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Trilhas Filosóficas
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE - UERN
Reitor
Prof. Dr. Pedro Fernandes Ribeiro Neto
Vice-reitora
Profa. Dra. Fátima Raquel Rosado Morais
Capa
Luli Esteves
Revisão
Prof. Esp. Geane Ferreira de Lima
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Curso de Filosofia do Campus Caicó - UERN
Av. Rio Branco, 725. Centro. CEP: 59300-000
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SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Trilhas Filosóficas – Revista Acadêmica de Filosofia, Caicó,
ano XI, n. 1, páginas do artigo, jan.-jun. 2018. ISSN 1984-5561. Disponível em: < url completa >.
Acesso em: dia mês ano.
Trilhas Filosóficas
TRILHAS FILOSÓFICAS
Publicação do Curso de Filosofia do Campus Caicó/UERN, do Grupo de Pesquisa Filosofia e
Educação (UERN), e do Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO), Núcleo UERN
Editores responsáveis
Conselho editorial
Conselho científico
Trilhas Filosóficas
Trilhas Filosóficas
SUMÁRIO
Apresentação 7
A paidéia kierkegaardiana 45
Marcos Érico de Araújo Silva
Trilhas Filosóficas
As ironias do conceito socrático em Kierkegaard 239
Gabriel Kafure da Rocha
Estela Araújo Silva
Trilhas Filosóficas
ISSN 1984 - 5561
APRESENTAÇÃO
Alvaro L. M. Valls
Abstract: The present article, in essayistic form, does not intend to expose
any kierkegaardian theory of education. It rather makes an effort to remove
some myths about Kierkegaard’s own education, in order to which it tries
basically to emphasize the sound, wealthy side of a maternal-figure –
generally ignored or disdained by several commentators. Beyond, it
denounces some prejudices of Danish, German, French and Brazilian
interpretations.
1 “Do meu pai tenho a estatura / e o jeito sério de levar a vida / Da mãezinha a natureza
alegre / e o gosto para contar estórias. “ (J. W. von Goethe, Xênias).
2 “Sabes que nunca me fiz passar por filósofo... Em parte para te provocar um pouco...
erótico, nenhum traço, nenhum momento pode ser indiferente para ele; [...] Pois, se bem
que o observador traga o conceito consigo, importa, mesmo assim, que o fenômeno não
seja violentado, e se veja o conceito surgindo a partir do fenômeno” (KIERKEGAARD,
1991, p. 23).
morresse tão jovem. (Nem tanto, aliás: 5 dos irmãos faleceram com menos
idade!) – Voltando ao caso do pai: tendo vindo para a Capital, pelos 12 anos
de idade, depois de uma vida ao ar livre, cuidando de ovelhas, e tendo se
dedicado ao comércio de lãs, o que não chega a ser uma atividade estafante,
tendo se expandido nas lides de um comércio internacional florescente e
enriquecido de forma espantosa, um homem de 40 anos 4 meses e 14 dias
não merecia, convenhamos, ser chamado de “velhote” (“vieillard”), como se
fosse um Abraão deixando morrer Sara e desposando a serva Agar, de baixa
condição. Aliás, por rico que fosse, o ex-camponês não era um príncipe,
provavelmente não seria reconhecido pela fina flor da sociedade de
Copenhague como se fizesse parte da chamada “bedre Portion” (“a parte
melhor”, como o explica Bruce Kirmmse (1990)), a elite cultural da Capital
do Reino. Há que dar, então, um bom desconto à expressão infeliz de Wahl,
sobre a falta, o pecado e a miséria deste pai, suposto ser tão espiritualizado,
que teria infelizmente cedido à carne de modo vergonhoso. Nos Études
Kierkegaardiens, escreve ele que Søren Kierkegaard um dia
5 No original: “[...] a appris la faute de son père, et sa détresse – double faute: le jeune pâtre
dans la lande désolée a élevé sa voix contre Dieu, a maudit Dieu; et le vieillard a cédé à la
chair et a épousé sa servante. Deux fautes contre l’esprit de celui que était pour lui
l’incarnation de l’esprit”.
ANINHA, A MÃEZONA
A mãe do filósofo
6 No original: “La mort de la première femme est du 23 mars 1796, les secondes noces du
26 avril 1797, la naissance de Marie-Christine du 7 septembre 1797. Le remords du vieux
bonnetier semble avoir souvent revêtu le visage de sa première épouse: lorsque ce souvenir
s’imposait à son esprit, on l’entendait alors battre sa coulpe, et il faisait distribuer par
Mynster de fortes sommes d’argent aux pauvres de Copenhague”.
Ane, pelo contrário, mas foi rico, muito rico em filhos, saúde e tranquilidade
doméstica. Uma mulher simples e forte, que consegue educar, sem grandes
luzes intelectuais próprias, sete filhos, sem perder nenhum nos primeiros
dez anos de vida, naqueles tempos, era uma fortuna toda especial.
Nem podemos esquecer que Michael P. Kierkegaard agora largara
o comércio, vendera a loja a seus parentes, e podia (aposentado após 30
anos de trabalho) dedicar-se aos assuntos de moradia, de educação
intelectual, de escolaridade para os filhos (tal como ele próprio não tivera),
colocando-os nas boas escolas da capital, enviando um ao exterior, e
conseguindo dois filhos “doutores”: um bispo importante e um pensador
mundialmente conhecido. Michael Pedersen tinha agora tempo para
comprar casa no campo e depois no centro da cidade, além de ter podido
dar uma boa ajuda aos irmãos da Jutlândia, em termos imobiliários. Tinha
tempo para a mulher, apesar da distância intelectual que se alargava entre
os dois, ela cuidando da casa e da prole e ele com tempo para longas
discussões com seu pastor (depois bispo) Mynster, uma das principais
cabeças da Capital, da Igreja e do Reino. Com tempo e dinheiro, podia ler
e estudar à vontade, desenvolver sua inteligência privilegiada, e ainda
relacionar-se com a família Lund, casando duas de suas filhas com dois dos
três irmãos Lund, gente importante, em termos econômicos e
universitários. E todo o tempo ele tinha a esposa Ane cuidando das
crianças: situação patriarcal e idílica, que decerto lhe provocava remorsos, à
lembrança de seu primeiro casamento. – Detalhe importante sobre a nova
relação conjugal deste comerciante que tanto valorizara o vil metal: já em
1802, antes até do nascimento dos filhos varões, o paizão redigiu um
testamento agora bem mais generoso (“mão-aberta”) para com a mãe das
meninas do que o fora o contrato pré-nupcial.7
Para concluir este ponto: se Pierre Mesnard tem razão aqui, o
dinheiro dado em penitência (“fortes sommes d’argent aux pauvres de
Copenhague”) estaria relacionado diretamente à lembrança do casamento
frustrado, mais que à dramática cena de revolta contra Deus do pastorzinho
da Jutlândia. Se realmente intervinha a lembrança da falecida, então as
grandes somas de dinheiro não seriam, não em primeiro lugar, para
devolver ao Deus ofendido pelo menino faminto o dinheiro que o Todo-
poderoso lhe estaria agora concedendo sadicamente, enquanto preparava a
terrível vingança de sua divina ira. Conclusão que se pode tirar deste
contexto é que a casa dos Kierkegaard, com sua abelha-rainha, alegre e
saudável, foi na verdade, por mais de trinta anos, apesar das excentricidades
(comuns, aliás, a outras muitas famílias, como a dos Lund) um lar bastante
normal, saudável, promissor, por certo barulhento, com moças ajuizadas e
meninos que brigavam como irmãos, e um caçulinha mimado (criado por
quatro mulheres – o dobro de Da Vinci: mãe e três irmãs com mais de 12
anos de diferença dele – e de resto nem discutimos se havia ainda alguma
babá ou outra “servante” nesta casa), um caçula irritadiço, implicante, e que
se grudava amuado à saia da mãe quando não lhe faziam as vontades8.
Apelido: “o garfinho”, ou “o forcado”! Se uns comentadores lembram de
Isaac prestes a ser sacrificado pelo idoso Abraão, para pintar a situação de
Søren, por que não poderíamos aproximar este caçula da figura de José,
7 “Da pater familias i 1802 skrev testamente, var han da også langt mere rundhåndet end
i ægtepagtens tid.” (GARFF, 2000, p. 6.)
8 Um testemunho sobre sua infância: “As usual, Søren sat in a corner and sulked”
9Verificar no anexo da obra em que este autor interpreta o famoso “tremor de terra” (Das
Erdbeben).
foi a gota d’água para o (agora sim) velho Kierkegaard, octogenário, que
deve ter feito então aquelas cenas de desespero que tanto impressionaram
e influenciaram os dois filhos sobreviventes. Ele veio a falecer no ano
seguinte, 1838, aos 82 anos, – mas reconciliado com o caçula de 25 anos,
que se havia afastado dele e depois se reencontrado consigo e com seu velho
em 1838 (ano da morte também do querido professor Poul Martin Møller).
Mais moço que as três meninas, e após um interregno de 4 anos,
Peder Christian era o mais velho dos irmãos, nascido em 6 de Julho de 1805.
Seus manos eram 2 e 4 anos mais moços, o caçula inclusive quase 8 anos
mais jovem. Primeiro universitário da família, estudioso, com vocação
eclesiástica, tinha uma relação bastante tensa com o caçula genial e
voluntarioso, irônico e satírico. Peder era um homem sério, ou queria sê-lo,
seguia as ideias de Grundtvig, o grande líder religioso popular do interior
dinamarquês, enquanto que o caçula valorizava mais os sermões de
Mynster, pregador da Corte, na Capital. Por três vezes, ao menos, Peder
distanciou-se publicamente de seu problemático irmão, o que levou este
(nas Obras do Amor, de 1847) a tratar de modo criativo, irônico e compassivo
ao mesmo tempo, a cena do olhar misericordioso de Cristo para Pedro (que
o negara três vezes no Sinédrio): pois Cristo olha para o discípulo fanfarrão
de horas antes e pensa: “Peder er Peder” (“O Pedro é o Pedro”), aquele que
todos conhecem, com qualidades e defeitos, com sua covardia e seu bom
coração, melhor perdoá-lo. O detalhe curioso é que o pensamento de Jesus
não se expressa nos termos bíblicos que diriam “Petrus er Petrus”, mas
mencionam logo “Peder”, tal como Peder Christian...10
10As Obras do Amor (2005, p. 201), primeira parte, cap. IV: “O amor de Cristo por Pedro
era desta forma ilimitado; ao amar Pedro, ele realizava perfeitamente o amar aquele homem
que vemos. Ele não dizia: ‘Primeiro Pedro precisa modificar-se, e se tornar uma outra
pessoa, antes que eu possa amá-lo de novo’; não, exatamente ao contrário, ele dizia: ‘O
Pedro é o Pedro, e eu o amo; se algo pode ajudá-lo a se tornar um homem diferente, é
justamente o meu amor que deve fazê-lo. Portanto, ele não rompeu a amizade...”. Na SKS,
Bd. 9, p. 172: “han sagde: Peder er Peder, og jeg elsker ham”.
11 “Despite the fact that there was really no significant improvement with Mother, Sören
finally set out for Gilleleje on the 26th [of July] in order to spend two weeks there for the
sake of his health. … On the morning of Wednesday the 30th [of July] things were
significantly worse with Mother, so that I feared a stroke. One of Christian Lund’s office
employees was sent to Gilleleje after Sören, but he could only come home the next
morning” (KIRMMSE, 1996, p. 142).
the world’s funniest theologian, but I do not wish to exaggerate”. Numa linha semelhante
parece ir o livro The Laughter In on My Side de R. POOLE e H. STANGERUP (1989).
REFERÊNCIAS
A PAIDÉIA KIERKEGAARDIANA
A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.
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I
“Ao empregar um termo grego para exprimir uma coisa grega,
quero dar a entender que essa coisa se contempla, não com os olhos do
homem moderno, mas sim com os do homem grego” (JAEGER, 1995, p.
1). Esta frase retirada da Introdução da obra Paidéia: a formação do homem grego,
de 1936, publicada na Alemanha, permite-me meditar sobre a questão da
educação ou formação em Kierkegaard. Jaeger, na Introdução, sente a necessidade
metodológica de esclarecer dois aspectos implicados no termo grego
Paidéia. Um primeiro aspecto que chama a atenção do leitor é com a
estranheza da palavra. O leitor moderno, sem conhecimento da cultura
grega, sentirá a curiosidade de saber o sentido deste termo estranho para a
sua língua. Jaeger explica que qualquer opção de tradução do termo só
consegue capturar um aspecto dele e não sua totalidade: “civilização,
cultura, tradição, literatura ou educação” (JAEGER, 1995, p. 1). A
dificuldade encontra-se no caráter reducionista de cada opção dessas uma
vez que o termo grego congrega todas essas palavras e sentidos numa
unidade integrativa: o termo Paidéia tem o condão de ao dizer mostrar a
totalidade da coisa nela mesma. O outro aspecto, decorrente deste primeiro,
é a exigência de que o leitor moderno deve, por assim dizer, mudar os olhos
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1 Não é nessa decadência de perda do sentido que o atual governo está reformulando o
ensino no Brasil? Não é desde essa perspectiva de perda do sentido, ou pior, de negação
do sentido de Paidéia que surge a proposta não-grega, anti-filosófica do Escola Sem
Partido? Uma proposta ideológica contra toda ideologia, uma proposta partidária (o “sem
partido”) contra partidarismo é uma contradição em si mesma. O homem desde sempre,
quer dizer, desde que aparece no mundo já se movimento num horizonte de sentido, numa
pré-compreensão que dá a condição de possibilidade de conhecer isto ou aquilo.
Neutralidade não existe, como bem mostra os filósofos contemporâneos e, até mesmo, a
física quântica, ou o epistemólogo Thomas Kuhn. Os professores (as), particularmente de
filosofia e sociologia, devem continuar tendo sua autoridade de cátedra em sala de aula
ensinando aos alunos o conhecimento filosófico, sociológico que foram consolidados na
cultura.
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conhecimentos técnicos para isto ou aquilo. Então, essa ação do para onde da
educação, ou do dar forma da formação são movimentos que tomam a
matéria-prima, bruta, de si mesmo para tornar-se si-mesmo2, quer dizer,
concretizá-lo, efetivá-lo, sintetizá-lo. Em uma palavra: dar uma forma
(eidos). É, pois, um movimento que não sai do lugar, quer dizer, é, como a
Psychê um princípio (arché) de movimento que não se movimenta. Isso
significa uma dinâmica de realização do real em que a cada momento precisa
vir a ser. Isso que precisa vir a ser neste movimento que, em sendo princípio
de movimento, entretanto, não se movimenta, é a vida, a existência do
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3 No original lemos: “Forsaavidt da Selvet ikke vorder sig selv, er det ikke sig selv; men
det ikke at være sig selv er just Fortvivlelse” (SKS 11,146, grifo nosso). Como no português
temos o recurso de usar o si mesmo sem ser hifenizado (dando a idéia de deslocado de si
mesmo, despersonalizado) e o si-mesmo hifenizado (aglutinação, junção, integração,
dando a idéia de autorrelação, movimento) utilizo essa diferenciação para que o leitor
compreenda o paradoxo, mas ao mesmo tempo a razoabilidade da possibilidade de se falar
de que o si mesmo, o esteta, o homem na não-verdade, precisa vir a ser porque de certo
modo ainda não é, quer dizer, precisa sintetizar a si mesmo na autorrelação para que o si
mesmo seja verdadeiramente, em plenitude, um si-mesmo. Na tradução espanhola
aparecem indistintamente como eu e sí mismo, e na francesa moi, soi; no francês tem o soi-
même mas não aparece na tradução marcando o Selv. Muito embora no contexto em que
aparecem torna-se evidente a distinção, no contexto da frase ou parágrafo, para o leitor
atento ou familiarizado com Kierkegaard, penso ser significativo, porém, marcar uma
diferença para chamar a atenção do leitor que não tem proximidade com o pensamento de
Kierkegaard. Julgo, pois, que em português a grafia com o recurso da hifenização para
indicar o si-mesmo que se relaciona consigo mesmo e o si mesmo sem hifenização indicando
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4 Sobre esta crítica de Kierkegaard (KIERKEGAARD, 2012) veja Uma Recensão Literária
(ou Época presente) de 1846.
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filósofo hermeneuta, a autópsia só se interessa pelo corpo, pelos textos porque sabe que
eles custodiam a alma, o espírito. O filósofo busca no texto o que está para além do texto:
a voz do Ser ou de Deus. Extrair uma meditação desta atmosfera positiva de “autópsia” é
tema para outra meditação, que desejamos empreender, num diálogo de Kierkegaard com
Heidegger e Schopenhauer. Schopenhauer escreve criticando os eruditos, àqueles que se
atém e investem no conhecer muitas informações sobre tudo, mas não se concentram na
simplicidade da coisa ela mesma; não saboreiam a variação do mesmo (Selbe), da mesma
questão, mas pensam e se embriagam na variação de muitos temas “aprofundando” na
horizontalidade da superfície da coisa: “Ler em lugar das obras originais dos filósofos
exposições de suas teorias ou, em geral, história da filosofia é como pretender que outro
mastigue a própria comida. [...] Mas com relação à história da filosofia está realmente a seu
alcance tal autópsia de seu objeto, em concreto, nos escritos originais dos filósofos [...]
(SCHOPENHAUER, 2006, p. 67, tradução nossa, grifo nosso). Heidegger escreve no
semestre de verão de 1928 em Marburgo: “A grande esterilidade dos cursos acadêmicos
sobre filosofia tem seu fundamento, entre outras coisas, em que, em um semestre, se
pretende ensinar ao ouvinte, seguindo os conhecidos grandes traços [visões panorâmicas!],
o mais possível sobre tudo o que há no mundo, ou inclusive mais além dele. Temos que
aprender a nadar e, em compensação, nos limitamos a passear ao largo da orelha do rio,
conversamos [tagarelamos] sobre o murmúrio da corrente e falamos das cidades e aldeias
pelas que ela flui. É certo que desta forma nunca surgirá no ouvinte a chispa que
permita fazer crescer nele uma luz que nunca mais poderá apagar-se em seu
Dasein” (HEIDEGGER, 2007, p. 17-18, tradução nossa, grifo nosso).
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II
A paidéia kierkegaardiana
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ser mais homem. Esta acústica reverbera na vida prática dos indivíduos
fazendo da cristandade uma falsificação do verdadeiro cristianismo. A vida
prática dos cristãos perde a essência do cristianismo e, assim, desprovidos
do crístico, perdem a medida de Deus, acomodando-se num cristianismo
que de muitos modos reforça a ilusão de já serem cristãos, portanto,
matando o movimento de conversão, todos se eximem de se esforçarem
numa ação efetiva à medida de Deus porque já tem à medida do pastor, da
Igreja, da cristandade. No âmbito, pois, da vida prática, já não existe prática
efetiva muito embora prevalece a ilusão de como se existisse e, no campo da
cultura, na filosofia e teologia, a compreensão e reflexão tem primazia sobre
a prática, a ação, na ilusão que deste procedimento por si já fosse a ação.
Instaura-se um círculo vicioso (não o círculo virtuoso do paradoxo de toda
filosofia verdadeira!) perdurando a ilusão como e enquanto ilusão.
Tem razão Anti-Climacus/Kierkegaard quando afirma existir uma
diferença qualitativa entre o paganismo grego e o paganismo dentro do
cristianismo. Anti-Climacus declara sem ambiguidade:
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8Informação extraída da Introdução (p. XXV) do Tomo XVII das Oeuvres Complétès de
Kierkegaard (OC 17).
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9 A existência entendida como um modo de ser possível, por exemplo, ou esteta ou ético-
religioso, não está dizendo de uma passagem da não-verdade para a verdade que seja
necessária. O indivíduo, um si mesmo, pode escolher não entrar no movimento de tornar-
se si-mesmo, um Selv. Entretanto, o que se diz em tudo que foi dito é que existe a
necessidade de apropriar-se de um modo de ser, quer dizer, não se pode não escolher um
modo de ser porque o homem já está desde que aparece no mundo como e enquanto
homem num horizonte de sentido, num modo de ser. O que a paidéia kierkegaardiana pro-
cura é educar o homem para que possa entrar no movimento existencial de seu poder ser
mais próprio, tornando-se o que não poderia não ser se deseja ver-aparecer sua verdadeira
identidade, seu si-mesmo (Selv).
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10Essa tradução portuguesa foi traduzida por João Gama a parir da edição das Œuvres
Complètes de Kierkegaard, Tome XVI, traduzida por Paul-Henri Tisseau. O tradutor francês
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traduziu essa frase que coloquei em negrito: “mais surtout, n’oublie pas une chose, la
retenue de l’addition, le religieux à presenter” (KIERKEGAARD, 1971, p.22, grifo
nosso). No original lemos: “men glem for Alt ikke Eet, Menten, som Du har, at det er det
Religieuse, der skal frem” (SKS 16,28, grifo nosso). Difícil essa opção da tradução por
“retenção da adição”. O fato é que nesse contexto em que o escritor religioso precisa se
apresentar na cristandade, em que impera a ilusão, ele precisa escrever obras estéticas para
cativar e seduzir o homem que vive na não-verdade com o intuito de libertá-lo da ilusão.
Deve, pois, falar a linguagem desse homem, esteta, afetando-o de diversos modos, mas
não pode esquecer o fundamental que é o religioso que está por vir, o acontecimento do
religioso que a produção estética apenas prepara. Como estou utilizando a tradução
portuguesa (e francesa) conservo, pois, os termos escolhidos pelo tradutor. O que é
essencial, porém, no contexto e como estou interpretando é que a produção pseudônima,
estética é o incógnito (Æsthetiske Incognito) porque retém o religioso, quer dizer, ela conduz
o homem através da desconstrução crítica da tradição filosófica para o edificante, para os
Discursos (Edificantes e Cristãos) onde encontra-se o acontecimento do religioso que estava por vir
(det Religieuse, der skal frem) em sua plenitude, sendo isto o decisivo (det Afgjørende).
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O que nos cabe agora, dulcíssimo leitor (a), após este percurso e
meditação da filosofia de Kierkegaard como paidéia e, portanto, depois de
ter saboreado uma espécie de introdução à filosofia de Kierkegaard, é nos
lançar desde a tonalidade afetiva (Stemning) da busca pela simplicidade na via-
gem do estudo sério de Kierkegaard para nos tornarmos filósofos. E isso
não significa o esforço intelectual de tornar-se um erudito arrotando
citações de estudiosos, ou falando em dinamarquês na gula intelectual por
ser ao menos um “corneteiro de importância absoluta” (KIERKEGAARD,
2008b, p.19), mas o esforço para modificar a própria existência
apropriando-se disto que se estuda, reduplicando-o em sua exitência. Nisto
está a seriedade franciscana, ops!, kierkegaardiana, sendo ao mesmo tempo
irônica e muito bem humorada, nunca com feições carrancudas de alguém
que se julga um sofoi. Mas alguém que, com paciência, insiste e persiste na
gestação da verdade da apropriação tornando-se apenas e por pura graça
num filo-sofo. Magnificat! Nunc dimittis!
REFERÊNCIAS
A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.
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ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.
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INTRODUÇÃO
como retribuição, e por isso mesmo não atinge a dimensão do amor crístico
da gratuidade e do engajamento radical e assimétrico como propõe
Kierkegaard.
Freire, em Ação Cultural como Prática da Liberdade, ao explicar o amor
como um ato de libertação e não um ato possessivo de amor, consegue
chegar próximo à concepção do amor crístico, e ao utilizar Camilo Torres
como exemplo dessa generosidade própria do amor, explica que “Torres se
fez guerrilheiro não por desespero, mas por amor verdadeiro” (FREIRE,
1981, p. 66). Em Pedagogia da Esperança, citando Che Guerava, Freire (1992,
p. 23) diz que “o verdadeiro revolucionário é animado por fortes
sentimentos de amor. É impossível pensar um revolucionário autêntico sem
essa qualidade”. E ao citar o poeta Thiago de Melo, afirma que “os
interditados, os renegados, os proibidos de ser não precisam da nossa
‘mornidade’ (FREIRE, 1992, p. 92), mas de nosso calor, de nossa
solidariedade e de nosso amor também, mas de um amor sem manha, sem
cavilações, sem pieguismo, de um amor armado”. (FREIRE, 1992, p. 78).
O que seria esse amor armado?
O amor armado não utiliza armas, fuzis, bombas atômicas; usa a
ética como condição para ser mais como vocação ontológica e existencial do
homem. O capítulo do livro Pedagogia do Oprimido, intitulado “O homem
como ser inconcluso, consciente de sua inconclusão, e seu permanente
movimento em busca de ser mais” (FREIRE, 2005), é, no fundo, um
esforço para que o constante deixar de ser para tornar-se que é designado
como vocação do humano seja realizada, é porque deseja ser mais que o
homem pode construir a futuridade revolucionária, porque é um ser mais
que ele se coloca como um modo de melhor conhecer o que está sendo,
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
_______. Educação e mudança. 12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
_______. Pedagogia da autonomia. 37. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
Yésica Rodríguez
Es Profesora de Nivel Superior en Filosofía por la Universidad Nacional de General Sarmiento (UNGS)
y Doctoranda en Filosofía por la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires.
Actualmente es Becaria doctoral CONICET (2017-2022) y fue, en distintas oportunidades, Becaria en
Investigación y Docencia de la UNGS. Miembro del Programa de Investigación en Filosofía Poshegeliana
del Instituto de Ciencias de la UNGS. En el marco de distintas becas de docencia, se desempeñó como
docente en la materia Metafísica y en la materia Seminario de corrientes filosóficas o filósofos
contemporáneos en la UNGS. También fue Profesora Auxiliar de la materia Bioética y la materia Ética
en el Instituto Superior de Imágenes Médicas Derqui. Su investigación se concentra en el pensamiento del
fi lósofo danés Søren Kierkegaard, en particular su pensamiento ético y la importancia que toma en él la
noción de apropiación de sí mismo o personalidad.
(E-mail: : yrodrigu@ungs.edu.ar / jesica.rodriguez.ok@hotmail.com)
INTRODUCCIÓN
del individuo ético. Con este fin, proponemos realizar, una aproximación
entre la ética de la auto-reflexión kierkegaardiana en su escrito de 1843, la carta
que el pseudónimo B, el juez y esposo Guillermo, dirige al pseudónimo
estético A, O lo uno o lo otro II junto con la obra del mismo periodo: El concepto
de la angustia de 1844, y el pensamiento práctico que Kant desarrolla, en lo
que junto a Ágnes Heller denominamos la segunda ética kantiana1, es decir,
los escritos éticos trabajados por el filósofo alemán a partir de 1790 entre
ellos Antropología en sentido pragmático (1798)2.
En los escritos kantianos del noventa aparece con fuerza la cuestión
del autoconocimiento como condición de posibilidad para el desarrollo de
una segunda ética. Las continuas referencias al mandato conócete a ti mismo
podrían pensarse como una suerte de anticipación de aquello que
Kierkegaard denomina la elección de sí mimo. Ya que tanto para el ético
kierkegaardiano como para Kant, en su segunda ética, la tarea del hombre
es funcionar en la sociedad y de este modo cultivarse a sí mismo. Creemos
1 ¿Por qué segunda ética en vez de sólo la “ética kantiana”? Heller indica que La metafísica de
las Costumbres aporta elementos tan novedosos que producen un desplazamiento de gran
importancia de los problemas éticos del periodo crítico. De modo que estos
“desplazamientos”, tales como la preocupación por la constitución del sí mismo, el
abandono del egoísmo como motor del desarrollo de la humanidad, etc., hacen lícito poder
hablar de otra ética kantiana. Según Heller las modificaciones que introduce el filósofo a
partir de 1790 sobrevienen con el cambio de su filosofía de la historia, y se puede identificar
al menos tres motivos de estos cambios: (1) “el autodesarrollo del mundo de las ideas. No
importa que el conjunto del sistema crítico estuviese acabado en el pensamiento de Kant
en el momento en que éste trasladó al papel la Crítica de la razón pura [1781]; [...] aparecen
siempre nuevas ideas fértiles que no impiden que en la obra subsecuente sean formuladas
ideas de orientación distinta, nuevas y más fecundas.”; (2) El segundo motivo es la recepción
de la crítica específicamente las realizadas por Schiller; y (3) el último motivo es la
Revolución francesa. (HELLER, 1999, pp. 21-24).
2 Sobre la incorporación de la Antropología en sentido pragmático cfr. RODRÍGUEZ, Yésica.
“Kierkegaard y Kant. Una interpretación del sí mismo a partir de la segunda ética kantiana”.
En: DIP, Patricia., RODRÍGUEZ, Pablo (Coord.), 2017, pp. 113-140. Sobre cómo se
relaciona la Antropología en sentido pragmático con el corpus kantiano cfr. HEIDEGGER, 2013.,
y cfr. FOUCAULT, 2013.
Basta con observar las notas que Theodor Rink toma de las
lecciones que Kant dictó sobre pedagogía (publicadas en 1803) para
confirmar que la educación3 tiene un rol decisivo para la formación moral.
Allí la educación es definida como: “aquella mediante la cual el hombre
debe ser formado para poder vivir como un ser que obra libremente. Es la
educación de la personalidad, la educación de un ser que obra libremente,
3 Utilizamos la
traducción de los términos Bildung (formación) y Erziehung, como educación.
Sugerencia tomada de la traducción de Lorenzo Luzuriaga y José Luis Pascual en: KANT,
2003.
12 Todo tipo de sensualidad estética que como tal no incluya el egoísmo será concéntrica
con espíritu, y por lo mismo, armónica con la vida ética. […] la opción existencia del esteta
es corrupta no por lo que tiene de sensual, sino por lo que tiene de corruptamente espiritual,
lo espiritual del esteta lo ha llevado al egoísmo (OLIVARES -BØGESKOV, 2008, p. 52).
13 El error consiste en que el individuo es puesto en una relación extrínseca con el deber.
Lo ético se define como deber, y el deber, a su vez, como una multiplicidad de principios
particulares, pero el individuo y el deber son exteriores el uno al otro. Una vida tan llena
de deberes, desde luego, es fea y aburrida, y, si lo ético no estuviera ensamblado de manera
mucho más profunda a la personalidad, sería dificilísimo abogar por ello en contra de lo
estético (KIERKEGAARD, 2007, p. 228; SKS 242).
14 La posibilidad es el trascendental de la libertad y la libertad es el trascendental de la
COMENTARIOS FINALES
22 […] Ética es así la “historia del espíritu”, es decir, libertad. Mientras que la concepción
estética de la vida significa desesperación, porque el que vive estéticamente no se deleita a
sí mismo, sino que acepta la necesidad como condición de su existencia, la concepción
ética promueve el desarrollo del ser humano por medio de la libertad. La importancia de
la personalidad en términos de ética es, en última instancia, de un orden espiritual, porque
el hombre mismo se define más tarde como espíritu. La autoconciencia exigida para
reemplazar la mera inmediatez de la vida estética no tiene un carácter epistemológico. Así,
el juez no hace referencia al “conocerse a sí mismo” socrático, sino que resalta la
importancia de “elegir” a sí mismo “notando” los límites del yo mismo, pero no
objetivamente, lo que sería, por otro lado, imposible […] (DIP, 2016, p. 184).
23 Algunos comentaristas han señalado las similitudes entre la elección de uno mismo
kierkegaardiana y la revolución en la forma de pensar o conversión moral en la que uno
cambia la disposición al mal hacia el bien de la Religión kantiana. (Cfr. ALLISON, 1995).
24 En resumen, de acuerdo con la antropología de Wilhelm, la intervención del espíritu en
REFERENCIAS
DIP, Patricia. Judge William: the Limits of the ethical. In: Kierkegaard
Research: Sources, Reception and Resources, Volume 17, Katalin Nun,
Jon Stewart (Eds.), London-New York, Routledge, 2016.
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Kierkegaard and Kant. Journal of Religious Ethics, Inc, JRE 41. (2013),
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_______. The Moral Makeup of the World: Kierkegaard and Kant on the
Relation between Virtue and Happiness in this World. Kierkegaard
Studies Yearbook. N° 1 (2012), pp. 25-47.
FRIEDMAN, R. Kant and Kierkegaard: the limits of the Reason and the
cunning of faith. International Journal for Philosophy of Religion, 19:3-
22, pp. 3-22.
Abstract: The present article is, in fact, a small essay whose purpose is to
investigate the importance of education in Søren Kierkegaard's thinking
and to investigate whether, in the scope of existence as a possibility, an
education focused on subjectivity is effective before the debates about the
freedom and the singularity of the individual. There is little debate about
the concept of education in Kierkegaard, but we believe that this is a basic
point in the thinking of the Danish philosopher, as we seek to demonstrate,
and should be the object of further research, study and reflection. We take
as reference for the beginning of this debate texts such as the Philosophical
Fragments and the Post-Scriptum, where subjectivity and singularity appear as
fundamental concepts.
INTRODUÇÃO
1Não pretendemos aqui tomar a questão apenas por suas características terminológicas.
Mesmo as figuras de mestre e discípulo hoje assumem um caráter muito mais dogmático,
honorífico ou religioso do que propriamente educativo. Vale ressaltar que ambos os
conceitos serão tomados, aqui, em uma perspectiva da educação.
então, antes de nos ater diretamente à questão que nos interessa, observar
dois pontos fundamentais: No primeiro ponto, consideramos que a obra de
Kierkegaard repousa sobre o consolo de que ninguém será capaz de
localizar, possuir a “chave secreta” que decifre os escritos, como se
permitisse uma classificação dos textos de forma determinada, sacralizada
ou dogmática. Tudo parte do princípio de ironia, o que nos deve colocar
uma “pulga atrás da orelha” e ainda a desconfiar de boa parte dos textos e
permite nos apropriarmos apenas do problema. A famosa, e já quase clichê
citação dos Diários cabe aqui mais uma vez:
Kierkegaard, então, percebe que tal resolução não pode ser dada por
uma determinação universal, assim como não pode ser apreendida
pedagogicamente, como forma de transmissão de um conhecimento, já que
tal ocasião já está presente e deve ser resolvida a partir da interioridade. Na
nota correspondente de sua tradução, ao elucidar a resolução socrática,
Alvaro Valls esclarece que tal resolução é um “pensar que penetra a questão
e a resolve a partir de dentro (gjennemtaenker)”.
Ora, nossa questão está dada e, se for considerada digna de ser
tomada como uma ocasião para a reflexão, sua resolução (se possível for...)
deve ser iniciada na interioridade – como reminiscência para tomada de
consciência – e na subjeti-vidade – como decisão pelo singular.
2 Por nossos próprios meios, sob nossos próprios auspícios, às nossas próprias custas
(KIERKEGAARD, 2001, p.19).
que esta ocorra muito mais em princípio pelos esforços do indivíduo que
se educa do que propriamente pelo aprendizado do conhecimento
recebido. A educação da subjetividade é incapaz de “formar a opinião” de
alguém – e em nossa época saltitam os formadores de opinião – mas
favorece o indivíduo para que se edifique na verdade e decida por ela, sem
nenhuma possibilidade de relativismo. É a suprema valorização da razão
em contraposição à opinião da qual o próprio Kierkegaard, socraticamente,
se abstém.
3 Álvaro Valls, em sua tradução das Migalhas Filosóficas, alerta que o termo dinamarquês
Mening, não possui apenas o significado de uma posição pessoal como no alemão Meinung,
mas também adquire a conotação de “sentido” como no inglês Meaning (in
KIERKEGAARD: 2001, p.22, N.T). Ao afirmar que sua vida e seu trabalho – sua
existência – está dedicada à serviço da Idéia, podemos vislumbrar que Climacus tenha uma
visão de certa forma platônica (Cf. PLATÃO A República, VII) ao confrontar a
inteligibilidade com a sensibilidade. É na ideia platônica que se encontram os fundamentos
da razão, oposta à verdade corriqueira da sensibilidade. O que se mostra aqui é uma clara
referência à famosa Alegoria da Caverna.
4 Comunhão de bens.
este até certo ponto; com tudo isso não se vai mais
longe do que Sócrates, e não se chega, de jeito nenhum,
perto do conceito de revelação: fica-se apenas na
conversa fiada (KIERKEGAARD, 2001, p.30).
do século XXI não se autodenominar cristã uma vez que a maioria dos estados hodiernos
se determinam como laicos, podemos considerar que ainda existe uma denominação oficial
das nações que se caracterizam culturalmente em relação aos valores morais e aos padrões
estéticos. Tais valores são significativos em si para um grupo de indivíduos mas, no
contexto da historicidade, não satisfazem as dimensões que contemplam a autonomia do
indivíduo. Nos autodenominamos livres, democráticos, e falamos sempre em privilegiar a
lei, a justiça e a igualdade, sem entender significativamente os valores reais destes conceitos.
Da mesma forma que a sociedade onde viveu Kierkegaard não compreendia o verdadeiro
sentido valorativo do que é ser cristão, na visão do filósofo, que adverte sobre os riscos de
um comportamento voltado muito mais para uma situação legal, estatal e imposta do que
propriamente significativa para a existência e edificação da dimensão humana.
7 A forma sistemática que delimita o indivíduo (Individ) deve ser superada pela ação
REFERÊNCIAS
Doutor em Ciência da Religião, Professor adjunto A, Nível 1, no Departamento de Ciência da Religião da UFJF, e
Presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard (SOBRESKI)
(E-mail: hquaglio@terra.com.br)
INTRODUÇÃO
Que sentido costuma-se dar quando se fala sobre a figura do professor? Sem dúvida,
é de se esperar que a palavra “professor” traga à mente do ouvinte o exercício de uma
atividade indissociável da educação e das relações entre ensino e aprendizado. Se o leitor
procurar a palavra “professor” nas traduções de obras de Kierkegaard para a língua
portuguesa, perceberá que referências ao ofício de quem se dedica ao ensino são mais
frequentes com o uso do termo “mestre”. Não há problema algum nisso. No português
falado no Brasil, o termo “mestre” usado como sinônimo de professor está em desuso, mas
é perfeitamente adequado para as traduções das obras kierkegaardianas, especialmente
aquelas publicadas sob o pseudônimo Johannes Climacus. A reflexão que se pretende fazer
neste artigo se refere justamente aos sentidos possíveis do termo “professor”, ou “mestre”
(como sinônimo de professor), no pensamento kierkegaardiano, e como os sentidos dados
por Kierkegaard ao termo podem contribuir para a tão importante discussão contemporânea
acerca do papel do professor na sociedade. Para tanto, é adequado que o presente trabalho
comece com uma exposição sobre o problema da tradução dos escritos kierkegaardianos, à
qual se seguirá uma reflexão sobre o experimento teórico de Johannes Climacus no livro
Migalhas filosóficas e sobre as considerações do próprio Kierkegaard sobre o mestre em seu
livro póstumo O ponto de vista explicativo sobre minha obra como escritor. A partir daí, serão possíveis
algumas considerações sobre os sentidos que Kierkegaard dá ao termo “professor” em seus
textos, e como essas diferentes perspectivas podem contribuir para o debate corrente sobre
o papel do professor e a atividade dos educadores em geral no tempo presente.
PROFESSOR OU MESTRE?
docente em um sentido bastante amplo, que se refere a todo sujeito que ensina em uma
relação de ensino e aprendizado. Diz-se que são professores tanto os que lidam com crianças
muito pequenas em creches e jardins de infância quanto os que atuam em programas de pós-
graduação orientando doutorandos. O mesmo se aplica ao ensino técnico, artístico ou
esportivo: professor de dança, professor de computação, professor de teatro, professor de
futebol, e por aí vai.
Ao traduzir para o português o livro Migalhas Filosóficas, os brasileiros Ernani
Reichmann e Alvaro Valls optaram pelo uso do termo “mestre”, que se destaca como título
de um subtópico do capítulo I da referida obra que Kierkegaard publicou sob o pseudônimo
Johannes Climacus (KIERKEGAARD, 2008, p. 33). A palavra escolhida pelos tradutores
pode dar margem a alguma ambiguidade em português. O mestre pode ser o que ensina,
ainda que o uso dessa palavra nesse sentido seja quase um arcaísmo no Brasil. Usa-se esse
termo com mais frequência para designar um título acadêmico ou para se referir a alguém
muito habilidoso em alguma atividade: um mestre na arte da pintura ou um mestre nas artes
marciais, por exemplo. Há ainda outro sentido que, para a presente investigação, se revela
importante: o mestre pode ser sinônimo de senhor em uma relação com um servo ou escravo.
Se há tantas ambigüidades possíveis no uso do termo mestre em português, por que
os tradutores optaram por ele? Não poderiam ter simplesmente utilizado a palavra
“professor”? O que se pretende argumentar aqui é que o termo “professor” poderia
perfeitamente ter sido usado na tradução, no exato sentido pretendido por Kierkegaard ao
compor a obra de Climacus, mas que, ainda assim, a escolha do termo “mestre” foi a mais
acertada.
O referido subtópico do capítulo I de Migalhas Filosóficas foi intitulado “Læreren” (em
SKS 4, 222), ou seja, “o professor” ou “o mestre”. Em dinamarquês, “Lærer” é o termo que
equivale ao inglês “teacher”. Os respectivos idiomas dos daneses e dos anglos também têm
em seu léxico o vocábulo “professor”, mas tal palavra tem um sentido mais estrito, e é usada
para se referir àqueles que exercem a docência e a pesquisa no âmbito da educação superior.
Kierkegaard, escrevendo como Climacus, usa duas vezes o termo dinamarquês “Professor”
em Migalhas Filosóficas. O primeiro uso da palavra dinamarquesa “Professor” aparece no
capítulo IV (em SKS 4, 266), onde Climacus afirma: “[...] não há taberneiro nem professor
de filosofia que possa imaginar-se suficientemente engenhoso para perceber qualquer coisa,
se o próprio deus não lhe der a condição para tanto.” (KIERKEGAARD, 2008, p. 94-95).
O segundo uso do termo dinamarquês “Professor” na obra é feito no capítulo V (em SKS 4,
293). Referindo-se ao que ele chama de paradoxo absoluto, ao fato não puramente histórico
que na teologia é denominado de encarnação do verbo, Climacus afirma: “[...] aquele fato [...]
desdenha ser naturalizado sob a proteção de um rei ou de um professor; ele é e continua
sendo o paradoxo, e não se deixa assimilar pela especulação.” (KIERKEGAARD, 2008, p.
136-137). É pertinente mencionar que, também aqui, os tradutores brasileiros acertaram ao
incluir uma nota de rodapé ligada precisamente à palavra “professor”, explicando que
Kierkegaard, escrevendo como Climacus, estava fazendo uma referência crítica ao Professor
Martensen, ou seja, uma referência feita não a “en Lærer”, mas sim a um “Professor”
(universitário) e proeminente figura no âmbito intelectual da Copenhague naquela época.
Desde já é interessante levantar um problema. No mundo contemporâneo, e não só
no Brasil, há uma percepção generalizada de que o professor universitário ocupa uma posição
mais elevada do que os demais professores em algo que se poderia chamar de “hierarquia
intelectual” ou “acadêmica”, ou mesmo “social”. Para os anglófonos, o “professor” é visto
como alguém mais privilegiado do que o “teacher”. Mas e no texto kierkegaardiano? Como
se verá adiante, pode-se afirmar enfaticamente que não! Ainda que, já no país, na época e na
língua de Kierkegaard, o “Professor” fosse considerado alguém bastante privilegiado na
escala social, como os “Professorer” Ørsted e Martensen, o “Lærer” é tratado por Climacus
como alguém muito mais importante. Essa importância não é apenas expressada pelo
número de vezes em que o “Lærer” é mencionado na obra (mais de noventa vezes no livro
todo). Ela ficará mais clara quando forem analisadas as duas perspectivas kierkegaardianas
sobre o mestre, mais adiante; mas, em ambas as perspectivas, o “Lærer” está muito acima do
simples “Professor”. Aliás, em um dos sentidos, o “Professor” pode até ser um “Lærer”,
ainda que Kierkegaard não considerasse muitos dos “Professorer” de seu tempo como
dignos de serem chamados de “Lærer”. No outro sentido, porém, o “Lærer” está infinita e
absolutamente acima do “Professor”.
É preciso, porém, voltar a mais algumas considerações lingüísticas sobre o mestre ou
o professor. As palavras “mestre” ou “mestra” em português têm sua origem no latim. O
professor e a professora no mundo romano eram o “magister, - tri” ou a “magistra, -træ”1.
Estas palavras latinas estão na raiz não só do “mestre” português, mas também do “maestro”
1 É curioso notar que o título acadêmico conferido a Kierkegaard pela Universidade de Copenhague em 1841
foi justamente o de “Magister Artium” (cf. KIERKEGAARD, 1991, p. 17).
italiano, e do “master” inglês. Contudo, quando se fala em “master” na língua inglesa, não é
a ideia de professor que vem à mente do ouvinte, mas sim a ideia de alguém que faz algo
com maestria ou a ideia de senhor (em uma relação com um servo ou escravo). Quando
Howard e Edna Hong traduziram o dinamarquês “Lærer” para o inglês, o termo escolhido
foi, naturalmente, “teacher” (cf. KIERKEGAARD, 1987, p. 14). Não faria sentido algum o
uso dos termos ingleses “professor” ou “master” naquela edição norte-americana. Por outro
lado, o termo latino que se refere ao senhor em relação a um servo é “dominus, -i”. Mas que
relevância têm essas considerações para a compreensão das duas perspectivas sobre o
professor em Kierkegaard? Essa relevância ficará mais clara no próximo tópico, mas desde
já deve ser levada em consideração a condição de escritor religioso assumida pelo filósofo de
Copenhague. “Dominus”, o Senhor, é como a tradição cristã, especialmente no mundo
católico, se refere a Cristo desde seus primórdios. Mas Cristo também é chamado de mestre
no sentido específico de professor, daquele que ensina. No Evangelho de Mateus, na Vulgata
de Jerônimo, lê-se: “[...] nec vocemini magistri quia magister vester unus est Christus”. O
mesmo versículo do Evangelho (Mateus, 23:10) se lê assim na Bíblia dinamarquesa
contemporânea (de 1992): “I må ikke lade nogen kalde jer lærer; for én er jeres lærer,
Kristus.”2 Em português, tomando-se em consideração os sentidos hodiernos do termo
“mestre”, pode-se dizer que Cristo é compreendido na tradição cristã como mestre tanto no
sentido de professor quanto no de senhor.
Há, portanto, na escolha do termo “mestre” pelos tradutores lusófonos, uma
adequação maior à ideia transmitida pelo escrito kierkegaardiano até do que a que se encontra
no texto original dinamarquês, uma vez que um dos sentidos dados por Kierkegaard ao termo
“Lærer” é justamente o de mestre como designação exclusiva para Cristo. O outro sentido
do termo “Lærer” sobre o qual Kierkegaard faz reflexões é mais próximo daquele que hoje
se atribui também ao termo “professor” em português. E é neste ponto, feitas essas
considerações lingüísticas sobre os diversos termos que podem ser usados para designar um
professor, que se pode passar ao próximo tópico no qual serão examinadas as duas
perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard.
2É pertinente a observação de que a tradução portuguesa de Almeida, em sua versão revista e atualizada, traz,
no referido versículo, o termo “guia”, e que a clássica tradução inglesa King James traz o termo “master” que,
no inglês contemporâneo, não é mais compreendido como professor. Há também traduções dinamarquesas
mais antigas que, em vez de “Lærer”, traziam o termo “vejleder” ou “Veileder”, que significa guia ou instrutor.
Kierkegaard, em sua obra póstuma O ponto de vista explicativo da minha obra como escritor,
admitiu a possibilidade de chamar Sócrates de seu professor (Lærer), mas em um sentido bem
específico:
É nítida a distinção que Kierkegaard faz, nessa passagem, entre duas acepções
substancialmente diferentes do termo “professor” (ou “mestre”). Formalmente (formelt),
Kierkegaard admite chamar Sócrates de professor, mas essa compreensão formal da figura
do professor é qualitativamente (qualitativt) diferente de uma concepção que poderia ser
chamado de “material”, ou “substancial” de professor, referente apenas a Jesus Cristo no
pensamento do filósofo de Copenhague. Kierkegaard escreveu a passagem citada por volta
do ano de 1848, data provável da redação de O Ponto de Vista (cf. STEWART, 2017, p. 211),
mas essa distinção entre o sentido formal e o material do professor já havia sido bem
desenvolvida em 1844, ano de publicação de Migalhas Filosóficas. Ainda que esse livro de 1844
tenha sido publicado sob pseudônimo, a distinção nele presente entre essas duas perspectivas
bem distintas sobre o professor é justamente aquela que o próprio Kierkegaard demonstra
adotar com a afirmação feita sobre Sócrates e Cristo em 1848. E para compreendê-la bem, é
preciso dar atenção principalmente ao primeiro capítulo de Migalhas Filosóficas, intitulado
Tanke-Projekt (cf. SKS 4, 218), que traduzido ao pé da letra seria um “projeto de pensamento”.
Os tradutores brasileiros preferiram chamá-lo de “experimento teórico”, escolha de tradução
que expressa muito bem o sentido desejado pelo autor pseudônimo kierkegaardiano. O
referido capítulo apresenta, com efeito, um projeto de pensamento que é um experimento
teórico, na qual duas perspectivas distintas sobre ensino e aprendizado são expostas.
Quando se fala em ensino e aprendizado no contexto do experimento teórico de
Climacus, é inegável que se trata de uma discussão feita no nível mais amplo de uma teoria
filosófico-teológica do conhecimento. Não era a intenção do autor limitar-se a reflexões mais
específicas sobre a atividade daqueles que exerciam o ofício de professor em seu tempo, ou
sobre escolas e sistema educacional, ou sobre didática. Contudo, isso não quer dizer que o
problema abordado ali e as ideias ali expostas não sejam relevantes e não possam ser
discutidas nesse contexto mais específico da pedagogia.
Kierkegaard fez seu autor pseudônimo estruturar o experimento teórico em duas
partes, A e B, a que podemos chamar de modelos ou projetos. O projeto A é uma exposição
breve (mas bastante perspicaz) de uma teoria do conhecimento socrático-platônica, e
também de um modo caracteristicamente grego de pensar que é comumente denominado na
história da filosofia de “intelectualismo grego”. Climacus inicia o projeto A com a pergunta
que dá o mote do capítulo inteiro: “Em que medida pode-se aprender a verdade?”
(KIERKEGAARD, 2008, p.27, SKS 4, 218). Conforme bem notaram os tradutores
brasileiros, a forma verbal dinamarquesa empregada pelo autor, “læres”, pode referir-se tanto
ao ato de ensinar quanto ao de aprender (cf. KIERKEGAARD, 2008, p 27, na nota de
rodapé 1), de tal maneira que uma possível tradução da sentença original seria também: “Em
que medida pode a verdade ser ensina ou aprendida?” O modo eminentemente grego e
filosófico de se responder a essa pergunta leva em conta justamente a identificação plena que
o pensamento grego (e especialmente o pensamento platônico) fazia, por um lado, entre
conhecimento, verdade, virtude e bem, e por outro lado entre ignorância, falsidade, vício e
mal. Tal identificação é levada a tal ponto que uma teoria ética, para o pensamento grego
antigo, pode ser inteiramente abarcada por uma teoria do conhecimento que, por sua vez,
não é em nenhum ponto completamente discernível de uma metafísica e de uma ontologia.
Climacus faz, então, uma exposição da bem conhecida e multissecular doutrina
socrático-platônica da reminiscência. Considerada em sua relação com o ensino e a
aprendizagem, a doutrina da reminiscência platônica afirma que o professor nunca, de fato,
ensina algo ao aluno. Sócrates, considerado modelo de professor pela maioria de seus
pósteros ao longo de toda a história da filosofia ocidental, nunca, com efeito, ensinava algo
a alguém caso ensino seja compreendido como transmissão de um conhecimento de um
agente (um professor), detentor daquele saber, a um paciente (um aluno), carente daquele
conhecimento. Sócrates declarou categoricamente durante seu julgamento (Apologia, 33a):
“Eu nunca fui professor de ninguém” (PLATONE, 2008, p. 38, tradução nossa). Por que,
então, Sócrates pôde ser chamado de professor por vários daqueles que, como Kierkegaard,
viram nele um modelo desse ofício?
O que Sócrates quer dizer quando afirma que nunca foi professor de ninguém deve
ser entendido no contexto da doutrina da reminiscência. No pensamento de matriz socrático-
platônica, a compreensão dualista do mundo compreende o ser humano como composto de
corpo e alma, matéria e psique, elementos pertencentes a âmbitos distintos da realidade,
respectivamente o corpóreo, material, físico, em contraposição ao formal, ideal, supraceleste.
O conhecimento, o saber, a própria verdade, pertencem eminentemente ao âmbito das coisas
ideais, e não ao campo do corpóreo. De igual modo, a alma com que cada ser humano é
dotado também pertence ao hiperurânio. A consequência lógica dessa cosmovisão é a
conclusão de que todo ser humano é igualmente portador da verdade e do conhecimento
desde sempre e, se as pessoas aparentemente se mostram mais ou menos ignorantes na vida
cotidiana, isto se deve ao fato de que a ligação com o mundo corpóreo acarreta para o sujeito
um esquecimento das verdades eternas das quais sua alma participa desde sempre.
São esses pressupostos ontológicos e antropológicos que permitiram a Sócrates
desenvolver sua afamada doutrina da maiêutica, a arte do parto, a compreensão da atividade
do filósofo como um auxílio dado a outro sujeito para que o conhecimento, que está dentro
de si e que é parte da própria alma, venha à tona e saia do esquecimento que lhe foi imposto
pela união com a matéria. Por meio de perguntas, Sócrates demonstrava ser capaz de
conduzir seus interlocutores às respostas sobre as questões em discussão, de tal maneira que
não se poderia dizer, em nenhum momento, que Sócrates transmitiu diretamente a um sujeito
uma informação que este sujeito não detivesse antes. Kierkegaard, quando escreveu as
Migalhas Filosóficas sob o pseudônimo Climacus, não deixou de reconhecer o papel de
Sócrates, ou do professor, nesse processo apresentado no projeto A, e nem desmerece a
importância dele, chegando a afirmar que, “de homem a homem, a ajuda no parto é a relação
suprema” (KIERKEGAARD, 2008, p. 29, SKS 4, 220).
O fato de o professor não ensinar o aluno no sentido comumente compreendido, de
transmissão de uma verdade que antes não estava presente na mente do aprendiz, não quer
dizer que o papel do professor seja menor ou sem importância. Nesse sentido, o professor
é, nas palavras de Climacus, uma “ocasião” (KIERKEGAARD, 2008, p. 29, SKS 4, 220), o
que pode ser também compreendido como uma oportunidade com a qual o aluno se depara
em sua vida. Uma oportunidade ou ocasião para que o aluno esteja atento à verdade, como
se verá mais adiante. Climacus entende ainda que, nessa perspectiva socrática, se o professor
compreende a si mesmo como alguém que é capaz de atuar junto ao aluno de outro modo,
ou seja, como alguém que detém a verdade, que é capaz de transmiti-la a outrem que não a
detém, e que, por isso, encontra-se em uma posição de superioridade diante do aluno, então
esse professor deixa justamente de ser um professor. Do modo como Climacus compreende
a doutrina socrático-platônica, ou o professor é uma ocasião, uma oportunidade, para o aluno
ou ele não é nada. Essa compreensão grega, tal como exposta por Climacus em seu projeto
A, deixa clara a virtude do professor que não se considera um deus. Climacus realmente faz,
de modo explícito e literal, referência a uma atitude que só seria legítima se partisse de um
deus, de uma divindade portadora do conhecimento e da verdade. Dessa forma, Sócrates
tem consciência de sua condição humana essencialmente igual à condição de qualquer sujeito
que com ele estabeleça uma relação de professor e aluno. Sócrates pode ser considerado
professor apenas no sentido bem específico que ele mesmo passa a afirmar, de auxiliador no
parto do saber, e não no sentido de alguém que dá a outro algo que esse outro não tinha
antes de encontrar-se com ele. Ele não pode (e sabe que não pode) arrogar para si o título de
professor nesse sentido que os sofistas davam ao termo.
Climacus não vê nessa compreensão socrática de professor uma humilhação ou
diminuição. Ao contrário, Kierkegaard, escrevendo com a pena de Climacus, vê na atitude
socrática um exemplo de altivez:
Esta passagem é emblemática do argumento que ora se expõe aqui. Nela, Kierkegaard
faz seu autor personagem Climacus reconhecer não só o mérito de Sócrates, sua coragem de
ser humilde ao reconhecer que não foi jamais uma autoridade diante de outro ser humano,
que jamais pretendeu ser alguém que, diante do outro, postava-se como detentor de um
conhecimento que o outro não era capaz também de deter, ainda que pudesse estar, segundo
a doutrina platônica da reminiscência, esquecido nos recônditos de sua psique. Essa
humildade intelectual daquele que, para Kierkegaard, era o modelo de professor no sentido
formal contrasta com a arrogância dos contemporâneos do filósofo de Copenhague muito
criticados por ele, os já mencionados “Professorer”, intelectuais e professores universitários
portadores de títulos acadêmicos que julgavam estar, diante das pessoas consideradas menos
instruídas, em posição de insuperável superioridade intelectual e social.
O projeto B, como é de conhecimento de leitores de Kierkegaard, é exposto como
uma contraposição ao projeto A, formando um contraste que evidencia uma distinção
fundamental entre o cristianismo e as diversas correntes de pensamento de matriz platônica
que se desenvolveram ao longo da história da filosofia, como o neoplatonismo de Plotino e
até seus herdeiros modernos, os hegelianos. Um pouco mais extenso que o projeto A, o
projeto B do primeiro capítulo desse livro de Climacus posta-se como antítese do anterior
quando estabelece como premissa fundamental a hipótese de que a verdade e (pode-se
perfeitamente dizer no contexto da obra) também o conhecimento não estão desde sempre
presentes no sujeito. Essa é a premissa antitética em relação ao projeto A que representa a
distinção onto-antropológica fundamental entre cristianismo e platonismo. Se o pensamento
grego considera o ser humano como partícipe da substância do divino, o ser humano não é,
de fato, um ser criado. A alma, ou a psique, ou a mente, ou a inteligência do ser humano é,
desde sempre, parte da esfera hiperurânia, divina, eterna e imutável. A mutabilidade
experimentada pelo homem neste mundo corpóreo limita-se a um esquecimento, ou seja, a
um aspecto negativo que não subtrai da alma (ou da mente) seu caráter de possuidor perpétuo
da verdade e do conhecimento.
A perspectiva cristã sobre essas questões, por sua vez, parte da premissa de que os
seres humanos são criaturas, não constituídos da mesma substância da divindade, mas por
ela criados. A verdade e o conhecimento são atributos do divino, identificando-se com o
próprio Deus e estão, portanto, apartados dos humanos. Deus, no cristianismo, é equiparado
à própria verdade. Cristo é o verbo divino, que está eternamente com Deus e que é o próprio
Deus, além de ser também a própria Verdade. Os seres humanos, por sua vez, foram criados
a partir do nada (a doutrina da Creatio ex nihilo), e estão ainda mais apartados do divino por
causa do pecado. O cristianismo chega a essa perspectiva radicalmente diferente do
platonismo por um argumento que tem a forma de uma reductio ad absurdum: Deus é perfeito,
não há n’Ele pecado; os seres humanos são imperfeitos, pois erram e estão sujeitos ao
pecado; se feitos tivessem sido a partir de uma substância perfeita, não poderiam ser
imperfeitos como são; Deus é o criador de todas (absolutamente todas) as coisas; logo, se os
seres humanos são imperfeitos e não podem, pelas razões expostas acima, ter sido criados
da substância de Deus, eles foram criados a partir do nada.
É digno de nota que esse nada do qual foram feitos os seres humanos implica a
ignorância, o desconhecimento, a ausência do saber. Rigorosamente falando, a maiêutica
socrática é fundamentalmente rejeitada pela doutrina cristã, pois o humano não possuiria em
si, desde sempre, o conhecimento e nem Sócrates nem qualquer outro professor seria capaz
de ajudar outra pessoa a extrair de dentro de si aquilo que lá não está. O conhecimento deve
ser, assim, trazido ao sujeito por um professor que já o possua, que lhe seja capaz de
transmitir a verdade e o saber. Este é, basicamente, o ponto básico do problema que
Climacus estabelece no contraste entre os dois projetos do primeiro capítulo de seu livro. A
partir daí, Climacus pode lançar-se ao ponto mais desafiador do problema.
Se, na perspectiva cristã, o ser humano não tem desde o princípio o conhecimento,
este deve ser trazido a ele por alguém, um professor, que já o tenha:
Se, agora, o aprendiz deve adquirir a verdade, então o mestre tem de trazê-
la a ele, e não só isso, mas é preciso que lhe dê juntamente a condição para
compreendê-la; pois se o aprendiz fosse, por si mesmo, a condição, então
precisaria apenas recordar-se; [...] (KIERKEGAARD, 2008, p. 33-34; SKS
4, 223).
Qual seria, então, a tarefa do professor em um sentido formal quando são tomadas
como ponto de partida as ideias de Kierkegaard? Desde já é possível dar uma resposta direta
a esta pergunta com base na referida obra O ponto de vista: tornar o outro atento. Basicamente,
este seria o papel do professor sob uma perspectiva kierkegaardiana: o de tornar atenta outra
pessoa, para que ela possa abrir-se ao conhecimento e à verdade. Esta afirmação deve ser
examinada com mais atenção a partir do próprio texto kierkegaardiano. Afinal, uma leitura
apressada e irrefletida dela poderia levar o leitor a pensar que, no pensamento de Kierkegaard,
o professor desempenha uma função menor, ou que Kierkegaard diminui e deprecia a
importância do professor. Ao contrário! O que se pretende argumentar aqui é que a tarefa
do professor, pensada a partir das reflexões do escritor de Copenhague, é uma das mais
elevadas à qual um ser humano pode se dedicar, além de ser um elevado gesto de amor de
um ser humano para com outro.
Muito tem sido escrito sobre o experimento teórico de Johannes Climacus, do qual
se tratou no tópico anterior, e a maior parte dos que se dedicam a analisar o argumento do
primeiro capítulo de Migalhas filosóficas ressalta o contraste entre os dois projetos, A e B, com
as respectivas antropologias e gnosiologias bem diferentes que os referidos projetos
apresentam. E é natural que assim seja; afinal, Climacus quer claramente mostrar ao leitor a
diferença que há entre as duas compreensões, a cristã e a socrático-platônica, acerca do
processo de ensino e aprendizagem. Contudo, há alguns pontos nos quais os dois modelos,
mesmo que sejam fundamentalmente distintos, são concordantes. O que se pretende aqui é
justamente enfatizar um desses pontos de concordância: o de que o professor, tanto na
perspectiva grega quanto na cristã, não ensina como comumente se pensa, transmitindo um
saber que ele possui a um aluno que não o possui. Neste ponto, leitores atentos das fontes
antigas sobre Sócrates (Platão, Xenofonte e Aristófanes) estão de acordo. Werner Jaeger, em
sua obra Paideia, deixa isso claro quando lembra ao seu leitor que o próprio Sócrates afirmava
não eram de Sócrates aquelas ideias que lhe eram comumente atribuídas. Falando em um
contexto específico, do problema da compreensão das normas pelos atenienses, Jaeger expõe
um ponto que vale de igual maneira para tudo o que envolve a apropriação do conhecimento:
Mas foi dele [de Sócrates] e só dele que Platão recebeu a ideia 3 de que o
renascimento do Estado não se podia conseguir pela simples implantação
de um forte poder exterior, mas tinha de começar pela consciência de cada
um, como hoje diríamos, ou para usar a linguagem dos gregos, pela sua
alma. Só dessa fonte interior pode jorrar, purificada pela investigação do
lógos, a verdadeira norma obrigatória e irrecusável para todos. Nesse
sentido, é completamente indiferente a Sócrates que se chame Sócrates e
seja filósofo de profissão o homem que ajudar a esclarecer esta norma.
Quantas vezes ele insiste em que não é ele, Sócrates, mas sim o lógos quem
diz isto ou aquilo! A mim podeis refutar-me – diz –, não a ele, porém (JAEGER,
2013, p. 574, grifo do autor).
Um homem pode ter a sorte de fazer muito por outro, a de o conduzir até
onde deseja levá-lo; para nos atermos ao nosso tema principal e constante,
pode ter a felicidade de o ajudar a tornar-se cristão. Mas esta possibilidade
não está em meu poder; depende de uma multidão de circunstâncias e,
sobretudo, da vontade do outro. Nunca posso de modo algum impor a
alguém uma opinião, uma convicção, uma crença; mas posso uma coisa,
num sentido a primeira (porque ela condiciona a seguinte: a aceitação da
opinião, da convicção, da crença), e num outro, a última, se não quer a
continuação: posso obrigá-lo a tornar-se atento (KIERKEGAARD, 1986,
p. 45, SKS 16, 32).
Aqui, nessa passagem escrita e assinada por Kierkegaard, ficam bem claros certos
pontos que podem ser inferidos também do que já foi exposto sobre o experimento teórico
de Climacus. Se não é possível a um ser humano ensinar algo a outro no sentido de transmitir
3É curioso notar que Jaeger faz uma afirmação que contraria tanto o modo socrático quanto o kierkegaardiano
de compreensão do ensino e aprendizado, pois ele afirma que Platão recebeu um conhecimento de Sócrates.
a alguém um conhecimento que esse alguém não tinha anteriormente, é evidente que
ninguém pode forçar a outro uma opinião, uma crença, uma convicção. Ora, alguém poderia
objetar que isso se faz o tempo todo, que pessoas manipuladoras inculcam ideias e
convicções nas mentes mais fracas, e que seria absurdo negar esse fato. Mas Kierkegaard toca
em um ponto fundamental: a vontade do outro. É a vontade o elemento essencial. A
facilidade que um sujeito tem de ser enganado depende, em grande parte, de sua força de
vontade, de sua propensão em confiar naquilo que outro lhe diz. Alguém cuja vontade é forte
está menos propenso a acreditar de imediato em informações que lhe são passadas por outra
pessoa, ao passo que sujeitos considerados mais crédulos e desprovidos de capacidade crítica
tendem a aceitar com muita facilidade o que outros lhe dizem. No fundo, porém, aceitar uma
opinião, ou uma informação, é um ato de vontade. E o ato de vontade, de receber em sua
interioridade alguma verdade (ou algo que é tomado como verdade pelo sujeito), é algo que
ocorre exclusivamente na interioridade. É o que se pode chamar de apropriação. O sujeito
apropria-se, toma como uma verdade para si algo que lhe foi apresentado. Esse ato de
apropriar-se de um conhecimento se dá por meio de um juízo: o sujeito julga se aquilo que
está diante de si é uma verdade ou não, se é um conhecimento digno ou indigno de ser
incorporado às suas convicções. Como afirma Kierkegaard sobre esses juízos que todo ser
humano faz sempre que precisa decidir se aceita ou rejeita um conhecimento:
E então, neste ponto, começam a mostrar-se as razões pelas quais Kierkegaard julga
ser possível chamar Sócrates de seu professor. Ora, o que ele descreve aqui como elemento
característico de sua missão, de tornar as pessoas atentas, assemelha-se por demais ao que o
próprio Sócrates fazia, inclusive quanto às suas conseqüências. O professor arrisca-se: o
aluno pode, a partir das vias pelas quais o professor o conduz, decidir-se por elaborar juízos
diferentes daqueles que o próprio professor faz sobre uma questão; o aluno pode chegar a
uma conclusão diferente, inclusive a ponto de voltar-se contra o próprio professor. O
professor está sempre diante da possibilidade de tornar-se, nas palavras de Kierkegaard,
vítima de seu procedimento corajoso. Foi exatamente o que aconteceu com Sócrates, que
atraiu sobre si a atenção de toda a pólis, que se encontrou dividida e que, por uma maioria
estreita, decidiu condená-lo.
Há um problema suscitado por essas considerações sobre o professor (no sentido
formal), o aluno e os diferentes juízos possíveis que ambos podem fazer. Se, por exemplo, o
professor deseja que o aluno esteja atento a uma proposição x, e se o professor considera a
proposição x como verdadeiro, é possível que o aluno venha a concluir, do modo contrário
ao professor, que a proposição x é falsa. Poderia isto significar uma relativização da verdade?
Kierkegaard já foi interpretado como um subjetivista, ou como alguém cujas ideias podem
levar a algum tipo de relativismo. Tais interpretações são, contudo, um engano. O fato de
que pessoas diferentes sejam capazes de fazer juízos diferentes sobre uma mesma questão
não significa que uma delas não esteja errada. E sobre isto, Kierkegaard leva em conta o
papel de Sócrates na história da filosofia como um pioneiro no reconhecimento de que as
verdades objetivas não têm significado para o sujeito se não forem por ele apropriadas.
Kierkegaard muito provavelmente teve contato com tal percepção no pensamento de Hegel.
Conforme expõe Jon Stewart:
[...] isso não significa que qualquer coisa que o sujeito venha a pensar seja
verdade e tenha validade. Hegel acredita que ainda há uma verdade
objetiva, mas que ela deve ser alcançada e reconhecida pelo sujeito
individual por meio do exame racional. O problema com a visão grega
anterior a Sócrates era que a esfera dos costumes e tradições era, em certo
sentido, tirânica. Pensava-se que ela estava além de qualquer
questionamento, e a opinião própria pessoal de alguém sobre ela não
importava [...]. Mas para Sócrates e para a visão moderna cada indivíduo
tem o direito de dar seu consentimento à verdade. Essa perspectiva
reconhece a racionalidade do indivíduo para conhecer e compreender a
verdade. Então, a revolução que Sócrates iniciou no mundo grego e que
levou à nossa concepção moderna é que o sujeito é um elemento
constitutivo da verdade. Para os gregos, essa era uma ideia nova e chocante
que, no fim, custou a Sócrates sua vida (STEWART, 2017, p. 51).
O sistema lógico não pode ser uma mistificação, uma ventriloquia, em que
o conteúdo da existência apareça, astuciosa e sub-repticiamente, onde o
pensamento lógico fica perplexo e encontra o que o Herr Professor [al.:
Sr. Professor] ou o Licenciado já tinha na cabeça (KIERKEGAARD,
2013, p. 115; SKS 7, 107)4.
4O tradutor brasileiro insere, nesta passagem, uma nota de rodapé para informar ao leitor que o original em
dinamarquês, se traduzido literalmente, seria “já traziam atrás das orelhas” em vez de “já tinha na cabeça”, o
que reforça o caráter irônico da crítica kierkegaardiana à arrogância acadêmica percebida em seu tempo.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Jorge Miranda de. A educação em Kierkegaard e Paulo Freire: por uma
educação ético-existencial. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2013.
JAEGER, Werner. Paideia: A formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
A PEDAGOGIA DO TRAVESSÃO
A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar
A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar
Qual o maior dos benefícios que um homem pode fazer por outro? Trata-se de uma
pergunta difícil porque, ao que tudo indica, aquilo que pode ser um benefício para
determinada pessoa, pode inversamente ser um malefício para outra. Além disso, também
variam as capacidades do benfeitor, de modo que nem todo aquele que quer ajudar tem de
fato o poder de fazê-lo. Quer dizer que o maior benefício que um homem pode fazer por
outro depende de quem é este homem e do que precisa aquele outro. Ora, mas isto
impossibilita uma reposta unívoca e definitiva à nossa pergunta! Ficamos apenas com a ideia
de que para cada homem particular deve haver um benefício e um benfeitor particular. Para
o doente, o maior de todos os benefícios seria a saúde e o seu principal benfeitor o médico.
Para o ignorante, a sabedoria e o sábio. Para o analfabeto, a leitura e o professor. Neste caso,
nossa pergunta careceria de sentido. Não somos capazes de dizer qual o maior dos benefícios
que um homem pode fazer por outro porque tudo varia de acordo com as circunstâncias de
cada um! Devemos então parar antes de começar ou devemos tentar outra via de acesso à
questão? Não será possível, ainda que de maneira indireta, indicar de fato qual o maior dos
benefícios que um homem pode fazer por outro? Estamos convencidos de sim.
Em todos os casos em que um homem ajuda um outro de tal maneira que se torna o
seu benfeitor, será tanto mais bem sucedido quanto mais o beneficiado tonar-se
independente em relação a ele. O que isso quer dizer? Que ser verdadeiramente beneficiado
é tonar-se finalmente independente do benfeitor. No caso do doente, ser perfeitamente
beneficiado é tornar-se totalmente independente do médico – porque afinal, com o auxílio
deste, reestabeleceu totalmente a sua saúde. Um doente que depende do médico indica com
a sua dependência que a sua enfermidade persiste. Igualmente com o ignorante que precisa
do sábio e com o analfabeto que depende do professor. O verdadeiro benefício é sempre
libertador! O ignorante se liberta do sábio e o analfabeto do professor. Assim o benefício de
fato se realiza. Do contrário a pessoa ajudada recebe muitos benefícios do outro, mas por
isso mesmo permanece sempre mais dependente – o que, no fundo, constitui um malefício.
Quer dizer que por mais que um homem auxilie um outro a adquirir aquele que seria o maior
e o mais verdadeiro dos benefícios, se o faz de tal maneira que o auxiliado torna-se devedor
e dependente dele, então não faz benefício ao outro, mas, em certo sentido, malefício. É
justamente isto que Kierkegaard pretende indicar quando escreve em um de seus discursos
A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar
religiosos1 que “o maior dos benefícios consiste justamente na maneira como o único
verdadeiro benefício é realizado” (KIERKEGAARD, 2005, p. 308-309). Quer dizer que o
maior dos benefícios que um homem pode fazer por outro não é meramente um “que”, uma
coisa que ele faz, mas um “como”, ou seja, um modo, a maneira como ele o faz. Este “como”,
este modo é essencial para que aquela ajuda seja de fato um benefício, isto é, para que o auxílio
seja ao mesmo tempo ocasião de libertação e não de dependência. Sobre isso Kierkegaard é
claro:
Quando eu digo: “Este homem se mantém por si só, com a minha ajuda”,
e quando é verdade o que estou dizendo: fiz então por ele o máximo?
Vejamos! Que digo eu com isso? Digo que ele “se mantém única e
exclusivamente graças à minha ajuda”. Mas então, afinal de contas, ele não
se mantém por si mesmo, ele não se tornou senhor de si, já que é à minha
ajuda que ele deve tudo – e ele está consciente disso. Ajudar uma pessoa
desta maneira é propriamente enganá-la (KIERKEGAARD, 2005, p.
309).
O engano da relação está no fato de que aquela pessoa que aparentemente se mantém
por si só permanece, na verdade, em uma situação de dependência em relação ao seu
“benfeitor”. Tanto que ajudar uma pessoa deste modo, segundo esta maneira, equivale a
prejudicá-la, porque o resultado será sempre mais dependência, menos liberdade.
Inversamente, caso aquele que ajuda o faça de tal maneira que, ao cabo, sua ajuda se torne,
por assim dizer, esquecida, invisível, quase que inexistente – então o ajudado de fato recebeu
um verdadeiro benefício, o benefício de sua própria independência ou de sua própria
liberdade em relação ao outro. Por isso Kierkegaard nos explica:
1 Trata-se do discurso O Amor não procura o que é seu, um dos textos que compõem As Obras do Amor: algumas
considerações cristãs em forma de discursos, livro publicado por Kierkegaard em 1847.
A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar
Mas onde está a diferença entre estas duas expressões: “Este homem se mantém
sozinho graças à minha ajuda” e “este homem se mantém sozinho – graças à minha ajuda”?
A diferença está precisamente naquilo que Kierkegaard chama de “traço de suspensão” (Cf.
KIERKEGAARD, 2005, p. 310), ou seja, no travessão. A inclusão do travessão cria na frase
um intervalo, um silêncio transfigurador. Nada é dito diretamente com o travessão, antes
apenas algo é calado, não-dito. Mas justamente este não-dito, este intervalo de silêncio, promove
na expressão uma mudança extraordinária. O travessão “cala” a ajuda, mantém o auxílio no
recolhimento do silêncio. Toda a tônica é posta na liberdade do ajudado, no fato de que ele
se mantém por si mesmo. Tudo que passa disso é recolhido sob o silêncio do travessão. A
independência do ajudado fala no silêncio do calar da ajuda. Quer dizer que o intervalo criado
pelo travessão é o espaço da liberdade do outro, o silêncio que permite que sua liberdade de
pronuncie. Sem o espaço criado pelo travessão a liberdade do ajudado estará sempre limitada
pela presença berrante da ajuda. O travessão é a distância do ocultamento, aquilo que faz
calar a ajuda e, por isso mesmo, aquilo que abre espaço para a liberdade do ajudado. Sem a
introdução do travessão a ajuda se torna um tipo de indiscrição, uma presença inconveniente
e estorvante para a liberdade o outro. Todo auxílio, portanto, para ser de fato tal, precisa
trazer em si mesmo este traço de suspensão, quer dizer, a discrição, a reserva, o resguardo
do silêncio, o despojamento e o recato da ajuda que se recolhe, que dá escondendo a mão.
A nosso ver estamos aqui diante de uma expressão pedagógica bastante singular. Há
um tipo de relação pedagógica porque uma das partes é conduzida, auxiliada, ajudada pela
outra. Mas trata-se ao mesmo tempo de uma relação insólita porque sua essência não é nada
de positivo, não é a mera transmissão de um saber, não é a comunicação de uma experiência,
ou coisas afins. Antes sua essência está no traço de suspensão, na introdução do travessão.
Todo o esforço deverá então se concentrar na arte de criar um “espaço” ou um “silêncio”
que permita que o ajudado mantenha sua autonomia, sua independência e sua liberdade.
Trata-se, por isso, de uma pedagogia do despojamento e da auto-aniquilação, pois nela o
mestre, o auxiliador, o benfeitor só se realiza quando consegue transformar-se em um
travessão, isto é, quando está totalmente oculto e quando sua ajuda está absolutamente
resguardada no segredo do silêncio. Trata-se, portanto, de uma pedagogia do travessão.
Para Kierkegaard aquele que primeiro compreendeu e aplicou esta “pedagogia” foi
Sócrates, a quem o autor dinamarquês costumava chamar de sábio simples da antiguidade.
Ora, Sócrates não era um pedagogo segundo a acepção comum da palavra. Ele não conduzia
A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar
o seu interlocutor pela mão e, por isso mesmo, não conduzia “discípulos”, já que um
discípulo é justamente aquele que é conduzido pela mão. Sócrates não era um mestre
pedagogo porque sua arte era justamente aquela de “tirar a mão”, de ocultá-la, isto é, de fazer
com que a mão conduza sem, contudo, propriamente conduzir. Nisso consistia a sua afamada
arte maiêutica, em auxiliar o outro em sua própria liberdade, em ajudá-lo a ser livre e,
portanto, em “tirar a mão” que conduz ou em conduzir “tirando a mão”. O vazio daquilo
que é retirado é propriamente o intervalo do travessão. Assim, a atividade de Sócrates,
quando realizada plenamente, implicava na exuberância da autonomia do “discípulo” e no
esvaziamento do “mestre”. Com outras palavras, a arte de Sócrates consistia na suspensão
da distinção “Mestre e Discípulo” em função da liberdade do “discípulo”. Aqui o traço de
suspensão é finalmente a marca da suspensão da distinção: já não há mais mestre nem
discípulo porque a plena realização da tarefa socrática se dá quando finalmente o discípulo
tornou-se mestre de si mesmo e, portanto, quando o “mestre” retirou-se da relação. Trata-se, como
se pode notar, de um esvaziamento da função positiva e da contribuição direta do mestre.
Daí a célebre esterilidade de Sócrates imortalizada por Platão no Teeteto (150a-c): “a
divindade me incita a partejar os outros, porém me impede de conceber.” (PLATÃO, 2001,
p. 47)2. Porque para ser capaz de auxiliar o outro a dar à luz verdadeiramente, o auxiliador
tem de ser incapaz de procriar – e neste sentido particular a esterilidade é uma bênção. Pois
“procriar” ali significa perturbar a liberdade do outro com a posição de minha própria
criação, isto é, auxiliá-lo direta e positivamente, deixando impudicamente visível a ajuda,
fazendo ver que aquela outra pessoa não foi capaz de se manter por si mesma, mas precisou
de um mestre para conduzi-la pela mão. Isto é obviamente um tipo de estorvo à liberdade
do outro, um obstáculo à sua autonomia e independência. Sócrates, no entanto, “havia
compreendido em profundidade que o máximo que um ser humano pode fazer por um outro
é torná-lo livre, ajudá-lo a manter-se por si mesmo” (KIERKEGAARD, 2005, p. 311). Esta
consciência profunda implicava na firme convicção de que este auxílio só é possível caso o
ajudante seja capaz de se fazer invisível, ou seja, de aniquilar-se a si mesmo.
Recorramos a uma imagem singela. Quando um pai quer ensinar seu filho a
equilibrar-se sozinho na bicicleta, será tanto mais bem sucedido quanto mais agir
2 Em Migalhas Filosóficas, Kierkegaard, sob a pena de Johannes Climacus, cita esta passagem do Teeteto
completando que “de homem a homem a ajuda do parto (maieuesthai) é a relação suprema; dar à luz é algo que
só cabe ao deus” (KIERKEGAARD, 2008, p. 29).
A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar
socraticamente. Como o faz? Ele auxilia o filho, mas seu auxílio é cada vez mais invisível, ao
ponto de apenas segurar a sela da bicicleta sutil e imperceptivelmente, de modo que o filho,
por assim dizer, já não sente nem vê o auxílio da mão do pai. Neste ponto, o ato de “segurar”
quase se confunde com o ato “soltar”, e de fato no instante em que a mão do pai está
completamente escondida, quando seu auxílio já não pode ser percebido – o soltar é
inevitável e espontâneo e a liberdade airada do filho é completa porque pedala sozinho. Ora,
a arte do pai não está em segurar nem em soltar a sela, mas em encontrar o instante em que
segurar e soltar se confundem (o travessão!), de sorte que seu segurar é ao mesmo tempo um
soltar. Igualmente aquele que quer auxiliar outra pessoa não deverá nem fazê-lo diretamente,
nem não fazê-lo, mas encontrar o instante raro em que seu auxílio se confunde com um não-
fazer; em que sua ajuda se confunde com desajuda. Esta é a arte de Sócrates, uma pedagogia
de parteira porque não puxa a “criança” nem a “abandona”, apenas a ampara com as mãos
numa sutil assistência que dá à parturiente a máxima liberdade de parir por si mesma,
esquecida da mão que acode porquanto o acudir desta mão é, por um instante – um
desacudir. Aqui está mais uma vez o traço de suspensão! A ajuda socrática, como arte de
parteira, é a presença de uma ausência, o cuidado de um descuido, numa palavra, um
travessão, um recato ou um resguardo. Se depois de dar à luz a mulher vive o período de
resguardo, na relação socrática é ele mesmo, o parteiro, que fica de resguardo. O que ele
resguarda? Sua própria intromissão, sua presença indiscreta, para que assim a pessoa auxiliada
fique verdadeiramente resguardada.
É evidente que isto implica numa capacidade de ocultamento do “ajudante”, quer
dizer: “o ajudante deve ser capaz de se fazer invisível, magnanimamente querer aniquilar-se
a si mesmo” (KIERKEGAARD, 2005, p. 311). Esta invisibilidade ou, mais ainda, esta auto-
aniquilação é, curiosamente, o máximo que se pode fazer por outro ser humano e, portanto,
o ponto extremo, a meta de toda relação que supõe ajuda ou auxílio. De sorte que todo e
qualquer mestre alcança o máximo de sua meta não na transmissão positiva de um saber, de
um movimento, de um conhecimento, de uma doutrina, etc., mas na auto-aniquilação de sua
qualidade de mestre. Quer dizer que a relação pedagógica verdadeiramente benéfica e
plenamente realizada deve culminar em sua própria abolição. A plenitude do vínculo
“Mestre-Discípulo” só atinge sua meta suprema na anulação desta distinção em função da
independência das partes. Ser o mestre de alguém, positivamente, será sempre algo inferior
a sê-lo no ato de não sê-lo. Esta pedagogia da auto-aniquilação é, bem entendido, um tipo de
A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar
A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar
ou o recato daquele que auxilia. O que ele mais quer é manter sua ajuda em segredo para
então poder ver a exuberância graciosa da liberdade do outro. Por isso ele não pode ser
direto, não pode interferir de maneira indecorosa ou indiscreta, berrante ou exuberante
demais. Todo o seu interesse é pelo brilho da chama do outro, e não pela sua própria chama.
Quer dizer que aquele benfeitor e auxiliador compreendeu profundamente que o melhor do
outro está nele mesmo, na graciosidade de sua liberdade, no brilho único, sem par, de seu
próprio lume. Caso lance seu brilho sobre o outro de maneira indiscreta, ofusca a luz do
outro! Sua luz deve ser então uma presença penumbral, uma luz imiscuída na sombra,
indireta, algo difusa e ao mesmo tempo diáfana. Não é a luz de um canhão ou de um refletor,
mas a luz de uma vela. Ali, no interior da chama tremulante, está escondida a sombra recatada
e pudica. Por isso o verdadeiro auxiliador e benfeitor está sempre velando pela pessoa
auxiliada, cuidando, vigiando para que sua presença não venha a interferir na graça singular
do outro. A alusão é esta luz penumbral e indireta. Nunca incide na “coisa” diretamente, mas
sempre de modo oblíquo e discreto. Só assim a ajuda é de graça e pela graça. É de graça porque
aquele auxiliador não procura o seu próprio interesse, não quer ser reconhecido, não quer
receber qualquer vantagem ou retribuição. É pela graça porque o que se visa aí é justamente
a graça do outro. O que isso quer dizer? Que o auxiliador e benfeitor quer apenas que o outro
encontre sua própria graça se ser, sua própria graciosidade. Ora, a graciosidade é a qualidade
daquele que é livre. Dizemos que o pássaro é gracioso porque ele mergulha no ar como se
estivesse absolutamente solto. Sua graciosidade está no total desembaraço, na airosidade, na
leveza de seu ser. A única coisa de que o pássaro necessita é de um amplo espaço aberto, de
um vasto horizonte. Aí pode tricotar suas acrobacias e fazer escarcéu no ar, desprendido e
ágil. Não precisa de uma pista, nem dos limites de um viveiro, mas apenas desse amplo espaço
aberto. Assim torna-se todo ele gracioso porque nada lhe controla e ele tampouco controla
nada. O pássaro se entrega ao vento e dependura-se no ar, mas o vento não retém nem
controla o pássaro, assim como este não retém nem controla aquele. A graciosidade é esta
entrega ou este estar à mercê. Por isso voo do pássaro preso na gaiola é tão desairoso,
desgracioso ou desgraçado. No vasto horizonte aberto o ser do pássaro é do tamanho
daquela amplidão, quer dizer, sem-tamanho. Nos limites opressivos da gaiola angulosa, o ser
do pássaro torna-se do tamanho da gaiola, rígido como suas hastes e sempre mais
constrangido. Não há graça no interior das gaiolas! E assim também um “benfeitor” que não
torna o beneficiário mais livre é como um passarinheiro que prende um pássaro numa gaiola
A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar
– é de fato um malfeitor. Pois o verdadeiro benfeitor só se interessa por criar o amplo espaço
aberto onde o ser do outro pode se revelar na sua mais pura graciosidade. Este espaço de
abertura é, como dizíamos junto com Kierkegaard, aquele travessão, o traço de suspensão que
recolhe o ser do ajudante em função da liberação do ser do ajudado.
Quer dizer que o que está em questão nesta pedagogia do travessão é, antes de tudo,
a graça. Por isso não apenas se ensina, se corrige, se admoesta, mas apenas se alude. Toda
alusão pretende ser, em certo sentido, engraçada, isto é, dotada de graça. Esta graça é, por
um lado, a gratuidade daquele que ajuda – porque ajuda de graça – e, por outro lado, a própria
graça da liberdade do outro. Uma relação demasiado direta é, neste sentido, completamente
sem graça. Aquele que ajuda assim o faz visando seus próprios interesses e aquele que é
ajudado não é a rigor ajudado porque perdeu a sua graça na medida em que se tornou um
pouco mais dependente do outro, isto é, menos livre. Por isso o esforço de alusão, que quer
conservar a graça, se assemelha tanto à ilusão. Illudo é também brincar com, divertir-se, troçar,
fazer galhofa de alguém4. Iludir é parte da tarefa de composição do travessão pois toda ilusão
se caracteriza por ser um incógnito, isto é, por não ser reconhecida como tal. Mas é
justamente isto que o benfeitor quer, não ser reconhecido como tal, de modo que iludir torna-
se parte essencial do seu esforço. A este respeito Kierkegaard menciona o quanto teria
custado a Sócrates a tarefa de “lograr o outro para dentro da verdade” (KIERKEGAARD,
2005, p. 311), quer dizer, de iludi-lo para fora da ilusão5. E o maior custo desta tarefa não é
senão a já referida auto-aniquilação. É o “esconder a mão” de modo que a pessoa auxiliada
não descubra o auxílio. Ou seja, o maior custo é manter a ilusão oculta, para que a pessoa
beneficiada não descubra afinal que foi iludida para fora da ilusão e venha a estragar o truque,
ou seja, venha a descobrir a “carta na manga” do ilusionista. Precisamente por isso aquele
que alude e ilude, se elude. Ele evita astuciosamente ser flagrado em franco auxílio. Ele se elude
de toda apreensão objetiva e direta. Do contrário o auxiliado esquece-se de si mesmo e fixa
sua atenção no auxiliador, ou seja, permanece tributário do outro, numa relação de dívida
que anula toda a graça. Por isso o verdadeiro benfeitor é mestre na arte de se eludir. Assim
fizera Sócrates, tanto que Kierkegaard n’O Conceito de Ironia destaca o quão difícil seria fixar a
imagem daquele “nobre brincalhão”: “sim, até parece impossível, ou então pelo menos tão
A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar
trabalhoso como pintar um duende com o barrete que o torna invisível” (KIERKEGAARD,
2010, p. 28). Pois Sócrates de fato apenas aludia e, quando aludia, ao mesmo tempo iludia e
se eludia:
Assim trabalhava ele; e quando o trabalho estava concluído, ele dizia bem
baixinho para si mesmo: agora esta pessoa está por si. Mas eis que
chegamos ao “traço de suspensão”; e com o traço de suspensão um sorriso
se desenha nos lábios do nobre (e contudo tão brincalhão), e ele diz:
“Agora esta pessoa é independente – graças à minha ajuda”, ele reserva
para si o segredo desse sorriso indescritível. Realmente, não há vestígio de
maldade neste sorriso, ele está consciente de que o que fez foi para o bem,
está consciente de que verdadeiramente é um benefício e verdadeiramente
é a única maneira pela qual se pode fazê-lo: mas o sorriso ainda é a
autoconsciência da engenhosidade (KIERKEGAARD, 2005, p. 312).
Este sorriso segredado é ainda o resquício sutil, a indicação exígua de que no fundo
da relação ainda se oculta uma autossatisfação, um resíduo do “eu” que diz “meu”. Ainda
que tenha feito tudo pela outra pessoa, dando a impressão de nada ter feito, ainda assim se
esconde no mais íntimo a satisfação pela arte e pelo engenho. Sócrates ainda tem este sorriso
para chamar de “seu”, ainda guarda para si a autoconsciência de seu valor, embora a todo
instante o travessão suspenda esse senso de importância. Significa que na relação socrática
ainda há um uma recompensa qualquer. Não se alcança a perfeita gratuidade porque no último
instante ainda resta “a recompensa de uma orgulhosa autoconsciência” (KIERKEGAARD,
2005, p. 313). Sócrates ainda conserva uma auto-satisfação que se esconde por detrás do
travessão. Ele ainda guarda em seu interior aquele “graças a minha ajuda” que de alguma
maneira retém um pouquinho da graça do outro. Uma parte da graça continua sendo dele
[“graças a minha ajuda”], de modo que a graciosidade não é perfeita. Ainda que em segredo,
aquela pessoa auxiliada guarda uma “dívida” para com Sócrates – embora seja justamente
esta dívida aquilo que permanece oculto.
Haverá então uma relação de ajuda e de socorro que posso atingir a perfeição da
absoluta gratuidade? Poderá um homem ajudar um outro de tal maneira que não reste
qualquer traço de interesse próprio e de recompensa, nem mesmo a recompensa daquela
orgulhosa autoconsciência? Para tanto a relação precisa ir além do âmbito socrático. Segundo
Kierkegaard, apenas a pessoa amorosa, aquela que ama de maneira abnegada, realiza o auxílio
ou o benefício perfeito. Escreve o autor:
A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar
A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar
graciosidade. Ele não é tributário de ninguém, é antes pura graça e dom de vida. Por isso mesmo
o amoroso tornou-se consciente de que “nenhum ser humano tem condições de estabelecer
a fundação do amor numa outra pessoa” (KIERKEGAARD, 2005, p. 251). Significa que
por mais que eu ame outra pessoa, não posso criar o amor nela, não posso lhe dar o amor –
apenas o Amor poderá fazê-lo. Assim meu auxílio é, em certo sentido, um nada porque a
única coisa que realmente importa – ajudar a outra pessoa a amar e a se relacionar
amorosamente com o Amor – não depende em nada de mim mesmo, mas apenas de Deus
[do Amor]. Por isso o amoroso é todo auto-sacrifício e abnegação. Ele nada impõe ao outro
nem tampouco se interpõe entre o outro e o Amor. Só quer ser um auxiliador, por assim
dizer, insignificante. Assim como aquele “nobre brincalhão” o amoroso também apenas
alude, ilude e se elude. Mas o faz na mais profunda tensão interior, para que ao final não reste
nem sombra se auto-satisfação. Com efeito, a consciência da absoluta graciosidade do amor é
o que motiva o amoroso. Não há de que se orgulhar diante do outro porque tudo o que de
fato importa não provém de si, mas do Amor. Todo o seu trabalho é então o de auxiliar
erigindo um imenso travessão que o mantém completamente recolhido e recatado. Só assim,
resguardado por este longo traço de suspensão, o amoroso poderá auxiliar e de alguma
maneira beneficiar a pessoa amada. Mas seu auxílio não é senão a própria inclusão
preocupada do travessão. Diz Kierkegaard:
A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar
para homem só é perfeita quando se dá na força do amor que erige o travessão. Este amor
que se recolhe deixa o espaço aberto para a liberdade do amor do outro, sem qualquer
interferência indiscreta do “ego” que busca seu próprio interesse. O amoroso se retira para
o interior do recolhimento do travessão, e o faz por amor ao outro ser humano que precisa
de socorro. Assim o outro pode descobrir o Amor sem qualquer interferência alheia, sem
tonar-se tributário do amor do seu benfeitor nem devedor de qualquer ajudante que não seja
o próprio Amor auxiliador. Assim a pedagogia do travessão só alcança a máxima expressão de
sua perfeição em se tornando uma pedagogia do amor. Como “dom de si em sacrifício”
(KIERKEGAARD, 2005, p. 298) o amor é a plena realização do mais belo sonho da pedagogia. Na
medida em que a vida do amoroso é “inteiramente esbanjada sobre a existência, a existência
dos outros” (KIERKEGAARD, 2005, p.315), ele realizou o ato pedagógico em sua
perfeição. Pois só o amor, com o auxílio da eternidade, pode de fato cumprir até o fim a
tarefa de orientar, de auxiliar ou de socorrer outra pessoa sem jamais errar – ainda que erre
sempre. Tanto que o amor modernizou a afirmação de Santo Agostinho: ama et fac quod vis
[ama e fazes o que quiseres]. Agora já podemos dizer: ama e educa como quiseres – porque o
amor é a perfeição da pedagogia.
REFERÊNCIAS
_______. Ponto de vista explicativo da minha obra de escritor: uma comunicação direta,
relatório à História. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, 2002.
Eduardo Campos
Doutor em Filosofia pela UFRJ, Pesquisador colaborador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e
Subjetividade (IPUB/UFRJ), participa também como pesquisador do Grupo de Pesquisa Phainomena (Laboratório
Ousia), e do grupo de pesquisa Fundamentos fenomenológicos-existenciais de diferentes práticas em Psicologia (UERJ), é
membro-relator do Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil (IPUB/UFRJ), e
Membro da Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard (SOBRESKI).
(E-mail: saltar@uol.com.br)
2 Cf. Citação de nota de rodapé encontrada na recente tradução portuguesa de Temor e tremor, realizada por
Elisabete M. de Sousa (KIERKEGAARD, 2009b, p. 46).
3 "Deixai-me partir para que nada vos tire!" (NIETZSCHE, 2011, p. 13).
4 “Transmudando repousa – o fogo etéreo no corpo humano” (Plotino, Enéadas, IV, 8, 1.).
tem espírito suficiente para escutar e obedecer a tarefa de ser corpo existente, erguendo-se com
musculatura5 na existência. Essa musculatura se robustece desde de um dentro, que não se
configura como o apoio de um núcleo duro, como a espessura de nenhum conteúdo
objetivo/subjetivo, e, sim, o vazio, o nada de um despojamento frágil e acolhedor. O “Eis-me
aqui” de Abraão indica essa condição desprendida. Sobre esta condição, diz Mestre Eckhart:
“E agora pergunto pelo objeto do desprendimento puro. E respondo: o objeto do
desprendimento puro não é isto nem aquilo. Ele assenta num puro nada, e vou dizer-te por
quê. O desprendimento puro assenta naquilo que há de mais elevado” (ECKHART, 2006,
p. 155). A virtude mais elevada para Eckhart é a pureza desse livre nada, desprendido e
acolhedor. No acolhimento exercido por Abraão não há lugar para a exigência de qualquer
vontade, pois o exercício da vontade consiste precisamente em se agarrar à coisa e não estar
livre para poder desprender-se.
Na vontade há um querer que persegue uma meta pelo exercício de uma ação. Mas o
desprendimento não persegue nada, não quer nada. No entanto, alguém poderia refutar essa
máxima da disponibilidade dizendo que em Abraão haveria, sim, o exercício de uma vontade;
pois o sacrifício perseguido durante três dias e três noites não seria um empreendimento da
vontade? A resposta a esta refutação é simples: Abraão desempenha um movimento oposto
e à contragosto. Isaac já é a meta conquistada ou a promessa de Deus sobre a qual Abraão se
debruçara com gosto e de todo coração; e o sacrifício no Moriá seria a morte da meta atingida, por
conseguinte, a morte da vontade; seria um freio posto nos esforços que a vontade empreende
com vistas a um fim. No Moriá há uma parada abrupta da volição, a parada de um desejo
que não quer nem mesmo voltar para o início, i.e., ter por meta o começo, o lugar antes do
grito primal, como uma espécie de isolamento uterino que parece ser buscado
nostalgicamente pelo asceta. Se problematizarmos que ainda assim há uma "vontade"
presente no parar, querendo por termo à volição, esse querer é somente um recolher satisfeito
que acolhe o que se doa durante a travessia entre começo e fim.
Em A Repetição existe uma camada primária da interioridade que se espessa com viço, vindo
à superfície na forma de uma retomada dobrada do espírito. Mas somente depois que houve a
5A palavra “musculatura” tem aqui todo o sentido de uma existência que cresce, que ganha corpo, mostrando-
se plenamente a que veio na realização de uma possibilidade. Talvez tenha sido a evidência dessa pujança
existencial, que levou o pintor alemão Gerhard Wilhelm von Reutern a perfilar Abraão com um corpo
nitidamente robusto. Obviamente, a robustez desse corpo não denota exatamente hipertrofia muscular, mas
uma força existencial, uma saúde, a capacidade de viver pela fé em meio a fragilidade de um desamparo.
perda de tudo – tudo, inclusive de todos os filhos de Jó. Quando Constantius afirma que a
repetição de Jó é uma repetição no espírito – pois os filhos que Jó perdeu, ele realmente os
perdeu e não podem ser duplicados6 –, isto indica que a camada secundária da exterioridade
desfez-se ou perdeu-se como uma crisálida perde-se inteiramente em sua muda. Na
transfiguração dessa muda, assoma, vem à luz a manifestação da camada primária da
interioridade, espessando-se, tomando conta de toda face exterior: eis que tudo se fez novo –
repetição. Este ciclo é o próprio movimento da fé que a cada ciclo torna a vida mais grave, mais
nítida, mais simples.
Nesta mudança pressupomos que camada primária da interioridade da existência de Jó era
quase inexistente, extremamente delgada. Mas em Abraão, a camada primária da interioridade já
tem espessura desde o início, já tem dentro, já tem o desprendimento do nada, ou seja, já tem
vida interior, e, por isso, ele é “herói da fé”. Na caminhada em direção ao topo do Moriá segue
em crescente espessamento até ganhar nova transparência, em termos eckhartianos, até se
esvaziar completamente. O sacrifício de Isaac é o toque final que faria transparecer a camada
interior no exterior – quem vê uma vê a outra, quem vê a outra vê uma. O corte do sacrifício
do peito de Isaac seria apenas a confirmação daquilo que já estava firmado pela fé, que se
expôs completamente até atingir a transparência das camadas. Esta transparência indica que a
camada primária da interioridade se tornou toda ela superfície – expôs-se. Na repetição de Abraão,
essa camada da vida interior dá o tom de todo enredo de sua existência, desde o início até
culminar no pratear do punhal erguido sobre Isaac. Em A Repetição, Jó possui uma camada
externa, a exterioridade, em extrema espessura, e esta vai pouco a pouco, através do sofrimento,
sendo descascada, desprendida. Em Abraão a transparência entre as camadas (interna e externa)
expõe o nada do desprendimento, o nada constitutivo da fé.
Assim a única coisa que pode ser conseguinte à cena do sacrifício é a desistência de
Deus mediante as camadas costuradas pela transparência dos fios da fé. E este fiar transparente
quer dizer: uma vontade desprendida, a vontade que aprendeu corretamente a querer a
possibilidade. E esta correção conquistada pelo absurdo da fé torna a vontade à vontade, à mercê,
ao sabor da vida para acolhê-la como doação. A vontade da fé é a espontaneidade de um querer
que se dirige em retidão à doação de uma possibilidade.
Em Abraão não há qualquer “sombra” de vontade, ele é todo um abandono que se
consuma na execução de um dever absoluto. O estilita parece equivocar-se na compreensão do
que seja “morrer para o mundo”. Ao compreender “o morrer para o mundo”7 como
“apartar-se do mundo” transformou seu desejo em dever, converteu a vontade em hábito,
em uma moral, cujo sacrifício pode ser admirado por todos. Usando as palavras de Johannes
de silentio, poderíamos dizer que ele seria no máximo um herói, um herói trágico8. Mas Abraão
é herói da fé, “o cavaleiro da fé”, cujo caráter é definido por uma dupla renúncia, ao desejo e
ao dever, em face da obediência a um deves absoluto, pois sem poder se apoiar no universal, como
faz o herói trágico, deve permanecer em si próprio, e “aí reside o terrível” (KIERKEGAARD,
2009b, p. 138) de uma singularidade ab-soluta, solta, livre, desprendida.
O movimento que Abraão realiza não é ascético, mas um deslocamento agudamente
existencial que o insere pela fé na dinâmica de vida agravando-se cada vez mais como vida.
Por outro lado, ele realiza, digamos, uma contenção ascética, uma privação típica da economia
de força que antecede todo grande ato existencial. Abraão faz ascese, jejua, silencia, priva-se
de falar, cala-se; e, quando ousa falar, limita-se a entregar-se aos cuidados da Providência,
cuidados que encontra na sorte de sua maior consorte, a fé – a força que irrompe em meio a
fragilidade do maior desamparo.
Seu ato não atrai multidões pela excentricidade de sua ação. Ninguém sabe, ninguém
tem notícia de qualquer coisa que empreenderá. Todo movimento dá-se como a tarefa
diuturna de um trabalhador que segue na jornada discreta de mais um dia de trabalho. Mas a
discrição ordinária do ato esconde na interioridade o extraordinário da fé que move o pai de
Isaac. Esse extraordinário é a paixão de poder ser na angústia de uma possibilidade. Por ser
experiência fontal, o extraordinário da fé surge, não como um dado, mas, como diz Beaufret,
comentando Kierkegaard, a promessa de uma possibilidade9 que sempre já se deu para o homem.
Abraão no Moriá é um discípulo da possibilidade10 “colocado no meio das charnecas da
Jutlândia” (KIERKEGAARD, 2013, p. 166). Isaac é esse dado na existência de Abraão, ou,
nas palavras de Haufniensis, a “coisa finita”. Ele diz: “A angústia é a possibilidade da
liberdade, só esta angústia é, pela fé, absolutamente formadora, na medida em que consome
acontecimento, onde o maior de todos os eventos é o ruidoso levantar voo de um perdigão: ele vivenciará tudo
de modo mais perfeito, mais justo, mais profundo do que o que foi aplaudido no palco do teatro da história
universal, se este não foi formado pela possibilidade” (KIERKEGAARD, 2013, p. 166).
todas as coisas finitas, descobre todas as suas ilusões" (KIERKEGAARD, 2013, p. 162). A
angústia “consome todas as coisas finitas” assim como em Eckhart o desprendimento aniquila
no homem um “eu” cheio de toda “criatura” (ECKHART, 2006, p. 152). “Coisa finita” é
“criatura”, é dado. Isaac é para Abraão o que ainda lhe resta como “coisa finita”, “criatura”.
O alarido provocado pela excentricidade de Simeão Estilita é fruto de ascese; não
necessariamente de desprendimento. A notícia de seu feito "extraordinário" pode ter feito dele
um sábio, instaurador de um lugar de peregrinação, um ponto de exotismo turístico ou um
lugar onde se pode encontrar benesses espirituais. Mas a recusa do mundo acaba trazendo a
si, com máxima força, o próprio mundo do qual foge. Mas o desprendimento é a inocência de uma
ascese que se passa subitamente no silêncio da interioridade como despedida de si mesmo,
despedida de um interior duro, despedida que conduz o homem cada vez mais para o centro
da cidade ou para o bulício de qualquer lugar; porque livre do/no mundo pode então estar
nas esquinas do mundo para senti-lo sem ser por ele possuído.
O desprendimento do pai da fé tem a elegância de uma discrição: “sabe transformar em
andamento normal o salto; exprimir o impulso sublime num passo terreno; eis o único
prodígio de que só é capaz o cavaleiro da fé” (KIERKEGAARD, 1979b, p. 132). Seu
prodígio é poder, no lugar mais ordinário, estar sempre acompanhado da solidão de um
deserto – de um nada que o torna pródigo de toda possibilidade. No desprendimento, o que
nele se perde, o que nele é despedida, o que nele é abandono é a sobra essencial da abundância
fecunda e pródiga da fé. O sentido da prodigalidade da fé impede que seu exercício redunde
no lamento do “cavaleiro da resignação”, pois o perder é o movimento que alimenta a
experiência de existir alegremente na profusão inesgotável de uma penúria essencial. No
desprendimento, o perder – desprender – é a única coisa que, sem a mediação da vontade, o
corpo quer. Às voltas com o poder dessa querença, o “temor e tremor” de Abraão parece indicar
o estupor da vontade, da consciência, do "eu" mediante o chamado absurdo da fé que atinge
cabalmente a carne do corpo. Tal “carne” é a mera existência transformada em corpo existente,
atingido pela possibilidade da fé. Esse corpo é espírito, e, por isso, crê-se na “ressurreição do
corpo” quando se crê na repetição do espírito (KIERKEGAARD, 2009a, p. 132) após a travessia
do Moriá.
Simeão Estilita não tem a estatura de Abraão nem pode descrever como Johannes de
silentio o prodígio do pai da fé: porque, por um lado, não é herói, “a melhor essência” do poeta;
e por outro, não é poeta, “a melhor essência do herói” (KIERKEGAARD, 2009b, p. 65-66).
O poeta não pode realizar o que cumpriu o herói, mas pode, como “gênio da recordação”
(KIERKEGAARD, 2009b, p. 65), admirá-lo, lembrar-se dele e descrever a beleza da
natureza do seu feito. O poeta Johannes de silentio apossou-se de Kierkegaard no lugar de
Simeão Estilita, para assim poder escrever a façanha de Temor e tremor. Não podendo realizar
o que o herói da fé realizou, o poeta pôde ao menos falar como falaria se pudesse falar a
“melhor essência do herói”. Abraão é um Himalaia, e, por isso, não pode falar de sua própria
grandeza; mas dele pode falar o poeta, pois este traz em sua identidade de poeta a diferença do
herói da fé, a sua melhor essência. Movimentos e posições, poderíamos dizer, não são “exercícios
espirituais” de ascese, mas de desprendimento. Movimentos e posições asceticamente praticados
sobre o “pilar”, ao modo de Simeão Estilita, são uma representação, um arremedo da fé, feito
exterior in abstracto, falta de pulso, pulsão vital, de concreção de vida, de existência in concreto,
de experiência real do paradoxo da fé. No “pilar” da ascese sobeja isolamento e falta solidão.
No Moriá a todo instante a solidão resiste à multidão, rompendo com o universal11. Isaac é a
relação de Abraão com o universal (Isaac, “coisa finita”, “criatura”), pois ele aponta não
apenas o sentido da paternidade, mas também o da comunidade. A experiência do universal
(Isaac) não permaneceu ao pé do Moriá. Ela subiu com Abraão três dias e três noites. Por
esse motivo, no ermo da montanha, Abraão não esteve isolado, mas só em franca luta com o
universal. Até que a “exceção”, o singular, “rompe no meio do universal” (KIERKEGAARD,
2009a, p. 136), fazendo dele o pai da fé, um homem, um indivíduo singular.
Johannes de silentio viu o movimento desse tornar-se; e viu por ser poeta, “a melhor essência
do herói”. Johannes de silentio traz no próprio nome “a melhor essência do herói”: o silêncio –
o silêncio de onde brota a palavra. E Abraão, por sua vez, traz silenciado em seu nome “a
melhor essência do poeta”: a palavra – a palavra de onde brota o silêncio. Assim como de silentio
é o epíteto do poeta Johannes, para o pai da fé seu epíteto poderia ser: da palavra, Abraão da
palavra. A poética de Johannes de silentio é a recordação da palavra que se fez carne em Abraão.
O poeta tem saudade de Abraão.
Toda filosofia é uma filosofia da saudade, porquanto seja a sua recordação a poética do não
dito eternamente calado no seio de todo dito. Diferentemente da hesitação da nostalgia – a
ansiosa dor pela palavra que não pode ser dita – salta com coragem do coração da saudade um
dizer prenhe de inauditos; ao trasladar o que vai sendo escrito, o criador sustém incólume
nesse ato a força de uma linguagem inaudível. Isto é o que vivencia o Abraão de Johannes de
sangra a dor de um pai. Quem olha de fora não consegue ver, ao fim e ao cabo, se a fé que
penetrou neste ato tão radical foi doença ou cura, “vírus ou vacina”. Mas quem desde dentro
da prova olha pela fé, escuta, no que fora inoculado em Abraão, o mesmo inaudível. O que
está em questão na palavra que diz o indizível do segredo inaudito não é a verdade ou
falsidade da correspondência dos fatos, mas unicamente a verdade que toma Abraão em sua
liberdade exigindo dele a obediência pela fé. Mesmo após a consumação dos fatos, a palavra fontal
inaudita não se consuma nem será consumida em cada palavra ainda a ser dita.
Todo grande educador ensina a escutar esse inau-dito, para além de todos os ditos
consagrados e consumados na linguagem cristalizada do uso cotidiano. O educador, só ele,
pode ensinar a ver o que co-move e dispõe para o movimento da própria vida singular. Ele
jamais ensinará os conteúdos que preenchem o vazio do nada, mas apenas o próprio exercício
de desprendimento dos conteúdos que impedem o sentir, anuviando o olhar.
REFERÊNCIAS
_______. Temor e tremor: lírica dialéctica. Tradução de Elisabete de Sousa. Lisboa: Relógio
D'água, 2009b.
_______. Temor e tremor. In: Os pensadores. Tradução de Maria José Marinho. 1a ed..
São Paulo: Abril Cultural, 1979b.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém.
Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Jean Vargas
Abstract: The article takes into account Kierkegaard's reception of how the
romantics deal with knowledge and argues that the Danish has something
to say about education issues that are today the order of the day. The article
also shows how Kierkegaard deals with transdisciplinary themes and to
what extent the romantic heritage, in contrast to the enlightened legacy,
helps him to conceive his pedagogical and existential reflection.
INTRODUÇÃO
1 Significa: “é preciso duvidar de tudo”, mas Kierkegaard muitas vezes se refere a este slogan cartesiano em
latim. Em seu texto inacabado, cujo título é: É Preciso Duvidar de Tudo, Kierkegaard reflete sobre a biografia de
Johannes Climacus. Trata-se de um pseudônimo, um autor personagem dos vários que figuram em seus textos.
A ideia consiste em desafiar os entusiastas com a frase: “é preciso duvidar de tudo”, atribuída a Descartes, e
mostrar como o pensador francês pratica a dúvida de maneira superior e diferente de seus contemporâneos.
Na época de Kierkegaard muitos empregavam esta frase para passar uma aparência de intelectualidade e de
reflexão crítica. Kierkegaard então resolve ironizá-los e brincar com esta expressão.
2 Há ainda um outro texto do jovem Kierkegaard, conhecido como A Batalha entre as Antigas e as Novas Lojas de
Sabão, cujo teor consiste em desafiar alguns contemporâneos de Kierkegaard, em Copenhague, que insistiam
em repetir esta máxima cartesiana, sem, todavia, compreender o seu sentido, tal como denuncia o nosso autor.
A reflexão que traz este artigo se aproveita dessa empreitada de Kierkegaard, embora lance mão de outros
textos para se pensar a educação, sem perder de vista as discussões que perpassam estas obras.
Sou porventura um mestre um, educador? Também não. Sou alguém que
foi educado ou cuja obra exprime a disciplina que leva ao tornar-se cristão:
enquanto e porque esta educação pesa sobre mim, faço, por minha vez,
pressão sobre a época, mas longe de ser um mestre, não sou mais que um
condiscípulo (KIERKEGAARD, 1986, p. 72).
absorveu dos românticos alemães sobre educação, o qual se constitui como outro universo
de profunda influência em sua produção literária. Pensar esta influência significa pensar,
entre outros pontos, em problemas sobre a educação e seus métodos, tal como mostraremos.
Para tanto, nos limitaremos sobretudo por uma questão de escopo e propósito, a dois
textos que ajudam a pensar a contribuição do nosso autor, a saber: 1) Diapsálmata, publicado
em 1843 (primeiro capítulo de Ou-ou: um fragmento de vida e 2) Ponto de Vista Explicativo de Minha
Obra como Escritor, publicado postumamente em 1859. Recorreremos a outras obras quando
necessário, mas estas receberão um lugar privilegiado em nosso horizonte reflexivo. Ambas
as obras, aliadas a algumas breves alusões em outras passagens do pensamento de
Kierkegaard são suficientes, pois lançam um significativo faixo de luz sobre o tema.
Pensar o que significou o movimento dos românticos alemães e recuar, para tanto,
até o final do século XVIII seria uma tarefa longa e cheia de percalços para os propósitos
deste artigo, o que o tornaria inviável. Nesse sentido, será preciso delimitar um recorte
específico de entrada para notar o que os românticos fizeram com os despojos do Iluminismo
após endereçar as suas mais virulentas críticas, seja à cultura das luzes, seja à simbiose desta
com uma razão totalizante.
Evidentemente, falar sobre os românticos alemães em sentido genérico é falar sobre
muitos autores de modo simultâneo. O ponto em comum entre eles, se tivéssemos que
apontar um único, seria o de se colocar como antípoda das luzes. Este é o recorte que nos
interessa adentrar. Mas aqui será necessário um pouco mais de precisão: ao se pensar, por
exemplo, em um autor como Karl Wilhelm Friederich Von Schlegel (1772- 1829), podemos
perceber, tal como chamou a atenção Beiser, que não havia sentido, para este romântico,
manter distinções rígidas entre teologia, filosofia, educação e literatura (BEISER, 2002, pp.
435-437).
F. Schlegel, muito retomado por Kierkegaard, não reconhecia a herança renascentista
e depois a iluminista que fragmenta o conhecimento em ‘disciplinas’ do saber, que por sua
vez podem ser redivididas e subdivididas em outras tantas áreas do conhecimento. Há, pelo
contrário, uma interação entre as áreas do saber, de sorte que separá-las e classificá-las
segundo esta fragmentação pode soar demasiadamente artificial, ao passo que a realidade, ela
mesma, é fluida, performática, imbricada, e não dividida ou esquemática como quer o
método da razão cartesiana.
O movimento iluminista, portanto, que tenta compreender a realidade como se fosse
possível desagregá-la em disciplinas, não só se configura de maneira antipedagógica para um
romântico como F. Schlegel, mas mais que isso, tal compreensão chega a ser mesmo
equivocada. Esse movimento de dividir o conhecimento da natureza em partes, engendrado
pelo Iluminismo, instaurará depois o homo faber, o qual, inserido na hiper-especialização da
sociedade industrial, cada vez mais se torna expert no particular, na mesma proporção em que
ignora o universal. Ou seja, o indivíduo é especialista na parte, mas desconhece o todo. Foca
no ato de saber fazer, mas perde de vista o saber viver. Para um romântico, é preciso duvidar
desse modus operandi.
Ora, este cenário leva ao fim do intelectual universal e traz em seu bojo uma série de
consequências que os românticos ainda não tinham condições de conceituar, mas já
percebiam e procuravam adiantar um diagnóstico precoce deste mal-estar moderno que se
alastraria nos séculos posteriores, expressos como: niilismo, secularização, relativismo e
cultura de massa. Os germes desses problemas do homem moderno estavam presentes no
século XVIII e os românticos são um movimento contra cultural de resistência.
Ou seja, o movimento romântico é, em última instância, um movimento de reação à
cultura das luzes, com os seus efeitos colaterais, muito embora seja um equívoco pressupor
apressadamente que o Romantismo alemão seja algo irracional ou algum tipo de nonsense
estético. Se o Romantismo alemão é audacioso e pretende colocar a razão iluminista em seu
devido lugar, os mistérios, contos infantis e outros tantos movimentos não racionalizantes
passam a ser bem-vindos neste contexto. Por esta razão o Romantismo é um solo fértil para
tais movimentos. Como notou Safranski:
preocupado com a recepção de suas reflexões, não para a multidão, mas para o que ele chama
de Indivíduo singular (den Enkelt). Ora, é para o Indivíduo singular que Kierkegaard escreve
e é por este motivo que muitas vezes tenta blindar os seus textos do público, seja colocando
mensagens codificadas, seja dizendo explicitamente que sua obra será tanto melhor quanto
menos leitores tiver (KIERKEGAARD, 1974, p. 252). Kierkegaard, por vezes, se recusa a
fazer literatura de massa que deturpa o sentido existencial da vida e entende que é preciso
duvidar de quem escreve com o intuito de controlar a recepção literária, de modo a dirigi-la
para o grande público. O público está preocupado com panis e circenses,3 diria o esteta A
(KIERKEGAARD, 2013a, p. 319).
Os docentes também não escapam às contundentes críticas do dinamarquês, pois
estão em sua alça de mira, a ponto de Kierkegaard chegar a dizer: “do homem comum eu
gosto... os doutores, eu abomino... se não existisse o inferno, seria preciso inventar um para
punir os docentes, cujo crime é de um gênero difícil de punir” (KIERKEGAARD apud DE
GRAMMONT, 2003, p. 116-117). Obviamente a crítica aqui não é contra os docentes
enquanto tal, mas sim para aqueles que o dinamarquês entende que são meros transmissores
de conteúdo, sem se preocupar com aquela verdade para a qual importa viver e morrer, ou
dito em uma palavra, de uma verdade ‘existencial’.
É por isso que a multidão é a mentira (KIERKEGAARD, 1986, p. 99- 100), pois en
masse, ou, se quisermos, com uma comunicação direta, aprende-se uma mera técnica, um
saber fazer, portanto. Todavia, aquilo que move a Kierkegaard são as verdades de natureza
ético-religiosas e não o tecnicismo (KIERKEGAARD, 1986, p. 113). Tais verdades de
natureza ético-religiosas não se podem aprender com sermões, lições, palestras ou outro tipo
de comunicação direta de caráter conteudista. É por isso que ele não faz um manual sobre o
que não se pode aprender em um manual. Até mesmo publicar dez volumes sobre a categoria
do Indivíduo singular seria em vão (KIERKEGAARD, 1986, p. 105). Antes, é preciso
transmiti-la por meio daquilo que Kierkegaard denomina como comunicação indireta, e esta,
por sua vez, não é possível sem antes despertar o interesse do interlocutor
(KIERKEGAARD, 1986, p. 39).
3Kierkegaard emprega esta expressão latina retirada de Juvenal em Sátiras, X, vv. 80-81. Em português significa:
pão e jogos. O esteta A, em seu capítulo denominado A Rotação de Culturas sugere que foram estes elementos
que retardaram a queda de Roma.
Para tanto, o emprego de pseudônimos, para deixar o leitor a sós com o texto, sem
intimidá-lo com o peso da autoridade do escritor, bem como o contraponto entre um
pseudônimo e outro, é um meio, antes de tudo, pedagógico para levar o interlocutor a se
engajar em uma reflexão que não lhe seja estéril. Ou ainda, no vocabulário de Kierkegaard, é
um meio de provocar “movimentos existenciais”.
Ora, provocar movimentos existenciais é justamente a discussão que está na ordem
do dia hoje quando o assunto é educação. Como tornar os discentes interessados?
Kierkegaard entende que responder a esta questão é conditio sine qua non para conseguir formar
alguém, visto que a subjetividade é a verdade, mas também pode ser a inverdade. Isto é, da
interioridade depende a motivação para o acesso a verdade e, vale dizer, o acesso ao
conhecimento engajado (KIERKEGAARD, 2013, p. 199-263).
Contudo, transmitir conhecimento não possui o resultado esperado se o sujeito do
conhecimento não se interessa pelo objeto. O papel do mestre é abrir caminhos para que o
discípulo possa aplicar tanto a sua interioridade quanto o seu interesse no objeto em questão.
O papel do mestre não é o de transmitir bordões e frases de efeito para serem decorados e
reproduzidos. É preciso duvidar de quem assim procede e de quem assim quer aprender.
Se, por um lado, a primeira obra literária de Kierkegaard nos ajuda a notar isso, por
outro, é o balanço que o próprio Kierkegaard faz, agora sem o auxílio da pseudonímia, que
nos permite entender a sua preocupação pedagógica. De certo modo, a obra Ponto de Vista
Explicativa da Minha Obra como Escritor não deixa de ser, para além de um acerto de contas de
Kierkegaard consigo mesmo, uma obra de reflexões pedagógicas, inspirado no método da
maiêutica socrática, a qual explana o projeto de conseguir despertar interesse e engajamento
no leitor. Tanto é assim que muitas vezes os interlocutores de Kierkegaard confundiam
aquilo que era literatura com o que eram, na opinião deles, meros escritos religiosos. A
fortuna crítica de Kierkegaard terá que esperar por Heidegger, quando finalmente o filósofo
Ora, para este resultado, e este ponto é central, importa tanto seguir a trilha existencial
de Sócrates quanto a trilha pedagógica dos românticos, ao transitar por áreas do saber
proibidas para a erudição sisuda de autores como os do idealismo alemão, por exemplo.
Kierkegaard era um autor com grande sagacidade literária, de modo que sabia tornar um
conteúdo interessante quando lhe convinha, e por vezes, fazê-lo exigia alguma transgressão
interdisciplinar.
Quanto a isto, um filósofo como Hegel não acharia algo sério e rigoroso, como não
se cansa de criticar os românticos. Neste ponto em particular, Kierkegaard está com o
Romantismo alemão e está contra o filósofo de Berlim. Como um autor que pretende
4Foi Heidegger quem notou que, com exceção ao que ele se referia como Tratado sobre a Angústia, os textos
ditos religiosos de Kierkegaard possuem uma profunda reflexão filosófica, mais do que outros textos estéticos.
com Sócrates, pois ao recusar um saber especializado, lança-se um olhar para o problema
como um todo. Não obstante, esse modelo transdisciplinar, o qual não reconhece barreiras
para áreas do saber, é também um movimento notadamente romântico e Kierkegaard deve
isso a sua imersão na leitura de textos como os de F. Schlegel, Schleiermacher, Tieck e
Novalis.
Assim, para Kierkegaard, não há mediação do conhecimento se o mestre não
consegue, ao modo de Sócrates, fazer o próprio discípulo dar à luz as questões existenciais.
Paira aqui uma dúvida sobre aqueles que falam em realidade, sem conseguir transmiti-la.
Aqueles que são incapazes de fazê-lo, incorrem no mesmo problema daqueles velhos
filósofos que são denunciados no aforismo do Diapsálmata, os quais prometem uma
propaganda conceitual da realidade, mas enganam:
imbricado entre si. Os românticos não são realistas ingênuos e sabem que a estrutura do real
é bem mais complexa do que aparenta. Sabem também que, em certo sentido, tais divisões,
quando sustentadas de modo rigoroso, são artificiais. Assim, podem mais atrapalhar do que
ajudar no processo de aprendizagem e conhecimento.
De sua parte, foi com os românticos que Kierkegaard aprendeu a ser um pensador
de fronteira, ou se quisermos, transdisciplinar, para ficarmos com apenas um adjetivo. O
dinamarquês gosta de transitar por estes limites, pois não compartilha da divisão estanque
que se fez a partir, sobretudo do século XVI. Assim, a erudição sisuda da filosofia idealista
alemã, a duvidosa teologia dogmática dos bispos de Copenhague e os muitos experimentos
mentais do imaginário literário, ora são criticados com ironia, ora dão lugar a uma mistura
casual entre vários ingredientes para servir como método pedagógico, cujo objetivo é levar
o seu interlocutor aos denominados “movimentos existenciais”. Então, para Kierkegaard, ao
pensar sobre métodos pedagógicos, é preciso duvidar de quem, sem movimentos
existenciais, duvida de tudo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
dinamarquês, tributário do legado socrático, mas também do legado romântico, tem algo
muito importante a nos ensinar: para Kierkegaard, pensar a educação é, antes de tudo, pensar
na constituição de subjetividade de Indivíduos singulares, ainda que em meio à multidão. E
não se forma, no sentido grego do termo (paidéia), a subjetividade do outro sem uma
elasticidade irônica interdisciplinar que o permite torná-lo atento. Pois assim, o educador
obriga o discente a julgar por si mesmo e, sobre isso não há a menor dúvida:
Que isto seja uma boa ação não há a menor dúvida; mas também não é
preciso esquecer que o golpe é arriscado. Obrigando este homem a tornar-
se atento, forço-o a julgar. E ele julga. Mas o que ele julga não está em meu
poder. Talvez julgue o contrário daquilo que desejo. E, além disso, talvez
esta necessidade, em que o coloquei de se pronunciar o exaspere, e até ao
furor, contra a questão e contra mim; e talvez seja eu, no final, a vítima do
meu procedimento, corajoso (KIERKEGAARD, 1986, p. 45).
A julgar pelo que discorremos até agora, podemos nos permitir ousar um exercício
de experimento mental arriscado, ao afirmar que se o autor dinamarquês pudesse participar
dos nossos diálogos sobre temas como educação e, sobretudo sobre pautas como
transdisciplinariedade, teria algo de precioso a nos ensinar: após invocar Sócrates e os
românticos, e depois de chamar a atenção sobre a necessidade de despertar o interesse no
interlocutor ao torná-lo atento para os seus movimentos existenciais, acredito que
Kierkegaard enfatizaria que em se tratando de método pedagógico é preciso se colocar no
lugar do discípulo para ser útil, já que o mestre não é nada mais do que alguém que presta
uma ajuda ao outro.
Diante disso, ainda faz sentido colocar a questão, duzentos anos depois: é preciso
duvidar de tudo? Aqui, penso que Kierkegaard, ao olhar para o nosso tempo, faria um
pequeno, mas significativo acréscimo pedagógico ao responder a esta pergunta aplicado aos
nossos dias: em que pese a educação, de fato é preciso duvidar de tudo, inclusive daqueles
educadores que não duvidam de modo existencial!
Ou ainda, para fazer eco ao dinamarquês, é preciso ponderar: “ser mestre não é cortar
a direito à força de afirmações, nem dar lições para aprender, etc.; ser mestre é
verdadeiramente ser discípulo” (KIERKEGAARD, 1986, p. 42).
REFERÊNCIAS
_______. Temor e Tremor. Tradução de Maria José Marinho. São Paulo: Abril cultural,
1974. (Os pensadores).
SAFRANSKI, Rudiger. Romantismo: uma questão alemã. Tradução de Rita Rios. São
Paulo: Estação Liberdade, 2010.
VALLS, Álvaro; MARTINS, Jasson. (Org.). Kierkegaard no nosso tempo. São Leopoldo:
Nova Harmonia, 2010.
VARGAS, Jean. Kierkegaard entre a existência e o niilismo. Puc Minas: Sapere Aude, Belo
Horizonte, v.6–n.12, Jul./Dez.2015, p. 657-671.
VARGAS, Jean. Indivíduo e multidão: uma reflexão sobre o lugar da ética no pensamento
de Søren Kierkegaard. UFMG: Outramargem, Belo Horizonte, V. - n., 2 Semestre 2014,
p. 99-109.
INTRODUÇÃO
1 Tal trabalho foi orientado por “Paul Martin Moeller [...][que] observou, depois, diretamente a K.: ‘você está
saturado de espírito polêmico, a um ponto incrível’”. Não era demais, como se pode ver, que ele pensasse numa
tese sobre o ‘conceito de Sátira nos antigos e a relação mútua entre os diferentes satíricos romanos’, abandonada
por outra ‘o conceito de ironia constantemente referido a Sócrates’, com a qual obteve o grau de ‘magister artium’,
equiparada em 1854 ao título de doutor” (REICHMANN, p. 255, grifo nosso)
Nesse contexto da diferença ética de Sócrates, sabemos que ao contrário dos sofistas,
ele não só valorizava a conversação, mas na própria reflexão filosófica do que consiste a ação
de falar e ouvir, locutor e interlocutor estariam unidos na construção do saber. Sócrates
valorizava a troca, e nesse processo de perguntas e respostas era feito o parto da própria
consciência de si, do reconhecimento de sua ignorância quanto ao nada condicional do saber.
Sua ironia tem consistência no dizer que “nada sabe”, o que mostra um exemplo da
subjetividade. Para Kierkegaard, a ironia, mais do que qualquer outro efeito de sentido
produzido, só se consubstancia na subjetividade. É neste sentido que Kierkegaard viu o
2 Por se tratar de uma referência dos Journals and Papers IV, nota 696 e pela dificuldade em referenciar essas
citações preferimos mantê-la como apud.
diálogo socrático como a matriz do método irônico. Sendo a ironia de grande importância
para o processo de construção de seu conceito de subjetividade.
Ainda contrapondo aos sofistas que tinham a prática da oratória como se “fosse uma
profissão”, Sócrates nada deixou escrito, pois, para ele, o escrever já seria uma forma de
bloquear ou estagnar o conhecimento vivo. Até porque, quem lê um texto tem acesso ao
conhecimento de alguém, mas na ação de interpretá-lo, já o modifica. Sócrates era tão zeloso
com seu conhecimento, que no ato a maiêutica já corrigia interpretações hermeneuticamente
erradas dos assuntos tratado por ele e seus interlocutores. Assim, é possível dizer que a ironia
é uma força negativa a serviço de uma ideia positiva, mas para que ela exista entre essas duas
funções contraditórias, é preciso que seja um gesto que anule a si mesmo, ou mesmo que
desacredite aquilo mesmo que se defende. Por isso, é a opção do nada socrático, do saber
que nada sabe a melhor opção que emerge dessa ironia antiga.
O título da zona limite da ironia está presente como um dos subtópicos da obra
Postscriptum. Retomamos essa expressão, pois vamos nos valer de algumas referências dessa
relação entre ironia e humor como pressuposto da suposta passagem entre ironia e ética,
contudo, não é nosso objetivo no presente artigo fazer uma análise mais minuciosa do
humor.
A dualidade presente no pensamento de Kierkegaard está presente na oposição entre
pensamento e palavra, a ironia é, nesse contexto, uma determinação da subjetividade que
leva em conta o indivíduo na sua tarefa de se tornar um ser livre, seja no pensamento ou na
existência. Nesse processo, que consiste em dizer o contrário do que pensa “O fenômeno
não é para manifestar a essência” (KIERKEGAARD, 1991, p. 204), mas, sim, ocultá-la,
mesmo que a essência se identifique com o fenômeno. A ironia dessa constatação é que o
caráter irônico, na qual a ironia supera a si mesma, também anula a si mesma, na espera da
resposta que já se sabe, mas que muitas vezes não importa. Um exemplo disso, é o dizer o
que se pensa em tom sério o que normalmente não é pensado seriamente, e, vice-versa,
sempre pelo lado irônico. Contudo, isso não era visto como algo “bom” pelos interlocutores
de Sócrates, o que leva a crer que, por esse motivo, Kierkegaard entendia a subjetividade da
ironia de Sócrates como negativa.
3 “Kierkegaard diz que a edificação é seriedade (Alvor), isto é, um cuidado com a realidade, pois a realidade
concreta se dá com a relação com o próximo, e nisso o indivíduo mostra que na sua relação com a subjetividade
há uma grande importância da maneira como o outro influencia a edificação desse indivíduo. Logo, muitas
vezes o sujeito tenta se libertar dos paradoxos entre sua maneira de se conceber no tempo e as assujeitações
que recebe da sistemática das inter-relações, de forma que se mostra necessário exercitar-se na tarefa do tornar-
se” (ROCHA, 2015, p. 633).
Separados por quatro séculos um do outro, tanto o Cristo como Sócrates foram
incumbidos de promover a bondade e a verdade levando as pessoas a refletirem sobre as
suas ações se eram boas, verdadeiras ou não. Cristo, por sua vez, ministrava pessoas na
intenção de conduzi-los a seguirem o caminho da salvação de suas almas. Ambos buscavam
uma reflexão onde as pessoas pudessem examinar a si mesmas, Cristo e o cristianismo estão
ligados a ideia de humor e Sócrates evidentemente à ironia.
4 Pode-se ver uma ironia clara nesse diálogo, quando “Sócrates vai ao tribunal em Atenas para cuidar dos
trâmites do processo movido contra ele, e lá encontra Eutífron, um conhecido. Os dois se saúdam e perguntam
um ao outro que assuntos os levam ao tribunal. Para o espanto de Sócrates, Eutífron explica que está
processando seu próprio pai. Nem é preciso dizer que isso é muito incomum, especialmente na Frécia antiga
onde o respeito filial era um valor consagrado. Sócrates percebe imediatamente a óbvia contradição [...] mas
em vez de apontar essa contradição, ele finge presumir que deve haver algo que ele não entendeu e que Eutífron
deve ter algum conhecimento especial sobre esse assunto” (STEWART, 2017, p. 29, tradução nossa).
Cristo, por sua vez, ao ser condenado a morte, não se recusou a enfrentar a tal morte,
mas a aceitou, como sendo morte redentora a todos seus discípulos. Ao contrário de
Sócrates, que tinha certeza da imortalidade da alma e na existência de um lugar melhor, onde
todas as almas poderiam encontrar descanso.
AS IRONIAS DO SOCRATISMO
Para compreender a visão de Sócrates da ironia, já que este não deixou nada escrito,
Kierkegaard fez um minucioso estudo hermenêutico nos escritos das principais referências
escritas de Sócrates: Platão, Xenofonte e Aristófanes. Na procura de distinguir o que é
essencialmente socrático nesses autores, e sobre a sua filosofia irônica, buscou-se fazer uma
análise da ironia de Sócrates.
De acordo com Kierkegaard, a visão de Xenofonte7 de Sócrates aparece sempre em
uma diferença frente aos livros sinóticos dos evangelhos, pois eles retratam de maneira real
5 A obra de citada é do teólogo alemão Ferdinand Christian Baur Sobre o cristianismo no platonismo: Sócrates e Cristo
de 1837.
6 Não vamos nos concentrar nessa investigação, visto que a tese da Prof. Ilana do Amaral já fornece muitas
pistas, nesse sentido, ela mesma afirma que “Sobre a distinção entre o humor de Hamman, esta negatividade
cuja vitalidade lhe permite [...] apropriar-se ‘da ideia’ de ‘modo subjetivo’ e a ironia” (AMARAL, 2008, p. 154).
A autora quer dizer que mais ainda do que um socratismo de Hamman, Kierkegaard também herda a relação
da ironia com o humor.
7 “Nem poeta nem filósofo, Xenofonte não vê a menor diferença entre o exterior e o interior, entre a forma e
o conteúdo da mensagem socrática, e se agarra à vida prática em suas manifestações visíveis” (POLITIS, 2009,
p 67, tradução nossa).
e fiel a existência de Cristo. Já em Sócrates, só foi perceptível sua maneira de existir através
da verbalização (fala para que eu te veja - loquere ut videam te). Com suas palavras, Sócrates só
se deixava ser mal compreendido enquanto transmitia sua vida através de sua subjetividade.
Esse fato pode ser o motivo pelo qual Xenofonte comete grandes erros. A intenção
de Xenofonte de querer desmistificar a imagem da ameaça política que Sócrates representava
um não aprofundamento na sua filosofia, e, desvalorizando a prática da conversação adotada
por Sócrates, no tocante a isso, pode ser considerada superficial. Xenofonte não dá atenção
aos diálogos e a construção de réplicas que são de importância crucial ao sentido da
conversação. Kierkegaard criticou Xenofonte por este ter feito uma interpretação empírico-
histórica de Sócrates, na qual suas interpretações tornaram o Sócrates “Bom”, ou seja, tiraram
toda malícia de Sócrates.
Para Kierkegaard, essa visão de Sócrates o prejudicou, pois tirou toda complexidade
e subjetividade da filosofia e de certa forma também tirou dele o mérito de ter sido um
Filósofo que foi acusado de “corromper a juventude”. Em outras palavras, tiraram dele o
mérito de ter feito vir à luz da verdade aos atenienses e de o ser também o pai da ironia. Por
isso, Kierkegaard até se aproximou de Hegel8 em sua forma de entender a ironia de Sócrates.
Contudo, se Kierkegaard considerou o texto de Xenofonte insuficiente para compreender
Sócrates, é porque era preciso ter uma atenção melhor ao texto de Platão e Aristófanes.
8“A ironia é - como dizia Hegel em quem Kierkegaard se inspira neste ponto - a concentração do eu no eu
para o qual todos os vínculos estão rompidos, condenado a viver no gozo vão de seu próprio nada” (FARAGO,
2006, p. 40).
Como Platão, Aristófanes também faz uma captura ideal de Sócrates, só que de modo
invertido, Platão é de uma idealidade trágica, Aristófanes é cômica, enquanto o personagem
platônico idealiza a sua exaltação, o Sócrates aristofânico idealiza a sua depreciação.
Kierkegaard diz: “Platão e Aristófanes têm, então, isto em comum: suas exposições
são ideais, mas em relação recíproca, inversa, pois Platão tem a idealidade trágica e,
Aristófanes a cômica” (KIERKEGAARD, 2006, p. 109).
Tratando-se de um poeta e de um bom humorista, Aristófanes tinha por intenção
sarcástica ridicularizar Sócrates. Na peça de teatro As Nuvens, escrita por Aristófanes,
Sócrates é apresentado como o principal líder dos Sofistas, opondo-se a Platão que o
apresenta como alguém que é contrário aos hábitos sofistas, nele há a idealidade trágica,
heroica, configurando uma imagem positivamente ideal; Aristófanes habita a idealidade
cômica, caricatural, desenhando um Sócrates negativamente ideal. Na obra, Sócrates aparece
como sendo de caráter duvidoso, trapaceiro, esperto, um sofista ateu9 e blasfemador que
abusa da credulidade dos seus alunos fazendo-os dissertar sobre assuntos mais fúteis que os
deuses, mesmo se tratando do céu, daí o nome As Nuvens.
9“Quanto a Sócrates ser um ateu que rejeitava os deuses do Estado, Kierkegaard alega que isso foi baseado em
um mal-entendido” (STEWART, 2017, p. 77, tradução nossa).
Com Xenofonte pode-se por isso de bom grado admitir que Sócrates
gostava de perambular e falar com todo tipo de gente, porque qualquer
coisa ou evento exterior serve de pretexto ou ocasião para aquele irônico
que tem sempre uma resposta pronta; com Platão, pode-se de bom grado
deixar Sócrates tocar a ideia, só que a ideia não se abre para ele, sendo,
pelo contrário, um limite. Cada um desses dois apresentadores procurou,
naturalmente, completar o que faltava em Sócrates. Xenofonte puxando-
o para baixo até as rasteiras do utilitário, Platão elevando-o até as regiões
supraterrestres da ideia. Mas o ponto que se situa no meio, imperceptível
e extremamente difícil de fixar é a ironia [...]. A ironia oscila entre o eu
ideal e o eu empírico; um faria de Sócrates um filósofo; o outro, um sofista;
mas o que o faz ser mais do que um sofista é o fato de que seu eu empírico
tem validade universal (KIERKEGAARD, 1991. p.108).
A IRONIA DO DESTINO
10É possível que o cômico seja a correta representação da ironia em relação ao humor, por essa via, Kierkegaard
esclarece que “a lei do cômico é bem simples: existe por toda parte onde há contradição e onde a contradição
não é dolorosa pelo fato de que se vê que ela é suspensa, pois se o cômico não suspende a contradição (ao
contrário, ele a torna manifesta) ao menos o cômico justificado é capaz disso” (KIERKEGAARD apud
REICHMANN, 1978, p. 163).
de “estado espiritual”. Platão apresenta Sócrates como jocoso, mesmo em meio a sua
condenação, vive por ironizá-la até mesmo diante da morte. É como se a ironia cantasse sua
liberdade e dissesse “a tudo irei ironizar, incluso minha própria acusação”.
neste sentido, ela vem a ser algo positivo; o irônico sente-se bem com isto, acostumado que
está a aporia como pathos da ideia; mas sente-se bem, sobretudo, por encontrar o ponto crítico
perfeito para sua própria concepção filosófica na qual a morte é um resultado positivo de
todo o aspecto negativo da ausência de sentidos a priori da vida. É um momento que sua
filosofia serve para provar o problema da existência, daí então à medida que supera as
limitações empíricas e as contingências.
Enfim, a Apologia é uma grande demonstração irônica de Sócrates. Pois ali se
transforma a sua acusação em um Bem, a morte em um Favor, e, por fim, a própria
condenação como um desígnio de Deus. Redistribuindo todos os papéis atenienses, todos
os valores morais e jurídicos, transformando toda a situação presente na sua grande provação
filosófica. Sócrates diz:
Vejamos a coisa também deste ponto, pelo qual tenho grande esperança
que morrer seja um bem. Morrer é uma destas duas coisas: ou não ser mais
nada e quem morreu não tem sentimento de mais nada, ou ainda, como
dizem alguns, é uma espécie de mutação e de migração da alma deste lugar
para um outro. Ora, se morrer equivale a não mais ter sensações e é como
um sono sem sonhos, é um ganho maravilhoso, a morte. [...] por outro
lado, se a morte é como a mudança daqui para um outro lugar e se é
verdade que nesse lugar, como contam, podem ser reencontrados todos
os mortos, qual bem, ó juízes, poderá ser maior que este? (PLATÃO, 1980,
p. 26-27).
Nisto vemos a relação que existe entre ironia e morte Sócrates, que não é dizer que o
absoluto é um elemento mortífero, sobre isso Sócrates diz:
[...] todo o longo discurso que acabo de fazer para vos demonstrar que, ao
beber o veneno, não permanecerei convosco, mas que vos deixarei e irei
gozar felicidade e bem-aventurança, parece-me ter sido inútil para Críton,
com se não houvesse falado mais para consolar-vos e a mim (PLATÃO,
1977, p. 174-175).
11 “Ao fazer do Destino um poder quase externo que reina sobre o significado, é fácil ver - e o exemplo da
tragédia está lá para mostrar - que uma posição é irônica naquela que acentua a ambiguidade dos fenômenos e
que nunca tenha a sensação de que concedemos o sentido pela primeira vez” (VERGOTE, 1983, p. 378).
Um tal sono da alma e um tal nada só podiam mesmo agradar mais do que
qualquer coisa o irônico, que possui aqui, aliás, o absoluto à relatividade
da vida, mas um absoluto tão leve que ele não tem dificuldades para
segurá-lo, dado que o possui sob a forma do nada (KIERKEGAARD,
2006, p. 79).
No fim da vida de Sócrates, a ironia é consumada, pelo diálogo Fédon é possível retomar
a ironia, finalmente, quando se vence a morte como um castigo, e se entende como uma
libertação, isso é o “positivo”. Sócrates é irônico antes de morrer, ao pedir a Críton para que
este pagasse o galo à Asclépio, dando fim ao seu ‘drama’. Nietzsche, por exemplo, interpretou
que nesse pedido houve uma valorização negativa da vida pelo ponto de vista filosófico, pois
dar um galo a Asclépio significava render-lhe homenagem pela cura: Sócrates estava, enfim,
curado da vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Segundo Henri Vergote, em seu Tomo II de Sens et Repetition, dentro dessa querela da
antiguidade de uma ironia e de uma comicidade que varia entre os sofistas e os socráticos,
foram os socráticos menores, principalmente os cínicos que melhor absorveram o legado
socrático de converter a ironia em humor, ainda que de maneira pagã, liberando do fenômeno
um novo modo de leitura do sentido. “É certo que, além dos cínicos e outros ‘pequenos
socráticos’, vimos na ironia, apenas essa mudança de perspectiva que faz do indivíduo o lugar
onde o divino e o significado de mundo acontecem” (VERGOTE, 1982, p. 378, tradução
nossa). Desse modo, podemos concluir que há muito ainda que se investigar acerca das
relações filosóficas entre a ironia na antiguidade, cristianismo e modernidade, evidentemente,
por meio da apreensão na filosofia kierkegaardiana.
Como uma estratégia final de arguição, podemos fazer uma ponte entre o que Hélène
de Politis e Jacob Hownland traçam da importância espiritual da ironia na relação
Sócrates/Cristo. Para Politis, é preciso encontrar as determinações viáveis da ironia, na qual
a ironia socrática é a descoberta da subjetividade abstrata, inseparável da moralidade e das
normas éticas numa perspectiva da ironia como fenômeno social da linguagem. Nessa
ultrapassagem da ironia ou, melhor, esse deslocamento da ironia ao humor implica uma
compreensão sem precedentes de relações entre o ideal e o real, entre o infinito e o finito,
entre ser e o assunto. Esta é a compreensão autenticamente kierkegaardiana. A ironia é a
ruptura com a adesão às convenções. O mais importante é sempre se lembrar de rir de si e
do mundo, e, com essa alegria enfrentar a tragicomédia da vida. Tanto que Politis afirma que
ao mesmo tempo se oculta. Essa é também a relação entre morte e amor que comentamos,
e precisamente porque a vinda de Deus tem uma duplicidade irônica.
Ainda não está claro onde a analogia com a ironia socrática se desfaz. A
servidão é a verdadeira forma do Deus que não pode significar que é a
verdadeira verdade sobre Ele mesmo. A descida do Deus introduz a
duplicidade, e com isso ironia. [...] À primeira vista, isso parece ser
estruturalmente a mesma tarefa que confronta aqueles que procuram
entender Sócrates. Sócrates expressa seu amor na forma de ignorância,
mas sua aparência não é toda a verdade: Sócrates é e não é apenas o que
ele parece ser. Deus expressa seu amor na forma do servo, mas a aparência
do Deus também não é toda a verdade: ele também é e não é apenas o que
ele parece ser (HOWNLAND, 2006, p 94-95, tradução nossa).
REFERÊNCIAS
GOUVÊA, Ricardo. Paixão pelo paradoxo: Uma introdução a Kierkegaard. São Paulo:
Fonte Editorial, 2006.
_______. Ponto de vista explicativo da minha obra de escritor: uma comunicação direta,
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OUBINHA, Oscar. Loquere ut Videam: “’Guilty?/‘Not Guilty?” and The writing of irony.
IN: JUSTO; SOUSA: ROSFORT. Kierkegaard and the challenges of infinitude –
Philosophy and literature in Dialogue. Lisboa: CFUL, 2013.
PLATÃO. Apologia de Sócrates. In: Os pensadores. Tradução de Jaime Bruna. 2ª Ed.. São
Paulo: Abril Cultural, 1980.
INTRODUÇÃO
A FORMAÇÃO GREGA
Como apresenta Werner Jaeger (1995) em seu clássico Paidéia: a formação do homem
grego, o desenvolvimento da filosofia grega como berço da própria filosofia se confunde com
o processo de surgimento e desenvolvimento da educação ocidental. A experiência grega
desenvolve conceitos, técnicas e modelos que formam nossa civilização e que ainda hoje
serve de base para discussões pedagógicas. Franco Cambi (1999, p.102), em sua História da
pedagogia, destaca três elementos gregos determinantes para a constituição da educação
ocidental: 1. “a noção de paidéia”, que se desenvolveu como formação integral do ser humano,
não se limitando mais a um processo de educação infantil e ganhando cada vez mais espaço
dentro de um contexto sociopolítico mais amplo e fortalecendo os laços com a experiência
cultural de um povo; 2. “a pedagogia como teoria”, que dá sentido universal à paidéia através
da conquista de sua autonomia no que tange aos problemas educativos. 3. “a problematização
da relação educativa”, que complexifica a relação entre quem educa e quem é educado,
trazendo um grau de diversificação e riqueza para a figura do educador inexistente ao período
humanista da filosofia, em que ocuparam o lugar de mestre admirado e digno de imitação
nomes como Protágoras, Hípias, Sócrates, Platão, Aristóteles, Epicuro etc.
Antes do nascimento da filosofia a educação grega já era pautada pela aretê, entendida
como virtude, mas também como excelência, possuindo “aplicação mais ampla do que o
contexto propriamente moral” (ZINGANO, 2007, p. 78). A aretê possuía também sentido
político. Mesmo a paidéia “se constituía em si mesma em um aspecto da aretê, ou seja, em um
modo específico de capacitar, qualificar e de habilitar cultural e civicamente os futuros
cidadãos da pólis” (SPINELLI, 2016, p.605). Essa ideia permeia a filosofia e o projeto de
formação grega enquanto projeto social e civil. Aristóteles, que nos diz que uma andorinha
só não faz verão, trabalha exaustivamente o conceito de aretê em sua Ética a nicômaco, ao ponto
de sugerir, sem considerarmos o décimo livro, que a virtude seria o principal elemento
condicionante da felicidade, sem a qual, mesmo coisas como riqueza, beleza e honra ficariam
empanadas. Vale ressaltar que a felicidade, enquanto bem supremo e por isso fim último e
autossuficiente, não é bem para a satisfação de um indivíduo solitário, “mas também para os
pais, os filhos, a esposa, e em geral para os amigos e concidadãos, visto que o homem nasceu
para a cidadania” (ARISTÓTELES, 1984, p.55). Os sofistas, responsáveis pelo processo de
maturação da educação para adultos, foram considerados mestres da excelência. Antes deles
e de Aristóteles, a aretê era buscada através dos heróis das narrativas míticas, que ocupavam
papéis de modelos de conduta.
Contemporâneo da pedagogia sofista, Sócrates também se preocupou com a noção
de virtude e relacionou com a educação, na medida em que realizava associação direta entre
aretê e episteme. Como nos diz o historiador da filosofia antiga Giovanni Reale:
A “virtude” do homem outra não pode ser senão aquilo que faz com que
a alma seja tal como sua natureza determina que seja, isto é, boa e perfeita.
E, segundo Sócrates, esse elemento é a “ciência” ou o “conhecimento”,
Platão, por sua vez, na esteira das discussões éticas de seu mestre, buscou discutir a
aretê. Mas se afastou de dois procedimentos pedagógicos predominantes em seu tempo, o da
leitura de Homero e aquele embasado nos ensinamentos dos sofistas. Para o autor d’A
república, tais procedimentos, baseados na mimese, conduziam os cidadãos para longe do
verdadeiro processo educativo, que tem como base a dialética, o procedimento pedagógico
por excelência.
Platão indica como esse processo é essencialmente pedagógico, quando anuncia que
é a educação dos prisioneiros que faz com que seu olhar seja direcionado para a visão daquilo
que importa verdadeiramente:
A educação seria, por conseguinte, a arte desse desejo, a maneira mais fácil
e mais eficaz de fazer dar a volta a esse órgão, não a de o fazer obter visão,
pois já a tem, mas, uma vez que ele não está na posição correcta e não olha
para onde deve, dar-lhe os meios para isso (PLATÃO, 1993, p.323).
A dialética era um meio que Platão fazia uso para se chegar a verdade enquanto
processo interno de rememoração. É o que vemos no Mênon, que parte da pergunta essencial
à paidéia grega: é possível ensinar a virtude? Nesse diálogo, vemos Sócrates, enquanto
personagem, demonstrar que um homem escravizado que nunca estudara geometria poderia
resolver um problema geométrico por si próprio. A sugestão é que o servo, não tendo
estudado a ciência das formas, deveria conhecê-la internamente, como se a tivesse em seu
espírito e bastasse a ele recordá-la. Platão afirma, assim, que aprender é necessariamente
rememorar (PLATÃO, 2003, p.53).
A dialética, por sua vez, elemento essencial da educação para a filosofia e para a
política, provém de Sócrates, e ela interessa mais ao mestre de Platão do que a reminiscência.
Sócrates, ao contrário do discípulo, não deixou obras escritas para a posteridade. O que
temos dele são alguns testemunhos, como o de Aristófanes, o de Xenofonte e do próprio
Platão. Isso limita consideravelmente todo o caráter de doutrina que possa ser aplicado a
Sócrates, e ressalta a sua filosofia enquanto prática, e principalmente enquanto prática
pedagógica, extraída especialmente dos primeiros diálogos escritos por Platão, os ditos
PEDAGOGIA DA INTERIORIDADE
essência dos diálogos que Sócrates travava em Atenas, o texto platônico convida o leitor para
o diálogo, atraindo-o seu Eu por um apagamento do Eu do escritor. Platão não escreve em
primeira pessoa, e utiliza Sócrates como máscara. Segundo Kierkegaard (1991, p.244), “o
irônico entende do assunto [de adequação de personagem] e possui um lote considerável de
máscaras e fantasias à sua livre escolha”. Mas antes de Platão é o próprio Sócrates que é em
si mesmo “mascarado”, fazendo uso da ironia e se colocando no lugar da ignorância, pois a
ironia consiste tanto em “fingir saber quando se sabe que não sabe, como fingir não saber
quando se sabe que se sabe” (KIERKEGAARD, 1991, p. 218). Assim como Sócrates,
Kierkegaard se movimenta na tensão de se mostrar e se ocultar, através da ironia, do humor
e da pseudonímia, e acredita que o mestre pode abandonar o seu saber para ocupar o lugar
do discípulo, o lugar do não saber.
Se Kierkegaard admite em maior grau a influência da figura de Sócrates em seu
próprio pensamento, levando-a em consideração, no Conceito de ironia, sob os três grandes
testemunhos gregos (Aristófanes, Platão e Xenofonte), é preciso reconhecer essa
concordância com Platão no que diz respeito ao apagamento do Eu na escrita, se colocarmos
em relevo o fato de que Kierkegaard optou por marcar a maior parte de sua produção com
assinaturas de pseudônimos, em que o jogo de se mostrar e se ocultar é evidenciado pela voz
dada aos variados Eus contidos no pensamento do Sócrates dinamarquês. Kierkegaard não
oculta o caráter imprescindível desse tipo de abordagem na expressão de suas ideias – como
afirma nas últimas páginas do Post-scriptum: “A pseudonímia não teve uma base acidental em
minha pessoa [...], e sim uma base essencial em minha produção” (KIERKEGAARD, 2010,
p.602).
Tais relações se esclarecem com as seguintes passagens de O ponto de vista explicativo
de minha obra como escritor: “Pode enganar-se um homem em vista do verdadeiro e, para lembrar
o velho Sócrates, enganá-lo para o levar ao verdadeiro” (KIERKEGAARD, 1986, p.48), uma
vez que
Ser mestre não é cortar a direito à força de afirmações, nem dar lições para
aprender, etc.; ser mestre é verdadeiramente ser discípulo. O ensino
começa quando tu, o mestre, aprendes com o teu discípulo, quando te
colocas naquilo que ele compreendeu, na maneira como o compreendeu,
ou, se ignoravas tudo isso, quanto simulas prestares-te a exame, deixando
o teu interlocutor convencer-se de que sabe a lição (KIERKEGAARD,
1986, p.42).
Mas o que teria ocorrido na história da filosofia para que o espírito socrático
precisasse ser retomado? Se toda a liberdade que podemos detectar na prática socrática recusa
a educação institucional que presenciamos hoje, parece recusar também um modelo de
pensamento caudatário do pensamento aristotélico. O próprio fato de Platão possuir um
programa de educação institucional, ao qual a prática socrática parece aversa, indica o início
de uma sistematização do pensamento que se encontra ainda mais fortalecida em Aristóteles.
Sabe-se que Aristóteles recusou o diálogo como a forma filosófica ideal de exposição. Uma
provocação emerge: os tratados do estagirita não encontra como correspondente oral os
longos discursos dos professores que perdura a séculos na educação institucional na forma
das “aulas magistrais”? Mas talvez o que delineia melhor sua sistematicidade e a imagem do
pensamento que legou para a posteridade é o caráter categorial de sua filosofia, fortalecido
por discípulos e organizadores de sua obra. A imagem do pensamento ligada a Aristóteles é
o das categorias e das divisões. Assim como, hodiernamente, temos diferentes disciplinas
encerradas em seus conteúdos específicos nos currículos, visualizamos a rica obra
bibliográfica aristotélica, ainda que em parte formulada por anotações de aulas: um texto
dedicado à ética, outro à política, outro à metafísica, outro à escrita poética, outro à física,
etc.
Por influência direta ou indireta, é essa imagem aristotélica do pensamento que
Humboldt leva a frente quando procura estabelecer um modelo de instituição educacional
em que cada conhecimento ocupa um lugar específico em um sistema regulado pela
especulação (Cf. LYOTARD, 2002, p. 94). Tal programa, mesmo em meio a multiplicidade
de disciplinas, permanece nos dias atuais, sustentada cada vez menos por uma argumentação
rigorosa, como a do próprio Aristóteles (e talvez contra as suas pretensões), e mais por
postulados congelados pela ausência de crítica. Com os desafios contemporâneos e as
respostas caóticas das políticas ou ausências de políticas pedagógicas, o modelo de educação
que prevalece nos tempos hodiernos perde até mesmo a noção moderna de uma unidade
especulativa que coordena os diversos saberes, sobretudo na educação escolar. Temos, assim,
disciplinas compartimentadas que não estabelecem relações e atuam na contramão de um
tipo de conhecimento de caráter mais abrangente, que coloque em evidência para os
estudantes as conexões internas entre os mais diferentes tipos de saberes. Com o
congelamento dos compartimentos de conteúdo e a perda do sentido existencial na produção
de conhecimento, pensar acaba por significar somente dividir, repartir, adequar cada teoria a
um sistema apropriado apenas a si mesmo.
O estilo de Kierkegaard, que faz com que sua escrita encontre espaço nos mais
diferentes âmbitos, como o filosófico, o religioso e o literário, se insere na via contrária à
imagem do pensamento estatutário, que se expressa pela forma do discurso objetivo e direto.
No entanto, não somente sua forma de expressão o coloca em uma posição crítica em relação
à tradição filosófica, mas também sua reflexão acerca do próprio estilo, que se encontra no
cerne de sua filosofia, pois se envolve com o problema da comunicação de uma teoria
filosófica que trate das questões existenciais.
Kierkegaard se preocupa com a liberdade do outro. Uma proposta coerente com essa
preocupação não pode se dar via discurso doutrinário, como em um processo que reduz a
educação à transmissão de conteúdos de professor para aluno. Álvaro Valls (2013, p. 74-75)
é taxativo: “Kierkegaard, não tendo, a rigor, uma doutrina nova para ensinar, recusa-se à
comunicação magistral. As pessoas com indigestão há que receitar um vomitório, e não mais
comida!”. É necessário que o lado positivo do processo resida em uma transmissão de saber
por parte daquele que ocupa o posto professoral ou há espaço para o ato de dispor-se como
guia? Continua Valls (2013, p. 75): “Afinal: será que precisamos de um novo Messias, ou
basta hoje um auxiliar que nos ajude a reler os textos antigos, talvez de maneira mais pessoal,
mais profunda e interiorizada?”.
Dessa maneira, a comunicação indireta aparece como a forma mais apropriada para
expressar o tipo de filosofia que Kierkegaard se propõe a fazer, bem como o tipo de
pedagogia que é possível daí derivar e do diálogo socrático que possibilita a proposta
kierkegaardiana de um pensamento que não se separa da existência e das dificuldades que lhe
são inerentes. A comunicação indireta torna-se uma tática fundamental para uma educação
filosófica por excelência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
_______. Ponto de vista explicativo da minha obra de escritor: uma comunicação direta,
relatório à História. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, 1986.
_______. Ménon. Trad. Maura Iglésias. 2 ed. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Loyola, 2001.
REALE, Giovanni. História da filosofia: filosofia pagã antiga. São Paulo: Paulos, 2005.
ZINGANO, Marco. Estudos de ética antiga. São Paulo: Paulus; Discurso Editorial, 2007.