de uma
mulher deitada de costas. Logo, a pesquisa abriu minha mente para idéias
mais sutis. As formações da Deusa na natureza podiam exibir outras
características, como montanhas em forma de cone ou o alinhamento
cretense com o norte e o sul. Os templos e os círculos de pedra podiam
formar o corpo de uma mulher, mas também podiam funcionar como
marcadores da natureza ou observatórios astronômicos para registrar os
solstícios, equinócios ou outros momentos do ano.
Então, o que é para nós "a Deusa"? E, nesse sentido, o que é para nós
"o corpo"? Ao trabalhar neste livro, ao realizar as pesquisas, durante as
viagens que realizei sozinha e com amigos, e ao pensar no que estas coisas
significam para mim e para os outros, pouco a pouco cheguei a um
conhecimento mais amplo desses dois termos. Para mim, "a Deusa" significa
as divindades históricas femininas das diferentes culturas. Mas também
significa o ser divino, ou o poder espiritual, quando ele surge em nós
mesmos e no universo que nos cerca.
Alguns podem chamar esta realidade espiritual de Deus; outros
consideram-na um gênero impessoal, transcendente. Eu uso o termo
"Deusa" por duas razões: primeiro, ele une o nosso reconhecimento do
divino àquela longa tradição que remonta a nossos primeiros ancestrais,
com seus elegantes entalhes femininos; segundo, proporcionar ao divino um
título feminino — Deusa — enfatiza o poder de dar a vida e nos nutrir com o
leite da beleza espiritual. Hallie Inglehart Austen escreve, em The Heart of
the Goddess: "Por fim, vejo a Deusa como a incorporação do amplo espectro
45

da existência, não apenas do 'feminino'." E prossegue: "A Deusa representa


uma unidade e o todo... Todos nós, tudo que tem vida, somos divinos."
Na Idade da Pedra, a Deusa era a doadora da vida mas também da
morte; a Deusa da natureza mas também da arte; da plantação e do
crescimento, mas também dos sonhos. A Deusa é a realidade fundamental.
A linguagem torna-se aqui um espelho. Nos últimos anos, muitos
lingüistas e críticos sociais feministas têm assinalado para o poderoso efeito
que a linguagem exerce sobre a maneira como formulamos nossos próprios
pensamentos. A maioria das línguas européias e asiáticas originam-se de
estruturas patriarcais onde os homens e a experiência masculina compõem
o campo da realidade. A palavra "Deusa" deriva claramente de "Deus",
assim como "feminino" (femalé) deriva de "masculino" (male). A qualidade
derivativa da palavra "Deusa" torna difícil não ver a palavra como estrita e
exclusiva de algo da experiência masculina. Apesar disso, se usarmos a
palavra "Deus", vamos cair na cilada da rejeição cultural da experiência
feminina.
Se falamos na Deusa—e na feminilidade — como verdade funda-
mental, pode parecer que estamos apenas invertendo as coisas. Mas a
novidade da moderna religião da Deusa nos proporciona a oportunidade de
ver as coisas sob um novo prisma — de incluir em vez de excluir, de explorar
a experiência espiritual, não simplesmente limitá-la.
E o corpo? Pouco a pouco, passamos a ver o corpo como qualquer
coisa que exista no mundo. Sentados nas colinas de Delfos na Grécia,
caminhando entre as fendas de calcário próximas à "Teaching Rock" 4de
Peterborough, no Canadá, penetrando na escuridão dos passage mounds do
norte da Europa, ou participando de um ritual em um apartamento na
cidade, para comemorar a chegada da primavera, nós nos conscientizamos
de que o corpo é mais que um objeto. O corpo abrange todas as nossas
experiências. O corpo da Deusa não representa apenas as formas da Terra ou
das estrelas, mas suas características e o seu significado. O corpo é qualquer
coisa que vivenciemos como real e presente em nossas vidas.

4
A pedra que ensina. (N. da T.)
46

2 - O Corpo Visível e o Corpo Invisível


Onde quer que você esteja,
De onde quer que venha
do ser campo sagrado,
você do mar,
você que voa,
é ela que o nutre.

Hino Homérico à Terra,


Traduzido por Charles Boer

Como acontece com qualquer idéia radical, o corpo da Deusa nos atrai
pelo caráter estranho e maravilhoso do seu tema básico, evocando algo
antigo em nós mesmos que não sabíamos existir até o momento do seu
despertar. Mas uma vez que entramos nesse mundo, ele começa a se abrir,
revelando sutilezas cada vez maiores. As pessoas que adoravam a Deusa não
a viam apenas em seus corpos divinos mais impressionantes, nas conjunções
mais óbvias da natureza e da reprodução humana. Procuravam encontrá-la no
terror da morte ou na energia espiralada das serpentes. Retrataram-na nas
formas de seus templos. E quando começamos a seguir estes caminhos,
descobrimos nossas próprias ramificações e transformações ao descobrirmos
a realidade do corpo da Deusa na arte, nos mistérios do desejo e no júbilo da
contemplação.

O Corpo Visível
A Deusa tem ao mesmo tempo um corpo visível e um corpo invisível. O
visível é qualquer coisa física e substancial. O invisível surge como qualquer
coisa real mas que não pode ser tocada. Inclui esses aspectos da imaginação,
do desejo e do pensamento. O corpo sagrado envolve o Céu e a Terra, não
somente em sua existência física, mas também como expressões da
imaginação mítica. Ou seja, o mundo simplesmente existe. Quando
consideramos essa existência, e começamos a percebê-la em termos
espirituais, nós mesmos permitimos ao corpo da Deusa tornar-se visível.
47

Tanto o visível quanto o invisível são mediados pela cultura. Ou


seja, os humanos designaram alguns animais, algumas formas da natureza,
algumas imagens artísticas, algumas idéias e expressões ou alguns tipos de
fala e escrita como especialmente evocativos da realidade física da Deusa.
O corpo visível assume forma na natureza, nos templos e nas árvores,
especialmente nos bosques sagrados e em determinadas espécies de
árvores, como os ciprestes e os plátanos. Vive em todos os animais, mas
especialmente naqueles vistos como Seus companheiros ou que expressem
Suas qualidades especiais, incluindo porcos, carneiros, peixes, ursos, aves
de rapina e, especialmente, vacas, touros e serpentes. O corpo visível surge
no mar, fonte de toda a vida, cuja água salgada corresponde ao nosso
sangue. Encontramos Seu corpo nos rios e nos córregos, e na chuva, sem a
qual não podemos viver.
Encontramos o corpo da Deusa no nascimento e na menstruação,
especialmente quando atribuímos a estas funções físicas um valor sagrado e
cerimonial. Mas também o encontramos na doença e na morte, pois estas
não são erros — ou punições —, mas parte da existência. Aqui chegamos a
uma diferença fundamental entre a religião da Deusa (especialmente como
ela emerge hoje) e as religiões que nos são familiares através da nossa
educação e da história oficial. Se consideramos Deus como perfeito, imortal
e imutável, a morte torna-se uma violação e uma marca da nossa distância de
Deus. Parafraseando o graffito da minha amiga: "Se o seu corpo morre, você
deve ter feito alguma coisa errada." Mas uma vez que aceitemos a morte
como um aspecto genuíno do corpo sagrado, começamos a aceitar também a
nossa própria morte. A aceitação não vem automaticamente. Não podemos
banir o terror da morte simplesmente dizendo a nós mesmos que tudo morre
e retorna à natureza. Mas podemos nos mover nessa direção e afastar a
hipótese da culpa diante do fato da morte inevitável.
Estas não são apenas especulações modernas. Se compararmos as
miologias de Creta centralizadas na Deusa e a religião patriarcal posterior do
continente grego, obteremos uma sensação de que a idéia dos “Deuses
imortais", vivos para sempre, para sempre os mesmos, isolados da natureza
e do sofrimento humano, só se desenvolvia quando a sociedade se separava
da Deusa cíclica da morte e do renascimento. Zeus, o Pai Celeste do
Olimpo, realmente começou como um Deus da vegetação sazonal em
Creta. Segundo o folclore, Dikte, o monte cornudo cretense, é o "local do
sepultamento" de Zeus. Embora eu não tenha conseguido visitar a caverna
em minha visita a Creta, tenho esta descrição em uma carta do escritor
Samuel R. Delaney: "A boca da caverna, quando você se aproxima dela, é
48

uma grande vagina natural, inclinada para trás, com um imenso clitóris de
pedra pendente de seu centro, atrás dos lábios de pedra."

Morte
O visível e o invisível movem-se para dentro e para fora um do outro.
Encontramos este movimento no jogo entre o nascimento, a vida e a morte.
Entretanto, por mais que saibamos do esperma, do óvulo e do
desenvolvimento do feto, cada nascimento continua recriando o milagre de
algo visível — um ser humano individual — emergindo de um mistério
vasto e invisível. E com cada morte, a alma, a pessoa, retorna ao nada.
As plantas desaparecem em uma suposta morte no outono, sumindo
no mundo subterrâneo invisível, e só se tornam novamente visíveis na
primavera. Quando contemplamos a morte, temos a sensação de que o
corpo invisível da Deusa é mais vasto, e talvez mais verdadeiro, que o
visível. Mais de 90 por cento de todas as espécies que já viveram na Terra
estão extintas e, entre as espécies vivas, o número de indivíduos vivos em
cada momento é uma pequena fração daqueles que já viveram.
Isto é verdadeiro em relação a todas as espécies, exceto uma — os
seres humanos, de quem há mais vivos agora do que em toda a história.
Este simples fato provavelmente distorce — mais que qualquer outro
aspecto de nossas vidas — o nosso relacionamento com a natureza e com
a nossa própria existência. Não somente abarrota aquelas partes do
mundo propícias à vida humana, mas também nos permite negar o local
dominante da morte no mundo natural.
A distorção, no entanto, é um fenômeno moderno. Durante a maior
parte da história humana, os mortos sempre excederam em número os
vivos. E se hoje são mais numerosos, talvez possuam também mais poder
espiritual. Afinal, a vida é curta, mas a morte é eterna. E a vida é cheia de
limitações. Nós, os vivos, podemos controlar o tempo, ou desastres
naturais como os terremotos. Não podemos adivinhar o futuro. Mas é
possível — apenas possível — que os mortos possam. Muitas culturas têm
atribuído grande poder aos ancestrais ou a outras figuras mortas há muito
tempo. Nos mitos, o herói frequentemente vai visitar a Terra dos Mortos
em busca de conhecimento ou de ajuda. Os maiores mágicos são aqueles
que podem despertar espíritos mortos.
A primazia da morte emerge de uma maneira incomum na
cosmologia do povo de Bella Coola da Colúmbia Britânica, como conta
Joseph Campbell em The Way of the Animal Powers. Para o povo de Bella
49

Coola, o Sol, conhecido como "Nosso Pai", gerou a humanidade atuando


junto com uma Deusa chamada Alkuntam. Entretanto, apropria Alkuntam
era filha de uma Deusa mais primal, uma figura canibal que devora os
cérebros dos seres humanos. Os dois filhos de Alkuntam inspiram um
frenesi canibalístico nos seres humanos, e por isso a sociedade humana é
cercada pela destruição.
Através do canibalismo, o terror invisível da aniquilação emerge
no mundo visível. O ato de comer uma pessoa morta destrói a inte-
gridade dos corpos visíveis. Mas algo mais acontece além disso. Não
apenas a vida é destruída, mas também as estruturas e os costumes
sociais, o verdadeiro recipiente da civilização. Nossa civilização moderna
convenceu-se de que a moralidade e as convenções da civilização são de
alguma forma a realidade básica. A maior parte das pessoas (em
reconhecido que impomos a nós mesmos estruturas sociais que nos
possibilitam viver juntos. Através das ações dos prestidigitadores ou dos
palhaços sagrados — ou ainda do canibalismo —, as pessoas permitem
que a selvageria não reprimida da vida coexista com a civilização.
Campbell relata a descrição de Ruth Benedict de uma iniciação na
sociedade canibal dos kwakiutls (como os bella coolas, os kwakiutls origi-
nam-se do noroeste do Pacífico). O iniciado possuído morde os especta-
dores, e "antigamente", segundo Campbell, chegava até a consumir
partes dos escravos assassinados. Mas o próprio ato que o iniciava no
poder sagrado do mundo espiritual dos kwakiutls também o aviltava para
as relações humanas, de modo que ele tinha de ficar isolado, em um
quarto pequeno, durante até quatro meses, guardado por um Urso
Dançarino. Ao aparecer, fingia se esquecer como é ser humano, e
reaprendia a andar, a falar e a comer.
Vários tabus sociais podiam durar muitos anos, até um cerimonial
do inverno, em que um velho atuaria como "isca" para o canibal. Quando se
aproximava do velho, como que para mordê-lo, o canibal se via cercado,
sendo então atraído a uma casa onde uma mulher dançava nua com um
cadáver nos braços — oferecendo-lhe, em outras palavras, a dupla força
da vida, de comida e sexo. Dentro da casa, ocorria uma purificação, em
que se utilizava, entre outros agentes, "casca de cedro impregnada com o
sangue menstrual de quatro mulheres nobres".
50

Sexualidade
O corpo visível expressa-se mais ainda e vem à tona na sexualidade — a
procriação dos animais e das plantas, o sexo elétrico do céu e da terra no
trovão e no relâmpago, e a grande variedade de experiência sexual
humana. E aqui a religião da Deusa, tanto antiga quanto moderna,
difere muito da religião do Deus transcendente. Pois se Deus não tem
corpo, e existe separado do universo que criou, então os seres humanos
tornam-se almas que ou possuem corpos, como objetos ou roupas, ou
estão presas dentro de corpos, prisioneiras em uma cela de carne. A
religião torna-se um anseio de escapar do corpo, assim como um co-
mando para controlá-lo. Na religião de um Deus desprovido de corpo e de
sexo, a sexualidade humana torna-se um fracasso e uma traição, um
afastamento de Deus rumo a uma natureza menosprezada, um pecado.
Uma religião que adora o corpo da Deusa não precisa dessa separa-
ção entre a espiritualidade e a sexualidade. Como algo básico à vida, o
sexo assume o seu lugar como sagrado... "Todos os atos do amor e do
prazer são meus rituais", escreve a bruxa contemporânea Starhawk — um
manifesto de libertação em uma única frase.
Os cientistas e os filósofos frequentemente debatem sobre o que
torna os humanos únicos e os separa dos outros animais. Alguns dizem que
é a linguagem, outros o pensamento abstrato etc. De certa maneira, a
questão em si traduz uma necessidade ansiosa de nos isolarmos da
natureza. Entretanto, há uma característica humana que na verdade nos
torna únicos — o clitóris. As fêmeas humanas são os únicos mamíferos
para os quais o desejo sexual e o prazer não estão diretamente relacio-
nados com a reprodução.
Isto torna o sexo humano mais cultural do que simplesmente bio-
lógico. O sexo torna-se comunicação e uma expressão da nossa hu-
manidade. Quando os cristãos fundamentalistas e outros descrevem o
sexo como a nossa parte "animal", estão realmente distorcendo a realidade
em sua cabeça. A idéia de que só devemos fazer amor para produzir bebês
inverteria a evolução, pois é isso que os animais fazem. A sexualidade é
visível, envolvendo o toque e outras sensações, inclusive o orgasmo, que é
um evento físico no corpo. Além disso, o sexo nos abre para o corpo
invisível do desejo. Como um toque nos lábios, no seio ou no ombro
produz uma reação em uma parte do corpo não tocada, os genitais? E por
51

que isso acontece com algumas pessoas, mas não com outras? E qual a
resposta dos nossos corpos quando vemos, sem tocar, alguém bonito, ou
sexy — um amante, um total estranho ou simplesmente uma fotografia?
E que dizer das fantasias que não existem fisicamente no mundo, mas
apenas nas nossas mentes? Que linha Invisível as conecta com nossos
genitais? Dizer que a sexualidade existe no cérebro simplesmente
comprova a questão. Não conseguimos responder ao mistério do desejo
com descrições do funcionamento biológico.
Assim como a morte conduz ao corpo invisível, o mesmo acontece
com o nascimento. Quando uma criança pergunta "De onde vêm os
bebês?”, não está querendo conhecer a mecânica da relação sexual. Nosso
nervosismo sobre este tema leva-nos a falar sobre a reprodução biológica, e
"uma mamãe e um papai que se amam" — o que talvez satisfaça a
criança, que pelo menos recebeu uma resposta. A questão, no entanto,
toca um mistério básico da vida. De onde vêm os bebês? Nós sabemos
como os fetos crescem, mas o que torna um feto uma pessoa viva? Como
um indivíduo emerge do nada para se formar em torno de um corpo
físico?

As Aves, as Cobras e o Corpo Invisível


As aves e os objetos do céu formam um aspecto do corpo visível. O ar, no
entanto, conduz-nos ao reino do invisível. Podemos senti-lo quando ele
sopra sobre nós, e o conhecemos em nosso corpo quando respiramos. A
respiração transmite vida e espírito, uma palavra que deriva do latim
spiritus, que significa "respiração, sopro de vida". Mas na nossa extensão
normal dos sentidos, não conseguimos ver ou tocar o ar.
A idéia do corpo invisível da Deusa foi-me sugerida pela primeira
vez quando pensei no significado das aves nas religiões e nas mitologias do
mundo. Na arte neolítica, descobrimos uma grande série de esculturas,
cerâmicas e pinturas de Deusas aladas. Muitas Deusas, como Afrodite ou
Atena, têm aves como companheiras. Outras Deusas e Deuses trans-
formam-se em aves, ou recebem mensagens de aves, como o Deus
escandinavo Odin, cujos corvos gêmeos, Hugin e Munin — o Pensa-
mento e a Memória — trazem-lhe notícias do mundo todo. E os xamãs de
muitas terras vestem-se como aves para viajar pelas terras dos espíritos.
As aves representam a Deusa porque viajam no ar. Seu corpo invi-
sível, enquanto os humanos só podem viajar no corpo visível da Terra
52

(para viajar no mar, precisamos criar barcos, que com sua forma seme-
lhante a um útero adquirem o caráter de fêmeas). E como estas aves
"falam" sob a forma de canto, podem portar a sabedoria codificada da
Deusa, assim como a inspiração para a arte, outra maneira do Seu corpo
invisível movimentar-se rumo ao visível.
As aves nos ligam às cobras, mesmo que apenas através de sua
oposição simbólica. E se movem através do ar invisível. Já as cobras,
mais que qualquer outra criatura, deslizam através do corpo invisível da
imaginação. As mitologias de todo o mundo descrevem a conexão íntima
— frequentemente a antipatia — existente entre as aves e as cobras. Em
quase toda cultura, ambas aparecem como as criaturas primárias da Deusa.
E nem sempre são inimigas. Muitos mitos e histórias de fadas contam a
história de um herói que prova o sangue de uma cobra (ou dragão) e
aprende "a linguagem das aves", ou seja, todo o conhecimento. A ave
viaja para os mundos invisíveis do alto; e a cobra desliza pelos mistérios
que há embaixo da terra.
As aves e as cobras parecem representar a cisão (ou o jogo) entre o
consciente e o inconsciente, a racionalidade e o instinto. É fácil com-
preender o fascínio através das aves e de sua capacidade de voar com
graça rumo ao céu. Mas o que proporciona às cobras o seu mistério, a sua
acalentada resistência em quase toda mitologia?
Podemos considerar várias possibilidades. Para se desenvolver, as
cobras precisam trocar sua pele periodicamente. Isto lhes proporciona
uma aura de imortalidade. As cobras têm uma qualidade andrógina —
esticadas, parecem falos, enquanto enroladas assemelham-se às dobras da
vulva. Além disso, seu poder vai além do simbolismo intelectual. Marija
Gimbutas fala da cobra como a energia enrolada.
Embora pensemos nas cobras como venenosas, elas podem atuar
sobre o corpo de maneiras positivas. O veneno de muitas cobras, espe-
cialmente o das najas, atua como alucinógeno, produzindo visões
extáticas. Em 1989, na Califórnia, o Dr. Richard Kunin decidiu pesquisar o
óleo de cobra, frequentemente usado como símbolo de curas inúteis e
fraudulentas. Descobriu que o óleo das cobras d'água chinesas contém um
alto teor de importantes ácidos e outros nutrientes, incluindo a
concentração mais elevada de ômega-3derivado do ácido eicosa-
pentanóico (AEP). Em Fats That Heal, Fats That Kill, Udo Erasmus
afirma que o The New England Journal of Medicine recusou-se a publicar o
estudo do Dr. Kunin.
53

Uma das descrições mais notáveis da cobra está na meditação, na


extensão do livro, de Roberto Calasso sobre os mitos gregos, The Marriage
of Cadmus and Harmony: "Onde há cobra, há fluxo de água. Sob suas
espirais flui a água do mundo subterrâneo. Sempre. Suas escalas são
uniformes, sua boca ondulada e constantemente auto-renovada, como as
ondas." Quando olhamos para as cobras, parecemos estar olhando para
trás no tempo e profundamente na raiz dos nossos seres primais. As
cobras incorporam um estágio de evolução ainda incorporado na raiz do
nosso cérebro. Com sua mistura de imagens masculina e feminina, as
cobras são a sexualidade encarnada. E quando observamos as (obras
enroladas em volta dos braços da Deusa, ou se movendo através do seu
cabelo, vemos a força de nossos mais antigos primórdios unindo-se à
imagem do poder divino.

Aspectos do Céu
A luz em todas as suas frequências, incluindo as ondas de rádio, viaja
através do corpo invisível do espaço — e do tempo — e nos traz as
imagens e o conhecimento das estrelas, dos quasares e das galáxias há
muito desaparecidos. Quando olhamos para as estrelas, ou mesmo para o
Sol, cuja luz demora oito minutos para chegar até nós, o passado torna-
se visível. O tempo torna-se uma revelação da realidade divina. Quanto
mais profundamente olhamos para o espaço, mais para trás nos vemos no
tempo, até nos aproximarmos da própria origem da existência.
Nossos corpos surgem da realidade passada, pois tudo em nosso
sistema solar, incluindo nós mesmos e o Sol, formou-se da poeira das
estrelas explodidas. E não podemos viver sem o Sol, cuja luz viaja até nós
através do corpo invisível do espaço, do ar e do tempo.
Lembre-se dos mitos da nossa galáxia, da Via Láctea fluindo dos
seios da Deusa (frequentemente descrita como o corpo visível de uma vaca
ou de um búfalo), ou das estrelas como parte de Sua roupa, manto ou dança.
E pense como os círculos e morros de pedra marcam o nascente (ou o
poente) em determinados dias do ano. Eles servem ao propósito de tomar
conta do tempo, indicar quando plantar ou colher, mas também servem
claramente a um propósito ritual. Parte desse propósito pode ter sido trazer o
corpo invisível dos céus para o corpo mais visível de todos, a pedra e a lama.
Quando o feixe de luz do solstício do inverno penetra na caverna artificial de
Newgrange, na Irlanda, a luz toma forma na presença dos adoradores.
Durante alguns momentos, os túneis de pedra moldam a luz em uma espécie
de escultura, uma forma como um ser humano de pé.
54

Em uma maneira muito diferente de enraizar o Céu invisível na Terra


visível, os "Sonhadores" dos aborígines australianos são às vezes chamados
de Heróis do Céu, seres ancestrais que desceram do Céu, realizaram suas
façanhas na superfície da Terra e depois foram para o mundo subterrâneo,
aparecendo apenas como determinadas facetas da natureza: rochas, plantas,
animais, lagos etc. Aqui há uma interessante semelhança com uma
meditação atualmente popular no Ocidente. A pessoa começa imaginando-
se banhada de luz branca. Esta luz serve como um meio para proporcionar
determinadas qualidades de que a pessoa precisa ou que deseja —
qualidades abstratas como amor, cura ou força. Para tornar estas qualidades
reais, o pensador as exala diretamente dentro do corpo. Finalmente, "ancora"
estas qualidades enviando-as simbolicamente de volta à Terra.
Todos conhecem a imagem das bruxas viajando pelo céu monta
das em vassouras. Provavelmente a imagem remonta aos xamãs e aos
curandeiros vestidos como aves ou "voando" nos tambores — ou seja,
viajando para o mundo dos espíritos através de um transe induzido por
tambores. O elo entre os xamãs e as bruxas sobre as vassouras fica claro
quando pensamos que as "bruxas" européias eram em geral curandeiras
da aldeia ou mulheres sábias com conhecimentos especiais sobre ervas.
O manejo de uma vassoura sugere um falo, e por isso uma união com o
poder sexual masculino, quer através da verdadeira mágica sexual ou
do mesmo tipo de unidade dos sexos encontrado naquelas esculturas
pré-históricas de Deusas com pescoços fálicos. A vassoura também vincula o
trabalho diário doméstico realizado pelas mulheres comuns —
outra emergência física do corpo da Deusa — com o mistério e o êxtase
espiritual. Também devemos nos lembrar que a palha da vassoura,
quando emerge do meio das pernas, parece-se um pouco com a cauda
de uma ave.

A Natureza e a Arte
A realidade visível do mundo também nos conduz para o invisível. O poder
da terra repousa em parte no fato de dependermos dela para viver
e em parte na sensação de que algo maior que aquilo que conseguimos
ver vive dentro dela e dá significado ao mundo dos sentidos.
O ato de tornar a Deusa visível torna-se mais do que reconhecimento
passivo. Os esforços da imaginação tornam visível o corpo invisível. O
período neolítico (Idade da Pedra Polida) foi um tempo dedicado a grandes
55

monumentos. A Montanha Silbury, na Inglaterra, os gigantescos


passagemounds de Newgrange, Knowth, e Dowth na Irlanda, e a Planície de
Cahokia em Illinois (cujo "Morro do Monge" é a maior estrutura terrestre
pré-histórica do mundo, abrangendo 5,6 hectares) juntam-se todos para —
entre suas outras funções — tornar visível uma percepção humana do cosmos
como ordenado, significativo e vivo. Eles proporcionam forma física à idéia
de beleza, ritmo e propósito.
Os construtores das primeiras pirâmides e zigurates estavam pro-
vavelmente imitando as montanhas. Um monte de terra constitui uma
imitação ainda mais direta. A passagem interna em Newgrange ou
Knowth (ver Capítulo 4) ocupa uma parte pequena da imensa construção.
Essas passagens imitam os santuários das cavernas naquelas montanhas
em que as pessoas de locais como Creta iam adorar a Deusa. Os montes
gigantescos com suas passagens pequenas e estreitas imitam também a
forma humana, pois o útero e o canal do nascimento constituem apenas
uma pequena parte do corpo de uma mulher. Do mesmo modo que os
templos malteses podem ter apresentado o contorno da imagem de uma
mulher, um monte ou colina pode ter sugerido o corpo da Deusa,
especialmente seu ventre grávido.
Além de criar círculos e montes, as pessoas da Idade da Pedra, em
terras (e épocas) diferentes, criaram esculturas gigantescas. O trabalho na
terra realizado no Morro da Serpente, em Ohio, estende-se por 400
metros, da ponta do rabo até a boca da serpente (ver Foto 2).
Uma escultura semelhante próxima ao Lago Nell, na Escócia, mede
quase cem metros e atinge uma altura de seis metros. As duas serpentes
têm suas caudas apontando para oeste, e cada uma delas originalmente
defendia um altar voltado para leste, para o Sol nascente. Nos dois
casos, como em outras dessas obras, a forma da terra nesses lugares
sugeria a de uma serpente. Não obstante, esta forma só existia na união
invisível da natureza com a imaginação — algo que as pessoas podiam
"ver" apenas em suas mentes —, até que os construtores a trouxeram
para a permanente visibilidade.

As Criações Modernas que Imitam o Corpo da Deusa


Alguns artistas contemporâneos têm revivido a prática de criar obras
gigantescas formando o corpo literal da Deusa. Entre estes, a escultora
norte-americana Christina Biaggi criou um morro de concreto cujo interior
56

imita os contornos do interior de um corpo de mulher. Durante os últimos


anos, Biaggi e a arquiteta Mimi Lobell trabalharam na criação de uma
colina gigantesca, como a Montanha Silbury, que vai funcionar tanto
como um observatório astronômico quanto como um templo. Os
adoradores vão viajar através do interior do outeiro para vivenciar a
experiência de renascer do ventre da Deusa.
Outros artistas criaram imagens ainda mais literais, em uma imensa
escala. A artista franco-americana Niki de St. Phalle cria estátuas da
Deusa — "Nanas", como as chama — tão grandes, que elas funcionam
como prédios. Enquanto os construtores das primeiras culturas trans-
formavam suas estruturas em abstrações dos corpos, de St. Phalle usa a
tecnologia moderna para tornar suas imagens muito diretas. Para uma
leira na Suécia, ela criou uma Deusa deitada de costas, com 25 metros de
comprimento, um cinema (exibindo um filme de Greta Garbo) no braço
esquerdo, um cérebro de madeira na cabeça, um planetário no leio
esquerdo, uma lanchonete no seio direito etc. As pessoas entravam c saíam
através da vagina (ver Foto 3).
Mais recentemente, ela fez uma escultura gigantesca de um jardim
com cartas de Taro tridimensionais. Várias destas são ao mesmo tempo
Nanas e prédios. Tradicionalmente, a carta da Imperatriz do Taro significa
a Grande Mãe. Para esta "carta", de St. Phalle fez uma esfinge, que
também serviu como sua casa durante os vários anos de trabalho no
projeto.
Muitos artistas têm usado seus próprios corpos para expressar o
corpo da Deusa. Alguns têm feito peregrinações para reviver rituais
antigos em cavernas, outros têm se vestido com trajes e objetos que
evocam imagens tradicionais da Deusa. As pessoas em geral acham que
essa arte confere poder aos nossos corpos, comparando-os aos seres e
tradições sagrados. Também poderíamos dizer que quando usamos nossos
corpos na arte da Deusa, damos poder a Ela, ajudando-a a sair da história
e mais uma vez emergir na realidade física.
A união do visível com o invisível abre caminho para a arte. Quase
todo artista tem expressado a sensação de ser um agente para a obra criar
a si mesma. Falamos no "meio" de uma obra de arte referindo-nos l
substâncias usadas, como tinta, pedra, impressão ou som gravado. O
verdadeiro meio é o artista, que abre caminho para que quaisquer ne-
cessidades surjam do corpo invisível.
Os mitos e o folclore, assim como as profecias e os oráculos, são
também o corpo da Deusa, pois todas essas expressões orais dão forma e
57

substância intelectual a uma sensação intuitiva de realidade sagrada. Esta


realidade é informe até a incorporarmos em palavras, figuras ou pedras.
E assim como nossos corpos mudam e se desenvolvem, crescendo e
envelhecendo, trocando de pele, menstruando ou engravidando, se excitando
e morrendo com o desejo, também o corpo visível da Deusa, em todos os
seus aspectos, não é fixo nem eterno, mas muda, se desenvolve, dá à luz,
morre e renasce continuamente através do corpo invisível do tempo.

Participação Humana no Corpo da Deusa


Em todas essas coisas, nós conhecemos e reconhecemos o corpo da Deusa
através da realidade dos nossos próprios corpos. Ao relatar sua opinião
sobre o propósito de a Montanha Silbury e o Círculo de Avebury na
Inglaterra, Michael Dames escreveu que podemos considerar essas
construções antigas como um "código" baseado no corpo humano,
especialmente nas transformações provocadas pela gravidez e pelo
nascimento. A experiência humana torna-se o meio para compreender e
expressar nossa consciência do sagrado.
Na concepção patriarcal de Deus, os seres humanos são a criação e os
súditos de Deus, sem papel real a desempenhar no divino, exceto como
dominadores dos súditos menores de Deus, as plantas e os animais. Quando
enxergamos a própria existência como o corpo divino, criamos um
relacionamento mais recíproco. A plena realização desse corpo requer
consciência humana para perceber sua presença, e ação humana para traze-
la mais completamente à tona.
Na descrição de Vincent Scully dos palácios cretenses e dos templos
gregos, os prédios não somente tiram proveito das formações particulares da
natureza, mas completam as formas da paisagem natural através da sua posição
em um determinado ponto e dentro de uma perspectiva em que um
observador perceba todos os elementos da paisagem natural no
relacionamento exato que evoca aquela percepção de um corpo feminino.

Uma Montanha com Dois Picos e uma Colina


Arredondada
Como parte de suas idéias sobre a paisagem natural sagrada, Scully sugere
que uma colina entre dois picos incorpora a Mãe. Em Earth Wisdom,
58

Dolores La Chapelle amplia esta idéia, comentando que uma criança recém-
nascida emerge plenamente consciente (se não estiver dopada por drogas
administradas à mãe) e vê o corpo de sua mãe antes de tudo como os montes
veneris e o ventre, com os seios assomando acima deles. Quando ela é
erguida, vê então o rosto de sua mãe. Por isso, quando vemos a formação
tripla da paisagem natural, inconscientemente esperamos que a face da Deusa
Mãe esteja simplesmente fora da vista.
Na Grécia, a formação tripla das colinas suscita particularmente
Artemis — que cuidava das mulheres quando elas davam à luz. Ela
também pertencia às montanhas, onde vivia com Suas ninfas, que tanto
caçavam quanto protegiam os animais. As gravuras arcaicas de Artemis
às vezes mostram-na com Suas asas abertas. Esta imagem pode ter
derivado daquele mesmo pico tríplice, com a colina central como o Seu
corpo e as montanhas laterais como Suas asas.
Se aceitamos que essa imagem da paisagem natural incorpora a
Deusa, isso vai requerer antes de tudo um ser humano para percebê-la e
homenageá-la; depois que ele fique de pé e olhe para um ponto específico o.
Passei a compreender isso melhor em um local na Grécia onde não estava
particularmente procurando essa explicação. Próximo ao templo de Artemis
em Brauron (Vavrona, em grego moderno), há um exemplo da imagem da
Mãe de Scully e La Chapelle (ver Foto 4).
O relacionamento entre as três montanhas pode ser melhor visto
como um ponto ao longo da estrada, a cerca de dois quilômetros do templo.
Não sei se a estrada moderna está no mesmo lugar que a antiga, mas
certamente é possível que as jovens que vinham em procissão de Atenas
para servir Artemis passassem por este ponto. Muitas estradas atuais
realmente seguem os antigos caminhos.
Caminhando ao longo da estrada a partir do templo de Brauron,
você vai experimentar uma sensação do corpo da Deusa lentamente se
tornando realidade. Primeiro, você vê apenas a montanha mais próxima e
parte da seguinte. Depois, quando as duas montanhas laterais se separam,
percebe um vislumbre da montanha menor entre elas. Mas a visão dessa
montanha permanece justaposta por aquela próxima de você, de tal modo
que a forma essencial, um morro no centro ladeado por dois picos iguais,
só fica visível (e essa é a sensação, pelo menos para um observador
moderno) no ponto preciso da estrada em que você vê a montanha central
se erguer equidistante das duas maiores. Por isso, esta pequena visão da
paisagem natural da Deusa só vem à tona quando um observador humano
fica de pé e observa a partir de um determinado ponto.
59

Em todos os locais em que vemos o corpo da Deusa como uma


forma da paisagem natural, precisamos do ponto de visão adequado. Se
aceitamos as análises de Scully, os cretenses construíram seus palácios
para proporcionar aos celebrantes da Deusa um lugar permanente para ver
Seu corpo e assim permitir-lhe emergir na realidade física. Quando visitei
o palácio de Festos no sul de Creta, sabia que havia chegado antes de ver
o prédio na tabuleta da estrada, porque fiz uma curva e de repente vi uma
montanha em forma de cone, em um cenário de montanhas aladas,
assomando quase ao lado da estrada. Alguns momentos mais tarde, o
carro atingiu um ponto em que a formação da paisagem natural ficou
livre de montanhas baixas — e ali estava a entrada para os jardins do
palácio.
O Deus transcendente, separado do universo físico, não requer que
os observadores humanos tragam-no à vida. Não possuindo um corpo, Ele
não precisa de participação para torná-lo real. Dado o nosso desen-
volvimento em uma cultura baseada em um Deus desse tipo, pode-nos
parecer estranho adorar uma Deusa capaz de aparecer fisicamente para
nós, mas somente quando estamos de pé em um determinado lugar.
Apesar disso, essa participação proporciona uma beleza e um poder. Não
estou sugerindo que a Deusa não exista no momento anterior àquele em que
atingimos o ponto correto na estrada de Brauron, perdendo
imediatamente sua existência no momento em que nos afastamos. En-
tretanto, há uma certa realidade que requer um observador, um obser-
vador que aprendeu para onde olhar, e especialmente como olhar — com
respeito, humildade e aceitação da beleza e do poder da Deusa de dar a
vida.
De uma maneira curiosa, a física quântica, a mais intelectual de
todas as ciências, tem revivido o jogo antigo do observador criando a
realidade. Segundo a teoria quântica, as partículas elementares não existem
até um observador inteligente medi-las. Antes desse momento, elas
habitam os vários níveis de probabilidade, como descrito em uma onda.
Só quando alguém realmente olha, a onda "cai" em uma realidade fixa.
Alguns físicos argumentam que a necessidade de um observador
comprova até mesmo objetos maciços como a Lua. Essa visão desaparece
diante do que chamamos de senso comum. Parece absurdo dizer que um
elétron — quanto mais a Lua — realmente não existe até que um humano
olhe para ele. No entanto, as experiências mais sofisticadas têm provado
repetidamente que a teoria quântica está correta. Talvez devamos
reconhecer que a física das partículas, como as formações da paisagem
60

natural da Deusa, restaura o observador humano para um papel vital na


própria realidade da existência. Talvez a "existência" em si, como uma
realidade fixada, seja realmente uma função da mente humana.
Os templos de Malta, os passage mounds, a Montanha Silbury, o
gigantesco Monte da Serpente onde atualmente é o Estado de Ohio, estes
também manifestam o corpo da Deusa. E também só poderiam existir
através da consciência humana, do esforço humano e de uma contínua
ação humana. Somente a forma não constitui o corpo da Deusa. Ela deve
ser observada, compreendida e associada em um ato de reverência e ado-
ração. Quando Gertrude Rachel Levy e, mais tarde, Mimi Lobell sugeriram
que os templos de Malta formavam esculturas gigantescas de uma mulher
sentada ou deitada, deram o primeiro passo para trazer esse aspecto do Seu
corpo à realidade contemporânea. Quando outros, inspirados por esta idéia,
viajaram até esses templos e buscaram Sua presença nas paredes, na lama e
na pedra, quando lá realizaram rituais ou simplesmente se sentaram e
contemplaram o poder da Mãe, deram o passo seguinte para completar o Seu
corpo naquele lugar especial.
Na idéia que Michael Dames faz do corpo como um código, o poder
sagrado do Círculo de Avebury e da Montanha Silbury deriva em parte das
fontes naturais, em parte das formas esculpidas das pedras e da montanha
tornada humana, e em parte das procissões de mulheres e homens jovens
que Dames imaginava percorrerem os caminhos megalíticos. A
"escultura" assumiu sua forma a partir da terra, das estruturas e do preciso
movimento ritual dos seres humanos. Sem esse elemento final, a união
sexual e o nascimento divinos não podiam ocorrer. Como os elétrons, a
Deusa requer participação.

Vendo com os Próprios Olhos


A palavra autópsia, derivada do grego, significa literalmente "ver com os
próprios olhos". Em uma autópsia médica, os médicos desmembram um
corpo morto para investigar suas partes. A Deusa está viva, mas pareceu
morta durante muitos séculos. Esse foi o período do patriarcado, em que nos
foi dito que o Deus Pai criou o mundo, e que a civilização, se não a própria
existência, começou cerca de 5.000 anos atrás, com as primeiras sociedades
patriarcais do Oriente Médio, centralizadas no rei. (No século XIX, um
certo bispo Ussher dizia ter calculado não somente o ano da criação —
4004 a.C. —, mas também o dia, 23 de outubro, e até a hora, nove da
manhã.)
61

Atualmente, através do trabalho de arqueólogos, mitólogos, artistas e


historiadores da arte, sacerdotisas, cientistas, classicistas, historiadores,
antropólogos, filósofos e psicólogos, a evidência fragmentada da religião da
Deusa está tomando forma. Templos têm sido escavados, textos traduzidos,
esculturas, pinturas e mitos catalogados, analisados e explorados. Mas todas
essas peças permanecem separadas, isoladas uma da outra e do significado,
até serem "vistas", observadas com reverência e respeito pelas pessoas que
buscam esse "relacionamento permanente" com a Deusa viva.
Ao contrário do corpo morto, que uma autópsia desmembra, a
Deusa é um corpo vivo em fragmentos, e quando a vemos com nossos
próprios olhos, quando vamos a Seus templos ou a encontramos nas
montanhas ou nos rituais criados em nossas próprias casas, nós a
remembramos, a reintegramos ao todo. E este ato de ver nos reintegra
também ao todo, pois curamos os pedaços de nossas vidas fragmentadas
encontrando os elos entre nossos corpos e o corpo da Deusa.
Há outro sentido em que a Deusa é fragmentada. Já mencionei
anteriormente os muitos mitos do universo criados a partir de um corpo
desmembrado. Eles nos ensinam que a Deusa está sempre à nossa volta,
viva em todas as coisas, mas em tantos pedaços que não percebemos que
estamos caminhando e vivendo em meio a Ela a todo momento. Quando
vamos aos locais da Deusa ou realizamos rituais, quando vemos com nossos
próprios olhos, reunimos os aspectos isolados da Sua realidade.

Juntando a História e a Vida


Comemorar nossas próprias experiências em lugares sagrados permite-nos
(incluindo aqueles com quem compartilhamos nossas histórias) superar a
divisão entre a história e a vida. Muito frequentemente pensamos na Deusa
como um aspecto da arqueologia, como uma mostra em um museu. Se
conseguimos provar alguma coisa historicamente, pensamos nela como real
ou autêntica. Tendemos a considerar frívola ou sentimental qualquer coisa
que nós próprios experimentamos. E verdade que não vivemos mais nas
culturas que produziam os grandes templos ou círculos de pedra ou aterros
de terra. E em muitos casos não sabemos praticamente nada sobre suas
verdadeiras crenças e práticas. Mas apesar disso podemos dar significado a
esses lugares através de nossas próprias experiências.
Em The Laughter of Aphrodite, Carol E Christ defende o que ela
chama de "tealogia da história" ("tealogia" é a forma feminina de "teologia",
62

o estudo de thea, ou Deusa, em vez de theos, Deus). "Posso ouvir coros de


crítica", escreve ela, "chamando-me de 'reducionista', 'auto-indulgente',
'narcisista'." E acrescenta: "Não proponho 'reduzir' a tealogia à
autobiografia." Ao mesmo tempo, no entanto, insiste que o conhecimento e
as visões das mulheres originavam-se de um campo da experiência pessoal.
Segundo Carol Christ, a teologia acadêmica tradicional segue um
"mito de objetividade", como se, pelo fato de não escreverem sobre suas
próprias experiências, os teólogos, historiadores e até mesmo os
arqueólogos, de alguma forma, produzissem obras de verdade absoluta. Este
mito origina-se do contexto mais amplo daquele Deus sem corpo, todo
mente, desligado do envolvimento com o mundo físico. A academia tenta
"transcender" a pessoa para imitar seu suposto estado puro.
Na ciência, esta pureza mítica fracassou. Os pesquisadores de campo
que estudam os animais reconhecem atualmente sua própria influência sobre
o comportamento de seus objetos de estudo, além da necessidade de
minimizar esta influência permanecendo durante longos períodos de tempo
nos seus habitats naturais. Na física, o famoso "princípio da incerteza" de
Werner Heisenberg demonstrou que não podemos estudar o universo como
se não fizéssemos parte dele. Quando "olhamos" para partículas
subatômicas, o ato físico de observá-las modifica seu estado. Em outras
palavras, Heisenberg declarou que são os corpos, não as mentes desligadas,
que realizam as experiências. E temos observado mais uma extensão do
princípio da incerteza: a idéia de que as partículas nem sequer existem até
que as observemos.

O Pessoal E o Espiritual
Nos estágios iniciais do movimento das mulheres modernas, uma expressão
tornou-se a pedra fundamental do pensamento feminista. "O pessoal é o
político" tem obtido várias interpretações, mas talvez dois dos principais
significados possam ser descritos: primeiro, as mulheres individualmente
desenvolvem conhecimento e entendimento político através da observação
de suas próprias experiências; segundo, isto acontece porque o que
experimentamos nos relacionamentos, no trabalho ou em nossas famílias
ocorre em um contexto político. Colocado de outra maneira, uma estrutura
social inteira existe quando um homem e uma mulher discutem sobre o
trabalho doméstico, o fato de a mulher querer fazer um aborto ou a luta por
remuneração igual. Quando as mulheres começam a examinar e
compartilhar suas experiências, passam a conhecer a política. A ação na
63

comunidade e a mudança em nossas vidas começam com este


conhecimento.
Também podemos dizer que o pessoal é o espiritual. A espiritualidade
não é exclusividade dos tempos antigos ou dos livros. Ela existe — emerge
para a existência — através dos nossos próprios encontros com o sagrado.
Alguns desses encontros vão ocorrer em locais sagrados conhecidos, outros
através de nossas tentativas para reconhecer a Deusa com nossas vidas
cotidianas. Quando celebramos nossa sexualidade como parte da natureza,
quando vinculamos os ritmos de nossas vidas à Lua e ao Sol, quando
encontramos nossas próprias maneiras de comemorar os, meigos festivais,
quando exploramos nossas emoções em locais sagrados, quando vemos com
nossos próprios olhos, transformamos o pessoal em espiritual.
A idéia de que o pessoal é político permitiu às mulheres reconhecer
sua própria realidade como válida, escapar da crença de que apenas os
especialistas poderiam nos dizer como olhar para nossas vidas. Dizer que o
pessoal é espiritual valida as experiências sagradas das mulheres e dos
homens, individualmente. Informa-nos que tanto o que fazemos quanto
a maneira como compreendemos o mundo são importantes. Para aqueles
que buscam (re)criar a religião da Deusa, esta validação é vital. As religiões
estabelecidas apóiam sua autoridade com textos antigos e rituais realizados
pelos padres oficiais, e com frequência grande riqueza e organizações políticas.
Na religião da Deusa, recuperamos muitos mitos e imagens,
mas perdemos muitos mais. Precisamos respeitar as orações e os rituais
que criamos juntos, as danças que realizamos sob a Lua, as verdades que
contamos em nossos círculos e os pequenos milagres que encontramos
em nossas peregrinações e em nossas ações diárias.

O Espiritual É o Político
Assim como seus outros significados, a expressão "o pessoal é político"
significa que qualquer coisa que façamos tem um valor e um impacto políticos.
A política não ocorre apenas nas cabines de votação ou nas passeatas. A
maneira como vivemos nossas vidas carrega significado político tanto para a
sociedade como para as pessoas que nos cercam. O mesmo acontece com a
expressão "o pessoal é espiritual". Não experimentamos a Deusa apenas
quando vamos aos templos ou realizamos rituais. Ao contrário, fazemos essas
coisas para nos tornarmos mais conscientes do sagrado dentro e à volta de
nós o tempo todo, para reconhecermos o sagrado em nossos relacionamentos,
em nossas famílias, nos alimentos que comemos, na maneira como
64

caminhamos sobre a Terra. A Deusa não criou os seres humanos como um


evento único milhares de anos atrás. Ela cria cada um de nós, todos os dias.
Assim como nós a criamos.
Se o pessoal é o espiritual, o espiritual é também o político. As
religiões patriarcais estabelecidas freqüentemente descrevem suas revelações
e ensinos como política transcendente (outra vez essa palavra). Mas não há
religião desprovida de efeitos políticos. Adorar um Deus-cabeça (uma
cabeça sem corpo) masculino, desprovido de corpo, implica uma sociedade
que trate as mulheres como inferiores, ou como propriedade dos homens.
Adorar um Deus guerreiro zangado, um monarca, pode conduzir a uma
sociedade baseada na escravidão (como na Grécia de Homero). Adorar um
Deus "ciumento" e monoteísta encoraja uma visão monolítica da
personalidade, em que as pessoas jamais podem mudar uma suposta
personalidade básica, e cada pessoa é considerada tendo como base o
gênero, a raça ou a classe.
Como diz Carol Christ: "Os símbolos têm efeitos tanto psicológicos
quanto políticos." E quando comparamos as diferentes sociedades baseadas
em diferentes estruturas religiosas, descobrimos diferenças políticas básicas.
Nas culturas que adoram a Grande Deusa, com freqüência encontramos
evidência de comunidades extremamente desenvolvidas existindo há
centenas de anos sem fortificações, sem guerras ou armas, sem virtualmente
qualquer sinal de morte violenta.

"The Teaching Rock"


Quando viajamos para um lugar sagrado, descobrimos seu poder espiritual
dentro do seu ambiente real. Uma das primeiras viagens que realizei neste
trabalho foi até uma grande pedra localizada nos bosques próximos à cidade
de Peterborough, no Canadá. Descoberta em 1956 (um ano depois que o
governo canadense revogou uma lei proibindo os nativos canadenses de
praticar suas próprias tradições), a pedra contém cerca de 900 entalhes (300
dos quais são claramente distinguíveis), que podem ser vistos removendo-se
a camada exterior de calcário branco cristalino para que a pedra mais escura
possa aparecer. O Serviço Provincial de Parques refere-se ao achado como
os Petróglifos de Peterborough, mas os índios chamam-no de "The Teaching
Rock", acreditando que ela existe para transmitir urna mensagem de paz para o
mundo.
65

As imagens que aparecem na pedra incluem símbolos abstratos,


como uma grande flecha em V, figuras compostas de traços em forma de
varas que podem ser xamãs em transe, imagens solares, aves, tartarugas,
cobras e um navio fantasma aparentemente com mastros, que indica a
possível influência de encontros com navios vikings chegando da Europa.
As figuras maiores incluem o entalhe de uma mulher, seus seios
vistos de perfil, o abdômen de frente (ver Capítulo 3 para a "perspectiva
dupla" dos touros da caverna de Lascaux). Segundo os arqueólogos Joan e
Roman Vastokas, há quatro figuras femininas, todas enfatizando os
genitais, mas sete sinais de vulva, isolados. O que é notável com relação à
grande figura é que ela foi entalhada em volta de dois grandes buracos na
pedra, um na altura do coração e o outro na altura do útero. Um sulco
mineral vermelho corre ao longo da imagem, de forma que sentimos uma
poderosa sensação do sangue vital da Mulher, bombeado pelo coração e
fluindo pela vagina com a menstruação e o nascimento.
A grande imagem da Deusa proporciona à rocha toda uma qualidade
feminina, de doação de vida. Visitei a rocha com Tana Dineen, que
mencionou a seu guarda/zelador, Lorenzo, que eu estava escrevendo um livro
sobre a Deusa. Lorenzo contou-nos que muitas pessoas acreditavam que os
entalhes foram feitos por mulheres, pois nenhuma das centenas de imagens
mostra qualquer sinal de violência nem de guerra nem de caça. (A mesma
observação foi feita sobre a caverna pré-histórica francesa de Pêch-Mèrle.)
Os Vastokas também descreveram todo o local como possivelmente um
útero simbólico, o centro do mundo (como o omphalos, ou umbigo grego,
em Delfos), e uma entrada para o Mundo subterrâneo.
Há uma sensação, uma sensação corporal, algo que conhecemos pro-
fundamente em nossos corpos, de que o Mundo subterrâneo, a Terra dos
Mortos, é também a fonte da vida, do nascimento e do renascimento.
Embora tentemos nos esquecer disso, com nosso enfoque no mundo
exterior da luz, sabemos, tanto racionalmente quanto em um nível bem
mais profundo, que viemos da escuridão e do sangue do útero. Os Vastokas
comentam que os pesanas amazônicos consideram as fendas das montanhas
"o útero onde ocorre a gestação da fauna".
No sítio arqueológico de Peterborough, um cartaz diz: "A própria
rocha, penetrada e perfurada, pode ter sido considerada um símbolo
feminino idealizado e um meio de acesso do xamã aos poderes ocultos ou à
energia sexual da natureza."
66

Entalhes e Fissuras Naturais


O que levou os algoriquinos, mil anos atrás (ancestrais dos algonquinos
modernos que moram na mesma área), escolherem esta rocha particular para
seus entalhes? Além da adequação da pedra calcária e da grande superfície
plana, precisamos observar os arredores. A própria "Teaching Rock" e todas
as pedras menores em torno dela são cortadas com profundas fissuras
naturais. Quando as examinei, realizei também leituras sobre o assunto e
descobri que quase todas as fissuras percorrem o eixo norte-sul ou noroeste
rumo ao sudeste. Além disso, um riacho subterrâneo corre sob a pedra.
Como na Montanha Silbury, a corrente invisível proporciona uma sensação
da força vital da Deusa. Os rios subterrâneos evocam o sangue fluindo sob a
superfície de nossos próprios corpos. Na "Teaching Rock", as fissuras
permitem-nos ouvir o riacho correndo na escuridão, sob nossos pés.
Mas há algo mais sobre essas fissuras, algo que precisa ser visto, até
mesmo sentido. As fendas formam imagens naturais de grande beleza,
vulvas, figuras humanas claras, um xamã rezando e uma forma parecida com
a Deusa, com samambaias crescendo no coração e flores multicoloridas nos
genitais — uma combinação perfeita para o entalhe n.i grande pedra (ver
Foto 5).
Processos naturais "entalharam" todas as imagens dessas pedras
menores. Será que elas inspiraram os algonqueiros que foram até lá ira criar
suas próprias figuras na grande pedra que mais tarde receberia o nome de
"The Teaching Rock"? Assim como os dois buracos com o sulco vermelho
correndo entre eles, "The Teaching Rock" contém várias fissuras naturais
próprias, incluindo uma fenda na forma de um pássaro, que segue toda a
extensão da base da pedra.

Transportando Significados Sagrados para Novos


Locais
Quando saímos do nosso país natal para visitar os lugares sagrados de outras
terras, agimos como abelhas transportando pólen de uma planta para outra,
para que as diversas espécies possam continuar a viver. Levamos o nosso
conhecimento de uma cultura para outra e carregamos conosco experiências
que podemos depois aplicar em nossas próprias vidas e sociedade.
67

Originalmente, a religião constituía um relacionamento contínuo, não


somente com a divindade, mas até mais com o lugar. As pessoas encaravam
o sagrado como inseparável da terra. Dolores La Chapelle relata que os
primeiros exploradores europeus freqüentemente achavam que os povos
indígenas não tinham nenhuma religião, porque não conseguiam dar um
nome específico para Deus; mas para as pessoas daqueles lugares, Deus
vivia em volta delas, na natureza e em seus próprios rituais.
Com a ascensão dos impérios, como a Grécia helênica e Roma, a
religião tornou-se algo a ser exportado. As religiões evangélicas do cris-
tianismo e do islamismo transformaram a religião em uma questão de
doutrinas e leis, uma religião mais de livros que da natureza. Pode ser
quase desconcertante para um judeu ou para um cristão visitar Israel e
descobrir que os locais descritos na Bíblia são lugares de verdade. Por
exemplo, a idéia cristã do inferno deriva originalmente de um mito
hebreu de "Geena". Geena, no entanto, é um atual vale deserto localizado
a sudoeste de Jerusalém.
Aqueles que buscam Artemis ou Inana ou Oya, ou vão da América
ou da Inglaterra para os templos de Malta, correm o risco de importar
espiritualidades estranhas para nossas terras nativas. Este problema é
grave para os euro-americanos. Nossa espiritualidade ancestral deriva de
lugares que jamais habitamos, que muitas vezes nunca vimos. O que
estamos criando quando celebramos o festival celta de Beltane na América
do Norte? Se não temos herança grega, mas sentimos uma familiaridade
com as Deusas gregas ou romanas, como Artemis/Diana ou
Afrodite/Vênus, então estamos pegando Deusas de um lugar estranho
para nós e trazendo-as para um lugar estranho a elas. Por outro lado, se
buscarmos as tradições indígenas das Américas, e tentarmos seguir esses
caminhos, com suas realidades difíceis e indagações fantasiosas, podemos
estar nos vinculando a uma espiritualidade estranha à nossa educação
cultural. E os próprios nativos americanos podem achar uma exploração
de nossa parte estarmos usando suas tradições. Isto é particularmente
verdade quando as pessoas brancas cobram um alto preço para realizar
cerimônias no estilo nativo.
Talvez uma resposta para este dilema esteja em se aproximar com
humildade das várias culturas e tradições nativas, embora ainda con-
fiando na verdade da nossa própria experiência — o que vemos com
nossos próprios olhos.
Assim como as abelhas transportam o pólen de planta para planta,
também os humanos migradores transportam as idéias e as experiências
68

espirituais de uma terra para outra. Espero que possamos aprender a fazê-
lo sem o imperialismo dos cristãos ou dos maometanos, que tentaram
obrigar os povos indígenas de todo o mundo a abandonar seus próprios
Deuses e Deusas. O valor da polinização cruzada é ver as coisas de uma
maneira nova.

A Sobrevivência da Deusa na Vida Cotidiana dos


Malteses
Quando vamos aos locais sagrados, às vezes podemos encontrar algo que
não esteja descrito nos textos porque não pertence à evidência ar-
queológica. Em alguns casos, trata-se de uma justaposição cultural. No
oeste da Irlanda, um pequeno santuário de beira de estrada em honra à
Virgem Maria está situado quase ao lado de um igualmente modesto
círculo de pedra. Esses dois lugares sagrados estão situados nos pastos
silenciosos de uma fazenda moderna, onde as vacas — uma forma da
Deusa reconhecida em todo o mundo — pastam na grama.
A Ilha de Malta contém muito poucos dolmens entre seus muitos
templos. Em um deles, no entanto, podemos nos ajoelhar e ver uma
igreja moderna através da estrutura do arco pré-histórico. Na ilha vizinha
de Gozo, há uma justaposição ainda mais fascinante. Gozo é o local de
"Ggantija" (o nome significa "mulher gigante"), o mais antigo dos
templos malteses e um daqueles cuja forma mais se assemelha a um
corpo de mulher (ver esboço de sua estrutura na p. 31). Ggantija tem
6.000 anos de idade, o que lhe proporciona uma reivindicação da mais
meiga construção do mundo de pé sobre suas próprias fundações. Como
acontece em tantas tradições pré-históricas e indígenas, os templos e as
estátuas freqüentemente eram pintados de ocre vermelho, uma sugestão
do sangue vital da Deusa. As cercas de pedra construídas pelos
fazendeiros nos campos às vezes contêm pedras com vestígios do ocre
vermelho de milhares de anos atrás.
Um vermelho similar domina a arquitetura contemporânea de
Gozo. As igrejas são pintadas de um vermelho-terra, com domos e
cúpulas vermelhas, e grossas cortinas de veludo vermelho decoram os
inferiores. Mesmo as decorações internas das casas parecem apresentar o
mesmo vermelho profundo. E as formas das igrejas, com uma ênfase nos
domos e nas paredes redondas, evocam o corpo feminino de uma histórica
da Deusa aparentemente morreu com as pessoas que deslocaram aquelas
enormes pedras, para compor a forma de um corpo de mulher. Mas a
69

descoberta desses templos e a maravilha de sua forma têm inspirado pessoas


como Mimi Lobell, ou Eva e eu, ou aquela mulher silenciosa, ou muitas
outras que vêm em grupos ou sozinhas, a despertar nosso próprio
conhecimento da Deusa, em nossas vidas, em nossos corpos, no mundo que
nos cerca. O corpo invisível da história transforma-se no corpo visível da
celebração, do ritual, e muda as vidas das pessoas. Em vez de casas de
caracol, os templos, as cavernas, os círculos de pedra e todos os outros
locais tornaram-se crisálidas, e a religião da Deusa é uma borboleta que
emerge mais uma vez à luz brilhante do mundo vivo.
70

3 - O Corpo de Pedra Pintado

As vezes eu durmo, volto ao início, recuando de um ponto culminante no


céu, levado pelo meu estado natural como o dorminhoco da natureza, e nos
sonhos eu flutuo, acordando aos pés de pedras gigantescas.
Pablo Neruda

As maneiras de fazer as coisas podem ser novas, as coisas a serem feitas


em geral não são.
Judith Guest, Miss Manners

Eles viviam sob as sombras das geleiras que tinham até um quilômetro e
meio de espessura, compartilhando seu mundo com rebanhos de renas e
vacas e touros selvagens, chamados bisões. Nós separamos luas fogueiras,
catalogamos seus instrumentos e escavamos seus restos mortais para examinar
seus ossos sob microscópios. Criamos fantasias de suas vidas, retratando
homens selvagens golpeando as mulheres na cabeça para arrastá-las de volta
às cavernas. Entretanto, um aspecto das vidas de nossos ancestrais mais
remotos ainda nos impressiona. Contra tudo que poderíamos esperar, essas
tribos da Idade da Pedra, dezenas de milhares de anos atrás, criaram uma
arte magnífica, desde imensos desenhos de touros e cavalos até estatuetas
delicadamente entalhadas do corpo feminino, muitas delas extremamente
estilizadas e abstratas. De que maneira essas imagens se comunicam
conosco? Que histórias podemos descobrir (e criar) sobre elas? Quando
pensamos no corpo da Deusa, pensamos mais frequentemente na Mãe Terra,
de forma que as cavernas pintadas se traduzem por um retorno ao Seu útero.
Será que os próprios pintores as consideraram dessa maneira? Os sinais da
vulva escavados nas paredes sugerem isso. Assim como as esculturas, pois
ainda que seus criadores as tenham feito pequenas o bastante para caberem
em uma só mão, também as escavaram em um estilo maciço, reminiscente
71

das próprias montanhas. Na caverna, a imagem da fêmea humana, o poder


selvagem dos animais e a presença eterna da montanha se fundem.
72

Primitivismo
Observar o mistério da arte das cavernas significa antes de tudo observar
nossos próprios preconceitos. Quando os etnógrafos europeus começaram a
investigar as crenças e o comportamento dos nômades e de outros povos
tradicionais, criaram o termo "primitivo", ou seja, pessoas que não foram
além dos estágios iniciais do desenvolvimento humano. Ao examinar os
africanos do deserto de Kalahari ou os aborígines australianos, os europeus
supostamente podiam olhar para trás no tempo, para seus próprios
primórdios. Alguns textos comparavam a visão de mundo das "tribos
primitivas" com aquela das crianças ocidentais.
Não foi por acaso que essa abordagem da antropologia desenvolveu-
se no período após a publicação da Origem das Espécies, de Charles Darwin.
O conceito de evolução mudou a maneira dos europeus considerarem as
outras culturas. Anteriormente, até europeus que rejeitavam a doutrina
cristã, segundo a qual Deus criou o mundo 5.000 anos atrás, ainda tendiam a
considerar as culturas não-européias como ignorantes e desprezíveis. Depois
de Darwin, os europeus começaram a descrever a humanidade como
evoluindo de um estágio para outro.
A própria cultura européia certamente parece ter feito isso. A Idade da
Pedra Lascada evoluiu para a Idade da Pedra Polida com o desenvolvimento
da agricultura e das construções monumentais. Os metais produziram
primeiro a Idade do Bronze, depois a Idade do Ferro. O
patriarcado e os governos centralizados parecem ter substituído as
comunidades tribais, e assim por diante.
Por isso, para os europeus torna-se natural encarar cada mudança
como um avanço para uma cultura "mais elevada". De fato, isto é
literalmente verdadeiro na arqueologia, pois se encontra evidência de culturas
mais antigas escavando mais fundo na Terra. É possível, contudo, que este
seja o único ponto verdadeiro. Pois à medida que exploramos o
conhecimento, a sofisticação e as vidas cotidianas dos povos da Idade
da Pedra, tanto da Pedra Lascada quanto da Pedra Polida, começamos a
questionar se as mudanças necessariamente desenvolveram a sociedade
humana ou o conhecimento humano. Somente com os computadores e
os microscópios começamos a recuperar parte do conhecimento perdi
do com a Idade da Pedra. E ainda temos um longo caminho a percorrer
antes de recuperarmos a sabedoria.
73

Como a cultura européia parecia ter se "desenvolvido" a partir de


raízes primitivas, os europeus consideravam as sociedades tribais — e
especialmente as sociedades não-agrícolas — como subdesenvolvidas,
Ignorantes. Pessoas como os aborígines australianos pareciam ter ficado
paralisadas na Idade da Pedra Lascada. Os europeus usaram (e ainda usam)
esta atitude para justificar a conquista de territórios tribais e a destruição
dos povos indígenas.
Hoje em dia, podemos achar natural fazer comparações culturais
cruzadas entre culturas tribais diferentes ou observar as culturas
contemporâneas de caçadores e coletores para compreender a Idade da Pedra
Lascada européia. Precisamos reconhecer as limitações de uma abordagem
desse tipo, porque cada cultura é singular. Podemos encontrar inspiração e
possibilidades nos aborígines australianos, por exemplo, mais explicações
para o nosso próprio passado. Os aborígines têm toda uma civilização
extremamente complexa, uma civilização que existiu 60.000 anos atrás. Ela
também está viva e dinâmica.
Durante muitas décadas, as pessoas consideraram a arte existente nas
cavernas pré-históricas da França e da Espanha uma mistura de coisas, sem
nenhum sentido de composição. Supunha-se que os pintores pintavam
qualquer coisa que quisessem em qualquer lugar que parecesse um espaço
disponível. Os especialistas também supunham que povos isolados tivessem
realizado as pinturas no decorrer de longos períodos de tempo, com pouca
consideração pelo que havia ocorrido antes. Afinal, esses foram os povos
mais primitivos de todos, nossos mais antigos ancestrais.
A partir da década de 1950, estudiosos da pré-história como André
Leroi-Gourhan e Annette Laming estudaram o esquema das pinturas,
usando tanto análise estatística quanto um sentido de estética para
demonstrar a possibilidade da caverna de Lascaux e outras terem sido
criadas como um todo, uma composição gigantesca, por uma mesma equipe
de artistas dedicados. Animais de um tipo podem ter complementado outro
— Leroi-Gourhan cita particularmente o equilíbrio entre os equinos e os
bovinos. Grupos de animais criam efeitos especiais. Uma série de cinco
cabeças de veados desenhadas em alturas variadas e em ângulos variados
sugere o ritmo de uma onda, como se os animais estivessem atravessando
um rio.
74

Poder de Lascaux
Uma vantagem de ver com nossos próprios olhos é que isso pode nos ajudar
a tirar da mente a ideologia do primitivismo. Ironicamente, quando
observamos os monumentos da pré-história européia — os círculos como
Stonehenge, ou as cavernas muito mais antigas, como Lascaux ou Pêch-
Mèrle —, podemos emergir desprovidos da idéia de que sempre houve isso
que chamamos de ser humano primitivo.
Ver Lascaux é ver, de uma maneira esmagadora, o brilhantismo e a
complexidade dos humanos Cro-Magnon de 17.000 anos atrás. Em 1963, o
governo francês fechou Lascaux devido à contaminação bacteriana dos
muitos visitantes. (Foi feita uma cópia, a mais exata possível em termos de
pigmentação e dos contornos das paredes, explodindo uma segunda caverna
no mesmo declive da montanha, algumas centenas de metros de distância
dali. Imagina-se como os arqueólogos do futuro, incapazes de decifrar
nossas línguas, considerariam essa duplicação, com um intervalo de quase
20.000 anos separando as duas cavernas)
Ainda é possível ver a original, solicitando permissão com bastante
antecedência. Como ela só recebe quatro ou cinco pessoas de cada vez, os
guias desenvolveram uma maneira dramática para mostrar a caverna em sua
glória. Primeiro, conduzem o visitante até uma antecâmara cortada na
encosta da montanha. Depois, apagam todas as luzes antes de abrir a porta
para a caverna em si. Se, como alguns suspeitam, a caverna foi usada para
iniciações, esta pode ter sido a maneira como os membros das tribos originais
penetravam no segredo — isto é, na escuridão total, até seus líderes
acenderem suas tochas ou lamparinas.
Os guias conduzem você até a câmara e ligam as luzes elétricas. E ali
fica você, de pé, entre enormes paredes brancas cobertas de animais
saltando, correndo, bufando, alguns com até cinco metros e meio de
comprimento, parecendo manadas de cavalos, ou touros, alguns com outros
animais emergindo de seus corpos, todos pintados com cores brilhantes. O
efeito é um desejo de gritar ou chorar de assombro e júbilo, enquanto o
tempo todo você pensa: "Isto tem 17.000 anos de idade. As pessoas
pintavam estas obras-primas 17.000 anos atrás" (ver Foto 7).
O tamanho das pinturas, as cores brilhantes ou o ambiente gran-
dioso — não é apenas isso que liberta você das ideologias do
primitivismo. É a técnica, a beleza do trabalho. Os detalhes anatômicos são
75

precisos e elegantes (em outras cavernas, os pré-historiadores concluíram


distinguir três raças de cavalos, assim como ursos marrons e lucros, por
suas diferenças anatômicas). Ao mesmo tempo, alguns touros exibem uma
espécie de perspectiva dupla, com a cabeça de perfil e dois chifres vistos
como se apenas três quartos estivessem visíveis. Como em outras cavernas,
os pintores usaram a forma das paredes para dar um efeito tridimensional
às formas pintadas. Em algumas figuras, os artistas entalharam em torno da
pintura, para aumentar a sensação de dinamismo. Ao contrário das figuras
em algumas das outras cavernas, os animais de Lascaux aparecem em uma
movimentação selvagem, incluindo um cavalo pintado de cabeça para
baixo, com as pernas separadas para parecer que está caindo desamparado
através do ar.
Segundo uma história antiga, a prostituição é a profissão mais antiga
do mundo. Ver Lascaux é reconhecer que a mais antiga profissão pode
muito bem ser a de artista. Não há virtualmente a menor possibilidade de
que um grupo de pessoas que estivesse perambulando, sem tradição ou
treinamento, encontrasse uma caverna interessante e decidisse fazer alguns
desenhos. Elas eram, antes de tudo, pessoas dotadas de talento. Pegue um
livro de fotos de Lascaux. Tente reproduzir alguns desenhos em uma folha de
papel comum — e depois imagine as pessoas pintando-os e entalhando-os,
com três metros e meio ou cinco metros e meio de comprimento, em uma
parede de pedra irregular, enquanto estão sentadas ou deitadas em andaimes.
Os artistas de Lascaux tinham de ser pessoas talentosas, pessoas especiais
em sua comunidade. E tinham de ter recebido treinamento nas técnicas
especiais — e na tradição artística — usadas em seu grandioso projeto.
Lascaux também não é primitiva do ponto de vista intelectual.
Menos notada que os animais maciços é uma série complexa de sinais
abstratos que pontilham as paredes. Leroi-Gourhan e seus discípulos
catalogaram cerca de 400 deles.
Para nós, que não temos o treinamento de Leroi-Gourhan, este é inda
o ato de enxergar, de nos abrir ao maravilhoso, que exibe a ideologia da
humanidade primitiva e nos permite reconhecer o milagre arte
incorporando o sagrado.
76

Primórdios da Arte
Antes de examinar os possíveis propósitos da arte nas cavernas, devemos
observar o desenvolvimento dessa arte. Isso não somente vai nos instruir no
que os cientistas aprenderam da história inicial da humanidade, mas vai
também ajudar a demonstrar a primazia da arte na cultura humana. Talvez
esta última frase devesse falar na cultura dos "primatas". John Pfeiffer, em
The Creative Explosion, conta-nos sobre um chimpanzé do Jardim
Zoológico de Londres, chamado Congo, que produziu 384 desenhos aos
quatro anos de idade, "progredindo desde rabiscos até círculos e cruzes
toscos", alguns deles tendo sido até vendidos em uma exposição. Nos
Estados Unidos, um chimpanzé chamado Moja, com três anos e meio, fez
um desenho de "quatro segmentos de linha, um ângulo reto e uma curva
ampla". Moja fazia parte de uma experiência de comunicação entre espécies
e aprendeu um vocabulário limitado da Linguagem Americana de Sinais.
Quando parou de desenhar, o humano que estava assistindo comunicou-lhe
com sinais: "Faça mais." Moja sinalizou como resposta: "Terminado." O
humano perguntou: "O que é isso?" Moja respondeu: "Pássaro." Mais tarde,
Moja prosseguiu, desenhando "grama", "frutinha" e "flor". Possivelmente, o
impulso para criar a linguagem e a arte teve um desenvolvimento si-
multâneo.
Entre as primeiras criações humanas estão os "machados de mão",
pedras escolhidas por sua forma alongada e arredondada, aplanadas e depois
aparadas lateralmente para produzir tanto uma extremidade cortante quanto
uma simetria. Eles aparecem cerca de um e meio milhão de anos atrás. Será
que seus fabricantes os moldaram simetricamente por razões estéticas? Um
exemplar encontrado em Norfolk, na Inglaterra, contém uma concha
fossilizada, exatamente no meio, como se tivesse sido colocada ali para
embelezá-lo.
Os historiadores da pré-história referem-se a tais objetos como
machados de mão, mas na verdade, segundo Pfeiffer, "não são machados e
não eram usados para cortar nem para qualquer outro tipo de trabalho
pesado". Seriam realmente ferramentas? Os famosos machados duplos de
Creta eram feitos de um metal mole demais para ser usado como
ferramentas ou armas. Variando em tamanho desde alguns centímetros até
mais de dois metros de altura, eles eram usados como oferendas votivas,
objetos de devoção à Grande Deusa. Os muitos brasões e outras imagens
77

deles mostram-nos associados apenas às mulheres, nunca aos homens. O


nome dos machados cretenses, labrys, está relacionado a "lábia"', os lábios
da vulva.
Não podemos comparar a Creta de 4.000 anos atrás com o Homo
erectus de um e meio milhão de anos antes. Mas é importante observar que,
de acordo com as evidências, durante um longo tempo depois dos humanos
terem descoberto como fazer o fogo, ele não foi usado para seu
aquecimento ou para cozinhar alimentos, mas para realizar rituais. Logo
iremos examinar o trabalho de Alexander Marshack, que indica que a arte e
as "histórias", não as ferramentas, distinguem os primeiros humanos.

Primeiras Imagens Femininas


Em The Civilization of the Goddess, Marija Gimbutas relata que as esculturas
de pederneira de figuras femininas já existiam 500.000 anos atrás. Segundo
John Pfeiffer, o mais antigo objeto cuidadosamente registrado, encontrado
na França, data de 2-300.000 anos atrás. Consiste em uma costela de boi
com cerca de quinze centímetros de comprimento, assemelhando-se a um
par de linhas paralelas curvas. Somente quando examinadas em microscópio,
elas se revelam como linhas duplas, executadas com precisão. A professora
Gimbutas descobriu a proeminência precisamente dessa imagem — linhas
paralelas curvas — na arte posterior da Deusa. Elas aparecem
repetidamente, na cerâmica e nas esculturas.
Os humanos de hoje descendem do grupo evolucionário conhecido
como Cro-Magnon. Nossos primeiros concorrentes, os homens Neandertal,
também parecem ter contribuído para o desenvolvimento da arte e da
religião na cultura humana. Uma caverna no norte do Iraque revelou restos
de um funeral neandertal de 60.000 anos de idade, com porcos deitados,
como se estivessem dormindo, sobre um leito de flores, possivelmente
plantas curativas. Alguns restos do grupo Neandertal indicam que eles
pintavam os cadáveres de ocre vermelho. Sabemos, por culturas posteriores,
que o ocre vermelho simboliza a vida e, especialmente, o sangue menstrual
e do parto da Deusa. Ele aparece freqüentemente nas tumbas ou na arte das
tumbas, sobretudo nos entalhes enterrados enfatizando o útero da Deusa.
Similarmente, muitas estatuetas e esculturas em relevo da Deusa
encontradas nas cavernas posteriores foram pintadas em ocre vermelho. O
mesmo aconteceu com as estátuas e as pedras do templo em Malta e em
outros lugares. 11 m artigo recente do U.S. News and World Report descreve
78

uma estrutura de pedra de quatro paredes construída pelos homens Neandertal


bem ao fundo de uma caverna. A idéia de uma construção em uma caverna
sugere algum propósito ritual.
A arte muito antiga inclui marcas de "xícaras" datadas de cerca de
125.000 anos atrás. Estes círculos côncavos entalhados provaram ser um
símbolo surpreendentemente duradouro, encontrado na arte da pedra em
todo o mundo, desde a Europa até a América do Norte e a Austrália. A
forma côncava sugere a qualidade interior do corpo feminino, o útero. Os
índios pomos do norte da Califórnia chamam essas rochas entalhadas de
"rochas bebês". Os casais que desejam ter filhos dirigem-se às rochas com
oferendas e orações aos Espíritos. Depois, escavam um pouquinho de
esteatita dos buracos, moem-na bem fino e misturam-na com água para fazer
uma pasta que então pintam no abdômen e na região púbica das mulheres.

A "Explosão Criativa"
Cerca de 35-40.000 anos atrás, a humanidade Cro-Magnon sofreu o que John
Pfeiffer chama de "explosão criativa", com o surgimento de entalhes na
parede, ossos delicadamente entalhados e estatuetas elaboradamente
esculpidas, que continuaram a ser criados durante milhares de anos.
Isto não significa que a cultura humana teve início apenas na Europa.
A maior parte do nosso conhecimento do período paleolítico vem de uma
pequena área do sul da França e do norte da Espanha, particularmente os
vales dos rios Dordogne e Vézère, na França. Entretanto, pelo menos a
China e a índia são também conhecidas como tendo experimentado
desenvolvimento na Idade da Pedra, embora pouca arte tenha sido lá
encontrada, possivelmente devido a uma exploração menos extensiva. A
arte na pedra aparece virtualmente em toda parte, e sua fonte mais rica é o
sul da África, onde foram encontrados cerca de 6.000 sítios arqueológicos,
contendo cerca de 175.000 pinturas. As pesquisas arqueológicas recentes
deslocaram o início da arte — e do comércio — da Europa para épocas
muito anteriores na África. Pelo menos 100.000 anos atrás, os humanos
na África desenvolveram redes comerciais de longa distância para vários
produtos, incluindo contas.
A arte inicial, especialmente a arte mural e as estatuetas, mostra o
poder espiritual do corpo feminino. As gravuras murais européias co-
meçaram com imagens da vulva, e embora os animais mais tarde tenham
79

adquirido maior proeminência, a vulva permaneceu um símbolo poderoso,


nas cavernas, nos abrigos de pedra e nas esculturas. Os historiadores da
pré-história encontraram na Europa mais de 770 placas gravadas com
desenhos de vulvas. Na caverna de La Bastide, pedras gravadas com vulvas
foram encontradas colocadas de face para baixo em um círculo. (A idéia
de um círculo de pedra dentro de uma caverna é fascinante, quando
consideramos o costume recente de supor que todos os círculos de pedra
servem como observatórios astronômicos.)
Em Lês Eyzies, na região da Dordogne francesa, os escavadores
descobriram cadáveres pintados com ocre vermelho e enterrados com
conchas de cauri. Em geral, associamos as conchas de cauri à África,
onde elas eram usadas para arte religiosa feita de contas, colares, ornatos
para o cabelo e dinheiro, e também como símbolos de poder e de
adivinhação. Os cauris formam uma imagem natural da Deusa, pois o
lado da fenda se assemelha à abertura vaginal, enquanto o lado arredon-
dado sugere o inchaço de uma barriga grávida. Segurado verticalmente, o
cauri se assemelha aos grandes lábios. Horizontalmente, a concha lembra
olhos. Os grandes olhos amendoados característicos de algumas esculturas
e máscaras africanas derivam de conchas de cauri. Existe um
relacionamento simbólico entre o olho e a vagina. Ambos abrem para o
corpo. Através do seu vínculo com a mente, o olho traz à tona idéias
criativas, da mesma maneira que a vagina traz à tona os bebês. Segundo RJ.
Stewart (escrevendo sobre o termo "Sil" de Montanha Silbury), sul ou
suil, em irlandês antigo, significa "olho" ou "cavidade", e também
"vagina".

Abstração Simbólica
As vulvas entalhadas não eram imagens realísticas dos genitais femininos,
mas fendas ou triângulos abstratos. Em outras palavras, eram símbolos. E
quando encontramos símbolos, podemos falar de idéias e de um sentido
do sagrado. As pessoas daquela época não viviam nas cavernas escuras e
inacessíveis, mas em abrigos de pedra, que também pintavam e
entalhavam. No abrigo de pedra de L'Abri Pataud, os arqueólogos
encontraram uma mulher e uma criança enterradas em frente a uma
vulva escavada na pedra. Repetidas vezes, essa mesma conjunção aparece
diante de nós: o cadáver e a vulva; ocre — a cor da vida — e o morto; a
morte e o renascimento; voltando milhares de anos.
80

Mais tarde, os entalhes murais das mulheres mostram ainda mais


abstração simbólica. As imagens tornam-se reduzidas às características
essenciais dos seios, nádegas e vulva. Às vezes, não encontramos cabeça ou
pés. As estatuetas também mostram o corpo abstraído. Como mencionado
antes, as nádegas parecem exageradas, os pés muitas vezes desaparecem,
os quadris e os seios parecem montanhosos e a cabeça pode parecer plana,
como a das aves, ou marcada com buracos. Os arqueólogos encontraram
mais de 1.000 estatuetas da Idade da Pedra. Quase todas representam
imagens femininas.
Uma das figuras esculpidas mais antigas conhecidas no mundo, a
chamada "Vênus" de Willendorf, datada de cerca de 30.000 anos atrás, r
uma mulher com grande barriga e seios, braços truncados desaparecendo
nas laterais (ou se tornando linhas estreitas que atravessam a parte
superior dos seios), pernas grossas sem pés (possivelmente para assentar
na lama ou nas cinzas de uma fogueira) e uma grande cabeça com rosto,
parecendo um favo de mel (ver Foto 8). A imagem do favo de mel antecede
a Deusa Abelha, encontrada milhares de anos mais tarde cm Creta, Canaã
etc. Significativamente, a estátua parece ter sido colo-i ida com ocre
vermelho, um indício para o seu status como arte sagrada.
Apesar do título de "Vênus", a Senhora de Willendorf (se podemos
mudar a expressão) não está esculpida como grávida. Nem a maioria das
outras estatuetas da Deusa. Embora elas representem o poder feminino, com
seus enormes seios, quadris e nádegas, não representam apenas a fertilidade,
mas algo mais amplo, mais abstrato e abrangente. A vulva não significa
apenas o nascimento, mas a sacralidade e a criatividade do corpo da Deusa
como um todo. William Irwin Thompson relata (em The Time Falling
Bodies Take To Light) que o elo entre a menstruação e o ciclo lunar transforma
a vulva em um símbolo, não da fisiologia, mas do cosmos. Mas por que
estas duas coisas se opõem uma à outra? O poder da religião da Deusa está
na precisão com que o corpo humano reflete o cosmos — e lhe proporciona
significado.

Impressões de Mãos
As outras formas de arte aparecem cedo e continuam através do período
paleolítico: bastões entalhados e impressões de mãos. Como as marcas de
xícaras, as impressões de mãos aparecem no mundo todo na arte da pedra.
Às vezes as encontramos junto com outras imagens; outras vezes, apenas
elas. Os artistas usavam dois métodos. As impressões de mãos "positivas"
81

eram a imersão das mãos na tinta e depois sua pressão contra a parede. As
impressões de mãos "negativas" parecem ter sido feitas pressionando-se a
mão contra a parede, com os dedos abertos, e depois soprando a tinta
através de um tubo na área em torno da mão. Algumas impressões de mãos
aparecem com parte de um dedo faltando. Na caverna de Maltrevieso, no
oeste da Espanha, todas as impressões de mãos se caracterizam pela ausência
das duas articulações superiores do dedo mínimo. Embora isto possa ter
resultado de uma amputação ritual, talvez como uma oferenda aos
Espíritos, Mark Newcomer, um arqueólogo experimental, demonstrou a
possibilidade de se falsificarem essas imagens dobrando o dedo antes de
soprar a tinta.
O tamanho das mãos indica que as mulheres faziam tais impressões,
dando suporte à idéia de que artistas mulheres criaram as pinturas. Na índia
rural, pintoras mulheres contemporâneas incluem as impressões das mãos
como parte do seu trabalho.
À semelhança que ocorre com toda a arte pré-histórica, desconhe-
cemos o significado específico das impressões das mãos. Podemos supor, em
um sentido genérico, o que levaria as pessoas a deixar esses tipos de marcas.
Quando vamos a um lugar sagrado, onde experimentamos grande respeito,
em geral desejamos tocar o chão, as pedras ou as árvores. Queremos
pressionar nossas mãos como uma extensão da nossa consciência, pois elas
de alguma forma transportam uma carga especial de energia. Não somente
nossas mãos nos distinguem dos outros animais, mas as usamos para
reconstruir o mundo que nos cerca. As impressões das mãos fazem uma
declaração poderosa. Deixam uma marca da consciência. Constituem tanto
um ato de submissão quanto uma atitude ousada de participação no poder
espiritual vivo, presente naquele lugar. Com as impressões das mãos
absorvemos o poder de um lugar sagrado e entregamos em troca algo de nós.
Pressionamos a realidade do nosso próprio corpo no corpo da Terra.
Na caverna de Pêch-Mèrle, impressões de mãos negativas cercam um
desenho de dois cavalos. As mãos permanecem fora dos corpos,
transmitindo uma sensação de que os humanos podem não penetrar em algo
tão venerável quanto um espírito animal. Esta separação estrita torna-se
mais interessante quando consideramos que os artistas das cavernas em geral
desenhavam um animal surgindo de outro, como em Lascaux, ou ainda
superpondo muitos desenhos, um acima do outro.
82

Bastões Entalhados
Os bastões entalhados são uma questão mais complexa, pelo menos pelo
fato de conterem mais informações. Eles consistem em ossos ou chifres
entalhados e decorados, às vezes com uma série de marcas simples,
aparentemente abstratas, mas outras vezes com figuras de animais c de
plantas cuidadosamente entalhadas. A maioria deles tem pelo menos um
buraco perfurando-os; alguns têm vários. Os arqueólogos costumavam se
referir a eles como "batons de commandant", presumindo que fossem um
símbolo de autoridade de um chefe tribal — uma suposição que talvez diga
mais sobre os arqueólogos do que sobre a cultura da Idade da Pedra. O
museu da arte das cavernas, em Lês Eyzies, na França, descreve atualmente
os poucos bastões exibidos como "objetos enigmáticos".
Das várias imagens de humanos com animais na arte paleolítica,
nenhum dos humanos porta armas. Alguns poucos, no entanto, carregam
objetos ou discos cerimoniais, indicando que eles procuravam encontrar
animais sagrados, não matá-los ou subjugá-los.

O Trabalho de Alexander Marshack


Alexander Marshack foi um dos pioneiros do estudo de ossos e chifres
entalhados, trabalhando com objetos da África e da Europa. Ele usou dois
instrumentos em seu trabalho: um microscópio e uma mente disposta a
pensar nas coisas de uma maneira nova. Ao contrário de muitos escritores,
Marshack jamais reivindica a verdade absoluta para suas interpretações, mas
apenas que os artistas pré-históricos poderiam (o itálico é dele) ter tido esta e
aquela idéia.
O microscópio conduziu a várias descobertas. Primeiro, há a técnica
notável desses artistas de mais de 10.000 anos atrás. Marcas cuidadosamente
espaçadas em padrões regulares misturadas com imagens graciosas de veados
e cabritos monteses, plantas e brotos, salmões e outros peixes. Em muitos
casos, só com o microscópio podemos enxergar a precisão biológica da arte,
com as espécies particulares claramente distinguíveis. (As facas de pederneira
não são os instrumentos toscos que vemos nas imagens populares da vida nas
cavernas. André Leroi-Gourhan escreve: "A pederneira tem características
cortantes que, para trabalhar no entalhe ou na escultura, podem se equiparar às
ferramentas de metal.")
83

A teoria mais comum da arte das cavernas descreve as figuras como


mágica da caça. As evidências incluem supostamente figuras de arpões e
setas farpados. Entretanto, os "arpões" na verdade apontam para a direção
errada. Marshack demonstrou a possibilidade de tais sinais farpados
representarem plantas, abrindo assim toda uma nova extensão de
interpretações para a arte paleolítica, que se pensava mostrar apenas
animais.
As plantas são importantes por várias razões. Por um lado, mostram
uma preocupação com as propriedades alimentares, e possivelmente
curativas, do cultivo das coisas. Em Lascaux, os sinais farpados .i parecem
ao lado de animais prenhes e imagens de vulvas. Eles podem estar
representando plantas medicinais usadas para a gravidez. O conhecimento
herbático dos povos não-agrícolas é com freqüência extremamente detalhado
— bem mais, na verdade, que aquele das culturas agrícolas. Os agricultores
plantam apenas algumas culturas, enquanto os coletores recolhem uma
grande variedade de plantas silvestres.
Os sinais de plantas, especialmente ao lado de vulvas ou animais
prenhes, podem simbolizar a renovação da vida na primavera. Marshack
enfatizou este ponto, encontrando sobre um dos chifres estudados toda uma
série de imagens da primavera: salmões desovando e focas, brotos novos,
flores. Podemos pensar nisso simplesmente como uma imagem agradável,
mas Marshack observou implicações revolucionárias. Os historiadores da pré-
história sempre supuseram que os humanos só tomaram consciência da
regularidade do tempo depois da invenção da agricultura no período
neolítico. Um grupo de imagens da primavera conectadas à gravidez
mostra uma consciência das estações e dos processos biológicos, milhares
de anos antes da agricultura.

Marcas em Ossos
O estudo das marcas abstratas nos ossos sugere mais fortemente ainda essa
consciência. Se Marshack estiver correto, essas séries de linhas regulares
gravadas, sempre consideradas rabiscos sem significado, realmente
representam uma cuidadosa contagem de dias, ou meses. As linhas podem
marcar dois tipos de tempo, ambos associados aos corpos das mulheres;
primeiro, as fases da Lua, tão vitalmente ligadas à menstruação; segundo, a
duração da gravidez.
Em vez de serem varas fálicas representando o poder de um chefe,
os "batons" podem ter funcionado como bastões-calendários para as
84

parteiras que precisavam acompanhar as gestações. Se foi assim, esse ca-


lendário, entre outras coisas, indicaria o conhecimento de que os bebês
começam a crescer com o primeiro período falho, se não uma consciência
da conexão com a relação sexual. Alternativamente, os bastões podem ter
ajudado as mulheres a alinhar o poder sagrado dentro de seus próprios
corpos com a espiritualidade irresistível da Lua. Uma interessante
conjunção de significados de culturas bem posteriores defende esta
possibilidade. Segundo Elinor Gadon, em The Once and Future Goddess, a
palavra "ritual" deriva do sânscrito rtu, que significa "mens-truação". O
Klein's Comprehemive Etymological Dictionary ofthe English Language
localiza "ritual" na raiz indo-européia ri, que significa "contar, numerar".
Da mesma forma, na arte das cavernas encontramos a idéia de que a
consciência sagrada remonta à consciência do tempo periódico criado pela
menstruação.

A Vênus de Laussel
Uma das imagens mais famosas da arte das cavernas é a chamada "Vênus
de Laussel", uma incrível escultura em relevo de mais de 20.000 anos de
idade, encontrada em um abrigo de pedras no vale do Rio Dordogne (ver
Foto 9).
Como acontece com várias outras obras em relevo, o artista usou a
curva e a protuberância da parede para proporcionar à imagem qualidade
tridimensional. A evidência indica que essa figura também foi pinta- \ da
com ocre vermelho, aquele símbolo ubíquo do sangue vital da Deusa. Aqui
a mulher aparece grávida. Sua mão esquerda se apóia em sua barriga,
enquanto a direita segura o chifre de um bisão marcado com 13 linhas. O
chifre detém uma importância simbólica imensa. Um ano contém 13 luas
cheias ou 13 luas novas (um mês lunar dura 29,5 dias), e o chifre do bisão,
ou da vaca, se parece com a Lua crescente ou minguante, como uma
barriga grávida se assemelha à Lua cheia.
Lembre-se de que os bovinos, touros e vacas, são os animais mais
comuns na arte das cavernas. E lembre-se de que, nas culturas posteriores
de todo o mundo, a vaca ou o búfalo incorpora a Grande Deusa, com
figuras como a Mulher Búfalo Branco entre os sioux de Lakota,' Oya como
um búfalo na África Ocidental, na Europa e na mitologia, grega, Hator no
Egito, e a vaca no mito escandinavo, que lambeu um bloco de água
salgada congelada para formar o mundo. A Via Láctea, o nome que damos
à nossa galáxia, refere-se ao mito das estrelas como leite da Deusa (vaca)
85

escorrendo no céu. É incrível encontrar esta conjunção complexa de


imagens e idéias tanto tempo atrás, milhares de anos antes do início da
criação de gado. A conjunção dos bovinos e das mulheres na imagem da
Deusa pode ter se originado, em parte, do fato tia prenhez dos bovinos
durar nove meses.

As Histórias e a Determinação do Tempo


Para Marshack, a qualidade especial que marca os seres humanos não é a
fabricação das ferramentas, mas o que ele chama de "histórias" e
"determinação do tempo". Isto significa a capacidade de perceber o
processo e a repetição das coisas — em outras palavras, os ciclos — no
inundo que nos cerca e em nossas próprias vidas, e dar significado a cias.
Eu acrescentaria: atribuir-lhes um significado sagrado. Os mitos, a arte
simbólica, os sinais abstratos e os calendários dão significado à
experiência pura.
As histórias e a determinação do tempo surgem com o desenvolvi-
mento do cérebro e, por isso, pertencem ao corpo. Se as primeiras
"histórias" originam-se da menstruação e da gravidez, vinculando-se estas
experiências à Lua e às vacas, então as histórias, como a própria criação,
emergem do corpo da Deusa — ou seja, do corpo feminino percebido
como divino.
Podemos remontar muitas de nossas histórias fundamentais ao cor-
po, à experiência do nascimento, à consciência da morte, ao fluxo
periódico da menstruação, à excitação urgente e à queda do falo, ao fato da
posição de pé sobre duas pernas, e assim por diante. Isto não reduz a
espiritualidade a "meros" fatos físicos. Ao contrário, mostra a unidade dos
corpos e a verdade sagrada.
Posteriormente, a arte paleolítica por vezes descreveu as imagens
femininas essenciais — seios, nádegas, vulvas — como umas poucas
marcas, por exemplo, um círculo com uma linha atravessando-o para a
vulva. Alguns historiadores da pré-história descrevem isso como uma
"degeneração" da arte. Marshack, no entanto, sugere que a "história", o
significado simbólico da imagem, tornou-se tão conhecida, que um sinal
simples podia transmitir todo o peso do significado (pense em todos os
significados cristãos codificados na forma simples da cruz). Marshack
escreve: "O que está sendo simbolizado não é a origem sexual anatômica,
mas as histórias, os personagens e os processos com os quais o símbolo
86

tornou-se associado." A experiência, os fatos da vida, destilados para o


símbolo e o mito.
A visão padronizada do desenvolvimento humano pressupõe que os
mitos da Deusa só surgem após a descoberta da agricultura. Em outras
palavras, uma revolução tecnológica supostamente conduziu a novos
significados simbólicos. Além disso, a estátua de Willendorf tem 30-50.000
anos de idade. Assim como os primeiros artefatos parecem servir mais a
propósitos rituais que a usos práticos, a tecnologia pode ter seguido a arte e
não outros meios. As imagens femininas da Idade da Pedra Lascada
continuaram na da Pedra Polida. Marshack descreve-as como parte de uma
"herança intelectual, determinada pelo tempo e determinante do tempo que
preparou o caminho para a agricultura". Essa herança intelectual originou-
se do reconhecimento do poder e da verdade do corpo.

Economia do Caçador-Coletor
Durante muitos anos, os historiadores da pré-história descreveram as
pinturas nas cavernas como "mágica da caça". Preocupados em garantir um
suprimento constante de carne, os "homens das cavernas" supostamente
faziam desenhos da presa desejada e esperavam que isso lhes desse poder
sobre as criaturas. Contudo, as evidências arqueológicas corroem esta idéia.
Antes de tudo, a partir do que conhecemos dos ossos e dos restos
fósseis, a caça não era de modo algum escassa, mas abundante. A maioria de
nós foi criada com a imagem dos "homens das cavernas" levando uma
existência miserável e desesperada. Isto também pertence à ideologia do
primitivismo, pois nos diz que estamos muito melhor servidos com nossa
sociedade tecnológica avançada, e que toda a história seguiu um progresso
contínuo para condições cada vez melhores. Se consideramos nossas vidas
atualmente insatisfatórias, podemos nos dizer que não temos escolha, e que
os povos mais antigos sofriam muito mais que nós. Essa visão da vida na
Idade da Pedra Lascada justifica não apenas as chamadas "grandes
civilizações" começando com a Suméria, mas até o capitalismo tardio.
Quando ecologistas e outros atacam nossa aproximação da natureza baseada
no consumo, os conservadores freqüentemente citam a suposta miséria que
existia antes do homem dominar a natureza. Entretanto, a pesquisa tem
corroído esta visão da vida pré-histórica. Em um artigo intitulado "The First
Affluent Society", Marshall Sahlins demonstrou que os povos paleolíticos só
87

precisavam trabalhar 14 horas por semana para se alimentar, se vestir e se


abrigar.
Esta informação surpreendente e revolucionária traz à tona nossas
suposições sobre a vida que levamos hoje, com as pessoas trabalhando 60
horas por semana ou mais simplesmente para sobreviver. Reflete vários
momentos da história, como os Atos de Anexação do século XVIII na Grã-
Bretanha, que transformaram a terra comunal em propriedade privada de
uma pequena classe de proprietários de terra, sob a alegação de que isso era
feito em nome do progresso e da eficiência econômica. Isso nos ajuda com a
tarefa necessária e difícil de questionar a própria suposição da história
humana como uma marcha de progresso da selvageria e da dificuldade para a
civilização e o conforto. E nos leva a imaginar o que os seres humanos fazem
quando só precisam trabalhar apenas 14 horas por semana? Bem, uma coisa
nós sabemos: eles dedicam tempo, energia e recursos da comunidade para
criar grandes obras de arte espiritual.
Os proponentes da mágica da caça como explicação para a arte das
cavernas sugeriram que, embora a caça fosse abundante durante a maior parte
do tempo, os rebanhos às vezes entravam em "colapso" e os caçadores
esperavam que a mágica os ajudasse a evitar essas possíveis calamidades.
Entretanto, os povos da Idade da Pedra aparentemente não caçavam os
animais que pintavam. Pela evidência dos ossos e dos restos de alimentos, sua
dieta de carne consistia quase inteiramente de renas. Mas estas aparecem
com muito menos frequência entre as pinturas do que outras espécies,
especialmente os bovinos e os eqüinos. É como se os pintores
deliberadamente escolhessem os animais com os quais não compartilhavam
um relacionamento doméstico. (Leroi-Gourhan observou que a heráldica
européia descreve animais como leões e águias, mais do que vacas e porcos,
comidos pela nobreza medieval.) Existe uma situação similar com os entalhes
em "The Teaching Rock", no Canadá, produzidos cerca de 16.000 anos atrás.
A rocha contém muitas imagens de animais, mas não imagens dos animais
que as pessoas realmente comem.
Também devemos compreender que muitas pessoas, especialmente
intelectuais feministas, desafiaram a idéia de que a carne domina a dieta
dos povos caçadores-coletores. A carne é valiosa, mas a vida cotidiana
depende da grande variedade de plantas colhidas pelas mulheres. Já vimos
como o microscópio de Alexander Marshack revelou a importância
negligenciada das imagens das plantas entre as dramáticas imagens dos
animais.
88

Pensando Sobre a Arte nas Cavernas


Se as imagens não são mágica de caça, então por que foram feitas? Por que
pintar ou entalhar figuras de animais no fundo de uma caverna escura,
onde os artistas tinham de trabalhar à luz de lamparinas de sebo feitas de
pedra, muitas vezes sobre andaimes? Mais uma vez, jamais poderemos
saber, apenas supor. E essas suposições vão surgir mais do nosso próprio
sentido de significado e beleza do que das verdadeiras crenças dos artistas
das cavernas. A objetividade está apenas no registro dos fatos físicos;
qualquer declaração sobre o propósito é uma declaração sobre nós mesmos.
Em Marks in Place, um livro de fotografias de artistas contemporâ-
neos da arte na pedra, Polly Schaafsma comenta que não há "significados
universais". Há, no entanto, imagens que são quase universais, como a cruz ou
a espiral. E embora as espécies descritas mudem de lugar para lugar, os
animais parecem tocar alguma coisa nos seres humanos que os conduz à arte.
Quando a mente consciente luta para extrair sentido de imagens poderosas,
para delas compor símbolos, então a arte assume significados culturalmente
específicos.
Apesar disso, os significados simbólicos não derivam apenas das
culturas. Os humanos de toda parte e em todos os tempos compartilham as
mesmas condições — mais ou menos a mesma estrutura genética, a mesma
necessidade de alimento e abrigo e realização sexual, o elo com os filhos
surgindo dos corpos de sua mãe, dos relacionamentos com as estações e das
diferentes fases da Lua. Em um sentido muito amplo, podemos declarar que
conhecemos o "propósito" das pinturas das cavernas. O propósito de toda
arte é intermediar o mundo do espírito invisível e o corpo visível da
natureza. Tornar visível o invisível.
As várias teorias para a arte nas cavernas incluem a alegria estética do
trabalho (a arte pela arte), a criação das câmaras de iniciação para os
membros jovens da comunidade e expressões das experiências extáticas dos
próprios pintores. Esta última idéia sugere que os pintores eram "xamãs"
que viajavam em transe para o mundo dos espíritos, encontravam os seres
divinos sob a forma de animais e retornavam para pintá-los. A palavra xamã
origina-se dos povos tungus da Sibéria. Quando a Era Glacial terminou na
Europa Ocidental e os rebanhos de renas deslocaram-se para o leste, os povos
os seguiram. A Sibéria tornou-se um centro para a mesma cultura que
produziu as pinturas nas cavernas.
89

Estados de Transe
A arte das cavernas originou-se de viagens de transe? David Lewis-
Williams desenvolveu essa teoria baseado na neuropsicologia das pessoas
em estados de transe, comparando suas visões com as imagens nas cavernas.
Por exemplo, as pessoas em estados de transe vêem formas geométricas e
figuras abstratas similares às centenas de "sinais" encontrados em Lascaux e
em outros locais. Vêem seres animais poderosos — e conversam com eles.
Também podem encontrar "tierantropos", criaturas parte humanas e parte
animais, ou eles próprios podem se tornar essas criaturas. Embora as
paredes das cavernas exibam principalmente animais, encontramos algumas
misturas de humanos e bestas — por exemplo, uma forma com
características humanas com cabeça e chifres de veado. As pessoas em transe
geralmente iniciam suas viagens experimentando uma descida através de
um túnel descendente. Uma caverna proporciona realidade física a este túnel
psíquico. Lewis-Williams estudou a arte na pedra dos !Kungs, da África do
Sul, como parte de sua pesquisa. Entre os !Kungs, os xamãs desenham
enquanto estão em transe, muitas vezes pintando borrões e outras
abstrações que lhes aparecem em seus estados alterados.
O que é interessante nesta teoria do transe é sua base no corpo. Ela
procura apontar o conhecimento do mundo dos espíritos como a fonte das
pinturas. Mas não trata essas viagens como alucinações; ao contrário,
considera-as experiências do corpo.
Há um conjunto — corpo — de informações relacionadas aos estados
de transe. Grande parte dele diz respeito a medições da eletricidade do
cérebro e assim por diante. Só recentemente, os ocidentais começaram a
considerar as próprias viagens como experiências reais. Só recentemente
começamos — de uma maneira muito nervosa — a ver o mundo dos
espíritos como um lugar real, e os seres que lá habitam como algo além de
projeções das nossas próprias fantasias. Apesar disso, esta é exatamente a
maneira como, há centenas de anos, as pessoas de todas as culturas têm
encarado o mundo dos espíritos.
Acreditar na realidade das viagens de transe requer dois tipos de
confiança. Primeiro, precisamos confiar no fato de que as pessoas que
fizeram estas viagens durante um período de dezenas de milhares de anos
sabiam o que estavam fazendo. Segundo, precisamos confiar na experiência
dos nossos próprios corpos. Felicitas D. Goodman, em Where the Spirits Ride
the Wind, documentou uma série de experiências usando posturas corporais
90

para guiar as pessoas em diferentes viagens espirituais. Goodman estudou


gravuras e esculturas de povos tribais e pré-históricos em várias posições
— sentados com os pés voltados para dentro, ou para o lado, deitados em
um determinado ângulo, até usando determinada pintura no rosto ou uma
roupa específica. Depois instruiu seus médiuns para duplicar estas posturas
o mais precisamente possível. Uma vez isto feito, costumavam respirar e
estertorar ritmicamente para induzir os estados de transe. Não apenas as
diferentes posturas produzem tipos diferentes de experiência, mas vários
indivíduos que usaram a mesma postura vão relatar viagens e encontros
muito semelhantes. Através do corpo, podemos descobrir o mundo espiritual
como um lugar real.

O Xamã de Lascaux
Uma das posturas de Goodman veio de Lascaux. A única imagem humana
nesta grande galeria mostra, em um bastão, a figura de um homem, deitado
de costas ao lado de um bisão (Ver Figura 4).

Figura 4 - O "xarnã" e o bisão de Lascaux, caverna de Lascaux, França, c. 15000a.C.

De início, ele parece estar deitado no plano, mas quando olhamos


novamente, percebemos que o corpo está colocado a um ângulo de 37 graus.
Seus braços estão estendidos, e seu pênis ereto. Goodman construiu
plataformas para que seus médiuns pudessem duplicar esta pose o mais
proximamente possível. Em transe, tanto os homens quanto as mulheres
experimentaram uma grande onda de energia, iniciando ou se concentrando
nos genitais, e às vezes emergindo através da cabeça ou do peito para subir
para o céu. Uma gravura do antigo Egito, datada de 12.000 anos após
91

Lascaux, mostra o Deus Osíris subindo aos céus no mesmo ângulo de 37


graus da figura tipo bastão de Lascaux.
O que nos surpreende de maneira mais significativa quando olhamos
o desenho de Lascaux é a representação tosca do homem. Capazes de pintar
animais com tantos detalhes anatômicos que podemos distinguir até as
subespécies, esses artistas escolheram descrever sua figura humana isolada
da maneira mais simples possível — embora, como observa Goodman,
tomando grande cuidado com a postura. (Para comparação, as gravações na
pedra de Kwakiutl, na América do Norte, contêm o que Campbell Grant
chama de "pequenas figuras humanas tipo bastão" ao lado de um "carneiro
de grandes chifres bem mais realístico".) Isto sugere que os artistas não
consideravam importante sua própria aparência. Em outras palavras, eles
estavam pintando viagens ao mundo espiritual, não auto-retratos. O que
importava era a forma do corpo — os braços estendidos de tal maneira, as
costas em tal ângulo, os genitais excitados.
As idéias de David Lewis-Williams e Felicitas Goodman podem
sugerir que os pintores das cavernas não tinham interesse no mundo
comum, só se importando com o mundo do transe. Mas se os animais das
cavernas originam-se das viagens espirituais, também existem na vida real.
Quando passamos a ver o corpo divino como tudo que nos cerca,
começamos a pôr fim à divisão entre a natureza e o "outro mundo", o mundo
dos espíritos. E começamos também a adquirir um sentido mais amplo do
"corpo". Pois se realizar certas coisas físicas — adotar determinadas
posturas, sentar em uma caverna escura, respirar profundamente, não comer
etc. — vai produzir reações específicas, incluindo uma sensação de
abandonar nossos corpos, então o que estamos abandonando é realmente
apenas uma visão limitada de quem somos e do que é um corpo.

Os Cultos da Fertilidade e as Vênus


O conceito dos "cultos da fertilidade" ou "fertilidade mágica" começou como
um ramo da idéia da mágica da caça. Supostamente, os artistas pintaram
vulvas e criaram estatuetas de mulheres semi-abstratas para garantir
magicamente que os animais de caça continuariam a dar à luz e reabastecer
os rebanhos. Mais uma vez, encontramos a imagem das pessoas "primitivas"
como simplistas, impulsionadas por desejos grosseiros, sem percepção real
do sagrado.
92

Até hoje, a maioria dos textos sobre a arte paleolítica refere-se às


estatuetas maravilhosamente esculpidas, ou às esculturas em relevo, como
"Vênus". Lemos sobre a "Vênus de Willendorf" ou sobre a "Vênus de
Laussel". O termo refere-se à Deusa romana do amor sexual, conhecida
como Afrodite na Grécia. Ironicamente, o nome pode carregar mais
significado do que originalmente pretendia. Afrodite/Vênus era uma Deusa
muito mais poderosa do que o caráter sexual jocoso encontrado na mitologia
grega posterior. Ela era originalmente uma Deusa dos mares, mas também
do céu; da vida, mas também da morte. Elinor Gadon nos informa que os
romanos chamavam as necrópoles, os mausoléus e as catacumbas de
"pombais", em honra à companheira sagrada de Vênus, a pomba.
Originalmente, a Deusa do Amor simbolizava o poder criativo e o prazer
físico. Encontramos Sua história arcaica sugerida no mito de Sua origem, pois
ele a descreve como uma geração mais velha do que Zeus e os outros
Deuses do Olimpo.
Em uma versão da origem de Afrodite, Ela emerge do mar — com u
pomba — e vai primeiro a Chipre. Muitos mitólogos acham que Ela foi
originalmente a Grande Deusa de Chipre, mais tarde assimilada no mito
grego homérico. Uma imagem de barro de Chipre, datada de 3000 a.C.,
mostra uma Deusa com quadris enormes e pernas finas terminando em ponta.
Esta se parece muito com aquelas mesmas "Vênus" paleolíticas louvadas com
o nome romano de Afrodite. A mesma imagem cipriota apresenta um nariz
tipo bico e olhos enormes como os de um pássaro.
Chamar a Grande Deusa da Idade da Pedra pelo nome de Deusa da
sexualidade nos remete de volta à percepção de que a Deusa significa
mais que uma abstração intelectual. Ela é real e física e está presente no
mundo. Ela tem, ela é, um corpo. Essas estatuetas, delicadamente es-
culpidas e pequenas o bastante para caber em uma mão (o que era ne-
cessário para uma cultura nômade), carregam na forma e no estilo o peso
e o poder bruto das montanhas. Embora pequenas, correspondem aos
úteros da caverna na intensidade do seu significado.
Aqui há um paradoxo. Embora imensas, as cavernas nos mostram
apenas um aspecto da forma da Deusa, uma visão localizada do Seu útero
(ou, mais geralmente, o interior do Seu corpo). Mas a Terra toda é o Seu
corpo. Em contraste, os entalhes feitos a mão nos proporcionam uma
imagem completa da Deusa.
93

A Pornografia e o Corpo Divino


Vários desenhos e esculturas paleolíticas do corpo feminino mostram
apenas a área dos seios até as nádegas, sem cabeça, braços ou pernas.
Alguns historiadores da pré-história têm sugerido que tais imagens cons-
tituem a pornografia da Idade da Pedra, como os desenhos nas revistas
masculinas contemporâneas. Ultrajados por essa sugestão, outros de-
fendem a santidade da Deusa e insistem em que essas figuras parcial-
mente abstraídas significam poder criativo — como se a criatividade e o
desejo sexual não tivessem relação um com o outro. Alguns anos atrás,
uma das revistas masculinas mais grosseiras exibiu fotos de mulheres
fotografadas do pescoço até os joelhos, provocando a imaginação das
feministas com a total objetificação do corpo feminino. Provavelmente
nenhum deles, de nenhum lado da batalha, pensou nas muitas esculturas
femininas sem cabeças nem pés da Idade da Pedra Lascada e da Pedra
Polida. Será possível que as imagens impessoais contemporâneas da
sexualidade feminina realmente remontem — de uma maneira muito
distorcida — a uma percepção das mulheres como portadoras de um
grande poder que vai além de suas vidas individuais? Talvez a
criatividade sexual transcenda à personalidade. Mostrar a forma feminina
dessa maneira — apenas o torso — eleva o corpo ao nível de um símbolo,
algo de significado universal que, não obstante, ainda possui forma e se
expressa nos corpos reais das mulheres.
O problema da pornografia não decorre das figuras de mulheres
nuas, mas da suposição de que as partes sexuais das mulheres de algum
modo "pertencem" aos homens. A atitude de que as mulheres existem
apenas para satisfação dos homens drena o poder real das imagens dos
corpos das mulheres. Impulsiona as mulheres para formas não naturais i-
poses ridículas. A obscenidade não está na sexualidade das mulheres. Está
na idéia das mulheres como propriedade dos homens, para serem usadas,
sem identidade ou propósito próprios.

Os Rituais da Menstruação e da Gravidez


A maioria das pessoas que escrevem sobre as "Vênus" e os "cultos da
fertilidade" admitem que os homens criaram essas estatuetas para seu-m
usadas por eles para eles. Mas e se as mulheres as tiverem criado para
rituais femininos? Em lugares tão distantes um do outro como África e
índia, e entre os esquimós, as mulheres usam esculturas das Deusas, sem
94

pés ou até com pescoços fálicos, em rituais que envolvem o nascimento


ou a puberdade, ou seja, a primeira menstruação. Elas inserem as
estatuetas na vagina e as removem como parte da cerimônia.
Se os europeus da Idade da Pedra usassem suas estatuetas da "Vênus"
de uma maneira similar, isso abriria toda uma série de significados. Antes
de tudo, explicaria por que tantas estatuetas não têm pés. As pernas eram
necessárias para se ter um ponto mais afilado para fácil inserção. E isso
nos proporcionaria uma nova visão das estatuetas com pescoços fálicos ou
outras representações da sexualidade masculina. Usando-as em um ritual
para mulheres, o órgão masculino torna-se parte do corpo feminino
sagrado, não apenas em um sentido simbólico abstrato, mas na prática
real.
Lembre-se de que tais estatuetas eram freqüentemente pintadas com
ocre vermelho. Usadas nos rituais do nascimento ou da menstruação, elas
teriam unido o sangue da mulher ao sangue da Deusa, tão abundante na
vida e no significado. Considere também que o ato imita a relação sexual.
Realizado durante um ritual de nascimento, esta penetração tornaria a
Deusa o pai simbólico e também a mãe. Essa idéia não reduz a importância
do pai real. Ao contrário, une-o também ao corpo da Deusa, através da
similaridade das duas ações, a relação sexual e a penetração ritual. E observe
que isso indica um conhecimento da necessidade da relação sexual para a
concepção.
Quando consideramos a idéia da penetração da Deusa em meninas
que entram na puberdade, as possibilidades tornam-se ainda mais
provocativas. Antes de tudo, o ritual uniria o sangue recém-fluído da j
jovem mulher ao sangue da Deusa, e, através da Deusa, a todo o longo ' rio
do sangue vital das mulheres. Em segundo lugar, reivindicaria sua j
sexualidade para a mulher antes de ela ter se entregado aos homens. Isso
tornaria muito mais difícil para qualquer homem tomá-la como sua
propriedade, para ser usada para sua própria satisfação. (Vista sob l esta luz,
a fantasia dos homens das cavernas surrando as mulheres torna-se cada vez
mais uma projeção das atitudes modernas com relação às relações
masculinas-femininas.) E, finalmente, a penetração por uma estatueta da
Deusa abriria o hímen, preparando a menina para a relação sexual. A
sacralidade do ritual ajudaria a elevar a ação além de qualquer nível de
brutalidade ou medo. E, é claro, afastaria a questão, tão obsessiva nas
culturas posteriores, da virgindade de uma mulher.
95

A Caverna como o Corpo Interior — Pêch-Mèrle


A percepção da caverna como o interior do corpo da Deusa nos atinge como
uma idéia provocativa da primeira vez que lemos a seu respeito. Pode se
tornar muito intensa quando visitamos as cavernas reais. Na caverna
francesa de Pêch-Mèrle, as câmaras são grandes e irregulares, os túneis
amplos e sinuosos, em geral com uma visão dos grandes salões. Estalactites
e estalagmites em formações magníficas diminuem a sensação de paredes de
pedra nuas. Além disso, uma forte presença de oxido ferroso nas paredes
proporciona-lhes uma coloração vermelha. O gotejamento das pedras
calcárias torna-as úmidas e também vermelhas. O efeito é extremamente
orgânico, tanto que eu e minha amiga Leslie Hunt nos sentimos como
micróbios no interior de um corpo imenso. A escultora Christina Biaggi,
depois de visitar Pêch-Mèrle, criou um "Morro" com uma forma interior
moldada no interior do corpo de uma mulher.
Biaggi visitou Pêch-Mèrle no inverno, após a temporada do turismo,
o que lhe propiciou fazer um tour privado. A mulher que a guiou enfatizou
que Pêch-Mèrle era uma "caverna feminina", mostrando-lhe as vulvas
entalhadas nas paredes. Outras pessoas também têm observado a qualidade
feminina de Pêch-Mèrle. As impressões de mãos nas paredes correspondem
ao tamanho das mãos dos restos dos esqueletos das mulheres paleolíticas. Da
mesma forma que em "The Teaching Rock" no Canadá, nenhuma das
imagens exibe qualquer tipo de violência. A bem da verdade, aliás, a
violência raramente aparece em algum lugar na arte paleolítica. Lembre-se
de que Marshack e outros observaram que, embora alguns humanos
portassem objetos cerimoniais, nenhum deles segurava uma arma — uma
situação estranha, pois a arte supostamente significava uma mágica da
caça. Vamos encontrar a mesma ausência de armas na arte cretense, mais
de 10.000 anos depois do período paleolítico.
Alexander Marshack escreve sobre Pêch-Mèrle: "Na caverna, as
figuras femininas estão associadas também a símbolos, impressões de mãos,
uma série de pontos coloridos, arcos em forma de ferradura e sinuosidades
em espiral", proporcionando uma indicação de que os sinais supostamente
abstratos, lá e em outros locais, podem ter pertencido a uma iconografia da
Deusa. Como já foi mencionado, estes mesmos sinais aparecem nas estátuas
posteriores da Deusa e nos vasos da Idade da Pedra Polida. Isto não garante
que eles signifiquem a mesma coisa em ambos os períodos de tempo.
Entretanto, em ambos os casos, tanto em Pêch-Mèrle quanto no período
96

neolítico, vemos as formas simbólicas associadas a símbolos femininos


evidentes.
Pêch-Mèrle também contém alguns entalhes relativamente raros das
formas femininas humanas. Estas incluem uma figura com seios caídos,
apontados para o chão, nádegas pronunciadas e uma cabeça com um bico,
que Buffie Johnson descreve como a "primeira divindade-pássaro
conhecida".

Figura 5: Desenho de mulheres grávidas dançando, sem cabeça e com cabeça de pássaro, feito em barro, da
caverna de Pêch-Mèrle, na França, c. 20 000 a.C. (conforme Vicki Noble).

Juntamente com as Deusas-Pássaros encontramos duas mulheres


sem cabeça (Ver Figura .5). Monica Sjoo e Barbara Mor descrevem três
figuras juntas como a Deusa Tríplice presidindo danças extática Quando eu
e minha amiga Leslie visitamos a caverna, a guia nos mostrou um grande
disco de pedra próximo a uma área plana aberta. As experiências com varas
de pedra como baquetas de tambor demonstraram a possibilidade de que a
pedra fosse um tambor, e o espaço um campo de dança.
Devemos lembrar que, em locais como o Haiti e grande parte da
África, as pessoas usam a dança como os meios primários para entrar cm
transe. Ao contrário dos transes dos xamãs, em que os próprios xamãs saem
em viagens, estes estados induzidos pela dança em geral envolvem a
possessão. Ou seja, um Deus ou Deusa assume o corpo da pessoa. Podemos
dizer que o dançarino temporariamente afastou o self, para que o Espírito
pudesse assumir uma forma física.
97

Os artistas das cavernas podem ter usado o som para aumentar o


Intenso poder das pinturas. O mesmo artigo do U.S. News and World Report
anteriormente mencionado descreve experiências provocativas tom som em
várias cavernas. As pessoas caminharam através de várias cavernas
assobiando e marcaram os locais onde os sons ressoavam deu ma forma
mais potente. Quase sempre, esses mesmos lugares exibem pinturas nas
paredes. Lascaux apresentou resultados ainda mais interessantes. Nas áreas
que mostram touros e cavalos correndo, os pesquisadores descobriram que as
batidas de suas mãos faziam com que o som ecoasse na frente e atrás,
produzindo o efeito de um estouro de animais. Finalmente, as cavernas
podem ter sido locais para a celebração do corpo divino na dança e
também em viagens extáticas.
98

4 - O Corpo de Pedra Construído — Parte l

O Corpo da Deusa é a fonte Encarnada.

Marija Gimbutas

Nossos mais antigos ancestrais eram nômades, viajavam em grupos


pequenos e seguiam as plantas sazonais e os rebanhos de renas.
Sociedades estabelecidas e culturas urbanas não podiam se desenvolver sem
uma descoberta tecnológica importante, possivelmente a mais importante de
todos os tempos — o desenvolvimento da agricultura. Embora não se saiba
o que a sociedade humana possa ter perdido abandonando a vida nômade, a
verdade é que a agricultura abriu caminho para novos mundos de experiência,
incluindo novas maneiras de ver — e de criar — o corpo divino. A revolução
do plantio gerou outras revoluções — casas estáveis, templos, cidades — e
um grupo de construções tão notáveis que ainda nos detemos e olhamos
maravilhados quando nos deparamos com elas em uma estrada rural —
megálitos, monumentos de pedra.
Anteriormente, as pessoas entravam nas cavernas para se unir ao
corpo da Deusa. Agora elas mesmas criavam as cavernas, e até mesmo
montanhas inteiras, alterando a própria superfície da terra. E se os
megálitos expressavam a presença física da Deusa, muitos deles faziam mais
que isso. Codificavam um conhecimento científico profundo e complexo de
coisas como o movimento do ano, através de suas diferentes estações e da
maneira como o ano solar cruza com as fases e os ciclos da Lua.
Vivemos à custa desses grandes seres do céu. Nosso alimento de-
pende do Sol. A fertilidade das mulheres depende da Lua. Através da
incrível audácia e dedicação dos construtores de megálitos, as pessoas da
Idade da Pedra Polida uniram diferentes aspectos do corpo sagrado, a
99

delicadeza e a abertura do céu, os ciclos matemáticos do Sol e da Lua, e a


duradoura solidez da pedra. Em tantas dessas construções, desde os
círculos até os morros e as passagens internas, uma estética particular
parece ter inspirado os construtores — a forma arredondada e a opulência do
corpo feminino.

Os Primórdios da Agricultura
Os escritores cuja temática são os primórdios da cultura humana oferecem
épocas e locais diferentes para o início do plantio e da colheita deliberados.
Segundo Joseph Campbell, a agricultura começa em torno da mesma época,
10000 a.C., em quatro áreas distintas — as Américas, o sudeste da Ásia e o
Pacífico, o sudoeste da Ásia e a África. Concentrando-se no Oriente Médio,
Merlin Stone escreveu que a primeira evidenciada agricultura data de cerca
de 8 500 a.C., na Síria, no Jordão e em Jerico. James Mellaart data os
instrumentos agrícolas de 9000 a.C., assinalando que as pessoas primeiro
domesticaram os carneiros, por volta de 8900 a.C., e que existem evidências
de comércio (in obsidian) já em 8300 a.C., entre a Anatólia, na Turquia, e a
cidade de Jerico, próximo à margem oeste do Rio Jordão.
Na maior parte da Europa, essas grandes mudanças culturais só
ocorreram algum tempo depois. A disciplina acadêmica da arqueologia
origina-se da cultura européia, o que explica por que sabemos tão mais sobre
as primeiras sociedades agrícolas européias e do Oriente Médio do que
sobre as culturas da Ásia, da África ou das Américas.
Outra razão são os próprios megálitos, o vasto numero de morros,
círculos de pedra, túmulos, dolmens, marcos de pedra e outras construções
que se estendem desde a Irlanda e a Grã-Bretanha e atravessam a Europa
ocidental até a Escandinávia, Malta, Sicília, Creta e mais além. Os megálitos
comandam nossa atenção, inspirando-nos com devoção e curiosidade. Quem
realmente os construiu? A que propósito serviam? Por que aparecem ao
mesmo tempo que a agricultura? E, acima de cudo, o que significam?

Os Megálitos Além da Europa


Há megálitos e restos de terra em outros lugares. Encontramos círculos de
pedra, dolmens, pedras de pé e outras estruturas na Nova Inglaterra, no
Alasca, em Madagascar, no Peru, no arquipélago de Vanuatu etc. O
processo de colonização, no entanto, ocultou-os ou até mesmo os destruiu.
O que é atualmente o Estado de Ohio, nos Estados Unidos, continha milhares
100

de morros de sepultamento de um povo extinto quando os primeiros europeus


chegaram. Os índios posteriores não foram os construtores dos morros, mas
não os destruíram. Os fazendeiros europeus, no entanto, araram quase todos,
de forma que apenas uma fração minúscula sobrevive, preservada em
parques estaduais e nacionais. Em tua forma suavemente intumescida, eles
também evocam a imagem de uma barriga grávida.
A maioria dos americanos já ouviu falar e já viu fotos de Stonehenge.
Muito poucos têm conhecimento dos morros de sepultamento de Ohio mi da
escultura de 400 metros de comprimento na forma de uma serpente no sul
de Ohio, ou de Cahokia Plain em Illinois, com seu monte de terra duas
vezes maior que a Grande Pirâmide, alinhado segundo a posição e o
movimento dos astros.
Conhecendo a intimidade das serpentes com as Deusas em grande
parte do mundo, podemos supor que essas elegantes esculturas falem de um
tempo e de uma cultura em que nenhum Deus zangado "colocou
inimizade" entre a mulher e a serpente?

Observatório de Chaco Canyon


Os americanos podem ter ouvido dizer que o nascer do sol no solstício do
inverno penetra no chamber mound (morro de sepultamento) de Newgrange,
na Irlanda, quando os primeiros raios do solstício ao verão tocam a pedra da
base em Stonehenge. Entretanto, muito poucos terão ouvido falar do Chaco
Canyon, no Novo México. Lá, o povo anasazi — que viveu há 1.000 anos
— criou um calendário solar de pedra, redescoberto em 1977 por Anna
Sofaer, uma artista. No alto de um monte íngreme de 130 metros de altura,
os anasazis inscreveram dois petróglifos (gravuras entalhadas na pedra) em
espiral, abrigados por três placas de pedra inclinadas. (Em seguida,
veremos que a espiral, juntamente com seu outro simbolismo, mapeia com
clareza a órbita do Sol durante o ano.) Todos os dias, ao meio-dia, a luz
passa através das fendas entre as placas. No solstício do verão, com o Sol
do meio-dia em seu ponto mais elevado no céu, uma adaga de luz perfura o
centro da espiral maior. No solstício do inverno, duas adagas tocam a parte
externa da espiral. Nos equinócios, a luz perfura o centro da espiral menor.
Além disso, uma sombra passa pelo centro da espiral maior a cada 19 anos,
no dia em que o sol se eleva a uma posição alcançada pela Lua cheia. A
sombra corta os 19 anéis da espiral (a órbita da Lua também forma espirais)
101

e se alinha com um sulco entalhado. A própria Lua projeta uma sombra


tangencial à extremidade esquerda da espiral.
Como a maioria dos outros americanos, eu não sabia nada sobre essa
maravilha de arte e ciência existente em minha própria terra. Devo essa
descrição de Chaco Canyon a Lucy Lippard, que em seu livro Overlay declara
que a criação desse calendário envolveu um conhecimento detalhado de
astronomia, a física das superfícies curvas e um exame minucioso para
realizar os entalhes no lugar preciso e exatamente na dimensão precisa.
Podemos acrescentar que também envolveu um desejo de fixar o corpo em
movimento do céu na permanência da pedra.
Apesar dessas maravilhas em meu próprio país, este capítulo vai
focalizar primeiramente o período neolítico na Europa. Tendo vivido na
Europa durante a pesquisa deste livro, visitei primeiro os sítios
arqueológicos europeus; como já mencionei, o registro arqueológico para a
Europa é muito mais detalhado que o de qualquer outro lugar.

A Beleza dos Megálitos


Os megálitos europeus variam desde a grandeza do Círculo de Pedra de
Avebury (tão grande que atualmente uma aldeia moderna está situada em
seu centro) até Stonehenge e círculos de pedra de apenas alguns metros na
zona rural de Sligo, na Irlanda. Variam desde os montes cobertos de
Newgrange e Knowth, cada um deles com meio hectare, até pequenos
outeiros artificiais na Escandinávia e montinhos de pedra na Irlanda que mal
permitiam alguém rastejar dentro deles. Até mesmo as pedras,
individualmente, podem portar grande mistério. Maciças, sofrendo as
intempéries de milhares de anos de vento e de chuva, elas evocam formas
estranhas, como imagens saídas de sonhos (ver Foto 11).
Visitar os megálitos, especialmente os círculos, nos insere na longa c
misteriosa história da humanidade. Por mais que possamos investigar ou
intuir sobre o seu significado e propósito, seus construtores, assim como os
pintores das cavernas antes deles, não deixaram outros registros além das
próprias obras. Os círculos e os montes simplesmente
existem, atualmente anexados à paisagem natural, parte do grande corpo
composto de terra, céu e água. Feitos de pedras ajustadas umas às
outras ou de seixos individuais, despidos ou cobertos com lama, eles
transmitem uma imagem de simplicidade, apesar da complexidade de
lua construção. Parecem pertencer totalmente ao lugar onde estão. Se
102

penetramos nos montes ou nos sentamos no interior dos círculos, também


nos tornamos ligados a esta união da história humana com os cidos da
vida e da morte, ao ano decisivo e ao corpo de nossa Mãe, a
Terra.

Mistérios dos Megálitos


Os megálitos europeus têm inspirado muitas teorias com relação às luas
origens e propósitos. A lenda britânica conta-nos que o mágico/profeta
Myrrdin, do País de Gales, conhecido na França como Merlin, construiu
magicamente Stonehenge para o pai do rei Artur. Para as j pessoas das
culturas posteriores, que perderam a tecnologia sofisticada da Idade da
Pedra, deve ter parecido que apenas mágica poderia transportar e erguer
essas pedras enormes até seus devidos lugares.
Relatos posteriores dizem que foram os druidas que fizeram
Stonehenge, onde supostamente praticavam sacrifício humano. Quando as
pessoas souberam que os megálitos antedatavam culturas como a dos druidas
celtas, passaram a supor que os construtores os edificaram sob a influência
da cultura egípcia ou de outras culturas "avançadas" do Mediterrâneo. Só
recentemente, com a datação por carbono e calibragem das árvores, os
arqueólogos descobriram que há, na verdade, três Stonehenges,
construídos durante um período de 1.500 anos, o mais antigo construído
em cerca de 3100 a.C, séculos antes das pirâmides.
As discussões sobre os megálitos continuam. Parafraseando o poema
Thirteen Ways of Looking at a Blackbird, de Wallace Stevens, há 13
maneiras de se olhar um megálito, cada uma delas uma teoria
contemporânea que pode ser encontrada em um ou mais livros:
Um megálito forma uma escultura gigantesca.
Um megálito marca um local de poder sagrado na Terra.
Um megálito fixa a energia fluida da Terra.
Um megálito gera energia de "ultrassom" e elétrica através
de cristais de quartzo ativados pela luz.
Um megálito é um computador, seguindo elipses,
alinhamentos extremos do Sol e da Lua, surgimentos de
planetas e constelações, e outros eventos no céu.
Um megálito marca limites territoriais.
103

Um megálito harmoniza elementos estéticos da paisagem


natural.
Um megálito é um local de festivais.
Um megálito é um local de sepultamento.
Um megálito é um local de renascimento.
Um megálito é um local de sacrifício.
Um megálito marca um ponto de convergência de linhas.
Um megálito indica um ponto de acupuntura do corpo
planetário.

Os proponentes dessas diferentes interpretações em geral


competem uns com os outros, como se os construtores dos megálitos
pudessem ter tido apenas um propósito em mente. Os defensores da
astronomia insistem em que os arcos e os círculos nos passage mounds
irlandeses ou nas pedras de pé em Gravinis, na Bretanha, significam apenas
os padrões da Lua e do Sol. Escarnecem da sugestão de que as imagens for-
mam algo antropomórfico ou religioso. Outros insistem, com a mesma
ênfase, que os arcos simbolizam a regeneração pela água. E muitos (embora
não todos) arqueólogos consideram os arcos gravados mera decoração,
"rabiscos" (ver Foto 12).

Astro-Arqueologia
Nos últimos anos, concentrou-se a atenção na "astro-arqueologia", a
descoberta de amplos alinhamentos entre os círculos de pedra e eventos
celestiais como os solstícios e os equinócios. Gerald Hawkins, cujo livro
Stonehenge Decoded foi o primeiro a trazer essas idéias ao povo em geral,
descreve Stonehenge como um computador gigante que segue o rastro das
eclipses, determina as posições extremas do Sol e da Lua e, é claro, o famoso
nascer do sol do meio do verão.
Por exemplo, a Lua cheia não nasce nem se põe no mesmo lugar
todos os meses, mas se move em um ciclo que dura, em média, 18,61 anos
para se completar. Como o número inclui uma fração (0,61), e como o
tempo realmente varia entre um ciclo e o seguinte, Hawkins calcula que o
melhor número inteiro para seguir a órbita da Lua durante várias décadas é
56 anos. Segundo seu descobridor do século XVII, o sítio arqueológico de
Stonehenge contém um círculo de 56 buracos, conhecidos como buracos de
Aubrey. Se os marcadores mudassem de buraco para buraco durante 56
anos, poderiam ter mapeado o progresso d a Lua.
104

Hawkins escreve que a ciência moderna usou os computadores para


processar todos os dados requeridos para se determinar o amplo espectro de
alinhamentos de Stonehenge. Também podemos acrescentar que isto exigiu
um salto gigantesco do pensamento. A ideologia do primitivismo em
geral torna difícil dar este crédito aos povos pré-históricos de terem
conseguido um conhecimento tão complexo. Mesmo nos dias de hoje, o
argumento contra a astro-arqueologia muitas vezes vem junto com o
argumento de que os povos primitivos jamais poderiam ter feito algo tão
complicado.
Nem todos os megálitos estão alinhados com o céu. Em seu livro
Beyond Stonehenge, Hawkins descreve a testagem necessária antes de
podermos pretender que um local particular siga os eventos astronômicos.
Mas mesmo que não aceitemos os círculos de pedra maiores como
computadores, isto realmente não explica por que as pessoas o fizeram. O
reconhecimento dos eclipses, os ciclos da Lua ou até mesmo os solstícios
e os equinócios não servem na verdade a nenhum propósito prático. Por
exemplo, de acordo com o solstício do verão em 21 de junho, os
alimentos deviam estar há muito tempo plantados no solo. O conhecimento
científico em si é uma possibilidade (assim como a arte pela arte é uma
possibilidade, quando se considera a arte nas cavernas). Alguns dos
maiores projetos científicos da sociedade moderna, como os
"superimpactantes", não servem a nenhum propósito imediato. A
fragmentação do núcleo nos ajuda a compreender os primeiros momentos da
criação, mas não a atuarmos em nossa vida diária. Será; que as pessoas da
Idade da Pedra encaravam o conhecimento como um benefício em si,
compensando o grande investimento de recursos e trabalho requeridos para
criar um Stonehenge?
Experimentemos uma hipótese. Suponhamos que os rituais ocor-
ressem em Stonehenge e em outros locais megalíticos, que os eventos do
céu se ajustassem a um padrão religioso e também a um padrão científico.
Alguns podem achar estranho que pessoas capazes de observações
astronômicas precisas, análises complexas e feitos monumentais de
engenharia pudessem ver a coisa toda em termos de Deusa e de cerimônias
e histórias míticas. Mas talvez nossa própria cultura seja estranha. Nós
separamos a ciência da religião, como se a religião se baseasse apenas nos
livros e nas emoções, e não no mundo físico. Como se uma busca científica
pelo início do universo não tenha nada a ver j com a religião.
105

0 Sol de Newgrange e o Bando Lunático


Muitos arqueólogos profissionais menosprezam as sugestões—e a pesquisa
séria — dos não-arqueólogos, reunindo-os todos como "o bando lunático",
sobre o qual P. R. Giot escreve: "Como eles são uma bobagem permanente
para os arqueólogos, em geral é difícil lhes dar crédito pelas poucas idéias que
se deve a eles." (Giot, "The Megaliths of France", em The Megalithic Monuments
of Western Europe, ed. C. Renfrew.) Mas os arqueólogos têm seus próprios
preconceitos. Se os amadores aceitam muito prontamente novas idéias, talvez
os profissionais as rejeitem também muito prontamente — junto com
algumas velhas idéias.
Assim como o primeiro surgimento do sol no meio do verão toca ti
pedra de base de Stonehenge na Inglaterra, o nascer do sol no meio do Inverno
envia um forte raio de luz à câmara central do passage mound de Newgrange,
na Irlanda. A luz caminha lentamente, movendo-se pelo chão até alcançar a
parede do fundo, onde se eleva em um feixe de luz
vertical; permanece ali durante algum tempo, depois retorna pelo mesmo
caminho por onde entrou, deixando o observador mais uma vez na
escuridão dessa incrível caverna artificial. Quando o monte foi construído,
5.000 anos atrás, seus construtores alinharam-no cuidadosamente, para
permitir que a luz entrasse pela manhã, tanto antes quanto depois do
meio do inverno, todos os dias tocando um lugar preciso na parede, de
tal forma que mesmo que as nuvens obscurecessem o Sol no meio do
Inverno, as pessoas ainda saberiam que dia era contando as marcas.
Desde essa época, a inclinação da Terra deslocou-se ligeiramente, tornando o
efeito menos perfeito, embora ele ainda seja claro e visível.
A partir de 1849, Newgrange foi escavado o suficiente para qualquer
um testemunhar esse evento anualmente. Em 1867, George Russell, que
escrevia como A. E., descreveu uma visão do Deus Aengus aparecendo
como luz em "uma caverna imponente em forma de cruz", que podia
descrever Newgrange. Na virada do século, o raio de luz tornou-se uma
"lenda", espalhada pelo zelador do lugar, Robert Hickey, que levava os
visitantes locais para observá-lo e contava sua história para eles. Além
disso, em 1909, Sir Norman Lockyear, diretor do Solar Physics
Observatory, escreveu em seu livro Stonehenge and Other British Stone
Monuments Ástronomically Considered que Newgrange estava orientado
para o solstício do inverno. Mais ou menos na mesma época, W. Y Evans-
106

Wentz, um antropólogo que estava estudando o folclore irlandês,


descreveu Newgrange e os montes em Gravinis como orientados para o
Sol. (Segundo Marija Gimbutas, Gravinis está alinhado
fundamentalmente com as posições extremas da Lua.) Lockyear e Evans-
Wentz não viram a luz nem escreveram sobre ela. Mas Hickey a viu, e a
mostrou a outros, ano após ano.
Apesar disso, em 1960, Glyn Daniel, talvez o arqueólogo de maior
destaque de sua época, escreveu sobre essa "lenda": "É um estranho
relato duvidoso, que precisa de citação quase in totum como um exemplo
da confusão de bobagens e delírios daqueles que preferem os prazeres do
irracional e as alegrias do absurdo aos esforços de consideração exigidos
pela arqueologia." O estranho nesta rejeição do relato de Hickey é que tudo
que eles tinham de fazer era olhar. Somente em 1969, um arqueólogo
chamado Michael J. O'Kelly entrou em Newgrange antes do amanhecer,
no meio do inverno, e observou a luz. Quando publicou suas observações,
foi recebido com grande resistência, incluindo sugestões de que a luz fosse
uma ocorrência casual e até mesmo acusações de que O'Kelly tivesse
falsificado as evidências.
Este relato foi extraído do livro The Stars and the Stones, de Martin
Brennan (para dar ao professor Daniel o devido crédito sobre esta
questão, a edição em brochura do livro de Brennan inclui um endosso
positivo de Daniel). Brennan às vezes vai ainda mais longe em suas
declarações, e seus escritos iniciais apresentam algumas idéias, mas seu
trabalho incluiu notáveis descobertas de complexos alinhamentos solar e
lunar em toda a Irlanda. A maioria dessas descobertas originou-se de
observações diretas feitas por Brennan e Jack Roberts (tanto Brennan
quanto Roberts são artistas, colocados no mesmo nível de Merlin Stone,
Buffie Johnson, Vincent Scully, Monica Sjoo, Barbara Mor, Dorothy
Cameron, Anna Sofaer e Michael Dames). Além dei seus achados
encontrarem uma enorme resistência, eles muitas vezes tiveram de
rastejar até os vários montes para observar os efeitos dos diferentes
alinhamentos (Brennan chama isso de "espionagem arqueológica"). E,
mais uma vez, aqueles que tentaram desacreditar o trabalho de Brennan
e Roberts só precisavam repetir a experiência — para ver com seus
próprios olhos.
107

Formas Corporais
O próprio Brennan rejeita a idéia de qualquer representação
antropomórfica nos montes. Além disso, a forma não é estritamente
funcional. As passagens precisam ter uma determinada extensão para a luz
penetrar corretamente, mas não está claro que precisem ser cruciformes,
uma forma que a arquitetura sagrada sempre usou para retratar o corpo
humano. E a grande dimensão dos montes, sem falar em sua forma
arredondada, implica alguma importância simbólica, se não
ginecomorfismo (moldado como uma mulher). O amplo monte de
Newgrange cobre muito mais espaço do que seria necessário para cobrir
o interior. A passagem nos lembra uma caverna em uma montanha — ou
um útero.
Além de montes maiores, a Irlanda contém muitos "court cairns"
(montes da corte), assim chamados devido à entrada semicircular for-
mada por duas fileiras curvas de grandes pedras. Estes também contêm
aquela forma interior como um corpo com os braços e as pernas para
(ora. Podemos vê-la também no Grande Túmulo de West Kennet, o
passage mound retangular próximo ao Círculo de Pedra de Avebury, na
Inglaterra. E a encontramos também em santuários neolíticos na Polônia na
região anteriormente ocupada pela Iugoslávia.

Um Dia do Ano
Uma das descobertas de Brennan diz respeito a Dowth, terceiro na MTÍC
de montes gigantescos que incluem Knowth e Newgrange. Ao contrário
dos outros dois locais, Dowth não foi restaurado, de forma que aparece
como uma pequena colina verde, com árvores e grama alta. Quando
olhamos mais de perto, percebemos que esta colina, que parece natural,
contém uma "caverna" em sua base, com um portão de ferro bloqueando a
entrada. E se examinarmos a rocha nua na base da colina gramada,
descobriremos espirais entalhadas.
Segundo Brennan, a luz que penetra em Dowth vem do pôr-do-sol no
meio do inverno, e não do nascente como em Newgrange. Talvez as pessoas
que a tenham construído observassem um "dia" ritual no decorrer do ano.
Essa cerimônia com um ano de duração pode ter ocorrido em intervalos
especiais — digamos, a cada sete anos. (A importância do número sete na
108

religião não é arbitrária nem "arquetípica", derivando dos sete "planetas" —


incluindo o Sol e a Lua — visíveis aos povos antigos sem telescópios.)
O dia do ano se teria iniciado em Newgrange na madrugada do
solstício do inverno, continuando através do ano em locais diferentes
(possivelmente unindo diferentes comunidades de toda a ilha), com eventos
especiais em Knowth para os equinócios. Knowth, o maior e possivelmente
o mais complexo dos montes, tem duas passagens opostas, uma abrindo para
leste e a outra para oeste, para marcar tanto o nascente quanto o poente nos
dois equinócios — ou talvez o nascente no equinócio invernal e o poente no
equinócio outonal, quando o "dia do ano" se aproximasse do seu fim.
Finalmente, o dia ritual terminaria novamente no meio do inverno, mas
agora no pôr-do-sol, em Dowth.
Jamais poderemos testar essa especulação. Reconheço espontanea-
mente que ela é fantasiosa, mas acho que proporciona uma simetria à
grande rede de monumentos. E se liga à maneira como outras culturas
encaravam o mundo, e aos grandes eventos solares do ano, como uma única
criação, viva e plena de poder sagrado.
Os arqueólogos preferem evitar essas fantasias (e devem, pois pre-
cisam lidar com as evidências reais). Os arqueólogos contemporâneos
optaram por ignorar as questões religiosas (sem mencionar a evidência do
folclore) em favor da concentração nas condições econômicas e sociais dos
povos antigos. No livro The Megalithic Monumnts of Western Europe, editado
por C. Renfrew, Michael J. O'Kelly cita um artigo de autoria de A. Fleming
publicado em 1969, o mesmo ano em que o próprio O'Kelly confirmou a
luz em Newgrange: "A mãe-deusa já nos deteve por muito tempo; vamos
nos soltar do seu abraço." Ao que aqueles de nós que estamos explorando a
religião (re)emergente da Deusa poderíamos simplesmente responder: "Não
vamos não."

As Tumbas e os Arqueólogos
A arqueologia profissional descreve os megálitos de toda a Europa como
"tumbas", às vezes descrevendo a cultura neolítica como obcecada com a
morte, ou centralizada em torno de um culto do morto. Para um não-
arqueólogo, a insistência em ver todo monumento como uma tumba pode
parecer obsessiva. Os escavadores têm encontrado restos de esqueleto e
restos cremados em algumas estruturas megalíticas, mas de modo algum
em todas. Escrevendo sobre as estruturas circulares da Itália, Ruth
Whitehouse (em The Megalithic Monttments of Western Europe) cita a
109

observação de Lilliu de que apenas cerca de 50 mostravam sinais de uso para


sepultamento. "Na verdade," escreve Whitehouse, "somente três tumbas
têm realmente material proveniente de esqueletos." Whitehouse prossegue,
dizendo: "A maior parte dos dolmens (...) não tem mostrado remanescentes
de esqueletos nem artefatos (...) não sabemos se os dolmens destinavam-se
a sepultamentos individuais ou coletivos." Ela não parece considerar a
possibilidade de que eles não fossem de modo algum destinados a
sepultamentos.
A sociedade que construiu Newgrange presumivelmente usou-o
durante centenas de anos. Em 1967, as escavações revelaram ossos humanos
queimados e não queimados — para um total combinado de cerca de cinco
pessoas. Cinco — para uma estrutura tão complexa e imensa. Em Á Concise
Guide to Newgrange, Claire O'Kelly descreve esses restos como "suficientes
para mostrar que a tumba foi usada para sepultamento, e não, como tem sido
sugerido, como um cenotáfio ou um templo". Cinco, em uma vasta
montanha construída para captar precisamente o nascer do sol no inverno
durante milhares de anos.
Em muitos casos, ninguém datou os restos humanos encontrados nos
locais megalíticos, deixando aberta a possibilidade de que culturas
posteriores, ou comunidades individuais, os tenham utilizado como locais de
sepultamento. Mas mesmo que os restos pertençam a pessoas da cultura
original, porque isso as tornaria primariamente tumbas? Brennan comenta que
a Catedral de Westminster contém muito mais corpos do que Newgrange,
com um período de uso muito mais curto. Podemos considerar estes restos
mortais "suficientes" para dizer que Westminster não é usada para propósitos
religiosos? Aqueles que consideram todos os monumentos como tumbas
alegam que os assaltantes de tumbas removeram as evidências. Mas os
assaltantes de tumbas em geral procuram ouro e jóias. Por que carregariam
ossos? E mesmo que isso fosse possível, não há evidência real.
A hipótese da tumba tem uma longa linhagem. A lenda celta des-
crevia Newgrange como o local de sepultamento dos antigos reis de Tara.
Durante séculos, as pessoas de Wiltshire, na Inglaterra, consideraram a
Montanha Silbury uma tumba gigantesca para um imaginado Rei Sil. E
ainda que em geral não considerassem os círculos de terra ou os dolmens
como cemitérios, muitas pensavam neles como locais de sacrifício humano.
Estas crenças, entretanto, originaram-se das atitudes de culturas posteriores
que nada tinham a ver com tais monumentos.
O termo "culto do morto" pode se referir mais à nossa própria
cultura do que ao período neolítico. Que outra sociedade já enterrou cada
110

cadáver em seu próprio pedaço de terra particular, em caixões


ornamentados com metal e veludo, embalsamando-o, vestindo-o e ar-
rumando-o para parecer vivo, e homenageando-o com uma grande lápide de
mármore esculpida?
Questionar a hipótese da tumba para os megálitos não significa que
jamais se tenha pensado nelas como locais de sepultamento. É óbvio que
algumas estruturas megalíticas serviram inicialmente para sepultamentos.
Das 76 "tumbas" das Ilhas Orkney, somente 26 continham ossos
humanos. Entretanto, duas delas continham, respectivamente, 157 e 341
pessoas, o bastante, segundo Marija Gimbutas, "para representar todos os
mortos de uma comunidade inteira". Questionamos a hipótese da tumba
para podermos considerar uma variedade de possibilidades, científicas e
também religiosas, que podem ter coexistido na mente dos construtores. Se
os morros foram usados como tumbas, então a forma escolhida — e um
alinhamento para o nascer do sol nos cquinócios, ou meio do inverno —
sugere uma idéia de renascimento, com o morro circular como o útero, e o
de passagem como o canal do nascimento.

Local de Marcação
O arqueólogo Colin Renfrew sugere que os monumentos funcionavam como
"marcadores territoriais", significando que um grupo particular dominava
uma área de terra. É um pouco difícil entender como isto podia funcionar,
como um círculo de pedra, por exemplo, indicaria que porção de terra estava
sendo "reivindicada", ou por que alguns locais requeriam vários morros
imensos ou círculos tão próximos um do outro, e outros nada, ou por que
um montinho de pedra seria suficiente em um lugar, um dólmen em outro e
um passage mound gigantesco em um terceiro. Mas por que devemos rejeitar
a idéia, como alguns defensores da espiritualidade megalítica parecem fazer?
As pessoas frequentemente sentem necessidade de marcar sua presença.
Na Nova Inglaterra e no Estado de Nova York, inúmeras casas, igrejas,
bancos e shopping centers exibem pedras verticais bastante grandes (e em
geral bonitas), ou até linhas inteiras ou semicírculos feitos de pedra, em
entradas para automóveis, gramados, portões ou áreas de estacionamento.
Na minúscula cidade de North Salem, em Nova York, pode-se ver uma
enorme pedra de cerca de 90 toneladas, com a forma um pouco parecida
com a cabeça de uma cobra ou de uma tartaruga, apoiada sobre várias
pedras pequenas de calcário, todas de forma cônica c dispostas em um
triângulo isósceles. Os defensores dos megálitos norte-americanos
111

consideram este um dólmen (e alguns sugerem que as pessoas passavam sob


ele para um renascimento ritual). A arqueologia oficial o considera um
remanescente casual de uma geleira. Dólmen ou não, a pedra está muito
próxima da igreja local, e diante desta estão duas imponentes pedras
verticais, como um portão para o mundo espiritual.
Por que os megálitos não poderiam funcionar ao mesmo tempo
como marcadores e como realidades espirituais? Os seres humanos parecem
precisar se imprimir na terra. A semelhança do que ocorre com as
impressões de mãos na arte da pedra (elas também aparecem nas paredes de
Çatai Hüyük, incluindo a de uma criança em uma estátua do corpo da
Deusa), as construções de pedra muito maiores podem ter estabelecido um
local como território sagrado. Podem representar uma necessidade de tornar
visível no mundo o corpo invisível do poder espiritual.
As impressões de mãos em uma grande caverna transmitem uma
qualidade experimental, uma pequena atitude de presença. Na época dos
neolíticos, os humanos da Europa haviam adquirido confiança, de forma que
na Inglaterra podiam alterar a própria paisagem natural através da construção
de montanhas inteiras, como Silbury, ou esculpir o ladc de uma montanha já
existente em uma forma labiríntica, transformando a terra natural em algo
feito pelo homem, como em Glastonbur (ver Capítulo 5 para o "labirinto"
de Glastonbury).
A idéia do "selvagem" como algo intocado e puro parece ser conceito
europeu relativamente moderno, em que criamos uma dualidade em nosso
mundo civilizado ou seja, lugares habitados pelos próprios humanos, e a
selva, habitada por animais e selvagens. Com a urbanização do mundo,
temos nos tornado nostálgicos do "selvagem", mas isto é realmente apenas o
outro lado daquela antiga crença na natureza come perigosa, má, estranha —
e feminina.
Muitas culturas não estabeleceram uma dicotomia entre território
humano, seguro, e o selvagem fora dali. Veja o mundo todo como o corpo, e ele
se torna sagrado. Isto pode conduzir a um desejo de entender a paisagem
natural e mapeá-la de maneira muito precisa, assim como os místicos vão a
Shiur Komah "medir o corpo" de Deus (ver Capítulo 1). Este mapeamento é
espiritual, mas também prático, pois as pessoas precisam conhecer os
padrões da natureza. Precisam saber como encontrai caça e água. Onde
começa e termina o território de cada grupo, não apenas para que possam
evitar conflitos, mas também para que possa cuidar da terra e ser
responsáveis por ela. Estas necessidades prática não excluem, mas antes
complementam, a urgência espiritual de unirmos nossos próprios corpos aos
112

corpos da terra. Ou, para inverter isso, podemos dizer que perceber a
paisagem natural como o corpo divino proporciona um contexto poderoso
para o valor prático do território mapeado.

As Canções Orientadoras dos Aborígines Australianos


Os aborígines australianos consideram todos os aspectos da paisagem
natural como o corpo de um "Sonhador", um ancestral mítico que entrou
dentro da terra e agora aparece como uma fonte de água, uma montanha ou
um arbusto. Cada aspecto é mapeado. As pessoas conhecem a terra
intimamente, e podem percorrer, às vezes sozinhas, grandes distâncias
seguindo estes mapas, que são ao mesmo tempo precisos e espirituais.
Nas últimas décadas, as pinturas elegantes e abstratas dos povos
aborígines tornaram-se famosas em todo o mundo. Elas retratam a
paisagem natural em grandes detalhes simbólicos. Apesar disso, os
aborígines não as utilizam como seus mapas. Estes não são feitos com
desenhos, mas com canções. Isto pode parecer estranho para as pessoas de
descendência européia, na medida em que consideramos uma canção-mapa
quase uma façanha psíquica, uma variedade de mágica ou telepatia. Mas por
que um diagrama ou um pedaço de papel funcionaria melhor como mapa do
que uma canção? Qualquer mapa é uma criação humana, uma metáfora para
o mundo. Seu valor está na maneira precisa e acurada como a metáfora
descreve o território. Dolores La Chapelle escreve que os índios do deserto
californiano seguiam rastros que mapeavam com canções. Há evidência de
comércio e migração através do Oceano Pacífico no período pré-histórico,
desde a Nova Guiné até as Américas. Alguns acreditam que os marinheiros
que cruzavam essas grandes distâncias, indo de ilha para ilha, usavam
canções-mapas para seguir as estrelas e as correntes.
Além de guiar as viagens, as "canções orientadoras", como as
chamou o escritor inglês Bruce Chatwin, definem o território. Grupos
tribais ou indivíduos sentam-se nos marcos de delimitação e cantam suas
canções, compartilhando-as segundo um sistema complexo de res-
ponsabilidade pessoal e grupal. O sistema funciona prática e eficientemente
em muitos níveis e tem ajudado as pessoas a viver há dezenas de milhares de
anos em vários ambientes, frequentemente adversos. E é também sagrado. O
prático e o sagrado não se contradizem, mas apóiam um ao outro. O poder
sagrado das canções permite às pessoas lembrar-se delas e proporciona-lhes
a autoridade que já dura tanto tempo. Na Austrália contemporânea, o
113

governo nacional tem aceitado a arte e as canções sagradas como


testemunho em casos de direitos de terra.
Embora os aborígines australianos vivam em uma terra e em uma
cultura muito afastadas em tempo e lugar dos construtores megalíticos
europeus, podemos aprender com eles que ver a terra como o corpo divino
não exclui, antes aumenta, um relacionamento prático com a Terra.

As Espirais do Sol e da Lua


Em nosso tempo, a ciência tem se esforçado para se separar da religião e
oferecer um quadro "puro" das realidades físicas. Esta situação surge em
parte porque a religião separou-se da ciência na Idade Média e na
Renascença, com as doutrinas oficiais da Igreja se tornando mais rígidas,
não mais preocupadas em refletir o que as pessoas realmente sabiam da
existência. Isto, por sua vez, derivou de uma religião baseada em um Deus
transcendente, que é mais importante que o mero mundo físico, e do
conhecimento que vem mais de um livro que da observação da natureza. Para
se libertar desse embrutecimento, a ciência assumiu toda religião como uma
superstição. Somente agora começamos a descobrir as grandes profundidades
das observações codificadas nas estruturas religiosas neolíticas e em outras
estruturas religiosas "primitivas".
Quando se vincula ao corpo divino da natureza, quando se torna um
aspecto desse corpo, o conhecimento científico ganha em poder também
em significado. As imagens extraídas da natureza tornam-se símbolos
sagrados, os quais depois retornam rumo a um conhecimento mais
sofisticado do mundo. O conhecimento não se move em linha reta, mas em
espiral, abrindo-se a partir de uma observação central para uma consciência
cada vez mais ampla. A imagem é adequada não apenas porque
encontramos espirais na arte sagrada de todo o mundo, mas também porque
a própria espiral é um exemplo da mistura de conhecimento científico e
simbolismo espiritual.
Já vimos como as imagens das espirais podem ter derivado de caracóis
e outras formas naturais, desde as conchas do mar até as galáxias. As
imagens de espirais podem também seguir os padrões do Sol e da Lua. O
Sol nascendo e se pondo sugere um círculo (com a metade inferior do círculo
invisível), mas este fica maior ou menor com a mudança de posição do Sol a
cada dia. Quando nos movemos do solstício do inverno para o solstício do
verão, o círculo começa em um ponto mais amplo cada dia, de forma que o
movimento aparente realmente forma uma espiral no sentido horário
114

(quando de frente para o sul, a direção do Sol). Na outra metade do ano, a


espiral aparente mantém-se no sentido horário, mas se encolhe, em vez de
se expandir.
Uma espiral mais complexa se desenvolve se mapeamos a posição
diferente do Sol ao meio-dia no decorrer de um ano. Charles Ross — outro
artista — mapeou o Sol usando uma lente no telhado do seu estúdio em
Nova York para queimar uma marca na madeira todos os dias ao meio-dia.
A ordenação de todas as marcas revela uma espiral dupla, invertendo a
direção do inverno para o verão (ver Figura 6). A forma da espiral dupla
aparece nos passage mounds irlandeses, compondo também um símbolo de
migração para nativos americanos do sudoeste dos Estados Unidos (ou seja,
um marcador ao longo do caminho que seguiriam no decorrer do ano, o
mesmo período de tempo que o Sol leva para criar essa imagem da espiral
dupla).
O caminho da Lua é mais sutil, pois embora ela nasça no leste e se
ponha no oeste, seu caminho através do mês forma, segundo Martin
Brennan, "uma espiral cujos saltos sucessivos cruzam a eclíptica em um
movimento anti-horário, na direção oeste, oposta à direção do Sol e dos
planetas" (Brennan, The Stars and the Stone).

Figura 6: Desenho do caminho do Sol no decorrer de um ano. Construção de Charles Ross, "Sunlight
Convergence, Solar Burn: The\fear Shape", 1972. j

Podemos interpretar as espirais opostas como representações do Sol e da


Lua. Por isso, várias espirais traçam os padrões de nossos mais importantes
corpos celestes. Mas o Sol e a Lua não são simplesmente objetos no céu
proporcionando luz e calor; são também símbolos. Significam as diferentes
qualidades do dia e da noite. Representam a simplicidade e a complexidade, a
racionalidade e a intuição e, em algumas culturas, o masculino e o feminino.
Em um nível psicológico mais complexo, o movimento das espirais de
sentido horário nos conecta com o Sol. As espirais de sentido horário evocam
envolvimento com o mundo e com o aumento da energia. As espirais de
115

sentido anti-horário podem provocar separação e desprendimento do mundo


externo (uma sensação de "voltar para dentro") ou uma liberação de energia. E
elas fazem isso em um nível subconsciente. Conseguimos esta reação no
movimento corporal, com danças espiraladas. As espirais frequentemente
surgem de forma espontânea nas mentes das pessoas durante a meditação. Esta
reação emocional intuitiva às espirais acontece por causa do Sol e da Lua, e do
que ambos significam em nossas vidas. Estes símbolos — o Sol, a Lua, seus
movimentos e seus caminhos espiralados — não são intelectuais. Eles afetam
nossos corpos de maneira consciente e inconsciente.
As imagens de espiral dupla aparecem em muitos lugares, como os
templos de Malta, onde há pouca sugestão de alinhamentos astronômicos.

Fígura 7: Desenho de espirais em uma estatueta da Deusa encontrada em Cucuteni — uma cultura da Ro-
mênia—, c. 4300 a.C. (segundo Gimbutas).

(Paul I. Micallef elaborou um estudo sobre o templo maltês, Mnajdra, como um


calendário marcando os solstícios e os equinócios; entretanto, ele considera Mnajdra
único entre os monumentos malteses.) As espirais duplas também aparecem em muitas
estatuetas da Deusa — tantas, na verdade, que O. G. S. Crawford descreveu espirais
duplas (e outras formas) como "as Deusas Olhos", sugerindo que, onde ocorreram, as
formas "oculi” por si só significam a Deusa através do seu poder de visão.
116

Nas pedras irlandesas, perto de Newgrange e Knowth e em morros menores e


nos montículos de pedra, espirais isoladas e duplas (e às vezes triplas) aparecem sem
nenhuma imagem circunjacente. Em outros lugares, contudo, elas aparecem diretamente
no corpo da Deusa. Uma maravilhosa figura da Romênia, em Cucuteni, c. 4300
a.C., exibe espirais opostas nas nádegas (ver Figura 7).
Quando pensamos nos montes e no corpo feminino, pensamos primeiramente
nos seios ou na barriga grávida. No entanto, a arte paleolítica e neolítica
frequentemente enfatiza as nádegas, às vezes exagerando-as para uma sugestão de
colinas ou montanhas. Na maioria dos mamíferos, o macho monta na fêmea
por trás. Os primeiros hominídeos podem ter feito o mesmo, com a prática
continuando até o Homo sapiens. Na relação sexual, portanto, as nádegas vão
se elevar antes da entrada para a misteriosa escuridão da vagina, fonte da vida
e passagem para os segredos invisíveis do corpo feminino. As espirais
opostas nas nádegas da Deusa de Cucutenipodiam significar a presença mais
poderosa do mundo iluminado visível, o Sol e a Lua, na própria abertura
para o local invisível da escuridão criativa.
117

5 - O Corpo de Pedra Construído – Parte 2

Nossos corações são chagas para o ultraje à ordem das antigas deusas.

Jane Ellen Harrison

Quando pensamos na Idade da Pedra Polida, pensamos nos círculos e nos


montes, e talvez nas fantasias hollywoodianas de pessoas com túnicas longas
realizando rituais sob a luz da Lua. Mas também podem nos vir à mente
aspectos menos óbvios desse mundo distante. Era um tempo em que a
adoração dos animais e do corpo feminino por parte dos paleolíticos se
fundia, de forma que junto a estátuas da Deusa como mulher encontramos a
Deusa adorada como uma abelha, ou como uma vaca. E além do mundo
animal nós a encontramos incorporada em algumas árvores, e até em coisas
feitas pelo homem, como os nós. Era uma época em que a humanidade
penetrava em um tempo revolucionário de invenções, desenvolvendo tanto
tecnologias quanto estruturas sociais que iriam possibilitar todas as
sociedades posteriores, inclusive a nossa. E o mais incrível de tudo é que
era uma época em que as pessoas não se matavam umas às outras.
Quando observamos essa época, e o recorde surpreendente de não-
violência, nos deparamos fazendo várias perguntas. Primeiro, e acima de
tudo, ela realmente existiu? Ou estamos criando uma fantasia a partir de
evidências parciais e dos nossos próprios anseios? Poderia ter realmente
existido uma cultura composta de seres humanos adoradores da Deusa, sem
assassinatos nem guerras? E como tudo isso terminou? Será que nos
movemos de um mundo matrifocal pacífico para um patriarcado violento
devido a algum passo necessário da evolução, ou tudo de alguma forma
118

simplesmente deu errado, ficando perdido em uma tragédia que não


conseguimos sequer começar a avaliar?
A Era da Não-Violência
A cultura neolítica tem recebido muita atenção na religião contemporânea
da Deusa. Há várias razões para isso. Como no período paleolítico anterior, os
remanescentes do período neolítico estão repletos de imagens femininas,
desde pinturas nas paredes dos santuários até grandes esculturas e pequenas
estatuetas. E há também os megálitos, com sua evocação mais abstrata do
feminino em formas arredondadas e interiores que se assemelham a úteros. O
mais incrível de tudo, no entanto, e até mesmo revolucionário, é que este
período que durou vários milhares de anos não mostra virtualmente
nenhuma evidência de guerra, agressão ou violência cotidiana.
Se estas pessoas realmente viveram sem violência, podemos supor que
conseguiram isso através de uma religião concentrada em torno da
maternidade. Também podemos supor que essa calma seria proveniente de
uma visão de mundo enraizada na Terra e em nossos próprios corpos.
A ausência de evidência de violência no período neolítico é tão
completa que chega a ser quase inacreditável. Nos locais em que os
escavadores encontraram sepultamentos em massa, seja de grandes
comunidades ou de pequenos grupos durante um longo período de tempo,
virtualmente nenhum dos corpos mostra qualquer sinal de morte violenta
— nem de guerra, nem de ataques, nem mesmo de luta entre vizinhos.
Possivelmente, as pessoas daquela época consideravam a morte violenta um
aviltamento e não enterravam as vítimas de violência junto com as outras
pessoas. Entretanto, ninguém encontrou qualquer evidência nesse sentido, e
mesmo que tal ocorresse, isso só indicaria uma profunda aversão pela
violência. Compare essa atitude com a glorificação da matança heróica das
culturas posteriores.
A evidência da não-violência vai além das mortes individuais. A
cidade neolítica escavada próximo a Çatal Hüyük, em Anatólia, na Turquia
(em geral chamada simplesmente de Çatai Hüyük), é uma das cidades mais
antigas do mundo, datando de 7250-6150 a.C. O arqueólogo James Mellaart
encontrou evidência de 800 anos de habitação contínua. Nem uma vez o
registro arqueológico mostra sinais de um saque ou de um massacre —
nenhum em 800 anos.
Os construtores da Çatai Hüyük neolítica, como os de muitas outras
cidades da Idade da Pedra Polida, nem mesmo parecem pensar na defesa
como um critério quando escolhem o seu território. Altas fortalezas em
119

montanhas cercadas por muros só aparecem na Idade do Bronze, quando os


invasores indo-europeus destroem a civilização anterior, que havia durado
mais de 3.000 anos. Em alguns exemplos, os habitantes de uma cidade
parecem ter escolhido o seu território em função principalmente da estética,
no desejo de um ambiente agradável. Em Creta, que sustentou as estruturas
sociais e religiosas neolíticas até um período posterior de desenvolvimento,
as cidades e os palácios foram construídos em locais em harmonia com
determinadas formações naturais. Embora isso frequentemente deixasse seus
habitantes em posições militarmente vulneráveis, não encontramos nenhum
muro ou fortificações. Outras considerações para a localização dos
povoados neolíticos incluíam boa água e bom solo, e terra de pastagem
conveniente para os animais recém-domesticados.

Glastonbury Tor e Avebury


Nos locais onde as sociedades posteriores investiram grande volume de
recursos na fortificação, os neolíticos construíram monumentos.
Glastonbury Tor, na Inglaterra, é uma incrível montanha que se tornou
famosa por sua associação com a lenda do Rei Artur. Em algum ponto do
passado, as pessoas acentuaram a beleza natural da montanha moldando um
lado dela em uma série de terraços. Estes formam uma espécie de labirinto
que alguns acreditam tenha sido usado para danças processionais. (Os
neopagãos contemporâneos têm realizado procissões alegres em Glastonbury,
ver Foto 13)- Um panfleto sobre Glastonbury Tor apresenta razões muito
interessantes para as pessoas da Idade da Pedra terem realizado a escavação.
Primeiro, a montanha não é adequada para a defesa ou a agricultura, e por
isso deve ter servido a um propósito religioso. Segundo, as culturas
posteriores gastaram tempo, recursos e energia demais defendendo-se dos
invasores. Podemos acrescentar que as culturas posteriores não se dedicaram
ao que poderíamos chamar de estética sagrada — transformando toda uma
montanha em um campo de dança cerimonial.
Assim como os cretenses harmonizavam a paisagem natural através
da construção de um palácio, ou os aborígines australianos mapeavam todas as
características da terra como um ancestral divino, ou os pintores da Idade da
Pedra Lascada usavam a forma da parede da caverna para expor imagens de
animais, também a escultura da montanha de Glastonbury implica ver um
poder divino no interior da terra e sentir a necessidade da ação humana
trazer à vida esse corpo escondido.
120

Os construtores neolíticos criaram monumentos para rivalizar com as


próprias montanhas, uma atividade que requeria uma dedicação maciça dos
recursos. O Círculo de Pedra de Avebury forma uma parte de um grupo de
monumentos que inclui a Montanha Silbury e um comprido monte
retangular chamado Grande Túmulo de West Kennet. Os arqueólogos
estimam que deve ter sido necessário um milhão e meio de horas de trabalho
para construir o complexo de Avebury.

A Não-Violência e a Arte
No período neolítico, não encontramos a glorificação da guerra e da
matança, tão proeminente nas sociedades posteriores. Em Çatai Hüyük, 150
pinturas sobreviveram nas paredes. A arte era evidentemente importante
nesta cidade bastante antiga (Mellaart enfatiza que era realmente uma
cidade, não uma colônia temporária), e, entre essas 150 pinturas, nenhuma
mostra batalha, guerra ou tortura.
Em Creta, também, a arte elegante encontrada em todas as ruínas não
mostra cenas de guerra. Os arqueólogos encontraram armas nesses locais.
James Mellaart relata evidências em Çatal Hüyük do uso de estilingue, arco
e flecha, e lanças. Mas todos estes artefatos eram tanto instrumentos de caça
quanto armas, e por isso não podemos supor que representem evidência de
guerra. O mais significativo é que nenhuma arma aparece na arte. Segundo
Stylianos Alexiou, no livro Minoan Civilization, Creta tinha uma marinha e
travou batalhas no mar. Entretanto, na própria Creta as fortificações
permaneceram desconhecidas e nenhuma batalha naval aparece na arte. Os
cretenses podem ter combatido estrangeiros, mas viviam pacificamente entre
eles.
Assim como não mostra evidências de violência, a arte neolítica não
exibe glorificação de um chefe ou governante, seja homem ou mulher. Nos
afrescos e brasões murais cretenses, vemos principalmente grupos de pessoas
realizando juntas atividades como danças ou sacrifícios de touros. Algumas
mulheres são em geral Deusas, ou talvez sacerdotisas, mas não rainhas. Só
uma vez aparece uma imagem masculina individual, e esta figura, um jovem
gracioso segurando flores, dificilmente sugere o todo-poderoso "Rei Minos",
descrito pela posterior lenda grega patriarcal.
121

A Igualdade Social e a Questão do Matriarcado


Juntamente com as indicações de que havia uma ausência de violência,
encontramos sinais de igualdade social. Os remanescentes neolíticos não
mostram indicações de escravidão, tão comum nas culturas posteriores. Não
mostram uma estrutura de um Deus-rei todo-poderoso (e rico) ou de uma
classe dominante, e não parecem mostrar grandes desigualdades entre
homens e mulheres.
Este é um tema difícil. Em alguns casos, encontramos sinais claros de
mulheres em uma posição superior, de forma que enfrentamos a
possibilidade de que o que vimos nos últimos 5.000 anos foi uma simples
reviravolta do que havia antes. Quando os historiadores e antropólogos
começaram a investigar a questão das culturas pré-patriarcais, formularam
duas hipóteses. Primeiro, que essas culturas formaram um estágio
evolucionário anterior no desenvolvimento da humanidade, necessário até
certo ponto — como também sua destruição em favor de um patriarcado
mais civilizado e mais dinâmico foi necessário. Na verdade, como veremos
mais adiante neste capítulo, o período neolítico foi possivelmente o mais
criativo da história humana.
A segunda hipótese dizia respeito à idéia do "matriarcado". Se os
homens não dominavam nem subjugavam as mulheres, então as mulheres
devem ter dominado e subjugado os homens. A intelectualidade feminista
moderna desenvolveu um modelo diferente para a cultura neolítica, ou seja,
de uma sociedade "matrifocal" ou "matrística". Estes dois termos referem-se
à idéia de uma sociedade "centralizada na mulher", não governada pela
mulher. (Na verdade, para ser mais precisa, "matrifocal" significa
"centralizado na mãe", e "patriarcado" significa literalmente "liderança dos
pais".) Nessa situação, o pensamento e as práticas espirituais giravam em
torno de uma Deusa, e o nome e a propriedade passavam de mãe para filha.
Neste modelo, conselhos de mulheres tomavam as decisões para o clã,
mas não escravizavam os homens nem os excluíam do poder na sociedade
nem da tomada de decisões. O modelo depende em parte da idéia da Deusa
Mãe amando igualmente Seus filhos homens e mulheres, e em parte
daquelas imagens de homens que aparecem na arte neolítica, como uma
pintura em Çatal Hüyük de um homem e uma mulher se abraçando.
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O Registro dos Sepultamentos


Os sepultamentos e as honras prestadas aos indivíduos e aos grupos podem
nos contar muita coisa sobre as posições relativas dos diferentes membros
da sociedade. A evidência de registro de sepultamentos não proporciona
um quadro consistente em relação ao status dos homens e das mulheres no
período neolítico europeu. Em alguns lugares, encontramos muito pouca
distinção entre homens e mulheres. Em outros, vemos evidência de
mulheres extremamente homenageadas e homens quase negligenciados.
Em parte alguma, no entanto, encontramos diferenças tão extremas quanto
aquelas que apareceram mais tarde, na era dos guerreiros e dos reis.
Nas culturas de Sesklo, Starçevo e Karanovo, de 7000-6000 a.C, no
sudeste da Europa, as crianças e as pessoas jovens de ambos os sexos,
como também as mulheres adultas, eram sepultadas sob os pisos das casas.
Não aparecem túmulos de homens adultos. Em contraste, os túmulos das
Ilhas Orkney, da Bretanha, da Normandia e do sul da Inglaterra mostram
números iguais de homens e mulheres. Embora em alguns lugares as
mulheres e