Você está na página 1de 272

TRILHAS FILOSÓFICAS

ANO XI, NÚMERO 1, JAN.- JUN. 2018

Revista Acadêmica de Filosofia


Grupo de Pesquisa Filosofia e Educação
Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO)
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
Campus Caicó
Caicó – RN

Trilhas Filosóficas
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE - UERN

Reitor
Prof. Dr. Pedro Fernandes Ribeiro Neto

Vice-reitora
Profa. Dra. Fátima Raquel Rosado Morais

Diretor do Campus Caicó


Prof. Dr. Álvaro Marcos Pereira Lima

Coordenador do Curso de Filosofia


Prof. Dr. Galileu Galilei Medeiros de Souza

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia


Prof. Dr. José Teixeira Neto

Capa
Luli Esteves

Revisão
Prof. Esp. Geane Ferreira de Lima

Contatos
trilhasfilosoficas@uern.br
Curso de Filosofia do Campus Caicó - UERN
Av. Rio Branco, 725. Centro. CEP: 59300-000
Telefax: (0xx84) 3421-6513

http://periodicos.uern.br/index.php/trilhasfilosoficas

http://caico.uern.br/dfi/default.asp?item=curso-filosofia-caico-apresentacao

http://propeg.uern.br/proffilo/default.asp?item=proffilo

Como citar este número

SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Trilhas Filosóficas – Revista Acadêmica de Filosofia, Caicó,
ano XI, n. 1, páginas do artigo, jan.-jun. 2018. ISSN 1984-5561. Disponível em: < url completa >.
Acesso em: dia mês ano.

Trilhas Filosóficas
TRILHAS FILOSÓFICAS
Publicação do Curso de Filosofia do Campus Caicó/UERN, do Grupo de Pesquisa Filosofia e
Educação (UERN), e do Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO), Núcleo UERN

Editores responsáveis

Marcos Érico de Araújo Silva (UERN)


Galileu Galilei Medeiros de Souza (UERN)
José Teixeira Neto (UERN)

Conselho editorial

Dax Moraes (UFRN)


Galileu Galilei Medeiros de Souza (UERN)
José Teixeira Neto (UERN)
Klédson Tiago Alves de Souza (UFPB)
Marcos de Camargo von Zuben (UERN)
Marcos Érico de Araújo Silva (UERN)
Telmir de Souza Soares (UERN)

Conselho científico

Alvaro L. M. Valls (UNISINOS)


Antonio Jorge Soares (UFERSA)
Antonio Lisboa (UFCG)
David G. Santos (UBI, Portugal)
Emmanuel Appel (UFPR)
Filipe Ceppas (UFRJ)
Fransmar Costa Lima (UMESP)
Gustavo Caponi (UFSC)
Iraquitan de Oliveira Caminha (UFPB)
Jorge Miranda de Almeida (UESB)
José Gabriel Trindade Santos (UFPB)
Luis Benedicto Lacerda Orlandi (UNICAMP)
Maurício Rocha (UERJ, PUC-Rio)
Miroslav Milovic (UNB)
Nythamar de Oliveira (PUC-RS)
Paulo César Duque Estrada (PUC-Rio)
Roberto Lima (UFRN)
Rossano Pecoraro (UNIRIO)
Sílvio Gallo (UNICAMP)
Ulysses Pinheiro (UFRJ)
Yésica Rodriguez (UNGS-CONICET, Argentina)

Trilhas Filosóficas
Trilhas Filosóficas
SUMÁRIO

Apresentação 7

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, 13


nascida Lund, à cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do
filósofo sem mãe)
Alvaro L. M. Valls

A paidéia kierkegaardiana 45
Marcos Érico de Araújo Silva

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo 93


Freire
Jorge Miranda de Almeida

Kierkegaard y Kant: educación para la ética 125


Yésica Rodríguez

Entre o mestre e o discípulo nas Migalhas Filosóficas: a existência 155


educadora em Kierkegaard
Fransmar Costa Lima

Duas perspectivas sobre o professor no pensamento de 175


Kierkegaard
Humberto Araújo Quaglio de Souza

A pedagogia do travessão 197


Ramon Bolívar C. Germano

Em torno a Simeão Estilita: da poética ascética à poética da fé 211


Eduardo Campos

As dúvidas de Kierkegaard: ou sobre o legado pedagógico do 223


romantismo alemão
Jean Vargas

Trilhas Filosóficas
As ironias do conceito socrático em Kierkegaard 239
Gabriel Kafure da Rocha
Estela Araújo Silva

Considerações sobre estilos de escrever e de educar 259


filosoficamente: Kierkegaard e a antiguidade grega
Leonardo Araújo Oliveira

Trilhas Filosóficas
ISSN 1984 - 5561

APRESENTAÇÃO

A revista acadêmica do Departamento de Filosofia da UERN,


Campus Caicó, Trilhas Filosóficas, através do Grupo de Pesquisa Filosofia
e Educação, e do Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO) tem a
honra de convidar os (as) leitores (as) para a leitura filosófica sobre a
temática da Educação pensada a partir de Kierkegaard. Com este Dossiê
Kierkegaard e a Educação a revista chega a seu volume 11, número 1, de 2018.
A partir deste número a revista Trilhas Filosóficas procurará publicar um
Dossiê, um número ao ano em que pesquisadores pensarão a Educação a
partir de um determinado filósofo.
O artigo de Alvaro Valls não irá discutir algum aspecto da educação
em Kierkegaard, mas propõe uma correção nas interpretações
tendenciosas, equivocadas sobre a educação recebida por Kierkegaard. O
fato é que Kierkegaard é apresentado como um pensador de personalidade
sombria decorrente de uma formação rigorosa repleta da melancolia,
tristeza e da maldição da ira de Deus que se abatera sobre seu pai. Neste
enquadramento desproporcional da figura do pensador fica difícil
contemplá-lo pelo que ele em realidade é. Alvaro Valls, em estilo bem
kierkegaardiano, dosando ironia e humor na escrita, oferece ao leitor uma
relativização dessa interpretação tão em voga, desvelando o lado positivo,
alegre, saudável da educação e convivência da mãe de Kierkegaard com seus
filhos. Sim! O maior filósofo do século XIX tem uma mãe! No primeiro
artigo, pois, o primeiro (Reichmann foi na verdade o primeiro, mas traduziu
apenas fragmentos de obras de SK) e até então único tradutor de
Kierkegaard, direto do dinamarquês, no Brasil, o membro de honra da

Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 7-12.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
8

SOBRESKI, sempre presente e atuante, e ex-presidente da ANPOF,


oferece ao público brasileiro, pela primeira vez, uma imagem mais
verdadeira da personalidade rica e saudável do filósofo de Copenhague.
Alvaro Valls continuará sendo, por muitos longos anos, entre nós
brasileiros, aquela “‘ave rara’ brasileira (como aquele personagem de Lima
Barreto, o homem que sabia javanês) (p.7)1”. Isto não só por causa do
conhecimento do idioma dinamarquês, mas sobretudo pela sua
familiaridade com a tradição filosófica.
Marcos Érico elabora uma introdução à filosofia de Kierkegaard
enquanto paidéia kierkegaardiana. Leva o leitor à compreensão da filosofia de
Kierkegaard enquanto exigência de modificação da própria existência.
Educação em sentido grego, quer dizer, como paidéia, vinculado à ideia de
areté configura a filosofia de Kierkegaard. Esta pretende retirar o homem da
ilusão ou torná-lo atento para que possa efetivar o movimento desde si
mesmo (Individ) para si-mesmo (Selv; den Enkelte). Este movimento de
singularização do indivíduo faz da filosofia de Kierkegaard uma paidéia em
sentido grego. Para tornar isto possível Kierkegaard cria seu Projeto
Filosófico, ou seus dois olhos para ver com nitidez a coisa mesma: a
produção pseudônima e religiosa.
Jorge Miranda conhecido entre os estudiosos da filosofia e da
educação por ter escrito o primeiro livro sobre Kierkegaard e Paulo Freire
(A educação em Kierkegaard e Paulo Freire: por uma educação ético-existencial), em
seu artigo, conduz o (a) leitor (a) a pensar as exigências ético-existenciais da
educação. Dialogando com Freire, Jorge Miranda, encontra um horizonte
hermenêutico freiriano para pensar a educação brasileira a partir da

1VALLS, Alvaro. Entre Sócrates e Cristo: ensaios sobre a ironia e o amor em


Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 7-12.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
9

contribuição kierkegaardiana. Neste diálogo o autor mostra que o si-mesmo


tendo se singularizado promove a libertação não só de si-mesmo, mas
também do outro. É possível e, mais ainda, é necessário que no movimento
da singularização aconteça a abertura para o outro, para o tu, para que o si-
mesmo não se feche numa forma de desespero. A reduplicação
kierkegaardiana e o equivalente freiriano de testemunho são alguns dos
conceitos centrais deste enriquecedor diálogo em que a voz do outro e a
dimensão ético-existencial da educação desvela criticamente o status quo de
uma educação e prática pedagógica a serviço do poder.
No quarto artigo deste Dossiê Kierkegaard e a Educação nuestra
hermana argentina, amiga dos estudiosos (as) da SOBRESKI, Yéssica
Rodriguez, tematiza o problema da liberdade e da escolha a partir da
educação como caminho para a ética em Kant e Kierkegaard. Yéssica
Rodriguez dialogando com Kant sobre a questão em causa, retoma a ideia
da sensibilidade e da felicidade mediada pela educação, sobretudo a partir
da Antropologia em sentido pragmático. Traz Kierkegaard para este debate
aproximando o pseudônimo B, o Juiz e esposo, de Ou, Ou, da posição
kantiana de não exclusão da felicidade e da sensibilidade, mas
reconfigurando, retomando, reconciliando a existência de modo não egoísta
com a sensibilidade. O conceito de apropriação é central porque expressa o
indivíduo situado em seu contexto histórico-social, mas ao mesmo tempo
exige a eleição de si mesmo enquanto tornar-se si-mesmo que a educação
possibilita. Aqui, a angústia, como ensina Vigilius Haufniensis/Kierkegaard,
enquanto possibilidade de poder ser, exorta o indivíduo a ser livre.
No quinto artigo, Fransmar Costa Lima, problematiza a educação
em Kierkegaard como uma temática central na filosofia do dinamarquês,
não obstante, sobretudo no Brasil, não ser um aspecto muito investigado

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 7-12.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
10

entre os estudiosos. Também evidencia uma crítica entre a educação e a


pedagogia quando esta última na maioria das vezes quer assumir o papel
daquela. Muito edificante a distinção kierkegaardiana entre mestre,
discípulo, aprendiz, por exemplo, em que na relação com o aprendiz
predomina a transmissão de conteúdo e, portanto, dependência do mestre,
enquanto na relação entre mestre e discípulo implica em reduplicação,
subjetividade, singularização por parte do discípulo tornando-o livre.
No sexto artigo, Humberto Quaglio, atual presidente da
SOBRESKI, realiza uma problematização das traduções dos termos
“mestre” e “professor” com o intuito de que estas duas perspectivas
possam contribuir com o debate atual sobre o papel dos professores e a
atividade dos educadores. O professor, em Kierkegaard, enquanto
educador, é aquele que contribui para tornar o aluno atento sem adestrá-lo
ao moldá-lo com meras transmissões de conhecimento.
No sétimo artigo Ramon Bolívar meditará sobre a educação em
Kierkegaard como pedagogia do travessão. Expressão inspirada em As obras do
Amor: o “traço de suspensão”. Isto para mostrar que o maior benefício que
se faz para outro deve ser realizado na atmosfera da suspensão, do
travessão. Do contrário, o “que’, os fatos e feitos, prevalecem sobre o
“como”, a maneira ou modo de fazer, e, assim, o benefício transforma-se
em malefício pelo simples fato de criar uma dependência no outro e não o
libertar. A pedagogia do travessão transubstancia-se em pedagogia do amor
e da graça justo por não impor nada, mas apenas por aludir, acenar
provocando a liberação do si-mesmo, colocando-o no movimento de
apropriação.
No artigo que segue Eduardo Campos presenteia o leitor com uma
meditação a partir de Temor e tremor de Kierkegaard tendo a pretensão

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 7-12.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
11

saudável de oferecer uma chave nova de interpretação da obra. Essa


perspectiva que Eduardo abre, como horizonte de pensamento, sobre o que
está em causa, não obedece uma leitura dogmatista e acadêmica em sentido
degenerado. Segue, porém, o estilo acadêmico kierkegaardiano do pensador
subjetivo. Eduardo Campos traz o conceito de desprendimento de Mestre
Eckhart como contraponto desta nova leitura de Temor e tremor seguindo o
tom sugerido pelo título Movimentos e posições, pensado por Kierkegaard
originariamente, e, também, pela atmosfera eremítica do pseudônimo que
inicialmente foi cotado para ser autor da obra, a saber, Simeão Estilita, o
Velho.
Jean Vargas problematiza Kierkegaard como educador levando o
leitor (a) a dar-se conta que, na verdade, o modo peculiar e profundo do
pensamento do Sócrates de Copenhague resulta justamente na dificuldade
que o leitor encontra para enquadrá-lo numa corrente de pensamento ou
escola filosófica. Porém é possível e necessário extrair algum conhecimento
de Kierkegaard educador. Jean Vargas, então, investe numa perspectiva de
pesquisa pouco estudada no Brasil, a saber: a recepção kierkegaardiana da
ideia de educação romântica.
No décimo artigo Gabriel Kafure da Rocha e Estela Araújo Silva
introduzem o (a) leitor (a) no socratismo kierkegaardiano a partir da
Dissertação do Sócrates de Copenhague. Assim, no artigo, ganhará destaque
a ironia tanto em Sócrates quanto nas visões pós-socráticas. Os autores
refletem sobre a transposição da ironia antiga para a ironia controlada ou
dominada no contexto do filósofo dinamarquês.
Nosso Dossiê Kierkegaard e a Educação finaliza com o artigo de
Leonardo Araújo Oliveira. O autor analisa os conceitos de paidéia e areté na
perspectiva de recolher a ideia de formação e educação para a cidadania na

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 7-12.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
12

antiguidade. Posteriormente, avançando na questão o autor irá procurar


mostrar alternativas pedagógicas em Sócrates relacionando à compreensão
que Kierkegaard tem do “sábio simples da antiguidade” culminando na
comunicação indireta extraindo modos para educar e aprender
existencialmente. Fazendo da pedagogia uma dialogicidade e, portanto, uma
pedagogia da interioridade sensível à dimensão política.
A ideia nesta Apresentação não é resumir os artigos, mas tão só
explicitar a lógica de articulação temática entre eles e, ao fazer isso,
esperamos ter deixado os (as) leitores (as) esfomeados. Muitíssimo obrigado
a todos os autores e autoras! Passemos agora ao banquete: Bon appétit!

Marcos Érico de Araújo Silva


Um dos Editores da revista Trilhas Filosóficas e Membro da SOBRESKI

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 7-12.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
ISSN 1984 - 5561

POSSÍVEIS E REAIS CONTRIBUIÇÕES DE ANE


SØRENSDATTER KIERKEGAARD, NASCIDA LUND,
À CULTURA OCIDENTAL –
(UM ENSAIO CONTRA O MITO DO FILÓSOFO SEM
MÃE)

[POSSIBLE AND ACTUAL CONTRIBUTIONS OF ANE


SØRENSDATTER KIERKEGAARD, BORN LUND, TO THE
OCCIDENTAL CULTURE –
(AN ESSAY AGAINST THE MYTH OF THE MOTHERLESS
PHILOSOPHER)

Alvaro L. M. Valls

Professor Titular da UNISINOS (aposentado da UFRGS). Pesquisador 1 B do CNPQ. Mestrado e


Doutorado com M. Theunissen na Universidade de Heidelberg, Alemanha. Traduziu do dinamarquês
vários livros de Kierkegaard e, do alemão, algo de Carl Schmitt, Adorno e Habermas. Membro da
Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard (SOBRESKI).
(E-mail: alvaro.valls@gmail.com)

Recebido em: 08 de março de 2018. Aprovado em: 09/03/2018

Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43. ISSN 1984 - 5561


Dossiê Kierkegaard e a Educação
14

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

Resumo: O presente artigo, em forma ensaística, não pretende expor


nenhuma teoria kierkegaardiana da educação. Antes se esforça por remover
alguns mitos a respeito da própria educação de Kierkegaard, e para tanto
busca basicamente enfatizar o lado saudável de uma figura materna – em
geral ignorada ou menosprezada pelos comentadores. Além disso, denuncia
preconceitos de interpretações dinamarquesas, alemãs, francesas e
brasileiras.

Palavras-chave: Søren Kierkegaard. Ane Sørensdatter Kierkegaard. Georg


Brandes. Casamento e procriação. Relações mãe/filho. Psicólogos e
problemas psicológicos.

Abstract: The present article, in essayistic form, does not intend to expose
any kierkegaardian theory of education. It rather makes an effort to remove
some myths about Kierkegaard’s own education, in order to which it tries
basically to emphasize the sound, wealthy side of a maternal-figure –
generally ignored or disdained by several commentators. Beyond, it
denounces some prejudices of Danish, German, French and Brazilian
interpretations.

Keywords: Søren Kierkegaard. Ane Sørensdatter Kierkegaard. Georg


Brandes. Marriage and procreation. Mother/son relations. Psychologists
and psychological problems.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
15

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

“Vom Vater hab ich die Statur


Des Lebens ernstes Führen,
Vom Mütterchen die Frohnatur
Und Lust zu fabulieren”
(J. W. GOETHE)1

Sobre Søren Aabye Kierkegaard pesa um destino curioso: ele é um


pensador que pode ser refutado sem ser lido, condenado sem ser ouvido,
desprezado e ridicularizado a partir do ouvir-dizer. Uma das maiores
cabeças filosóficas de nosso país explicou certa vez que não lia Kierkegaard
porque este mesmo havia escrito “que não era filósofo...” Nosso colega,
filósofo eminente e cidadão da Alemanha, nem se dera ao trabalho de
verificar o resto da frase que estava citando: “... mas apenas um homem
casado”, – o que evidentemente o obrigaria a pensar que a citação só podia
provir de um pseudônimo (o Juiz Wilhelm, de Ou – Ou II), e não do próprio
autor2.
A tradição de interpretá-lo forçando a barra, ou “violentando o
fenômeno” – ao contrário do modo de estudo do “observador erótico” que
ele propunha no primeiríssimo parágrafo de sua dissertação sobre a ironia3
– é bastante antiga: já Georg Brandes (1842-1927), o primeiro talvez a
publicar em alemão um livro sobre a vida e a obra dele, implantou um estilo

1 “Do meu pai tenho a estatura / e o jeito sério de levar a vida / Da mãezinha a natureza
alegre / e o gosto para contar estórias. “ (J. W. von Goethe, Xênias).
2 “Sabes que nunca me fiz passar por filósofo... Em parte para te provocar um pouco...

costumo apresentar-me na qualidade de homem casado” (KIERKEGAARD, 2017, p.


181). No original: “Du veed, jeg har aldrig givet mig ud for Philosoph... Deels for at drille
Dig lidt, ... pleier jeg at træde op som Ægtemand” (SKS 3, p. 166).
3 O Conceito de Ironia (1991), primeiro parágrafo da Introdução: “O observador deve ser um

erótico, nenhum traço, nenhum momento pode ser indiferente para ele; [...] Pois, se bem
que o observador traga o conceito consigo, importa, mesmo assim, que o fenômeno não
seja violentado, e se veja o conceito surgindo a partir do fenômeno” (KIERKEGAARD,
1991, p. 23).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
16

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

de análise esquemática e viciada: a crítica biográfica-psicologizante. Para


Brandes, podemos explicar Kierkegaard e sua obra (diagnosticando-o) a
partir de três figuras: o pai melancólico, a noiva manipulada e torturada, e
o jornal satírico O Corsário. Três influências traumatizantes, que teriam
levado o genial escritor e crítico a desviar de rumo, idealizar uma religião
desumana e perder seu realismo.
Georg Brandes é aquele intelectual dinamarquês que leva o mérito
de ter sido o primeiro a divulgar em círculos universitários as ideias e as
obras de Nietzsche, até então desdenhado pelos alemães, e Nietzsche o
louva por isto. Nascido em Copenhague em 4/2/1842, Brandes residiu por
vários anos em Berlim entre as décadas de 70 e 80, vindo a morrer em 1927,
em Copenhague, como um crítico literário bastante renomado. Dele
possuímos o famoso texto: Nietzsche. Un ensayo sobre el radicalismo aristocrático
(BRANDES, 2004), que inclui no anexo a tradução da correspondência
com Nietzsche. Ali se acha a importante sinalização de Brandes a Nietzsche
sobre Kierkegaard, que podemos, para variar, copiar da tradução mexicana:

Existe un pensador escandinavo cuyas obras le


interesarían mucho si pudiera leerlas en alguna
traducción: pienso en Sören Kierkegaard (1813-1855),
que es, según mi concepto, uno de los más profundos
psicólogos del mundo. Un pequeño libro que escribí
acerca de él no da imagen suficiente de su genial
personalidad, porque es un panfleto polémico que fue
realizado para paralizar su influencia. Creo que
psicológicamente es lo más refinado que en mi vida he
escrito (BRANDES, 2004, p. 102; Carta de Brandes a
Nietzsche de 11/1/1888).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
17

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

Como se sabe, Nietzsche respondeu em 19/2, de Nice,


manifestando um propósito que infelizmente não conseguiria cumprir:
“Pienso, al llegar a Alemania, empezar a trabajar en el problema psicológico
Kierkegaard” (BRANDES, 2004, p. 104). O “pequeno livro”, do qual
Brandes se orgulhava, embora reconhecendo seus limites polêmicos, tem
muita responsabilidade pela degradação de Kierkegaard, de “um dos mais
profundos psicólogos do mundo” (juízo que Jaspers endossará em várias
edições da Psicopatologia Geral, na Psicologia das Visões de Mundo e em Razão e
Existência), em um “problema psicológico”. – Em vez de aprender a análise
psicológica com o genial observador da alma humana, muitos comentaristas
começam a pesquisar os possíveis traumas de infância, as influências e as
pressões negativas do pai melancólico sobre o espírito exacerbado do filho
caçula, e coisas tais. A figura paterna tornou-se dominadora e
absolutamente decisiva, enquanto a figura da mãe foi sendo completamente
recalcada. Brandes intitulara seu livro: Søren Kierkegaard: En Kritisk
Fremstilling i Grundris (Søren Kierkegaard: Uma exposição crítica em linhas gerais,
Copenhague, 1877). Com 28 capítulos e uma introdução, valoriza muito os
textos estéticos como o Diário do Sedutor e In Vino Veritas, e combate a
religiosidade profunda do autor, que antes tanto impressionara o jovem
Brandes, de origem judaica, que até chegara a pensar em se converter ao
cristianismo. Para criticar as posições agora inaceitáveis, Brandes introduz
um método biográfico-psicológico (que talvez estejamos nestas linhas
aplicando contra ele mesmo).
O catálogo de J. Himmelstrup, Søren Kierkegaard. International
Bibliografi (1962) traz a referência, sob o número 4478, da tradução para o
alemão deste pequeno livro: Søren Kierkegaard. Ein literarisches Charakterbild.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
18

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

Autorisierte deutsche Ausgabe, übers. v. Adolf Strodtmann, Leipzig 1879 (IV +


240 p.) A obra traduzida recebeu em seguida várias recensões, o que deve
ter encorajado Brandes a publicar outros livros em alemão: os itens 4486,
4487 e 4488, com títulos como Skandinavische Persönlichkeiten, ou Kierkegaard
und andere skandinavischen Persönlichkeiten, já no século XX. O enfoque é
sempre, portanto, o das “personalidades”, ou seja, imagens do caráter, da
psicologia, da individualidade destacada dos grandes escritores num mundo
de figuras pequenas, niveladas e massificadas. Há que ressaltar ainda a
importância para o livro de Brandes do tradutor Adolf Strodtmann.
Ficaram muito amigos, em Berlim, um foi hóspede do outro, mais velho, e
acabou ficando até com a esposa do anfitrião, num arranjo ótimo para todas
as partes. Continuaram a colaborar, e enquanto Adolf, que fora prisioneiro
de guerra na Dinamarca, publicava sobre a Escandinávia orientado por
Brandes, este penetrava com ajuda de seu tutor nos círculos críticos e
culturais alemães.
A partir daí, das contribuições do crítico literário e cultural G.
Brandes, com suas análises relacionando psicologia e obra produzida, surge
a tradição da imagem mítica, lendária, do sinistro Severino Campo-Santo
(“Kierkegaard” = Cemitério), o descabelado pensador dinamarquês, genial,
excêntrico, “hamlético”, desequilibrado, educado nos terrores de um
cristianismo da cruz e do sangue vertido em favor dos pecadores, um ser
humano criado totalmente guacho (como um terneiro sem mãe) por um
melancólico ancião, deveras inteligente, mas remoído por um desmesurado
sentimento de culpa. Um pai que teria sido um pecador desde menino, e
que logo adiante enriquecera de maneira assombrosa, tivera um primeiro
casamento infrutífero, imensamente vantajoso em termos financeiros (pelo

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
19

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

dote da noiva, irmã solteirona – com 36 anos – do sócio da firma: “Com


um capital próprio de 568 táleres do banco real, Kirstine era um bom
Partido”, conta J. Garff (2000, p. 4.)4, e que ao enviuvar engravidara a mãe
de Kierkegaard antes de casar com esta, ou talvez, quem sabe, até mesmo
antes de enviuvar (adúlteros! não teriam respeitado a pneumonia da esposa
legítima)...
Já vimos escrito em teses de doutorado que Søren Aabye teria seus
complexos psicológicos (angústias ou supostos desequilíbrios) por ter
nascido uns 5 meses após o casamento dos pais (coisa bem difícil e até
improvável, para um sétimo filho, parido 4 anos após o sexto irmãozinho,
e 16 anos depois da irmã mais velha, já que Maren Kirstine era do 7/9/97,
e Niels Andreas de 30/4/1809).
Quanta bobagem há nestas lendas! Nossa intenção aqui não é criar
novas lendas diametralmente opostas a esses mitos. Nem demonstrar, por
exemplo, que Søren deveu sua personalidade e sua obra à mãezinha
analfabeta; longe de nós tal absurdo! Mas gostaríamos sim de relativizar tais
mitos, colocá-los nos devidos lugares. Gostaríamos de iniciar aqui a
remoção de alguns destes mitos, ou, pelo menos – e já nos bastaria – tentar
levar os leitores a meditar melhor sobre a questão da relação da situação
psicológica de um autor com sua obra. Diferenciar o autor psicólogo do
escritor psicologicamente problemático! Para isto, queremos tentar ver,
imaginar e entender as situações.
Só para adiantarmos um aperitivo: Kierkegaard tinha mãe, sim
senhores, e se ele viveu 42 anos, até seus 21 anos (a exata metade de sua

4 “Med en egenkapital på 568 rigsbankdaler var Kirstine et godt parti...”

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
20

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

vida, primeira e decisiva para a educação da personalidade) a mãe estava


bem viva e dentro de casa, cuidando do marido e dos filhos. Fora uma
pobre camponesa da Jutlândia, todos já ouviram dizer, mas em geral
esquecemos de que o pai de Kierkegaard fora também, até os 12 anos, ou
algo assim, um paupérrimo camponês dessa mesma Jutlândia. Topamos
com uma daquelas “ilusões de óptica ou de acústica”, tão criticadas pelo
filósofo, quando o professor honorário da Sorbonne Jean Wahl (que no
dizer de Henri-Bernard Vergote “sabia tudo o que os alemães já haviam
escrito”) escreve, escandalizado, preocupado com a cena pecaminosa, que
“o velhote desposou a criada”, grávida! Uma ilusão acústica? Só precisamos
de um pouco de ciência exata, da matemática mais elementar, para
desmontar tais quiproquós.

“O VELHOTE CEDEU À CARNE E TEVE DE CASAR COM SUA


EMPREGADA...”

Se Michael Pedersen Kierkegaard nasceu em 12/12/1756 e seu


sétimo filho em 5/5/1813, é lógico que ao completar este último seus 13
anos, e chegar à adolescência em maio de 1826, seu “old man” já estava
chegando aos 70, e era bem velho, pelos padrões da época. Søren era, de
fato, filho de um velho; só que, em 26/4/1797, ao contrair suas segundas
núpcias, com a “servante” (na expressão de Jean Wahl) o assim chamado
velhote (“vieillard”) ainda gozava, se a matemática vale para todos, de seus
40 anos. Ora, quando Søren morreu com 42 anos e meio (em 11/11/55)
ninguém o considerava um ancião ou velhote, mas muitos estranharam que

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
21

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

morresse tão jovem. (Nem tanto, aliás: 5 dos irmãos faleceram com menos
idade!) – Voltando ao caso do pai: tendo vindo para a Capital, pelos 12 anos
de idade, depois de uma vida ao ar livre, cuidando de ovelhas, e tendo se
dedicado ao comércio de lãs, o que não chega a ser uma atividade estafante,
tendo se expandido nas lides de um comércio internacional florescente e
enriquecido de forma espantosa, um homem de 40 anos 4 meses e 14 dias
não merecia, convenhamos, ser chamado de “velhote” (“vieillard”), como se
fosse um Abraão deixando morrer Sara e desposando a serva Agar, de baixa
condição. Aliás, por rico que fosse, o ex-camponês não era um príncipe,
provavelmente não seria reconhecido pela fina flor da sociedade de
Copenhague como se fizesse parte da chamada “bedre Portion” (“a parte
melhor”, como o explica Bruce Kirmmse (1990)), a elite cultural da Capital
do Reino. Há que dar, então, um bom desconto à expressão infeliz de Wahl,
sobre a falta, o pecado e a miséria deste pai, suposto ser tão espiritualizado,
que teria infelizmente cedido à carne de modo vergonhoso. Nos Études
Kierkegaardiens, escreve ele que Søren Kierkegaard um dia

[...] veio a saber da falta de seu pai e de sua miséria –


falta dupla: o jovem pastor nas planícies desoladas
elevou sua voz contra Deus, amaldiçoou Deus; e o
velhote cedeu à carne e desposou sua empregada.
Duas faltas contra o espírito, da parte daquele que era
para ele a encarnação do espírito (WAHL, 1974, p. 8,
grifo nosso, tradução nossa)5.

5 No original: “[...] a appris la faute de son père, et sa détresse – double faute: le jeune pâtre
dans la lande désolée a élevé sa voix contre Dieu, a maudit Dieu; et le vieillard a cédé à la
chair et a épousé sa servante. Deux fautes contre l’esprit de celui que était pour lui
l’incarnation de l’esprit”.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
22

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

Deixemos sem discutir aqui o pecado do pobre garoto, que,


sofrendo os rigores do frio e da fome, rebela-se contra um Deus impiedoso,
sobe num morrinho e levanta a mão ameaçadora contra o Criador. Melhor
nos concentrarmos com prazer naquele pecado da carne, que teria
consistido no desposar urgentemente uma criada. Convenhamos que o
professor Jean Wahl, ao escrever tal coisa nos idos de 1938, bem pode ter
deixado sua censura contaminar-se por algum insidioso preconceito
socioeconômico. O “velho” rico e poderoso teria sido obrigado a casar com
a empregadinha, já prenha, da falecida. O que seria, porém, pior: um assédio
de patrão contra uma empregadinha doméstica indefesa? Nascida em
18/6/68, a “pequena Ane” deve ter engravidado, aos 28 anos e meio, do
viúvo Michael quando este completava, em inícios de dezembro de 1796,
exatos 40 anos. Ou será que Wahl supõe, subconscientemente, que a
vergonha fora ter ido para a cama com uma humilde serviçal, não como
“um rei que se apaixona por uma mocinha de condição humilde” (ver a
respectiva fábula das Migalhas Filosóficas), mas sim como um “velhote”
ricaço que voluptuosamente atira-se ao catre de uma pobretona, baixinha e
gordinha, de olhos saltados? – Quanta falta de gosto, antiestética e
antieconômica, quanta tesão reprimida, quanta libido explodindo tão fora
de hora e lugar! No quarto da criada, nem bem passados 9 meses da morte
(em 23/3/96), da sempre lembrada Kirstine Nielsdatter, nascida Royen!
Consideremos o contraste com a patroa, que não dera filhos a
Michael Pedersen. Haviam casado no mês das noivas, no dia 2/5/94, e
estiveram juntos por 22 meses e meio, o que, no ritmo conjugal das
segundas núpcias teria permitido ao menos um filho. – Já a sequência dos
partos da pequena Ane foi bem diferente: Maren Kirstine, a primogênita,

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
23

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

com um dos nomes a homenagear a falecida esposa do pai e antiga patroa


da mãe, nasceu aos 4 meses e meio de casados desses, que nem tinham
podido esperar o mês das noivas, oficializando a união, com contrato pré-
nupcial, aos 26 de abril: é que havia pressa! Após a primogênita, duas outras
meninas, num bom ritmo, uma a cada ano ímpar (em 25/10/99 Nicoline
Christine e num outro 7 de setembro, o de 1801, Petrea Severine, batizada
em homenagem a ambos os avós, paterno e materno). Aí os pais deram um
tempo e foram morar fora da Capital com as três meninas. Mas antes de 4
anos, no castelinho rural da família, Peder Christian, o futuro bispo, inicia
em 6/7/1805 (ano ímpar) a linhagem masculina. Temos Peder em 1805,
Søren Michael em 1807 (23/3, homenageando avô materno e pai) e Niels
Andreas em 1809 (30/4). Fechando esta série de três meninos, que
harmonizou com as três mocinhas, o sexto filho foi destinado ao comércio,
como o pai, e enviado mais tarde à América para exercitar-se no comércio
internacional, vindo a morrer porém em Nova Jersey, aos 24 anos, em
1833).
Com três meninas já mocinhas e três garotos pequenos, Michael e
Ane deram mais um tempo, ou haviam resolvido parar, e o agora senhor
maduro, bem aposentado, e sempre mais rico (apesar de seus esforços
contrários), adquiriu por estas alturas um casarão bem no centro da Capital,
onde então a família foi surpreendida, quase exatos 4 anos após o
nascimento do sexto filho, com a chegada do filhotinho tardio, o serôdio
Søren Aabye, aos 5/5/1813. Seu prenome homenageia mais uma vez o avô
materno, e o nome do meio um contraparente grã-fino que desapareceu da
história. O pequeno Søren parece ter vindo ao mundo meio sem

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
24

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

planejamento, já bastante atrasado, e pelo menos serviu de lição para que


doravante os pais dessem preferência à educação, mais do que à procriação.

ANINHA, A MÃEZONA

Quando um professor da Sorbonne fala da mãe de um pensador


chamando-a de “servante” pode estar sendo preconceituoso. Ora, direis,
Kierkegaard nunca escreveu uma linha sequer sobre sua mãezinha! – E o
que é que isto prova? A mãe da gente não é um assunto pessoal, privado?
Para que expô-la à boca das multidões? – É, mas ele talvez a escondesse,
por vergonha dela; – ou não! – Mas, dirão ainda, Peder nos conta que ele
estava ausente quando ela morreu; é verdade, há que examinar esta questão,
na hora adequada. Contudo, perguntamos, por que é que os intérpretes-
biográficos não se detiveram sobre a vida dela, a partir dos dados que já
existem, em quantidade suficiente? Parece ser uma interessante e instrutiva
questão.
Na vida de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, destacam-
se três fases: a primeira, de solteira, encerra-se pelos 29 anos de idade: a
segunda, dos sete partos bem sucedidos, de 7/7/1797 a 5/5/1813, dura 16
anos; depois, dedicados ao lar e à família, uns 21 anos como mãe de sete,
dois dos quais morrem quando ela tem cerca de 50 anos (Søren Michael aos
12 anos, num acidente escolar, em 1819; e Maren Kirstine aos 24 anos,
solteira, em 1822). São 67 anos de uma vida bem aproveitada. Primeiro, a
pobre e trabalhadora Aninha; a seguir, a cônjuge do comerciante bem
sucedido; por fim, a matriarca dos sete filhos, que ainda viu sete (ou 8)

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
25

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

netos, de suas filhas, casadas com os irmãos de Peter W. Lund. A imagem


que vem à mente é a da galinha rodeada de pintos.
Existe desta última fase um retrato pintado (demonstração burguesa
de status) de Ane Kierkegaard, e isto não é um fato banal. Homenagem
mais previsível seria que, no batismo, alguma neta tomasse o nome da vó:
e de fato, a filha número 3, Petrea Severine (que transmitirá ao quarto filho
o nome composto Peter Severin), batizou sua primogênita como Anne
Henriette Lund (honrando o nome da avó materna junto ao do pai, Henrik
Hansen Lund). Esta, a mais querida sobrinha de nosso pensador, 16 anos
mais jovem que ele, ficou conhecida pelo segundo nome. Parece uma
personalidade cativante. Sua relação com o tio mereceria ser bem melhor
estudada. Estamos sugerindo que teremos muito a aproveitar quando
alguém pesquisar as relações altamente positivas e saudáveis de Søren
Kierkegaard: com o querido mestre e amigo Poul Martin Møller (da
dedicatória fascinada e fascinante do Conceito de Angústia); com o
companheiro de estudos e fiel amigo de infância Emil Boesen; e com a
sobrinha Henriette Lund. A netalhada (Kierkegaard-)Lund era composta,
aliás, de 6 meninos e de duas meninas: Sophie Vilhelmine e esta nossa Anne
Henriette (“Jette Lund”). Voltando à avó Ane (Lund por um outro ramo),
diga-se que ela foi sogra de um comerciante de têxteis e de um importante
executivo do Banco Nacional. Só não chegou a conhecer nem a primeira,
nem a segunda esposa de Peder Christian, e tampouco o neto que veio deste
segundo casamento, Pascal Poul.
Anna Henriette tinha 5 anos quando a avó faleceu. Passemos então
o quadro, o retrato pintado da esposa do rico comerciante. Vemos aí uma
senhora muito bem vestida, gordinha sem ser propriamente obesa. Cabelos

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
26

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

escuros e cacheados, olhos firmes que se dirigem direto ao pintor ou ao


espectador do quadro, e ao mesmo tempo bondosos, suaves e quase alegres;
a boca, suavemente fechada, parece esboçar um sorriso, emanando alegria
de viver; o olhar sugere algo da cumplicidade de quem conhece e valoriza
as coisas boas da vida. Exteriormente, a figura lembra a personagem da
sogra de Mozart, no filme Amadeus, a mãe de Constança, mas Ane
Sørensdatter é discreta, e não impertinente como aquela que teria inspirado
a ária da Rainha da Noite. Não, Ane Kierkegaard parece mesmo uma
mulher tranquila, que sabe fazer tudo o que é preciso. Uma mulher que
decerto pensa no marido, na casa e nos filhos, e nos netos. Uma mulher
feliz, com jeitão de amigona. É gordinha, mas tem pescoço, seu queixo
arredondado destaca-se da gola rendada, seu rosto está envolto levemente
por uma touca de babado que lhe dá um ar burguês, nada aristocrático: uma
senhora burguesa, da primeira metade do século XIX, bem de vida e de
bem com a vida, alegre com seus sete filhos e seus oito netos. Quando bem
observada, é simpática, embora à primeira vista seus olhos avancem sobre
o observador. Fato relevante, sua imagem não mostra nenhuma joia, nem
colar, nem brincos, nada (talvez uma marca da tradição pietista?), vemos
apenas sua pele macia e arredondada, a testa graúda, e as vestes de tecidos
coloridos. Seu único adorno, além das vestes, é o cabelo escuro nos dois
ângulos da testa generosa. Uma mãezona, diríamos hoje. Podemos até
imaginá-la doente, mas sempre pensando antes nos outros do que nela
mesma. Generosa, sem dúvida.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
27

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

A mãe do filósofo

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
28

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

Como fora, porém, a infância da pequena Ane? Pelos relatos que


chegaram a nós, ela teve uma infância bem pobre e uma adolescência e
mocidade de múltiplos serviços. Aproveitemos a descrição que J. Garff nos
dá de sua infância e juventude:

Ane nasceu em 18 de Junho de 1768 como a filha mais


jovem de Maren Larsdatter e de Søren Jensen Lund, o
qual consta ter sido um homem alegre e engraçado
[munter og skjemtsom] de Brandlund, na Jutlândia central.
Possuíam uma vaca e quatro ovelhas e foram além
disso abençoados com dois filhos e quatro filhas, das
quais uma se chamava Mette e as outras três Ane, Ane
e Ane. A escolha dos nomes poderia provocar alguma
confusão, e então, para simplificar, chamavam a mais
moça de “Aninha” (Pequena Ane). Após sua
Confirmação, esta viajou para Copenhague e ficou
primeiramente a serviço de seu irmão, Lars Sørensen
Lund, que casara com a viúva de um destilador de
aguardente e portanto com a destilaria em Landmærket;
mas os negócios eram tão miseráveis que Ane em breve
se transferiu para a casa de Mads Røyen, de onde em
1794 foi passada adiante [blev sendt videre til] ao recém
casado Michael Kierkegaard. Com sua família parece
que Ane quase não teve mais contatos. Quando sua
filha foi batizada, Lars ainda foi um dos padrinhos,
porém no batismo da segunda filha o séquito era mais
ilustre, e por isso o irmão destilador de aguardente não
estava presente. A julgar pelas parcas fontes, ela deve
ter sido uma mulher simpática, pequena, redondinha,
de ânimo simples e alegre. É verdade que não sabia
escrever bem, e precisava de ajuda para assinar
documentos oficiais. Talvez soubesse ler um pouco,
mas não terão sido leituras profundas, os poucos livros
que ela possuía eram os Salmos e as Rimas Históricas de
Hagen para o Ensino das Crianças (Hagens Historiske Salmer
og Riim til Børnelærdom) e a Harpa de Sião, um presente de
Natal para a Comunidade Cristã, de Lindberg (Zions Harpe
– en Jule-Gave til den christne Menighed) com canções de,
entre outros, Kingo, Brorson, Ingemann, Grundtvig e

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
29

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

do próprio Lindberg (GARFF, 2000, p. 5s, tradução


nossa).

Nos dias de hoje, em que o trabalho infantil e de adolescentes está


proibido, não deixaríamos passar em brancas nuvens a questão de saber que
tipos de serviços a pequena Ane teve de prestar, primeiro na casa pobre de
seu irmão Lars, decerto serviços de limpeza na casa e na destilaria, carregar
água, arrumar quarto(s), preparar o alimento, coisas tais. Transferida para a
casa de Mads Royen, sócio do pai de S. A. Kierkegaard, o nível econômico
subiu bastante, pois os sócios enriqueceram juntos, e eram adultos sem
filhos, ocupados somente nos negócios. Ane por certo servia a irmã de
Mads, Kirstine, que apesar do dinheiro ia ficando solteirona. Seria graciosa,
atraente? Quando esta casou com o sócio Michael P. Kierkegaard, há de ter
sido a coisa mais natural a transferência de Ane para o lar da recém-casada.
Kirstine, porém, não sobreviveu 2 anos, e não se sabe por quanto tempo
esteve doente. Não podemos saber, por conseguinte, se a pequena Ane,
agora com uns 26 anos, cuidava da faxina, se preparava e servia as refeições,
e se eventualmente servia de enfermeira improvisada ou cuidadora da
patroa enferma. É de se supor que ela era de fato um faz-tudo, ao dispor
da patroa, dez anos mais velha, e rica. Ane era do interior, da Jutlândia, mas
agora já trabalhava em Copenhague havia mais de dez anos. Podemos supor
que soubesse tratar bem uma pessoa doente, pois mais tarde, dos sete filhos
que lhe nasceram, todos chegaram à idade adulta, com exceção daquele que
morreu na escola (fora de casa, longe das vistas da mãe). Cuidados de saúde
eram muito importantes, na primeira metade do século XIX, pois a
medicina era precária.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
30

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

Quanto ao casal dos patrões da pequena Ane, as relações parecem


não terem sido as ideais. Diz Garff que os círculos dos comerciantes eram
bastante próximo, de modo que:

[...] ninguém se surpreendeu com o fato de que Michael


Kierkegaard em 2 de maio de 1794 se casasse com
Kirstine Nielsdatter, a irmã de Røyen. As pessoas
achavam que já estava na hora, pois ele já tinha 38 e ela
era um ano mais nova. Com um capital próprio de 568
táleres do banco real, Kirstine era um bom partido;
contudo, o que os dois sentiam um pelo outro,
ninguém sabe; na certidão de casamento anuncia-se
apenas o fato nu e cru: “Michael Peter Kiærsgaard,
negociante de lãs, e Kirstine Røyen assumiram uma
união no dia 2 de maio na Igreja do Espírito Santo”. O
casamento durou menos de dois anos. Kirstine morreu
em 23 de março de 1796 de uma pneumonia e três dias
depois foi enterrada no Cemitério da Assistência
(GARFF, 2000 p. 5s, tradução nossa).

Talvez possamos tecer algumas conjecturas sobre a relação do casal


a partir dos sentimentos do viúvo que mais tarde, quando se lembrava da
falecida, sentia fortes remorsos. Conta P. Mesnard, numa nota de Le vrai
visage de Kierkegaard:

(1) A morte da primeira esposa é do dia 23 de março de


1796, as segundas núpcias do 26 de abril 1797, o
nascimento de Maria Cristina do 7 de setembro de
1797. O remorso do velho comerciante de lãs parece
ter seguidamente revestido a face de sua primeira
esposa: logo que esta lembrança se impunha a seu
espírito, a gente o ouvia então bater no peito, e ele fazia
distribuir por intermédio de Mynster grandes somas de

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
31

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

dinheiro aos pobres de Copenhague (MESNARD,


1948, p. 64, n. 1, tradução nossa).6

Chama a atenção o fato de o remorso do viúvo em relação à falecida


se expressar diretamente na forma de uma penitência monetária: doar aos
pobres “grandes somas de dinheiro”! Isto parece indicar que o viúvo,
recasado e agora cheio de filhos, não se arrependia tanto por ter
recomeçado logo sua vida e conseguido realizar seus ideais patriarcais, mas
mais provavelmente se arrependia do tipo de relação que mantivera com a
primeira esposa. Se o perdão de Deus, ao lembrar da primeira, se ligava a
grandes somas de dinheiro dadas em penitência, é lícito e lógico
imaginarmos que a culpa se relacionasse também ao dinheiro: que o
primeiro casamento ou tivesse sido motivado por interesse econômico (o
belo dote da irmã do sócio, talvez o reforço de sua posição nesta sociedade,
talvez a ascensão social que tal união prometia), ou então, segunda hipótese,
compatível com a primeira, que o viúvo se arrependesse por não ter dado a
devida atenção à primeira esposa, tivesse talvez deixado o primeiro
casamento acabar infrutífero e curto por um certo desinteresse pela mulher
e um cuidado exagerado e unilateral com os negócios lucrativos. Um
casamento que fracassa, com a morte da esposa aos 22 meses, sem deixar
filho, mas deixando uma boa herança em dinheiro, bem pode provocar
remorsos, até pela comparação com os bons resultados em termos
familiares na segunda união. O segundo casamento não visou à riqueza de

6 No original: “La mort de la première femme est du 23 mars 1796, les secondes noces du
26 avril 1797, la naissance de Marie-Christine du 7 septembre 1797. Le remords du vieux
bonnetier semble avoir souvent revêtu le visage de sa première épouse: lorsque ce souvenir
s’imposait à son esprit, on l’entendait alors battre sa coulpe, et il faisait distribuer par
Mynster de fortes sommes d’argent aux pauvres de Copenhague”.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
32

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

Ane, pelo contrário, mas foi rico, muito rico em filhos, saúde e tranquilidade
doméstica. Uma mulher simples e forte, que consegue educar, sem grandes
luzes intelectuais próprias, sete filhos, sem perder nenhum nos primeiros
dez anos de vida, naqueles tempos, era uma fortuna toda especial.
Nem podemos esquecer que Michael P. Kierkegaard agora largara
o comércio, vendera a loja a seus parentes, e podia (aposentado após 30
anos de trabalho) dedicar-se aos assuntos de moradia, de educação
intelectual, de escolaridade para os filhos (tal como ele próprio não tivera),
colocando-os nas boas escolas da capital, enviando um ao exterior, e
conseguindo dois filhos “doutores”: um bispo importante e um pensador
mundialmente conhecido. Michael Pedersen tinha agora tempo para
comprar casa no campo e depois no centro da cidade, além de ter podido
dar uma boa ajuda aos irmãos da Jutlândia, em termos imobiliários. Tinha
tempo para a mulher, apesar da distância intelectual que se alargava entre
os dois, ela cuidando da casa e da prole e ele com tempo para longas
discussões com seu pastor (depois bispo) Mynster, uma das principais
cabeças da Capital, da Igreja e do Reino. Com tempo e dinheiro, podia ler
e estudar à vontade, desenvolver sua inteligência privilegiada, e ainda
relacionar-se com a família Lund, casando duas de suas filhas com dois dos
três irmãos Lund, gente importante, em termos econômicos e
universitários. E todo o tempo ele tinha a esposa Ane cuidando das
crianças: situação patriarcal e idílica, que decerto lhe provocava remorsos, à
lembrança de seu primeiro casamento. – Detalhe importante sobre a nova
relação conjugal deste comerciante que tanto valorizara o vil metal: já em
1802, antes até do nascimento dos filhos varões, o paizão redigiu um

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
33

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

testamento agora bem mais generoso (“mão-aberta”) para com a mãe das
meninas do que o fora o contrato pré-nupcial.7
Para concluir este ponto: se Pierre Mesnard tem razão aqui, o
dinheiro dado em penitência (“fortes sommes d’argent aux pauvres de
Copenhague”) estaria relacionado diretamente à lembrança do casamento
frustrado, mais que à dramática cena de revolta contra Deus do pastorzinho
da Jutlândia. Se realmente intervinha a lembrança da falecida, então as
grandes somas de dinheiro não seriam, não em primeiro lugar, para
devolver ao Deus ofendido pelo menino faminto o dinheiro que o Todo-
poderoso lhe estaria agora concedendo sadicamente, enquanto preparava a
terrível vingança de sua divina ira. Conclusão que se pode tirar deste
contexto é que a casa dos Kierkegaard, com sua abelha-rainha, alegre e
saudável, foi na verdade, por mais de trinta anos, apesar das excentricidades
(comuns, aliás, a outras muitas famílias, como a dos Lund) um lar bastante
normal, saudável, promissor, por certo barulhento, com moças ajuizadas e
meninos que brigavam como irmãos, e um caçulinha mimado (criado por
quatro mulheres – o dobro de Da Vinci: mãe e três irmãs com mais de 12
anos de diferença dele – e de resto nem discutimos se havia ainda alguma
babá ou outra “servante” nesta casa), um caçula irritadiço, implicante, e que
se grudava amuado à saia da mãe quando não lhe faziam as vontades8.
Apelido: “o garfinho”, ou “o forcado”! Se uns comentadores lembram de
Isaac prestes a ser sacrificado pelo idoso Abraão, para pintar a situação de
Søren, por que não poderíamos aproximar este caçula da figura de José,

7 “Da pater familias i 1802 skrev testamente, var han da også langt mere rundhåndet end
i ægtepagtens tid.” (GARFF, 2000, p. 6.)
8 Um testemunho sobre sua infância: “As usual, Søren sat in a corner and sulked”

(KIRMMSE, 1996, p. 3).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
34

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

filho de Raquel, serrana bela, como o preferido e mimado do pai Jacó, a


provocar ciúmes nos irmãos mais velhos (como se lê na versão de Thomas
Mann de José e seus irmãos)?

A MÃE DA PROLE BRILHANTE

Só na década de 30, vinte anos após o nascimento do filósofo, é que


o idílio dará ares de hecatombe: até então, só havia falecido um mano, num
acidente escolar, e a primogênita, solteira, aos 24 anos; sobravam, pois, 5
irmãos, um dos quais iria preparar-se para o comércio exterior nos Estados
Unidos, vindo a morrer em Nova Jersey, em 1833. As outras duas moças
estavam casadas, mas Nicoline Christine morreu no mesmo ano de 1833,
aos 32 anos, deixando órfãos (por pouco tempo) 4 netos de Michael P.
Kierkegaard. O ano de 1834 é também inclemente: falecem a mãe, Ane (aos
67 anos, o que não é pouca coisa), e Petrea Severine (com 33 anos e 4 filhos
saudáveis, três dos quais chegarão vivos ao século XX e o outro não chegou
porque morreu na guerra contra Bismark). Na noite em que a mãe morreu,
Søren estava ausente, temos de analisar o fato.
Falecendo em 1834, Ane foi poupada de passar pelo drama que
parece (conforme Hirsch (2006, p. 116ss)9 e Mesnard (1948, p. 63s)) ter
abalado e derrubado seu viúvo: Peder Christian casa, na flor da idade (31
anos) com Elise Marie, no dia 21/10/1836, e esta vem a falecer justos nove
meses depois, aos 18/7/37, sem deixar filho! Parece que a morte da nora

9Verificar no anexo da obra em que este autor interpreta o famoso “tremor de terra” (Das
Erdbeben).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
35

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

foi a gota d’água para o (agora sim) velho Kierkegaard, octogenário, que
deve ter feito então aquelas cenas de desespero que tanto impressionaram
e influenciaram os dois filhos sobreviventes. Ele veio a falecer no ano
seguinte, 1838, aos 82 anos, – mas reconciliado com o caçula de 25 anos,
que se havia afastado dele e depois se reencontrado consigo e com seu velho
em 1838 (ano da morte também do querido professor Poul Martin Møller).
Mais moço que as três meninas, e após um interregno de 4 anos,
Peder Christian era o mais velho dos irmãos, nascido em 6 de Julho de 1805.
Seus manos eram 2 e 4 anos mais moços, o caçula inclusive quase 8 anos
mais jovem. Primeiro universitário da família, estudioso, com vocação
eclesiástica, tinha uma relação bastante tensa com o caçula genial e
voluntarioso, irônico e satírico. Peder era um homem sério, ou queria sê-lo,
seguia as ideias de Grundtvig, o grande líder religioso popular do interior
dinamarquês, enquanto que o caçula valorizava mais os sermões de
Mynster, pregador da Corte, na Capital. Por três vezes, ao menos, Peder
distanciou-se publicamente de seu problemático irmão, o que levou este
(nas Obras do Amor, de 1847) a tratar de modo criativo, irônico e compassivo
ao mesmo tempo, a cena do olhar misericordioso de Cristo para Pedro (que
o negara três vezes no Sinédrio): pois Cristo olha para o discípulo fanfarrão
de horas antes e pensa: “Peder er Peder” (“O Pedro é o Pedro”), aquele que
todos conhecem, com qualidades e defeitos, com sua covardia e seu bom
coração, melhor perdoá-lo. O detalhe curioso é que o pensamento de Jesus
não se expressa nos termos bíblicos que diriam “Petrus er Petrus”, mas
mencionam logo “Peder”, tal como Peder Christian...10

10As Obras do Amor (2005, p. 201), primeira parte, cap. IV: “O amor de Cristo por Pedro
era desta forma ilimitado; ao amar Pedro, ele realizava perfeitamente o amar aquele homem

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
36

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

Lemos nos Encounters with Kierkegaard, tão bem organizado e


traduzido por B. Kirmmse, uma entrada dos Diários deste irmão mais
velho, de fins de Julho de 1834, que, redigida secamente, cheira a
ressentimento em relação ao “filho pródigo”.

Apesar do fato de não haver realmente nenhuma


melhora significativa com nossa Mãe, Sören finalmente
partiu para Gilleleje no dia 26 [de Julho] a fim de passar
duas semanas por lá para cuidar da saúde dele. … Na
manhã de quarta-feira, dia 30, as coisas ficaram
significativamente piores para a nossa Mãe, de modo
que eu temia um ataque. Um dos empregados do
escritório de Christian Lund foi mandado a Gilleleje
atrás de Sören, mas ele só pôde chegar em casa na
manhã seguinte (KIRMMSE, 1996, p. 142, tradução
nossa).11

Pelo visto, Søren havia deixado a mãe doente e partido no sábado


anterior para a sua praia favorita, lá onde ele pensava e meditava solitário
sobre o sentido da vida. Fora por duas semanas, para recuperar sua saúde.
Aos 21 anos, já havia cursado 7 semestres na Universidade, tivera mestres
como Møller, Sibbern, Clausen e Martensen, andava lendo Platão e Hegel,
e, na metade do 4o. ano da Faculdade, considerava-se cansado ou

que vemos. Ele não dizia: ‘Primeiro Pedro precisa modificar-se, e se tornar uma outra
pessoa, antes que eu possa amá-lo de novo’; não, exatamente ao contrário, ele dizia: ‘O
Pedro é o Pedro, e eu o amo; se algo pode ajudá-lo a se tornar um homem diferente, é
justamente o meu amor que deve fazê-lo. Portanto, ele não rompeu a amizade...”. Na SKS,
Bd. 9, p. 172: “han sagde: Peder er Peder, og jeg elsker ham”.
11 “Despite the fact that there was really no significant improvement with Mother, Sören

finally set out for Gilleleje on the 26th [of July] in order to spend two weeks there for the
sake of his health. … On the morning of Wednesday the 30th [of July] things were
significantly worse with Mother, so that I feared a stroke. One of Christian Lund’s office
employees was sent to Gilleleje after Sören, but he could only come home the next
morning” (KIRMMSE, 1996, p. 142).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
37

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

adoentado, merecedor de algum repouso. Será que a mãe, doente também,


o impediria de ir descansar, a 50 km de distância? Imaginamos que ela
fizesse sempre todas as vontades do filhote caçula. Não o impediria agora
de aproveitar duas semanas ao ar livre, andando pelo norte da ilha, em
contato com a natureza, longe da Capital e da Universidade, distanciado dos
livros que ela conhecia tão pouco, das línguas como o Latim, o Grego e o
Hebraico, dos pensamentos difíceis de Schelling, Hegel e Schleiermacher,
dos livros da Bíblia que ela respeitava o quanto podia, e ele lia tanto e com
tanto proveito, enfim, dos sermões dos pastores da Capital, que ele aprendia
de cor e depois anotava. Como impedir que o seu menino fosse cuidar de
sua saúde? Ele não amaria sua velha mãe, só por causa disto? Ela com 67
anos, ele com apenas 21, a juventude precisa afinal de ar fresco...
Mas ela piorou, Peder mandou um empregado do cunhado chamar
o irmão caçula, este veio decerto correndo, mas o mensageiro partira na
quarta-feira e naquela noite a mãe expirou, às 22:30. Søren chegou na
manhã seguinte! Será que isto prova que ele era desalmado, que não amava
sua mãezinha, que esta nada representava para ele, que ele só tinha olhos
para o velho pai, rico e inteligente, e que ignorava a mãe, singela e
doméstica? Aos olhos do irmão mais velho, talvez ciumento das liberdades
que esta concedia ao “geniozinho”, sem dúvida. Mas também para estes
casos existe a imagem bíblica do pai do filho pródigo, com sua réplica final
ao mais velho, tão instrutiva!
Parece, salvo engano, que Søren não ficou de fato traumatizado por
só ter podido despedir-se dela cinco dias antes de sua morte, em bom
acordo com ela (pois não há nenhum registro de crise entre eles, ao
contrário do caso do pai), e por ter corrido para junto dela ao receber a

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
38

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

notícia da piora do seu estado de saúde, tendo chegado entretanto algumas


horas atrasado, podendo participar ainda do seu funeral. Sua relação com a
mãe não era traumática, em nenhum momento ele mostra alguma vergonha
por ter uma mãe menos instruída: as mães não precisavam dessas coisas,
naquela época, seus dons naturais e pessoais lhe bastavam. Temos o direito
de supor que a relação com a mãe era, antes de mais nada, uma relação
normal, sadia, saudável. Se nada escreve sobre Ane Sørensdatter, escreveu
passagens belíssimas sobre as mães, em geral.
Ele trazia consigo o nome do avô materno: ela era Sørens-datter, a
filha de Søren, e ele era outro Søren, “Severino” porém alegre e brincalhão,
grande gozador, como o pai dela, cujo prenome ele imortalizou. Se o avô
materno (a quem pessoalmente ele não conheceu) era de fato um
brincalhão, um gozador, um pândego, nosso pensador, premido entre a
melancolia doentia do pai e a alegre vivacidade da mãe, buscou no estudo e
na prática do “humor” uma saída ou salvação, talvez orientação para sua
realização pessoal. Ironia, humor e fé são atitudes subjetivas ou concepções
que dão um sentido à existência. Passou anos na Faculdade a pesquisar o
tema do “humour”, em Shakespeare e Lessing e outros; seu pseudônimo
mais produtivo se declara um “humorista”; e se a Dissertação se restringiu a
tratar da ironia sem abarcar o humor, foi porque seu querido mestre Poul
M. Møller no leito de morte mandou dizer ao jovem Søren que não se
estendesse demasiado, pois isto já lhe fizera mal.
Ora, Søren conseguiu entregar a Dissertação sobre a ironia de
Sócrates e a dos românticos, não sem rematá-la remetendo ao humor
sardônico, gargalhante, numa frase absolutamente satírica, de intriga
infernal: “Quem quiser agora estudar o humor, que leia a recensão

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
39

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

(elogiosa) que o Professor Martensen (Membro da Banca), fez dos Novos


Poemas de Heiberg”. Heiberg estava presente no auditório na hora da defesa,
com direito a perguntas, e Jon Stewart explica que o poema principal da
elogiada coletânea trata de um burguês que após a morte acaba batendo às
portas do Inferno, e o Capeta o informa que ali ele teria condições
semelhantes às da vida na Capital, mas que na biblioteca lá de baixo estava
condenado a ler as obras imensas e inacabadas do Professor Sibbern
(Orientador da tese e Presidente da Banca). – Se uma sátira de tal potencial
explosivo não combina, de modo algum, com a seriedade sisuda, casmurra,
tristonha, rabugenta e constipada dos Kierkegaard, nem de Michael, nem
do Bispo Peder (com o nome do avô paterno), somos levados a deduzir
que estaria ao menos mediada pela verve dos Lund das charnecas da
Jutlândia (celebradas no Caput 5 do Conceito de Angústia), dos “Severinos”
da família: a graça, o riso, o gracejo e a sátira deveriam ser as contribuições
genéticas dos Sørens e da mãe Sørensdatter...
Destacando-se da velha caricatura do desesperado e melancólico
dinamarquês, já vem aparecendo atualmente, nas pesquisas sobre (obra e
vida de) Kierkegaard, uma nova imagem, a do pensador engraçado,
brincalhão, a de um humorista que diverte o leitor ao mesmo tempo em
que o edifica.12 Poder “ter sempre o riso ao seu lado”, é o pedido/desejo

12 Vale a pena citar literalmente o desafio do autor da antologia sobre o humor de


Kierkegaard, Thomas C. ODEN (2004, p. 4s): “Bundle together any other ten
philosophers who have made a major impact in the history of philosophy. I challenge any
reader to assemble a selection of humor from all of them put together that is funnier than
what you find in this volume of Kierkegaard. / Until this challenge is answered
successfully, I provisionally declare Søren Aabye Kierkegaard (despite his enduring
stereotype as the melancholy, despairing Dane) as, among philosophers, the must amusing.
Just think of the frail, awkward, crippled Magister Kierkegaard actually being entered into
Guinness’ World Book of Records! He might also be the world’s funniest psychologist and

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
40

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

engraçado e abençoado pelos deuses (que explodem em risadas ao escutá-


lo), expresso no último dos Diapsalmata, em Ou/Ou I. Se Søren Kierkegaard
não puxou isto ao pai, pode muito bem tê-lo recebido da herança materna.
É uma autêntica possibilidade! Viva então a pequena Ane Sørensdatter
Lund, pobre camponesa do interior da Jutlândia e criadinha doméstica, mãe
de um dos maiores psicólogos que já viveram, e viva o seu humor, e seu
atestado bom-humor, que decerto equilibrou, completou, e locupletou uma
personalidade tão rica e tão complexa, que tanto consegue ensinar-nos,
edificar-nos e nos divertir!
Enfim, para concluir por onde começamos: o intuito deste artigo
não era deduzir, no mesmo método biográfico-psicologizante de Brandes,
ideias de Kierkegaard a partir das outras influências caseiras, agora da
linhagem materna, mas sim apenas sugerir certas correções e algumas pistas
novas para relativizarmos aquela interpretação que joga unilateralmente
sobre o velho pai toda uma tristeza e melancolia, uma angústia e um
desespero que este teria transmitido a Søren. O conceito kierkegaardiano
de “seriedade”, há meio século analisado por M. Theunissen, equilibra
preocupações e brincadeiras; seu conceito de angústia é algo de positivo
para a liberdade; o desespero é superável pela fé (e até, provisoriamente,
pelo humor), enquanto que a melancolia, com a contraparte de maníaca
leviandade, pode tornar-se, tal como a ironia estudada na tese de 1841, um
“momento dominado”. – É claro que a mentalidade alegre e saudável de
sua mãe há de ter contribuído para este exitoso equilíbrio de personalidade,

the world’s funniest theologian, but I do not wish to exaggerate”. Numa linha semelhante
parece ir o livro The Laughter In on My Side de R. POOLE e H. STANGERUP (1989).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
41

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

por mais que seja dele o mérito da escolha de si-mesmo, fundada


transparentemente no poder que o estabeleceu.

REFERÊNCIAS

BRANDES, Georg. Nietzsche: Un ensayo sobre el radicalismo


aristocrático. Traducción de José Liebermann. México: Sexto piso, 2004.

GARFF, Joakim. SAK. Søren Aabye Kierkegaard: En Biografi.


København: Gads Forlag, 2000.

HIMMELSTRUP, Jens (Udg.). Søren Kierkegaard: International


Bibliografi. København: Nyt Nordisk Forlag – Arnold Busk, 1962.

HIRSCH, Emanuel. Kierkegaard-Studien, Band 1. (Gesammelte Werke


11.) Waltrop: Spenner, 2006. (Neu herausgegeben und eingeleitet von H.
M. Müller. – Reprodução dos originais de 1930-33).

JASPERS, Karl. Psicopatología General. Traducción de la 5a. ed. alemana


por Roberto Saubinet y Diego Santillan. Buenos Aires: Bini, 1950.

_______. Psychologie der Weltanschauungen: Fünfte, unveränderte


Auflage. Berlin-Göttingen-Heidelberg: Springer 1960. (1919)

KIERKEGAARD, Søren A. O Conceito de Ironia constantemente


referido a Sócrates. Tradução de Álvaro Valls. Petrópolis: Vozes, 1991.

_______. Migalhas Filosóficas: ou um bocadinho de filosofia de João


Clímacus. Tradução de Álvaro Valls. Petrópolis: Vozes, 1995. (Ou:
Tradução de José Miranda Justo. Lisboa: Relógio D’Água, 2012.)

_______. In Vino Veritas. Tradução de José Miranda Justo. Lisboa:


Antígona, 2005.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
42

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

KIERKEGAARD, Søren A. Ou – Ou: Um Fragmento de Vida (Primeira


Parte). Tradução de Elisabete M. de Sousa. Lisboa: Relógio D’Água, 2013.

_______. Ou – Ou: Um Fragmento de Vida (Segunda Parte) Tradução de


Elisabete M. de Sousa. Lisboa: Relógio D’Água, 2017.

_______. As Obras do Amor: Algumas considerações cristãs em forma de


discursos. Tradução de Álvaro Valls. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista:
Ed. Univ. São Francisco, 2005.

_______. Diapsalmata. Tradução, Notas e Posfácio de Nuno Ferro e M.


J. de Carvalho et al.. Lisboa: Assírio & Alvim, 2011.

_______. Do Desespero Silencioso ao Elogio do Amor


Desinteressado: Aforismos, novelas e discursos de Søren Kierkegaard.
Tradução de Álvaro Valls. Porto Alegre: Escritos, 2004.

KIRMMSE, Bruce. Kierkegaard In Golden Age Denmark: Bloomington


& Indianapolis: Indiana University Press, 1990.

KIRMMSE, Bruce (Org.). Encounters With Kierkegaard: A Life as Seen


by His Contemporaries. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1996.

KJÆR, Grette. Den Gådefulde Familie: Historien bag det


Kierkegaardske Familiegravsted. København: Reitzels Boghandel,
1981.

MALIK, Habib C. Receiving Søren Kierkegaard: The Early Impact and


Transmission of His Thought. Washington D.C.: The Catolic University of
America Press, 1997.

MESNARD, Pierre. Le Vrai Visage de Kierkegaard. Paris: Beauchesne,


1948.

ODEN, Thomas (Org.) The Humour of Kierkegaard: An Anthology.


Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2004.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
43

Possíveis e reais contribuições de Ane Sørensdatter Kierkegaard, nascida Lund, à


cultura ocidental – (um ensaio contra o mito do filósofo sem mãe)
VALLS, Alvaro L. M..

POOLE, Roger & STANGERUP, Henrik (Org.). The Laughter Is on My


Side: An Imaginative Introduction to Kierkegaard. Princeton, NJ:
Princeton University Press,
1989.

STEWART, Jon. A History of Hegelianism in Golden Age Denmark.


Tome I. The Heiberg Period: 1824-1836. Copenhagen: SKRC/Reitzel,
2007.

THEUNISSEN, Michael. Der Begriff Ernst bei Sören Kierkegaard.


Freiburg/München: Alber, 1978. (Com a dedicatória: “Meiner Mutter”!)

VERGOTE, Henri–Bernard. Sens et repetition: Essai sur l’ironie


kierkegaardienne. Tomes I et II. Paris: Cerf/Orante, 1982.

WAHL, Jean. Études Kierkegaardiennes. 4e. édition. Paris: Vrin, 1974.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 13-43.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
ISSN 1984 - 5561

A PAIDÉIA KIERKEGAARDIANA

[THE PAIDÉIA KIERKEGAARDIANA]

Marcos Érico de Araújo Silva

Doutor em Filosofia pela UFPB-UFPE-UFRN, Professor do Departamento de Filosofia da UERN,


Campus Caicó – CaC, Professor permanente do Mestrado Profissional (PROF-FILO), e Membro da
Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard (SOBRESKI).
(E-mail: marcos_erico@yahoo.com.br /simesmo@hotmail.com)

Recebido em: 02 de maio de 2018. Aprovado em: 28/05/2018

Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91. ISSN 1984 - 5561


Dossiê Kierkegaard e a Educação
46

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

Resumo: Farei uma abordagem da educação em Kierkegaard do ponto de


vista filosófico sendo, portanto, uma introdução à filosofia de Kierkegaard.
Educação é compreendida no sentido da paidéia grega. Assim como a paidéia
se inclina para a areté, do mesmo modo a paidéia kierkegaardiana exige a
modificação da existência. O método da comunicação indireta é a forma da
educação e, assim, o ensinar do autêntico professor decorre de sua
“originalidade adquirida” ao reduplicar em sua existência o que ensina
apropriando-se, quer dizer, sendo, ele mesmo, aquilo que ensina. Ao
contrário, o professor erudito possui apenas uma “originalidade imediata e
primeira” e, por isso, apenas transmite e exibe seu vasto saber sem
reduplicá-lo. A produção pseudônima e religiosa são os dois olhos de
Kierkegaard para ver a mesma questão: o tornar-se si-mesmo e sua
imbricação com a realidade efetiva.

Palavras-chave: Paidéia kierkegaardiana. Si-mesmo. Areté. Modificação da


existência. Originalidade adquirida. Originalidade imediata e primeira.

Abstract: I will make an approach of the education in Kierkegaard's


philosophical point of view, therefore, an introduction to Kierkegaard's
philosophy. Education is understood in the sense of the Greek paidéia. Just
as paidéia inclines toward the areté, in the same way Kierkegaardian paideia
demands the modification of existence. The method of indirect
communication is the form of education, and thus the teaching of the
authentic teacher stems from his "acquired originality" by reduplicating into
his existence, which teaches appropriating, that is, being himself, what he
teaches. On the contrary, the learned teacher has only an "immediate and
first originality" and, therefore, only transmits and exhibits his vast
knowledge without reduplicating it. The pseudonymous and religious
production are the two eyes of Kierkegaard to see the same question: to
become self and its imbrication with effective reality.

Keywords: Kierkegaardiana Paidéia. Self. Areté. Modification of existence.


Originality acquired. Immediate and first originality.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
47

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

Para Iraquitan de Oliveira Caminha


(UFPB), amigo e autêntico mestre, portador
de uma originalidade adquirida.

“O que faz o Evangelho? O Evangelho [...]


é a sabedoria da educação [...]”
(KIERKEGAARD, 2007, p.187)

I
“Ao empregar um termo grego para exprimir uma coisa grega,
quero dar a entender que essa coisa se contempla, não com os olhos do
homem moderno, mas sim com os do homem grego” (JAEGER, 1995, p.
1). Esta frase retirada da Introdução da obra Paidéia: a formação do homem grego,
de 1936, publicada na Alemanha, permite-me meditar sobre a questão da
educação ou formação em Kierkegaard. Jaeger, na Introdução, sente a necessidade
metodológica de esclarecer dois aspectos implicados no termo grego
Paidéia. Um primeiro aspecto que chama a atenção do leitor é com a
estranheza da palavra. O leitor moderno, sem conhecimento da cultura
grega, sentirá a curiosidade de saber o sentido deste termo estranho para a
sua língua. Jaeger explica que qualquer opção de tradução do termo só
consegue capturar um aspecto dele e não sua totalidade: “civilização,
cultura, tradição, literatura ou educação” (JAEGER, 1995, p. 1). A
dificuldade encontra-se no caráter reducionista de cada opção dessas uma
vez que o termo grego congrega todas essas palavras e sentidos numa
unidade integrativa: o termo Paidéia tem o condão de ao dizer mostrar a
totalidade da coisa nela mesma. O outro aspecto, decorrente deste primeiro,
é a exigência de que o leitor moderno deve, por assim dizer, mudar os olhos

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
48

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

para que possa ver. Um moderno deve fazer o exercício hermenêutico de


olhar com olhos gregos aquilo que a língua grega possibilita de aparecer ao
dizer-mostrar a coisa, a saber, Paidéia. Ora, só assim, entrando na atmosfera
grega é possível compreender a totalidade do fenômeno em sua unidade
integrativa, quer dizer, ao dizer Paidéia, diferente de nós modernos, o grego
mostra a totalidade da coisa: civilização, cultura, tradição, literatura,
educação.
Depois deste exercício hermenêutico de ver na perspectiva grega é
possível traduzir por educação ou formação, por exemplo, porque já não será
compreendida na perspectiva decadente, reducionista, tecnicista que a
modernidade compreende1. Neste sentido, lembro do grande filósofo,
teólogo e eminente orador, Santo Agostinho, quando solicitado pelos
padres para que escrevesse um livro que os ajudassem na preparação dos
sermões. Com este intuito o ex-orador do Imperador Romano escreve o De
Doctrina Cristiana. Ele, um africano, da Igreja Católica latina ajudando os
padres a compreenderem melhor e, sobretudo, a comunicarem com eficácia
o sentido da Palavra de Deus. O Novo Testamento foi escrito em grego.
Um Padre Latino lendo em grego! Agostinho ensina a fazer o exercício

1 Não é nessa decadência de perda do sentido que o atual governo está reformulando o
ensino no Brasil? Não é desde essa perspectiva de perda do sentido, ou pior, de negação
do sentido de Paidéia que surge a proposta não-grega, anti-filosófica do Escola Sem
Partido? Uma proposta ideológica contra toda ideologia, uma proposta partidária (o “sem
partido”) contra partidarismo é uma contradição em si mesma. O homem desde sempre,
quer dizer, desde que aparece no mundo já se movimento num horizonte de sentido, numa
pré-compreensão que dá a condição de possibilidade de conhecer isto ou aquilo.
Neutralidade não existe, como bem mostra os filósofos contemporâneos e, até mesmo, a
física quântica, ou o epistemólogo Thomas Kuhn. Os professores (as), particularmente de
filosofia e sociologia, devem continuar tendo sua autoridade de cátedra em sala de aula
ensinando aos alunos o conhecimento filosófico, sociológico que foram consolidados na
cultura.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
49

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

hermenêutico de mudar o olho: “veem o coração delas [as Escrituras] com


os olhos do coração [et cor earum sui cordis oculi vident]”:

Não digo em tê-las [as Escrituras] lido muito e em sabê-


las de memória, mas em compreendê-la bem e indagar
diligentemente os seus sentidos. Porque há alguns que
as leem com negligência; leem para reter de memória e
negligenciam ao não entendê-las. Aos quais, sem
dúvida, devem preferir-se os que não tem tão na
memória suas palavras, porém veem o coração delas
com os olhos do coração [et cor earum sui cordis oculi
vident]. Porém, melhor que ambos é aquele que quando
quer as expõe e as entende com perfeição
(AGOSTINHO, 1957, p. 271, tradução nossa).

Há, pois, três tipos de oradores ou estudiosos: i) o homem simples,


inculto que lê mas não compreende o que lê, ou, em nível mais sofisticado
(sofista!?), o erudito que lê muito, mas superficialmente, sem nunca atingir
a profundidade do texto porque se ocupa com a superfície (este conhece
muito e vastamente, mas de forma extensiva e jamais intensiva): fica absorto
na letra do texto não penetrando no espírito sem o qual não faz sentido a
letra, pois, nesse caso, é morta; ii) o sábio, como o cristão sério e honesto,
que se preocupa mais em penetrar no espírito, no sentido do texto, do que
no aprofundamento da superfície: língua, história, cultura etc.; iii) por fim,
temos o ideal do orador cristão que sintetiza, melhor, que se sobressai, por
assim dizer, porque ele reúne em si o erudito e o sábio. A erudição é sem
valor quando carece de sabedoria. A sabedoria mesmo sem erudição é
louvável. Mas a erudição a serviço da sabedoria deve ser a mais desejada e
mais reverenciada. A primazia, porém, está com a sabedoria.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
50

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

Kierkegaard reúne nele o grego ou filosófico, e o bíblico ou crístico.


Kierkegaard enquanto pensador tem dois olhos: grego e bíblico, filosófico
e crístico, produção pseudônima e produção religiosa. O pensador
dinamarquês tem dois olhos para ver a coisa nela mesma. Posteriormente
(no II) farei a articulação desta metáfora com o método maiêutico de
Kierkegaard.
O título deste artigo A paidéia kierkegaardiana nos lança nessa
atmosfera dialética do grego e do bíblico, do filosófico e do crístico, da
produção pseudônima e da produção religiosa. Então, o que A paidéia
kierkegaardiana mostra, ou faz aparecer aos nossos olhos é a questão da
educação ou formação compreendida de forma ampla e holística unificando
a totalidade dos aspectos implicados na palavra grega, a saber: civilização,
cultura, tradição, literatura, educação. Isto significa que a educação em
Kierkegaard tem o sentido de Paidéia. Portanto, educação como Paidéia se
confunde ou se identifica com a própria filosofia enquanto articulação
formativa ou educativa do homem grego através da literatura como
consolidação da cultura sustentando a tradição e determinando os rumos
da civilização ocidental.
A Paidéia mostra, pois, e-videncia a formação do homem. A educ-
ação fala de uma ação que conduz para e a form-ação de uma ação que dar forma.
Mas o que significa este para onde que a educação conduz? E que movimento
é este que pro-move uma forma? Educação ou formação aqui não tem o
sentido moderno, mas grego. Não se busca fornecer determinadas
habilidades ou técnicas para que, dominando-as, possa ser aplicada em vista
de um determinado fim. Educação ou formação como Paidéia visa uma
modificação da própria existência do homem e não determinados

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
51

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

conhecimentos técnicos para isto ou aquilo. Então, essa ação do para onde da
educação, ou do dar forma da formação são movimentos que tomam a
matéria-prima, bruta, de si mesmo para tornar-se si-mesmo2, quer dizer,
concretizá-lo, efetivá-lo, sintetizá-lo. Em uma palavra: dar uma forma
(eidos). É, pois, um movimento que não sai do lugar, quer dizer, é, como a
Psychê um princípio (arché) de movimento que não se movimenta. Isso
significa uma dinâmica de realização do real em que a cada momento precisa
vir a ser. Isso que precisa vir a ser neste movimento que, em sendo princípio
de movimento, entretanto, não se movimenta, é a vida, a existência do

2 Chamo a atenção do leitor para a grafia do si-mesmo hifenizado e do si mesmo sem


hifenização para que perceba que este último, sem hifenização, é o fenômeno do homem
na não-verdade sem que, portanto, tenha operado sua sintetização estabelecendo uma
autorrelação expressa na hifenização do si-mesmo. A hifenização enquanto ligação dos dois
termos, si + mesmo, tornando uma unidade, um único termo, externaliza a ideia de
movimento, de integração, de síntese. Daí que na terminologia kierkegaardiana atrelamos
o si mesmo ao Individ, indivíduo despersonalizado sem si-mesmo, e o si-mesmo ao Selv ou
den Enkelte, o Indivíduo singular que possui subjetividade, interioridade. A produção
estética ou pseudônima problematiza em suas obras, dialogando criticamente com a
filosofia, através de vários pseudô-nimos, visando libertar o homem de si mesmo, quer
dizer, pro-cura liberá-lo para a apropriação de seu próprio, de seu verdadeiro nome, de sua
identidade, de seu si-mesmo. Talvez a utilização de vários pseudônimos com o prenome
de Johannes (João) sinalize para o sentido teológico de João Batista como sendo aquele
que é apenas uma “voz do que clama no deserto” (Jo 1, 23) cujo trabalho e missão é apenas
(e como é trabalhoso!) “preparai o caminho do Senhor” (Lc 3,4). O sentido filosófico,
então, de Johannes o Sedutor, Johannes De Silentio, Johannes Climacus e, por extensão,
de todo pseudônimo seja precisamente o de preparar (derrubar, abater montes, destronar
o orgulho!) o caminho da filosofia para o Senhor, quer dizer, criticar a compreensão
abstrata (o deserto!) como modo da filosofia compreender o homem e a realidade e, assim,
preparando este caminho, cria uma abertura, uma tonalidade afetiva ou disposição
(Stemning) que posiciona o homem no lugar apropriado para apropriar-se de si-mesmo na
meditação da produção religiosa que aperfeiçoa e complementa a produção estética ou
pseudônima. É este o movimento dialético de desconstrução (pseudonímia) e edificação
(religiosa: Discursos Edificantes e Discursos Cristãos) de si-mesmo, do Selv. É precisamente isto
que em sendo a filosofia kierkegaardiana é, ao mesmo tempo, a educação ou paideia
kierkegaardiana. Nada, pois, de filosofia de autópsia quando isto não conduz ao coração
do texto transubstanciando minha existência, ou como ensina advertindo Santo Agostinho:
“veem o coração delas [leia-se: obras de filosofia, ou a realidade] com os olhos do coração
[et cor earum sui cordis oculi vident].

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
52

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

homem. Com efeito, paradoxalmente, o homem, de certo modo, não é, mas


deve tornar-se o que ele é. Em A Doença para a Morte, de 1849, Anti-
Climacus/Kierkegaard, escreve:

Tornar-se si-mesmo é precisamente um movimento


no lugar [Bevægelse paa Stedet]. Tornar-se significa
em geral uma mudança de lugar [Bevægelse fra Stedet],
porém tornar-se si-mesmo equivale um movimento
sobre o terreno [Bevægelse paa Stedet]
(KIERKEGAARD, 2008a, p. 57, tradução nossa, grifo
nosso; SKS 11,151).

Algumas páginas antes Anti-Climacus escreveu esta formulação


lapidar por ser tão verdadeira por capturar o paradoxo que constitui a
existência do homem; a filosofia deve cuidar de explicar isto retornando
sempre e a cada vez buscando uma maior e melhor clarificação disto, a
saber: “[...] o eu [si mesmo sem hifenização, quer dizer, sem autorrelacionar-
se] não é si-mesmo enquanto não se faça si-mesmo, e o não ser si-mesmo
é verdadeiramente o desespero” (KIERKEGAARD, 2008a, p, 51)3.

3 No original lemos: “Forsaavidt da Selvet ikke vorder sig selv, er det ikke sig selv; men
det ikke at være sig selv er just Fortvivlelse” (SKS 11,146, grifo nosso). Como no português
temos o recurso de usar o si mesmo sem ser hifenizado (dando a idéia de deslocado de si
mesmo, despersonalizado) e o si-mesmo hifenizado (aglutinação, junção, integração,
dando a idéia de autorrelação, movimento) utilizo essa diferenciação para que o leitor
compreenda o paradoxo, mas ao mesmo tempo a razoabilidade da possibilidade de se falar
de que o si mesmo, o esteta, o homem na não-verdade, precisa vir a ser porque de certo
modo ainda não é, quer dizer, precisa sintetizar a si mesmo na autorrelação para que o si
mesmo seja verdadeiramente, em plenitude, um si-mesmo. Na tradução espanhola
aparecem indistintamente como eu e sí mismo, e na francesa moi, soi; no francês tem o soi-
même mas não aparece na tradução marcando o Selv. Muito embora no contexto em que
aparecem torna-se evidente a distinção, no contexto da frase ou parágrafo, para o leitor
atento ou familiarizado com Kierkegaard, penso ser significativo, porém, marcar uma
diferença para chamar a atenção do leitor que não tem proximidade com o pensamento de
Kierkegaard. Julgo, pois, que em português a grafia com o recurso da hifenização para
indicar o si-mesmo que se relaciona consigo mesmo e o si mesmo sem hifenização indicando

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
53

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

Este movimento que faz o homem inautêntico conquistar sua


própria autenticidade, ou passar da não-verdade para a verdade é um
movimento de interioridade, subjetividade. Não é um movimento
geográfico, espacial, exterior. Mas é a verdade da apropriação em que o
Indivíduo singular (den Enkelte) conquista, apropria-se de seu próprio, de
sua singularidade, de seu si-mesmo (Selv). O devir do homem é, pois, um
movimento no lugar (Bevægelse paa Stedet). Este deslocamento sem se deslocar
e, precisamente por isso, só assim promove essencialmente o deslocar é que
é a experiência de arché. É o começo sem começo porque desde sempre já
começou. É a experiência do homem que é afetado e, portanto, experiência
ao mesmo tempo de pathos por um modo de ser, do homem ter de se fazer.
É a ex-periência (Erfahrung) de se ver jogado, melhor, da necessidade de se
ver lançado nisto, a saber, na possibilidade de poder ser ou ser-capaz-de
(Muligheden af at kunne). Ex-periência de círculo, paradoxo (= movimento no
lugar; = si mesmo que precisa tornar-se si-mesmo), é sinal e indício da
especificidade do ver filosófico, grego. Esta é a ação que a educação ou
formação pro-move em tornando o homem um si-mesmo, um Selv. Eis,
portanto, o sentido filosófico da paidéia kierkegaardiana.

a carência da síntese, a falta de movimento de autorrelação não só evidencia com mais


clareza o movimento paradoxal do si mesmo ter que tornar-se si-mesmo, sem implicar em
contradição, como também insere de forma significativa Kierkegaard no diálogo filosófico
da filosofia alemã acerca do Ich (Eu) e Selbst (Si-mesmo). Penso particularmente no contexto
de Ser e tempo (2006) de Heidegger (§25) em que o si-mesmo (Selbst) não é entendido como
um eu, um ser simplesmente dado, como uma substância, uma coisa pronta e acabada, mas
precisamente como sendo um modo de ser do Dasein como movimento de a-propri-ação
de si-mesmo, de seu próprio. Em A Fenomenologia da Vida Religiosa de 1920-21 o jovem
Heidegger escreve: “Na maioria das vezes, é-se levado a analisar apenas teoricamente
conceitos configurados do psíquico, porém, o si-mesmo [Selbst] não se torna problema. [...]
Trata-se aqui apenas de conseguir alcançar o princípio [de natureza pré-teorética] para a
compreensão da própria filosofia (HEIDEGGER, 2010, p. 17-18).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
54

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

A paidéia kierkegaardiana, portanto, não é outra coisa senão a


totalidade do corpus kierkegaardiano que possibilita ver, através dos dois olhos
de Kierkegaard, quer dizer, de sua maiêutica, as perspectivas de conduzir o
homem da não-verdade para a verdade. A Teoria dos Estádios Existenciais
(estético, ético, religioso), na dinamicidade variável – ou estético, ou ético-
religioso; ou estética imediata e mediata, ou religiosidade A e religiosidade
B; ou... ou... – como reflexo e tradução da existência, em que aparecem nas
diversas obras, não é, melhor, não pode ser outra coisa senão a fundamentação
filosófica do devir do homem, a saber: A paidéia kierkegaardiana. Por
conseguinte, abordar a educação ou formação em Kierkegaard como
filósofo na perspectiva filosófica significa ver a coisa com os dois olhos:
filosófico e crístico, a produção pseudônima e a produção religiosa. Com
efeito, a educação ou formação em Kierkegaard significa a paidéia
kierkegaardiana e esta se confunde, portanto, com sua própria filosofia. Em
seu Diário, em 1851, ano em que publica Sobre Minha Obra de Escritor,
Kierkegaard escreve:

Então, com a educação em outros tempos. (...) (A


educação já foi transmitida com a vara, como visto no
Erasmus Montanus de Holberg). Agora não há nada além
de admoestação, tudo se reduz à compreensão; a
criança deve compreender que se quer o seu bem, etc.
– mas a existência no fundo não é afetada. Considere
agora as coisas mais elevadas. No campo religioso a
atenção, também, foi voltada para o “meditar”, para o
“compreender”. É claro que isso também pode ser um
esforço: mas o verdadeiro esforço consiste na mudança
da existência, e é um imenso equívoco acreditar que é
suficiente ter compreendido as coisas mais elevadas
para fazê-las. Oh, do compreender ao fazer a distância
é infinita, muito maior que do não compreender para o
compreender. No primeiro caso, há uma completa

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
55

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

metabasis eis allo genos qualitativa. Mas,


existencialmente, o homem é muito relutante em se
relacionar com o risco: para ter êxito em entender e
entender ele pode, por sua vez, passar toda a sua vida
sem que a existência tenha mudado de comportamento.
Nós riríamos se um candidato a um diploma do ensino
médio, apresentando-se ao exame, dissesse: “Vou me
apresentar na próxima vez!” - mas todos nós não
fazemos o mesmo? Nós trabalhamos tanto para
compreender e dizemos: “É suficiente eu ter
compreendido; então depois eu farei isso [que
compreendi], veja que então a coisa virá por si só, etc.”.
E depois a morte nos colhe! Mas se a morte não nos
impedisse, certamente teríamos feito isso [que foi
compreendido]. Claro..., se isto é primeiro você
compreendeu bem! Oh, humana astúcia do
compreender! Um dia de jejum, um ato para
testemunhar a verdade: tudo isto toca uma existência
de um modo completamente diferente que dez ou cem
anos de estudo. Trabalhando na direção do
compreender se toma um caminho falso, e é muito
mais verdadeira a concepção tradicional que empurrava
para começar imediatamente com o agir
(KIERKEGAARD, 1980, p. 37; D 9, 3512 [X A 289],
tradução nossa).

A educação em tempos anteriores ao de Kierkegaard, ao que parece,


prevalecia por meio da força ou violência. O que resultava dessa forma era
uma ação exterior privada de disposições interiores do indivíduo: “a
existência no fundo não é afetada”. O indivíduo agia, por educação, quer
dizer, por força de uma autoridade externa que o forçava para um modo de
ser e agir. Nos tempos de Kierkegaard a necessidade da ação é substituída
pela admoestação, pela advertência, pelas normas e regras4. A educação,
pois, é reduzida a ideia de que a primazia está no compreender. Nos

4 Sobre esta crítica de Kierkegaard (KIERKEGAARD, 2012) veja Uma Recensão Literária
(ou Época presente) de 1846.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
56

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

“tempos anteriores ao de Kierkegaard” e “no tempo de Kierkegaard”,


significa: em todo tempo e lugar a educação, ou qualquer questão, sempre
é colocada numa relação equívoca com a verdade. Diante da situação do
modo de ser da educação, Kierkegaard apresenta-se como filósofo para
chamar a atenção da relação autêntica com a verdade. A posição de
Kierkegaard é garantir a primazia do agir em relação ao compreender, ao
tratar da educação, como de qualquer outra questão. Mas um agir livre do
indivíduo em que é afetado e co-movido (Pathos) pela educação, enquanto
paidéia, desencadeando no indivíduo o desejo de agir, quer dizer, de tornar-
se si-mesmo apropriando-se de um modo de ser no mundo. Nessa
perspectiva, desde a tonalidade afetiva (Stemning) da verdade, o indivíduo
fica imune do contágio perigosíssimo do compreender que protela
disfarçadamente (através do compreender!) o agir, buscando, ao contrário,
o compreender, mas na justa medida que o conduz a si-mesmo. Desde fora
da tonalidade afetiva (Stemning) da verdade o compreender se mostra para o
indivíduo como tentação do sempre mais compreender e, assim, o
indivíduo, com toda solenidade e erudição, é tomado pela atmosfera
(Stemning) da nivelação (Nivellering) e, portanto, do desespero (Fortvivlelse).
Com efeito, o indivíduo mesmo com toda sua erudição, ou por causa dela,
se despersonaliza, vivendo na desmedida (Hybris) que o afasta de si-mesmo.
Quando o compreender tem a primazia em relação a ação isto já é sintoma
e odor (desagradável!) de que o indivíduo está doente de desespero e sofre
dos males do “lado sombrio da época” (KIERKEGAARD, 2012, p. 74): a
conversa fiada ou falatório (snakke), a informidade (Formløshed), a superficialidade
(Overfladiskhed), o galantear (Leflerie), a loquacidade (raisonere).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
57

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

A primazia do compreender, da lógica e do pensamento calculador


das ciências, em uma palavra, a filosofia de “autópsia” (KIERKEGAARD,
2013, p. 48) é equívoca e enganadora. “Trabalhando na direção do
compreender se toma um caminho falso” (KIERKEGAARD, 1980, p. 37;
D 9, 3512 [X A 289], tradução nossa), quer dizer, o filosofar, o fazer
filosofia não deve, paradoxalmente, tomar o caminho, a via do
compreender, mas o filosofar se faz e per-faz pela via da apropriação do
compreender na existência. O caminho do compreender é a poteriori, é
epigonal, pois a experiência primeira, a primazia, a arché, deve-se ao
movimento da vida fazendo Vida, o si mesmo (Individ) tornando-se si-
mesmo (Selv; den Enkelte) e, portanto, um movimento carregado de pathos
qualificando a existência5! A partir disto e por causa disto, quer dizer, desde
essa experiência pré-teorética é que o compreender, a teoria, encontra seu
lugar de explicitação enquanto e como estando a serviço da ação, da
efetivação ou apropriação da existência. Não seguindo este movimento e,

5 É justo isto que Kierkegaard designa de edificante ou edificação. É um pensar que se


edifica a partir ou desde as fundações (Cf. KIERKEGAARD, 2005, p.242-243). Fazer
filosofia abstratamente, segundo os critérios da lógica e do pensamento calculador, da
“autópsia”, é precisamente não partir das fundações e, portanto, sair da atmosfera
(Stemning) kierkegaardiana. As fundações são a arché e o pathos da filosofia kierkegaardiana,
as tonalidades afetivas, a saber: angústia, desespero, amor, repetição, preocupação,
paciência, etc. Entendê-las em categorias lógicas abstratas significa compreendê-las em seu
próprio modo de ser, ou desvirtuá-las tirando-lhes suas forças existenciais? Tomando o
caminho do compreender ao explicá-las nessa paisagem estranha a elas não as deturpamos
ao invés de penetrarmos existencialmente em seu verdadeiro sentido? Gabriel Marcel
defende que explicar o mal conceitualmente, contemplativamente “deixa de ser o mal
sofrido: simplesmente deixa de ser o mal” porque já não nos afeta, pois compreender
efetivamente o mal sem desvirtuá-lo em considerações lógicas abstratas significa “que estou
implicado nele, no sentido que estamos implicado em um negócio” (MARCEL, 1987, p. 39,
grifo do autor). Tomar o compreender como primazia, estabelecendo o pensamento
objetivo como Stemning de uma determinada filosofia não é justamente tal procedimento a
prova cabal do pensamento objetivo oposto e antítese do pensamento subjetivo no qual
se enquadra o kierkegaardiano?

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
58

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

portanto, dando primazia ao compreender, a teoria, a filosofia, a educação


se descaracteriza e se destroça sob o peso pesado (e triste, carente de vida!)
da erudição.
Autó-psia diz ver por si mesmo. Refere-se a exame de cadáveres para
determinar as causas da morte e doenças do morto. Transpondo para a
cultura, mais especificamente, para a filosofia e, portanto, para a dimensão
do espírito é um equívoco. Fazer filosofia ao modo de autópsia é querer
partir e fragmentar o corpo, os órgãos, a letra com o intuito de encontrar,
de ver por si mesmo, através disto, o espírito. É o fenômeno do “zelotismo
da letra” (KIERKEGAARD, 2013, p. 40) porque embora pense e anuncie
que busca o espírito na verdade, e, em verdade, adora a letra. Se for verdade
que este procedimento extrai muitas informações sobre o corpo, sobre a
letra, tornando alguém um erudito, um filósofo ou professor legista, é
igualmente verdade que jamais consegue ver por si mesmo o espírito. “O
pensamento abstrato [de autópsia?!] ajuda-me, portanto [...] como, em
Holberg, o médico tirou a vida do paciente com seu remédio – mas também
afugentou a febre” (KIERKEGAARD, 2016, p. 14). Fazer filosofia ao
modo de autópsia, na cadência decadente da disritmia da lógica e do
pensamento calculador da ciência, é coisa de Tomé, ou melhor, de Judas, o
Iscariotes!6.

6 Na linguagem corpórea e espiritual da capoeira – complementa Carcará, meu pseudônimo


- plena de vivacidade e de ritmo próprio e apropriado, na musicalidade que desvela e revela
situações, seria comunicado indiretamente a carência de mandinga (pseudonímia!) para a
coisa, a falta de jeito para gingar na roda efetiva da vida. A discussão crítica aqui de autópsia
enquanto um ver por si mesmo, mas na atmosfera de legista (legalista!), de corpo sem alma,
de textos sem espírito, relaciona-se a necropsia, a cadáver. Mas a autópsia em seu sentido
positivo e excelente é o ver por si mesmo, autópsia, mas na atmosfera do médico ou de
um autoexame, em vista de um diagnóstico relacionado à saúde, à vida; é o modo do
hermeneuta, não do analítico! Neste sentido mais positivo, neste modo de ver a coisa pelo

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
59

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

“Oh, humana astúcia do compreender!” (KIERKEGAARD, 1980,


p. 37; D 9, 3512 [X A 289], tradução nossa). De fato, é uma astúcia do
compreender que contaminando, numa determinada forma de desespero,
o erudito e homem culto, desdobra-se diante de seu espírito trilhões de
justificativas lógico-demonstrativas, da antiguidade aos nossos dias,
fazendo-o escolher alguma delas como chave de compreensão, num
verdadeiro mortal carpado ou numa folha seca interpretativa, des-locado da
existência, justificando para depois o agir efetivo e, ao mesmo tempo,
anestesiando sua consciência para estar acomodado comodamente em sua
inautenticidade, na não-verdade.
É um grande equívoco confundir ou ocultar o verdadeiro
movimento inserindo o compreender como arché. Daí segue-se o erro de
acreditar que quanto mais compreende, quanto mais conhece algo isso já

filósofo hermeneuta, a autópsia só se interessa pelo corpo, pelos textos porque sabe que
eles custodiam a alma, o espírito. O filósofo busca no texto o que está para além do texto:
a voz do Ser ou de Deus. Extrair uma meditação desta atmosfera positiva de “autópsia” é
tema para outra meditação, que desejamos empreender, num diálogo de Kierkegaard com
Heidegger e Schopenhauer. Schopenhauer escreve criticando os eruditos, àqueles que se
atém e investem no conhecer muitas informações sobre tudo, mas não se concentram na
simplicidade da coisa ela mesma; não saboreiam a variação do mesmo (Selbe), da mesma
questão, mas pensam e se embriagam na variação de muitos temas “aprofundando” na
horizontalidade da superfície da coisa: “Ler em lugar das obras originais dos filósofos
exposições de suas teorias ou, em geral, história da filosofia é como pretender que outro
mastigue a própria comida. [...] Mas com relação à história da filosofia está realmente a seu
alcance tal autópsia de seu objeto, em concreto, nos escritos originais dos filósofos [...]
(SCHOPENHAUER, 2006, p. 67, tradução nossa, grifo nosso). Heidegger escreve no
semestre de verão de 1928 em Marburgo: “A grande esterilidade dos cursos acadêmicos
sobre filosofia tem seu fundamento, entre outras coisas, em que, em um semestre, se
pretende ensinar ao ouvinte, seguindo os conhecidos grandes traços [visões panorâmicas!],
o mais possível sobre tudo o que há no mundo, ou inclusive mais além dele. Temos que
aprender a nadar e, em compensação, nos limitamos a passear ao largo da orelha do rio,
conversamos [tagarelamos] sobre o murmúrio da corrente e falamos das cidades e aldeias
pelas que ela flui. É certo que desta forma nunca surgirá no ouvinte a chispa que
permita fazer crescer nele uma luz que nunca mais poderá apagar-se em seu
Dasein” (HEIDEGGER, 2007, p. 17-18, tradução nossa, grifo nosso).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
60

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

implica em apropriação existencial. Kierkegaard é claro ao escrever que


existe “uma completa metabasis eis allo genos qualitativa”
(KIERKEGAARD, 1980, p. 37; D 9, 3512 [X A 289], tradução nossa) do
compreender para o fazer. Não se passa do compreender para o fazer, para
a ação. Isto está interditado. É no fazer da ação, quer dizer, em agindo que
somos conduzidos à explicitação do agir da ação. Esta confusão de dar,
equivocadamente, primazia ao conhecer atinge não só a educação escolar,
a filosofia, mas afeta até em nível religioso. O tom que harmoniza a
educação ajustando-a na justa medida de si mesma encontra-se no pro-
mover a mudança da existência. Eis o verdadeiro movimento intelectual
(inter-legere)! Não se pode negar que tomar o caminho equivocado do
compreender não seja um esforço. E que esforço! Mas um esforço que
incha mantendo uma flacidez que não tonifica verdadeiramente; basta um
olhar socrático para logo perceber a sofist-icação, erudição, flacidez do
empreendimento. “O verdadeiro esforço consiste na mudança da
existência, e é um imenso equívoco acreditar que é suficiente ter
compreendido as coisas mais elevadas para fazê-las” (KIERKEGAARD,
1980, p. 37; D 9, 3512 [X A 289], tradução nossa). O verdadeiro esforço da
filosofia e, portanto, da educação, é um movimento que pro-move a
tonificação e modificação da própria existência, quer dizer, o devir do
homem exige necessariamente uma modificação de todo seu ser e não
apenas em acréscimos de compreensões em nível intelectivo-cognitivo.
Ora, quando o grego fala paidéia, compreendendo educação ou
formação neste sentido amplo e integrativo, isto conduz a conectar, como
mostramos, a paidéia com a filosofia. Neste sentido, como e-videnciamos, a
paidéia kierkegaadiana não é outra coisa senão a filosofia de Kierkegaard que

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
61

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

exige a transformação do indivíduo nele mesmo, quer dizer, o percurso da


apropriação existencial desde si mesmo (Individ) para si-mesmo (den Enkelte;
Selv). A paidéia kierkegaardiana, melhor, a filosofia de Kierkegaard não é
outra coisa senão a descrição da via sacra da existência, a cristificação ou
concretização do existente.
Este acento na modificação da própria existência, esta exigência
eucarística que transubstancia a própria existência liberando sua identidade
verdadeira é o que o grego chama de Areté. Areté é Virtú. Mas areté não é
virtude em sentido decadente, derivado de virtude moral. Aqui, antes,
originariamente, areté, em grego, e, com o olhar ou per-spectiva (a palavra
diz ver através) grega, não soa ou ressoa a beatice, não evoca a figura de
alguém que construiu sua própria santidade a partir e em vista de um
moralismo sem jamais tocar na dimensão mais originária e, portanto, mais
verdadeira e autêntica da santidade, a saber, a mística. Areté, aqui, pois, não
tem relação com “santo de pau oco”! Areté justamente se opõe a isto porque
é uma virtude, uma força, um poder que nasce e se desenvolve desde
dentro, no silêncio e solidão, sem holofotes, no anonimato de uma vida
oculta, preenchendo, melhor, irradiando desde dentro até atingir a
totalidade do homem e dos homens. Um homem que atingiu a areté é um
indivíduo singular (den Enkelte; Selv) porque não tem mais um oco, mais
hipocrisia, porque o oco originário, o vazio de sua constituição
indeterminada foi preenchido pelo Ser, melhor, este individuo singular foi
atingido, tocado, afetado (Pathos) por um modo de ser. Apropriando-se de
um modo de ser o indivíduo se singulariza, sendo preenchido, sendo
unificado, sendo um si-mesmo ao se determinar efetivando um modo de
ser, ele torna-se per-feito (areté!) por ser feito, do princípio ao fim, através

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
62

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

daquilo que fez. A areté indica, pois, a per-feição do homem, o ser


atravessado de cabo a rabo pela conquista de sua identidade, de sua feição.
A areté em afirmando e fincando força, virtude, poder na existência do
homem concretiza a excelência do homem em se fazer verdadeiro homem. A
areté é outro nome para dizer o devir existencial do homem, o movimento
que desde si mesmo (Individ) apropria-se ou conquista a si-mesmo (den
Enkelte; Selv). Este movimento do homem se fazer Homem, singularizando-
se, da vida se fazer Vida, do si mesmo se fazer Selv é o movimento, a
passagem da não-verdade para a verdade e, assim, é o pão de cada dia que
alimenta todo filósofo. Filósofo tem que se ocupar primariamente disto e
explicar somente isto. Apenas e somente isto! É aí que a filosofia acontece,
aparece, nasce, cresce e se eterniza! “E o Logos se fez carne e habitou entre
nós”. “Vinde e vede!”
Este movimento que acima descrevemos como sendo a paidéia
kierkegaardiana que se confunde com a própria filosofia agora se conecta
também com a areté. A paidéia, com efeito, visa a areté. A paidéia, enquanto
educação ou formação, tende para, inclina-se para a areté. O telos da paidéia
é, pois, a areté enquanto e como a excelência, a nobreza do homem. A areté
é, então, a realidade efetiva da paidéia enquanto esta é a possibilidade
cumprida daquela. A paidéia, porém, não se determina como meio ou
instrumento que se deve adquirir para se atingir uma determinada
finalidade. A paidéia compreendida nesta decadência, ou derivação de seu
sentido mais originário, seria justificável ou teria validade apenas pelos seus
resultados. Os resultados, os fins justificariam e garantiriam autoridade e
valor para a paidéia. Mas a experiência grega e o modo grego de falar paidéia
e areté é mais radical por estar enraizado com a experiência da própria vida

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
63

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

fazer Vida, do si mesmo tornar-se si-mesmo. A paidéia estabelece uma


tensão em sua inclinação para (filia), em seu estar afinado para a areté sem
que isso se realize em degraus, em progresso quantitativo, mas como um
salto qualitativo7. A paidéia não se validaria pela areté porque a areté não é
simples resultado de algum processo, mas, antes, originariamente, a paidéia
realiza, concretiza a areté em cada instante de seu vir a ser. A paidéia é a
possibilidade de poder ser ou ser-capaz-de, areté. A paidéia já é, então, em si
mesma, areté. A areté fala eloquentemente deste movimento (paidéia) de
engendramento do novo, do renascimento do novo homem, do homem
que essencializa sua humanidade singularizando-se, o homem mais homem,
o Selv. Gilvan Fogel descreve com olhar de filósofo este movimento:

A educação, paideia, já é areté. O movimento para a coisa


já é a própria coisa, isto é, o movimento para a areté, a
paideia, já é ele mesmo areté. Areté é, pois, formação,
educação; educação, formação, é, pois, areté. E areté,
dizendo virtude, força, claro, não pensa ou subentende
força no sentido bruto ou físico, mas força no sentido
de força de ânimo, de alma, que é força vital, vitalidade.
Isso, para o grego, está ligado à excelência, à nobreza ou
ao aristocrata, isto é, ao forte. Mais uma vez, aristocracia,
nobreza, aqui, são termos que, de modo algum, tem
conotação étnica, social ou política, mas, sim, antes,
filosófico-vital ou existencial. Referem-se pois à
essência do homem, à vitalidade humana. Nobre,
aristocrata, forte, é o homem mais homem, isto é, aquele

7 Aqui, a lógica, ou o “mito do intelecto”, como gosta de expressar Vigilius Haufniensis,


“explana o círculo como uma linha reta, e aí tudo se passa naturalmente
(KIERKEGAARD, 2010, p. 34). Retirando o fenômeno de seu caráter de círculo, de
paradoxo, o esvazia de seu verdadeiro sentido. A lógica, a filosofia de autópsia, o professor
legista, vestido sempre a caráter, de paletó e, às vezes, até de gravata, com a seriedade (sem
de fato ser), afinada com seu trabalho, não compreende o que está em causa: “A qualidade
nova surge com o primeiro, com o salto, com a subitaneidade do enigmático”
(KIERKEGAARD, 2010, p. 32).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
64

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

que mais decidida e mais essencialmente realiza a sua


humanidade. Educar é cultivar isso, cuidar disso.
Nesse contexto, a educação, a “paideia”, visa
conquistar e realizar a “areté” e isso através da
transformação do homem pelo homem, ou seja, através
da transformação da humanidade do homem pelo
próprio homem e isso quer dizer: através de seu saber
radical ou fundamental a respeito da realidade como
um todo e de si próprio, em particular – isso, porém,
é a filosofia (FOGEL, 2010, p. 38, grifo do autor,
negrito nosso).

A paidéia kierkegaardiana enquanto este movimento, este devir que


conduz o homem para ser mais propriamente homem, para ser homem em
sua excelência traduz a areté. A paidéia kierkegaardiana enquanto núcleo da
filosofia de Kierkegaard implica em areté, quer dizer, num tipo de filosofia
que postula a exigência de modificação da própria existência apropriando-
se da efetivação da possibilidade mais própria que torna um si mesmo, um
si-mesmo — um Selv.
Como, pois, se caracteriza ou se apresenta a filosofia de Kierkegaard
ou A paidéia kierkegaardiana? O diagnóstico da época, quer dizer, de toda e
qualquer época, é de que o homem está na não-verdade, está doente, não
se encontra na verdade, com saúde, curado. O si mesmo (Individ), o modo
de ser do esteta, inicialmente está na não-verdade, na indeterminação que
vai se determinando na ilusão. Para tornar-se si-mesmo (Selv; den Enkelte),
no modo de ser do ético-religioso ou religioso, precisa cotidianamente
despertar, se conectar, ou se religar ao Poder que constitui e constituiu sua
própria “originalidade primitiva” (Primitivitet) ou “estrutura primitiva”
(nemlig primitivt) (KIERKEGAARD, 2008a, p.55; SKS 11,149), quer dizer,
ontológica; não no além, mas nele mesmo, no que ele é. Aqui, realizou o

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
65

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

movimento da paidéia tornando-se curado do desespero, do desacordo de


sua constituição impossibilitando de ser si-mesmo. Tornando-se si-mesmo,
o homem mais homem, essencializando seu ser homem ao se singularizar, a
areté do homem sendo e-videnciada, a própria existência com sua
singularidade proclama: Ecce homo! Na linguagem filosófica de Kierkegaard
significa: este homem mais homem, a excelência do homem, sua nobreza é
o ter se tornado cristão ou simplesmente, um homem singular. Em
Kierkegaard tornar-se homem ou cristão coincidem por ser uma única
experiência que não depende de doutrina ou Igreja, mas de uma apropriação
existencial do eterno na finitude do homem religando-se ao Poder, não no
além, mas na finitude do próprio homem, sendo Ele, Deus, este Poder,
constitutivo e constituinte da própria estrutura primitiva do si-mesmo
frente a qual o si-mesmo não tem poder. Por isso que o si-mesmo tem sua
fundamentação não nele mesmo, mas num Poder que fundamenta a sua
possibilidade de poder ser.
É por tudo isto que Kierkegaard criou seu projeto filosófico em
dois percursos dialéticos, a pseudonímia e a religiosa, considerando a
necessidade de retirar o homem da ilusão, ou torná-lo atento sobre sua
situação na não-verdade. Pensar com Kierkegaard a filosofia, quer dizer, o
homem e a realidade efetiva, com apenas um olho ou um olhar é sofrer de
estrabismo dificultando ver a coisa mesma que está em causa. Na maioria
das vezes, quando a formação na filosofia se dá como erudição, buscando
na filosofia respostas imediatas para solucionar problemas do real,
dificilmente o estudante e professor não sofrerão de ambliopia filosófica ao
olhar para a tradição filosófica. Mas fazer filosofia, estudar e/ou lecionar,
implica num empreendimento difícil precisamente por exigir acuidade de visão

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
66

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

como admoesta Platão antes de iniciar a construção filosófica da República:


“a pesquisa que íamos empreender [filosofia!] não era coisa fácil, mas
exigia, a meu ver, acuidade de visão” (PLATÃO, 2010, p. 71, 368c, grifo
nosso). Daí que em Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra de Escritor
Kierkegaard oferece, por assim dizer, os óculos para que o leitor (a) possa
ver com nitidez a coisa mesma que está em causa:

O primeiro grupo [primeiro percurso] de escritos


constitui a produção estética [pseudônima]; o último
[segundo percurso], a produção exclusivamente
religiosa: o Post-Scriptum definitivo e não científico encontra-
se entre os dois, formando o ponto crítico. Esta obra põe
e trata “o problema” que é o de toda a obra, de tornar-
se cristão [...] (KIERKEGAARD, 2002, p. 31-32, grifo
do autor).

Chegou, pois, o momento para explicitar o método da comunicação


indireta ou maiêutica kierkegaardiana. Método aqui também deve ser
compreendido em sentido grego como metá-hodos e não no sentido das
ciências. Metá-hodos está dizendo um modo de se caminhar por um caminho
(hodos) que determinará ou conduzirá a uma finalidade (metá). Aqui, para
desespero da Lógica, ou do filósofo ou Herr professor legista, a finalidade
não se dá como fim do processo, mas é ela mesmo o próprio caminho. O
en-caminhar-se pelo caminho, lançando-se num modo de caminhar já é em
si mesmo, a cada instante de seu vir a ser, o metá, a finalidade, o telos. Este
modo de se caminhar na filosofia e, portanto, na paidéia kierkegaadiana, se
dá ou se realiza mediante a comunicação indireta ou maiêutica
kierkegaardiana. A necessidade da comunicação indireta engendra a
produção pseudônima e religiosa. A totalidade da obra ou do corpus

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
67

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

kierkegaadiano, portanto, é constituída desses dois olhos ou desses dois


olhares sobre a coisa, a saber, o tornar-se homem ou cristão. Que é, pois,
método da comunicação indireta? Existe uma necessidade de natureza
filosófica para criar essa dialética da produção pseudônima e religiosa, ou é
um mero capricho de Kierkegaard que não tem implicação em sua filosofia?

II

Qual o sentido do método da Comunicação Indireta (indirecte


Meddelelse) engendrar a produção pseudônima e religiosa? Em que se
fundamenta este procedimento? Esta tática ou estratégia de Kierkegaard,
enquanto escritor-filósofo, foi conscientemente arquitetada para combater
uma dupla ilusão, ou duas dimensões de uma ilusão que corroía a vida
doméstica e social dos indivíduos e na cultura, particularmente, na filosofia
e na teologia, a saber: a ilusão da convicção, na cristandade, de acreditarem
que já são cristãos, e a ilusão acústica de pensarem que o cristianismo se
resolve ou se explica pelo conceito, pela reflexão, pela filosofia. Do ponto
de vista filosófico, grego, isto gera um equívoco para o pensamento, pois o
homem encontra um obstáculo para realizar ou cumprir sua essencialização
ou singularização, o tornar-se o que precisa vir a ser. Ora, ao perseguir uma
compreensão de homem dada pelo cristianismo que foi falsificado na
modernidade e chega com Hegel, no início da contemporaneidade, a seu
ápice, em que a filosofia se perde a si mesma na abstração, o homem vive
ou critica um cristianismo caricaturado. E, assim, a filosofia moderna
desorienta o homem através do excesso de reflexão protelando ao infinito
a efetivação da ação dificultando ou mesmo impossibilitando do homem

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
68

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

ser mais homem. Esta acústica reverbera na vida prática dos indivíduos
fazendo da cristandade uma falsificação do verdadeiro cristianismo. A vida
prática dos cristãos perde a essência do cristianismo e, assim, desprovidos
do crístico, perdem a medida de Deus, acomodando-se num cristianismo
que de muitos modos reforça a ilusão de já serem cristãos, portanto,
matando o movimento de conversão, todos se eximem de se esforçarem
numa ação efetiva à medida de Deus porque já tem à medida do pastor, da
Igreja, da cristandade. No âmbito, pois, da vida prática, já não existe prática
efetiva muito embora prevalece a ilusão de como se existisse e, no campo da
cultura, na filosofia e teologia, a compreensão e reflexão tem primazia sobre
a prática, a ação, na ilusão que deste procedimento por si já fosse a ação.
Instaura-se um círculo vicioso (não o círculo virtuoso do paradoxo de toda
filosofia verdadeira!) perdurando a ilusão como e enquanto ilusão.
Tem razão Anti-Climacus/Kierkegaard quando afirma existir uma
diferença qualitativa entre o paganismo grego e o paganismo dentro do
cristianismo. Anti-Climacus declara sem ambiguidade:

Esta diferença consiste em que o paganismo antigo


desconhece, sem dúvida, o espírito, porém está
contudo orientado para o espírito, enquanto ao
paganismo dentro da cristandade falta-lhe o espírito no
sentido de que foi afastando-se dele, traindo-lhe, o que
faz com que este último e peculiar paganismo
represente uma negação do espírito muito mais
rigorosa (KIERKEGAARD, 2008a, p. 69, tradução
nossa).

Temos, pois, dois tipos de paganismo: o grego, anterior ao


surgimento do cristianismo, e o paganismo no cristianismo, na cristandade
e na cultura, afirmando-se, não obstante, cristão. O paganismo grego está

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
69

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

orientado para o espírito. Por isso “é bem mais preferível”


(KIERKEGAARD, 2010, p. 103) – é categórico em afirmar Vigilius
Haufniensis/Kierkegaard. A situação do paganismo dentro do cristianismo
é periculosa porque carece de espírito, não possui o espírito e, assim,
falsifica o espírito, exorciza-o, dando, porém, a ideia de que o possui. A
citação acima de Anti-Climacus praticamente retoma, como ele bem
declara, a reflexão de Vigilius Haufniensis, cinco anos antes, em 1844, em
O Conceito de Angústia:

Na a-espiritualidade [cristandade e filosofia moderna!]


não há nenhuma angústia, para tanto é por demais feliz,
é por demais contente, por demais carente de espírito.
Este motivo é, porém, muito triste, e neste ponto a
diferença entre o paganismo e a falta de espiritualidade
consiste em que aquele se dirige para o espírito, e essa
se afasta do espírito. O paganismo é, pois, pode-se dizer,
ausência do espírito, e como tal muito diferente da
insipidez espiritual [...] A a-espiritualidade é a
estagnação do espírito e a caricatura da idealidade
(KIERKEGAARD, 2010, p. 102-103, grifos do autor).

O decisivo nessas passagens para compreender a crítica


kierkegaardiana está no conceito de “espírito”. Primeira linha do capítulo 1
Anti-Climacus escreve: “O homem é espírito. Mas o que é espírito? O
espírito é o eu [si-mesmo]” (KIERKEGAARD, 2008a, p. 33, tradução
nossa). O si-mesmo em sendo espírito está dizendo que o si-mesmo se
conecta com o eterno no si-mesmo e, deste modo, cumpre ou realiza sua
essencialização ou singularização ao se tornar o homem mais homem.
Vigilius Haufniensis explica a inocência, quando o indivíduo se encontra na
não-verdade, quer dizer, quando ainda não se determina como espírito: “A

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
70

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

inocência é ignorância. Na inocência, o ser humano não está determinado


como espírito, mas determinado psiquicamente em unidade imediata com
sua naturalidade. O espírito está sonhando no homem”
(KIERKEGAARD, 2010, p. 44-45). Neste caso o espírito está presente,
mas de forma paradoxalmente ausente, “está sonhando”, entretanto, pode
ser despertado e, então, o homem efetiva sua singularização, sua passagem
da não-verdade para a verdade, determinando-se não mais “psiquicamente
em unidade imediata com sua naturalidade”, mas como espírito, realizando
ou efetivando a síntese do si-mesmo. Este despertar é o papel de toda
filosofia e, portanto, a paideia kierkegaardiana visa esse movimento
existencial.
Kierkegaard tem o olhar grego, socrático, e o olhar crístico
desvelando o equívoco de toda a filosofia moderna. É preferível a filosofia
antiga que, na radicalidade de seu pensar, está numa situação de abertura ao
espírito, do que a filosofia moderna. Esta, mesmo trabalhando os
conteúdos do cristianismo, justificando-o filosoficamente, sobretudo em
Hegel, na verdade, afasta-se do espírito. Por isso que Climacus em Migalhas
filosóficas realiza um pensar que faz justiça ao grego e ao crístico, ao filosófico
e ao bíblico por causa desses dois olhos ou das duas perspectivas de visão
de Kierkegaard: a perspectiva socrática (grega) e a crística (ou o
“experimento teórico” [Tanke-Projekt], o “Projeto de Pensamento” do
cristianismo).
O método da comunicação indireta ou maiêutica kierkegaardiana
encontra sua fundamentação nesta dupla ilusão e é arquitetado
conscientemente por Kierkegaard com a finalidade de destruí-la. Sua
filosofia e, portanto, a paidéia kierkegaadiana está a serviço dessa

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
71

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

destruição. A produção pseudônima tem sobretudo, como apontamos, a


mesma função que João Batista tinha em relação a Cristo, a saber, “preparar
o caminho do Senhor”, estabelecendo uma crise, um dar-se conta do
equívoco da tradição filosófica e da vida cotidiana criando no homem, no
si mesmo uma abertura ao espírito suplantando o vazio do si mesmo no
movimento integrativo, unitivo do tornar-se si-mesmo. A produção
religiosa, trabalhando as mesmas questões dos pseudônimos, mas desde outra
tonalidade afetiva (Stemning), complementa, aperfeiçoa a destruição operada pela
pseudonímia, edificando sobre os destroços da ilusão algo novo no novo
homem, no homem mais homem, quer dizer, no si-mesmo ao sintetizar o
si mesmo singularizando-se.
Kierkegaard (1813-1855) não tendo morrido em 1846 como,
estranhamente, julgava que aconteceria e, portanto, tendo continuado sua
produção, considerou que chegara a um acabamento em 1848. Ele redige,
então, a obra Ponto de Vista da Minha Obra de Escritor: uma comunicação direta,
relatório à história, mas que só será publicada postumamente em 1859, por
seu irmão o bispo Peter Christian. Nesta obra está descrito o método da
comunicação indireta inclusive com um grande investimento
argumentativo por parte de Kierkegaard não só para esclarecer a
necessidade deste método para destruir a ilusão como também para elucidar
que o corpus kierkegaardiano foi previamente e conscientemente construído
com esta finalidade. Portanto, as obras não foram surgindo como mero
desenvolvimento temático de alguma questão, nem a preponderância dos
escritos religiosos, notadamente, do segundo percurso, depois de 1846, não
se deve ao fato do autor ter se tornado religioso com a idade tendo
abandonado a produção estética que estaria relacionada com sua juventude.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
72

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

Kierkegaard é claro em seu autorretrato, ao olhar para a sua produção, com


a seguinte “explicação: que o autor é e foi um autor religioso”
(KIERKEGAARD, 2002, p. 33). No início e no fim de sua produção
existem obras tanto estéticas quanto religiosas ainda que no segundo
percurso predomine a religiosa após a produção pseudônima ter aplainado,
preparado o caminho destruindo a ilusão provocando a abertura para o
acolhimento da produção religiosa na tonalidade afetiva (Stemining)
apropriada, própria.
O Ponto de vista escrito em 1848 foi, portanto, publicado
postumamente em 1859, em virtude de muitos pudores e cautelas de
Kierkegaard. Este tendo considerado que, em 1848, sua produção filosófica
chegara a um acabamento, era imprescindível um esclarecimento sobre sua
produção, sobre seu método, sobre a utilização dos pseudônimos com sua
lógica, psicologia e estilos de escrita peculiares. Então, em 1851, publica,
por assim dizer, uma edição reduzidíssima, de pouquíssimas páginas, do
Ponto de vista chamado Sobre Minha Obra de Escritor. Em 1849 — mas que na
verdade só veio a público como uma obra separada em 19658 em
dinamarquês — temos A Neutralidade Armada ou Minha Posição como Autor
Cristão na Cristandade. Temos algumas páginas de Exercícios no Cristianismo,
em 1850, que Anti-Climacus se ocupa em explicar sobre a natureza da
comunicação indireta: a dupla-reflexão e a reduplicação. Em 1846 com o
Pós-Escrito às Migalhas Filosóficas temos algumas páginas sobre a importância
da forma da comunicação artística do pensador subjetivo que encarna a
comunicação indireta. Portanto, o Ponto de Vista, Sobre a Minha Obra de

8Informação extraída da Introdução (p. XXV) do Tomo XVII das Oeuvres Complétès de
Kierkegaard (OC 17).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
73

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

Escritor, e A Neutralidade Armada, tratam especificamente de explicar a


posição de Kierkegaard diante de sua produção filosófica e, por assim dizer,
confessar que sempre foi um ator religioso e, por isso, um cristão, apesar
dos vários disfarces pseudônimos de boa parte de sua produção. Algumas
páginas das obras Exercícios no Cristianismo e do Pós-Escrito às Migalhas
Filosóficas, em relação ao método da comunicação indireta, se ocupam de
explicar a forma desta comunicação.
Se existe, como defende Kierkegaard, o fenômeno do paganismo
dentro do cristianismo, então é necessário um “missionário”
(KIERKEGAARD, 2002, p. 47) que reintroduza novamente o
cristianismo. Mas essa tarefa tem que ser revestida de uma tática peculiar
para que possa obter o êxito, ou ao menos tornar os homens atentos. Ora,
esta é a tarefa que Kierkegaard assume construindo conscientemente um
Projeto Filosófico, através de seu corpus philosophicus, de destruição daquela
dupla ilusão. Conduzir para o verdadeiro cristianismo, o cristianismo do
Novo Testamento, não se faz com apologia, com dogmatismo,
doutrinação, arrebanhando muitas pessoas com proselitismo farisaico, ou
na atmosfera do zelotismo da letra, de normas empoeiradas de um
cristianismo conservador, ou do mofo de um tradicionalismo alérgico à
existencialidade do rigor e amorosidade do verdadeiro cristianismo com
toda a plenitude da Boa Nova. Conduzir para, quer dizer, o movimento
dialético da paidéia kierkegaardiana se efetiva ao provocar uma crise
existencial em que o despertar existencial do indivíduo o coloca na
necessidade de manter uma relação de apropriação existencial com o
cristianismo. Isso não se faz criticando e condenando ao inferno a vida
estética, de prazeres, entretenimentos, curiosidades filosóficas e científicas

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
74

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

sem a seriedade da consequente modificação da existência. Este missionário


também não deve se colocar em situações, ou manipulá-las, para que se
mostre como sendo alguém com autoridade moral, nem como alguém que
tem uma autoridade intelectual ou sapiencial acima dos demais, ou que goza
de uma direta predileção divina como clérigo, ou docente, ou carismático.

Se todos estão na ilusão, dizendo-se cristãos, e se é


necessário trabalhar contra isso, esta noção deve ser
dirigida indirectamente, e não por um homem que
proclama bem alto que é um cristão extraordinário, mas
por um homem que, mais bem informado, declara que
não é cristão (KIERKEGAARD, 2002, p. 43).

A dialética da produção pseudônima e produção religiosa, enquanto


método da comunicação indireta, são como as armas para destruir a ilusão,
os dois olhos de Kierkegaard para ver a coisa nela mesma reconhecendo
toda impostura e inautenticidade. Esta duplicidade dialética de seu corpus
philosophicus é tão somente a encarnação ou o ter dado corpo à ironia
analisada em sua tese de doutorado em 1841: O Conceito de Ironia
Constantemente Referido à Sócrates.
Este missionário que deve reintroduzir o cristianismo no paganismo
dentro do cristianismo deve saber se colocar no lugar do outro, de seu
interlocutor, daquele que se julga um cristão verdadeiro mesmo sendo um
esteta sensual, ou intelectual. Eis o sentido filosófico dos pseudônimos em
que reproduzem uma situação existencial através de um drama real vivido
por este que deve receber a Boa Nova do cristianismo verdadeiro,
retirando-o da ilusão, ou tornando-o atento. O pseudônimo, enquanto
representa um indivíduo particular e não uma abstração da verdade ou do

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
75

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

Espírito Absoluto, possibilita ao leitor se identificar com o seu modo de


vida e de pensar, evidenciando, entretanto, em algum momento da obra, os
limites desse modo de existência abrindo para o mesmo a possibilidade de
desejar uma outra possibilidade de poder ser, de se determinar de outro
modo para livrar sua existência do vazio existencial que o pseudônimo
mostra de forma arrebatadora, mas num estilo muito espirituoso, literário,
de grande profundidade psicológica e embasado na tradição filosófica. A
decisão, porém, é sempre do leitor. Kierkegaard não escreve para
demonstrar de forma lógica uma posição que deve ser reconhecida como
verdadeira e, portanto, ser aceita.
A palavra pseudô-nimo está dizendo no pseudo grego que essa
possibilidade de poder ser ainda não é o nome verdadeiro, ainda não
transparece a verdadeira identidade, não sendo, pois, um modo autêntico
de ser possível de um Selv, um si-mesmo. Pseudô-nimo não diz, pois, apenas
um falso nome, não está dizendo a falsidade de uma identidade. Pseudo do
pseudô-nimo, em grego, evoca apenas que ainda não é o verdadeiro nome, mas
que não implica ser falso porque muitos indivíduos (si mesmos; Individ)
existem na realidade efetiva desde essa possibilidade de poder ser enquanto
modo de existência9. É justamente para esses que vivem na ilusão de que

9 A existência entendida como um modo de ser possível, por exemplo, ou esteta ou ético-
religioso, não está dizendo de uma passagem da não-verdade para a verdade que seja
necessária. O indivíduo, um si mesmo, pode escolher não entrar no movimento de tornar-
se si-mesmo, um Selv. Entretanto, o que se diz em tudo que foi dito é que existe a
necessidade de apropriar-se de um modo de ser, quer dizer, não se pode não escolher um
modo de ser porque o homem já está desde que aparece no mundo como e enquanto
homem num horizonte de sentido, num modo de ser. O que a paidéia kierkegaardiana pro-
cura é educar o homem para que possa entrar no movimento existencial de seu poder ser
mais próprio, tornando-se o que não poderia não ser se deseja ver-aparecer sua verdadeira
identidade, seu si-mesmo (Selv).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
76

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

acreditam ter o verdadeiro nome, que pensam que possuem um si-mesmo,


um Selv, que os pseudô-nimos, através da comunicação indireta,
possibilitam serem uma ocasião, uma possibilidade de poder despertar e,
assim, despertos da ilusão, darem-se conta de que precisam se colocarem
no movimento existencial da paidéia kierkegaardiana para desde si mesmo
tornarem-se si-mesmo, e, assim, tornarem-se um homem mais homem, um
Selv, um cristão.

Evoca [...] o mundo estético... e tu, homem sério e


austero (lembra-te que, se não podes humilhar-te, já
não és um homem sério) sê o ouvinte que os propósitos
do teu interlocutor mergulham no espanto, muito
divertido em os formular, e mais ainda em te ver assim
atento; mas, sobretudo, não esqueças uma coisa, a
retenção da adição, o religioso que tens em reserva. Ou
se puderes, muito bem: descreve o mundo estético com
todo os seus encantos, cativa, se possível, o teu
interlocutor, mostra este mundo tomando o tom da
paixão que convém a este homem, petulante se é
jovem, triste se é melancólico; espirituoso se gosta de
belas palavras, etc.; mas, sobretudo, não esqueças
uma coisa, a retenção da adição, o religioso a
apresentar; age apenas e sem receio, porque, na
verdade este método só é possível num grande temor e
tremor. És disso capaz, podes encontrar exatamente o
ponto onde se encontra o teu interlocutor e começar aí,
terás talvez a sorte de o conduzir ao ponto onde tu
estás. Ser mestre não é cortar a direito à força de
afirmações, nem dar lições para aprender, etc.; ser
mestre é verdadeiramente ser discípulo. O ensino
começa quando tu, o mestre, aprendes com o teu
discípulo, quando te colocas naquilo que ele
compreendeu, na maneira como o compreendeu [...]
(KIERKEGAARD, 2002, p. 46-47, grifo nosso)10.

10Essa tradução portuguesa foi traduzida por João Gama a parir da edição das Œuvres
Complètes de Kierkegaard, Tome XVI, traduzida por Paul-Henri Tisseau. O tradutor francês

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
77

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

Esta longa citação articula explicitamente a necessidade da


produção estética falar a língua do esteta, do homem iludido, com a
educação, com o ensino. Na verdade, a educação, o ensino, para que possa
ter êxito, melhor, para que a possibilidade de êxito seja algo real, é preciso
partir da “realidade efetiva” (KIERKEGAARD, 2010, p. 21), como exige
Vigilius Hafniensis/Kierkegaard. É preciso recriar a tonalidade afetiva
(Stemning) na qual se move o homem iludido, através da tonalidade afetiva
(Stemning) do pseudônimo, para que se desdobre o drama existencial da
verdade da apropriação (Tilegnelsens Sandhed). A pseudo-nímia retrata essa a-
propria-(a)ção, a saga, a luta e conquista da verdade.
Na verdade, ser mestre, ter como tarefa ou incumbência ensinar
algo, de natureza ético-existencial ou religiosa, a alguém, implica utilizar do
método da comunicação indireta. As questões fundamentais do homem,
existenciais, como é próprio das questões éticas e religiosas, não devem ser
comunicadas diretamente, mas de forma indireta. Nas ciências prevalecem
a comunicação direta (ou de saber), na ética e religião uma comunicação

traduziu essa frase que coloquei em negrito: “mais surtout, n’oublie pas une chose, la
retenue de l’addition, le religieux à presenter” (KIERKEGAARD, 1971, p.22, grifo
nosso). No original lemos: “men glem for Alt ikke Eet, Menten, som Du har, at det er det
Religieuse, der skal frem” (SKS 16,28, grifo nosso). Difícil essa opção da tradução por
“retenção da adição”. O fato é que nesse contexto em que o escritor religioso precisa se
apresentar na cristandade, em que impera a ilusão, ele precisa escrever obras estéticas para
cativar e seduzir o homem que vive na não-verdade com o intuito de libertá-lo da ilusão.
Deve, pois, falar a linguagem desse homem, esteta, afetando-o de diversos modos, mas
não pode esquecer o fundamental que é o religioso que está por vir, o acontecimento do
religioso que a produção estética apenas prepara. Como estou utilizando a tradução
portuguesa (e francesa) conservo, pois, os termos escolhidos pelo tradutor. O que é
essencial, porém, no contexto e como estou interpretando é que a produção pseudônima,
estética é o incógnito (Æsthetiske Incognito) porque retém o religioso, quer dizer, ela conduz
o homem através da desconstrução crítica da tradição filosófica para o edificante, para os
Discursos (Edificantes e Cristãos) onde encontra-se o acontecimento do religioso que estava por vir
(det Religieuse, der skal frem) em sua plenitude, sendo isto o decisivo (det Afgjørende).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
78

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

indireta (ou de poder)11. Nas questões existenciais em que o pesquisador


está implicado com aquilo que pesquisa e, portanto, por não se tratar de um
objeto exterior, um positum, envolvendo, ao contrário, interioridade,
apropriação, subjetividade é imprescindível uma forma indireta de
comunicação. É mister a pseudonímia, a utilização de várias linguagens que
afetem de fato o interlocutor mobilizando-o a modificar a própria
existência12. É preciso perceber neste procedimento uma mentira, um
engano, um pseudo, implicado no procedimento. Sim, no processo
educativo, pedagógico, está embutido a arte do engano na direção da
verdade! Não se assume a pseudonímia, não se adota uma linguagem por
ela mesma, mas por causa do religioso, para possibilitar o tornar o homem
mais homem, o si-mesmo. A pseudonímia é “a retenção da adição”, quer
dizer, o religioso é o telos da pseudonímia, sua complementação,
aperfeiçoamento, acabamento. “Pode enganar-se um homem em vista do
verdadeiro e, para lembrar o velho Sócrates, enganá-lo para o levar ao
verdadeiro. É mesmo a única maneira quando ele é vítima de uma ilusão”
(KIERKEGAARD, 2002, p. 53-54). Portanto, o estudioso da filosofia ao
ler Kierkegaard deve sempre cotejar a análise de um conceito desenvolvido
numa obra pseudônima com a produção religiosa do mesmo ano, os

11 Para um maior desenvolvimento dessa discussão da qual Kierkegaard acusa a filosofia


moderna de nem sequer discutir sobre esse problema da comunicação veja o pequeno livro
de Kierkegaard (1980, OC 14): A dialética da comunicação ética e ético-religiosa de 1847. E,
também, no Pós-escrito às migalhas filosóficas de 1846 no Volume 1 (2013) ver os números 1 e
2 do Capítulo 2, da Seção 1 da Segunda Parte, e no Volume 2 (2016) o parágrafo 4 do
capítulo 3.
12 Daí os vários gêneros literários, os diversos estilos de escrita, a profundidade psicológica

na descrição dos fenômenos da existência em que cada pseudônimo de forma particular


encarna em cada obra.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
79

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

Discursos Edificantes, ou os Discursos Cristãos na busca pela “adição” que foi


“retida” pelo pseudônimo.
Em A Neutralidade Armada aparece, como sempre, a perspicácia de
Kierkegaard como filósofo. Kierkegaard retira a expressão de um contexto
político, sem interesse em aprofundar historiograficamente estes fatos, mas
como filósofo abstrai, transcende dessa situação e aplica-o ao seu problema
filosófico por excelência. O cochilo erudito é querer conhecer todos os
detalhes deste contexto: estrabismo, ambliopia ou ametropia filosófica!
Kierkegaard, porém, como um vigilante (Vigilius), está desperto (não
cochila!), consciente que o mais fundamental é compreender a expressão
como algo apropriado ao problema, ao único problema a partir do qual
todos os outros derivam, a saber, o si-mesmo ou tornar-se cristão e a
imbricação com a realidade efetiva.

Como a obra consiste em evocar esta imagem ideal [do


ser cristão] é, então, mais um trabalho que insiste
sobre certas diferenças fundamentais necessárias
a seu cumprimento. Sobretudo em função das
múltiplas confusões da época moderna: eu tenho, para
caracterizar minha posição, escolhido as palavras
“neutralidade” e “armada” (KIERKEGAARD,
1982a, p. 235-236, tradução nossa, grifo nosso; OC 17).

A neutralidade armada é a expressão que Kierkegaard utiliza para


retratar seu papel como escritor cristão na cristandade. Não se apresenta
como um cristão, nem muito menos como um extraordinário, mas que
almeja trabalhar para alcançar isto através da comunicação indireta. Ele quer
lançar luz no cristianismo tendo in mente o ideal do ser cristão com toda a
severidade nisto implicado. A filosofia ao tratar do homem e do

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
80

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

cristianismo desconsidera “diferenças fundamentais necessárias a seu


cumprimento”, quer dizer, as determinações intermediárias
(Mellembestemmelser) como angústia, desespero, amor, preocupação,
paciência, repetição etc. a partir das quais o homem torna-se homem ou de-
para-se com uma dupla dificuldade: angústia ou dor do tornar-se si-mesmo,
a dor de se fazer homem, ou no fracasso ao tentar tornar-se homem em
virtude de ser tomado e arrastado por uma forma de desespero.
A neutralidade armada é o correlato filosófico da maiêutica
socrática. Não é uma neutralidade passiva, pois isso não existe. Mas uma
neutralidade ativa, quer dizer, armada. Ela indica sua postura, posição como
escritor religioso na cristandade. Assim como Sócrates se apresentava
diante dos sofistas, que se julgavam sábios, como sendo o ignorante, assim
Kierkegaard se apresentava na cristandade, em que todos se consideravam
cristãos, ainda que vivessem sob categorias estéticas, como um autor
religioso que, por mais que se esforçasse com total sinceridade, não
conseguia ser cristão. Esta ironia socrática, ou maiêutica kierkegaardiana,
ganha vida e vivacidade nos pseudônimos. Vigilius Haufniensis, por
exemplo, antes de mostrar a forma docente, ou mesmo ao utilizá-la na obra,
escrevendo em parágrafos numerados com toda a solenidade de um
professor de dogmática, em muitos momentos desvela ironicamente essa
situação com muito humor:

No que toca a minha humilde pessoa, confesso com


toda a sinceridade que como autor sou um rei sem terra,
mas também, em temor e muito tremor, um autor sem
quaisquer pretensões. Se a alguma nobre inveja ou
zelosa crítica parecer uma demasia que eu use um nome
em latim, então com alegria passarei a chamar-me

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
81

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

Christen Madsen, desejando acima de tudo ser


considerado como um leigo que decerto especula, mas
no entanto encontra-se bem fora da especulação [...]
(KIERKEGAARD, 2010, p. 10).

Nessa passagem percebemos a atuação da “neutralidade armada”,


da comunicação indireta. Kierkegaard justamente por ter consciência de sua
missão como filósofo ou escritor religioso, um “rei sem terra”, ainda assim
ajusta-se na justa medida de sua missão não querendo ter autoridade, nem
ter grandes pretensões sobre aquilo que escreve ou sobre o destino de suas
obras13. Nisto aparece a neutralidade. Mas a atividade, o ativo, dessa
neutralidade é ser armada. Isto fala da dialética da comunicação indireta, de
sua maiêutica, da produção pseudônima e religiosa. Na produção religiosa,
enquanto comunicação direta, possibilitada pela produção pseudônima,
aparece a “adição” do que foi “retido” nesta. A neutralidade armada é
justamente o movimento dialético da desconstrução (pseudonímia) e
edificação (religiosa), não vistos isoladamente, mas na intercomunicação de
ambas. Na passagem citada acima da obra O Conceito de Angústia – como
acontece em toda obra pseudônima – existem vários trechos, por exemplo,

13 Nessa mesma atmosfera Johannes Climacus inicia o prefácio de Migalhas Filosóficas,


mesmo ano de O Conceito de Angústia: “Isto que aqui se oferece não passa de um pequeno
folheto, próprio Marte propriis auspiciis, proprio stipendio [por nossos próprios meios, sob nossos
próprios auspícios, às nossas próprias custas], sem nenhuma pretensão de participar da
evolução da ciência, onde a gente adquire sua legitimação quer como um representante da
passagem, da transição, ou da conclusão, quer como um precursor, como participante,
como colaborador ou seguidor voluntário, como herói, ao menos um herói relativo, ou no
mínimo como um corneteiro de importância absoluta” (KIERKEGAARD, 2008b, p.19).
Quanta sobriedade para um filósofo! Ou melhor: é possível ser filósofo fora dessa
sobriedade?! Quantos não se debandam ou se movem, na Academia, embriagados nessa
hybris, lutando e se esforçando não para conquistar um si-mesmo, mas para ser ao menos
à tout prix um “corneteiro”! Quanto ensinamento e admoestações, pelo próprio exemplo,
que constrange a nós estudiosos de Kierkegaard quando adotamos outras disposições ao
estudar este filósofo que não era de Berlim, mas de Copenhague!

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
82

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

no qual Vigilius/Kierkegaard revela que a obra precisa ser complementada


por nela existir, como obra pseudônima, a “retenção da adição”, quer dizer,
o último capítulo já trata da fé, mas precisa continuar o desenvolvimento
temático nos Discursos Edificantes de 1844: “um leigo que decerto especula,
mas no entanto encontra-se bem fora da especulação”. A especulação é o
diálogo crítico com a tradição filosófica. A especulação, pois, é a tonalidade
afetiva (Stemning) da pseudonímia e o estar “fora da especulação” é a
tonalidade afetiva dos Discursos Edificantes, ou Discursos Cristãos, não no
sentido de ser contra a especulação, mas de apropriar-se dela! Então, o
pseudônimo Vigilius Haufniensis, quer dizer, o Vigilante da Tradição Filosófica
está dizendo que especula sim, isto é, dialoga criticamente com a tradição
filosófica, mas o faz para destruir o modo tradicional de compreender o
homem e a realidade efetiva de forma abstrata, conduzindo o leitor atento
para a tonalidade afetiva dos Discursos onde o homem é tratado
concretamente a partir de determinações intermediárias.
É muito significativo que Kierkegaard, em A neutralidade Armada,
explicando sua posição como autor na cristandade, escreva essa meditação
– na citação abaixo – que é tão só o reconhecimento de Kierkegaard
filósofo colocando-se na tonalidade afetiva do filósofo verdadeiro em meio
aos acontecimentos de sua época.

A idealidade, em relação ao fato de ser cristão, é sempre


uma interiorização [=singularização]. Quanto mais a
concepção dessa condição é ideal, quanto mais ela se
interioriza, mais a realização torna-se difícil. O ser
cristão sofre uma transformação que eu ilustrarei por
uma comparação de ordem profana. Houve primeiro
na Grécia os Sábios, sofoi. Mas veio Pitágoras e com
ele a determinação da reflexão relacionada ao fato de

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
83

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

ser sábio, a reduplicação; ele nem ousou dar a si mesmo


o nome de sábio, mas contentou-se com o de
filosofos. Isto é um regresso ou um progresso? Não
foi melhor concebido sob uma forma mais ideal o
sentido e a exigência deste termo de sabedoria, de sorte
que Pitágoras deu prova de sabedoria em não ousando
se qualificar a si mesmo de sábio. E agora, retornemos
à minha “neutralidade armada” (KIERKEGAARD,
1982a, p. 243-244, tradução nossa; OC 17).

Os filósofos no século XIX, mais precisamente após a morte de


Hegel em 1831, através da esquerda hegeliana, estão pensando criticamente
a relação da filosofia com o cristianismo. Os elementos dessa crítica são
contra a compreensão abstrata de homem e da vinculação racional de
filosofia e cristianismo. Kierkegaard entra neste debate crítico em
Copenhague, escrevendo em sua língua materna e não em alemão (hoje
seria o inglês!) sobretudo porque na Dinamarca predomina a forma
hegeliana de fazer filosofia. Assim como Pitágoras diante da grandiosidade
do ser sábio não ousou se denominar a si mesmo de sábio, mas contentou-
se em ser amigo da sabedoria, isto é, filósofo, da mesma forma,
Kierkegaard, diante da excelência do ser cristão, não ousa se denominar um
cristão, mas se coloca na posição daquele que sabe o que de fato implica ser
cristão e, portanto, vive na tensão, na filia, de buscar e conquistar tornar-se
cristão. Assim, neste contexto, Kierkegaard atualiza a filosofia e
corresponde, no século XIX, às exigências da filosofia fazendo justiça ao
modo grego, filosófico, e ao modo bíblico, cristão.
Na passagem citada acima Kierkegaard mostra uma característica da
comunicação indireta: a reduplicação. Diante da idealidade implicada em
ser sábio porque implica sempre interiorização, singularização, apropriação,
já que não se trata de uma coisa, de um positum, então Pitágoras muito

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
84

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

sabiamente recusa se qualificar de sábio, mas re-duplica, quer dizer, procura


efetivar, viver nisso que compreende e pensa qualificando-se de filósofo.
Filósofo, pois, não é aquele que é sábio, não se julga sábio, nem muito
menos tem postura de sábio. Filósofo vive no elemento da filo-sofia. Ele
respira a atmosfera da escuta e obediência da voz da sofia para modificar sua
existência, tornando-se filósofo, quer dizer, aquele que pensa e vive na
harmonia e inclinação amistosa da sofia. Filósofo é, nesse sentido arcaico,
um sofoi, um pensador subjetivo, um amoroso. Filósofo não pensa apenas
a sofia através do lógos, mas ele reduplica essa experiência encarnando em
seu corpo a verdade da apropriação. Filósofo não possui a sofia, mas vive a
experiência (pathos) de sua perene gestação. Essa experiência de gestação em
que exige ou provoca a modificação do corpo, da existência, por causa da
reduplicação implicada na filosofia, na paidéia kierkegaardiana, é retratada
no Projeto Filosófico de Kierkegaard do primeiro ao segundo percurso de
suas obras. Em Sobre Minha Obra de Escritor Kierkegaard escreve:

Tal é também [...] o movimento cristão. O cristão não


parte da simplicidade para se tornar então interessante,
espiritual, profundo, poeta, filósofo, etc. Não, é
exatamente o contrário; é por este último estágio que
começa, então se torna sempre mais simples, ele vem à
simplicidade (KIERKEGAARD, 1982b, p. 265,
tradução nossa, grifo do autor; OC 17).

Este movimento da complexidade à simplicidade, da pseudonímia


à produção religiosa ou Discursos é a arma da neutralidade armada, quer dizer,
é o despertar, o conduzir o homem para ser mais homem, do si mesmo
tornar-se si-mesmo, da vida fazer-se Vida. Lemos em O Evangelho dos
Sofrimentos:

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
85

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

Orientação no caminho da vida é algo que em verdade


se oferece bastante, e não é de admirar, posto que cada
desvio da rota se apresenta como sendo uma
orientação. Mas enquanto os desvios são muitos, a
verdade é contudo uma única, e só a única, que é o
“caminho e a vida”, só uma única orientação, que em
verdade conduz o ser humano pela vida até a vida
(KIERKEGAARD, 2018, p. 79, grifo nosso).

O problema filosófico por excelência é o homem e a realidade


efetiva (Virkelighed; Wirklichkeit) para todo e qualquer filósofo. Kierkegaard,
como todo filósofo, procura – em tudo que escreve, em cada obra que
desenvolve com temas específicos próprios – clarificar a cada vez o pano
de fundo e a finalidade de seu corpus philosophicus enquanto fundamento de
cada obra, a saber, a elucidação da articulação de homem e realidade efetiva,
quer dizer, o movimento do tornar-se homem, si-mesmo, cristão, partindo
da complexidade e repousando ativamente na concentração do essencial,
no simples. “Que nos armemos de paciência” (KIERKEGAARD, 1982a,
p. 237, tradução nossa; OC 17) — lemos em A Neutralidade Armada. É
preciso, pois, ter paciência porque compreender a articulação do homem e
da realidade efetiva sem cair em abstrações isto implica em reduplicação da
existência, na qual vivemos no que pensamos e compreendemos. Isso nos
coloca em meio às determinações intermediárias da existência. Quando nos
lançamos no movimento da paidéia kierkegaardiana, de sua filosofia, para
nos tornarmos o que somos, quer dizer, para cumprir a nossa possibilidade
mais própria, apropriando-se de si-mesmo temos que ter paciência.
Paciência é um conceito importante no segundo percurso, nos Discursos. É
preciso ter paciência para adquirirmos a nossa alma, quer dizer, paciência
para tornar-se si-mesmo. É preciso paciência em meio às preocupações e

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
86

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

aflições da vida que sempre tomam e afetam o homem e, sem a paciência,


de persistir na dor de se fazer homem, experimentaremos a dor de não ter
(ou perder!) um Selv.
Chegando ao término desta meditação gostaria de apontar para o
que Kierkegaard designa de “categorias conceituais deste seu ensino”
(KIERKEGAARD, 2007, p. 191; SKS 11, 42), uma distinção significativa
entre “originalidade adquirida” (erhvervede Oprindelighed) e “originalidade
imediata e primeira” (ligefremme og første Oprindelighed) em relação ao mestre,
ao professor, àquele que tem sobre si o encargo do ensino e do ensinar. Isto
porque ser mestre, ou professor, não pode, ou não deveria ter a forma do
erudito ou do eunuco. No Diário de 1852 lemos:

Na antiguidade os filósofos eram uma força,


constituíam uma força ética, um caráter. [...] O
professor [no entanto] é um castrado: ele porém não se
desvirilizou “por causa do Reino de Deus”: mas ao
contrário, para bem acomodar-se neste mundo sem
caráter (KIERKEGAARD, 1980, p. 84; D 9, 3581 [X
A 450], tradução nossa).

O professor é um castrado, um eunuco porque não tem virilidade,


fertilidade. Aqui não se fala de medir a fertilidade em virtude da autoridade,
fama, ou conhecimento erudito. Mas de um modo de ser mestre ou
professor em que de algum modo os alunos ou estudantes sentem uma
força, um caráter, uma marca, um carisma a emanar e irradiar do ensinar de
um mestre ou professor destituído às vezes de autoridade e mesmo quando
mostra-se patente sua pobreza paradoxalmente enriquece através do seu
modo de ensinar. A originalidade imediata e primeira é, ao contrário, o modo
de ser do professor ou mestre em que seu ensinar não tem reduplicação.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
87

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

Comunicam o que aprenderam sem a apropriação: transmitem apenas,


tartareando informações. Não existe uma relação existencial entre o sujeito
que transmite e o objeto transmitido. Com o autêntico professor ou mestre,
em compensação, acontece a reduplicação, quer dizer, este professor ou
mestre comunica o que ele apropriou.

Esta originalidade adquirida [...] é, por sua vez, simples;


já que um magistério simples não depende tanto de que
se empreguem expressões simples e cotidianas, nem
muito menos pomposas e eruditas; mas que a
simplicidade do ensino radica no fato de que o
mestre mesmo seja aquilo que ensina
(KIERKEGAARD, 2007, p. 191, grifo nosso).

Este verdadeiro professor ou mestre é um homem simples,


concentrado no essencial. Seu magistério é simples e, por isso mesmo, livre
porque liberto de normas, fórmulas e do desejo de exibição do saber. Está
contente com o que faz por reconhecer e corroborar sua identidade nisto
que faz e que não poderia não fazer. Não busca isto ou aquilo fora disto ou
daquilo que já faz. É pobre e, por isso, rico. Desprendido e, por isso, livre
e leve. Duro sem deixar de ser suave, terno sem ser meloso. Exerce a
liderança de sua autoridade sem ser autoritário em suas exigencias. Por ser
um homem simples é um professor ou mestre alegre! Ele conquistou uma
originalidade adquirida, quer dizer, seu ensino possui uma originalidade que
foi adquirida, conquistada, reduplicada de modo que ele ensina o que ele vive
e busca e, assim, ele não se limita a transmitir tartareando informações
eruditas, catalogações de dados, mas comunica despertando no a-luno ou
estudante a arte de “saber dialogar”.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
88

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

O que Sócrates [originalidade adquirida = professor


autêntico] a rigor criticava nos sofistas [originalidade
imediata e primeira = professor erudito], segundo sua
famosa distinção de que estes decerto sabiam falar, mas
não dialogar, era que podiam dizer muitas coisas sobre
qualquer assunto e, não obstante, careciam do
momento da apropriação. A apropriação é justamente
o segredo do diálogo (KIERKEGAARD, 2010, p. 18).

O que nos cabe agora, dulcíssimo leitor (a), após este percurso e
meditação da filosofia de Kierkegaard como paidéia e, portanto, depois de
ter saboreado uma espécie de introdução à filosofia de Kierkegaard, é nos
lançar desde a tonalidade afetiva (Stemning) da busca pela simplicidade na via-
gem do estudo sério de Kierkegaard para nos tornarmos filósofos. E isso
não significa o esforço intelectual de tornar-se um erudito arrotando
citações de estudiosos, ou falando em dinamarquês na gula intelectual por
ser ao menos um “corneteiro de importância absoluta” (KIERKEGAARD,
2008b, p.19), mas o esforço para modificar a própria existência
apropriando-se disto que se estuda, reduplicando-o em sua exitência. Nisto
está a seriedade franciscana, ops!, kierkegaardiana, sendo ao mesmo tempo
irônica e muito bem humorada, nunca com feições carrancudas de alguém
que se julga um sofoi. Mas alguém que, com paciência, insiste e persiste na
gestação da verdade da apropriação tornando-se apenas e por pura graça
num filo-sofo. Magnificat! Nunc dimittis!

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Santo. De la doctrina cristiana. In: AGOSTINHO, Santo.


Obras de San Agustin. Tomo XV. Edición bilingüe. Madrid: Biblioteca
de Autores Cristianos, 1957.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
89

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

FOGEL, Gilvan. Notas a respeito da educação. In: Rev. Filosófica São


Boaventura. v. 3, n. 1, p. 37-48, jan/jun, 2010.

HEIDEGGER, Martin. Principios metafísicos de la lógica. Traducción


de Juan José García Norro. Madrid: Editorial Síntesis, 2007.

______ . Ser e Tempo. Tradução revisada de Márcia Sá Cavalcante


Schuback. Volume Único. Petrópolis: Vozes, 2006.

______ . Fenomenologia da vida religiosa. Tradução de Enio Paulo


Giachini, Jairo Ferrandin, e Renato Kirchner. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2010.

JAEGER, Werner. Paidéia: A formação do homem grego. Tradução de


Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

KIERKEGAARD, Søren. Lilien paa Marken og Fuglen under Himlen. In:


Søren Kierkegaards Skrifter Elektronisk version 1.4, 2009. (SKS 11)

_______. Sygdommen til Døden: en christelig psychologisk Udvikling til


Opbyggelse og Opvækkelse. In: Søren Kierkegaards Skrifter
Elektronisk. Version 1.7, 2012 (SKS 11).

_______. Diario: 1851-1852, Vol. 9. 3ª ed. A cura di Cornelio Fabro. Brescia:


Morcelliana, 1980. (D 9).

_______. La dialectique de la communication étique et éthico-religieuse. In:


KIERKEGAARD, Søren. Œuvres Complètes: Les Œuvres de l’amour;
La dialectique de la communication étique et éthico-religieuse. Trad. Paul-
Henri Tisseau e Else-Marie Jacquet Tisseau. Tome XIV, Paris: Édition de
L’Orante, 1980 (OC 14).

_______. La neutralité armée. In: KIERKEGAARD, Søren. Œuvres


Complètes: L’École du cristianisme; La neutralité armée; Um article; Sur
mon Œuvre d’écrivain. Trad. Paul-Henri Tisseau e Else-Marie Jacquet
Tisseau. Tome XVII, Paris: Édition de L’Orante, 1982a (OC 17).

_______. Sur mon Œuvre d’écrivain. In: KIERKEGAARD, Søren.


Œuvres Complètes: L’École du cristianisme; La neutralité armée; Um

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
90

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

article; Sur mon Œuvre d’écrivain. Trad. Paul-Henri Tisseau e Else-Marie


Jacquet Tisseau. Tome XVII, Paris: Édition de L’Orante, 1982b (OC 17).

KIERKEGAARD, Søren. Point de vue explicatif de mon oeuvre


d’écrivain. In: Œuvres complètes de Søren Kierkegaard: Point de vue
explicatif de mon oeuvre d’écrivain; Deus petits traités éthico-religieux; La
maladie a la mort; Six discours. Tome XVI. Traduction Paul-Henri Tisseau
e Else-Marie Jacquet Tisseau. Paris: Edition de L’orante, 1971 (OC 16).

_______. Ponto de vista explicativo da minha obra de escritor: uma


comunicação direta, relatório à História. Tradução de João Gama. Lisboa:
Edições 70, 2002.

_______. As obras do amor: algumas considerações cristãs em forma de


discursos. Tradutor Álvaro Luiz Montenegro Valls. Petrópolis: Vozes;
Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2005.

_______. El lirio en el campo y el pájaro bajo el cielo. Tres discursos


piadosos [1849]. In: Los lírios del campo y las aves del cielo. Traducción
de Demetrio Gutiérrez Rivero. Madrid: Trotta, 2007.

_______. La enfermedad mortal: una exposición Cristiano-psicológica


para edificar y despertar. Traducción de Demetrio Gutiérrez Rivero.
Madrid: Trotta, 2008a.

_______. Migalhas filosóficas ou um bocadinho de filosofia de João


Climacus. Tradução de Ernani Reichmann e Álvaro L. M. Valls. 2ª ed.
Petrópolis: Vozes, 2008b.

_______. O conceito de angústia: uma simples reflexão psicológico-


demonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário
de Vigilius Haufniensis. Tradução de Álvaro L. M. Valls. Petrópolis: Vozes;
Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2010.

_______. La época presente. Introducción, traducción y notas de


Manfred Svensson. Madrid: Trotta, 2012.

_______. Pós-escrito conclusivo não científico às migalhas


filosóficas: coletânea mímico-patético-dialética, contribuição existencial,

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
91

A paidéia kierkegaardiana
ARAÚJO SILVA, Marcos Érico de.

por Johannes Climacus. Vol. 1. Tradução de Álvaro Luiz Montenegro Valls


e Marília Murta de Almeida. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2013.

KIERKEGAARD, Søren. Pós-escrito conclusivo não científico às


migalhas filosóficas: coletânea mímico-patético-dialética, contribuição
existencial, por Johannes Climacus. Vol. 2. Tradução de Álvaro Luiz
Montenegro Valls e Marília Murta de Almeida. Petrópolis: Vozes; Bragança
Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2016.

_______. O evangelho dos sofrimentos. In: Discursos edificantes em


diversos espíritos: o que aprendemos dos lírios do campo e das aves do
céu; O evangelho dos sofrimentos. Tradução de Álvaro Valls, e Else
Hagelund. São Paulo: LiberArs, 2018.

MARCEL, Gabriel. Aproximación al misterio del Ser: posiciones y


aproximaciones concretas al mistério ontológico. Traducción, prólogo y
notas de José Luis Cañas. Madrid: Ediciones Encuentro, 1987.

PLATÃO. A república. 12ª ed. Introdução, Tradução e Notas de Maria


Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

SCHOPENHAUER, Artur. Fragmentos sobre la historia de la filosofía. In:


Parega y paralipómena: escritos filosóficos menores. Vol. 1. Traducción
de Pilar López de Santa María. Madrid: Editorial Trotta, 2006.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 45-91.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
ISSN 1984 - 5561

ÉTICA, ALTERIDADE E EDUCAÇÃO EXISTENCIAL


EM KIERKEGAARD E PAULO FREIRE

[ETHICS, ALTERITY AND EXISTENTIAL EDUCATION IN


KIERKEGAARD AND PAULO FREIRE]

Jorge Miranda de Almeida

Professor Titular DFCH-UESB-BA. Líder do Grupo de Pesquisa Memória, Subjetividade e


Subjetivação no pensamento contemporâneo do CNPq, Membro da Sociedade Brasileira de Estudos de
Kierkegaard (SOBRESKI).
(E-mail: mirandajma@gmail.com)

Recebido em: 02 de maio de 2018. Aprovado em: 28/05/2018

Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123. ISSN 1984 – 5561


Dossiê Kierkegaard e a Educação
94

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

Resumo: Esse artigo apresenta uma abordagem existencial e ética entre o


filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard e o educador brasileiro Paulo
Freire. Partindo dessas duas referências, tratamos a possibilidade de uma
educação ético-existencial de forma crítica diante do debate pela liberdade
do indivíduo tendo como perspectiva a existência-ética no engajamento e
no compromisso para com a pessoa humana. A abordagem deste artigo
envolve ainda a educação diante da subjetividade e sua recepção social,
cultural e política, tendo em vista o contexto de nosso tempo.

Palavras-chave: Educação. Subjetividade. Liberdade. Kierkegaard. Paulo


Freire.

Abstract: This article presents an existential and ethical approach between


the Danish philosopher Søren Kierkegaard and the Brazilian educator
Paulo Freire. Starting from these two references, we deal with the possibility
of an ethical-existential education in a critical way before the debate for the
freedom of the individual, taking into account ethical existence in the
engagement and commitment to the human person. The approach of this
article also involves the education before the subjectivity and its social,
cultural and political reception, taking into account the context of our time.

Keywords: Education. Subjectivity. Freedom. Kierkegaard. Paulo Freire.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
95

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

INTRODUÇÃO

Kierkegaard e Paulo Freire se posicionam criticamente em relação


às concepções vigentes da educação e da ética, pois, elas estão
majoritariamente à serviço do poder e do ajustamento social. Porém,
dialeticamente, será a partir da educação e da ética existencial que os
homens em processo de inconclusividade e de inacabamento poderão
construir a si mesmo e, também, estratégias para superarem as barreiras que
impedem a construção da dignidade humana e da justiça social. Assumindo
a concepção da pessoa humana como um ser de abertura e de múltiplas
possibilidades, Paulo Freire (1921-1977) e Søren Kierkegaard (1813-1855)
fizeram da ética, da educação, da política, do trabalho, da cultura, da
dialogicidade, do ser em relação como alteridade, da dignidade os temas
fundamentais dos seus escritos.
Nesse sentido, a verdadeira tarefa da educação ético-existencial é
libertar a pessoa humana; libertá-la da opressão por meio do processo de
construção de consciência crítica-reflexiva e engajada; libertá-la da educação
ingênua e comprometida com o grande capital; libertá-la do assistencialismo
demagógico e cínico de uma concepção de educação que mantém os
discentes acomodados, resignados e passivos diante do clamor e da
urgência de uma profunda transformação estrutural para que a dignidade
humana se concretize como um direito de cada pessoa humana e não como
um privilégio de classe como ocorre hoje no Brasil. O que é significativo
no processo da educação ético-existencial é a intrínseca relação entre o ato
de construir a si mesmo ao mesmo tempo que as ações são dirigidas para
construir o próximo, pois em verdade, segundo Freire, “não há um eu que

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
96

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

se constitua sem um não-eu. Por sua vez, o não-eu constituinte do eu se


constitui na constituição do eu constituído” (FREIRE, 2005, p. 81, grifo).
Não se tem registro de que Paulo Freire tenha lido diretamente
algum dos livros de Kierkegaard. Mas dialogam por meio dos discípulos
kierkegaardianos como Sartre, Jaspers, Heidegger, Merleau-Ponty, Gabriel
Marcel, entre outros que são muito familiares a Freire, e por causa dessa
comunicação indireta as principais categorias freirianas como subjetividade,
intersubjetividade, dialogicidade, alteridade, amorosidade, educação, ética,
homem, inacabamento, inconclusividade, responsabilidade, transcendência
e dialética, têm uma interface e uma proximidade que permite, mantendo
as diferenças, um encontro fecundo e frutífero para discutir novas
possibilidades e potencialidades para a ética e para a educação.
O ponto de aproximação a partir da relação entre ética e
subjetividade e do desdobramento dessa relação numa educação ética está
alicerçado na tese de Freire (2000), exposta em Pedagogia da Indignação,
quando afirma que uma das tarefas primordiais da pedagogia crítica radical
libertadora é trabalhar efetiva e criticamente a legitimidade do sonho ético-
político da superação da realidade injusta e a promoção da dignidade.
Educação é, então, um ato de liberdade humana, ou melhor, como o
próprio título da obra indica: Educação como Prática da Liberdade. Educar é
muito mais do que ensinar a ler e a escrever, educar é construir caráter, é
construir personalidades fortes e edificadas, como concebe Kierkegaard,
para que se possa vivenciar responsavelmente o desafio a as exigências
inerentes à liberdade. Esta é também a tese de Trombetta, desenvolvida no
verbete alteridade para o Dicionário Paulo Freire, recheada de uma perspectiva
eminentemente kierkegaardiana ao demonstrar que

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
97

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

[...] a educação é, em sua essência, um processo ético


antes de ser consciência crítica, engajamento político e
ação transformadora. Ou a educação é ética e
respeitosa com a alteridade do outro em sua
singularidade, ou não é educação. É este respeito à
alteridade do outro a exigência ética de todo o
pensamento de Freire. Toda a eticidade da existência
humana se dá no reconhecimento da alteridade, da sua
dignidade de pessoa e na luta por justiça social. Sem
este respeito e reconhecimento do outro não podemos
entrar no diálogo libertador. Seguindo o legado ético-
pedagógico de Freire, podemos concluir dizendo que o
resgate da dignidade do outro, da sua alteridade é
condição primeira para a edificação de um projeto
mundo/sociedade ‘em que seja menos difícil de amar’
(TROMBETTA apud REDIN; STRECK;
ZITKOSKI, 2010, p. 35).

Em Kierkegaard, a educação é a tarefa de transformação do eu


(indivíduo) em Si mesmo (singularidade). A educação é edificante porque
deve ser construída na interioridade, para que o singular possa elaborar a
própria personalidade e atingir a maturidade necessária para se doar ao
próximo na condição de excesso ou transbordamento de si. Permanecer em
si mesmo é um ato de alienação e desespero. Ir ao encontro do outro é a
condição para tornar-se cada vez mais um si mesmo como o outro e com
o outro. Por isso, é na subjetividade enquanto singularidade, que ocorre a
mais difícil ação que o homem é capaz de empreender: decidir, escolher
sobre que ou quais ações realizar, porque é na ação que o homem concretiza
o bem e/ou o mal; é na ação que o homem constrói a sua humanidade ou
a sua inumanidade, logo, é exatamente na decisão que ele opta pelo que é
mais humano ou o que é mais inumano.
Assumindo a tese de que o ser humano está em constante
construção e por isso mesmo é um ser inconcluso, ambíguo, de múltiplas

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
98

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

possibilidades que podem ser concretizadas em realidades humanas, a


educação é fundamental para que ele possa dominar suas próprias paixões,
latências, tendências, inclinações. É importante que a educação do homem
seja edificada na ética, pois esse é o remédio para a crise da ética e para a
crise da própria educação. Pois a ética vigente em nosso país é uma ética
em estado de coma terminal, pois ela tem se mantido omissa e silenciosa
em relação aos abusos praticados pelos que estão no poder político e no
poder econômico. A ética tem sido apenas um jogo de palavras, de retóricas
argumentativas para legitimar o mesmo poder que oprime, que aliena, que
exclui, que mata. Afinal, a ética vigente no Brasil, não é uma concepção de
ética a serviço do poder? Ela corrobora a tese de Levinas (2000) de que a
ética aliada ao poder é uma ética da tirania, do totalitarismo e da injustiça.
Dessa forma, é possível assumir à educação em sua real condição
de construção de sujeitos capazes de emancipação de si e do próximo? É
viável uma educação inclusiva e que testemunhe em cada um dos sujeitos
envolvidos no processo educativo a alteridade como fundamento da
própria educação? Efetivamente a emancipação individual exige a relação
entre o eu e o tu, isto é, ou a alteridade radical que se torna a mola
propulsora da transformação da mentalidade e ao mesmo tempo a partir da
escolha e da adesão da singularidade, da mudança da coletividade. Essa é a
proposta que pretendemos apresentar ao leitor numa perspectiva dialógica
e dialética.
A obra de Kierkegaard (1813-1855) e a obra de Paulo Freire (1921-
1997) tem profundas sintonias. Para os dois pensadores, a educação está
centrada numa concepção de subjetividade que testemunhe a si mesma
como alteridade fundamentada na relação com o próximo que é a

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
99

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

reduplicação do próprio eu. Kierkegaard em As Obras do Amor (2005) chega


a afirmar que o eu nada significa se ele não se transforma imediatamente no
primeiro tu. Só a generosidade ética fundamentada na interioridade é capaz
de abnegar-se do próprio eu para recuperar-se enquanto si mesmo que
ocorre na doação por excesso de transbordamento de si. Em Kierkegaard
e em Freire a pessoa é relação. É dessa forma que o pensador dinamarquês
explicita sua compreensão na obra A Doença mortal – O desespero humano
(1974, p. 337) ao afirmar:

[...] o eu é uma relação, que não se estabelece com


qualquer coisa de alheio a si, mas consigo própria. Mais
e melhor do que na relação propriamente dita, ele
consiste no orientar-se dessa relação para a própria
interioridade.

Tem-se um nome para essa relação: a subjetividade. É sobre essa


temática que este capítulo pretende discorrer. Relacionar a compreensão de
Paulo Freire e Kierkegaard sobre a subjetividade, centrada principalmente
nas obras Pós-escrito conclusivo às Migalhas Filosóficas, A Doença Mortal, As Obras
do Amor do filósofo dinamarquês e Pedagogia da autonomia: saberes necessários à
prática educativa; Pedagogia do Oprimido e Ação cultural para a liberdade de Paulo
Freire, especialmente esta última em que ele tematiza a relação
subjetividade-objetividade.
Dessa forma, a construção desse artigo está dividido em três partes.
Na primeira, procura oferecer ao leitor, subsídios para que ele possa
empreender e problematizar a própria leitura, que denominamos A relação
entre educação, alteridade e ética em Kierkegaard e Paulo Freire, a segunda, O sentido

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
100

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

e a exigência da ética em Paulo Freire e Kierkegaard e a terceira, a alteridade ética e


subjetividade em Kierkegaard e Paulo Freire

A RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO, ALTERIDADE E ÉTICA EM


KIERKEGAARD E PAULO FREIRE

Considerando a tese de que nada do que é humano é natural, é


preciso admitir que a humanidade do humano é fruto de um processo
sócio-histórico-cultural e que implica em cada ação o deixar de ser um eu-
multidão para tornar-se um si-mesmo relacional. Por isso, a tese exposta
por Paulo Freire em Educação e Mudança, que não é possível fazer uma
reflexão sobre educação sem refletir sobre o próprio homem em virtude do
seu inacabamento ou inconclusão. Isso significa ter clareza que o homem
não é um ser determinado, mas um ser de liberdade, portanto sua
característica fundamental não é a repetição como nos animais, mas o
esforço em conquistar e concretizar a liberdade. Esforço que se reduplica
porque não é possível entender a liberdade deslocada da responsabilidade.
A premissa, nesse sentido, é que a responsabilidade precede a
liberdade. Os homens se constroem em comunhão, em relação, em doação
de um para com o outro, do si-mesmo como um outro conforme
desenvolve, por exemplo, Ricouer (1991) em O Si-mesmo como um Outro,
Levinas (2008) em Outro Modo de Ser ou Além da Essência e Kierkegaard (2005)
em As Obras do Amor. Edificação que requer aprendizado, logo, uma
concepção pedagógica que seja capaz de educar o homem em sua abertura
e ambiguidade em relação ao outro e com o outro.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
101

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

É essa relação em direção ao outro, com o outro que denominamos de


alteridade. A alteridade como subjetividade ética é em Freire e em
Kierkegaard uma obra de amor. É sinônimo de relação e, ao mesmo tempo,
se constitui em condição da ética da alteridade, porque, ao estabelecer o
compromisso de construir autenticamente a existência, esta, só se
concretiza a partir da relação que se reduplica a partir de si mesmo. Do
contrário não é relação e sim dominação. A alteridade promove a igualdade
na diferença, sem esta força vital o eu não existe, porque a alteridade institui
a “responsabilidade da dialética da alma” (KIERKEGAARD, 2001, p. 321)
que, por sua vez, é a garantia de uma consciência comprometida e não uma
consciência meramente especulativa porque como já foi dito anteriormente,
o si mesmo tem sobre a consciência o peso de uma vida humana e uma
responsabilidade eterna e não meramente uma consciência de conceitos
abstratos e etéreos.
Esta categoria é fundamental porque permite reduplicar-se no
engajamento como compromisso e comprometimento com o mundo dos
homens. Se o engajamento na luta pela libertação do oprimido não for a
partir da liberdade da singularidade, não é um ato ético, mas obrigação o
que anularia a ética, a liberdade e o processo de libertação ético-político que
ocorre em uma “situacionalidade que é um pensar a própria condição de
existir” (FREIRE, 2005, p. 118). Como deixa bem claro em Pedagogia do
Oprimido o engajamento é a condição necessária para recuperar a
humanidade do humano através da superação das contradições dos
dominados e dominadores. E para corroborar esta tese, em Educação e
Mudança ele afirma que “o compromisso, próprio da existência humana, só
existe no engajamento com a realidade, de cujas ‘águas’ os homens

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
102

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

verdadeiramente comprometidos ficam ‘molhados’, ensopados. Somente


assim o compromisso é verdadeiro” (FREIRE, 1979, p. 9).
A alteridade é uma categoria edificada no amor como ética e esta é
fundamentada na interioridade que é sinônimo de subjetividade, por isso,
somente quem edificou-se a si mesmo na interioridade é capaz de
constituir-se em maturidade e capaz de abnegar-se de si como doação do
excesso de si que foi construído na interioridade. Como entender que o
fundamento do si mesmo não se encontra em seu interior, mas na abertura
e na generosidade do existir para o próximo, que denomino subjetividade
ética, enquanto ação capaz de compreender que “o eu nada tem a significar
se ele não se torna o tu”? (KIERKEGAARD, 2005, p. 113).
Freire (2005, p. 81, grifos do autor) dialogando com Kierkegaard
também afirma que “na verdade, não há eu que se constitua sem um não-eu.
Por sua vez, o não-eu constituinte do eu se constitui na constituição do eu
constituído”. Para os dois pensadores da existência, a alteridade é, então, uma
obra de amor, enquanto sinônimo de relação. É também uma obra de amor
porque o doar-se constitui a condição da ética da alteridade, uma vez que
ao estabelecer o compromisso de construir autenticamente a existência, esta
só se concretiza a partir da relação que se reduplica a partir de si mesmo.
Paulo Freire em Pedagogia da Indignação corrobora a tese que, ao
conceber o homem como ser inconcluso ele reafirma a necessidade da
dialética da subjetividade com a objetividade para construir sentido e
coerência à ação e à realidade. É por isso que Freire (2000, p. 57, grifo do
autor) afirma:

É neste sentido que falo em subjetividade entre os seres


que, inacabados, se tornam capazes de saber-se

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
103

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

incabados, entre os seres que se fizeram aptos de ir mais


além da determinação reduzida. [...] só na história como
possibilidade e não como determinação se percebe e se
vive a subjetividade em sua dialética relação com a
objetividade. E percebendo e vivendo a história como
possibilidade que experimentando plenamente a
capacidade de comparar, de ajuizar, de escolher, de
decidir, de romper. E é assim que mulheres e homens
eticizam o mundo, podendo, por outro lado, tornar-se
transgressores da própria ética.

É preciso tomar cuidado porque Kierkegaard e Freire concebem a


subjetividade em perspectivas diferentes mas com a mesma finalidade, ela
deve tornar-se ética. Freire influenciado pela concepção da dialética
marxiana, não separa subjetividade da objetividade, ainda está preso à
concepção da dialética hegeliana onde os componentes da tríade (tese,
antítese e síntese) estão entrelaçadas e uma é condição para a outra na
perspectiva da superação até atingir o espírito absoluto. Para o pensador
dinamarquês a dialética é inconclusa, porque, se assim não fosse não haveria
liberdade e a ação procederia por necessidade. Por isso, diferente de Freire,
a subjetividade, em Kierkegaard, é identificada como verdade, interioridade,
decisão, ética, paixão infinita e amor. Em síntese: “a interioridade é manter
a ética em si mesmo” (KIERKEGAARD, 1993, p. 540). É este o locus de
onde analiso e compreendo a subjetividade, para evitar complicações.
Na objetividade e na universalidade do conceito, o Indivíduo
Singular (den Enkelte) é dissolvido, é despersonalizado de sua estrutura
íntima, isto é, não existe uma responsabilidade pessoal que assuma a tarefa
de ser o portador do sentido e a concretização da assimetria ética, o que é
o mesmo que afirmar que não existe uma existência autêntica. Embora
Freire (2005, p. 45), em Pedagogia do Oprimido, afirme “que a

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
104

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

intersubjetividade se apresenta como pedagogia do Homem”, ela não


consegue atingir a educação ética como propõe Kierkegaard na
radicalização da assimetria. Entretanto, o diálogo sobre a subjetividade
entre os dois é fundamental porque assim como o pensador dinamarquês,
Freire também tem clareza que o humano é subjetividade ética, conforme
demonstra Trombetta (apud REDIN; STRECK; ZITKOSKI, 2010, p. 34),
no verbete alteridade no Dicionário Paulo Freire: “o humano é subjetividade
ética em comunhão, diálogo com o outro; é um eu capaz de amar o outro
e, a partir desse amor, lutar por justiça que representa a culminância da
consciência ética.”
O exercício do diálogo é o primeiro passo para a superação da
dialética do senhor e do escravo. O testemunho do mestre é a ocasião para
que o discípulo possa construir o próprio saber e se posicionar no interior
da cultura em que existe. É por meio do diálogo e existindo dialogicamente
que, corroborando com Raúl Fernet-Betancourt, será decidido “se somos
capazes, ou não, de caminhar em direção de uma cultura de convivência,
cultivada como ‘bem universal’, porque nela todos e todas escrevem a
universalidade elucidando a relacionalidade das diferenças, construtoras de
nossa diversidade” (FERNET-BETANCOURT, 2010, p. 14). É urgente
desenvolver o diálogo como condição ética e existencial porque se trata da
própria existência do homem e do planeta, pois como existir em um mundo
plurocêntrico, com tantas diferenças que devem ser mantidas como
diferenças para não cair no domínio do mesmo? Como dialogar com o
outro sem normatizá-lo como idêntico ao si mesmo? Não foi essa a
trajetória da civilização ocidental? Não tem sido essa a postura da
racionalidade instrumental filosófica e pedagógica?

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
105

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

E a relação que se desdobra sobre si mesmo é a relação com o


próximo, é o que produz a relação dialógica, eminentemente portadora de
sentido, significado e existência, porque verdadeiramente o eu não existe
sem o tu, o tu é o constitutivo do verdadeiro eu. O terceiro capítulo da obra
Pedagogia do Oprimido, intitulado A dialogicidade – essência da educação como prática
da liberdade, demonstra o que entendo por relação dialógica e a sua
importância no âmbito da educação. Relação dialógica ou dialogicidade
quer dizer uma relação que se reduplica, uma relação aberta que inclui
enquanto mantém a separação (o um não se anula ou sobressai ao outro).
Não se trata de reduzir a relação a uma subjetividade egoísta e
desencarnada, mas à receptividade e à construção coletiva do
conhecimento, que deve ser vital para a própria qualidade do existir, do
existente e da existência.
O que se fundamenta na perspectiva da educação ético-existencial
é a necessidade do indivíduo singular assumir a tarefa ética que ele coloca a
si mesmo, isto é, a de transformar a si mesmo em um indivíduo universal.
“Somente o indivíduo ético exprime seriamente a si mesmo e tem uma
familiaridade (intimidade) que é a sinceridade com si mesmo”
(KIERKEGAARD, 2001a, p. 155). Ora, transformar a si mesmo implica
no processo de transformação do próximo, isto porque o ser humano só
existe em relação. A existência do eu-singular enquanto fruto de relação,
como ensina Kierkegaard, precisa do outro para constituir o si mesmo, pois
o outro enquanto tu concreto é a condição da constituição do si mesmo.
Na perspectiva da educação, Freire (2005, p. 58) está correto quando afirma
que “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se
libertam em comunhão”. O que se entende por libertar em comunhão? É a

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
106

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

libertação que é construída a partir da ação dialógica que é capaz de


construir os homens enquanto subjetividade dotada de vontade,
consciência, responsabilidade, singularidade e liberdade. Existe uma
profunda relação entre tornar-se um si mesmo e sentir-se responsável pelo
próximo.
A obra freiriana Educação como Prática da Liberdade é um livro de
Filosofia da Existência da primeira à última linha. A temática perpassa pelo
diálogo com Jaspers, Sartre, Marcel, que são discípulos de primeira grandeza
do mestre dinamarquês, que ironicamente não queria ter discípulos, apenas
leitor (sempre no singular), capaz de construir um diálogo edificante, isto é,
um diálogo ético. Freire insiste que o “homem existe — existere — no
tempo. Está dentro. Está fora. Herda. Incorpora. Modifica. Porque não está
preso a um tempo reduzido a um hoje permanente que o esmaga, emerge
dele. Banha-se nele. Temporaliza-se” (FREIRE, 1967, p. 41). A
temporalidade é a condição humana. É no tempo que o homem humaniza-
se ou não, por isso, retomando a expressão que Freire (1967) utiliza de
Gabriel Marcel, é aí que o homem é situado e datado. Sendo condenado a
existir, ele tem a possibilidade de escolher tornar-se um ser vegetativo-
sensitivo ou um ser psicossensorial ou finalmente um homem.
Humanizar-se implica relacionar-se. Relacionar significa tornar-se
responsável pelo próximo no interior dos atos limites ou situações-limites,
como Freire (2005) desenvolve em Pedagogia do Oprimido. O tornar-se do
indivíduo singular em situação é uma das categorias existenciais
eminentemente kierkegaardianas. Freire (2005, p. 105) afirma que o próprio
dos homens é estar, “como consciência de si e do mundo, em relação de

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
107

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

enfrentamento com sua realidade em que, historicamente, se dão ‘as


situações-limites’”.
A proposta de uma educação decente, uma educação de-gente, uma
educação problematizadora, libertadora e dialógica é uma alternativa para
propiciar como condição, nunca imposição ou modelo, a superação da
necrofilia pela biofilia, termos herdados por Freire de Erich Fromm,
sobretudo da obra O Coração do Homem, amplamente dialogado em Pedagogia
do Oprimido. E qual é, então, a proposta da educação decente? Uma educação
que consiga superar a dicotomia subjetividade e objetividade e consiga
constituir e construir uma pessoa humana comprometida consigo mesma,
com o meio ambiente, com a comunidade, com a dignidade humana que se
materializa no mundo do trabalho, da arte, da socialização dos bens, do
conhecimento autêntico, da valorização e da partilha.
É a própria situação ou o estar-em-situação no mundo e com o
mundo que faz emergir o rosto do próximo e se concretiza na urgência em
não perder tempo em assumir a responsabilidade diante da visitação,
porque, no nosso tempo, o que prevalece não é o rosto do próximo, “[...]
mas um aglomerado tumultuado de massa que reflete o egoísmo universal
e que é como um pântano” (KIERKEGAARD, 1994, p. 20). Freire
também critica a época atual, porque na estratégia utilizada pela ordem
dominante em massificar os homens padronizando-os, ela acaba por
desenraizá-los e destemporalizá-los, tornando-os seres dóceis e ajustáveis
ao sistema.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
108

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

O SENTIDO E A EXIGÊNCIA DA ÉTICA EM PAULO FREIRE


E KIERKEGAARD

A educação brasileira, como é trabalhada nas universidades e


faculdades de educação, com raríssimas exceções, está preocupada com
currículos, conteúdos e estatísticas. Ela não discute as questões da existência
e da vida. Prova contundente dessa afirmação é o fato de caminharmos para
uma barbárie da desigualdade social que culmina na morte em vida, na
morte silenciosa dos milhares de adolescentes e jovens que, em sua
invisibilidade material e econômica, passam despercebidos dos congressos
e congressos educacionais. Freire (2005, p. 197) já advertia que “não há vida
sem morte, como não há morte sem vida, mas há também uma ‘morte em
vida’. E a ‘morte em vida’ é exatamente a vida proibida de ser vida”. Essa é
uma questão que cada educador brasileiro precisa responder a si e para si
mesmo. Que concepção de educação legitima o silenciamento dos
inocentes? Que concepção de educação é capaz de comprar a consciência
do educador em nome de uma escola de referência com um percentual a
mais no salário? Que concepção de educação perpetua e legitima os campos
de concentração nas periferias, nas palafitas, nos cortiços, nas comunidades
carentes? Que tipo de educação cria e mantém uma cultura que legitima a
barbárie? Dessa forma, a crise de sentido, o vazio existencial, a indiferença
diante de questões fundamentais da existência humana, e que
apropriadamente Hannah Arendt definiu em seus escritos como a
banalidade do mal, é a mesma crise existente no interior da dicotomia das
teorias e as práticas educacionais atreladas à estrutura burocrática e

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
109

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

dominante do estado neoliberal e a necessidade de uma educação


comprometida, engajada e ética.
A estratégia coerente de combater estruturalmente essas questões é
a ética. Freire (2008, p. 33), em Pedagogia da Autonomia, desenvolve as
relações entre educação e ética, afirmando que “não é possível pensar os
seres humanos longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela. Estar longe,
ou pior, fora da ética, entre nós, mulheres e homens, é uma transgressão”.
E ainda explicita a relação ética e educação como condição fundamental do
querer ser mais, do tornar-se humano mediante uma prática
“fundamentalmente justa e ética contra a exploração dos homens e das
mulheres e em favor de sua vocação de querer ser mais” (FREIRE, 2001,
p. 23).
Nesse contexto, é possível corroborar a tese da inseparabilidade
entre educação e ética. José Andrade de Azevedo, no artigo Fundamentos
Filosóficos da Pedagogia de Paulo Freire, é um dos poucos estudiosos a
estabelecer a influência que Freire recebeu de Kierkegaard ao afirmar no
referido ensaio:

Em seu pensamento também se pode encontrar a


presença da filosofia existencialista, pois essa aparece
nas noções sobre a existência e sobre o caráter histórico
do homem. Assim, vemos Paulo Freire se aproximar de
Kierkegaard, tendo a mesma preocupação do filósofo
dinamarquês, isto é, preocupação com uma filosofia da
existência na qual o homem é realçado no seu existir
concreto: o homem é um ser concreto, diz Freire, que
existe no mundo e com o mundo (AZEVEDO, 2010,
p. 38).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
110

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

Do estudo desses dois pensadores constata-se que não é possível


construir a humanidade do humano se não se construir uma educação ética,
e a ética não será concretizada se não for mediante uma prática educativa
fortemente embasada na ética. Por isso, é retomada a sentença da ética
como a instância e a condição que dão sentido ao homem, à relação e ao
mundo. Em Pedagogia da Autonomia, Freire (1996) estabelece que mais do
que um ser no mundo, o ser humano tornou-se uma Presença no mundo,
com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra
presença como um “não-eu”, se reconhece como “si própria”, por isso:

[...] presença que se pensa si mesma, que se sabe


presença, que intervém, que transforma, que fala do
que faz mas também do que sonha, que constata,
comprar, avalia, valora, que decide, que rompe. E é no
domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da
ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética
e se impõe a responsabilidade. A ética se torna
inevitável e sua transgressão possível é um desvalor,
jamais uma virtude (FREIRE, 1996, p. 18).

Educar é, em Freire e Kierkegaard, fundamentalmente, um


processo de humanizar o homem, pois ele precisa edificar ou por si mesmo,
ou por um outro (o estado, a igreja, o partido político, a mídia.) o seu estar
sendo no mundo. Não sendo possível uma educação neutra ou imparcial
ou ainda objetiva, como o educador se posiciona diante da difícil tarefa de
ser ao mesmo tempo mestre e aprendiz? Tornar-se verdadeiramente mestre,
significa adquirir a capacidade de deixar seu saber para aprender com o
discípulo, a partir do olhar do discípulo, como ensina Kierkegaard (1995, p.
45): “entre o homem e homem não há relação mais alta que esta: o discípulo

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
111

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

é a ocasião para que o mestre se compreenda a si mesmo, o mestre a ocasião


para que o discípulo compreenda a si mesmo.”
Na obra Migalhas Filosóficas, o processo de educação se constrói na
relação entre mestre e aprendiz. O mestre nada mais é que a ocasião para o
aprendiz. “Aquele, porém, que dá ao aprendiz não só a verdade, mas
também junto com ele a condição, não é um mestre” (KIERKEGAARD,
1995, p. 34). Tornar-se mestre, em Kierkegaard e Paulo Freire, é
problematizar a educação no interior dos conflitos, dos contrastes e das
contradições políticas, econômicas, culturais, sociais, simbólicas; é
participar ativamente com a maturidade necessária para não direcionar o
aprendiz, porque, nesse caso, estaria reduplicando a si mesmo e
reproduzindo a si mesmo no outro.
Existir em razão dos outros requer a abnegação como altruísmo
radical em direção à forma mais concreta de existência: a gratuidade do
amor. Paulo Freire, em Educação como Prática da Liberdade, também assume a
exigência do amor como condição fundamental para a educação que se
pretende ser capaz de contribuir para construir gente, pessoa insubstituível
em sua unicidade e singularidade. Ele afirma que “a educação é um ato de
amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da
realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa”
(FREIRE, 1967, p. 97). Freire, ainda na referida obra, relaciona o Amor
como fonte da transcendência, exatamente porque como ser finito e
indigente, tem o homem na transcendência, pelo amor, o seu retorno à sua
Fonte, que o liberta. E em Pedagogia do Oprimido, reforça a tese da “valentia
de amar” (FREIRE, 2005, p. 203) como compromisso inalienável do amor,
porque o amor não procura o que é seu, como dirá Kierkegaard em As

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
112

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

Obras do Amor, no IV capítulo da segunda parte, intitulado O amor não procura


o que é seu.
A exigência do amor é amar, e amar é sempre uma ação dirigida
para o outro. Está claro que, na concepção ético-existencial da educação
como ferramenta indispensável à libertação das estruturas que impedem a
concretização da dignidade humana, não estamos pensando no amor como
é explorado de maneira superficial e sensacionalisticamente, como um
produto comercial da marca pedagogia do amor, pedagogia do afeto,
pedagogia da ternura. O amor não se deixa reduzir a práticas de autoajuda,
decididamente isso não é amor; amor que é amor, transforma, se
compromete, não utiliza de si mesmo como forma de ganhar dinheiro.
Freire (1979, p. 15) é taxativo em Educação e Mudança: “não há
educação sem amor”; quem não é capaz de amar os seres inacabados não é
capaz de amar. Sentença dura e corajosa, porque parte do princípio do amor
como componente ético-educativo-político da atividade pedagógica. Amar
é demarcar uma posição crítica e clara em relação ao como se compreende
a educação e a pessoa com quem ela se ocupa, se entrega e se torna
responsável. O educador brasileiro não conhecia e por isso não teve acesso
ao conteúdo de As Obras do Amor, do filósofo dinamarquês, porque
possivelmente ele ampliaria sua compreensão sobre o amor, pois Freire
(1979, p. 15), ao afirmar que “é falso dizer que o amor não espera
retribuições”, não amplia a dimensão do amor para além de uma dimensão
egoísta do amor. Mesmo tendo desenvolvido em Pedagogia do Oprimido que
o amor é um ato de coragem, que a luta pela libertação do oprimido será
um ato de amor, que não existe diálogo sem um verdadeiro gesto de amor
ao mundo e aos homens, Freire (2005) não supera a compreensão do amor

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
113

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

como retribuição, e por isso mesmo não atinge a dimensão do amor crístico
da gratuidade e do engajamento radical e assimétrico como propõe
Kierkegaard.
Freire, em Ação Cultural como Prática da Liberdade, ao explicar o amor
como um ato de libertação e não um ato possessivo de amor, consegue
chegar próximo à concepção do amor crístico, e ao utilizar Camilo Torres
como exemplo dessa generosidade própria do amor, explica que “Torres se
fez guerrilheiro não por desespero, mas por amor verdadeiro” (FREIRE,
1981, p. 66). Em Pedagogia da Esperança, citando Che Guerava, Freire (1992,
p. 23) diz que “o verdadeiro revolucionário é animado por fortes
sentimentos de amor. É impossível pensar um revolucionário autêntico sem
essa qualidade”. E ao citar o poeta Thiago de Melo, afirma que “os
interditados, os renegados, os proibidos de ser não precisam da nossa
‘mornidade’ (FREIRE, 1992, p. 92), mas de nosso calor, de nossa
solidariedade e de nosso amor também, mas de um amor sem manha, sem
cavilações, sem pieguismo, de um amor armado”. (FREIRE, 1992, p. 78).
O que seria esse amor armado?
O amor armado não utiliza armas, fuzis, bombas atômicas; usa a
ética como condição para ser mais como vocação ontológica e existencial do
homem. O capítulo do livro Pedagogia do Oprimido, intitulado “O homem
como ser inconcluso, consciente de sua inconclusão, e seu permanente
movimento em busca de ser mais” (FREIRE, 2005), é, no fundo, um
esforço para que o constante deixar de ser para tornar-se que é designado
como vocação do humano seja realizada, é porque deseja ser mais que o
homem pode construir a futuridade revolucionária, porque é um ser mais
que ele se coloca como um modo de melhor conhecer o que está sendo,

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
114

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

para melhor construir o futuro. “Daí que se identifique com o movimento


permanente em que se acham inscritos os homens, como seres que se
sabem inconclusos; movimento que é histórico e que tem o seu ponto de
partida, o seu sujeito, o seu objetivo” (FREIRE, 2005, p. 84).
A originalidade da ética da alteridade, que denominamos, com base
na relação entre Kierkegaard e Paulo Freire, de ético-existencial, é sua
intrínseca relação com a educação que consiste na radicalização da ética
como o sentido do sentido da tarefa do filosofar e do próprio existir. Isso
porque a ética é, então, fundamentalmente, um processo de edificar o
humano para o outro, e condição de superar a lógica capitalista, e ao superá-
la tende-se a superar a educação técnica e instrumentalizadora.

A ALTERIDADE ÉTICA E SUBJETIVIDADE EM


KIERKEGAARD E PAULO FREIRE

A despolitização do indivíduo é a negação da alteridade. A


corrupção endêmica e sistêmica que estamos todos inseridos e a inversão
do papel dos meios de comunicação culmina no niilismo negativo, no vazio
ético e político e na negação da realização do Estado de Direito. A
fragmentação da pessoa humana, ser de relação, em mero telespectador e
consumidor dos produtos de uma estética fascista, programas e produtos
veiculados pela mídia impedem que ele mesmo seja autor e sujeito de sua
libertação, que seja construtor da sua personalidade e do seu caráter. Dessa
forma, o atual panorama ainda é o do panis et circenis que induz e conduz a
pessoa humana a fragmentar-se e viver no acidental e na inautenticidade.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
115

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

A inautenticidade corresponde ao acidental que na sua indiferença


e cegueira legitima a mais torturante forma de tirania denunciada nas
fotografias de Sebastião Salgado como a verdadeira fonte do inferno do
sofrimento, da miséria, da negação da humanização do humano.
Possivelmente a angústia e denúncia de Paulo Freire em Pedagogia do
Oprimido esteja ligada à indignação do pensador que não aceita o título de
intelectual perante à negação da vida e a desumanização dos humanos como
testemunha:

A violência dos opressores, que os faz também


desumanizados, não instaura uma outra vocação – a do
ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos
leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem
os fez menos. [...] a ordem social injusta é a fonte
geradora, permanente, desta “generosidade” que se
nutre da morte, do desalento e da miséria (FREIRE,
2005, p. 32).

A educação como concebem Kierkegaard e Paulo Freire seria o


caminho que o homem percorre do estar vivo como um animal ou um
vegetal ao tornar-se existente; metamorfose que acontece no interior da
ética. Essa metamorfose ao mesmo tempo edifica a relação existencial que
o indivíduo singular estabelece em e com o mundo, porque “o domínio da
existência é o domínio do trabalho, da cultura, da história, dos valores –
domínio em que os seres humanos experimentam a dialética entre
determinação e liberdade” (FREIRE, 1981, p. 53). Kierkegaard ao conceber
o homem como fruto da relação que ele estabelece consigo mesmo, com o
outro e com a comunidade no interior das contradições entre
temporalidade e eternidade, finitude e infinitude, necessidade e liberdade,

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
116

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

caminha na mesma direção de Freire, a saber: o homem é um ser


indeterminado, é um projeto. Se é em meio a dialética tensionada da
necessidade e liberdade que o homem constrói a si mesmo, qual é a tarefa
da educação nesse processo? Por quê a educação brasileira em suas várias
vertentes, com raríssimas exceções, segundo Freire (2005) permanece alheia
à experiência existencial dos educandos? Por que a ética não é internalizada
como prática pedagógico-educativa? Ora, se os modelos atuais de educação
efetivamente contribuíssem para construir dignidade humana, portanto,
pessoas éticas, engajadas na construção do bem, da solidariedade, da justiça,
não estaríamos afundando num novo tipo de barbárie como sentencia o
Adorno, discípulo de Kierkegaard no prefácio da Dialética do Esclarecimento.
Freire (2000, p. 43) em Pedagogia da Indignação afirma que uma das
primordiais tarefas da pedagogia crítica “radical libertadora é trabalhar a
legitimidade do sonho ético-político da superação da realidade injusta”.
Educação é então, um ato de liberdade humana, ou melhor, como o próprio
título da obra indica: educação como prática da liberdade. Educar é muito mais
do que ensinar a ler e a escrever, educar é construir caráter, é construir
personalidades fortes e edificadas como concebe Kierkegaard para que
possa vivenciar responsavelmente o desafio a as exigências inerentes à
liberdade.
Weffort (apud FREIRE, 1967, p. 6) no prefácio a Educação como
prática da liberdade afirma: “Quando alguém diz que a educação é afirmação
da liberdade e toma as palavras a sério — isto é, quando as toma por sua
significação real — se obriga, neste mesmo momento, a reconhecer o fato
da opressão, do mesmo modo que a luta pela libertação”. Esta tese implica
necessariamente que o educador não pode e não tem o direito de

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
117

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

permanecer pretensamente neutro diante das contradições político-


econômico-sociais, discutindo um conteúdo aparentemente desconectado
da realidade em que ele e o discente estão inseridos. Considerando todo ato
educativo como ato eminentemente político é inadmissível a postura de
muitos acadêmicos que limitam-se apenas a reproduzir os conteúdos dos
manuais de forma ingênua, negando exatamente a proposta freiriana de que
“o ensino rigoroso dos conteúdos jamais se faça de forma fria, mecânica e
mentirosamente neutra” (FREIRE, 2000, p. 43), sobretudo num contexto
em que prevalecem os anti-valores que negam a dignidade da existência
humana ao valorizar e a normatizar a corrupção, a desigualdade, a miséria,
a concentração de renda, o analfabetismo funcional. Por isso, o educador-
educando precisa assumir uma postura ética, que começa com a indignação
diante da banalidade do mal e edifica-se na construção de uma consciência
crítica-engajada como condição de transformação das realidades iníquas em
realidades dignas.
Paulo Freire em Educação como prática da liberdade, em Educação e
Mudança, em Pedagogia da Autonomia entre outras obras também considera
fundamental a vivência da ética como condição de construção da própria
humanização da pessoa humana, como por exemplo,

Compromisso com o mundo, que deve ser humanizado


para a humanização do homem, responsabilidade com
estes, com a história. Este compromisso com a
humanização do homem que implica uma
responsabilidade histórica, não pode realizar-se através
do palavrório, nem de nenhuma outra forma de fuga
do mundo, da realidade concreta, onde encontram-se
os homens concretos. O compromisso, próprio da
existência humana, só existe no engajamento com a
realidade, de cujas “águas” os homens verdadeiramente

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
118

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

comprometidos ficam molhados “ensopados. Somente


assim o compromisso é verdadeiro” (FREIRE, 1979, p.
9).

Existir é comprometer-se, ficar molhados de existência, não ter


medo da exposição, dos riscos que percorrem toda a obra do pensador
pernambucano. Quem não arrisca permanece apenas vivo como um
repolho, não tem consciência existencial, não luta, não saboreia o elixir de
um dia de trabalho e o sustento com o suor do próprio trabalho. Nessa
perspectiva Freire (2005, p. 104) sentencia que “os homens, ao contrário
do animal, não somente vivem, mas existem, e sua existência é histórica”.
Como o Indivíduo poderá assumir a responsabilidade ética se a
escolha, a decisão, a liberdade, a vontade e a responsabilidade que
representam a estrutura fundamental da subjetividade estão localizadas fora
de si? Qual é a consistência da tese de Kierkegaard de que a subjetividade é
a verdade (KIERKEGAARD, 1993, p. 368) contra a verdade objetiva do
sistema? O que conduz Freire a afirmar que a subjetividade é um elemento
constituinte do sujeito revolucionário? A resposta adquire originalidade e
validade porque Johannes Climacus imprime a verdade o caráter de
testemunho à verdade, isto é, se demonstra o que é a verdade com a própria
vida, com a coerência entre o que se diz e o que se pratica, dessa forma, a
verdade torna-se condição fundamental para a concretização da própria
ética. Paulo Freire segue a linha mestra kierkegaardiana ao reforçar em seus
escritos a importância do testemunho como sinônimo de coerência. É
fundamentalmente através e a partir do testemunho que se educa, porque
ao testemunhar está se concretizando ou não a ética, uma vez que essa,
desde os ensinamentos de Aristóteles constitui-se num poder fazer e não
apenas num saber.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
119

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

Freire e Kierkegaard assumem o testemunho e a coerência em


relação à ética como concretização da alteridade em ações responsáveis com
e para o próximo. Segundo o autor de Pedagogia do Oprimido “a confiança
implica o testemunho que um sujeito dá aos outros de suas reais e concretas
intenções. Não pode existir, se a palavra, descaracterizada, não coincide
com os atos. Dizer uma coisa e fazer outra, não levando a palavra a sério,
não pode ser estímulo à confiança” (FREIRE, 2005, p. 94). A coerência
entre o discurso e a ação, entre a teoria e a prática é o que Kierkegaard
denomina de reduplicação e que considero como uma das categorias mais
fortes da ética da alteridade e que equivale ao que Freire denomina de
testemunho e que para ele é condição de uma verdadeira educação, pois “a
confiança implica o testemunho que um sujeito dá aos outros de suas reais
e concretas intenções. Não pode existir, se a palavra, descaracterizada, não
coincide com os atos” (p. 94).
E numa das mais explosivas e fortes explicações sobre o
testemunho como dinamismo ético ou como a própria ética, Freire
sentencia:

Entre os elementos constitutivos do testemunho, que


não variam historicamente, estão a coerência entre a
palavra e o ato de quem testemunha, a ousadia do que
testemunha, que o leva a enfrentar a existência como
risco permanente, a radicalização, nunca a sectarização,
na opção feita, que leva não só o que testemunha, mas
aquele a quem dá o testemunho, cada vez mais a ação.
A valentia de amar que, segundo pensamos, já ficou
claro não significar acomodação ao mundo injusto, mas
a transformação deste mundo para a crescente
libertação dos homens (FREIRE, 2005, p. 203-204).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
120

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

A questão agora, é descobrir onde se fundamenta a estrutura do


testemunho no humano? Freire afirma que a estrutura do testemunho se
encontra na interioridade, a mesma que Kierkegaard desenvolve e
denomina subjetividade. Para o filósofo brasileiro, a verdadeira reflexão
crítica origina-se e dialetiza-se na interioridade da práxis; para o filósofo
dinamarquês essa interioridade é sinônimo de existência ética porque é
nessa interioridade que o indivíduo singular constrói sua edificação e ao ser
edificado tem as condições necessárias para agir eticamente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A educação ético-existencial é uma ferramenta que provoca e


problematiza o educador-educando em torno de questões centrais da
própria educação e da existência. Nesse sentido, o esforço em relacionar
dois pensadores aparentemente tão distantes como Kierkegaard e Paulo
Freire, foi uma tentativa de oferecer ao leitor uma leitura que possa ou não
servir de chaves para a compreensão da atividade pedagógica em tempos
de crises tão sombrias como as que estamos vivendo no Brasil atualmente.
Um cenário em que a educação continua sendo uma das principais
estratégias de manutenção do status quo vigente. Educar a si mesmo é
condição de educar o próximo. Os dois pensadores, penso ter demonstrado
neste artigo, estão comprometidos com uma educação ética e com uma
ética educadora e libertadora dos homens em situações reais, ou seja,
homens de carne e osso e tutano nas veias e não, com uma educação

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
121

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

estatística onde os números são facilmente manipulados segundo os


interesses de quem encomenda as estatísticas.
Alteridade e ética. Alteridade e subjetividade. Alteridade e educação.
São os motes que percorrem a concepção de educação em Kierkegaard e
Paulo Freire e que ofereço ao leitor para que a partir deste ensaio possa (ou
não) produzir a sua própria concepção e estratégias para atuar e transformar
a vida em existência.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Jose Andrade. Fundamentos filosóficos da pedagogia de


Paulo Freire. Akrópolis, Umuarama, v. 18, n. 1, p. 37-47, jan./mar. 2010.

FERNET-BETANCOURT, Raúl. Ética intercultural. (Re) leituras do


pensamento latino-americano. São Leopoldo, RS: Nova Harmonia, 2010.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1967.

_______. Educação e mudança. 12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

_______. Ação cultural para a liberdade. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1981.

_______. Pedagogia do Oprimido. 45. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,


2005.

_______. Pedagogia da autonomia. 37. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

_______. Política e educação: ensaios. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2001.

_______. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros ensaios.


São Paulo: Editora UNESP, 2000.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
122

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a


pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

KIERKEGAARD, Søren. A doença para a morte. In: Os pensadores. São


Paulo: Editora Abril, 1974.

_______. Diário. Brescia: Morcelliana, 1980. 12 volumes.

_______. Gli Atti dell’amore. Milano: Rusconi, 1983.

_______. As obras do amor: algumas considerações cristãs em forma de


discurso. Tradução de Álvaro Valls. Petrópolis: Vozes, 2005.

_______. La dialetica della comunicazione etica ed etico-religiosa.


Roma: Edizioni Logos, 1979.

_______. Due epoche. Roma: Parrini, 1994.

_______. O conceito de angústia: uma simples reflexão psicológico-


demonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário
de Vigilius Haufniensis. Petrópolis: Vozes, 2010.

_______. Migalhas filosóficas: ou um bocadinho de filosofia de João


Climacus. Tradução de Álvaro Valls, e Ernani Reichmann. Petrópolis:
Vozes, 1995.

_______. Post-scriptum conclusivo não cientifico. In: Opere. Milano:


Sansoni Editori, 1993.

_______. Enten-eller. 6. ed. Milano: Adeplhi Edizioni, 2001

_______. Três discursos edificantes de 1849. 3a edição. Traduzido e


editado por Henri Nicolay Levinspuhl. Rio de Janeiro: Edição do autor,
2001b.

_______. O Instante. Genova: Casa Editrice Marietti, 2001c.

LEVINAS, Emmanuel. Liberté et Commandement. Paris: Fata Morgana,


1994.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
123

Ética, alteridade e educação existencial em Kierkegaard e Paulo Freire


ALMEIDA, Jorge Miranda

LEVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a subjetividade.


Petrópolis: Vozes, 1997.

_______. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 2000.

_______. De Deus que vem à idéia. Petrópolis: Vozes, 2002.

_______. Autrement qu’être ou au-delá de l’essence. Paris: LGF, 2008.

REDIN, Euclides; STRECK Danilo; ZITKOSKI, Jaime Jose. Dicionário


Paulo Freire. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. Porto: Publicações


Escorpião, 1974.

RICOUER, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas, SP: Papirus,


1991.

SIDEKUM, Antonio. Interpelação ética. São Leopoldo, RS: Nova


Harmonia, 2003.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 93-123.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
ISSN 1984 - 5561

KIERKEGAARD Y KANT: EDUCACIÓN PARA LA


ÉTICA

[KIERKEGAARD E KANT: EDUCAÇÃO PARA A ÉTICA]

[KIERKEGAARD AND KANT: EDUCATION FOR ETHICS]

Yésica Rodríguez

Es Profesora de Nivel Superior en Filosofía por la Universidad Nacional de General Sarmiento (UNGS)
y Doctoranda en Filosofía por la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires.
Actualmente es Becaria doctoral CONICET (2017-2022) y fue, en distintas oportunidades, Becaria en
Investigación y Docencia de la UNGS. Miembro del Programa de Investigación en Filosofía Poshegeliana
del Instituto de Ciencias de la UNGS. En el marco de distintas becas de docencia, se desempeñó como
docente en la materia Metafísica y en la materia Seminario de corrientes filosóficas o filósofos
contemporáneos en la UNGS. También fue Profesora Auxiliar de la materia Bioética y la materia Ética
en el Instituto Superior de Imágenes Médicas Derqui. Su investigación se concentra en el pensamiento del
fi lósofo danés Søren Kierkegaard, en particular su pensamiento ético y la importancia que toma en él la
noción de apropiación de sí mismo o personalidad.
(E-mail: : yrodrigu@ungs.edu.ar / jesica.rodriguez.ok@hotmail.com)

Recebido em: 07 de março de 2018. Aprovado em: 15/04/2018

Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154. ISSN 1984 - 5561


Dossiê Kierkegaard e a Educação
126

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

Resumen: El presente artículo pretende realizar una aproximación entre


los pensamientos éticos de Kant y Kierkegaard concentrándonos en los
conceptos de educación y libertad. Para ello pondremos foco en el
pensamiento práctico desarrollado por el filósofo alemán en el año 1790, al
cual denominamos la segunda ética kantiana, y en la primera autoría
kierkegaardiana, es decir, O lo uno o lo otro (1843) y El concepto de angustia
(1844). Consideramos que estos dos periodos, en ambos autores, nos
brindan la posibilidad de encontrar puntos de contactos que nos permiten
sostener que la ética que Kierkegaard tiene en mente para estas obras es el
pensamiento moral desarrollado por Kant en este periodo.

Palabras claves: Kant. Kierkegaard. Libertad. Educación. Ética

Abstract: The present article intends to make an approximation between


the ethical thoughts of Kant and Kierkegaard concentrating on the
concepts of education and freedom. For this we will focus on the practical
thought developed by the German philosopher in the year 1790, which we
call the second Kantian ethic, and in the first Kierkegaardian authorship, that
is, Either/Or (1843) and The Concept of Anxiety (1844). We consider that these
two periods, in both authors, give us the possibility of finding points of
contact that allow us to maintain that the ethics that Kierkegaard has in
mind for these works is the moral thought developed by Kant in this period.

Keywords: Kant. Kierkegaard. Freedom. Education. Ethics

Resumo: O presente artigo pretende fazer uma aproximação entre os


pensamentos éticos de Kant e Kierkegaard concentrando-se nos conceitos
de educação e liberdade. Para isso, vamos nos concentrar no pensamento
prático desenvolvido pelo filósofo alemão no ano de 1790, que chamamos
a segunda ética kantiana, e na primeira autoria de kierkegaardiana, ou seja,
Ou/Ou (1843) e O conceito de Angústia (1844). Consideramos que esses dois
períodos, em ambos os autores, nos darão a possibilidade de encontrar
pontos de contato que nos permitam sustentar que a ética que Kierkegaard
tem em mente para essas obras é o pensamento moral desenvolvido por
Kant nesse período.

Palavras-chave: Kant. Kierkegaard. Liberdade. Educação. Ética

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
127

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

Toda influencia es inmoral […] Porque influir


en una persona es darle la propia alma. Esa
persona deja de pensar sus propias ideas y de
arder con sus pasiones. Sus virtudes dejan de ser
reales. Sus pecados, si es que los pecados existen,
son prestados. […] En la actualidad las
personas se tienen miedo. Han olvidado el mayor
de todos los deberes, lo que cada uno se debe a sí
mismo.
(Oscar WILDE)

Se necesita fe en que uno puede enseñar o modelar


el carácter o la personalidad moral, con una
confianza mucho menos que perfecta en los
fundamentos de esas convicciones que se obstinan
decisivamente en producir la personalidad o el
carácter que uno es. Como diría Climacus, allí
donde las cosas más nos importan, operamos con
incertidumbre objetiva.
(Edward MOONEY)

INTRODUCCIÓN

La ética requiere, tanto para el filósofo prusiano Immanuel Kant


como para el danés Søren Kierkegaard, de un individuo con condiciones
específicas. Poder ser plausible de penalidad ante los actos implica que el
individuo actuante se haya constituido, en primer lugar, un sí mismo. En
esta constitución están implicadas la libertad, en primera instancia, y la
educación como base para la posibilidad de elección de la personalidad.
Proponemos aquí trazar un recorrido que unifique el pensamiento ético de
ambos pensadores. Para ello, nos concentramos en un concepto clave: la
libertad y ligado a éste, poner hincapié en la educación que posibilita el accionar

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
128

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

del individuo ético. Con este fin, proponemos realizar, una aproximación
entre la ética de la auto-reflexión kierkegaardiana en su escrito de 1843, la carta
que el pseudónimo B, el juez y esposo Guillermo, dirige al pseudónimo
estético A, O lo uno o lo otro II junto con la obra del mismo periodo: El concepto
de la angustia de 1844, y el pensamiento práctico que Kant desarrolla, en lo
que junto a Ágnes Heller denominamos la segunda ética kantiana1, es decir,
los escritos éticos trabajados por el filósofo alemán a partir de 1790 entre
ellos Antropología en sentido pragmático (1798)2.
En los escritos kantianos del noventa aparece con fuerza la cuestión
del autoconocimiento como condición de posibilidad para el desarrollo de
una segunda ética. Las continuas referencias al mandato conócete a ti mismo
podrían pensarse como una suerte de anticipación de aquello que
Kierkegaard denomina la elección de sí mimo. Ya que tanto para el ético
kierkegaardiano como para Kant, en su segunda ética, la tarea del hombre
es funcionar en la sociedad y de este modo cultivarse a sí mismo. Creemos

1 ¿Por qué segunda ética en vez de sólo la “ética kantiana”? Heller indica que La metafísica de
las Costumbres aporta elementos tan novedosos que producen un desplazamiento de gran
importancia de los problemas éticos del periodo crítico. De modo que estos
“desplazamientos”, tales como la preocupación por la constitución del sí mismo, el
abandono del egoísmo como motor del desarrollo de la humanidad, etc., hacen lícito poder
hablar de otra ética kantiana. Según Heller las modificaciones que introduce el filósofo a
partir de 1790 sobrevienen con el cambio de su filosofía de la historia, y se puede identificar
al menos tres motivos de estos cambios: (1) “el autodesarrollo del mundo de las ideas. No
importa que el conjunto del sistema crítico estuviese acabado en el pensamiento de Kant
en el momento en que éste trasladó al papel la Crítica de la razón pura [1781]; [...] aparecen
siempre nuevas ideas fértiles que no impiden que en la obra subsecuente sean formuladas
ideas de orientación distinta, nuevas y más fecundas.”; (2) El segundo motivo es la recepción
de la crítica específicamente las realizadas por Schiller; y (3) el último motivo es la
Revolución francesa. (HELLER, 1999, pp. 21-24).
2 Sobre la incorporación de la Antropología en sentido pragmático cfr. RODRÍGUEZ, Yésica.

“Kierkegaard y Kant. Una interpretación del sí mismo a partir de la segunda ética kantiana”.
En: DIP, Patricia., RODRÍGUEZ, Pablo (Coord.), 2017, pp. 113-140. Sobre cómo se
relaciona la Antropología en sentido pragmático con el corpus kantiano cfr. HEIDEGGER, 2013.,
y cfr. FOUCAULT, 2013.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
129

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

que la educación como ocasión para el desarrollo de la personalidad en


sentido moral es el concepto articulador para pensar a ambos autores.
La elección de la personalidad presupone el abandono de la
inautenticidad, que tiene que ser dejada atrás o debe ser reconfigurada
mediante las elecciones concretas que el individuo realiza dentro de la
cultura en la cual está inmerso. Veremos que, si bien es claro que el punto
fundamental de desacuerdo entre ambos es el concepto de autonomía que
sostiene el obrar humano, conviene concentrarse para el caso en el
concepto de libertad. También observaremos que dicho concepto sostiene
la posibilidad de la elección ética y la consecuente responsabilidad del sujeto
con los actos por los que opta y las consecuencias que estos traen a la
comunidad en la que vive, como también la condición para que la educación
sea posible.

KANT: LA EDUCACIÓN DE LA PERSONALIDAD COMO


CONDICIÓN DE POSIBILIDAD PARA LA ÉTICA

Basta con observar las notas que Theodor Rink toma de las
lecciones que Kant dictó sobre pedagogía (publicadas en 1803) para
confirmar que la educación3 tiene un rol decisivo para la formación moral.
Allí la educación es definida como: “aquella mediante la cual el hombre
debe ser formado para poder vivir como un ser que obra libremente. Es la
educación de la personalidad, la educación de un ser que obra libremente,

3 Utilizamos la
traducción de los términos Bildung (formación) y Erziehung, como educación.
Sugerencia tomada de la traducción de Lorenzo Luzuriaga y José Luis Pascual en: KANT,
2003.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
130

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

que se basta a sí mismo, y que es un miembro de la sociedad, pero que


puede tener por sí mismo un valor intrínseco” (KANT, 2003, p. 45). De
esto se deduce que es la educación la que tiene la función de llevar a la
humanidad a la perfección, ya que el hombre necesita de la instrucción para
alcanzar todos sus fines. Mediante la educación el hombre es disciplinado,
superando de este modo la animalidad, tanto en el individuo como la
humanidad; además es cultivado y civilizado, es decir prudente y adaptado
a la sociedad en la que vive; y, por último, moralizado, esto es, instruido
para que tenga un criterio de elección de los fines buenos, es decir los fines que
no sólo son aprobados por él, sino por todos.
En sus escritos de los años noventa queda claro que el progreso de
la humanidad comienza a confiarse a la educación, como aquella que depura
las costumbres, y no al egoísmo, como lo había pensado previamente. El
filósofo indica que el establecimiento del bien se logra mediante la
depuración de las costumbres y con las formas de relación entre las
personas, esto se debe a que si se educa, es para que algún día los niños sean
hombres libres, es decir para no depender de otros4. De modo que el
egoísmo sólo puede ser aplacado recurriendo al concepto de educación, el
cual le permite comprender el desarrollo histórico de la humanidad no a
partir del conflicto, sino mediante la instauración de la paz, a partir de la
constitución de un individuo moral. Es la educación la que moraliza, debido
a que es ésta la que dota de herramientas al hombre para el discernimiento
de aquello que es bueno, y de aquello que no lo es5.

4 Yo debo acostumbrarle a sufrir una coacción en su libertad, y al mismo tiempo debo


guiarle para que haga un buen uso de ella. Sin esto, todo es un mero mecanismo, y una vez
acabada su educación, no sabría servirse de su libertad (KANT, 1994, p. 42).
5 Si bien en la Pedagogía es lícito decir que las pasiones tienen que ser suprimidas, no es así

en la práctica, cuando los hombres ya han aprendido a auto-limitarse, pudiendo

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
131

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

Vemos que en su pedagogía el filósofo indicaba que la educación


práctica comprende (a) la habilidad, (b) la prudencia y (c) la moralidad. Es
esencial para buscar la solidez en la habilidad, por medio de la educación,
para que ésta, como lo esencial del carácter del hombre, se convierta en un hábito
en el modo de pensar (KANT, 2003, p. 79). En cuanto a la prudencia, se
trata de la moderación en el uso del carácter. Sin embargo, la educación
práctica de la moralidad concierne directamente al carácter, ya que para
formar un buen carácter es necesario suprimir las pasiones (KANT, 2003,
p. 80). Esto no significa que se pueda enseñar qué debe optar el niño, sino
más bien, se enseña, para fundar un carácter moral, el deber que tiene que
cumplir mediante ejemplos.
Esto toma impulso en su segunda ética, en la cual deja en claro que es
por medio de la educación por la cual el hombre, y con él la humanidad,
llegará a su máximo esplendor. Este giro desde el egoísmo, como motor del
progreso humano, hacia la educación, se debe en parte a que con la
Revolución Francesa el filósofo dio un giro hacia un optimismo
antropológico, ya que según su entender, el hecho histórico de la
Revolución hizo que se elevara el aspecto ético-moral en todos los
hombres6. ¿Qué puede explicar el cambio de perspectiva de Kant? Si el

reconfigurar el modo de relación con la naturaleza sensible.


6 Kant posee suficientes informaciones sobre el terror sangriento ocasionado por los

jacobinos. No obstante, mantiene su adhesión a la Revolución Francesa, no en cuanto


acontecimiento empírico, sino en cuanto “signo de la historia”, que, lo mismo que la ley
moral, remite a la disposición moral del hombre, es decir, a una tendencia de la especie
humana en su conjunto, no considerada según individuos aislados, “progresar hacia lo
mejor”. Esta forma del progreso no implica que los hombres lleguen a ser más morales o
más virtuosos, sino, en todo caso, que las inclinaciones a la guerra […] son cada vez
domeñadas y domesticadas con mayor fuerza por tribunales establecidos en los distintos
Estados, pero también ahí donde se trata de las relaciones interestatales (NEGT, 2004, p.
62).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
132

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

punto de partida es, como lo entendía Hobbes, y Kant aceptaba, el egoísmo,


entonces la motivación moral sólo puede darse en el mundo de las metas
inteligibles y no en el mundo empírico. Esta antinomia, a saber, que si el
deber de los hombres en el mundo es darse a sí mismos una ley moral,
mediante el poder disponer de una personalidad que lo identifique con la
especie, entonces el egoísmo no podría ser jamás el motor que impulse al
progreso de la humanidad, es saldada en la Metafísica de las Costumbres, en sus
escritos sobre filosofía de la historia, y sobre todo en su antropología
pragmática, en la cual pone foco en la autenticidad, en la observación y en
el autoconocimiento del individuo.
En la Antropología en sentido pragmático, Kant propone que el egoísmo
puede ser aplacado o reconducido por medio de la educación. El problema
no es la sensibilidad ni la felicidad como fin, sino como el hombre se
relaciona con ella. A esto lo define como egoísmo moral. El egoísta moral
reduce todos los fines a sí mismo, y pone en la propia felicidad, no en el
deber el fundamento de su voluntad. “Pues como cada hombre se hace
conceptos distintos de lo que incluye en la felicidad, es justamente el egoísmo
quien llega a no tener ninguna piedra de toque del verdadero concepto del
deber” (KANT, 2014, p. 13). La salida del egoísmo no tendrá que ver con
el abandono de la sensibilidad, ni mucho menos con la renuncia de la
felicidad, sino con la delimitación y la reconducción de las acciones. El
desarrollo de la antropología hace evidente que Kant, no trata de negar los
límites que la sensibilidad pone a la libertad sino, por el contrario, trata de
encontrar las posibilidades reales de la acción del hombre mediante lo que
denomina carácter (gesinnung).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
133

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

Este optimismo además se puede observar en el lugar que el


filósofo le da a la felicidad dentro de su ética. Muchos comentadores han
colocado a Kant dentro un rigorismo ético insondable argumentando que
el filósofo ha desechado la felicidad de su pensamiento moral. Sin embargo,
dentro de su pensamiento, la felicidad es tan importante como la virtud,
aunque la felicidad debe estar condicionada por la moralidad, y no al revés
(Cf. FREMSTEDAL, 2013, p. 50-78). Por lo tanto, la felicidad no es un fin
en sí mismo, sino que está condicionada por la ley moral, y de este modo la
felicidad se convierte en la búsqueda del bien mayor (FREMSTEDAL, 2011,
p. 160). Este concepto es introducido por Kant para distinguir entre la
felicidad como concepto de la naturaleza (Glück) y la felicidad como
concepto de la libertad (Glückseligkeit), a la cual se accede sólo mediante la
virtud. El problema que trae consigo dicho concepto es la imposibilidad de
llevar a cabo la felicidad (bien más elevado) en este mundo. Sin embargo
comenzamos diciendo que en este aspecto también se vislumbra el optimismo
kantiano. Dado que, si bien para Kant la felicidad moral implica la completa
perfección moral de todos los individuos – algo que no podrá darse en este
mundo –, no por ello abandona la idea de llegar lo más cerca posible a
realizar el bien más elevado en este mundo (FREMSTEDAL, 2011, pp.
160-161). Esto se evidencia en su postulación de una paz perpetua mediante
el progreso de la humanidad, y en la posibilidad que otorga una educación
moralizadora.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
134

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

KIERKEGAARD: EDUCACIÓN PARA LA ELECCIÓN DE UNO


MISMO

¿Cuál es el rol de la educación para Kierkegaard? En un sentido


fundamental, la educación formal, nos referimos a aquella que implica un
traspaso de conocimientos entre personas, no es más que una ocasión, por
así decirlo, para la posterior comprensión de aquello a lo que debemos
enfrentarnos, de un modo individual, es decir la elección. Queremos
abordar la preocupación sobre qué lugar ocupa la educación en el proceso
de conocimiento de uno mismo. Es decir, ¿qué sucede con la educación
ética? sobre todo con la elección. Por ello nos concentraremos
especialmente en la opinión del Juez Guillermo, en O lo uno o lo otro II y en
el pseudónimo Haufniensis en El concepto de angustia.
En O lo uno o lo otro II, la carta que B (un tal Guillermo, Juez y
esposo) dirige al esteta A, la educación toma el lugar de posibilidad para la
elección en letras mayúsculas es decir, la elección ética, la elección de la
personalidad.

En definitiva, el elegir es una expresión propia y


rigurosa de lo ético. Siempre se trata de una alternativa
en sentido estricto, uno puede estar seguro de que lo
ético está en juego. La única alternativa absoluta es la
elección entre el bien y el mal, y ésta es absolutamente
ética (KIERKEGAARD, 2007, p. 156; SKS 163).

Para poder elegir libremente, la elección tiene que poder ser


dominada, es decir, se debe aprender a elegir y esto se logra mediante la
educación. Así la elección tiene dos funciones: (a) en primer lugar, y como
función primordial, la elección se da como un proceso que va desde la

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
135

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

inmediatez totalmente irreflexiva a una esfera de mayor reflexión mediante


el desarrollo educativo desde la infancia a la juventud; (b) en su segunda
función, la elección produce un quiebre en la vida inmediata para dar lugar
a una vida concreta, es decir, a la vida ética. Esta elección es absoluta y
representa un quiebre en el cual el individuo se apropia de sí mismo y
deviene individuo ético. Sólo cuando el hombre se ha entendido a sí mismo
en profundidad sólo así es capaz de sostener una existencia propia y evitar
la renuncia a su propio yo (Cf. MUÑOZ FONNEGRA, 2010, p. 83).
¿Pero cuáles son estos criterios aprendidos para que la auto-elección
sea posible? Estos saberes pueden identificarse en las diferentes
concepciones de la vida o esferas de la existencia. La esfera estética, por
ejemplo, podría verse como una forma de la existencia malograda o
patológica. En este sentido, dado que la concepción estética de la vida es
inestable permite reconocer criterios para una elección correcta, pues le da
síntomas al individuo de que aún no ha logrado ser sí mismo, pues el
individuo indeterminado, es un desesperado (tenga conciencia de ello o no).
Kierkegaard sostiene que la dimensión práctica está anclada en el individuo
y que su elección no sólo es el producto de su tarea interior sino también
de las relaciones intersubjetivas7. Sólo cuando el individuo puede
comprender su deber moral como algo que él mismo ha constituido
entonces puede entender la exigencia ética del actuar racional. Mediante la
elección se produce la reconfiguración del estadio inmediato y la
apropiación de la personalidad. Vivir éticamente significa que lo ético está

7 Si con la elección el individuo se determina, entonces se trata de un acto de elección


individual mediante el cual el individuo libre deviene lo que él es, en la medida en que
realiza su tarea individual que se enmarca en el contexto de una comunidad de pertenencia
(MUÑOZ FONNEGRA, 2010, p. 83).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
136

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

aplicado en todo momento a la existencia como fundamento de una


relación positiva del individuo consigo mismo, así como con los demás. De
esto se desprende que el danés entienda la vida ética como una forma
“superior” de la existencia dado que lo ético no le es extraño al individuo
sino que es una forma de vida que él mismo se ha procurado y de la cual se
ha apropiado. De este modo el individuo participa de lo general aplicando
a su vida particular lo que es válido para la vida en general.
Queda claro que la elección de uno mismo es algo personal, íntimo,
pero el sujeto que B considera no es un individuo aislado, sino que es un
individuo que vive en un ámbito socio-histórico definido. Por este motivo
y, aunque en el momento de la elección estemos solos, es importante la
educación que ha recibido ese individuo8. La educación no opera como una
mera producción de individuos morales, ya que para Kierkegaard (B) pese
a cualquier educación o situación particular, el individuo en solitario, al
momento definitivo de la elección de sí mismo es quien se apropia de sí, es
decir escoge su personalidad9.

Cuando los hombres aprenden de la vida cosas


diferentes, eso puede deberse a que han vivido
experiencias diferentes, pero también puede deberse a
que ellos mismos son diferentes. Si educáramos a dos
niños de la misma forma y se les hiciera participar
siempre de las mismas cosas, de manera que recibieran
siempre juntos las mismas felicitaciones, los mismos

8 En momentos de elección, el individuo, está solo. A través del uso artístico de la


terminología paradójica, Kierkegaard nos ha proporcionado una gran cantidad de
expresiones que enfatizan el aspecto personal del conocimiento (NAES, 1966, p. 198).
9 El educador sólo puede ayudar al individuo con información relevante para la preparación

de la elección y la derivación de las consecuencias. Cualquier adoctrinamiento o influencia


directa, especialmente en lo que respecta a sistemas normativos y proposiciones teológicas,
morales o políticas, es veneno; o bien destruye o socava la capacidad del individuo en
crecimiento para consolidar una personalidad […] (NAES, 1966, p. 199).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
137

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

regaños y las mismas correcciones; sin embargo,


podrían aprender cosas mucho diferentes; porque uno
podría aprender con cada felicitación a no
vanagloriarse, con cada regaño a recibir con humildad
la reprimenda, con cada corrección a aceptar que el
dolor lo cure; el otro podría aprender, con cada
felicitación la vanidad, con cada regaño la exasperación
y con cada corrección a acumular una vida brutal. Lo
mismo sucede contigo. Si amaras a los hombres, la
seriedad de la vida te habría enseñado quizás a no alzar
la voz sino a callarte, y al estar en el mar sin divisar tierra
alguna a, por lo menos, no decírselo a los demás; quizás
te habría enseñado a sonreír al menos por el mismo
espacio de tiempo en que, según tú, alguien buscaba en
tu rostro una explicación, un testimonio. La vida te
habría dado tal vez la melancólica alegría de ver a otros
triunfar ahí donde tú fallaste, el consuelo de haber
hecho tu mejor esfuerzo, ahogando en tu corazón el
grito de angustia que hubiera podido perturbarlos
(KIERKEGAARD, 2005, p. 56-57; SKS 5:31).

Las máximas de auto-conocimiento no pueden comunicarse


directamente, por lo cual no pueden enseñarse, pero sí puede enseñarse a
elegir, no en abstracto, sino en situaciones concretas. La educación se funda
en las relaciones intersubjetivas que el individuo sostiene a lo largo de su
vida, hasta su madurez. En este esquema, las dificultades vividas y las
decisiones difíciles nos proporcionan información sobre las cualidades
morales y la propia identidad moral (FREMSTEDAL, 2013, p. 41).
Kierkegaard (B) subraya que en lugar de crearse, uno se elige a sí mismo
como un yo particular situado en un contexto histórico-social específico,
dado que el individuo tiene que relacionarse con algo que siempre está dado,
de ahí que el concepto sea el de apropiación, ya que el individuo tiene una
historia que debe hacer suya.
Podemos trazar un recorrido de análisis para comprender la

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
138

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

antropología kierkegaardiana10, desde la perspectiva de la apropiación del


yo, en tres momentos: hombre – individuo – sí mismo (OCAÑA, 1985, p.
70). (1) El hombre es el punto de partida, ya que se encuentra como puesto
en algo que ya está dado. El hombre es el factor común a todo hombre
concreto, y está formado por la síntesis cuerpo-alma, eterno-temporal. Cabe
aclarar que si bien, tener cuerpo y alma es algo compartido con todos los
animales, los hombres tienen un plus, pues estos devienen hombres pues
poseen espíritu. El espíritu se hace presente con el pecado, y con él se da el
instante. Así presentada la culpa y actualizado el instante, aparece lo eterno
y con él la historia. En este momento el yo desborda como una síntesis de
finitud e infinitud que siempre está en devenir. Es decir que el hombre para
ser un yo debe auto-configurarse a base de su libertad. De la libertad
depende que el yo llegue a ser sí mismo11. Es imposible realizar la
posibilidad de ser sí mismo, sin partir de la realidad que ya se es en el existir
concreto de cada cual. (2) El individuo, es la parte intermedia del devenir
del yo en su camino por ser sí mismo. Es el individuo quien accede a la

10 Gracias al hecho de que el hombre posee un yo, se enfrenta a la alternativa: vivir en la


desesperación o aferrarse a la fe. Sin la conciencia de la desesperación, la fe no puede
aparecer en el horizonte del significado de la antropología kierkegaardiana. La importancia
de esta conciencia se pone de manifiesto con el análisis de O lo uno o lo otro realizado por
Johannes Climacus en el Postcriptum no científico y definitivo. Según Climacus, la primera parte
de O lo uno o lo otro está dedicada a la melancolía; se trata de una fantasía que existe en la
pasión estética y cuyo punto más alto es la desesperación. No es la existencia lo que está
en juego, sino sólo la posibilidad de una existencia que no quiere hacerse consciente
recurriendo al "engaño" del pensamiento. En la segunda parte, se produce un "cambio de
escena", cuya función consiste en mejorar la primera parte del trabajo: ahora la
individualidad ética existe sobre la base de lo ético (DIP, 2016, p. 180-181).
11 Si la síntesis de lo temporal y lo eterno no es una segunda síntesis, sino otra expresión

de la primera, la síntesis de posibilidad —necesidad, no es sino otro modo de precisar la


síntesis de la finitud infinitud y, por consiguiente, el problema de la libertad para conseguir
la realización del yo consiste en no inclinarse a un extremo más que al otro, manteniendo
“afinadas” las cuerdas de lo posible y lo necesario en la tensión que les corresponde para
constituir una única realidad (OCAÑA, 1985, p. 74).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
139

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

verdad subjetiva, es decir es quien es capaz de seguir su verdad y de


apropiarse de ella. Ser un individuo implica ser sí mismo, y ser especie, por
lo que todo individuo es un ser con historia. Por último, el yo tiene que
cristalizar en un (3) sí mismo, haciendo uso de la libertad, tomando
decisiones en situaciones concretas. Para poder hacer uso de la libertad se
requiere que la decisión sea educada, para que el individuo “sepa” elegir y
pueda constituirse sí mismo.
¿Está B, proponiendo que A abandone todo deseo sensible? ¿Acaso
el Juez está diciendo que el individuo ético está destinado a abandonar el
deseo de felicidad, en pos de vivir una vida virtuosa? La respuesta a ambos
interrogantes es negativa. El pseudónimo ético B, al igual que Kant, no
destierra a la felicidad de la ética. Muy al contrario, lo que propone es
reconfigurar las relaciones a fin de evitar el modo egoísta de relacionarse
con la sensibilidad. Una relación auténtica del yo con lo sensible no deja de
lado la posibilidad de ser felices. Para Kierkegaard (B) lo estético y lo ético
no se oponen de modo originario sino que se oponen debido al egoísmo.
El egoísmo no es un problema de la sensualidad sino del espíritu12. Es decir
que, otra vez el problema no está en la relación inmediata con la sensibilidad
sino en el modo en el cual el individuo se relaciona con ésta, es decir en sus
motivaciones. El Juez desacredita aquellas interpretaciones que defienden
que el deber se oponga el gozo13, (previamente argumentamos que Kant

12 Todo tipo de sensualidad estética que como tal no incluya el egoísmo será concéntrica
con espíritu, y por lo mismo, armónica con la vida ética. […] la opción existencia del esteta
es corrupta no por lo que tiene de sensual, sino por lo que tiene de corruptamente espiritual,
lo espiritual del esteta lo ha llevado al egoísmo (OLIVARES -BØGESKOV, 2008, p. 52).
13 El error consiste en que el individuo es puesto en una relación extrínseca con el deber.

Lo ético se define como deber, y el deber, a su vez, como una multiplicidad de principios
particulares, pero el individuo y el deber son exteriores el uno al otro. Una vida tan llena
de deberes, desde luego, es fea y aburrida, y, si lo ético no estuviera ensamblado de manera

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
140

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

tampoco se opone a esto), y en este punto propone una reconfiguración del


estadio estético, sin embargo debemos comprender que esto implica que el
deber se expresa en lo que la persona quiere, pues el deber está
profundamente ligado con su personalidad.
En el concepto de angustia (1844), obra del mismo periodo de O lo uno
o lo otro, el pseudónimo Vigilius Haufniensis nos aporta otro criterio referido
a la educación que sin embargo no deja de lado el rol que ésta tiene para la
elección de la personalidad. En el capítulo V de dicha obra, el pseudónimo
nos indica el rol educador de la angustia. El individuo que Haufniensis tiene
en mente está asentado en el mundo real, un mundo al cual describe como
imperfecto. En un mundo perfecto, en el cual el bien es recompensado
automáticamente con la felicidad, sería sencillo obtener un bien finito. En
cambio, y dado que el mundo en el que vivimos en amoral, no queda más
que hundirnos en la angustia, ser educados por ella, y procurar ser
recompensados en la otra vida (FREMSTEDAL, 2011 p. 163). La libertad
se manifiesta mediante la posibilidad (Muligheden)14. Es la posibilidad la que
nos angustia y nos exhorta a ser libres, nos demanda una elección absoluta,
porque una libertad indiferente sería un absurdo.
La angustia es el estado anímico del individuo que ha roto con la
totalidad para pensarse a sí mismo. El individuo que se angustia no es un
sujeto irracional, ya que, si fuera un ser irracional no podría angustiarse,

mucho más profunda a la personalidad, sería dificilísimo abogar por ello en contra de lo
estético (KIERKEGAARD, 2007, p. 228; SKS 242).
14 La posibilidad es el trascendental de la libertad y la libertad es el trascendental de la

angustia. Es decir, el hombre es libre porque en su estructura ontológica existe el polo de


la posibilidad y se angustia precisamente porque es libre. La libertad engendra la angustia
y sólo el ser humano puede angustiarse, pues sólo él tiene la posibilidad de construir su
vida en libertad (TORRALBA, 1998, p. 87).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
141

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

pues desconocería el concepto de posibilidad15. Haufniensis, al igual que el


Juez Guillermo, ponen foco en la reconfiguración de la relación con lo
externo mediante el arrepentimiento16.
Hay un paralelo entre la figura del ético B y el pseudónimo estético
Haufniensis, y este es la introducción de un tercero en la relación, es decir,
la introducción de la esfera religiosa17. En el caso de B, esto se evidencia en
el lugar que ocupa el matrimonio, como un modo de existencia lograda,
poniendo a lo religioso como presupuesto de lo ético. En el caso de
Haufniensis, la antropología que presenta se funda en una antropología
religiosa, centrada en la posibilidad del pecado18. La discusión acerca de la
constitución de la subjetividad, que inicia en O lo uno o lo otro, concluye con

15 La experiencia de la angustia y el sentimiento de culpabilidad ponen de relieve la


humanidad del hombre, su debilidad ontológica y ética (TORRALBA, 1998, p. 93).
16 Los primeros pseudónimos kierkegaardianos ya indican la dirección de este movimiento.

El Asesor Wilhelm en O esto o lo otro (1843) se considera superior a Sócrates porque su


elección ha sido ejecutada desde el punto de vista eterno y mediante el arrepentimiento.
En efecto, Sócrates despliega el movimiento irónico, pero no el arrepentimiento, mientras
que el Asesor Wilhelm es capaz de releer su propia biografía en clave de arrepentimiento y
es capaz de hacerlo, porque se sitúa prácticamente en la esfera religiosa, mientras que
Sócrates se mantiene en el centro del estadio ético (TORRALBA, 1998, p. 111).
17 Es decir, O lo uno o lo otro no representa una alternativa entre lo estético y lo ético sino la

disolución de cualquier alternativa mediante la introducción de la noción de eternidad, que


convierte tanto lo estético como lo ético en sinónimos de desesperación. Tanto la estética
como la ética conducen al fracaso de la desesperación, entonces, no solo los esfuerzos para
oponer un modo de vida a otro son en vano, sino también la identificación del discurso
del Juez con la posición final de Kierkegaard. En mi opinión, la estrategia de Kierkegaard
consiste en oponerse a las dos perspectivas con el objetivo de reducir ambas al absurdo de
la inmanencia o “primera inmediatez”, que solo puede ser reemplazada con la introducción
de la “segunda inmediatez” (DIP, 2016, p. 180).
18 El “pecado original” es, dentro del esquema propuesto por Kierkegaard, una “elección

trascendental” de la voluntad. Y lo es en los dos sentidos del genitivo: en primer lugar es


un acto de elección que la voluntad realiza ella misma y, en segundo lugar, es la elección
que la voluntad hace de sí, es decir, es la autodeterminación que la voluntad se impone a
sí. Si la “angustia” nos sirve para esclarecer el mecanismo de esta “elección trascendental”
es por la simple razón de que no hay, para Kierkegaard, decisión que comprometa la
existencia del hombre en la cual ella, la “angustia”, no esté presente (RODRÍGUEZ, 2010,
p. 212).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
142

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

la formulación de en El concepto de la Angustia, de una antropología, en la cual


el hombre es definido como espíritu, gracias a la aparición de un yo (DIP,
2016, p. 180).

KANT Y KIERKEGAARD: UNA REVISIÓN

Kant como Kierkegaard sostienen que, si bien el proceso de


educación es necesario como ocasión para el desarrollo moral del yo, es el
individuo quien a través del obrar concreto se asume como sujeto
responsable, es decir uno con lo universal. Para ambos asumir la
responsabilidad implica ser responsables por nuestros actos
(FREMSTEDAL, 2013, p. 64). Sin embargo, para ser responsable de un
acto, se tiene que presuponer la libertad para elegir si llevar a cabo o no ese
acto, he aquí el punto clave del desacuerdo entre la ética kierkegaardiana y
la kantiana: la autonomía de la moral. Aunque si bien es claro que el punto
fundamental de desacuerdo entre ambos es el concepto de autonomía que
sostiene el obrar humano, conviene concentrarse en el concepto de libertad.
En los Diarios de Kierkegaard hay entradas concretas en las cuales crítica la
idea kantiana de que cada individuo sea su propio juez, argumentando que,
cuando se trata de transgresiones morales, sin la mediación de un tercero,
los hombres no pueden dejar de ser indulgentes consigo mismos. Al parecer
vio a la autonomía kantiana como una amenaza para la redención moral,
por lo cual estuvo dispuesto a renunciar a ella para hacer espacio a la gracia
necesaria para la redención del pecado (GREEN, 1992, p. 91).
Pero si bien es cierto que para Kant la autonomía de la razón es el

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
143

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

principio que sostiene su ética19, tanto la primera como la segunda, y que


Kierkegaard no puede aceptar que sea la auto-legislación la que determine,
en última instancia la esfera ética, no es cierto que rechace el concepto de
libertad que Kant desarrolla20. Además del entusiasmo compartido por la
libertad humana, Kierkegaard parece influenciado directamente por Kant
en varias temáticas. En O lo uno o lo otro II, por ejemplo, el Juez Guillermo
frecuentemente enfatiza que no estamos atados al mundo de la
determinación causal, sino que podemos trascender la causalidad natural y

19 Para Kierkegaard, la heteronomía no constituye una mutilación de la libertad humana,


sino su condición de posibilidad. La heteronomía es, paradójicamente, el trascendental de
la libertad en el pensamiento religioso de Kierkegaard. Su posición, en esta cuestión, es
radicalmente distinta respecto a Kant, pues para Kant el requisito fundamental (die Ursache)
de la libertad es la autonomía moral del sujeto, es decir, su completa independencia
respecto a los estímulos externos (TORRALBA, 1998, p. 124).
20 Esta centralidad de la libertad en el pensamiento de Kierkegaard mismo constituye un

signo de influencia de Kant, puesto que la libertad es un elemento principal de la filosofía


teórica y práctica de Kant. Kant no es de ninguna manera el "inventor" de la idea de libertad
humana. Pero, para muchos, sus escritos han tenido el efecto de convertir a la libertad en
su creencia preferida en materia de convicción racional. Kant logró esto a través de un
nuevo y poderoso conjunto de argumentos, algunos de los cuales parecen haber tenido un
impacto en Kierkegaard. Uno de estos argumentos ya ha ocupado gran parte de nuestra
atención-, el rechazo de Kant al empirismo "dogmático" y su afirmación de que debemos
explicar todos los fenómenos, incluidas las elecciones y acciones humanas, en términos de
causas naturales. Si este tipo de empirismo fuera absolutamente cierto, la libertad humana
no podría existir porque tendríamos que considerar a las personas como sujetas a nada más
que a impulso y deseo y serían incapaces de respetar las restricciones impuestas por la ley
moral (GREEN, 1992, p. 147). Sobre la cuestión de la libertad en Kant y Kierkegaard
sugerimos la lectura de Kosch: El complejo de problemas que rodean los relatos de la
libertad y la autonomía en el idealismo alemán parecen ser absolutamente centrales en las
preocupaciones filosóficas de Kierkegaard y en su proyecto en las obras pseudónimas. […]
Mi desacuerdo con las interpretaciones disponibles es más aguda en mi estimación acerca
de la queja contra el punto de vista ético - un área en la que, creo yo, no se ha dado todavía
ninguna explicación remotamente acertada. […] Los textos de Kierkegaard no parecen
ofrecer una crítica clara y certera de los objetivos que nombra. Sostengo que esto se debe
a que están llenos de lagunas argumentativas resultantes de ciertas peculiaridades bien
conocidas en su estilo de presentación […] y que los intérpretes han tratado de llenar esas
lagunas colocándolas en un contexto o en un patrón equivocado. El fondo correcto es el
proporcionado por la discusión de la cuestión de la libre elección de la inmoralidad (y
temas relacionados) en Kant y los relatos post kantianos de la libertad (KOSCH, 2006, p.
140).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
144

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

“elegirnos” en una elección libre. Si bien reconoce que, por diversas


razones, la elección de uno mismo puede ser difícil, sin embargo, la pasión
por la libertad nos estimula a realizarla21. A pesar de que muchos temas en
la filosofía religiosa kierkegaardiana parecen ir en contra de esta concepción
de libertad humana debido a la introducción del concepto de pecado y de
que:

[…] Kierkegaard está preparado para dar a Dios un


papel primordial en la redención humana y tal vez para
reducir la autonomía e iniciativa de los seres humanos
en este sentido. Sin embargo, la libertad siempre corre
como un hilo rojo a través de su pensamiento. Ya que
el pecado humano, incluso en sus formas más
ineludibles, resulta del ejercicio de la libertad y nunca
de la determinación o predestinación divina (GREEN,
1992, p, 149).

Al referirnos al lugar de la felicidad en ambos pensadores, queda


claro que, si bien Kierkegaard es “menos optimista” que Kant, en relación
a la posibilidad de, al menos acercarnos a un mundo virtuoso, ninguno de
los dos rechaza de su pensamiento ético a la felicidad. Ambos comparten
que la moral es una tarea interminable desde la perspectiva temporal, pero
en el caso de Kant, y pese a que se lo denominara un rigorista acérrimo, se
muestra optimista frente a la posibilidad de acercarse a la virtud, y con ella

21 […] la personalidad que se adquiere con la elección radical en O lo uno o lo otro es


fundamental, no como un criterio moral que nos permite distinguir el bien y el mal, sino
como una condición “psicológica” de la posibilidad del vida moral. Un individuo que
carece del “bautismo de la voluntad” no puede hacerse responsable de sus propias
elecciones. En la formación de la personalidad, que leemos como un primer momento en
la constitución de la subjetividad, la elección radical del yo implica la introducción de la
voluntad como criterio determinante, dado que toda elección es arbitraria si la persona que
la realiza no “quiere” hacerse responsable de ello. La oposición entre lo estético y lo ético
es psicológica más que moral y relativa más que absoluta (DIP, 2016, p. 182).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
145

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

a la felicidad en este mundo. Kierkegaard, en cambio considera que, dado


que el individuo vive en un mundo amoral, la única posibilidad de lograr la
felicidad pareciera estar ligado a la esfera religiosa, más que la vida ética, y
por ende está ligada a la vida después de la muerte.
Pese a estas diferencias ambos confían en la posibilidad que tiene el
individuo de reconfigurar las relaciones que sostiene con la sensibilidad,
mediante la apropiación del yo. En la base de toda elección se encuentra la
libertad22, y para ello es necesario el proceso de educación mediante
situaciones concretas. Apropiarse de la libertad requiere de la introspección.
Una vez constituido un sí mismo, el individuo reconfigurara sus relaciones,
volviéndolas virtuosas.

COMENTARIOS FINALES

Consideramos que “al minimizar la antropología de Kant, las


investigaciones anteriores sobre Kant y Kierkegaard han tendido a exagerar
las diferencias entre ambos” (FREMSTEDAL, 2014, p. 74) cuando es en
esta obra, en la que el filósofo alemán anticipa algunas de las ideas luego

22 […] Ética es así la “historia del espíritu”, es decir, libertad. Mientras que la concepción
estética de la vida significa desesperación, porque el que vive estéticamente no se deleita a
sí mismo, sino que acepta la necesidad como condición de su existencia, la concepción
ética promueve el desarrollo del ser humano por medio de la libertad. La importancia de
la personalidad en términos de ética es, en última instancia, de un orden espiritual, porque
el hombre mismo se define más tarde como espíritu. La autoconciencia exigida para
reemplazar la mera inmediatez de la vida estética no tiene un carácter epistemológico. Así,
el juez no hace referencia al “conocerse a sí mismo” socrático, sino que resalta la
importancia de “elegir” a sí mismo “notando” los límites del yo mismo, pero no
objetivamente, lo que sería, por otro lado, imposible […] (DIP, 2016, p. 184).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
146

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

desarrolladas por Kierkegaard tales como la elección de sí mismo 23.


Además, sostenemos que debido a esto, se han realizado lecturas
superficiales, en cuanto a los aportes de la filosofía kantiana al pensamiento
de Kierkegaard. Detectamos dos de ellas, como las más comunes. Por un
lado, se ha dicho, como afirma George Stack (Cf. STACK, 1997), que el
Juez Guillermo evita el “formalismo racionalista” de Kant. Es decir que el
danés, a diferencia de Kant, no proscribe la “existencia estética” y los
placeres de la existencia humana sino que busca darles un mejor lugar
dentro de una vida moralmente ordenada. Sin embargo, esta afirmación
descansa en una mala interpretación de la ética kantiana (Y tal vez en una
mala interpretación de la ética del Juez Guillermo24). Dado que el
imperativo categórico requiere necesariamente máximas, es decir,
expresiones concretas del querer y del deseo humano. Su propósito no es
prohibir estas expresiones sino juzgarlas y permitir sólo aquellas formas del
querer que sean permisibles en una comunidad universal de voluntades. Ni

23 Algunos comentaristas han señalado las similitudes entre la elección de uno mismo
kierkegaardiana y la revolución en la forma de pensar o conversión moral en la que uno
cambia la disposición al mal hacia el bien de la Religión kantiana. (Cfr. ALLISON, 1995).
24 En resumen, de acuerdo con la antropología de Wilhelm, la intervención del espíritu en

el mundo de la sensualidad inmediata, no es una intervención represiva, sino que lleva a


término lo que seminalmente se encontraba ya presente. La sensualidad que debe ser
reprimida o controlada por el espíritu es aquella que se ha visto disturbada por el espíritu
que la mueve hacia una reflexión egoísta y no la sensualidad inmediata. Ahora bien, es muy
importante destacar que la integración entre lo estético y lo ético no es suficiente para
explicar la esencia de la felicidad ética. En efecto, lo que hasta aquí hemos presentado nos
permitiría concluir que, de acuerdo con Wilhelm, el hombre que vive éticamente no sólo
no se verá privado de los placeres estéticos, sino que, al contrario, será capaz de llevar a la
plenitud elementos del deseo estético [...]. Sin embargo, si la felicidad del ético consistiese
simplemente en el gozo de los placeres estéticos, esto sería lo mismo que reconocer que
no existe una felicidad propiamente ética, sino que la ética es una mera ayuda para la
felicidad estética (OLIVARES -BØGESKOV, 2008, p. 169-170).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
147

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

para Kant ni para el Juez Guillermo la felicidad debe ser eliminada de la


ética, sino que debe ser reorientada, reconfigurada o autenticada25.
Observemos, por ejemplo, el concepto de tiempo que ambos
pensadores utilizan para describir lo que podríamos denominar como vida
inauténtica: en el caso kantiano, el desarrollado en su antropología
denominado Kunst (simulación o artificio) el cual se manifiesta mediante el
tedio y en el caso kierkegaardiano, en O lo uno o lo otro la relación inauténtica
con lo externo que se hace patente con el tiempo sintomatizado con el
aburrimiento (Kjedsommelighed). En la Antropología el tiempo dispersado se
convierte en un ejercicio denominado Kunst (artificio), el cual es la negación
de la pasividad originaria, y tiene el rol de construir por sobre y en contra
del fenómeno, una apariencia. El hombre civilizado puede caer en
distracciones estéticas y así, fácilmente, puede dejar de lado su yo auténtico
y desempeñar un papel, un artificio, el cual le producirá todo tipo de
malestares, como el tedio, la melancolía o la locura. Este desarrollo moral
del carácter supone, además, la predisposición pragmática del hombre a
civilizarse por medio de la cultura, es decir, por medio de las relaciones
intersubjetivas.

El que se coloca cual si quisiera juzgar, mirándose al


espejo, qué tal se ve, o hablara oyéndose hablar (no sólo
como si otra persona lo oyera), es una especie de actor.
Quiere representar un papel y finge cierta apariencia de
su propia persona […] La franqueza en la manera de
mostrarse exteriormente, que no da motivo ninguno a

25 Lo que Wilhelm mantiene es que viviendo éticamente nuestros deseos estéticos se


pueden ver satisfechos, pero esto no significa que cualquier tipo de deseo estético se vea
satisfecho mediante la ética. Existen deseos estéticos incompatibles con la ética, a saber,
aquellos que pertenecen a la estética como una opción existencial absoluta (OLIVARES -
BØGESKOV, 2008, p. 51).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
148

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

semejante sospecha [de una intención de su parte en


engañar], es lo que se llama un comportamiento natural
[…] Las enfermedades del alma respecto a la facultad
de conocer pueden reducirse a dos géneros principales.
El primero es la melancolía (hipocondría) y el otro es el
ánimo perturbado (manía). En el primero, el enfermo
es perfectamente consciente de que con el curso de sus
pensamientos pasa algo extraño […] El segundo es un
curso arbitrario de los pensamientos, que tiene su regla
propia (subjetiva), pero que es contraria a las (objetivas)
concordantes con las leyes de la experiencia (KANT,
2014, p. 98).

Para el caso de Kierkegaard podemos observar, en O lo uno o lo otro


I, que pese a que el individuo estético percibe que el tiempo externo no cesa
de transcurrir siente que está detenido. En esta sensación se manifiesta la
naturaleza del tedio. El tiempo es el enemigo del esteta, pues siempre va
hacia adelante mientras que él sin futuro ni presente sólo tiene pasado.
Apegándose al pasado el esteta aspira a detener la sucesión del tiempo
convirtiéndolo en instante. Vivir sin presente implica vivir en el vacío, en la
nada. Desde este punto extremo de parálisis el pseudónimo estético intenta
una salida hacia la realidad que se hará desde la búsqueda de entretenimiento
como opuesto al aburrimiento. Por ello, en La rotación de los cultivos, donde
se presentan las bases para ese intento, el tiempo crucial será el momento
del goce. El método allí expuesto está encaminado por completo a dominar
estos momentos en un doble sentido: para procurárselos y para interrumpir
el goce evitando la duración (Cf. RODRÍGUEZ Y., RODRÍGUEZ,
PEÑA ARROYAVE, 2017).
Por otro lado, otra afirmación es la expresada por parte de William
Peck (Cf. PECK, 1974), quien afirma que las normas fundamentales de la
ética kierkegaardiana difieren absolutamente del imperativo categórico de

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
149

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

Kant, ya que incluyen sobre todo el requisito de la individuación personal,


es decir, la exigencia del paso de la esfera estética de la existencia a lo ético,
mediante la elección de un modo concreto de ser que define al yo. Según
esta interpretación, tener que apropiarse de la personalidad como una auto-
elección pareciera ser el punto de inflexión que tiende a superar los límites
que la ética kantiana supone. Sin embargo, si bien es claro que estos tópicos
son claramente kierkegaardianos, y que se podrían ver como los límites
superadores de la filosofía moral kantiana, consideramos lícito asumir que
no son temas con los cuales Kant estaría en desacuerdo (Cf.
RODRIÍGUEZ, 2017).

[…] es importante reconocer que la ética de Kant no se


opone a estos temas. Kant escribe acerca de la elección
de la existencia ética. En su pensamiento maduro sobre
la libertad, sin embargo, asume la posibilidad de que
uno elija abandonar completamente la responsabilidad
moral, y presumiblemente de acuerdo con la opinión de
Kierkegaard de que la elección de la ética es la primera
y más importante elección ética de todos (GREEN,
1992, p, 94).

Si establecer el carácter constituye tanto el máximo como el mínimo


de lo que se nos exige, entonces el establecimiento del carácter representa
una meta y una habilidad común a todos los seres humanos, y podemos
hacerlo en virtud de que somos seres racionales con una naturaleza sensible.
Esto nos lleva directamente a la cuestión de la educación ya que el primer
rasgo característico de la especie humana es la facultad de proveerse un
carácter. Que la educación moral deba comenzar con el establecimiento del
carácter no es algo particular de la ética kantiana, sino que Kierkegaard

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
150

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

también prescribe comenzar con la formación del carácter en lugar de


comenzar por los cambios externos (RODRÍGUEZ, 2017, p. 133).
Ambos pensadores utilizan el concepto de ocasión para describir el
papel de los otros en el desarrollo personal. En O lo uno o lo otro, por ejemplo,
Kierkegaard subraya que sólo el individuo puede elegirse a sí mismo, ya que
la elección es una acción interior, por lo cual la ayuda de otros sólo puede
ofrecer una ocasión para esta elección.

Lo que se hace patente a través de mi “o… o…” es lo


ético. No por ello se trata todavía de elegir alguna cosa,
no se trata de la realidad de lo elegido, sino de la
realidad del elegir. Hasta ese punto puede un hombre
ayudar a otro; una vez que se lo ha alcanzado, la
importancia que el uno puede tener para el otro pasa a
un segundo plano (KIERKEGAARD, 2007, p. 227;
SKS 3, 172).

El educador no debe ejercer un dominio sobre el educando, sino


más bien lo contrario, debe ayudarle a ensanchar su libertad, a desarrollar la
esfera de la posibilidad, a descubrir modelos existenciales. Por otra parte,
observando lo expresado por Haufniensis, podemos agregar el carácter
psicológico de la elección absoluta, el poder educador del vértigo
provocado por la libertad, la angustia ante la posibilidad, y el nacimiento del
yo.

REFERENCIAS

ALLISON, Henry. Kant's Theory of Freedom. Cambridge: Cambridge


University Press, 1995.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
151

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

ASSISTER, Alison. Kant and Kierkegaard on Freedom and Evil. In:


International Journal for Philosophy of Religion, Vol. 72 (April 1996),
pp 275-296.

DI GIOVANNI, George. Freedom and religion in Kant and his


immediate successors: The vocation of mankind, 1774–1800.
Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

DIP, Patricia. Judge William: the Limits of the ethical. In: Kierkegaard
Research: Sources, Reception and Resources, Volume 17, Katalin Nun,
Jon Stewart (Eds.), London-New York, Routledge, 2016.

FOUCAULT, Michel. Una lectura de Kant: Introducción a la


antropología en sentido pragmático. Traducción Ariel Dilon. Buenos Aires:
Siglo veintiuno, 2013.

FREMSTEDAL, Roe. Kierkegaard and Kant on Radical Evil and the


Highest Good. Virtue, Happiness, and the kingdom of God, New
York: Palgrave Macmillan , 2014.

_______. The concept of the highest good in Kierkegaard and Kant. Int J
Philos Relig (2011) 69:155–171.

_______. The moral argument for the existence of God and immorality.
Kierkegaard and Kant. Journal of Religious Ethics, Inc, JRE 41. (2013),
pp. 50–78.

_______. The Moral Makeup of the World: Kierkegaard and Kant on the
Relation between Virtue and Happiness in this World. Kierkegaard
Studies Yearbook. N° 1 (2012), pp. 25-47.

FRIEDMAN, R. Kant and Kierkegaard: the limits of the Reason and the
cunning of faith. International Journal for Philosophy of Religion, 19:3-
22, pp. 3-22.

_______. Kierkegaard: First Existentialist or last Kantian?. Religious


Studies, Cambridge University Press, Vol. 18, Nº 2 (1982), pp. 159-170.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
152

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

FRIERSON, Patrick. R. Freedom and anthropology in Kant’s moral


philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

GOUWENS, David. Kierkegaard as religious thinker. Cambridge:


University Press, USA, 1996.

GREEN, Ronald. Kant und Kierkegaard.The Hidden Debt. New York:


State University New York Press, 1992.

HELLER, Ágnes. Crítica a la Ilustración. Traducción Gustau Muñoz y


José Ignacio López Soria. Barcelona: Ediciones Península, 1999.

HEIDEGGER, Martin. Kant y el problema de la metafísica. Traducción


Gred Ibscher Roth. México: Fondo de cultura económica, 2013.

KANT, Immanuel. Antropología en sentido pragmático. Traducción


José Gaos. México: Fondo de Cultura Económica, 2014.

_______. La metafísica de las Costumbres. Traducción Adela Cortina


Orts y Jesús Cornill Sancho. Madrid: Tecnos, 1994.

_______. Pedagogía. Traducción Lorenzo Luzuriaga y José Luis Pascal,


Madrid: Akal, 2003.

KIERKEGAARD, Soren. O lo uno o lo otro I. Traducción Bogonya Saez


Tajafuerce y Darío González. Madrid: Trotta, 2006.

_______. O lo uno o lo otro II. Traducción Darío González. Madrid:


Trotta, 2007.

_______. El concepto de angustia. Traducción Darío González y Óscar


Parcero. Madrid: Trotta, 2013.

_______. En la espera de la fe, Traducción Luis Guerrero Martínez y


Leticia Valadez. México: Universidad Iberoamericana, 2005.

KNAPPE, Ulrich. Theory and practice in Kant and Kierkegaard.


(Kierkegaard studies. Monograph serie; 9), Copenhagen: Søren Kierkegaard
Research Centre, 2004.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
153

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

KOSCH, Michelle. Freedom And Reason in Kant, Schelling and


Kierkegaard. New York: Oxford University Press, 2006.

_______. Choosing Evil: Schelling, Kierkegaard, and the legacy of


Kant's conception of Freedom. (Dissertation Philosophy). New York:
Columbia University, 1999.

LÖWITH, Karl. De Hegel a Nietzsche: La quiebra revolucionaria del


pensamiento en el siglo XIX. Trad. Emilio Estiú. Buenos Aires: Katz, 2012.

MOONEY, Edward. On Soren Kierkegaard, Dialogue, polemics, Lost


Intimacy, and Time. Syracusa, Ashgate, 2007.

MUENCH, Paul. Kierkegaard’s Socratic Task. (Dissertation). University


of Pittsburgh, 2006.

MUÑOZ FONNEGRA, Sergio. La elección ética. Sobre la crítica de


Kierkegaard a la filosofía moral de Kant. Estudios filosóficos,
Universidad de Antioquia, n. 41, pp. 81-109, 2010.

NAES, Arnes. Kierkegaard and the values of education: Contribution


to the Kierkegaard Conference of the International Institute of Philosophy,
Copenhagen, 1966.

NEGT, Oskar. Kant y Marx. Un diálogo entre épocas. Traducción


Alejandro del Río. Madrid: Trotta, 2004.

OLIVARES-BØGESKOV, Benjamín. El concepto de felicidad en las


obras de Søren Kierkegaard: principios psicológicos en los estadios
estéticos, ético y religioso. México: Universidad Iberoamericana, 2015.

_______. El concepto de felicidad en el estadio ético. La integración de la


estética en la vida ética. La Mirada Kierkegaardiana. Nº 0, pp. 43-64,
2008.

PECK, William. On Autonomy: The Primacy of the Subject in Kant


and Kierkegaard. (Ph. D. Dissertation). Connecticut: Yale University,
1974.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
154

Kierkegaard y Kant: educación para la ética


RODRÍGUEZ, Yésica

RODRÍGUEZ, Pablo. El descubrimiento de la libertad infinita.


Kierkegaard y el pecado. El títere y el enano. Revista de Teología
Crítica, Vol. 1, ISSN N°: 1853 – 0702, pp. 207-216, 2010.

RODRÍGUEZ, Yésica; RODRÍGUEZ, Pablo; PEÑA ARROYAVE,


Alejandro. El concepto de aburrimiento en Kierkegaard. Revista de
Filosofía. Universidad Iberoamericana. Año 49, N° 142, ISSN: 0185-
3481, pp. 97-118, 2017.

RODRÍGUEZ, Yésica. Kierkegaard y Kant. Una interpretación del sí mismo


a partir de la segunda ética kantiana. In: DIP, Patricia., RODRÍGUEZ, Pablo
(Coord.) Orígenes y significado de la filosofía Poshegeliana. Buenos
Aires, Gorla, 2017, pp. 113-139.

STACK, George. Kierkegaard's Existential Ethics. Alabama: University


of Alabama Press, 1977.

TORRALBA, Francesc. Poética de la libertad: Lectura de Kierkegaard.


Madrid, Caparrós Editores, 1998.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 125-154.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
ISSN 1984 - 5561

ENTRE O MESTRE E O DISCÍPULO NAS MIGALHAS


FILOSÓFICAS: A EXISTÊNCIA EDUCADORA EM
KIERKEGAARD

[BETWEEN THE MASTER AND THE DISCIPLE IN THE


PHILOSOPHICAL FRAGMENTS: THE EXISTENCE OF
EDUCATION IN KIERKEGAARD]

Fransmar Costa Lima

Doutor e Mestre em Educação pelo MACKENZIE, bacharel em filosofia, Professor da UMESP,


Editor da Editora LiberArs, Fundador e membro diretivo e consultivo da Casa Brasileira Fernando
Pessoa, e Membro da Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard (SOBRESKI).
(E-mail: fransmar@liberars.com.br)

Recebido em: 30 de abril de 2018. Aprovado em: 20/05/2018

Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 155-174. ISSN 1984 - 5561


Dossiê Kierkegaard e a Educação
156

Entre o mestre e o discípulo nas Migalhas Filosóficas:


a existência educadora em Kierkegaard
LIMA, F. B. C.

Resumo: O artigo que ora se apresenta é, na realidade, um pequeno ensaio


que tem por finalidade indagar a importância da educação no pensamento
de Søren Kierkegaard e investigar se, no âmbito da existência como
possibilidade, uma educação voltada para a subjetividade se mostra efetiva
diante dos debates acerca da liberdade e da singularidade do indivíduo.
Pouco se debate sobre o conceito de educação em Kierkegaard, porém,
acreditamos que se trata de um ponto basilar no pensamento do filósofo
dinamarquês, conforme buscamos demonstrar, e deve ser objeto de
maiores pesquisas, estudos e reflexões. Tomamos como referência para o
início desse debate textos como as Migalhas Filosóficas e o Post-Scriptum, onde
a subjetividade e a singularidade aparecem como conceitos fundamentais.

Palavras-chave: Educação. Existência. Singularidade. Subjetividade.


Kierkegaard.

Abstract: The present article is, in fact, a small essay whose purpose is to
investigate the importance of education in Søren Kierkegaard's thinking
and to investigate whether, in the scope of existence as a possibility, an
education focused on subjectivity is effective before the debates about the
freedom and the singularity of the individual. There is little debate about
the concept of education in Kierkegaard, but we believe that this is a basic
point in the thinking of the Danish philosopher, as we seek to demonstrate,
and should be the object of further research, study and reflection. We take
as reference for the beginning of this debate texts such as the Philosophical
Fragments and the Post-Scriptum, where subjectivity and singularity appear as
fundamental concepts.

Keywords: Education. Existence. Uniqueness. Subjectivity. Kierkegaard.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 155-174.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
157

Entre o mestre e o discípulo nas Migalhas Filosóficas:


a existência educadora em Kierkegaard
LIMA, F. B. C.

INTRODUÇÃO

O propósito da questão por uma educação da subjetividade é incutir


no debate da educação uma dimensão da existência raramente contemplada
pela pedagogia uma vez que, imersa em um universo regido por imperativos
sistemáticos e aparatos técnicos, vislumbra geralmente o positivo das
finalidades da educação relegando à existência, a um papel secundário.
Pedagogia e educação são discussões que tem como ponto comum, salvo
raras exceções, a relação que se estabelece entre o ensino e a aprendizagem
e a presença de uma relação interpessoal entre professor e aluno, mas tendo
sempre em vista que a dimensão prática do ensino é sua prerrogativa
fundamental. A parte isso, todas as demais relações que se interpõe entre a
pedagogia e a educação devem ser tomadas como particularidades, ora de
uma, ora de outra.
Cabe a pedagogia, a determinação dos processos e metodologia que
estão vinculadas efetivamente ao processo de aprendizagem. Tal
determinação, porém, só pode ser considerada se o ponto de partida do
debate técnico for a educação, que se configura como a própria ciência,
tomada a priori, da formação humana. Pode ocorrer que a pedagogia
ambicione formar o “ser-humano”, mas esse papel é da educação. Afirmo
isto ao observar que, em nossa época, existe um limite tênue do debate onde
ambas as dimensões se confundem. Muito se espera da pedagogia enquanto
prática formadora, enquanto que efetivamente não há no discurso
pedagógico uma relação que privilegia a educação em sua prática
transformadora. O que se observa, é que a educação é transferida para as
instituições pedagógicas, quando na realidade nos esquecemos que sua

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 155-174.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
158

Entre o mestre e o discípulo nas Migalhas Filosóficas:


a existência educadora em Kierkegaard
LIMA, F. B. C.

formulação deve partir do exemplo dado, da ética imbricada no indivíduo,


da responsabilidade e da autoridade que se mostra frente ao outro – não
uma autoridade determinante, mas uma autoridade exemplar.
As figuras do professor e do aluno são partes do contexto
pedagógico, porém, cabe retomarmos a relevância que em nossa época se
atribui à relação entre mestre e discípulo, pois a estes pertencem,
efetivamente, o sentido da educação1, que privilegia a interioridade do
indivíduo e, contrariamente ao que se concebe em nossa época, está
fundamentada na subjetividade.
Mas porquê debater a proposta de uma educação da subjetividade
em Kierkegaard, um pensador lido como comumente dedicado à existência,
e principalmente pautada na leitura das Migalhas Filosóficas, se no Post-
Scriptum o próprio pensador afirma que as Migalhas apresentam uma
problemática voltada, não ao cristianismo, mas sim ao tornar-se cristão? Da
mesma forma que Jorge Miranda (Cf. ALMEIDA, 2013, p. 15),
compreendemos bem que essa aproximação entre Kierkegaard e a educação
possa ser considerada uma insensatez, quer para os marxistas dogmáticos
como também para alguns kierkegaardianos com maior preocupação
religiosa ou metafísica. Da mesma forma seria motivo de escândalo ou
sintoma de loucura, aproximações com a linguagem cinematográfica, a obra
de arte, ou outras leituras contemporâneas que não estejam influenciadas
pela perspectiva de Heidegger. Para muitos leitores, o problema das
Migalhas já está sacralizado como a questão pelo tornar-se cristão. Devemos

1Não pretendemos aqui tomar a questão apenas por suas características terminológicas.
Mesmo as figuras de mestre e discípulo hoje assumem um caráter muito mais dogmático,
honorífico ou religioso do que propriamente educativo. Vale ressaltar que ambos os
conceitos serão tomados, aqui, em uma perspectiva da educação.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 155-174.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
159

Entre o mestre e o discípulo nas Migalhas Filosóficas:


a existência educadora em Kierkegaard
LIMA, F. B. C.

então, antes de nos ater diretamente à questão que nos interessa, observar
dois pontos fundamentais: No primeiro ponto, consideramos que a obra de
Kierkegaard repousa sobre o consolo de que ninguém será capaz de
localizar, possuir a “chave secreta” que decifre os escritos, como se
permitisse uma classificação dos textos de forma determinada, sacralizada
ou dogmática. Tudo parte do princípio de ironia, o que nos deve colocar
uma “pulga atrás da orelha” e ainda a desconfiar de boa parte dos textos e
permite nos apropriarmos apenas do problema. A famosa, e já quase clichê
citação dos Diários cabe aqui mais uma vez:

Após a minha morte, ninguém encontrará em meus


papéis (este é o meu consolo) um só esclarecimento
sobre o que propriamente ocupou a minha vida. Não
se encontrará em meu íntimo o texto que tudo explica.
Muitas vezes, aquilo que o mundo consideraria como
bagatela apresentava uma importância considerável
para mim, o que, por sua vez, considero uma futilidade,
desde que se extraia a nota secreta que é a chave de tudo
(KIERKEGAARD apud REICHMANN, 1971, p. 24).

Notemos aqui que Kierkegaard é taxativo quando afirma que


“aquilo que o mundo consideraria como bagatela apresentava uma
importância considerável para mim”. Mas observemos também que é
necessário extrair a “nota secreta”, que permite a apropriação, ao menos,
do problema que atravessa toda a obra de Kierkegaard.
No segundo ponto que devemos considerar, observamos uma
rápida nota, também dos Diários, na qual Kierkegaard é absolutamente
contundente e afirma com muita segurança (ou ironia?):

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 155-174.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
160

Entre o mestre e o discípulo nas Migalhas Filosóficas:


a existência educadora em Kierkegaard
LIMA, F. B. C.

Não! Educação, educação: é disso que o mundo tem


necessidade. É esse o tema contínuo dos meus escritos,
o argumento dos meus colóquios com Cristiano VIII:
e isto passa a ser, em nossos dias, a coisa mais supérflua
do mundo (KIERKEGAARD, 1980, p. 139; D 4, 1679
[VIII A 616], tradução nossa).

Eureka! Se não encontramos a “nota secreta”, encontramos ao


menos “a coisa mais supérflua do mundo”, ou aquilo que o mundo considera
uma bagatela e para Kierkegaard tem uma importância considerável; o tema
“contínuo” de todos os escritos. Certamente a educação é o tema menos
abordado ou debatido nos colóquios sobre o pensamento do discípulo de
Poul Martin Møller, ao menos no Brasil. De forma até profética,
Kierkegaard previra que, mais de 200 anos após seu nascimento, o mundo
continuaria com necessidade de educação, e o tema ainda seria tratado
como a coisa mais supérflua do mundo.
Tendo essas duas considerações em vista, podemos agora ser
acusados de “teóricos da conspiração” ou denominados como “os
caçadores da chave secreta”, porém, creio que seja suficiente para
demonstrar a importância da educação no pensamento de Kierkegaard e
nos livrar do juízo de insensatez. Jorge Miranda de Almeida já pode dormir
tranquilo, consolado pela possibilidade de uma aproximação entre
Kierkegaard e Paulo Freire surgir como uma conciliação que não “força a
barra”, em seu livro A Educação em Kierkegaard e Paulo Freire: por uma educação
ético-existencial de forma reflexiva e muito bem fundamentada, abordando
com originalidade os aspectos éticos do processo de educação. Certamente,
a discussão de um tema pouco debatido não deve ser rechaçado dentro
daquilo que, infelizmente, já ficou sacralizado – senão dogmático – na

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 155-174.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
161

Entre o mestre e o discípulo nas Migalhas Filosóficas:


a existência educadora em Kierkegaard
LIMA, F. B. C.

leitura de Kierkegaard. Essa problemática latente deve ser acolhida e vista


como uma ocasião.

AS MIGALHAS FILOSÓFICAS COMO OCASIÃO PARA A EDUCAÇÃO

Se fosse nossa pretensão uma leitura categórica da Migalhas


Filosóficas, a rigor trataríamos a questão da felicidade eterna que repousa
sobre um saber histórico, ou ainda, entenderíamos que é um problema
introdutório, não ao cristianismo, mas ao tornar-se cristão, conforme
elencado na estrutura do quarto capítulo do Post-Scriptum. Nossa pretensão,
no entanto, é tomar a leitura da Migalhas como uma ocasião, no sentido
socrático estabelecido na primeira hipótese do Experimento Teórico do
próprio texto de Climacus. Por ser apenas uma pretensão, talvez nosso
projeto seja, já estabelecendo uma auto-crítica – e sem nenhuma irônica
modéstia – tão ridículo quanto o de Kierkegaard. Se antes houvéssemos
observado que a questão da educação transpassava toda a obra de
Kierkegaard, já teríamos dedicado mais tempo à sua investigação, tão
límpida e transparente o problema se apresentava diante de nossos olhos.
Porém, optamos por investigar outras possibilidades de diálogo sem reter
o olhar sobre aquilo que seria “a coisa mais supérflua do mundo”. A
resistência à discussão pela educação em Kierkegaard encontra objeção e
resposta no próprio pensador dinamarquês, ao final do primeiro capítulo
das Migalhas; não por ser uma discussão pela educação, mas por ser a
discussão sobre um novo projeto. Aqueles que pretendem sacralizar a obra
de Kierkegaard podem então afirmar:

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 155-174.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
162

Entre o mestre e o discípulo nas Migalhas Filosóficas:


a existência educadora em Kierkegaard
LIMA, F. B. C.

[...] é o mais ridículos de todos os projetos, ou melhor,


tu és o mais ridículo de todos os fazedores de projetos;
pois se alguém projeta uma tolice, pelo menos continua
verdadeiro o fato de que foi ele que a projetou; tu
porém, ao contrário, comportas-te com um lazzarone,
que cobra para mostrar um lugar que qualquer um pode
ver; tu és como aquele homem que de tarde mostrava
por dinheiro um cabrito, enquanto que de manhã era
possível vê-lo de graça pastando na praça do mercado
(KIERKEGAARD, 2008, p. 42).

Kierkegaard imediatamente responde à acusação:

- Talvez seja assim, e eu me cubro de vergonha. Mas,


supondo que eu seja assim tão ridículo, permite que me
reabilite fazendo um novo projeto. Pois é claro que a
pólvora já foi inventada há muitos séculos, e eu seria
então ridículo se quisesse fingir que a inventei; mas
seria igualmente ridículo se eu supusesse que alguém a
inventou? Vê, agora eu quero fazer a gentileza de
admitir que foste tu que inventaste o meu projeto, e tu
não podes exigir, afinal, mais gentileza do que isto
(KIERKEGAARD, 2008, p. 42).

O que encontramos aqui é uma ocasião que parte de inúmeras


ocasiões, e por ser uma ocasião de reconhecimento da reflexão, não pode
se tornar presente ou ser encontrada uma vez que já estava lá. O próprio
problema que apresentamos, já estava presente e se alinha diretamente com
a questão fundamental que abre as Migalhas Filosóficas, aquela dificuldade que
Sócrates qualifica como “proposição polêmica”, onde

[...] é impossível a um homem procurar o que sabe e


igualmente impossível procurar o que não sabe, pois o
que sabe, não pode procurar porque sabe, e aquilo que
não sabe não pode procurar porque não sabe nem ao

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 155-174.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
163

Entre o mestre e o discípulo nas Migalhas Filosóficas:


a existência educadora em Kierkegaard
LIMA, F. B. C.

menos o que deve procurar (KIERKEGAARD, 2008,


p. 28).

Kierkegaard, então, percebe que tal resolução não pode ser dada por
uma determinação universal, assim como não pode ser apreendida
pedagogicamente, como forma de transmissão de um conhecimento, já que
tal ocasião já está presente e deve ser resolvida a partir da interioridade. Na
nota correspondente de sua tradução, ao elucidar a resolução socrática,
Alvaro Valls esclarece que tal resolução é um “pensar que penetra a questão
e a resolve a partir de dentro (gjennemtaenker)”.
Ora, nossa questão está dada e, se for considerada digna de ser
tomada como uma ocasião para a reflexão, sua resolução (se possível for...)
deve ser iniciada na interioridade – como reminiscência para tomada de
consciência – e na subjeti-vidade – como decisão pelo singular.

O MESTRE E O DISCÍPULO: A OCASIÃO COMO RELAÇÃO

Apesar de a filosofia clássica compreender a subjetividade como a


definição do próprio sujeito, o pensador dinamarquês resgata no socrático
a subjetividade enquanto negação do sujeito, tornando-o ainda mais íntimo
de si mesmo, negando radicalmente a coisa que se entende em-si (como uma
categoria metafísica), atingindo uma dimensão que se desdobra sob-si, onde
o problema não é mais o fato ou o fenômeno essencial, mas é a existência
como instante absoluto, pois “não se deve jamais perder de vista um
instante que o problema subjetivo não trata da coisa, mas é a subjetividade
mesma”. (KIERKEGAARD, 1971, p.218) Ainda no Post-Scriptum:

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 155-174.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
164

Entre o mestre e o discípulo nas Migalhas Filosóficas:


a existência educadora em Kierkegaard
LIMA, F. B. C.

Com efeito, como o problema é a decisão, [...] toda


decisão reside na subjetividade, trata-se de arranjar para
que não tenha objetivamente o menor traço da coisa,
pois no mesmo instante a subjetividade procuraria
furtar-se parcialmente à dor ou à crise da decisão, isto
é, tornaria o problema um pouco objetivo
(KIERKEGAARD, 1971, p. 218).

A EXISTÊNCIA E A SUBJETIVIDADE NAS MIGALHAS FILOSÓFICAS: A


RELAÇÃO ENTRE O DISCÍPULO E O MESTRE

Não é permitido a homem algum descortinar diante de si o absoluto


sem que este seja posto diante da revelação do verdadeiro pelo intermédio
de outrem, da mesma forma que a revelação da verdade só é dada ao
indivíduo por seus próprios esforços e a partir de si mesmo. É nesta
condição dicotômica entre verdade e não-verdade, entre a verdade dada e a
verdade revelada, que surge a figura do mestre; o educador que diante da
busca do indivíduo pela verdade é incapaz de ensinar.
Kierkegaard pensa a educação de forma socrática quando se abstém
de ensinar, não por falta de conhecimento ou autoridade, mas em virtude
da compreensão absoluta pela decisão da subjetividade que torna a relação
entre o mestre e o discípulo um intermezzo, entre a propriedade do
conhecimento e a necessidade de desvelar o conhecimento pela mesma
forma que as Migalhas Filosóficas foram escritas: proprio marte, propriis auspiciis,
proprio stipendio2. Ao pensarmos uma educação da subjetividade entendemos

2 Por nossos próprios meios, sob nossos próprios auspícios, às nossas próprias custas
(KIERKEGAARD, 2001, p.19).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 155-174.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
165

Entre o mestre e o discípulo nas Migalhas Filosóficas:


a existência educadora em Kierkegaard
LIMA, F. B. C.

que esta ocorra muito mais em princípio pelos esforços do indivíduo que
se educa do que propriamente pelo aprendizado do conhecimento
recebido. A educação da subjetividade é incapaz de “formar a opinião” de
alguém – e em nossa época saltitam os formadores de opinião – mas
favorece o indivíduo para que se edifique na verdade e decida por ela, sem
nenhuma possibilidade de relativismo. É a suprema valorização da razão
em contraposição à opinião da qual o próprio Kierkegaard, socraticamente,
se abstém.

Qual é então minha opinião?...3 Que ninguém me


pergunte por ela. E após a questão de saber se eu tenho
ou não uma opinião, nada pode ser mais indiferente
para os outros do que saber qual seria ela. Ter uma
opinião é ao mesmo tempo demais e de menos para
mim. Ter uma opinião pressupõe uma existência segura
e confortável, tal como ter neste mundo mulher e
filhos; um privilégio que não é outorgado àquele que
tem de estar noite e dia a caminho, mas sem ter
assegurado seu sustento. No mundo do espírito, esta é
a minha situação; pois para isto me formei e me formo
ainda, para a todo o tempo poder dançar com leveza a
serviço da idéia, tanto quanto possível para a honra da
divindade e para meu próprio prazer, renunciando à
felicidade doméstica e à respeitabilidade burguesa, a
esta communio bonorum4 e a esta ditosa harmonia que é
ter uma opinião (KIERKEGAARD, 2001, p. 23).

3 Álvaro Valls, em sua tradução das Migalhas Filosóficas, alerta que o termo dinamarquês
Mening, não possui apenas o significado de uma posição pessoal como no alemão Meinung,
mas também adquire a conotação de “sentido” como no inglês Meaning (in
KIERKEGAARD: 2001, p.22, N.T). Ao afirmar que sua vida e seu trabalho – sua
existência – está dedicada à serviço da Idéia, podemos vislumbrar que Climacus tenha uma
visão de certa forma platônica (Cf. PLATÃO A República, VII) ao confrontar a
inteligibilidade com a sensibilidade. É na ideia platônica que se encontram os fundamentos
da razão, oposta à verdade corriqueira da sensibilidade. O que se mostra aqui é uma clara
referência à famosa Alegoria da Caverna.
4 Comunhão de bens.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 155-174.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
166

Entre o mestre e o discípulo nas Migalhas Filosóficas:


a existência educadora em Kierkegaard
LIMA, F. B. C.

A relação que se mostra entre o mestre e o discípulo nas Migalhas


Filosóficas, favorece a compreensão de uma verdade racional que não habita
o universo das opiniões; é uma verdade do indivíduo e para o indivíduo,
construída a partir da existência – e não da experiência como seria o caso
de uma verdade sensível – e da subjetividade. Por este motivo a verdade
sistemática, útil para o indivíduo, que tem na prática e no sentido a ancora
objetiva que o induz à opinião, não são suficientes para a existência, onde a
verdade do espírito prevalece como absoluta e única relação que o homem
pode estabelecer consigo e com o absoluto.
A consideração kierkegaardiana é para que haja um ponto de partida
que conduza o indivíduo ao encontro do absoluto onde se possa apreender
a verdade. Tal ponto de partida é um ponto de partida histórico, eis o
problema das Migalhas, onde se questiona a possibilidade de considerar uma
verdade absoluta a partir de um conhecimento contingente. Neste sentido,
se o contingente é um ponto de partida para o discípulo também o é para
o mestre; a relação que se propõe é a recíproca em sua pluralidade e sua
complexidade dialética. Por compreender tamanha complexidade
Kierkegaard se abstém da opinião, que reforça apenas a contingência como
verdade absoluta sem, no entanto, considerar que tal verdade esteja além da
ocasião, onde está contido o instante decisivo da existência.
A contingência histórica da verdade que se apresenta é necessária
sendo por si só uma verdade suficiente. Qualquer outra forma de se
apresentar a verdade, seja pela autoridade do mestre, pela relevância das
demonstrações ou pelo argumento da obviedade, que impeça o discípulo
de decidir existencialmente o valor desta verdade na existência, tornam o
aprendizado superficial e contido em uma esfera onde predominam as

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 155-174.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
167

Entre o mestre e o discípulo nas Migalhas Filosóficas:


a existência educadora em Kierkegaard
LIMA, F. B. C.

opiniões. Neste caso, descaracterizam-se tanto discípulo quanto mestre,


pois,

[...] todo ponto de partida no tempo é eo ipso algo de


contingente, algo inconsistente, uma ocasião. O mestre
também não é mais do que isso, e quando oferece a si
e a seu ensinamento de qualquer outra maneira, então
não está dando, mas tomando; então não é nem amigo
do outro e muito menos seu mestre
(KIERKEGAARD, 2001, p.29).

Para Kierkegaard, o papel do mestre é ser uma ocasião, uma


contingência histórica, onde o discípulo descubra que a verdade do absoluto
é o instante decisivo capaz de transformar toda a existência, tornando-o
único frente a todos os outros homens; singular a ponto de equiparar-se
com a verdade que repousa em si mesmo.
Ocorre que em Kierkegaard não há uma diminuição do papel do
mestre, mas uma exaltação de sua habilidade quando torna o discípulo
capaz de descobrir a verdade que já se encontra em sua interioridade. Não
é uma necessidade de transmitir conhecimento, mas a é a edificação do
indivíduo que está em jogo. O mestre não age como se houvesse a
necessidade de se estabelecer uma relação de dívida pelos ensinamentos
transmitidos, porém, torna-se a ocasião histórica que é o ponto inicial para
a construção do conhecimento do indivíduo, sem...

[...] ideias pela metade, com hesitações e regateios, com


afirmações e concessões como se o indivíduo devesse
até um certo ponto alguma coisa a outro, mas depois,
por outro lado, até certo ponto não devesse nada; com
palavras soltas que esclarecem tudo, a não ser: qual é

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 155-174.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
168

Entre o mestre e o discípulo nas Migalhas Filosóficas:


a existência educadora em Kierkegaard
LIMA, F. B. C.

este até certo ponto; com tudo isso não se vai mais
longe do que Sócrates, e não se chega, de jeito nenhum,
perto do conceito de revelação: fica-se apenas na
conversa fiada (KIERKEGAARD, 2001, p.30).

A postura do mestre é uma postura frente ao eterno, ao absoluto, e


não uma atitude negociável em virtude de uma condição imposta pela
contingência histórica. O que o mestre oferece ao discípulo não é um
ensinamento acabado, um produto, definido pelo conhecimento, mas é o
ponto de partida pelo qual o discípulo perceba que em si está contida a
verdade.
Observamos em Kierkegaard uma concepção dialética que une o
ponto de partida histórico com a verdade eterna que se dá na interioridade
do indivíduo. Ainda nas Migalhas Filosóficas, ao tratar a origem da sabedoria
que se desdobra indefinidamente por toda a eternidade, Kierkegaard afirma:

O ponto de partida temporal é um nada, pois no


mesmo instante em que descubro que, desde toda a
eternidade, eu soube a verdade sem sabê-lo, neste
momento aquele instante escondeu-se no eterno,
absorvido por ele, de sorte que por assim dizer eu não
poderia encontrá-lo, mesmo se o procurasse, porque
não está aqui ou ali, mas ubique et nusquam5
(KIERKEGAARD, 2001, p. 32).

O que Kierkegaard percebe na sociedade de seu tempo é a vivência


valorativa do momento histórico com maior intensidade do que a busca
pelo absoluto. Ora, em uma sociedade autodenominada cristã6, a dimensão

5Em toda a parte e em nenhum lugar


6Falamos aqui da sociedade dinamarquesa do séc. XIX onde se dá o contexto de reflexão
de Kierkegaard, que é um estado oficialmente luterano. Analogamente, apesar da sociedade

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 155-174.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
169

Entre o mestre e o discípulo nas Migalhas Filosóficas:


a existência educadora em Kierkegaard
LIMA, F. B. C.

a ser buscada é a do eterno; é a edificação da existência sobre alicerces


solidamente fundamentados na ética e no compromisso para com o outro,
na alteridade, que deve prevalecer sobre os acontecimentos cotidianos. Da
mesma forma nossa época vive uma sociedade “jornalística”; é uma época
em que se privilegia uma educação da informação em detrimento da
formação do edificante, pois geralmente o sujeito que encontra na
contingência histórica o sucesso e a riqueza, se abstém de existir e, portanto,
igualmente se abstém da decisão.
Note-se que Kierkegaard fala no “instante onde escondeu-se o
eterno”. Tal instante é a síntese entre a existência autônoma, pautada na
verdade, e a decisão da subjetividade; ele ocorre quando se aproveita a
ocasião para uma trans-form-ação7, uma dimensão que deixe de lado as
alegorias da contingência e transforme o discurso, a forma da linguagem
pela qual o indivíduo se expressa, em ação, em compromisso, em um assumir
da condição de existente enquanto existente.
Em virtude destas alegorias contingentes, o discípulo não pode ser
algo além de uma não-verdade, da mesma forma que o mestre não se torna

do século XXI não se autodenominar cristã uma vez que a maioria dos estados hodiernos
se determinam como laicos, podemos considerar que ainda existe uma denominação oficial
das nações que se caracterizam culturalmente em relação aos valores morais e aos padrões
estéticos. Tais valores são significativos em si para um grupo de indivíduos mas, no
contexto da historicidade, não satisfazem as dimensões que contemplam a autonomia do
indivíduo. Nos autodenominamos livres, democráticos, e falamos sempre em privilegiar a
lei, a justiça e a igualdade, sem entender significativamente os valores reais destes conceitos.
Da mesma forma que a sociedade onde viveu Kierkegaard não compreendia o verdadeiro
sentido valorativo do que é ser cristão, na visão do filósofo, que adverte sobre os riscos de
um comportamento voltado muito mais para uma situação legal, estatal e imposta do que
propriamente significativa para a existência e edificação da dimensão humana.
7 A forma sistemática que delimita o indivíduo (Individ) deve ser superada pela ação

compromissada na existência. Utilizamos a expressão trans-form-ação, para indicar que existe


na existência uma transposição da forma para a ação existencial.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 155-174.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
170

Entre o mestre e o discípulo nas Migalhas Filosóficas:


a existência educadora em Kierkegaard
LIMA, F. B. C.

a ocasião que proporcione o reconhecimento da verdade na interioridade


do discípulo, pois a dimensão edificante da educação do humano só se
caracteriza quando a verdade está presente e o mestre não é um transmissor
de saber previamente elaborado, que elimina a possibilidade do discípulo
decidir pela sua singularidade.
Em uma reflexão que privilegie o entendimento da educação como
subjetividade, é necessário entender que o parecer kierkegaardiano, dado na
ironia e na comunicação indireta – e trataremos esta discussão adiante –
apresenta figuras significativas nas quais é necessária uma apreciação do
simbolismo, por uma questão de interpretações possíveis a partir da própria
condução da subjetividade. Sendo assim, perguntamos: Quem é o mestre
para Kierkegaard?

O mestre é então o deus, que dá a condição e que dá a


verdade. Agora como deveremos chamar este mestre?
Porque há um ponto sobre o qual estamos de acordo:
é que já ultrapassamos de muito o conceito de mestre.
Enquanto o aprendiz está na não verdade, porém por
causa dele mesmo (e de outro modo, afinal, ele não
pode estar assim...) poderia parecer que ele era livre;
pois estar junto a si mesmo é justamente liberdade
(KIERKEGAARD: 2001, p. 35).

A figura do mestre surge em proporção diametralmente oposta à do


aprendiz, pois enquanto o primeiro “dá a condição que dá a verdade”, o
segundo “está na não verdade, por causa dele mesmo”. Observamos
primeiramente que Kierkegaard refere-se ao mestre como uma
personificação da divindade, aquele pelo qual o aprendiz dedica sua
veneração e admiração. Mas o aprendiz só o faz porque está na não verdade.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 155-174.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
171

Entre o mestre e o discípulo nas Migalhas Filosóficas:


a existência educadora em Kierkegaard
LIMA, F. B. C.

O mestre, considerando que o conceito de mestre já foi em muito ultrapassado, não


é aquele que ensina e que força o aprendizado; adversamente é aquele que
faz descobrir, socraticamente, a partir do espanto – que os pensadores da
tradição socrática concordavam ser o princípio da filosofia – a verdade no
próprio indivíduo.
Quando o aprendiz reconhece sua culpa em ser a não-verdade, dá-
se o instante, a ocasião que transcende a contingência histórica onde a busca
pela verdade é mais essencial que a busca pela aprendizagem. Abandona a
condição de aprendiz, agora é um discípulo. Estes conceitos são
conceitualmente distintos pois, segundo Álvaro Valls (apud
KIERKEGAARD, 2001, p.33) em sua tradução das Migalhas Filosóficas,
Kierkegaard o emprega den Laerende, para o aprendiz e Discipelen para o
discípulo. O termo dinamarquês para aprendiz é den Laerende, aquele que
aprende. Este aprendiz somente absorve o conhecimento do mestre, sem
que aja nenhum desdobramento ou interiorização; não é um conhecimento
que contribua para a edificação ou para que a existência se consolide com
autonomia e liberdade. É por sua própria responsabilidade que o aprendiz
se afasta da verdade, por ansiar na contingência pelo saber de outrem,
negando a verdade que está em si mesmo. Este aprendiz,

[...] deve, pois, ser definido como fora da verdade (não


‘vindo para ela como prosélito’ mas ‘afastando-se
dela’), ou como não-verdade. Ele é, pois, a não-
verdade. Mas de que maneira se deve agora lembrá-lo,
ou de que lhe serviria lembrar-lhe o que não soube, e
do que portanto não pode de jeito nenhum dar-se
conta? (KIERKEGAARD, 2001, p. 32).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 155-174.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
172

Entre o mestre e o discípulo nas Migalhas Filosóficas:


a existência educadora em Kierkegaard
LIMA, F. B. C.

Em contraposição ao termo aprendiz, o conceito de discípulo


(Discipelen) é empregado no amplo sentido socrático. A dimensão da
condição socrática de conhecimento parte da máxima conhece-te a ti mesmo,
conforme a inscrição em Delfos, que admoesta qualquer indivíduo a buscar
por si um conhecimento de si na subjetividade, ou seja, não se trata apenas
de ensinar, mas de se estabelecer uma relação profunda entre o discípulo e
o mestre onde o fim almejado seja a verdade do eterno. Diante disto, o
discípulo não espera pelo conhecimento do mestre, mas acompanha o
mestre, caminha junto, para que haja continuidade e desdobramento do
conhecimento. É, portanto, ao discípulo, e não ao aprendiz, que o mestre
deve tornar-se ocasião, pois o discípulo é capaz de abandonar a condição
de não-verdade, pois no instante, o absoluto se manifesta à ele e na ausência
do mestre é capaz de prosseguir sua caminhada. Kierkegaard afirma:

Se o discípulo é a não-verdade [...] mas é no entanto


homem, e ele vem a receber a condição e a verdade,
não se torna homem evidentemente a partir de agora,
pois já o era; porém torna-se um outro homem, não no
sentido engraçado, como se ele se tornasse outro
homem da mesma qualidade que antes, mas torna-se
um homem de outra qualidade, ou, como também
podemos chamá-lo, um homem novo. Na medida em
que era a não-verdade, estava sempre a se afastar da
verdade. Ao receber, no instante, a condição, seu
caminho tomou a direção oposta ou se inverteu
(KIERKEGAARD, 2001, p. 39).

O que se observa na relação que se estabelece entre o mestre e o


discípulo é que, ao contrário do aprendiz, o discípulo recebe o
conhecimento para que se desenvolva com autonomia e liberdade. O

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 155-174.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
173

Entre o mestre e o discípulo nas Migalhas Filosóficas:


a existência educadora em Kierkegaard
LIMA, F. B. C.

mestre não cria uma relação de dependência sobre seu conhecimento e o


discípulo é capaz de ir além, sem se afastar da verdade.
A relação que se estabelece não é uma relação do âmbito
contingente, pois visa o absoluto; não é uma relação de não-verdade, pois
a verdade é o fim almejado, não é uma relação de dependência, pois é uma
relação no profundo, na interioridade onde não se cria propriamente uma
educação do conhecimento, mas a edificação da existência. A relação que
se dá entre discípulo e mestre é uma relação de amor, e o amor edifica.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, J.M A alteridade na construção da ética de Kierkegaard e


Lévinas. In: Revista Controvérsia - Vol. 6, n° 1: 36-45 (jan-mai 2010), São
Leopoldo: UNISINOS, 2010.

KIERKEGAARD, Søren. Diario: 1847-1848, Vol. 4. 3ª ed. A cura di Cornelio


Fabro. Brescia: Morcelliana, 1980. (D 4).

_______. Opere. Sansoni Editore. Milano: 1993.

_______. Postilla Conclusiva no Scientifica alle Briciole di Filosofia. In:


Opere. Tradução e organização de Cornélio Fabro. Sansoni Editore:
Milano, 1993.

_______. As obras do amor: algumas considerações cristãs em forma de


discurso. Tradução de Álvaro Valls. Petrópolis: Vozes, 2005.

_______. Três Discursos Edificantes de 1843. Tradução de Henri


Nicolay Levinspuhl. Publicação do Tradutor. Rio de Janeiro: 2000.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 155-174.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
174

Entre o mestre e o discípulo nas Migalhas Filosóficas:


a existência educadora em Kierkegaard
LIMA, F. B. C.

KIERKEGAARD, Søren. Migalhas filosóficas ou um bocadinho de


filosofia de João Climacus. Tradução de Álvaro Valls, e Ernani
Reichmann. Petrópolis: Vozes, 2001.

_______. O conceito de Ironia: constantemente referido à Sócrates.


Tradução de Álvaro Valls, e Ernani Reichmann. Vozes: Rio de Janeiro, 1997.

_______. Johannes Climacus ou É preciso duvidar de tudo. Tradução


Silvia Saviano Sampaio e Álvaro Valls. Martins Fontes: São Paulo, 2003.

_______. Diário Íntimo. Tradução de Maria Angélica Bosco. Santiago


Rueda: Buenos Aires, 1989

MARTINS, J.S.; VALLS, A. L. M. (orgs.). Kierkegaard no nosso tempo.


Nova Harmonia: São Leopoldo: 2010.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 155-174.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
ISSN 1984 - 5561

DUAS PERSPECTIVAS SOBRE O PROFESSOR NO


PENSAMENTO DE KIERKEGAARD

[TWO PERSPECTIVES ON THE TEACHER IN KIERKEGAARD’S


THOUGHT]

Humberto Araújo Quaglio de Souza

Doutor em Ciência da Religião, Professor adjunto A, Nível 1, no Departamento de Ciência da Religião da UFJF, e
Presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard (SOBRESKI)
(E-mail: hquaglio@terra.com.br)

Recebido em: 19 de março de 2018. Aprovado em: 06/05/2018

Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 175-196. ISSN 1984 – 5561


Dossiê Kierkegaard e a Educação
176

Duas perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard


SOUZA, H. A. Q. de .

Resumo: Na obra de Kierkegaard, podem ser identificados dois sentidos


diversos para o termo professor. Em um sentido substancial, nenhum ser
humano pode ser professor de outro. Contudo, em um sentido formal
fortemente inspirado pela figura do filósofo grego Sócrates, um ser humano
pode estabelecer com outro uma relação de professor e aluno. Este artigo
pretende refletir sobre essas duas diferentes concepções kierkegaardianas
de professor, com especial ênfase na atividade daqueles que, em sentido
formal, dedicam-se à tarefa de ensinar.

Palavras-chave: Professor. Conhecimento. Verdade. Ensino.

Abstract: In Kierkegaard’s writings, two meanings for the Word teacher


can be found. In a substantial sense, no human being can be a teacher to
another one. However, in a formal sense heavily inspired by the Greek
philosopher Socrates, a human being can establish a teacher and student
relationship to another one. This paper intends to present a reflection about
these two different Kierkegaardian conceptions of teacher, with a special
emphasis on the activity of those who, in the formal sense, dedicate
themselves to the task of teaching.

Keywords: Teacher. Knowledge. Truth. Teaching.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 175-196.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
177

Duas perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard


SOUZA, H. A. Q. de .

INTRODUÇÃO

Que sentido costuma-se dar quando se fala sobre a figura do professor? Sem dúvida,
é de se esperar que a palavra “professor” traga à mente do ouvinte o exercício de uma
atividade indissociável da educação e das relações entre ensino e aprendizado. Se o leitor
procurar a palavra “professor” nas traduções de obras de Kierkegaard para a língua
portuguesa, perceberá que referências ao ofício de quem se dedica ao ensino são mais
frequentes com o uso do termo “mestre”. Não há problema algum nisso. No português
falado no Brasil, o termo “mestre” usado como sinônimo de professor está em desuso, mas
é perfeitamente adequado para as traduções das obras kierkegaardianas, especialmente
aquelas publicadas sob o pseudônimo Johannes Climacus. A reflexão que se pretende fazer
neste artigo se refere justamente aos sentidos possíveis do termo “professor”, ou “mestre”
(como sinônimo de professor), no pensamento kierkegaardiano, e como os sentidos dados
por Kierkegaard ao termo podem contribuir para a tão importante discussão contemporânea
acerca do papel do professor na sociedade. Para tanto, é adequado que o presente trabalho
comece com uma exposição sobre o problema da tradução dos escritos kierkegaardianos, à
qual se seguirá uma reflexão sobre o experimento teórico de Johannes Climacus no livro
Migalhas filosóficas e sobre as considerações do próprio Kierkegaard sobre o mestre em seu
livro póstumo O ponto de vista explicativo sobre minha obra como escritor. A partir daí, serão possíveis
algumas considerações sobre os sentidos que Kierkegaard dá ao termo “professor” em seus
textos, e como essas diferentes perspectivas podem contribuir para o debate corrente sobre
o papel do professor e a atividade dos educadores em geral no tempo presente.

PROFESSOR OU MESTRE?

Considerações sobre questões de tradução podem parecer supérfluas a princípio.


Porém, quando o problema a ser abordado se relaciona com o papel do professor e com o
uso dos termos correspondentes em Kierkegaard, a língua portuguesa falada no Brasil exige
que sejam feitas tais considerações. O que se entende comumente por professor no Brasil?
O sentido que aqui se dá a esse termo é mais amplo do que em outras línguas, especialmente
a dinamarquesa e a inglesa. No português brasileiro, o professor é compreendido como

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 175-196.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
178

Duas perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard


SOUZA, H. A. Q. de .

docente em um sentido bastante amplo, que se refere a todo sujeito que ensina em uma
relação de ensino e aprendizado. Diz-se que são professores tanto os que lidam com crianças
muito pequenas em creches e jardins de infância quanto os que atuam em programas de pós-
graduação orientando doutorandos. O mesmo se aplica ao ensino técnico, artístico ou
esportivo: professor de dança, professor de computação, professor de teatro, professor de
futebol, e por aí vai.
Ao traduzir para o português o livro Migalhas Filosóficas, os brasileiros Ernani
Reichmann e Alvaro Valls optaram pelo uso do termo “mestre”, que se destaca como título
de um subtópico do capítulo I da referida obra que Kierkegaard publicou sob o pseudônimo
Johannes Climacus (KIERKEGAARD, 2008, p. 33). A palavra escolhida pelos tradutores
pode dar margem a alguma ambiguidade em português. O mestre pode ser o que ensina,
ainda que o uso dessa palavra nesse sentido seja quase um arcaísmo no Brasil. Usa-se esse
termo com mais frequência para designar um título acadêmico ou para se referir a alguém
muito habilidoso em alguma atividade: um mestre na arte da pintura ou um mestre nas artes
marciais, por exemplo. Há ainda outro sentido que, para a presente investigação, se revela
importante: o mestre pode ser sinônimo de senhor em uma relação com um servo ou escravo.
Se há tantas ambigüidades possíveis no uso do termo mestre em português, por que
os tradutores optaram por ele? Não poderiam ter simplesmente utilizado a palavra
“professor”? O que se pretende argumentar aqui é que o termo “professor” poderia
perfeitamente ter sido usado na tradução, no exato sentido pretendido por Kierkegaard ao
compor a obra de Climacus, mas que, ainda assim, a escolha do termo “mestre” foi a mais
acertada.
O referido subtópico do capítulo I de Migalhas Filosóficas foi intitulado “Læreren” (em
SKS 4, 222), ou seja, “o professor” ou “o mestre”. Em dinamarquês, “Lærer” é o termo que
equivale ao inglês “teacher”. Os respectivos idiomas dos daneses e dos anglos também têm
em seu léxico o vocábulo “professor”, mas tal palavra tem um sentido mais estrito, e é usada
para se referir àqueles que exercem a docência e a pesquisa no âmbito da educação superior.
Kierkegaard, escrevendo como Climacus, usa duas vezes o termo dinamarquês “Professor”
em Migalhas Filosóficas. O primeiro uso da palavra dinamarquesa “Professor” aparece no
capítulo IV (em SKS 4, 266), onde Climacus afirma: “[...] não há taberneiro nem professor
de filosofia que possa imaginar-se suficientemente engenhoso para perceber qualquer coisa,
se o próprio deus não lhe der a condição para tanto.” (KIERKEGAARD, 2008, p. 94-95).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 175-196.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
179

Duas perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard


SOUZA, H. A. Q. de .

O segundo uso do termo dinamarquês “Professor” na obra é feito no capítulo V (em SKS 4,
293). Referindo-se ao que ele chama de paradoxo absoluto, ao fato não puramente histórico
que na teologia é denominado de encarnação do verbo, Climacus afirma: “[...] aquele fato [...]
desdenha ser naturalizado sob a proteção de um rei ou de um professor; ele é e continua
sendo o paradoxo, e não se deixa assimilar pela especulação.” (KIERKEGAARD, 2008, p.
136-137). É pertinente mencionar que, também aqui, os tradutores brasileiros acertaram ao
incluir uma nota de rodapé ligada precisamente à palavra “professor”, explicando que
Kierkegaard, escrevendo como Climacus, estava fazendo uma referência crítica ao Professor
Martensen, ou seja, uma referência feita não a “en Lærer”, mas sim a um “Professor”
(universitário) e proeminente figura no âmbito intelectual da Copenhague naquela época.
Desde já é interessante levantar um problema. No mundo contemporâneo, e não só
no Brasil, há uma percepção generalizada de que o professor universitário ocupa uma posição
mais elevada do que os demais professores em algo que se poderia chamar de “hierarquia
intelectual” ou “acadêmica”, ou mesmo “social”. Para os anglófonos, o “professor” é visto
como alguém mais privilegiado do que o “teacher”. Mas e no texto kierkegaardiano? Como
se verá adiante, pode-se afirmar enfaticamente que não! Ainda que, já no país, na época e na
língua de Kierkegaard, o “Professor” fosse considerado alguém bastante privilegiado na
escala social, como os “Professorer” Ørsted e Martensen, o “Lærer” é tratado por Climacus
como alguém muito mais importante. Essa importância não é apenas expressada pelo
número de vezes em que o “Lærer” é mencionado na obra (mais de noventa vezes no livro
todo). Ela ficará mais clara quando forem analisadas as duas perspectivas kierkegaardianas
sobre o mestre, mais adiante; mas, em ambas as perspectivas, o “Lærer” está muito acima do
simples “Professor”. Aliás, em um dos sentidos, o “Professor” pode até ser um “Lærer”,
ainda que Kierkegaard não considerasse muitos dos “Professorer” de seu tempo como
dignos de serem chamados de “Lærer”. No outro sentido, porém, o “Lærer” está infinita e
absolutamente acima do “Professor”.
É preciso, porém, voltar a mais algumas considerações lingüísticas sobre o mestre ou
o professor. As palavras “mestre” ou “mestra” em português têm sua origem no latim. O
professor e a professora no mundo romano eram o “magister, - tri” ou a “magistra, -træ”1.
Estas palavras latinas estão na raiz não só do “mestre” português, mas também do “maestro”

1 É curioso notar que o título acadêmico conferido a Kierkegaard pela Universidade de Copenhague em 1841
foi justamente o de “Magister Artium” (cf. KIERKEGAARD, 1991, p. 17).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 175-196.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
180

Duas perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard


SOUZA, H. A. Q. de .

italiano, e do “master” inglês. Contudo, quando se fala em “master” na língua inglesa, não é
a ideia de professor que vem à mente do ouvinte, mas sim a ideia de alguém que faz algo
com maestria ou a ideia de senhor (em uma relação com um servo ou escravo). Quando
Howard e Edna Hong traduziram o dinamarquês “Lærer” para o inglês, o termo escolhido
foi, naturalmente, “teacher” (cf. KIERKEGAARD, 1987, p. 14). Não faria sentido algum o
uso dos termos ingleses “professor” ou “master” naquela edição norte-americana. Por outro
lado, o termo latino que se refere ao senhor em relação a um servo é “dominus, -i”. Mas que
relevância têm essas considerações para a compreensão das duas perspectivas sobre o
professor em Kierkegaard? Essa relevância ficará mais clara no próximo tópico, mas desde
já deve ser levada em consideração a condição de escritor religioso assumida pelo filósofo de
Copenhague. “Dominus”, o Senhor, é como a tradição cristã, especialmente no mundo
católico, se refere a Cristo desde seus primórdios. Mas Cristo também é chamado de mestre
no sentido específico de professor, daquele que ensina. No Evangelho de Mateus, na Vulgata
de Jerônimo, lê-se: “[...] nec vocemini magistri quia magister vester unus est Christus”. O
mesmo versículo do Evangelho (Mateus, 23:10) se lê assim na Bíblia dinamarquesa
contemporânea (de 1992): “I må ikke lade nogen kalde jer lærer; for én er jeres lærer,
Kristus.”2 Em português, tomando-se em consideração os sentidos hodiernos do termo
“mestre”, pode-se dizer que Cristo é compreendido na tradição cristã como mestre tanto no
sentido de professor quanto no de senhor.
Há, portanto, na escolha do termo “mestre” pelos tradutores lusófonos, uma
adequação maior à ideia transmitida pelo escrito kierkegaardiano até do que a que se encontra
no texto original dinamarquês, uma vez que um dos sentidos dados por Kierkegaard ao termo
“Lærer” é justamente o de mestre como designação exclusiva para Cristo. O outro sentido
do termo “Lærer” sobre o qual Kierkegaard faz reflexões é mais próximo daquele que hoje
se atribui também ao termo “professor” em português. E é neste ponto, feitas essas
considerações lingüísticas sobre os diversos termos que podem ser usados para designar um
professor, que se pode passar ao próximo tópico no qual serão examinadas as duas
perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard.

2É pertinente a observação de que a tradução portuguesa de Almeida, em sua versão revista e atualizada, traz,
no referido versículo, o termo “guia”, e que a clássica tradução inglesa King James traz o termo “master” que,
no inglês contemporâneo, não é mais compreendido como professor. Há também traduções dinamarquesas
mais antigas que, em vez de “Lærer”, traziam o termo “vejleder” ou “Veileder”, que significa guia ou instrutor.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 175-196.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
181

Duas perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard


SOUZA, H. A. Q. de .

DUAS PERSPECTIVAS BEM DISTINTAS SOBRE O PROFESSOR

Kierkegaard, em sua obra póstuma O ponto de vista explicativo da minha obra como escritor,
admitiu a possibilidade de chamar Sócrates de seu professor (Lærer), mas em um sentido bem
específico:

Do ponto de vista qualificativo, as grandezas de que temos de nos ocupar


são completamente diferentes; mas, do ponto de vista formal, posso
chamar, perfeitamente, a Sócrates meu mestre – se bem que não acreditei
nem acredito senão num único, o Senhor Jesus Cristo (KIERKEGAARD,
1986, p. 49; SKS 16, 36).

É nítida a distinção que Kierkegaard faz, nessa passagem, entre duas acepções
substancialmente diferentes do termo “professor” (ou “mestre”). Formalmente (formelt),
Kierkegaard admite chamar Sócrates de professor, mas essa compreensão formal da figura
do professor é qualitativamente (qualitativt) diferente de uma concepção que poderia ser
chamado de “material”, ou “substancial” de professor, referente apenas a Jesus Cristo no
pensamento do filósofo de Copenhague. Kierkegaard escreveu a passagem citada por volta
do ano de 1848, data provável da redação de O Ponto de Vista (cf. STEWART, 2017, p. 211),
mas essa distinção entre o sentido formal e o material do professor já havia sido bem
desenvolvida em 1844, ano de publicação de Migalhas Filosóficas. Ainda que esse livro de 1844
tenha sido publicado sob pseudônimo, a distinção nele presente entre essas duas perspectivas
bem distintas sobre o professor é justamente aquela que o próprio Kierkegaard demonstra
adotar com a afirmação feita sobre Sócrates e Cristo em 1848. E para compreendê-la bem, é
preciso dar atenção principalmente ao primeiro capítulo de Migalhas Filosóficas, intitulado
Tanke-Projekt (cf. SKS 4, 218), que traduzido ao pé da letra seria um “projeto de pensamento”.
Os tradutores brasileiros preferiram chamá-lo de “experimento teórico”, escolha de tradução
que expressa muito bem o sentido desejado pelo autor pseudônimo kierkegaardiano. O
referido capítulo apresenta, com efeito, um projeto de pensamento que é um experimento
teórico, na qual duas perspectivas distintas sobre ensino e aprendizado são expostas.
Quando se fala em ensino e aprendizado no contexto do experimento teórico de
Climacus, é inegável que se trata de uma discussão feita no nível mais amplo de uma teoria
filosófico-teológica do conhecimento. Não era a intenção do autor limitar-se a reflexões mais
específicas sobre a atividade daqueles que exerciam o ofício de professor em seu tempo, ou

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 175-196.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
182

Duas perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard


SOUZA, H. A. Q. de .

sobre escolas e sistema educacional, ou sobre didática. Contudo, isso não quer dizer que o
problema abordado ali e as ideias ali expostas não sejam relevantes e não possam ser
discutidas nesse contexto mais específico da pedagogia.
Kierkegaard fez seu autor pseudônimo estruturar o experimento teórico em duas
partes, A e B, a que podemos chamar de modelos ou projetos. O projeto A é uma exposição
breve (mas bastante perspicaz) de uma teoria do conhecimento socrático-platônica, e
também de um modo caracteristicamente grego de pensar que é comumente denominado na
história da filosofia de “intelectualismo grego”. Climacus inicia o projeto A com a pergunta
que dá o mote do capítulo inteiro: “Em que medida pode-se aprender a verdade?”
(KIERKEGAARD, 2008, p.27, SKS 4, 218). Conforme bem notaram os tradutores
brasileiros, a forma verbal dinamarquesa empregada pelo autor, “læres”, pode referir-se tanto
ao ato de ensinar quanto ao de aprender (cf. KIERKEGAARD, 2008, p 27, na nota de
rodapé 1), de tal maneira que uma possível tradução da sentença original seria também: “Em
que medida pode a verdade ser ensina ou aprendida?” O modo eminentemente grego e
filosófico de se responder a essa pergunta leva em conta justamente a identificação plena que
o pensamento grego (e especialmente o pensamento platônico) fazia, por um lado, entre
conhecimento, verdade, virtude e bem, e por outro lado entre ignorância, falsidade, vício e
mal. Tal identificação é levada a tal ponto que uma teoria ética, para o pensamento grego
antigo, pode ser inteiramente abarcada por uma teoria do conhecimento que, por sua vez,
não é em nenhum ponto completamente discernível de uma metafísica e de uma ontologia.
Climacus faz, então, uma exposição da bem conhecida e multissecular doutrina
socrático-platônica da reminiscência. Considerada em sua relação com o ensino e a
aprendizagem, a doutrina da reminiscência platônica afirma que o professor nunca, de fato,
ensina algo ao aluno. Sócrates, considerado modelo de professor pela maioria de seus
pósteros ao longo de toda a história da filosofia ocidental, nunca, com efeito, ensinava algo
a alguém caso ensino seja compreendido como transmissão de um conhecimento de um
agente (um professor), detentor daquele saber, a um paciente (um aluno), carente daquele
conhecimento. Sócrates declarou categoricamente durante seu julgamento (Apologia, 33a):
“Eu nunca fui professor de ninguém” (PLATONE, 2008, p. 38, tradução nossa). Por que,
então, Sócrates pôde ser chamado de professor por vários daqueles que, como Kierkegaard,
viram nele um modelo desse ofício?

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 175-196.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
183

Duas perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard


SOUZA, H. A. Q. de .

O que Sócrates quer dizer quando afirma que nunca foi professor de ninguém deve
ser entendido no contexto da doutrina da reminiscência. No pensamento de matriz socrático-
platônica, a compreensão dualista do mundo compreende o ser humano como composto de
corpo e alma, matéria e psique, elementos pertencentes a âmbitos distintos da realidade,
respectivamente o corpóreo, material, físico, em contraposição ao formal, ideal, supraceleste.
O conhecimento, o saber, a própria verdade, pertencem eminentemente ao âmbito das coisas
ideais, e não ao campo do corpóreo. De igual modo, a alma com que cada ser humano é
dotado também pertence ao hiperurânio. A consequência lógica dessa cosmovisão é a
conclusão de que todo ser humano é igualmente portador da verdade e do conhecimento
desde sempre e, se as pessoas aparentemente se mostram mais ou menos ignorantes na vida
cotidiana, isto se deve ao fato de que a ligação com o mundo corpóreo acarreta para o sujeito
um esquecimento das verdades eternas das quais sua alma participa desde sempre.
São esses pressupostos ontológicos e antropológicos que permitiram a Sócrates
desenvolver sua afamada doutrina da maiêutica, a arte do parto, a compreensão da atividade
do filósofo como um auxílio dado a outro sujeito para que o conhecimento, que está dentro
de si e que é parte da própria alma, venha à tona e saia do esquecimento que lhe foi imposto
pela união com a matéria. Por meio de perguntas, Sócrates demonstrava ser capaz de
conduzir seus interlocutores às respostas sobre as questões em discussão, de tal maneira que
não se poderia dizer, em nenhum momento, que Sócrates transmitiu diretamente a um sujeito
uma informação que este sujeito não detivesse antes. Kierkegaard, quando escreveu as
Migalhas Filosóficas sob o pseudônimo Climacus, não deixou de reconhecer o papel de
Sócrates, ou do professor, nesse processo apresentado no projeto A, e nem desmerece a
importância dele, chegando a afirmar que, “de homem a homem, a ajuda no parto é a relação
suprema” (KIERKEGAARD, 2008, p. 29, SKS 4, 220).
O fato de o professor não ensinar o aluno no sentido comumente compreendido, de
transmissão de uma verdade que antes não estava presente na mente do aprendiz, não quer
dizer que o papel do professor seja menor ou sem importância. Nesse sentido, o professor
é, nas palavras de Climacus, uma “ocasião” (KIERKEGAARD, 2008, p. 29, SKS 4, 220), o
que pode ser também compreendido como uma oportunidade com a qual o aluno se depara
em sua vida. Uma oportunidade ou ocasião para que o aluno esteja atento à verdade, como
se verá mais adiante. Climacus entende ainda que, nessa perspectiva socrática, se o professor
compreende a si mesmo como alguém que é capaz de atuar junto ao aluno de outro modo,

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 175-196.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
184

Duas perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard


SOUZA, H. A. Q. de .

ou seja, como alguém que detém a verdade, que é capaz de transmiti-la a outrem que não a
detém, e que, por isso, encontra-se em uma posição de superioridade diante do aluno, então
esse professor deixa justamente de ser um professor. Do modo como Climacus compreende
a doutrina socrático-platônica, ou o professor é uma ocasião, uma oportunidade, para o aluno
ou ele não é nada. Essa compreensão grega, tal como exposta por Climacus em seu projeto
A, deixa clara a virtude do professor que não se considera um deus. Climacus realmente faz,
de modo explícito e literal, referência a uma atitude que só seria legítima se partisse de um
deus, de uma divindade portadora do conhecimento e da verdade. Dessa forma, Sócrates
tem consciência de sua condição humana essencialmente igual à condição de qualquer sujeito
que com ele estabeleça uma relação de professor e aluno. Sócrates pode ser considerado
professor apenas no sentido bem específico que ele mesmo passa a afirmar, de auxiliador no
parto do saber, e não no sentido de alguém que dá a outro algo que esse outro não tinha
antes de encontrar-se com ele. Ele não pode (e sabe que não pode) arrogar para si o título de
professor nesse sentido que os sofistas davam ao termo.
Climacus não vê nessa compreensão socrática de professor uma humilhação ou
diminuição. Ao contrário, Kierkegaard, escrevendo com a pena de Climacus, vê na atitude
socrática um exemplo de altivez:

Com efeito, Sócrates teve a coragem e sensatez para bastar-se a si próprio,


mas também para, em suas relações com os outros, ser somente a ocasião,
até diante do homem mais imbecil. Ó altivez rara, rara em nosso tempo,
onde o pastor é um pouco mais que o sacristão, onde a cada dois homens
um é autoridade, enquanto todas essas diferenciações e toda esta variada
autoridade é mediada na loucura comum e num commune naufragium; pois
enquanto homem algum jamais foi verdadeiramente autoridade, ou trouxe
algum proveito ao outro por sê-lo, ou conseguiu em verdade tomar
clientes consigo, de uma outra maneira isso pode ter um melhor sucesso;
porque uma regra que nunca falha é: que um bobo, quando passa, leva
muitos outros consigo. (KIERKEGAARD, 2008, p.30; SKS 4, 220).

Esta passagem é emblemática do argumento que ora se expõe aqui. Nela, Kierkegaard
faz seu autor personagem Climacus reconhecer não só o mérito de Sócrates, sua coragem de
ser humilde ao reconhecer que não foi jamais uma autoridade diante de outro ser humano,
que jamais pretendeu ser alguém que, diante do outro, postava-se como detentor de um
conhecimento que o outro não era capaz também de deter, ainda que pudesse estar, segundo
a doutrina platônica da reminiscência, esquecido nos recônditos de sua psique. Essa

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 175-196.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
185

Duas perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard


SOUZA, H. A. Q. de .

humildade intelectual daquele que, para Kierkegaard, era o modelo de professor no sentido
formal contrasta com a arrogância dos contemporâneos do filósofo de Copenhague muito
criticados por ele, os já mencionados “Professorer”, intelectuais e professores universitários
portadores de títulos acadêmicos que julgavam estar, diante das pessoas consideradas menos
instruídas, em posição de insuperável superioridade intelectual e social.
O projeto B, como é de conhecimento de leitores de Kierkegaard, é exposto como
uma contraposição ao projeto A, formando um contraste que evidencia uma distinção
fundamental entre o cristianismo e as diversas correntes de pensamento de matriz platônica
que se desenvolveram ao longo da história da filosofia, como o neoplatonismo de Plotino e
até seus herdeiros modernos, os hegelianos. Um pouco mais extenso que o projeto A, o
projeto B do primeiro capítulo desse livro de Climacus posta-se como antítese do anterior
quando estabelece como premissa fundamental a hipótese de que a verdade e (pode-se
perfeitamente dizer no contexto da obra) também o conhecimento não estão desde sempre
presentes no sujeito. Essa é a premissa antitética em relação ao projeto A que representa a
distinção onto-antropológica fundamental entre cristianismo e platonismo. Se o pensamento
grego considera o ser humano como partícipe da substância do divino, o ser humano não é,
de fato, um ser criado. A alma, ou a psique, ou a mente, ou a inteligência do ser humano é,
desde sempre, parte da esfera hiperurânia, divina, eterna e imutável. A mutabilidade
experimentada pelo homem neste mundo corpóreo limita-se a um esquecimento, ou seja, a
um aspecto negativo que não subtrai da alma (ou da mente) seu caráter de possuidor perpétuo
da verdade e do conhecimento.
A perspectiva cristã sobre essas questões, por sua vez, parte da premissa de que os
seres humanos são criaturas, não constituídos da mesma substância da divindade, mas por
ela criados. A verdade e o conhecimento são atributos do divino, identificando-se com o
próprio Deus e estão, portanto, apartados dos humanos. Deus, no cristianismo, é equiparado
à própria verdade. Cristo é o verbo divino, que está eternamente com Deus e que é o próprio
Deus, além de ser também a própria Verdade. Os seres humanos, por sua vez, foram criados
a partir do nada (a doutrina da Creatio ex nihilo), e estão ainda mais apartados do divino por
causa do pecado. O cristianismo chega a essa perspectiva radicalmente diferente do
platonismo por um argumento que tem a forma de uma reductio ad absurdum: Deus é perfeito,
não há n’Ele pecado; os seres humanos são imperfeitos, pois erram e estão sujeitos ao
pecado; se feitos tivessem sido a partir de uma substância perfeita, não poderiam ser

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 175-196.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
186

Duas perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard


SOUZA, H. A. Q. de .

imperfeitos como são; Deus é o criador de todas (absolutamente todas) as coisas; logo, se os
seres humanos são imperfeitos e não podem, pelas razões expostas acima, ter sido criados
da substância de Deus, eles foram criados a partir do nada.
É digno de nota que esse nada do qual foram feitos os seres humanos implica a
ignorância, o desconhecimento, a ausência do saber. Rigorosamente falando, a maiêutica
socrática é fundamentalmente rejeitada pela doutrina cristã, pois o humano não possuiria em
si, desde sempre, o conhecimento e nem Sócrates nem qualquer outro professor seria capaz
de ajudar outra pessoa a extrair de dentro de si aquilo que lá não está. O conhecimento deve
ser, assim, trazido ao sujeito por um professor que já o possua, que lhe seja capaz de
transmitir a verdade e o saber. Este é, basicamente, o ponto básico do problema que
Climacus estabelece no contraste entre os dois projetos do primeiro capítulo de seu livro. A
partir daí, Climacus pode lançar-se ao ponto mais desafiador do problema.
Se, na perspectiva cristã, o ser humano não tem desde o princípio o conhecimento,
este deve ser trazido a ele por alguém, um professor, que já o tenha:

Se, agora, o aprendiz deve adquirir a verdade, então o mestre tem de trazê-
la a ele, e não só isso, mas é preciso que lhe dê juntamente a condição para
compreendê-la; pois se o aprendiz fosse, por si mesmo, a condição, então
precisaria apenas recordar-se; [...] (KIERKEGAARD, 2008, p. 33-34; SKS
4, 223).

Contudo, como poderia este professor ter obtido o conhecimento? Naturalmente,


alguém poderia responder dizendo que o professor obteve o conhecimento por meio de
outro professor. Mas como poderia algum ser humano ser um professor, se todos estão
afastados do conhecimento por não possuí-lo desde o princípio e por estarem dele afastados
pelo pecado? Climacus, sempre trabalhando seu argumento como se simples hipótese fosse,
admite que somente um deus (grafado propositalmente por Climacus com letra minúscula,
para reforçar o caráter hipotético e especulativo de seu projeto teórico) poderia ter acesso ao
conhecimento para transmiti-lo a outrem. O ser humano, por maiores que sejam seus
esforços, não poderia alcançar o saber por seus próprios meios. Ele precisa de um professor
que lhe ensine e, como divindade e conhecimento são equiparados no cristianismo, o
professor tem de ser, ao mesmo tempo, Deus e a própria verdade. A cristologia desenvolvida
por Climacus é, em todos os seus aspectos, condizente com o pensamento cristão: Jesus
Cristo, o Deus encarnado, é o único professor possível, nesse sentido.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 175-196.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
187

Duas perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard


SOUZA, H. A. Q. de .

É aqui, então, que se torna possível identificar a concepção “material” ou


“substancial” de professor no pensamento kierkegaardiano. Professor, compreendido como
aquele que traz o conhecimento a quem ainda não o tem, só pode ser Cristo, o próprio Deus.
Se Cristo é considerado ele mesmo o próprio conhecimento, o verbo divino, a verdade, a
ratio æterna, é inevitável concluir que o professor de um ser humano só pode ser o próprio
conhecimento, e não um outro ser humano que pretenda ser capaz de possuí-lo e de
transmiti-lo. Na concepção cristã, assim apresentada no pensamento de Kierkegaard, é o
próprio conhecimento que se faz presente ao aluno que a Ele se abre a que permite que Ele
o ensine.
Isto significa que Kierkegaard e a tradição cristã desconsideram, então, o papel do
professor como comumente compreendido? Teria Kierkegaard exposto uma rejeição do
cristianismo ao ofício de quem se dedica ao trabalho tão fundamentalmente importante para
a humanidade, especialmente em nossa época? Estaria Kierkegaard sugerindo que o
professor é dispensável em nosso tempo (e, a rigor, em todas as épocas)? A resposta a estas
perguntas é, seguramente, negativa. Aliás, seria absurdo afirmar, a partir de uma leitura do
argumento kierkegaardiano aqui apresentado, que o pensamento do escritor dinamarquês e
o próprio cristianismo condenam a profissão docente e a importância do trabalho do
professor para a humanidade. Como já foi afirmado acima neste artigo, o que importa aqui
é fazer uma distinção entre duas perspectivas diferentes sobre o professor e, até este ponto,
já é possível afirmar que professor em seu sentido material, substancial, ou “forte”, é um
título reservado somente ao próprio Deus como fonte de todo conhecimento e verdade, que,
aliás, é Ele próprio. Como visto, porém, Sócrates é considerado por Kierkegaard como seu
professor sob um ponto de vista formal. E assim podem ser considerados todos os
professores, ou seja, todas as pessoas que se dedicam ao ofício de educador em nosso tempo
e em todas as épocas. Ainda que nem todos os professores tenham provocado, na história
do pensamento, o mesmo impacto de Sócrates, sob a perspectiva kierkegaardiana todos
aqueles que desempenham esse papel que Sócrates desempenhou poderiam muito bem ser
chamados de professores no sentido formal.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 175-196.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
188

Duas perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard


SOUZA, H. A. Q. de .

A TAREFA DO PROFESSOR EM SENTIDO FORMAL

Qual seria, então, a tarefa do professor em um sentido formal quando são tomadas
como ponto de partida as ideias de Kierkegaard? Desde já é possível dar uma resposta direta
a esta pergunta com base na referida obra O ponto de vista: tornar o outro atento. Basicamente,
este seria o papel do professor sob uma perspectiva kierkegaardiana: o de tornar atenta outra
pessoa, para que ela possa abrir-se ao conhecimento e à verdade. Esta afirmação deve ser
examinada com mais atenção a partir do próprio texto kierkegaardiano. Afinal, uma leitura
apressada e irrefletida dela poderia levar o leitor a pensar que, no pensamento de Kierkegaard,
o professor desempenha uma função menor, ou que Kierkegaard diminui e deprecia a
importância do professor. Ao contrário! O que se pretende argumentar aqui é que a tarefa
do professor, pensada a partir das reflexões do escritor de Copenhague, é uma das mais
elevadas à qual um ser humano pode se dedicar, além de ser um elevado gesto de amor de
um ser humano para com outro.
Muito tem sido escrito sobre o experimento teórico de Johannes Climacus, do qual
se tratou no tópico anterior, e a maior parte dos que se dedicam a analisar o argumento do
primeiro capítulo de Migalhas filosóficas ressalta o contraste entre os dois projetos, A e B, com
as respectivas antropologias e gnosiologias bem diferentes que os referidos projetos
apresentam. E é natural que assim seja; afinal, Climacus quer claramente mostrar ao leitor a
diferença que há entre as duas compreensões, a cristã e a socrático-platônica, acerca do
processo de ensino e aprendizagem. Contudo, há alguns pontos nos quais os dois modelos,
mesmo que sejam fundamentalmente distintos, são concordantes. O que se pretende aqui é
justamente enfatizar um desses pontos de concordância: o de que o professor, tanto na
perspectiva grega quanto na cristã, não ensina como comumente se pensa, transmitindo um
saber que ele possui a um aluno que não o possui. Neste ponto, leitores atentos das fontes
antigas sobre Sócrates (Platão, Xenofonte e Aristófanes) estão de acordo. Werner Jaeger, em
sua obra Paideia, deixa isso claro quando lembra ao seu leitor que o próprio Sócrates afirmava
não eram de Sócrates aquelas ideias que lhe eram comumente atribuídas. Falando em um
contexto específico, do problema da compreensão das normas pelos atenienses, Jaeger expõe
um ponto que vale de igual maneira para tudo o que envolve a apropriação do conhecimento:

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 175-196.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
189

Duas perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard


SOUZA, H. A. Q. de .

Mas foi dele [de Sócrates] e só dele que Platão recebeu a ideia 3 de que o
renascimento do Estado não se podia conseguir pela simples implantação
de um forte poder exterior, mas tinha de começar pela consciência de cada
um, como hoje diríamos, ou para usar a linguagem dos gregos, pela sua
alma. Só dessa fonte interior pode jorrar, purificada pela investigação do
lógos, a verdadeira norma obrigatória e irrecusável para todos. Nesse
sentido, é completamente indiferente a Sócrates que se chame Sócrates e
seja filósofo de profissão o homem que ajudar a esclarecer esta norma.
Quantas vezes ele insiste em que não é ele, Sócrates, mas sim o lógos quem
diz isto ou aquilo! A mim podeis refutar-me – diz –, não a ele, porém (JAEGER,
2013, p. 574, grifo do autor).

Aquele ponto de concordância entre os projetos A e B do livro de Climacus, acima


mencionado, fica mais evidente ainda: é o lógos que ensina, embora o lógos seja compreendido
de forma fundamentalmente diferente nos dois projetos (como parte da substância do ser
humano, da alma, no socrático-platônico, e como a própria substância de Deus,
absolutamente diferente da criatura, no cristão).
Tanto na perspectiva cristã quanto na socrático-platônica, a relação do professor com
o aluno não deixa de ser, por isso, uma relação importante entre um ser humano e outro, o
que fica claro na própria argumentação feita já no projeto A, citada acima. No cristianismo e
no projeto B, porém, essa relação não perde sua importância e seu caráter elevado. Mas o
que diz Kierkegaard sobre esse elevado papel do professor, que consiste em tornar o outro
atento? Eis o que o autor afirma em O ponto de vista:

Um homem pode ter a sorte de fazer muito por outro, a de o conduzir até
onde deseja levá-lo; para nos atermos ao nosso tema principal e constante,
pode ter a felicidade de o ajudar a tornar-se cristão. Mas esta possibilidade
não está em meu poder; depende de uma multidão de circunstâncias e,
sobretudo, da vontade do outro. Nunca posso de modo algum impor a
alguém uma opinião, uma convicção, uma crença; mas posso uma coisa,
num sentido a primeira (porque ela condiciona a seguinte: a aceitação da
opinião, da convicção, da crença), e num outro, a última, se não quer a
continuação: posso obrigá-lo a tornar-se atento (KIERKEGAARD, 1986,
p. 45, SKS 16, 32).

Aqui, nessa passagem escrita e assinada por Kierkegaard, ficam bem claros certos
pontos que podem ser inferidos também do que já foi exposto sobre o experimento teórico
de Climacus. Se não é possível a um ser humano ensinar algo a outro no sentido de transmitir

3É curioso notar que Jaeger faz uma afirmação que contraria tanto o modo socrático quanto o kierkegaardiano
de compreensão do ensino e aprendizado, pois ele afirma que Platão recebeu um conhecimento de Sócrates.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 175-196.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
190

Duas perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard


SOUZA, H. A. Q. de .

a alguém um conhecimento que esse alguém não tinha anteriormente, é evidente que
ninguém pode forçar a outro uma opinião, uma crença, uma convicção. Ora, alguém poderia
objetar que isso se faz o tempo todo, que pessoas manipuladoras inculcam ideias e
convicções nas mentes mais fracas, e que seria absurdo negar esse fato. Mas Kierkegaard toca
em um ponto fundamental: a vontade do outro. É a vontade o elemento essencial. A
facilidade que um sujeito tem de ser enganado depende, em grande parte, de sua força de
vontade, de sua propensão em confiar naquilo que outro lhe diz. Alguém cuja vontade é forte
está menos propenso a acreditar de imediato em informações que lhe são passadas por outra
pessoa, ao passo que sujeitos considerados mais crédulos e desprovidos de capacidade crítica
tendem a aceitar com muita facilidade o que outros lhe dizem. No fundo, porém, aceitar uma
opinião, ou uma informação, é um ato de vontade. E o ato de vontade, de receber em sua
interioridade alguma verdade (ou algo que é tomado como verdade pelo sujeito), é algo que
ocorre exclusivamente na interioridade. É o que se pode chamar de apropriação. O sujeito
apropria-se, toma como uma verdade para si algo que lhe foi apresentado. Esse ato de
apropriar-se de um conhecimento se dá por meio de um juízo: o sujeito julga se aquilo que
está diante de si é uma verdade ou não, se é um conhecimento digno ou indigno de ser
incorporado às suas convicções. Como afirma Kierkegaard sobre esses juízos que todo ser
humano faz sempre que precisa decidir se aceita ou rejeita um conhecimento:

Obrigando este homem a tornar-se atento, forço-o a julgar. E ele julga.


Mas o que julga não está em meu poder. Talvez julgue o contrário daquilo
que desejo. E, além disso, talvez esta necessidade em que o coloquei de se
pronunciar o exaspere, e até ao furor, contra a questão e contra mim; e
talvez seja eu, no final, a vítima do meu procedimento corajoso
(KIERKEGAARD, 1986, p. 45; SKS 16, 32).

E então, neste ponto, começam a mostrar-se as razões pelas quais Kierkegaard julga
ser possível chamar Sócrates de seu professor. Ora, o que ele descreve aqui como elemento
característico de sua missão, de tornar as pessoas atentas, assemelha-se por demais ao que o
próprio Sócrates fazia, inclusive quanto às suas conseqüências. O professor arrisca-se: o
aluno pode, a partir das vias pelas quais o professor o conduz, decidir-se por elaborar juízos
diferentes daqueles que o próprio professor faz sobre uma questão; o aluno pode chegar a
uma conclusão diferente, inclusive a ponto de voltar-se contra o próprio professor. O
professor está sempre diante da possibilidade de tornar-se, nas palavras de Kierkegaard,

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 175-196.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
191

Duas perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard


SOUZA, H. A. Q. de .

vítima de seu procedimento corajoso. Foi exatamente o que aconteceu com Sócrates, que
atraiu sobre si a atenção de toda a pólis, que se encontrou dividida e que, por uma maioria
estreita, decidiu condená-lo.
Há um problema suscitado por essas considerações sobre o professor (no sentido
formal), o aluno e os diferentes juízos possíveis que ambos podem fazer. Se, por exemplo, o
professor deseja que o aluno esteja atento a uma proposição x, e se o professor considera a
proposição x como verdadeiro, é possível que o aluno venha a concluir, do modo contrário
ao professor, que a proposição x é falsa. Poderia isto significar uma relativização da verdade?
Kierkegaard já foi interpretado como um subjetivista, ou como alguém cujas ideias podem
levar a algum tipo de relativismo. Tais interpretações são, contudo, um engano. O fato de
que pessoas diferentes sejam capazes de fazer juízos diferentes sobre uma mesma questão
não significa que uma delas não esteja errada. E sobre isto, Kierkegaard leva em conta o
papel de Sócrates na história da filosofia como um pioneiro no reconhecimento de que as
verdades objetivas não têm significado para o sujeito se não forem por ele apropriadas.
Kierkegaard muito provavelmente teve contato com tal percepção no pensamento de Hegel.
Conforme expõe Jon Stewart:

[...] isso não significa que qualquer coisa que o sujeito venha a pensar seja
verdade e tenha validade. Hegel acredita que ainda há uma verdade
objetiva, mas que ela deve ser alcançada e reconhecida pelo sujeito
individual por meio do exame racional. O problema com a visão grega
anterior a Sócrates era que a esfera dos costumes e tradições era, em certo
sentido, tirânica. Pensava-se que ela estava além de qualquer
questionamento, e a opinião própria pessoal de alguém sobre ela não
importava [...]. Mas para Sócrates e para a visão moderna cada indivíduo
tem o direito de dar seu consentimento à verdade. Essa perspectiva
reconhece a racionalidade do indivíduo para conhecer e compreender a
verdade. Então, a revolução que Sócrates iniciou no mundo grego e que
levou à nossa concepção moderna é que o sujeito é um elemento
constitutivo da verdade. Para os gregos, essa era uma ideia nova e chocante
que, no fim, custou a Sócrates sua vida (STEWART, 2017, p. 51).

A verdade não força sua entrada na interioridade de ninguém. Como Kierkegaard


afirmou (e como foi anteriormente citado), a aceitação da verdade depende de um ato de
vontade. O sujeito pode, com sua vontade, apropriar-se de um conhecimento verdadeiro,
mas pode rejeitá-lo. Ainda que tal conhecimento continue sendo objetivamente verdadeiro,
ele será afastado pelo sujeito que o rejeita, não será incorporado à sua interioridade, não se
tornará verdade para ele. Se o conhecimento fosse tão somente uma questão de transmissão
Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 175-196.
Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
192

Duas perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard


SOUZA, H. A. Q. de .

e recepção, sem o elemento volitivo essencial do aprendiz, o professor seria sempre um


tirano, alguém que não torna o aluno atento, mas que o adestra, molda-o, e retira dele sua
própria humanidade. O professor seria, enfim, semelhante a um deus.
Mas o professor, no sentido formal que Kierkegaard admite, é um ser humano. A
verdade e o conhecimento estão acima do humano, e se um ser humano pretender possuí-
los como quem subjuga e controla algo exclusivamente seu estará incorrendo em um auto-
engano que poderá se refletir no modo como encara sua atividade como professor. O ser
humano que pensa assim, como um detentor do conhecimento que se coloca em uma
posição ontologicamente superior à de seus alunos incorreria, em última análise, no erro de
pretender ser como Deus; e isto é a primeira tentação que a humanidade pode enfrentar.
Afinal, é o que disse a serpente no mito do Gênesis: “sereis como Deus”. Essa tentação do
orgulho é, de fato e infelizmente, uma possibilidade sempre presente em todas as situações
envolvendo ensino e aprendizado. O professor pode esquecer-se de que é humano e falível
como o aluno, e pode ver-se como superior a ele, detentor absoluto e inerrável da verdade.
Quando Kierkegaard, depois das Migalhas filosóficas, escreve novamente sob o pseudônimo
Johannes Climacus, ele faz críticas contundentes aos professores universitários (os
“Professorer”, que não se confundem com o “Lærer”) de seu tempo, cujas ideias,
especialmente no caso dos hegelianos, deixavam transparecer a pretensão de moldar a
própria existência, e a própria verdade, para que elas se adequassem aos sistemas que
construíram especulativamente:

O sistema lógico não pode ser uma mistificação, uma ventriloquia, em que
o conteúdo da existência apareça, astuciosa e sub-repticiamente, onde o
pensamento lógico fica perplexo e encontra o que o Herr Professor [al.:
Sr. Professor] ou o Licenciado já tinha na cabeça (KIERKEGAARD,
2013, p. 115; SKS 7, 107)4.

Assim como os sofistas no tempo de Sócrates, os professores universitários soberbos


no tempo de Kierkegaard não conseguiriam ser para com o aluno um “Lærer”, um professor
no sentido formal que torna o aluno atento à verdade, uma vez que eles pretenderiam tornar
o aluno tão somente atento aos seus erros e às suas especulações que nada poderiam dizer

4O tradutor brasileiro insere, nesta passagem, uma nota de rodapé para informar ao leitor que o original em
dinamarquês, se traduzido literalmente, seria “já traziam atrás das orelhas” em vez de “já tinha na cabeça”, o
que reforça o caráter irônico da crítica kierkegaardiana à arrogância acadêmica percebida em seu tempo.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 175-196.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
193

Duas perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard


SOUZA, H. A. Q. de .

acerca da existência e da concretude da vida. Como afirmado anteriormente, o papel do


professor em Kierkegaard, compreendido em sua acepção formal como aquele ser humano
que se preocupa em tornar o aluno atento à verdade, é infinitamente mais importante do que
a mera posição acadêmica do sujeito. Isto não quer dizer que o professor universitário não
possa ser também um professor (“Lærer”) nesse sentido formal, tal como ele trata Sócrates.
A dedicatória do livro O conceito de angústia é um exemplo disto. Kierkegaard dedica a obra do
pseudônimo Vigilius Haufniensis “ao falecido Professor [grafado ‘Professor’ no original
dinamarquês, e não ‘Lærer’] Poul Martin Møller, [...] cúmplice de Sócrates [...]”
(KIERKEGAARD, 2010, p. 6; SKS 4, 311). Na epígrafe da mesma obra (KIERKEGAARD,
2010, p. 5; SKS 4, 310), há um elogio a Sócrates, no qual o grego é chamado de “sábio
simples”, um homem que foi grande “porque distinguia entre aquilo que ele compreendia e
aquilo que ele não compreendia”.
De tal modo é compreendido o professor, em seu sentido formal, no pensamento de
Kierkegaard. Ele deve ser simples, humilde no reconhecimento de que não é a própria
verdade e o próprio conhecimento encarnado. A simplicidade e a humildade são aquilo que,
paradoxalmente, farão do professor, assim compreendido, alguém dotado de grandeza. Ele
procura tornar aqueles que estão ao seu redor atentos à verdade, procura acompanhar seus
alunos, conduzi-los o mais longe possível no caminho que leva ao conhecimento, mas tendo
sempre a consciência de que, ao final, será sempre do aluno a decisão de apropriar-se ou não
dela por um ato de vontade. E se o professor, assim compreendido, reconhece que ele não
é a própria verdade, ele verá na verdade a única fonte do conhecimento do qual ele pôde, em
sua existência, apropriar-se. A própria verdade é sua mestra, sua professora, em sentido
próprio, substancial, e ele procurará estar sempre atento a ela, como deseja que seus alunos
também estejam atentos. Estar sempre atento à verdade, de modo humilde, é, portanto, parte
da tarefa do professor tornar também atentos os seus alunos, para que possam eles mesmos
também apropriar-se da verdade. É nesse sentido que o professor deve estar sempre disposto
a ser, para o aluno, uma ocasião, uma oportunidade. Sob essa perspectiva formal, as relações
de ensino e aprendizagem podem suceder-se por gerações de professores e alunos, que
podem vir a se tornarem professores e a conclamar as gerações seguintes a estar atentas
sempre ao conhecimento, ao lógos, que é o professor de onde todos efetivamente, aprendem.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 175-196.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
194

Duas perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard


SOUZA, H. A. Q. de .

CONCLUSÃO

É inegável que as duas diferentes perspectivas sobre o professor apresentadas por


Kierkegaard fundamentam-se em ideias ancoradas na religião cristã. Se for levado em
consideração o contexto contemporâneo, o espírito da época presente, de laicidade e
secularização, de pluralidade de perspectivas religiosas que abarcam inclusive visões de
mundo antirreligiosas, seria ainda possível encontrar alguma validade nessas ideias
kierkegaardianas sobre o professor? Teriam elas ainda alguma serventia no debate a respeito
do papel do professor nas relações de ensino e aprendizado e nas discussões sobre os
problemas ligados à educação, especialmente no Brasil?
Uma mente antirreligiosa e refratária a qualquer tipo de discurso que tangencie a
teologia talvez responda prontamente que não. Tal resposta apressada, contudo, deixará de
perceber alguns pontos fundamentais que poderiam ser traduzidos em termos mais palatáveis
às mentes secularizadas do tempo presente. Em primeiro lugar, como visto acima, a questão
da relação entre verdade e subjetividade pode ser expresso em termos perfeitamente
inteligíveis para quem a considera sob a ótica exclusiva de uma teoria filosófica do
conhecimento. Pois é inegável que, para o sujeito que ignore alguma coisa, esta coisa, mesmo
sendo verdade do ponto de vista da objetividade, não será uma verdade para aquele sujeito.
Sob essa perspectiva, o sujeito não se apropria de algo que ignora.
Que dizer, porém, quanto à relação entre ensino e aprendizagem? Ora, em uma
cosmovisão panteísta em sentido amplo, que faz uma perfeita identificação entre Deus e
mundo, ou mesmo em uma cosmovisão puramente naturalista, a percepção que Kierkegaard
teve do último estágio da apropriação de um conhecimento pelo sujeito é perfeitamente
compreensível: pois, em última análise, ainda que uma pessoa transmita uma informação a
alguém, caberá ao receptor formular um juízo sobre tal informação, incluindo-a ou não na
categoria de verdade em sua subjetividade. E tal juízo pode ser compreendido perfeitamente
como um ato de vontade. Pode-se, com efeito, discutir o problema da vontade em diferentes
sujeitos. Uma criança, por exemplo, tenderá a ter sua vontade fortemente influenciada por
um adulto que se apresenta diante dela como uma autoridade, como um professor. Mas isto
não quer dizer que não haja, por parte da criança, um juízo que é feito por ela, uma decisão
interior que, aliás, ela pode vir a mudar com o passar do tempo e com o amadurecimento.
Não é de se admirar que muitas correntes de pensamento contemporâneas no campo da

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 175-196.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
195

Duas perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard


SOUZA, H. A. Q. de .

educação não reduzam a ideia de ensino e aprendizado à mera transmissão e receptação de


informação (cf. ex. ALMEIDA, 2013).
A concepção kierkegaardiana de professor no sentido puramente formal é, portanto,
facilmente explicável em termos admissíveis para as mentes secularizadas hodiernas. Quanto
à concepção de professor no sentido material, uma tradução dela a uma perspectiva aceitável
para as cabeças secularizadas pode, à primeira vista, parecer mais difícil. Afinal, a verdade é
claramente identificada com Cristo, o único mestre possível em um sentido substancial.
Contudo, essa concepção de possibilidade de aprendizado exclusivamente através da verdade
não pode ser separada da ideia de professor no sentido formal. O que é isto a que se costuma
chamar de verdade ou de conhecimento, para o qual o professor em sentido formal torna
atento o aluno? E se professor e aluno (ambos em um sentido formal), são bem sucedidos
nesse processo de tornar atento, o que é isto a que se dá atenção? Não é a partir dos juízos
corretos que o aluno faz, despertado pelo professor, que se chega da ignorância ao saber,
ainda que tal saber não seja jamais conclusivo e completo? Não são o lógos (compreendido
como discurso verdadeiro) e a ratio aqueles aspectos do saber efetivamente capazes de
conduzir o sujeito aos juízos corretos sobre a verdade ou a falsidade de algum dado,
proposição, informação? E se assim for, não é então da própria verdade, em última análise,
que o sujeito aprende?
A ideia bem tipicamente kierkegaardiana de que a verdade subjetiva se dá sempre de
modo relacional (relação do sujeito com a verdade que apropriou e tornou sua) não poderia
ser compreendida de outro modo: o professor, no sentido formal, estabelece com o aluno
uma relação entre iguais. Não se trata aqui de uma igualdade absoluta, que desconsidera a
individualidade e as diferentes circunstâncias na vida de cada sujeito. Mas é uma igualdade
que se manifesta no fato de que todos, alunos e professores, em última instância aprendem
da mesma fonte, e são capazes de, com essa fonte, estabelecer uma relação de aprendizado.
Todos, em sua condição humana, são capazes tão somente de apreender fragmentos,
migalhas, da totalidade do conhecimento e da verdade. Alguns, porém, já estão atentos e
abertos a ela há mais tempo, ou com mais intensidade, do que outros, e podem assumir para
si a tarefa nobilíssima de auxiliar seu próximo a tornar-se ele também atento, de ser para o
próximo uma ocasião e uma oportunidade. É uma relação elevada, nobre, santa, até. E é
assim que pode ser compreendida, sob uma perspectiva kierkegaardiana, a tarefa socrática de
ser formalmente professor.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 175-196.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
196

Duas perspectivas sobre o professor no pensamento de Kierkegaard


SOUZA, H. A. Q. de .

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Jorge Miranda de. A educação em Kierkegaard e Paulo Freire: por uma
educação ético-existencial. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2013.

BIBELEN. Copenhague: Det Dansk Bibelselskab, 2004.

BIBLIA SACRA Vulgata. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil; Stuttgart: Deutsche


Bibelgesellschaft, 2007.

JAEGER, Werner. Paideia: A formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

KIERKEGAARD, Søren. Ponto de vista explicativo da minha obra como escritor.


Lisboa: edições 70, 1986.

_______. Philosophical Fragments; Johannes Climacus. Princeton: Princeton University


Press, 1987.

_______. Migalhas filosóficas ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus. 2 ed.


Petrópolis: Vozes, 2008.

_______. O conceito de angústia. Petrópolis: Vozes, 2010.

KIERKEGAARD, Søren. Pós-escrito às migalhas filosóficas, v. I. Bragança Paulista:


Editora Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2013.

PLATONE. Tutti gli scritti. Milão: Bompiani, 2008.

STEWART, Jon. Søren Kierkegaard: Subjetividade, ironia e a crise da modernidade.


Petrópolis: Vozes, 2017.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 175-196.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
ISSN 1984 - 5561

A PEDAGOGIA DO TRAVESSÃO

[THE PEDAGOGY OF THE DASH]

Ramon Bolívar C. Germano

Mestre em Filosofia, Doutorando em Filosofia pela UFPB-UFRN-UFPE, Professor do Departamento de Filosofia


da UEPB. Membro da Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard (SOBRESKI).
(E-mail: proframonbolivar@gmail.com)

Para minha esposa Ruth

Recebido em: 19 de março de 2018. Aprovado em: 28/05/2018

Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 197-210. ISSN 1984 – 5561


Dossiê Kierkegaard e a Educação
198

A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar

Resumo: Neste artigo mostramos como a contribuição de Kierkegaard


para a educação pode ser compreendida a partir da proposição de uma
pedagogia do travessão. No interior da relação pedagógica o travessão é o traço
que suspende a interferência positiva e direta do “mestre” sobre o
“discípulo”, do auxiliador sobre o auxiliado. Quer dizer que só por meio do
travessão a liberdade do outro pode ser garantida e preservada. Ao final
veremos que a pedagogia do travessão só se realiza perfeitamente em se tornado
uma pedagogia do amor.

Palavras-chave: Pedagogia. Travessão. Amor.

Abstract: In this article we show how Kierkegaard's contribution to


education can be understood from the proposition of a pedagogy of the dash.
Within the pedagogical relationship, the dash is the trace that suspends the
direct and positive interference of the "master" over the "disciple", the
helper over the aided. It means that only through the dash can the freedom
of the other be guaranteed and preserved. In the end we will see that the
pedagogy of the dash is only perfectly realized when it becomes a pedagogy of love.

Keywords: Pedagogy. Dash. Love.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 197-210.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
199

A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar

Qual o maior dos benefícios que um homem pode fazer por outro? Trata-se de uma
pergunta difícil porque, ao que tudo indica, aquilo que pode ser um benefício para
determinada pessoa, pode inversamente ser um malefício para outra. Além disso, também
variam as capacidades do benfeitor, de modo que nem todo aquele que quer ajudar tem de
fato o poder de fazê-lo. Quer dizer que o maior benefício que um homem pode fazer por
outro depende de quem é este homem e do que precisa aquele outro. Ora, mas isto
impossibilita uma reposta unívoca e definitiva à nossa pergunta! Ficamos apenas com a ideia
de que para cada homem particular deve haver um benefício e um benfeitor particular. Para
o doente, o maior de todos os benefícios seria a saúde e o seu principal benfeitor o médico.
Para o ignorante, a sabedoria e o sábio. Para o analfabeto, a leitura e o professor. Neste caso,
nossa pergunta careceria de sentido. Não somos capazes de dizer qual o maior dos benefícios
que um homem pode fazer por outro porque tudo varia de acordo com as circunstâncias de
cada um! Devemos então parar antes de começar ou devemos tentar outra via de acesso à
questão? Não será possível, ainda que de maneira indireta, indicar de fato qual o maior dos
benefícios que um homem pode fazer por outro? Estamos convencidos de sim.
Em todos os casos em que um homem ajuda um outro de tal maneira que se torna o
seu benfeitor, será tanto mais bem sucedido quanto mais o beneficiado tonar-se
independente em relação a ele. O que isso quer dizer? Que ser verdadeiramente beneficiado
é tonar-se finalmente independente do benfeitor. No caso do doente, ser perfeitamente
beneficiado é tornar-se totalmente independente do médico – porque afinal, com o auxílio
deste, reestabeleceu totalmente a sua saúde. Um doente que depende do médico indica com
a sua dependência que a sua enfermidade persiste. Igualmente com o ignorante que precisa
do sábio e com o analfabeto que depende do professor. O verdadeiro benefício é sempre
libertador! O ignorante se liberta do sábio e o analfabeto do professor. Assim o benefício de
fato se realiza. Do contrário a pessoa ajudada recebe muitos benefícios do outro, mas por
isso mesmo permanece sempre mais dependente – o que, no fundo, constitui um malefício.
Quer dizer que por mais que um homem auxilie um outro a adquirir aquele que seria o maior
e o mais verdadeiro dos benefícios, se o faz de tal maneira que o auxiliado torna-se devedor
e dependente dele, então não faz benefício ao outro, mas, em certo sentido, malefício. É
justamente isto que Kierkegaard pretende indicar quando escreve em um de seus discursos

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 197-210.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
200

A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar

religiosos1 que “o maior dos benefícios consiste justamente na maneira como o único
verdadeiro benefício é realizado” (KIERKEGAARD, 2005, p. 308-309). Quer dizer que o
maior dos benefícios que um homem pode fazer por outro não é meramente um “que”, uma
coisa que ele faz, mas um “como”, ou seja, um modo, a maneira como ele o faz. Este “como”,
este modo é essencial para que aquela ajuda seja de fato um benefício, isto é, para que o auxílio
seja ao mesmo tempo ocasião de libertação e não de dependência. Sobre isso Kierkegaard é
claro:

Quando eu digo: “Este homem se mantém por si só, com a minha ajuda”,
e quando é verdade o que estou dizendo: fiz então por ele o máximo?
Vejamos! Que digo eu com isso? Digo que ele “se mantém única e
exclusivamente graças à minha ajuda”. Mas então, afinal de contas, ele não
se mantém por si mesmo, ele não se tornou senhor de si, já que é à minha
ajuda que ele deve tudo – e ele está consciente disso. Ajudar uma pessoa
desta maneira é propriamente enganá-la (KIERKEGAARD, 2005, p.
309).

O engano da relação está no fato de que aquela pessoa que aparentemente se mantém
por si só permanece, na verdade, em uma situação de dependência em relação ao seu
“benfeitor”. Tanto que ajudar uma pessoa deste modo, segundo esta maneira, equivale a
prejudicá-la, porque o resultado será sempre mais dependência, menos liberdade.
Inversamente, caso aquele que ajuda o faça de tal maneira que, ao cabo, sua ajuda se torne,
por assim dizer, esquecida, invisível, quase que inexistente – então o ajudado de fato recebeu
um verdadeiro benefício, o benefício de sua própria independência ou de sua própria
liberdade em relação ao outro. Por isso Kierkegaard nos explica:

Ora, é impossível realizar o maior de todos os benefícios de modo que o


beneficiário fique sabendo que é a mim que ele deve; pois caso ele o
perceba, então já não se trata do maior dos benefícios. Em contrapartida,
se alguém disser: “Este homem se mantém sozinho – graças à minha
ajuda”, e se é verdade o que ele diz, sim, neste caso terá feito por esta
pessoa o máximo que um homem pode fazer por um outro: o terá tornado
livre, independente, por si mesmo, senhor de si, e justamente ao ocultar
sua ajuda o terá ajudado a mantar-se por si próprio (KIERKEGAARD,
2005, p. 310).

1 Trata-se do discurso O Amor não procura o que é seu, um dos textos que compõem As Obras do Amor: algumas
considerações cristãs em forma de discursos, livro publicado por Kierkegaard em 1847.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 197-210.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
201

A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar

Mas onde está a diferença entre estas duas expressões: “Este homem se mantém
sozinho graças à minha ajuda” e “este homem se mantém sozinho – graças à minha ajuda”?
A diferença está precisamente naquilo que Kierkegaard chama de “traço de suspensão” (Cf.
KIERKEGAARD, 2005, p. 310), ou seja, no travessão. A inclusão do travessão cria na frase
um intervalo, um silêncio transfigurador. Nada é dito diretamente com o travessão, antes
apenas algo é calado, não-dito. Mas justamente este não-dito, este intervalo de silêncio, promove
na expressão uma mudança extraordinária. O travessão “cala” a ajuda, mantém o auxílio no
recolhimento do silêncio. Toda a tônica é posta na liberdade do ajudado, no fato de que ele
se mantém por si mesmo. Tudo que passa disso é recolhido sob o silêncio do travessão. A
independência do ajudado fala no silêncio do calar da ajuda. Quer dizer que o intervalo criado
pelo travessão é o espaço da liberdade do outro, o silêncio que permite que sua liberdade de
pronuncie. Sem o espaço criado pelo travessão a liberdade do ajudado estará sempre limitada
pela presença berrante da ajuda. O travessão é a distância do ocultamento, aquilo que faz
calar a ajuda e, por isso mesmo, aquilo que abre espaço para a liberdade do ajudado. Sem a
introdução do travessão a ajuda se torna um tipo de indiscrição, uma presença inconveniente
e estorvante para a liberdade o outro. Todo auxílio, portanto, para ser de fato tal, precisa
trazer em si mesmo este traço de suspensão, quer dizer, a discrição, a reserva, o resguardo
do silêncio, o despojamento e o recato da ajuda que se recolhe, que dá escondendo a mão.
A nosso ver estamos aqui diante de uma expressão pedagógica bastante singular. Há
um tipo de relação pedagógica porque uma das partes é conduzida, auxiliada, ajudada pela
outra. Mas trata-se ao mesmo tempo de uma relação insólita porque sua essência não é nada
de positivo, não é a mera transmissão de um saber, não é a comunicação de uma experiência,
ou coisas afins. Antes sua essência está no traço de suspensão, na introdução do travessão.
Todo o esforço deverá então se concentrar na arte de criar um “espaço” ou um “silêncio”
que permita que o ajudado mantenha sua autonomia, sua independência e sua liberdade.
Trata-se, por isso, de uma pedagogia do despojamento e da auto-aniquilação, pois nela o
mestre, o auxiliador, o benfeitor só se realiza quando consegue transformar-se em um
travessão, isto é, quando está totalmente oculto e quando sua ajuda está absolutamente
resguardada no segredo do silêncio. Trata-se, portanto, de uma pedagogia do travessão.
Para Kierkegaard aquele que primeiro compreendeu e aplicou esta “pedagogia” foi
Sócrates, a quem o autor dinamarquês costumava chamar de sábio simples da antiguidade.
Ora, Sócrates não era um pedagogo segundo a acepção comum da palavra. Ele não conduzia

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 197-210.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
202

A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar

o seu interlocutor pela mão e, por isso mesmo, não conduzia “discípulos”, já que um
discípulo é justamente aquele que é conduzido pela mão. Sócrates não era um mestre
pedagogo porque sua arte era justamente aquela de “tirar a mão”, de ocultá-la, isto é, de fazer
com que a mão conduza sem, contudo, propriamente conduzir. Nisso consistia a sua afamada
arte maiêutica, em auxiliar o outro em sua própria liberdade, em ajudá-lo a ser livre e,
portanto, em “tirar a mão” que conduz ou em conduzir “tirando a mão”. O vazio daquilo
que é retirado é propriamente o intervalo do travessão. Assim, a atividade de Sócrates,
quando realizada plenamente, implicava na exuberância da autonomia do “discípulo” e no
esvaziamento do “mestre”. Com outras palavras, a arte de Sócrates consistia na suspensão
da distinção “Mestre e Discípulo” em função da liberdade do “discípulo”. Aqui o traço de
suspensão é finalmente a marca da suspensão da distinção: já não há mais mestre nem
discípulo porque a plena realização da tarefa socrática se dá quando finalmente o discípulo
tornou-se mestre de si mesmo e, portanto, quando o “mestre” retirou-se da relação. Trata-se, como
se pode notar, de um esvaziamento da função positiva e da contribuição direta do mestre.
Daí a célebre esterilidade de Sócrates imortalizada por Platão no Teeteto (150a-c): “a
divindade me incita a partejar os outros, porém me impede de conceber.” (PLATÃO, 2001,
p. 47)2. Porque para ser capaz de auxiliar o outro a dar à luz verdadeiramente, o auxiliador
tem de ser incapaz de procriar – e neste sentido particular a esterilidade é uma bênção. Pois
“procriar” ali significa perturbar a liberdade do outro com a posição de minha própria
criação, isto é, auxiliá-lo direta e positivamente, deixando impudicamente visível a ajuda,
fazendo ver que aquela outra pessoa não foi capaz de se manter por si mesma, mas precisou
de um mestre para conduzi-la pela mão. Isto é obviamente um tipo de estorvo à liberdade
do outro, um obstáculo à sua autonomia e independência. Sócrates, no entanto, “havia
compreendido em profundidade que o máximo que um ser humano pode fazer por um outro
é torná-lo livre, ajudá-lo a manter-se por si mesmo” (KIERKEGAARD, 2005, p. 311). Esta
consciência profunda implicava na firme convicção de que este auxílio só é possível caso o
ajudante seja capaz de se fazer invisível, ou seja, de aniquilar-se a si mesmo.
Recorramos a uma imagem singela. Quando um pai quer ensinar seu filho a
equilibrar-se sozinho na bicicleta, será tanto mais bem sucedido quanto mais agir

2 Em Migalhas Filosóficas, Kierkegaard, sob a pena de Johannes Climacus, cita esta passagem do Teeteto
completando que “de homem a homem a ajuda do parto (maieuesthai) é a relação suprema; dar à luz é algo que
só cabe ao deus” (KIERKEGAARD, 2008, p. 29).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 197-210.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
203

A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar

socraticamente. Como o faz? Ele auxilia o filho, mas seu auxílio é cada vez mais invisível, ao
ponto de apenas segurar a sela da bicicleta sutil e imperceptivelmente, de modo que o filho,
por assim dizer, já não sente nem vê o auxílio da mão do pai. Neste ponto, o ato de “segurar”
quase se confunde com o ato “soltar”, e de fato no instante em que a mão do pai está
completamente escondida, quando seu auxílio já não pode ser percebido – o soltar é
inevitável e espontâneo e a liberdade airada do filho é completa porque pedala sozinho. Ora,
a arte do pai não está em segurar nem em soltar a sela, mas em encontrar o instante em que
segurar e soltar se confundem (o travessão!), de sorte que seu segurar é ao mesmo tempo um
soltar. Igualmente aquele que quer auxiliar outra pessoa não deverá nem fazê-lo diretamente,
nem não fazê-lo, mas encontrar o instante raro em que seu auxílio se confunde com um não-
fazer; em que sua ajuda se confunde com desajuda. Esta é a arte de Sócrates, uma pedagogia
de parteira porque não puxa a “criança” nem a “abandona”, apenas a ampara com as mãos
numa sutil assistência que dá à parturiente a máxima liberdade de parir por si mesma,
esquecida da mão que acode porquanto o acudir desta mão é, por um instante – um
desacudir. Aqui está mais uma vez o traço de suspensão! A ajuda socrática, como arte de
parteira, é a presença de uma ausência, o cuidado de um descuido, numa palavra, um
travessão, um recato ou um resguardo. Se depois de dar à luz a mulher vive o período de
resguardo, na relação socrática é ele mesmo, o parteiro, que fica de resguardo. O que ele
resguarda? Sua própria intromissão, sua presença indiscreta, para que assim a pessoa auxiliada
fique verdadeiramente resguardada.
É evidente que isto implica numa capacidade de ocultamento do “ajudante”, quer
dizer: “o ajudante deve ser capaz de se fazer invisível, magnanimamente querer aniquilar-se
a si mesmo” (KIERKEGAARD, 2005, p. 311). Esta invisibilidade ou, mais ainda, esta auto-
aniquilação é, curiosamente, o máximo que se pode fazer por outro ser humano e, portanto,
o ponto extremo, a meta de toda relação que supõe ajuda ou auxílio. De sorte que todo e
qualquer mestre alcança o máximo de sua meta não na transmissão positiva de um saber, de
um movimento, de um conhecimento, de uma doutrina, etc., mas na auto-aniquilação de sua
qualidade de mestre. Quer dizer que a relação pedagógica verdadeiramente benéfica e
plenamente realizada deve culminar em sua própria abolição. A plenitude do vínculo
“Mestre-Discípulo” só atinge sua meta suprema na anulação desta distinção em função da
independência das partes. Ser o mestre de alguém, positivamente, será sempre algo inferior
a sê-lo no ato de não sê-lo. Esta pedagogia da auto-aniquilação é, bem entendido, um tipo de

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 197-210.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
204

A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar

“contra-pedagogia” ou uma pedagogia invertida, posta às avessas. Não se trata de aperfeiçoar


a relação entre mestre e discípulo, não está em questão a priorização de uma ou de outra
parte da relação, não se dá uma ênfase na figura do discípulo em detrimento da do mestre
nem na do mestre em detrimento da do discípulo, nem tampouco à relação harmoniosa entre
ambos. O que está em questão é a possibilidade de consumação do ato pedagógico, ou seja,
a possibilidade de anulação das figuras do mestre e do discípulo, o que é o fim da pedagogia,
isto é, seu fito, seu telos, mas ao mesmo tempo sua abolição. Neste sentido, aquilo que o
ajudante, o auxiliador ou o “mestre” têm a dar torna-se como que propriedade de quem o
recebeu. Tanto que é como se nada tivesse recebido, pois aquele que doou tornou-se invisível
no próprio ato de doar, de maneira que o que poderá doar de mais precioso não é um
conhecimento, um conselho, uma sabedoria, ou coisas afins, mas a sua própria invisibilidade
e aniquilação. Com outras palavras, o máximo que um homem pode dar a outro numa relação
de auxílio ou, se quisermos, numa relação “pedagógica”, é sua invisibilidade – um travessão.
É por isto que Kierkegaard chama Sócrates de “nobre brincalhão” [ædle Skalkagtige]
(KIERKEGAARD, 2005, p. 311). A palavra Skalkagtige diz algo como travesso, chistoso,
espirituoso ou, por que não dizer, malandro, maroto. Pois Sócrates de fato precisava
conservar certo grau de chiste, de brincadeira, de jogo, numa palavra, de ludicidade. Com
efeito, a tarefa de auxiliar o outro fazendo-se a si mesmo invisível guarda muito do jogo, da
estratégia, da brincadeira de esconder. Todo o esforço precisa concentrar-se na alusão e não
na expressão direta. Ajudar, instruir, ensinar, auxiliar diretamente é sempre muito arriscado,
porque a forma direta descuida justamente daquele traço de suspensão atrás do qual se
esconde o verdadeiro benfeitor. Não se trata de comunicar nada diretamente, de indicar e de
apontar o caminho. Antes a tarefa é sempre a de aludir. Aludir (ad, ludo3) é também brincar,
jogar, de modo que Sócrates é um “nobre brincalhão” porque todo o seu esforço está dirigido
para a alusão, para a sugestão indireta. Deve-se ter uma mente de enxadrista e uma astúcia de
ilusionista. Assim pode-se começar a brincadeira. A alusão, em seu caráter lúdico, é sempre
indireta e matreira: quando diz algo sério, o faz sorrindo; quando brinca, o faz com ar de
seriedade; quando exprime algo, silencia sobre o principal; quando compreende, age como
se não compreendesse, e quando não sabe age como se soubesse. Por isso aludir é, em certo
sentido, revelar encobrindo, dizer não dizendo, ajudar não ajudando e assim por diante. Sua
essência se mantém no segredado, no oculto, no não-dito. Este “oculto” é o recolhimento

3 Cf. Dicionário Latim-Português, p. 51 (vide referências bibliográficas).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 197-210.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
205

A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar

ou o recato daquele que auxilia. O que ele mais quer é manter sua ajuda em segredo para
então poder ver a exuberância graciosa da liberdade do outro. Por isso ele não pode ser
direto, não pode interferir de maneira indecorosa ou indiscreta, berrante ou exuberante
demais. Todo o seu interesse é pelo brilho da chama do outro, e não pela sua própria chama.
Quer dizer que aquele benfeitor e auxiliador compreendeu profundamente que o melhor do
outro está nele mesmo, na graciosidade de sua liberdade, no brilho único, sem par, de seu
próprio lume. Caso lance seu brilho sobre o outro de maneira indiscreta, ofusca a luz do
outro! Sua luz deve ser então uma presença penumbral, uma luz imiscuída na sombra,
indireta, algo difusa e ao mesmo tempo diáfana. Não é a luz de um canhão ou de um refletor,
mas a luz de uma vela. Ali, no interior da chama tremulante, está escondida a sombra recatada
e pudica. Por isso o verdadeiro auxiliador e benfeitor está sempre velando pela pessoa
auxiliada, cuidando, vigiando para que sua presença não venha a interferir na graça singular
do outro. A alusão é esta luz penumbral e indireta. Nunca incide na “coisa” diretamente, mas
sempre de modo oblíquo e discreto. Só assim a ajuda é de graça e pela graça. É de graça porque
aquele auxiliador não procura o seu próprio interesse, não quer ser reconhecido, não quer
receber qualquer vantagem ou retribuição. É pela graça porque o que se visa aí é justamente
a graça do outro. O que isso quer dizer? Que o auxiliador e benfeitor quer apenas que o outro
encontre sua própria graça se ser, sua própria graciosidade. Ora, a graciosidade é a qualidade
daquele que é livre. Dizemos que o pássaro é gracioso porque ele mergulha no ar como se
estivesse absolutamente solto. Sua graciosidade está no total desembaraço, na airosidade, na
leveza de seu ser. A única coisa de que o pássaro necessita é de um amplo espaço aberto, de
um vasto horizonte. Aí pode tricotar suas acrobacias e fazer escarcéu no ar, desprendido e
ágil. Não precisa de uma pista, nem dos limites de um viveiro, mas apenas desse amplo espaço
aberto. Assim torna-se todo ele gracioso porque nada lhe controla e ele tampouco controla
nada. O pássaro se entrega ao vento e dependura-se no ar, mas o vento não retém nem
controla o pássaro, assim como este não retém nem controla aquele. A graciosidade é esta
entrega ou este estar à mercê. Por isso voo do pássaro preso na gaiola é tão desairoso,
desgracioso ou desgraçado. No vasto horizonte aberto o ser do pássaro é do tamanho
daquela amplidão, quer dizer, sem-tamanho. Nos limites opressivos da gaiola angulosa, o ser
do pássaro torna-se do tamanho da gaiola, rígido como suas hastes e sempre mais
constrangido. Não há graça no interior das gaiolas! E assim também um “benfeitor” que não
torna o beneficiário mais livre é como um passarinheiro que prende um pássaro numa gaiola

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 197-210.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
206

A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar

– é de fato um malfeitor. Pois o verdadeiro benfeitor só se interessa por criar o amplo espaço
aberto onde o ser do outro pode se revelar na sua mais pura graciosidade. Este espaço de
abertura é, como dizíamos junto com Kierkegaard, aquele travessão, o traço de suspensão que
recolhe o ser do ajudante em função da liberação do ser do ajudado.
Quer dizer que o que está em questão nesta pedagogia do travessão é, antes de tudo,
a graça. Por isso não apenas se ensina, se corrige, se admoesta, mas apenas se alude. Toda
alusão pretende ser, em certo sentido, engraçada, isto é, dotada de graça. Esta graça é, por
um lado, a gratuidade daquele que ajuda – porque ajuda de graça – e, por outro lado, a própria
graça da liberdade do outro. Uma relação demasiado direta é, neste sentido, completamente
sem graça. Aquele que ajuda assim o faz visando seus próprios interesses e aquele que é
ajudado não é a rigor ajudado porque perdeu a sua graça na medida em que se tornou um
pouco mais dependente do outro, isto é, menos livre. Por isso o esforço de alusão, que quer
conservar a graça, se assemelha tanto à ilusão. Illudo é também brincar com, divertir-se, troçar,
fazer galhofa de alguém4. Iludir é parte da tarefa de composição do travessão pois toda ilusão
se caracteriza por ser um incógnito, isto é, por não ser reconhecida como tal. Mas é
justamente isto que o benfeitor quer, não ser reconhecido como tal, de modo que iludir torna-
se parte essencial do seu esforço. A este respeito Kierkegaard menciona o quanto teria
custado a Sócrates a tarefa de “lograr o outro para dentro da verdade” (KIERKEGAARD,
2005, p. 311), quer dizer, de iludi-lo para fora da ilusão5. E o maior custo desta tarefa não é
senão a já referida auto-aniquilação. É o “esconder a mão” de modo que a pessoa auxiliada
não descubra o auxílio. Ou seja, o maior custo é manter a ilusão oculta, para que a pessoa
beneficiada não descubra afinal que foi iludida para fora da ilusão e venha a estragar o truque,
ou seja, venha a descobrir a “carta na manga” do ilusionista. Precisamente por isso aquele
que alude e ilude, se elude. Ele evita astuciosamente ser flagrado em franco auxílio. Ele se elude
de toda apreensão objetiva e direta. Do contrário o auxiliado esquece-se de si mesmo e fixa
sua atenção no auxiliador, ou seja, permanece tributário do outro, numa relação de dívida
que anula toda a graça. Por isso o verdadeiro benfeitor é mestre na arte de se eludir. Assim
fizera Sócrates, tanto que Kierkegaard n’O Conceito de Ironia destaca o quão difícil seria fixar a
imagem daquele “nobre brincalhão”: “sim, até parece impossível, ou então pelo menos tão

4Cf. Dicionário Latim-Português, p. 332 (vide referências bibliográficas).


5No Ponto de Vista Explicativo de Minha Obra de Escritor Kierkegaard escreve: “Pode enganar-se um homem em
vista do verdadeiro e, parar lembrar o velho Sócrates, enganá-lo para o levar ao verdadeiro. É mesmo a única
maneira quando ele é vítima de ilusão” (KIERKEGAARD, 2002, p. 53-54).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 197-210.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
207

A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar

trabalhoso como pintar um duende com o barrete que o torna invisível” (KIERKEGAARD,
2010, p. 28). Pois Sócrates de fato apenas aludia e, quando aludia, ao mesmo tempo iludia e
se eludia:

Assim trabalhava ele; e quando o trabalho estava concluído, ele dizia bem
baixinho para si mesmo: agora esta pessoa está por si. Mas eis que
chegamos ao “traço de suspensão”; e com o traço de suspensão um sorriso
se desenha nos lábios do nobre (e contudo tão brincalhão), e ele diz:
“Agora esta pessoa é independente – graças à minha ajuda”, ele reserva
para si o segredo desse sorriso indescritível. Realmente, não há vestígio de
maldade neste sorriso, ele está consciente de que o que fez foi para o bem,
está consciente de que verdadeiramente é um benefício e verdadeiramente
é a única maneira pela qual se pode fazê-lo: mas o sorriso ainda é a
autoconsciência da engenhosidade (KIERKEGAARD, 2005, p. 312).

Este sorriso segredado é ainda o resquício sutil, a indicação exígua de que no fundo
da relação ainda se oculta uma autossatisfação, um resíduo do “eu” que diz “meu”. Ainda
que tenha feito tudo pela outra pessoa, dando a impressão de nada ter feito, ainda assim se
esconde no mais íntimo a satisfação pela arte e pelo engenho. Sócrates ainda tem este sorriso
para chamar de “seu”, ainda guarda para si a autoconsciência de seu valor, embora a todo
instante o travessão suspenda esse senso de importância. Significa que na relação socrática
ainda há um uma recompensa qualquer. Não se alcança a perfeita gratuidade porque no último
instante ainda resta “a recompensa de uma orgulhosa autoconsciência” (KIERKEGAARD,
2005, p. 313). Sócrates ainda conserva uma auto-satisfação que se esconde por detrás do
travessão. Ele ainda guarda em seu interior aquele “graças a minha ajuda” que de alguma
maneira retém um pouquinho da graça do outro. Uma parte da graça continua sendo dele
[“graças a minha ajuda”], de modo que a graciosidade não é perfeita. Ainda que em segredo,
aquela pessoa auxiliada guarda uma “dívida” para com Sócrates – embora seja justamente
esta dívida aquilo que permanece oculto.
Haverá então uma relação de ajuda e de socorro que posso atingir a perfeição da
absoluta gratuidade? Poderá um homem ajudar um outro de tal maneira que não reste
qualquer traço de interesse próprio e de recompensa, nem mesmo a recompensa daquela
orgulhosa autoconsciência? Para tanto a relação precisa ir além do âmbito socrático. Segundo
Kierkegaard, apenas a pessoa amorosa, aquela que ama de maneira abnegada, realiza o auxílio
ou o benefício perfeito. Escreve o autor:

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 197-210.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
208

A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar

[...] por mais nobre, magnânimo e desinteressado que fosse aquele


brincalhão, ele no entanto não amava, no sentido de cuidado, aquele que
ele socorria. Ora, enquanto aquele brincalhão se faz infinitamente leve
graças ao ardil do traço de suspensão, e a arte consiste justamente em ter
conseguido fazer tudo pela outra pessoa e dar a impressão de nada ter
feito: assim, para o amoroso, o traço de suspensão, embora represente no
sentido do pensamento uma leveza infinita, num outro sentido (contudo,
note-se, isso não deve ser notado) representa um tipo de respiração
pesada, quase como um suspiro profundo. Neste traço de suspensão se
esconde, com efeito, a insônia da angústia, a vigília noturna do trabalho,
um esforço quase desesperado (KIERKEGAARD, 2005, p. 313).

O amoroso carrega então uma preocupação estranha à relação socrática. No interior


do amor ele se compromete de tal maneira com a pessoa amada que descobre a
responsabilidade que seu auxílio ou seu socorro supõe. Esta responsabilidade que torna a
respiração do amoroso pesada provém da consciência profunda de que “todo homem
essencialmente se mantém por si só – graças à ajuda de Deus” (KIERKEGAARD, 2005, p.
313). Quer dizer o amoroso é justamente aquele que compreendeu que o maior benefício
que um homem pode realmente realizar por outro é ajudá-lo a se manter livre na dependência
de Deus. Trata-se, como se pode notar, de uma livre dependência. Isto se diz também graça. De
sorte que o amoroso compreendeu que o máximo que pode fazer por outra pessoa é ajudá-
la à viver segundo a graça, segundo a profunda dependência que ela tem de Deus e que, num
sentido superior, é a verdadeira independência. Por isso o amoroso é o mais abnegado de
todos os benfeitores. Nada o preocupa mais do que a pureza da relação do outro para com
Deus. Seu maior desejo é ser sempre mais nada, é sumir e aniquilar-se para que não sobre
qualquer risco de intromissão e de interferência na relação do outro para com Deus. Por isso
Kierkegaard escreve a respeito do amoroso:

Ele trabalha sem recompensa; pois ele se reduz a nada, e no próprio


instante em que poderia ser o caso de ele, contudo, guardar a recompensa
de uma orgulhosa autoconsciência, Deus intervém, e ele é novamente
aniquilado, o que porém é para ele sua felicidade (KIERKEGAARD,
2005, p. 313).

Só assim a relação é absolutamente gratuita. Aquele que então auxilia é finalmente


reduzido a nada em favor da relação do auxiliado para com Deus. Quer dizer que o amor
descortinou a graça! Em sua profunda consciência, o amor compreendeu que todo homem
só se mantém e se preserva na força do Amor que lhe dota de vida. Este Amor é absoluta

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 197-210.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
209

A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar

graciosidade. Ele não é tributário de ninguém, é antes pura graça e dom de vida. Por isso mesmo
o amoroso tornou-se consciente de que “nenhum ser humano tem condições de estabelecer
a fundação do amor numa outra pessoa” (KIERKEGAARD, 2005, p. 251). Significa que
por mais que eu ame outra pessoa, não posso criar o amor nela, não posso lhe dar o amor –
apenas o Amor poderá fazê-lo. Assim meu auxílio é, em certo sentido, um nada porque a
única coisa que realmente importa – ajudar a outra pessoa a amar e a se relacionar
amorosamente com o Amor – não depende em nada de mim mesmo, mas apenas de Deus
[do Amor]. Por isso o amoroso é todo auto-sacrifício e abnegação. Ele nada impõe ao outro
nem tampouco se interpõe entre o outro e o Amor. Só quer ser um auxiliador, por assim
dizer, insignificante. Assim como aquele “nobre brincalhão” o amoroso também apenas
alude, ilude e se elude. Mas o faz na mais profunda tensão interior, para que ao final não reste
nem sombra se auto-satisfação. Com efeito, a consciência da absoluta graciosidade do amor é
o que motiva o amoroso. Não há de que se orgulhar diante do outro porque tudo o que de
fato importa não provém de si, mas do Amor. Todo o seu trabalho é então o de auxiliar
erigindo um imenso travessão que o mantém completamente recolhido e recatado. Só assim,
resguardado por este longo traço de suspensão, o amoroso poderá auxiliar e de alguma
maneira beneficiar a pessoa amada. Mas seu auxílio não é senão a própria inclusão
preocupada do travessão. Diz Kierkegaard:

Que maravilhoso monumento o amoroso adquire em gratidão por todo


seu trabalho! Ele pode de certa maneira depositar toda sua vida em um
travessão. Ele pode dizer: trabalhei como ninguém, da manhã a noite; mas
o que erigi – um travessão (pois se se pudesse ver diretamente o que ele
realizou, é porque ele teria trabalhado com menos amor)! Ninguém sofreu
tão pesado quanto eu, tão profundamente como só o amor pode sofrer;
mas o que eu fiz de útil? Um travessão! Pois se ele não tivesse sido o
amoroso, então ele teria, de maneira menos penetrante, proclamado o
verdadeiro de maneira direta, e então ele teria conseguido em seguida
adeptos, que se teriam apropriado dessa verdade – e que o teriam saudado
como mestre (KIERKEGAARD, 2005, p. 314).

Mas o verdadeiro amoroso sabe que só há um mestre – o Amor – e que toda


interposição do homem neste sentido, quando não está resguardada pelo traço de suspensão,
torna-se um empecilho e um estorvo à liberdade graciosa do outro. Nenhum passarinheiro
pode tornar-se mestre do pássaro. O mestre do pássaro é o amplo espaço aberto e o vasto
horizonte; no máximo, é o vento! Assim também a verdadeira relação pedagógica de homem

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 197-210.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
210

A pedagogia do travessão
GERMANO, Ramon Bolívar

para homem só é perfeita quando se dá na força do amor que erige o travessão. Este amor
que se recolhe deixa o espaço aberto para a liberdade do amor do outro, sem qualquer
interferência indiscreta do “ego” que busca seu próprio interesse. O amoroso se retira para
o interior do recolhimento do travessão, e o faz por amor ao outro ser humano que precisa
de socorro. Assim o outro pode descobrir o Amor sem qualquer interferência alheia, sem
tonar-se tributário do amor do seu benfeitor nem devedor de qualquer ajudante que não seja
o próprio Amor auxiliador. Assim a pedagogia do travessão só alcança a máxima expressão de
sua perfeição em se tornando uma pedagogia do amor. Como “dom de si em sacrifício”
(KIERKEGAARD, 2005, p. 298) o amor é a plena realização do mais belo sonho da pedagogia. Na
medida em que a vida do amoroso é “inteiramente esbanjada sobre a existência, a existência
dos outros” (KIERKEGAARD, 2005, p.315), ele realizou o ato pedagógico em sua
perfeição. Pois só o amor, com o auxílio da eternidade, pode de fato cumprir até o fim a
tarefa de orientar, de auxiliar ou de socorrer outra pessoa sem jamais errar – ainda que erre
sempre. Tanto que o amor modernizou a afirmação de Santo Agostinho: ama et fac quod vis
[ama e fazes o que quiseres]. Agora já podemos dizer: ama e educa como quiseres – porque o
amor é a perfeição da pedagogia.

REFERÊNCIAS

DICIONÁRIO LATIM-PORTUGUÊS. Portugal: Porto Editora, 2001.

KIERKEGAARD, Søren. O conceito de ironia: constantemente referido a Sócrates.


Apresentação e Tradução de Álvaro Luiz Montenegro Valls. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2010.

_______. Migalhas Filosóficas ou um bocadinho da filosofia de Johannes Clímacus.


Tradução de Álvaro Luiz Montenegro Valls e Ernani Reichmann. Petrópolis: Editora Vozes,
2008.

_______. As obras do amor: algumas considerações cristãs em forma de discursos.


Tradutor Álvaro Luiz Montenegro Valls. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2005.

_______. Ponto de vista explicativo da minha obra de escritor: uma comunicação direta,
relatório à História. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, 2002.

PLATÃO. Teeteto; Crátilo. Tradução de Carlos Alberto Nunes, Belém–PA: Editora


Universitária UFPA, 2001.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 197-210.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
ISSN 1984 - 5561

EM TORNO A SIMEÃO ESTILITA: DA POÉTICA


ASCÉTICA À POÉTICA DA FÉ1

[AROUND SIMEON STYLITE: FROM ASCETIC POETICS TO THE


POETICS OF FAITH]

Eduardo Campos

Doutor em Filosofia pela UFRJ, Pesquisador colaborador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e
Subjetividade (IPUB/UFRJ), participa também como pesquisador do Grupo de Pesquisa Phainomena (Laboratório
Ousia), e do grupo de pesquisa Fundamentos fenomenológicos-existenciais de diferentes práticas em Psicologia (UERJ), é
membro-relator do Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil (IPUB/UFRJ), e
Membro da Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard (SOBRESKI).
(E-mail: saltar@uol.com.br)

Para Marcos Érico, o frade menor da filosofia

Recebido em: 19 de março de 2018. Aprovado em: 28/05/2018

1Este texto foi originalmente apresentado no I Encontro Internacional de Kierkegaard a


partir do Nordeste na UESB em 2016. Porém, o texto permaneceu até então não
publicado. A dedicatória foi originariamente proferida no evento.

Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 211-222. ISSN 1984 – 5561


Dossiê Kierkegaard e a Educação
212

Em torno a Simeão Estilita: da poética ascética à poética da fé


CAMPOS, E. S.

Resumo: No percurso da construção da obra Temor e tremor de Kierkegaard,


ocorre uma mudança de título e autor pseudonímico. Inicialmente, o livro
seria chamado de Movimentos e posições, e o autor, Simeão Estilita, um ermitão
do século V que passou parte de sua vida vivendo sobre um pilar. Essa
mudança não parece ser despropositada, e se acompanharmos a dinâmica
dessa mudança de título e autoria revelar-se-á um caminho novo para a
interpretação de Temor e tremor, o que desbordará a fé como mera ascese e
trará consigo o sentido mais radical da solidão. A poética exercida por
Johannes de silentio é a poética daquele que educa ao ensinar a ver a vida
através da recordação da solidão do “cavaleiro da fé”.

Palavras-chave: Fé. Solidão. Desprendimento.

Abstract: In the course of the construction of Kierkegaard's Fear and


trembling, a change of title and pseudonym occurs. Initially, the book would
be called Movements and Positions, and the author, Simeon Stylite, a fifth-
century hermit who spent part of his life living on a pillar. This change
doesn’t seem to be unreasonable, and if we follow the dynamics of this
change of title and authorship, it will reveal a new path to the interpretation
of Fear and trembling, which will overflow faith as mere asceticism and bring
with it the most radical meaning of loneliness. The poetics exercised by
Johannes de silentio is the poetics of the one who educates in teaching to see
the life through the memory of the loneliness of the "knight of the faith".

Keywords: Faith. Loneliness. Detachment.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 211-222.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
213

Em torno a Simeão Estilita: da poética ascética à poética da fé


CAMPOS, E. S.

A publicação de Temor e tremor em 1843, sob a verve de Johannes de silentio, deu-se


envolta em hesitação. O título e o pseudônimo pensados inicialmente por Kierkegaard não
seriam os já conhecidos, mas: Movimentos e Posições e, seu autor, Simeão Estilita, o Velho, um
monge sírio do século V que viveu 37 anos em cima de uma plataforma erguida sobre um
pilar, realizando exercícios em busca de equilíbrio “espiritual e físico”2. Suspeita-se que esse
eremita, também conhecido como “o Velho”, seja aquele “velho” sortudo3 que aparece no
prólogo de Zaratustra, tão orgulhoso por odiar os homens e amar somente a Deus.
Entretanto, não há prova cabal na historiografia de que se trataria da mesma pessoa. Mas,
por ora, o que nos importa é que a mudança de plano operada por Kierkegaard não parece
fortuita, e, por julgarmos significativa, não passará neste trabalho desapercebida. Para tanto,
não nos debruçaremos sobre os fatos; o que significa que o especialista em Kierkegaard não
nos ajudaria a ver o texto. Pode até o bom senso, a acribia científica de um historiador da
filosofia dar o remate ao dizer que se trata apenas de uma mudança objetiva a fim de atender
aos apelos do interesse comercial de seu editor. Contudo, o pressuposto que susterá a nossa
hipótese não será um dado factual, mas, talvez, algo até delirante. Tal delírio não é nenhuma
extravagância do pensamento, mas somente a verve de uma leitura que não se inclina ao
cânone dos elementos objetivos que perpassam a obra, ditando os rumos da leitura.
Se bem utilizados, o título e o pseudônimo, podem dar o tom de toda obra de um
escritor, porque funcionam como um capítulo à parte e não de somenos para interpretação.
A despeito de não sabermos quais seriam objetivamente as reais motivações de Kierkegaard
a respeito da tal mudança, vale, contudo, o tentame da imaginação em captar aquilo que está
apenas insinuado nessa mudança, para, talvez, sermos surpreendidos por uma nova chave
interpretativa. Passemos, então, à análise, não para nos entregarmos simplesmente a uma
especulação feérica, mas para recolhermos dela uma via fecunda para releitura do texto, tendo
como contraponto a noção de desprendimento em Mestre Eckhart, a qual será comentada
brevemente mais adiante.
Conforme indicado no título pensado inicialmente, existe em Temor e tremor, de fato,
movimentos e posições. Há um movimento em Abraão, algo que nele se move, não apenas da ordem
da exterioridade, como a subida performática ao Moriá, durante três dias e três noites, mas um

2 Cf. Citação de nota de rodapé encontrada na recente tradução portuguesa de Temor e tremor, realizada por
Elisabete M. de Sousa (KIERKEGAARD, 2009b, p. 46).
3 "Deixai-me partir para que nada vos tire!" (NIETZSCHE, 2011, p. 13).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 211-222.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
214

Em torno a Simeão Estilita: da poética ascética à poética da fé


CAMPOS, E. S.

movimento de outra natureza que, em verdade, co-move-o na interioridade. Este mover é


decisivo, e põe o pai da fé posicionado, situado na existência, atento ao apelo da tarefa de existir.
Posição não é apenas situação geográfica, topografia, mas ser em uma situação crítica,
colocando-se todo em uma decisão: pôr-se aí, existindo segundo uma tarefa, conforme o vir a
ser que mantém o repouso (posição) a cada transmutação4 (movimento): em cada movimento
irrompe a tenacidade de uma posição. Cada posição é um momento do movimento, a
concentração do todo na parte.
Movimento e posição não se excluem e nem se dão alternadamente, mas se mantém sob
o paradoxo de uma tensão vital. Talvez, aqui esteja insinuada a guinada para a mudança de
título efetuada por Kierkegaard. Podemos entrevê-la através da seguinte questão: a ermitania
do monge Simeão Estilita, e sua experiência de ascese sobre o pilar durante 37 anos,
coadunar-se-ia com a vitalidade da fé que punge a existência de Abraão? A excentricidade do
monge estilita e seu exercício de ascese não devem ser alvo de uma depreciação leviana –
mas, por outro lado, não estaria aquém da estatura de Abraão? Apesar do esforço hercúleo de
sua permanência sobre um pilar (durante 37 anos), erigido sob a vontade de livrar-se do
mundo, viveu, no entanto, um tempo menor em relação ao tempo do instante decisivo de
Abraão sobre o Moriá, porque a vontade do isolamento é uma sombra ineludível que nos
acossa à medida que dela nos esforçamos para escapar. Da vontade não se escapa pela vontade.
O estilita está em uma posição, repousando sobre um pilar. Ele busca efetuar, pelo
afastamento do mundo, uma elevação espiritual conforme a pertinácia de um exercício
ascético. Deseja pro-mover uma liberação, o movimento do espírito, que costuma ser opresso
pelo corpo. Para tanto, busca um movimento espiritual que ocorra mediante a aquietação de
um corpo posicionado sobre o pilar, inerte, calado. Em suma: quis chegar ao topo do Moriá
sem escalá-lo. Ele conhece o caminho, conhece a meta, falta apenas caminhar – na verdade, sem
o caminhar ele sequer conhece o que presume conhecer: caminho e meta. Por outro lado, em
Abraão vemos outra experiência: há um chamado que o co-move, imprimindo
imediatamente nele a tomada de uma decisão, uma posição atrelada inextricavelmente ao
movimento. No trajeto do caminho, a todo instante, gira a roda da posição e do movimento
sulcando na existência a experiência inesperada das três dimensões indissociáveis: caminhar,
caminho e meta, que iniciam com o “Eis-me aqui” de Abraão: a prontidão do ser-aí. O “Eis-
me aqui” é o ser-aí dito em primeira pessoa. Co-movendo-se no chamado, ele mostra que

4 “Transmudando repousa – o fogo etéreo no corpo humano” (Plotino, Enéadas, IV, 8, 1.).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 211-222.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
215

Em torno a Simeão Estilita: da poética ascética à poética da fé


CAMPOS, E. S.

tem espírito suficiente para escutar e obedecer a tarefa de ser corpo existente, erguendo-se com
musculatura5 na existência. Essa musculatura se robustece desde de um dentro, que não se
configura como o apoio de um núcleo duro, como a espessura de nenhum conteúdo
objetivo/subjetivo, e, sim, o vazio, o nada de um despojamento frágil e acolhedor. O “Eis-me
aqui” de Abraão indica essa condição desprendida. Sobre esta condição, diz Mestre Eckhart:
“E agora pergunto pelo objeto do desprendimento puro. E respondo: o objeto do
desprendimento puro não é isto nem aquilo. Ele assenta num puro nada, e vou dizer-te por
quê. O desprendimento puro assenta naquilo que há de mais elevado” (ECKHART, 2006,
p. 155). A virtude mais elevada para Eckhart é a pureza desse livre nada, desprendido e
acolhedor. No acolhimento exercido por Abraão não há lugar para a exigência de qualquer
vontade, pois o exercício da vontade consiste precisamente em se agarrar à coisa e não estar
livre para poder desprender-se.
Na vontade há um querer que persegue uma meta pelo exercício de uma ação. Mas o
desprendimento não persegue nada, não quer nada. No entanto, alguém poderia refutar essa
máxima da disponibilidade dizendo que em Abraão haveria, sim, o exercício de uma vontade;
pois o sacrifício perseguido durante três dias e três noites não seria um empreendimento da
vontade? A resposta a esta refutação é simples: Abraão desempenha um movimento oposto
e à contragosto. Isaac já é a meta conquistada ou a promessa de Deus sobre a qual Abraão se
debruçara com gosto e de todo coração; e o sacrifício no Moriá seria a morte da meta atingida, por
conseguinte, a morte da vontade; seria um freio posto nos esforços que a vontade empreende
com vistas a um fim. No Moriá há uma parada abrupta da volição, a parada de um desejo
que não quer nem mesmo voltar para o início, i.e., ter por meta o começo, o lugar antes do
grito primal, como uma espécie de isolamento uterino que parece ser buscado
nostalgicamente pelo asceta. Se problematizarmos que ainda assim há uma "vontade"
presente no parar, querendo por termo à volição, esse querer é somente um recolher satisfeito
que acolhe o que se doa durante a travessia entre começo e fim.
Em A Repetição existe uma camada primária da interioridade que se espessa com viço, vindo
à superfície na forma de uma retomada dobrada do espírito. Mas somente depois que houve a

5A palavra “musculatura” tem aqui todo o sentido de uma existência que cresce, que ganha corpo, mostrando-
se plenamente a que veio na realização de uma possibilidade. Talvez tenha sido a evidência dessa pujança
existencial, que levou o pintor alemão Gerhard Wilhelm von Reutern a perfilar Abraão com um corpo
nitidamente robusto. Obviamente, a robustez desse corpo não denota exatamente hipertrofia muscular, mas
uma força existencial, uma saúde, a capacidade de viver pela fé em meio a fragilidade de um desamparo.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 211-222.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
216

Em torno a Simeão Estilita: da poética ascética à poética da fé


CAMPOS, E. S.

perda de tudo – tudo, inclusive de todos os filhos de Jó. Quando Constantius afirma que a
repetição de Jó é uma repetição no espírito – pois os filhos que Jó perdeu, ele realmente os
perdeu e não podem ser duplicados6 –, isto indica que a camada secundária da exterioridade
desfez-se ou perdeu-se como uma crisálida perde-se inteiramente em sua muda. Na
transfiguração dessa muda, assoma, vem à luz a manifestação da camada primária da
interioridade, espessando-se, tomando conta de toda face exterior: eis que tudo se fez novo –
repetição. Este ciclo é o próprio movimento da fé que a cada ciclo torna a vida mais grave, mais
nítida, mais simples.
Nesta mudança pressupomos que camada primária da interioridade da existência de Jó era
quase inexistente, extremamente delgada. Mas em Abraão, a camada primária da interioridade já
tem espessura desde o início, já tem dentro, já tem o desprendimento do nada, ou seja, já tem
vida interior, e, por isso, ele é “herói da fé”. Na caminhada em direção ao topo do Moriá segue
em crescente espessamento até ganhar nova transparência, em termos eckhartianos, até se
esvaziar completamente. O sacrifício de Isaac é o toque final que faria transparecer a camada
interior no exterior – quem vê uma vê a outra, quem vê a outra vê uma. O corte do sacrifício
do peito de Isaac seria apenas a confirmação daquilo que já estava firmado pela fé, que se
expôs completamente até atingir a transparência das camadas. Esta transparência indica que a
camada primária da interioridade se tornou toda ela superfície – expôs-se. Na repetição de Abraão,
essa camada da vida interior dá o tom de todo enredo de sua existência, desde o início até
culminar no pratear do punhal erguido sobre Isaac. Em A Repetição, Jó possui uma camada
externa, a exterioridade, em extrema espessura, e esta vai pouco a pouco, através do sofrimento,
sendo descascada, desprendida. Em Abraão a transparência entre as camadas (interna e externa)
expõe o nada do desprendimento, o nada constitutivo da fé.
Assim a única coisa que pode ser conseguinte à cena do sacrifício é a desistência de
Deus mediante as camadas costuradas pela transparência dos fios da fé. E este fiar transparente
quer dizer: uma vontade desprendida, a vontade que aprendeu corretamente a querer a
possibilidade. E esta correção conquistada pelo absurdo da fé torna a vontade à vontade, à mercê,
ao sabor da vida para acolhê-la como doação. A vontade da fé é a espontaneidade de um querer
que se dirige em retidão à doação de uma possibilidade.
Em Abraão não há qualquer “sombra” de vontade, ele é todo um abandono que se
consuma na execução de um dever absoluto. O estilita parece equivocar-se na compreensão do

6 Cf. KIERKEGAARD, 2009a, p. 132.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 211-222.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
217

Em torno a Simeão Estilita: da poética ascética à poética da fé


CAMPOS, E. S.

que seja “morrer para o mundo”. Ao compreender “o morrer para o mundo”7 como
“apartar-se do mundo” transformou seu desejo em dever, converteu a vontade em hábito,
em uma moral, cujo sacrifício pode ser admirado por todos. Usando as palavras de Johannes
de silentio, poderíamos dizer que ele seria no máximo um herói, um herói trágico8. Mas Abraão
é herói da fé, “o cavaleiro da fé”, cujo caráter é definido por uma dupla renúncia, ao desejo e
ao dever, em face da obediência a um deves absoluto, pois sem poder se apoiar no universal, como
faz o herói trágico, deve permanecer em si próprio, e “aí reside o terrível” (KIERKEGAARD,
2009b, p. 138) de uma singularidade ab-soluta, solta, livre, desprendida.
O movimento que Abraão realiza não é ascético, mas um deslocamento agudamente
existencial que o insere pela fé na dinâmica de vida agravando-se cada vez mais como vida.
Por outro lado, ele realiza, digamos, uma contenção ascética, uma privação típica da economia
de força que antecede todo grande ato existencial. Abraão faz ascese, jejua, silencia, priva-se
de falar, cala-se; e, quando ousa falar, limita-se a entregar-se aos cuidados da Providência,
cuidados que encontra na sorte de sua maior consorte, a fé – a força que irrompe em meio a
fragilidade do maior desamparo.
Seu ato não atrai multidões pela excentricidade de sua ação. Ninguém sabe, ninguém
tem notícia de qualquer coisa que empreenderá. Todo movimento dá-se como a tarefa
diuturna de um trabalhador que segue na jornada discreta de mais um dia de trabalho. Mas a
discrição ordinária do ato esconde na interioridade o extraordinário da fé que move o pai de
Isaac. Esse extraordinário é a paixão de poder ser na angústia de uma possibilidade. Por ser
experiência fontal, o extraordinário da fé surge, não como um dado, mas, como diz Beaufret,
comentando Kierkegaard, a promessa de uma possibilidade9 que sempre já se deu para o homem.
Abraão no Moriá é um discípulo da possibilidade10 “colocado no meio das charnecas da
Jutlândia” (KIERKEGAARD, 2013, p. 166). Isaac é esse dado na existência de Abraão, ou,
nas palavras de Haufniensis, a “coisa finita”. Ele diz: “A angústia é a possibilidade da
liberdade, só esta angústia é, pela fé, absolutamente formadora, na medida em que consome

7 Cf. "Prefácio" de Doença para morte (1979a)


8 Em Temor e tremor o que marca o caráter do herói trágico é a conciliação entre desejo e dever (relativo).
Johannes de silentio apresenta Agamenon e Ifigênia como exemplares que mostram a conversão do desejo em
um dever que exprime o universal.
9 Cf. BEAUFRET, 1976, p. 16.
10 “Toma o discípulo da possibilidade, coloca-o no meio das charnecas da Jutlândia, onde não ocorre nenhum

acontecimento, onde o maior de todos os eventos é o ruidoso levantar voo de um perdigão: ele vivenciará tudo
de modo mais perfeito, mais justo, mais profundo do que o que foi aplaudido no palco do teatro da história
universal, se este não foi formado pela possibilidade” (KIERKEGAARD, 2013, p. 166).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 211-222.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
218

Em torno a Simeão Estilita: da poética ascética à poética da fé


CAMPOS, E. S.

todas as coisas finitas, descobre todas as suas ilusões" (KIERKEGAARD, 2013, p. 162). A
angústia “consome todas as coisas finitas” assim como em Eckhart o desprendimento aniquila
no homem um “eu” cheio de toda “criatura” (ECKHART, 2006, p. 152). “Coisa finita” é
“criatura”, é dado. Isaac é para Abraão o que ainda lhe resta como “coisa finita”, “criatura”.
O alarido provocado pela excentricidade de Simeão Estilita é fruto de ascese; não
necessariamente de desprendimento. A notícia de seu feito "extraordinário" pode ter feito dele
um sábio, instaurador de um lugar de peregrinação, um ponto de exotismo turístico ou um
lugar onde se pode encontrar benesses espirituais. Mas a recusa do mundo acaba trazendo a
si, com máxima força, o próprio mundo do qual foge. Mas o desprendimento é a inocência de uma
ascese que se passa subitamente no silêncio da interioridade como despedida de si mesmo,
despedida de um interior duro, despedida que conduz o homem cada vez mais para o centro
da cidade ou para o bulício de qualquer lugar; porque livre do/no mundo pode então estar
nas esquinas do mundo para senti-lo sem ser por ele possuído.
O desprendimento do pai da fé tem a elegância de uma discrição: “sabe transformar em
andamento normal o salto; exprimir o impulso sublime num passo terreno; eis o único
prodígio de que só é capaz o cavaleiro da fé” (KIERKEGAARD, 1979b, p. 132). Seu
prodígio é poder, no lugar mais ordinário, estar sempre acompanhado da solidão de um
deserto – de um nada que o torna pródigo de toda possibilidade. No desprendimento, o que
nele se perde, o que nele é despedida, o que nele é abandono é a sobra essencial da abundância
fecunda e pródiga da fé. O sentido da prodigalidade da fé impede que seu exercício redunde
no lamento do “cavaleiro da resignação”, pois o perder é o movimento que alimenta a
experiência de existir alegremente na profusão inesgotável de uma penúria essencial. No
desprendimento, o perder – desprender – é a única coisa que, sem a mediação da vontade, o
corpo quer. Às voltas com o poder dessa querença, o “temor e tremor” de Abraão parece indicar
o estupor da vontade, da consciência, do "eu" mediante o chamado absurdo da fé que atinge
cabalmente a carne do corpo. Tal “carne” é a mera existência transformada em corpo existente,
atingido pela possibilidade da fé. Esse corpo é espírito, e, por isso, crê-se na “ressurreição do
corpo” quando se crê na repetição do espírito (KIERKEGAARD, 2009a, p. 132) após a travessia
do Moriá.
Simeão Estilita não tem a estatura de Abraão nem pode descrever como Johannes de
silentio o prodígio do pai da fé: porque, por um lado, não é herói, “a melhor essência” do poeta;
e por outro, não é poeta, “a melhor essência do herói” (KIERKEGAARD, 2009b, p. 65-66).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 211-222.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
219

Em torno a Simeão Estilita: da poética ascética à poética da fé


CAMPOS, E. S.

O poeta não pode realizar o que cumpriu o herói, mas pode, como “gênio da recordação”
(KIERKEGAARD, 2009b, p. 65), admirá-lo, lembrar-se dele e descrever a beleza da
natureza do seu feito. O poeta Johannes de silentio apossou-se de Kierkegaard no lugar de
Simeão Estilita, para assim poder escrever a façanha de Temor e tremor. Não podendo realizar
o que o herói da fé realizou, o poeta pôde ao menos falar como falaria se pudesse falar a
“melhor essência do herói”. Abraão é um Himalaia, e, por isso, não pode falar de sua própria
grandeza; mas dele pode falar o poeta, pois este traz em sua identidade de poeta a diferença do
herói da fé, a sua melhor essência. Movimentos e posições, poderíamos dizer, não são “exercícios
espirituais” de ascese, mas de desprendimento. Movimentos e posições asceticamente praticados
sobre o “pilar”, ao modo de Simeão Estilita, são uma representação, um arremedo da fé, feito
exterior in abstracto, falta de pulso, pulsão vital, de concreção de vida, de existência in concreto,
de experiência real do paradoxo da fé. No “pilar” da ascese sobeja isolamento e falta solidão.
No Moriá a todo instante a solidão resiste à multidão, rompendo com o universal11. Isaac é a
relação de Abraão com o universal (Isaac, “coisa finita”, “criatura”), pois ele aponta não
apenas o sentido da paternidade, mas também o da comunidade. A experiência do universal
(Isaac) não permaneceu ao pé do Moriá. Ela subiu com Abraão três dias e três noites. Por
esse motivo, no ermo da montanha, Abraão não esteve isolado, mas só em franca luta com o
universal. Até que a “exceção”, o singular, “rompe no meio do universal” (KIERKEGAARD,
2009a, p. 136), fazendo dele o pai da fé, um homem, um indivíduo singular.
Johannes de silentio viu o movimento desse tornar-se; e viu por ser poeta, “a melhor essência
do herói”. Johannes de silentio traz no próprio nome “a melhor essência do herói”: o silêncio –
o silêncio de onde brota a palavra. E Abraão, por sua vez, traz silenciado em seu nome “a
melhor essência do poeta”: a palavra – a palavra de onde brota o silêncio. Assim como de silentio
é o epíteto do poeta Johannes, para o pai da fé seu epíteto poderia ser: da palavra, Abraão da
palavra. A poética de Johannes de silentio é a recordação da palavra que se fez carne em Abraão.
O poeta tem saudade de Abraão.
Toda filosofia é uma filosofia da saudade, porquanto seja a sua recordação a poética do não
dito eternamente calado no seio de todo dito. Diferentemente da hesitação da nostalgia – a
ansiosa dor pela palavra que não pode ser dita – salta com coragem do coração da saudade um
dizer prenhe de inauditos; ao trasladar o que vai sendo escrito, o criador sustém incólume
nesse ato a força de uma linguagem inaudível. Isto é o que vivencia o Abraão de Johannes de

11 Cf. "Problemata I" in Temor e tremor (2009b).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 211-222.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
220

Em torno a Simeão Estilita: da poética ascética à poética da fé


CAMPOS, E. S.

silentio. O inaudito escutado pelo herói da fé sequestra-o para o silêncio de um segredo.


Contudo, a guarda do segredo não é justificada por um comprometimento moral-religioso
com Deus; o temor de Abraão não se deve a uma espécie de "medo" diante do divino que lhe
sobrevém como ameaça para que o pacto de silêncio seja mantido. A linguagem que o mobiliza
guarda um segredo, mas não um que poderia ser dito se quisesse, mas que, por vontade
própria, prefere ocultar. O segredo que cala a voz de Abraão é inefável. Isto é: não significa
que ele não diz porque não queira dizer, mas, sim, porque não pode dizê-lo, não apenas para
outro homem, mas também para si mesmo. E se o segredo não pode ser dito para outrem
nem para si mesmo deverá então ser consumado na criação que mostra/diz o impossível da
língua a cada momento de criação. O seu segredo não é da mesma natureza do segredo de
Agamenon, que se manteve como "herói trágico" no campo moral. Abraão persegue
diligentemente os mistérios da fé, e, portanto, não está localizado em lugar algum.
A palavra inaudita que move o “cavaleiro da fé” é traduzida por ele através da
linguagem amorosa do sacrifício. Não escreve a letra da poesia na forma de um poema, mas
realiza poeticamente em sua vida as inscrições de um caráter. O pergaminho de suas
inscrições é a sua própria pele senil. A palavra dita no sacrifício abraâmico tem o mesmo
caráter do traço do grande pintor e da letra do grande escritor. A gênese é a mesma: a irrupção
de uma graça que leva o homem a um fazer gratuito – necessário. Dessa forma, o drama
religioso de Abraão, gratuito e necessário, possui a mesma natureza da arte, pois toda arte,
cuja ação é incondicional, toca a esfera do religioso. Como toda poiesis, a poética do drama
abraâmico é gratuita: não serve para nada. Nem mesmo a justificativa segundo a qual a prova
é prova “para” a fé – no sentido de um meio eficaz para verificação da autenticidade da
paixão religiosa – serve como a finalidade do sacrifício, pois só a fé explica a fé. Não existe
nenhuma fé que seja fora da prova e nenhuma prova que seja fora da fé, pois uma fé fora da
prova é mera “crença” e uma prova fora da fé é “obra morta”. O pensamento desejoso de
efetuar a separação entre a prova (sacrifício) e a fé já está presunçosamente empreendendo a
tentativa de esquadrinhar, controlar, pela via da razão, a absurdidade do inaudito mistério
contido no pedido de Deus a Abraão. A inconclusividade do ato sacrifical – a contenção de
Abraão pelo anjo – mostra precisamente o caráter ambíguo de toda palavra gerada no e pelo
segredo. Abraão é pai amoroso e infanticida; Deus mata e salva. Nesta ambiguidade, toda
dialética operada pela consciência sucumbe na luta, na dia-lética da vida que não dá satisfação
para ninguém. A vitalidade desta dialética mostra que no gume do punhal de um assassino

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 211-222.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
221

Em torno a Simeão Estilita: da poética ascética à poética da fé


CAMPOS, E. S.

sangra a dor de um pai. Quem olha de fora não consegue ver, ao fim e ao cabo, se a fé que
penetrou neste ato tão radical foi doença ou cura, “vírus ou vacina”. Mas quem desde dentro
da prova olha pela fé, escuta, no que fora inoculado em Abraão, o mesmo inaudível. O que
está em questão na palavra que diz o indizível do segredo inaudito não é a verdade ou
falsidade da correspondência dos fatos, mas unicamente a verdade que toma Abraão em sua
liberdade exigindo dele a obediência pela fé. Mesmo após a consumação dos fatos, a palavra fontal
inaudita não se consuma nem será consumida em cada palavra ainda a ser dita.
Todo grande educador ensina a escutar esse inau-dito, para além de todos os ditos
consagrados e consumados na linguagem cristalizada do uso cotidiano. O educador, só ele,
pode ensinar a ver o que co-move e dispõe para o movimento da própria vida singular. Ele
jamais ensinará os conteúdos que preenchem o vazio do nada, mas apenas o próprio exercício
de desprendimento dos conteúdos que impedem o sentir, anuviando o olhar.

REFERÊNCIAS

BEUFRET, Jean. Introdução às filosofias da existência: de Kierkegaard a Heidegger.


Tradução de Salma Muchail. São Paulo: Duas Cidades, 1976.

ECKHART, Mestre. O Livro da divina consolação e outros textos seletos, 6ª ed.,


Petrópolis: Vozes, 2006.

HERÁCLITO. Fragmentos: pré-socráticos. Tradução de José Cavalcante de Souza, 1ª ed.


São Paulo: Abril Cultural, 1973.

KIERKEGAARD, Søren. A Repetição: um ensaio em psicologia experimental. Tradução


de José Miranda Justo. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2009a.

_______. O Desespero humano. In: Os pensadores. Tradução de Adolfo Casais Monteiro.


1ª ed.. São Paulo: Abril Cultural, 1979a.

_______. O conceito de angústia: uma simples reflexão psicológico-demonstrativa


direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário de Vigilius Haufniensis. Tradução
de Álvaro L. M. Valls. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São
Francisco, 2013.

_______. Temor e tremor: lírica dialéctica. Tradução de Elisabete de Sousa. Lisboa: Relógio
D'água, 2009b.

_______. Temor e tremor. In: Os pensadores. Tradução de Maria José Marinho. 1a ed..
São Paulo: Abril Cultural, 1979b.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 211-222.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
222

Em torno a Simeão Estilita: da poética ascética à poética da fé


CAMPOS, E. S.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém.
Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 211-222.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
ISSN 1984 - 5561

AS DÚVIDAS DE KIERKEGAARD: OU SOBRE O


LEGADO PEDAGÓGICO DO ROMANTISMO
ALEMÃO

[THE DOUBTS OF KIERKEGAARD: ABOUT THE


PEDAGOGICAL LEGACY OF GERMAN ROMANTISM]

Jean Vargas

Doutorando em Filosofia pela UFMG, e Membro da Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard


(SOBRESKI).
(E-mail: jean_sv07@hotmail.com)

Recebido em: 26 de março de 2018. Aprovado em: 06/05/2018

Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 223-238. ISSN 1984 – 5561


Dossiê Kierkegaard e a Educação
224

As dúvidas de Kierkegaard: ou sobre o legado pedagógico do romantismo alemão


VARGAS, Jean

Resumo: O artigo leva em conta a recepção de Kierkegaard sobre o modo


como os românticos lidam com o conhecimento e argumenta que o
dinamarquês tem algo a dizer sobre temáticas de educação que estão hoje
na ordem do dia. O artigo mostra ainda como Kierkegaard lida com temas
transdisciplinares e em que medida a herança romântica, em contraposição
ao legado iluminista, o ajuda a conceber sua reflexão pedagógica e
existencial.

Palavras-chave: Kierkegaard. Educação. Romantismo alemão. Pedagogia.


Dúvida

Abstract: The article takes into account Kierkegaard's reception of how the
romantics deal with knowledge and argues that the Danish has something
to say about education issues that are today the order of the day. The article
also shows how Kierkegaard deals with transdisciplinary themes and to
what extent the romantic heritage, in contrast to the enlightened legacy,
helps him to conceive his pedagogical and existential reflection.

Keywords: Kierkegaard. Education. German romanticism. Pedagogy.


Doubt.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 223-238.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
225

As dúvidas de Kierkegaard: ou sobre o legado pedagógico do romantismo alemão


VARGAS, Jean

INTRODUÇÃO

Kierkegaard duvida do engajamento existencial de seus contemporâneos por trás da


fórmula cartesiana, a qual reverbera: “de omnibus dubitandum est”.1 Ora, se é preciso
duvidar de tudo, é preciso inclusive duvidar da eficácia de fórmulas e bordões, cujo lastro
remete ao filósofo do cogito. Ou seja, o problema, segundo nosso autor, é acreditar que é
preciso duvidar de tudo, mas no fundo não duvidar de nada, e antes, acabar por se tornar
um mero reprodutor de máximas e fórmulas.
Mas reproduzir máximas e fórmulas sem assimilá-las de maneira existencial foi um
problema apontado por Kierkegaard, diagnosticado tanto em educadores quanto em
discentes de seu tempo.2
Assim, como desconstruir um tipo de instrução conteudista para que o indivíduo se
engaje existencialmente com o que é ensinado? Quando duvidar é, de fato, algo relevante?
Em seu tempo, o filósofo de Copenhague já refletia sobre questões de caráter
pedagógico. Muito antes do que se passou a discutir no século XX na agenda da educação
sobre os problemas suscitados pela fragmentação do conhecimento, cujo start se deu no
Renascimento, já podemos dizer que Kierkegaard teria algo a contribuir sobre temas
contemporâneos, tais como: transdisciplinaridade, pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade
e multidisciplinaridade.
Obviamente Kierkegaard não está preocupado em fazer um tratado sobre filosofia
da educação, como já se tentou, de modo forçoso, encontrar no dinamarquês. Sobre isso, diz
o próprio pensador de Copenhague:

1 Significa: “é preciso duvidar de tudo”, mas Kierkegaard muitas vezes se refere a este slogan cartesiano em
latim. Em seu texto inacabado, cujo título é: É Preciso Duvidar de Tudo, Kierkegaard reflete sobre a biografia de
Johannes Climacus. Trata-se de um pseudônimo, um autor personagem dos vários que figuram em seus textos.
A ideia consiste em desafiar os entusiastas com a frase: “é preciso duvidar de tudo”, atribuída a Descartes, e
mostrar como o pensador francês pratica a dúvida de maneira superior e diferente de seus contemporâneos.
Na época de Kierkegaard muitos empregavam esta frase para passar uma aparência de intelectualidade e de
reflexão crítica. Kierkegaard então resolve ironizá-los e brincar com esta expressão.
2 Há ainda um outro texto do jovem Kierkegaard, conhecido como A Batalha entre as Antigas e as Novas Lojas de

Sabão, cujo teor consiste em desafiar alguns contemporâneos de Kierkegaard, em Copenhague, que insistiam
em repetir esta máxima cartesiana, sem, todavia, compreender o seu sentido, tal como denuncia o nosso autor.
A reflexão que traz este artigo se aproveita dessa empreitada de Kierkegaard, embora lance mão de outros
textos para se pensar a educação, sem perder de vista as discussões que perpassam estas obras.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 223-238.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
226

As dúvidas de Kierkegaard: ou sobre o legado pedagógico do romantismo alemão


VARGAS, Jean

Sou porventura um mestre um, educador? Também não. Sou alguém que
foi educado ou cuja obra exprime a disciplina que leva ao tornar-se cristão:
enquanto e porque esta educação pesa sobre mim, faço, por minha vez,
pressão sobre a época, mas longe de ser um mestre, não sou mais que um
condiscípulo (KIERKEGAARD, 1986, p. 72).

Tampouco encontraremos esta discussão desengajada dos problemas de seu tempo


e da temática de fundo, qual seja a de tornar-se cristão (KIERKEGAARD, 1986, p. 22).
Entretanto, a discussão pedagógica que ganhou novo formato no século XX, entre outros
motivos por questionar a divisão, tanto do conhecimento, de um modo geral, quanto da
ciência, de um modo particular, certamente teria muito a ganhar se ouvisse o que Kierkegaard
tem a dizer sobre esta temática. Além disso, talvez seja necessário de nossa parte duvidar um
pouco da afirmação irônica de Kierkegaard de que não era um educador.
Seja como for, cabe perguntar: qual é a paróquia de Kierkegaard? Seria a paróquia da
filosofia? Seria a da literatura? Ou seria a da teologia? Isto é, de qual lugar nos fala o Sócrates
de Copenhague? E mais, se Kierkegaard não é um educador, o que teria de relevante a nos
dizer sobre este tema?
Não por acaso, sabe-se que Kierkegaard não é um autor facilmente classificável. As
tentativas de classificação do pensador dinamarquês soam quase simplistas quando se verifica
que nosso autor transita por todas essas áreas sem sentir a necessidade de adesão e filiação a
correntes e tendências de época, denominando a si mesmo tão somente como dialético.
Daí não se segue, e tampouco pretendemos dizer com isso, que Kierkegaard tenha
se mantido imune às influências teóricas, ou que, de resto, não tenha suas próprias
idiossincrasias, bem como sua guerra particular contra um ou outro contemporâneo. Sabe-
se que, como no caso de qualquer autor, Kierkegaard não é um sujeito a-histórico e possui a
sua agenda própria de discussões, a qual, vale dizer, está muito vinculada a agenda alemã de
sua época, com temáticas fortemente amalgamadas pelo que ficou conhecido como
Romantismo alemão.
Mas aqui o que está em jogo é justamente verificar como Kierkegaard recepciona e
ressignifica as influências oriundas dos alemães e, como ao fazê-lo, tem algo a dizer, mais de
dois séculos após o seu nascimento, sobre problemas pedagógicos que estamos às voltas
ainda hoje. Esse é o nosso ponto.
Que Kierkegaard tenha sido influenciado por Sócrates e por Hegel é lugar comum
na literatura secundária. Pouca atenção, porém, é dado ao que Kierkegaard assimilou e

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 223-238.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
227

As dúvidas de Kierkegaard: ou sobre o legado pedagógico do romantismo alemão


VARGAS, Jean

absorveu dos românticos alemães sobre educação, o qual se constitui como outro universo
de profunda influência em sua produção literária. Pensar esta influência significa pensar,
entre outros pontos, em problemas sobre a educação e seus métodos, tal como mostraremos.
Para tanto, nos limitaremos sobretudo por uma questão de escopo e propósito, a dois
textos que ajudam a pensar a contribuição do nosso autor, a saber: 1) Diapsálmata, publicado
em 1843 (primeiro capítulo de Ou-ou: um fragmento de vida e 2) Ponto de Vista Explicativo de Minha
Obra como Escritor, publicado postumamente em 1859. Recorreremos a outras obras quando
necessário, mas estas receberão um lugar privilegiado em nosso horizonte reflexivo. Ambas
as obras, aliadas a algumas breves alusões em outras passagens do pensamento de
Kierkegaard são suficientes, pois lançam um significativo faixo de luz sobre o tema.

O LEGADO PEDAGÓGICO DO ROMANTISMO ALEMÃO

Pensar o que significou o movimento dos românticos alemães e recuar, para tanto,
até o final do século XVIII seria uma tarefa longa e cheia de percalços para os propósitos
deste artigo, o que o tornaria inviável. Nesse sentido, será preciso delimitar um recorte
específico de entrada para notar o que os românticos fizeram com os despojos do Iluminismo
após endereçar as suas mais virulentas críticas, seja à cultura das luzes, seja à simbiose desta
com uma razão totalizante.
Evidentemente, falar sobre os românticos alemães em sentido genérico é falar sobre
muitos autores de modo simultâneo. O ponto em comum entre eles, se tivéssemos que
apontar um único, seria o de se colocar como antípoda das luzes. Este é o recorte que nos
interessa adentrar. Mas aqui será necessário um pouco mais de precisão: ao se pensar, por
exemplo, em um autor como Karl Wilhelm Friederich Von Schlegel (1772- 1829), podemos
perceber, tal como chamou a atenção Beiser, que não havia sentido, para este romântico,
manter distinções rígidas entre teologia, filosofia, educação e literatura (BEISER, 2002, pp.
435-437).
F. Schlegel, muito retomado por Kierkegaard, não reconhecia a herança renascentista
e depois a iluminista que fragmenta o conhecimento em ‘disciplinas’ do saber, que por sua
vez podem ser redivididas e subdivididas em outras tantas áreas do conhecimento. Há, pelo
contrário, uma interação entre as áreas do saber, de sorte que separá-las e classificá-las

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 223-238.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
228

As dúvidas de Kierkegaard: ou sobre o legado pedagógico do romantismo alemão


VARGAS, Jean

segundo esta fragmentação pode soar demasiadamente artificial, ao passo que a realidade, ela
mesma, é fluida, performática, imbricada, e não dividida ou esquemática como quer o
método da razão cartesiana.
O movimento iluminista, portanto, que tenta compreender a realidade como se fosse
possível desagregá-la em disciplinas, não só se configura de maneira antipedagógica para um
romântico como F. Schlegel, mas mais que isso, tal compreensão chega a ser mesmo
equivocada. Esse movimento de dividir o conhecimento da natureza em partes, engendrado
pelo Iluminismo, instaurará depois o homo faber, o qual, inserido na hiper-especialização da
sociedade industrial, cada vez mais se torna expert no particular, na mesma proporção em que
ignora o universal. Ou seja, o indivíduo é especialista na parte, mas desconhece o todo. Foca
no ato de saber fazer, mas perde de vista o saber viver. Para um romântico, é preciso duvidar
desse modus operandi.
Ora, este cenário leva ao fim do intelectual universal e traz em seu bojo uma série de
consequências que os românticos ainda não tinham condições de conceituar, mas já
percebiam e procuravam adiantar um diagnóstico precoce deste mal-estar moderno que se
alastraria nos séculos posteriores, expressos como: niilismo, secularização, relativismo e
cultura de massa. Os germes desses problemas do homem moderno estavam presentes no
século XVIII e os românticos são um movimento contra cultural de resistência.
Ou seja, o movimento romântico é, em última instância, um movimento de reação à
cultura das luzes, com os seus efeitos colaterais, muito embora seja um equívoco pressupor
apressadamente que o Romantismo alemão seja algo irracional ou algum tipo de nonsense
estético. Se o Romantismo alemão é audacioso e pretende colocar a razão iluminista em seu
devido lugar, os mistérios, contos infantis e outros tantos movimentos não racionalizantes
passam a ser bem-vindos neste contexto. Por esta razão o Romantismo é um solo fértil para
tais movimentos. Como notou Safranski:

Na geração romântica, todavia, o interesse pelo que é misterioso começa


a ser maior do que pelo desencantador esclarecimento do mistério. Gosta-
se do segredo não apenas porque o Iluminismo pode mostrar nele o seu
poder, mas também porque ele se opõe ao Iluminismo. O inexplicável não
é apenas escândalo, mas encanto. “Algumas coisas ficam perdidas na noite”,
como se lê em Eichendorff (SAFRANSKI, 2010, p. 55).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 223-238.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
229

As dúvidas de Kierkegaard: ou sobre o legado pedagógico do romantismo alemão


VARGAS, Jean

KIERKEGAARD E A RECEPÇÃO PEDAGÓGICA DO ROMANTISMO


ALEMÃO

Kierkegaard, de sua parte, é leitor e herdeiro direto do movimento romântico, e em


certo sentido, também é bastante tributário a esta transgressão pluridisciplinar. Não por
acaso, Kierkegaard em sua primeira obra literária, depois de defender a sua dissertação na
Universidade de Copenhague em 1841, lança mão da escrita pseudonímica, como já era de
praxe fazê-lo no Romantismo alemão, a exemplo de Georg Philipp Friedrich von
Hardenberg, mais conhecido pelo alônimo de Novalis. Além disso, escreve o primeiro
capítulo de Ou-ou: um fragmento de vida publicado em 1843 como uma provocação ao sistema
de totalidade defendido por Hegel em sua Ciência da Lógica.
Kierkegaard, no primeiro capítulo de Ou-ou: um fragmento de vida, lança mão de
aforismos. Este primeiro capítulo recebeu o título de Diapsálmata. Ao fazê-lo, o dinamarquês
parte para um confronto tanto no que diz respeito a forma de escrever, quanto em relação
ao conteúdo do que Hegel fazia em filosofia com a sua Ciência da Lógica. Isso porque o
Diapsálmata, cujo significado é o de interlúdio ou intervalo musical, remete aos pressupostos
existenciais que perpassam o esteta A, antes de começar a sua reflexão. Ou seja, com o
formato de aforismos, Kierkegaard quer colocar na mesa o que se passa no horizonte de
reflexão do poeta, antes que seus pensamentos sejam articulados, tal como aparecerá nos
capítulos seguintes. Por isso este capítulo inicial é uma espécie de antessala para o que virá
adiante.
Desse modo, o esteta A é o autor personagem da primeira parte da obra, se apresenta
como alguém versado em música erudita, filosofia, literatura, poesia e artes de um modo
geral. Apesar dessa imersão interdisciplinar, o que o move a agir são questões de caráter
existencial. Suas premissas são articuladas de forma tal que constituem um leitmotiv para
apoiar suas teses sustentadas pela existência de uma vida estética. Ou seja, o Diapsálmata não
é, de maneira alguma, um sistema de totalidade a la Hegel, mas traz consigo uma primeira
lição importante: a de que os pressupostos existenciais que motivam um autor a escrever e
refletir não podem e não devem ser desconsiderados. A forma aberta e aforismática,
portanto, deste texto está em rota de colisão com a forma fechada e sistemática da Ciência da
lógica de Hegel.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 223-238.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
230

As dúvidas de Kierkegaard: ou sobre o legado pedagógico do romantismo alemão


VARGAS, Jean

O Diapsálmata pode ser visto como um momento de reflexão antes de se começar a


elucubrar filosoficamente e está disposto a levar em conta o estado de ânimo do esteta A, o
que é fulcral para se entender a sua perspectiva. Tentar compreendê-lo sem este pressuposto,
isto é, tentar filosofar sem levar em conta o sujeito do conhecimento é um problema a ser
evitado, e é isso, entre outras coisas, que Kierkegaard pretende denunciar com este capítulo
de caráter pedagógico. Para o nosso autor, se é preciso duvidar de algo, seria preciso duvidar
de quem faz filosofia com abstração desinteressada.
A forma, para o pensador dinamarquês, de se passar um conteúdo, importa muito e,
de resto, as motivações do sujeito são absolutamente pertinentes. Já o conteúdo deve ser
assimilado de maneira existencial, visto que é impossível haver neutralidade epistêmica. Por
isso o Diapsálmata é a porta de entrada para o restante do texto. A mensagem clara é de que
o conhecimento e a expertise em algo não devem ser saberes desinteressados e apenas
tecnicistas. Para ser um sedutor, por exemplo, é preciso empregar técnicas sofisticadas, como
se nota no Diário do Sedutor. No entanto, tais técnicas só funcionam se houver uma motivação
existencial, ainda que de ordem estética.
De igual modo, no Pós-escrito de 1846, para fazermos um paralelo rápido, Kierkegaard
insiste na relevância da interioridade em contraposição à retórica. Já na introdução, Johannes
Clímacus, o autor personagem, observa que ele deve refletir, não sobre conceitos abstratos,
mas sobre um conteúdo existencial, que o caracteriza e o define, sem a pretensão de
transmitir uma falsa imparcialidade do sujeito do conhecimento, o que seria mera abstração
e erudição vazia. Este é o espírito do pensador subjetivo. Por isso, é preciso duvidar da
distração erudita com seu invólucro científico e suas aparências de autêntico saber:

A introdução científica distrai com sua erudição, e a aparência que surge é


a de que o problema esteja formulado no momento em que o douto
pesquisar atingiu o seu máximo, i. é, como se o esforço crítico e erudito
rumo à completude fosse a mesma coisa que o esforço rumo ao problema;
o discurso retórico distrai por intimidar o dialético; a tendência sistemática
promete tudo e não cumpre absolutamente nada. Desse modo, o
problema não se apresenta por nenhum desses três caminhos e,
especialmente, não pelo sistemático (KIERKEGAARD, 2013, p. 20).

Assim, nota-se que em várias partes do corpus kierkegaardiano, pode-se sempre


perceber sua preocupação, tanto para com a forma quanto para com o conteúdo.
Kierkegaard é um autor que do ponto de vista pedagógico passa boa parte do tempo

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 223-238.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
231

As dúvidas de Kierkegaard: ou sobre o legado pedagógico do romantismo alemão


VARGAS, Jean

preocupado com a recepção de suas reflexões, não para a multidão, mas para o que ele chama
de Indivíduo singular (den Enkelt). Ora, é para o Indivíduo singular que Kierkegaard escreve
e é por este motivo que muitas vezes tenta blindar os seus textos do público, seja colocando
mensagens codificadas, seja dizendo explicitamente que sua obra será tanto melhor quanto
menos leitores tiver (KIERKEGAARD, 1974, p. 252). Kierkegaard, por vezes, se recusa a
fazer literatura de massa que deturpa o sentido existencial da vida e entende que é preciso
duvidar de quem escreve com o intuito de controlar a recepção literária, de modo a dirigi-la
para o grande público. O público está preocupado com panis e circenses,3 diria o esteta A
(KIERKEGAARD, 2013a, p. 319).
Os docentes também não escapam às contundentes críticas do dinamarquês, pois
estão em sua alça de mira, a ponto de Kierkegaard chegar a dizer: “do homem comum eu
gosto... os doutores, eu abomino... se não existisse o inferno, seria preciso inventar um para
punir os docentes, cujo crime é de um gênero difícil de punir” (KIERKEGAARD apud DE
GRAMMONT, 2003, p. 116-117). Obviamente a crítica aqui não é contra os docentes
enquanto tal, mas sim para aqueles que o dinamarquês entende que são meros transmissores
de conteúdo, sem se preocupar com aquela verdade para a qual importa viver e morrer, ou
dito em uma palavra, de uma verdade ‘existencial’.
É por isso que a multidão é a mentira (KIERKEGAARD, 1986, p. 99- 100), pois en
masse, ou, se quisermos, com uma comunicação direta, aprende-se uma mera técnica, um
saber fazer, portanto. Todavia, aquilo que move a Kierkegaard são as verdades de natureza
ético-religiosas e não o tecnicismo (KIERKEGAARD, 1986, p. 113). Tais verdades de
natureza ético-religiosas não se podem aprender com sermões, lições, palestras ou outro tipo
de comunicação direta de caráter conteudista. É por isso que ele não faz um manual sobre o
que não se pode aprender em um manual. Até mesmo publicar dez volumes sobre a categoria
do Indivíduo singular seria em vão (KIERKEGAARD, 1986, p. 105). Antes, é preciso
transmiti-la por meio daquilo que Kierkegaard denomina como comunicação indireta, e esta,
por sua vez, não é possível sem antes despertar o interesse do interlocutor
(KIERKEGAARD, 1986, p. 39).

3Kierkegaard emprega esta expressão latina retirada de Juvenal em Sátiras, X, vv. 80-81. Em português significa:
pão e jogos. O esteta A, em seu capítulo denominado A Rotação de Culturas sugere que foram estes elementos
que retardaram a queda de Roma.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 223-238.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
232

As dúvidas de Kierkegaard: ou sobre o legado pedagógico do romantismo alemão


VARGAS, Jean

Para tanto, o emprego de pseudônimos, para deixar o leitor a sós com o texto, sem
intimidá-lo com o peso da autoridade do escritor, bem como o contraponto entre um
pseudônimo e outro, é um meio, antes de tudo, pedagógico para levar o interlocutor a se
engajar em uma reflexão que não lhe seja estéril. Ou ainda, no vocabulário de Kierkegaard, é
um meio de provocar “movimentos existenciais”.
Ora, provocar movimentos existenciais é justamente a discussão que está na ordem
do dia hoje quando o assunto é educação. Como tornar os discentes interessados?
Kierkegaard entende que responder a esta questão é conditio sine qua non para conseguir formar
alguém, visto que a subjetividade é a verdade, mas também pode ser a inverdade. Isto é, da
interioridade depende a motivação para o acesso a verdade e, vale dizer, o acesso ao
conhecimento engajado (KIERKEGAARD, 2013, p. 199-263).
Contudo, transmitir conhecimento não possui o resultado esperado se o sujeito do
conhecimento não se interessa pelo objeto. O papel do mestre é abrir caminhos para que o
discípulo possa aplicar tanto a sua interioridade quanto o seu interesse no objeto em questão.
O papel do mestre não é o de transmitir bordões e frases de efeito para serem decorados e
reproduzidos. É preciso duvidar de quem assim procede e de quem assim quer aprender.

CONSIDERAÇÕES SOBRE MÉTODOS PEDAGÓGICOS DE KIERKEGAARD

Se, por um lado, a primeira obra literária de Kierkegaard nos ajuda a notar isso, por
outro, é o balanço que o próprio Kierkegaard faz, agora sem o auxílio da pseudonímia, que
nos permite entender a sua preocupação pedagógica. De certo modo, a obra Ponto de Vista
Explicativa da Minha Obra como Escritor não deixa de ser, para além de um acerto de contas de
Kierkegaard consigo mesmo, uma obra de reflexões pedagógicas, inspirado no método da
maiêutica socrática, a qual explana o projeto de conseguir despertar interesse e engajamento
no leitor. Tanto é assim que muitas vezes os interlocutores de Kierkegaard confundiam
aquilo que era literatura com o que eram, na opinião deles, meros escritos religiosos. A
fortuna crítica de Kierkegaard terá que esperar por Heidegger, quando finalmente o filósofo

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 223-238.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
233

As dúvidas de Kierkegaard: ou sobre o legado pedagógico do romantismo alemão


VARGAS, Jean

alemão aponta para os equívocos desses leitores desavisados, ao subestimarem os escritos


religiosos do dinamarquês.4
A propósito disso, Kierkegaard ironiza ao notar que deu ao mundo Dois Discursos
Edificantes com sua mão direita e Ou-ou: um fragmento de vida com a esquerda, enquanto todos
acabaram por pegar com a mão direita o que o dinamarquês ofereceu com a esquerda. Ou
seja, Kierkegaard quer denunciar com o método da ironia que lhe era típica, que o texto
renegado por seus leitores, os quais achavam que sequer tratava-se de uma obra do mesmo
autor, passou como se fosse “uma florzinha à sombra da grande floresta”.
(KIERKEGAARD, 1986, p. 33-34).
Quer dizer, o conteúdo de Dois Discursos edificantes não foi levado à sério, todavia,
uma obra de sua fase estética, escrita com o trejeito da literatura romântica, despertou muito
mais interesse no público alvo e o fez não pelo conteúdo exclusivamente, mas sobretudo o
fez pela forma, ou dito de outro modo, pelo método didático pedagógico o qual fora
transmitido. Mas Kierkegaard faz isso de maneira metódica e calculada:

Ou se puderes, muito bem: descreve o mundo estético com todos os seus


encantos, cativa, se possível, o teu interlocutor, mostra este mundo
tomando o tom da paixão que convém a esse homem, petulante se é jovial,
triste se é melancólico, espiritual se gosta de belas palavras, etc.; mas
sobretudo não esqueças uma coisa, a retenção da adição, o religioso a
apresentar; age apenas e sem receio, porque, na verdade, este método só é
possível num grande temor e tremor (KIERKEGAARD, 1986, p. 41-42).

Ora, para este resultado, e este ponto é central, importa tanto seguir a trilha existencial
de Sócrates quanto a trilha pedagógica dos românticos, ao transitar por áreas do saber
proibidas para a erudição sisuda de autores como os do idealismo alemão, por exemplo.
Kierkegaard era um autor com grande sagacidade literária, de modo que sabia tornar um
conteúdo interessante quando lhe convinha, e por vezes, fazê-lo exigia alguma transgressão
interdisciplinar.
Quanto a isto, um filósofo como Hegel não acharia algo sério e rigoroso, como não
se cansa de criticar os românticos. Neste ponto em particular, Kierkegaard está com o
Romantismo alemão e está contra o filósofo de Berlim. Como um autor que pretende

4Foi Heidegger quem notou que, com exceção ao que ele se referia como Tratado sobre a Angústia, os textos
ditos religiosos de Kierkegaard possuem uma profunda reflexão filosófica, mais do que outros textos estéticos.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 223-238.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
234

As dúvidas de Kierkegaard: ou sobre o legado pedagógico do romantismo alemão


VARGAS, Jean

transmitir verdades de caráter ético-religiosas, sabe que os sermões dominicais são


insuficientes e que provocar movimentos existenciais em seu interlocutor demanda algo
muito maior do que expor conteúdo. Então Kierkegaard fala sobre assuntos teológicos, com
um estilo de escrita romântica e com grande aprofundamento filosófico que mede forças
com Hegel, ainda que, para um leitor mal informado, possa parecer em um primeiro
momento que não sairá nada profundo de uma obra que começa com a expressão “era uma
vez...” como no caso das páginas iniciais de Temor e tremor de 1843.
Por isso, Kierkegaard aparentemente mistura “alhos com bugalhos”, por assim dizer,
quando coloca no mesmo texto o versado esteta A, que sabe muito sobre muita coisa, porém
não se apresenta como especialista em nada, ao passo que coloca um juiz especialista em
direito e versado em ética, por outro, mas que de igual modo, não consegue chegar a uma
resposta definitiva sobre as situações que permeiam as escolhas da vida, pois não há um
vencedor do debate.
Ambos têm as suas razões e ambos estão aquém do estádio religioso da existência.
Tudo é nada e nada é tudo se o estádio religioso for ignorado. Mas falar isso não funciona
com o emprego de um sermão dominical. É preciso despertar o interesse do interlocutor.
Assim, se tornar um escritor ao modo dos românticos se constitui uma boa ferramenta tanto
para chamar a atenção dos seus contemporâneos, quando para fazer frente à abstração
sistemática hegeliana.
A obra Ou-ou: um fragmento de vida, diga-se de passagem, foi publicada por um simples
pseudônimo personagem chamado Victor Eremita, o qual se deu ao trabalho de tão somente
unir as partes e publicá-las. É importante notar aqui como Kierkegaard trabalha com
pseudônimos que não são conhecidos, renomados e experts, entretanto é justamente esta
condição que permite ao interlocutor pensar por si mesmo. Ou seja, não se espera que o
leitor se apegue a autoridade célebre do filósofo, tampouco que ele decore fórmulas e
máximas, como aquela que preconizava a necessidade de se duvidar de tudo. Antes, é preciso
pensar por si mesmo e duvidar apenas daquilo que o interlocutor existencialmente tenha
dúvidas de fato, e não, lastreado pelo bordão de Descartes, duvidar de tudo. A decoreba
conceitual é descartável e Kierkegaard tem dúvidas sobre a eficácia deste método pedagógico.
De igual modo em Temor e tremor, o pseudônimo Johannes de Silentio diz ser um
hegeliano, mas coloca em dúvida as teses de Hegel. Diz também que não é cristão, mas faz
um elogio da fé ao longo da obra. Trata-se de uma atitude irônica que Kierkegaard aprendeu

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 223-238.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
235

As dúvidas de Kierkegaard: ou sobre o legado pedagógico do romantismo alemão


VARGAS, Jean

com Sócrates, pois ao recusar um saber especializado, lança-se um olhar para o problema
como um todo. Não obstante, esse modelo transdisciplinar, o qual não reconhece barreiras
para áreas do saber, é também um movimento notadamente romântico e Kierkegaard deve
isso a sua imersão na leitura de textos como os de F. Schlegel, Schleiermacher, Tieck e
Novalis.
Assim, para Kierkegaard, não há mediação do conhecimento se o mestre não
consegue, ao modo de Sócrates, fazer o próprio discípulo dar à luz as questões existenciais.
Paira aqui uma dúvida sobre aqueles que falam em realidade, sem conseguir transmiti-la.
Aqueles que são incapazes de fazê-lo, incorrem no mesmo problema daqueles velhos
filósofos que são denunciados no aforismo do Diapsálmata, os quais prometem uma
propaganda conceitual da realidade, mas enganam:

O que os filósofos dizem sobre a realidade é amiúde tão enganoso como


quando se lê no letreiro de uma loja de velharias: aqui engoma-se. Quem
trouxesse roupa para mandar engomar ver-se-ia então ludibriado; porque
era meramente o letreiro que estava à venda (KIERKEGAARD, 2013a,
p. 63).

A preocupação metodológica, pedagógica e não conteudista de Kierkegaard nos


remete à figura de Sócrates, como já chamamos a atenção. Todavia, quanto a esta abertura
para um conhecimento que não se limita a classificação de ‘disciplinas’ da realidade, a dívida
é certamente com os românticos, os quais já faziam isso antes do dinamarquês, e Kierkegaard
optou por, a seu modo, dar continuidade a este legado. Ora, são os românticos, antes de
Kierkegaard quem retomam as disciplinas fragmentadas pelo Iluminismo, duvida de suas
fórmulas, e as mistura uma vez mais.
Por isso, no romantismo alemão podemos encontrar obras como Lucinde de F.
Schlegel que está entre a literatura e a reflexão filosófica sobre a moral estabelecida. Ou ainda,
podemos encontrar obras como Sobre a Religião: Discursos a Seus Menosprezadores Eruditos de
Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher, cuja reflexão é limítrofe entre a teologia, a literatura
e a filosofia, para ficarmos em apenas dois exemplos.
O próprio movimento do Romantismo alemão é pluridisciplinar, já que não é tão
somente filosófico, literário ou artístico, no sentido estrito do termo. É também, por
extensão, transdisciplinar e interdisciplinar, visto que não leva a sério a ideia de ‘disciplinas’
isoladas que guardam bem as fronteiras do saber, pois o conhecimento é intercalado e
Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 223-238.
Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
236

As dúvidas de Kierkegaard: ou sobre o legado pedagógico do romantismo alemão


VARGAS, Jean

imbricado entre si. Os românticos não são realistas ingênuos e sabem que a estrutura do real
é bem mais complexa do que aparenta. Sabem também que, em certo sentido, tais divisões,
quando sustentadas de modo rigoroso, são artificiais. Assim, podem mais atrapalhar do que
ajudar no processo de aprendizagem e conhecimento.
De sua parte, foi com os românticos que Kierkegaard aprendeu a ser um pensador
de fronteira, ou se quisermos, transdisciplinar, para ficarmos com apenas um adjetivo. O
dinamarquês gosta de transitar por estes limites, pois não compartilha da divisão estanque
que se fez a partir, sobretudo do século XVI. Assim, a erudição sisuda da filosofia idealista
alemã, a duvidosa teologia dogmática dos bispos de Copenhague e os muitos experimentos
mentais do imaginário literário, ora são criticados com ironia, ora dão lugar a uma mistura
casual entre vários ingredientes para servir como método pedagógico, cujo objetivo é levar
o seu interlocutor aos denominados “movimentos existenciais”. Então, para Kierkegaard, ao
pensar sobre métodos pedagógicos, é preciso duvidar de quem, sem movimentos
existenciais, duvida de tudo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao fazermos um balanço das contribuições de Kierkegaard para se pensar os


problemas da educação duzentos anos após o seu nascimento, podemos destacar que nosso
autor é um crítico da erudição abstrata, pois em mais de um lugar em seus textos, Kierkegaard
se atenta para este ponto, além de ser um pensador muito preocupado com método de
transmissão de determinado conhecimento.
Aliás, este é um artigo sobre isto: sobre método, mais do que sobre uma nova
interpretação dos conteúdos acerca dos muitos escritos de Kierkegaard. Entretanto, não
poderia sê-lo de outra forma. Para refletir sobre a contribuição de Kierkegaard para os temas
de educação hoje é preciso se atentar para o método do dinamarquês, mais do que para o
conteúdo, pois como chamamos a atenção, a forma ocupa um lugar central em sua tarefa
socrática.
Ao pensar com Kierkegaard, podemos antecipar boa parte do debate que se dará a
partir da segunda metade do século XX, de resto, bastante presente em nossa agenda hoje,
acerca do caráter interdisciplinar do conhecimento. É aqui, precisamente, que o autor

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 223-238.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
237

As dúvidas de Kierkegaard: ou sobre o legado pedagógico do romantismo alemão


VARGAS, Jean

dinamarquês, tributário do legado socrático, mas também do legado romântico, tem algo
muito importante a nos ensinar: para Kierkegaard, pensar a educação é, antes de tudo, pensar
na constituição de subjetividade de Indivíduos singulares, ainda que em meio à multidão. E
não se forma, no sentido grego do termo (paidéia), a subjetividade do outro sem uma
elasticidade irônica interdisciplinar que o permite torná-lo atento. Pois assim, o educador
obriga o discente a julgar por si mesmo e, sobre isso não há a menor dúvida:

Que isto seja uma boa ação não há a menor dúvida; mas também não é
preciso esquecer que o golpe é arriscado. Obrigando este homem a tornar-
se atento, forço-o a julgar. E ele julga. Mas o que ele julga não está em meu
poder. Talvez julgue o contrário daquilo que desejo. E, além disso, talvez
esta necessidade, em que o coloquei de se pronunciar o exaspere, e até ao
furor, contra a questão e contra mim; e talvez seja eu, no final, a vítima do
meu procedimento, corajoso (KIERKEGAARD, 1986, p. 45).

A julgar pelo que discorremos até agora, podemos nos permitir ousar um exercício
de experimento mental arriscado, ao afirmar que se o autor dinamarquês pudesse participar
dos nossos diálogos sobre temas como educação e, sobretudo sobre pautas como
transdisciplinariedade, teria algo de precioso a nos ensinar: após invocar Sócrates e os
românticos, e depois de chamar a atenção sobre a necessidade de despertar o interesse no
interlocutor ao torná-lo atento para os seus movimentos existenciais, acredito que
Kierkegaard enfatizaria que em se tratando de método pedagógico é preciso se colocar no
lugar do discípulo para ser útil, já que o mestre não é nada mais do que alguém que presta
uma ajuda ao outro.
Diante disso, ainda faz sentido colocar a questão, duzentos anos depois: é preciso
duvidar de tudo? Aqui, penso que Kierkegaard, ao olhar para o nosso tempo, faria um
pequeno, mas significativo acréscimo pedagógico ao responder a esta pergunta aplicado aos
nossos dias: em que pese a educação, de fato é preciso duvidar de tudo, inclusive daqueles
educadores que não duvidam de modo existencial!
Ou ainda, para fazer eco ao dinamarquês, é preciso ponderar: “ser mestre não é cortar
a direito à força de afirmações, nem dar lições para aprender, etc.; ser mestre é
verdadeiramente ser discípulo” (KIERKEGAARD, 1986, p. 42).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 223-238.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
238

As dúvidas de Kierkegaard: ou sobre o legado pedagógico do romantismo alemão


VARGAS, Jean

REFERÊNCIAS

BEISER, Frederick. German Idealism: The Struggle against subjectivism 1781-1801.


Londres: Harvard University Press, 2002.

BERLIN, Isaiah. As raízes do romantismo. São Paulo: Três Estrelas, 2015.

GRAMMONT, Guiomar de. Don Juan, Fausto e o Judeu Errante em Kierkeggard.


Petrópolis: Catedral das Letras, 2003.

KIERKEGAARD, Søren. Johannes Clímacus ou é preciso duvidar de tudo. São Paulo:


Martins Fontes, 2003.

KIERKEGAARD, Søren. Ponto de vista explicativo da minha obra de escritor: uma


comunicação direta, relatório à História. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, 2002.

_______. Ou-ou: um fragmento de vida. Volume I. Tradução de Elisabete M. de Sousa.


Lisboa: Relógios’d’água, 2013a.

_______. Pós-escrito conclusivo não científico às Migalhas filosóficas: coletânea


mímico-patético-dialética, contribuição existencial, por Johannes Climacus. Tradução de
Álvaro L. M, Valls. Petrópolis: Vozes, 2013. v.1.

_______. Temor e Tremor. Tradução de Maria José Marinho. São Paulo: Abril cultural,
1974. (Os pensadores).

LÖWITH, Karl. De Hegel à Nietzsche. Tradução de Rémi Laureillard, Paris: Gallimard,


1969.

PATTINSON, George. Kierkegaard, Religion and the Nineteenth-Century Crisis of


Culture. Cambridge : Cambridge University Press, 2004.

SAFRANSKI, Rudiger. Romantismo: uma questão alemã. Tradução de Rita Rios. São
Paulo: Estação Liberdade, 2010.

VALLS, Álvaro; MARTINS, Jasson. (Org.). Kierkegaard no nosso tempo. São Leopoldo:
Nova Harmonia, 2010.

VARGAS, Jean. Kierkegaard entre a existência e o niilismo. Puc Minas: Sapere Aude, Belo
Horizonte, v.6–n.12, Jul./Dez.2015, p. 657-671.

VARGAS, Jean. Indivíduo e multidão: uma reflexão sobre o lugar da ética no pensamento
de Søren Kierkegaard. UFMG: Outramargem, Belo Horizonte, V. - n., 2 Semestre 2014,
p. 99-109.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 223-238.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
ISSN 1984 - 5561

AS IRONIAS DO CONCEITO SOCRÁTICO EM


KIERKEGAARD

[THE IRONIES OF SOCRATIC'S CONCEPT IN KIERKEGAARD]

Gabriel Kafure da Rocha

Doutorando em Filosofia pela UFRN e Professor de Filosofia do Instituto Federal do Sertão


Pernambucano
(E-mail: gabriel.rocha@ifsertao-pe.edu.br)

Estela Araújo Silva

Graduanda em Filosofia pela UFPI


(E-mail: estelaaraujosilva@hotmail.com)

Recebido em: 01 de março de 2018. Aprovado em: 25/05/2018

Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 239-257. ISSN 1984 – 5561


Dossiê Kierkegaard e a Educação
240

As ironias do conceito socrático em Kierkegaard


ROCHA, G.K.; SILVA, E. A.

Resumo: O presente artigo visa fazer uma análise do socratismo em O


conceito de Ironia de Kierkegaard, para isso, pressupomos o valor da ironia na
antiguidade e das visões pós-socráticas. Buscamos assim, também, entender
essencialmente a relação entre o filósofo e as ironias dos pontos de vista
pagão e cristão. Por fim, vimos na visão da morte uma ironia do destino,
que por sua vez abre a perspectiva entre o trágico e o cômico. Para tal
investigação, utilizamos comentadores como Vergote, Farago, Politis,
Stewart e principalmente Reichmann. Dessa maneira, chegaremos ao
desfecho no qual Kierkegaard faz a transposição da realidade grega para a
atualidade do seu contexto, com a possibilidade do uso adequado de uma
ironia controlada.

Palavras-chave: Humor. Cômico. Destino.

Abstract: This article aims to make an analysis of Socratism in


Kierkegaard's Concept of Irony, for which we presuppose the value of irony
in antiquity and post-Socratic visions. We also seek to understand,
essentially, the relation between the philosopher and the ironies from the
pagan and Christian point of views. Finally, we saw in the vision of death
an irony of fate, which in turn opens the perspective between the tragic and
the comic. For such investigation, we use commentators like Vergote,
Farago, Politis Stewart and mainly Reichmann. In this way, we will arrive at
the outcome in which Kierkegaard transposes Greek reality to the actuality
of his context, with the possibility of proper use of controlled irony.

Keywords: Humor. Comic. Destiny.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 239-257.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
241

As ironias do conceito socrático em Kierkegaard


ROCHA, G.K.; SILVA, E. A.

INTRODUÇÃO

Eu representava a ironia da sociedade, o prazer da vida e o prazer mais


refinado, mas sem uma pitada de espírito “sério e positivo”; em
compensação, era extremamente interessante e mordaz
(KIERKEGAARD, 2002, p. 62).

No presente trabalho, procuraremos entender, analisar e discutir a ironia em


Kierkegaard (1813-1855), para isso recorreremos à obra O conceito de Ironia Constantemente
Referido a Sócrates de Søren Kierkegaard, obra essa que se trata de uma dissertação para a sua
titulação de mestre1 defendida em 1841 na universidade de Copenhague. No primeiro
momento, para o desenvolvimento deste trabalho, buscamos retomar a análise de
Kierkegaard dos textos de Xenofonte, Platão e Aristófanes, para tecer seu conceito de ironia
composto pela análise da vida e obra de Sócrates na busca da resposta do questionamento
de quem é o Sócrates kierkegaardiano? Logo depois, Kierkegaard recorre à Hegel, Fichte,
Schlegel, Tieck e Solger para tratar de outros aspectos de sua ironia, destacando o
romantismo pelo qual estes últimos autores citados são conhecidos por serem adeptos deste
estilo literário, contudo, não nos focaremos nessa análise, nos retendo mais ao ponto de vista
da antiguidade e o socratismo.
O entendimento a respeito da ironia em Sócrates é a base para a construção de sua
dialética que será desenvolvida em seu pensamento existencial. Em resumo, é possível dizer
que Sócrates mostra de que modo ele circunavegou todo o reino da inteligência e descobriu
que o pensamento da época era limitado por um oceano de conhecimento ilusório. Ilusão,
abstração e mito, ora, o abstrato arredonda-se com a Ironia.
Kierkegaard tenta apresentar a ironia de Sócrates não apenas como uma figura
estilística utilizada pelos literatos e filósofos, mas recriar o gênero como sendo a essência da
filosofia socrática. Segundo ele: “O conceito de ironia fez sua entrada no mundo com
Sócrates” (KIERKEGAARD, 1991, p. 23).
A ironia, por se tratar de um conceito ambíguo, dá abertura para várias interpretações,
especificamente por Kierkegaard, ela é tratada em sua obra como uma dualidade entre

1 Tal trabalho foi orientado por “Paul Martin Moeller [...][que] observou, depois, diretamente a K.: ‘você está
saturado de espírito polêmico, a um ponto incrível’”. Não era demais, como se pode ver, que ele pensasse numa
tese sobre o ‘conceito de Sátira nos antigos e a relação mútua entre os diferentes satíricos romanos’, abandonada
por outra ‘o conceito de ironia constantemente referido a Sócrates’, com a qual obteve o grau de ‘magister artium’,
equiparada em 1854 ao título de doutor” (REICHMANN, p. 255, grifo nosso)

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 239-257.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
242

As ironias do conceito socrático em Kierkegaard


ROCHA, G.K.; SILVA, E. A.

fenômeno e conceito, o sério e o jocoso, o real e o ideal, o interior e o exterior. Há


precedência para as mais diversas interpretações da ironia, na ocasião de sua publicação, a
tese de Kierkegaard foi entendida como uma investigação repartida em duas partes, onde na
primeira parte se tratava de Sócrates e na segunda do romantismo.
Sendo essa uma situação que pode causar muita confusão de entendimento ao leitor,
a ironia em Sócrates podia ser interpretada de forma equivocada. Nisso, por muitas vezes, a
ideia de ironia podia ser vista como um deboche, sarcasmo ou desprezo no qual haveria
intenção unicamente de desprezar ou humilhar alguém. Contudo, Sócrates “tendo visto com
ironia através das vaidades da finitude chegou às ideias eternas do belo, do verdadeiro e do
bem... A ideia do bem... torna-se ponto de partida para a filosofia de vida ética de Sócrates”
(KIERKEGAARD apud GOUVEIA, 2006, p. 258)2
A ironia de Sócrates está relacionada com seu método de diálogo, pelo qual a
mediação dos questionamentos, fazia vir à luz a consciência de ignorância entre os
interlocutores de Sócrates. Seus ouvintes, tendo passado pelo método da maiêutica, ou seja,
pela arte de perguntar, tinham nessa ação a expressão exata do método de filosofar irônico.

A ironia é vista como um evento que ocorre no âmbito do discurso ou,


em outras palavras, a ironia pertence ao discurso. Mas isso é precisamente
o que Kierkegaard rejeita. Sobre os conceitos de ironia, ele se esforça para
afastar a ironia do discurso, revelando-o como o fenômeno que diz
respeito a toda a existência pessoal de um indivíduo ou, em outras
palavras, como ação ética (OUBINHA, 2013, p. 93).

Nesse contexto da diferença ética de Sócrates, sabemos que ao contrário dos sofistas,
ele não só valorizava a conversação, mas na própria reflexão filosófica do que consiste a ação
de falar e ouvir, locutor e interlocutor estariam unidos na construção do saber. Sócrates
valorizava a troca, e nesse processo de perguntas e respostas era feito o parto da própria
consciência de si, do reconhecimento de sua ignorância quanto ao nada condicional do saber.
Sua ironia tem consistência no dizer que “nada sabe”, o que mostra um exemplo da
subjetividade. Para Kierkegaard, a ironia, mais do que qualquer outro efeito de sentido
produzido, só se consubstancia na subjetividade. É neste sentido que Kierkegaard viu o

2 Por se tratar de uma referência dos Journals and Papers IV, nota 696 e pela dificuldade em referenciar essas
citações preferimos mantê-la como apud.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 239-257.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
243

As ironias do conceito socrático em Kierkegaard


ROCHA, G.K.; SILVA, E. A.

diálogo socrático como a matriz do método irônico. Sendo a ironia de grande importância
para o processo de construção de seu conceito de subjetividade.
Ainda contrapondo aos sofistas que tinham a prática da oratória como se “fosse uma
profissão”, Sócrates nada deixou escrito, pois, para ele, o escrever já seria uma forma de
bloquear ou estagnar o conhecimento vivo. Até porque, quem lê um texto tem acesso ao
conhecimento de alguém, mas na ação de interpretá-lo, já o modifica. Sócrates era tão zeloso
com seu conhecimento, que no ato a maiêutica já corrigia interpretações hermeneuticamente
erradas dos assuntos tratado por ele e seus interlocutores. Assim, é possível dizer que a ironia
é uma força negativa a serviço de uma ideia positiva, mas para que ela exista entre essas duas
funções contraditórias, é preciso que seja um gesto que anule a si mesmo, ou mesmo que
desacredite aquilo mesmo que se defende. Por isso, é a opção do nada socrático, do saber
que nada sabe a melhor opção que emerge dessa ironia antiga.

A ZONA LIMITE DA IRONIA

Que é, pois, a ironia se se quiser chamar Sócrates de ironista e não como


Magister Kierkegaard (Em sua dissertação sobre ‘O conceito de Ironia’ de
1841) ao colocar em relevo consciente ou inconscientemente, senão, um
só aspecto? A ironia é a unidade da paixão ética, que acentua, infinitamente
na interioridade o próprio eu, em relação à exigência ética
(KIERKEGAARD apud REICHMAN, 1963, p. 154).

O título da zona limite da ironia está presente como um dos subtópicos da obra
Postscriptum. Retomamos essa expressão, pois vamos nos valer de algumas referências dessa
relação entre ironia e humor como pressuposto da suposta passagem entre ironia e ética,
contudo, não é nosso objetivo no presente artigo fazer uma análise mais minuciosa do
humor.
A dualidade presente no pensamento de Kierkegaard está presente na oposição entre
pensamento e palavra, a ironia é, nesse contexto, uma determinação da subjetividade que
leva em conta o indivíduo na sua tarefa de se tornar um ser livre, seja no pensamento ou na
existência. Nesse processo, que consiste em dizer o contrário do que pensa “O fenômeno
não é para manifestar a essência” (KIERKEGAARD, 1991, p. 204), mas, sim, ocultá-la,
mesmo que a essência se identifique com o fenômeno. A ironia dessa constatação é que o
caráter irônico, na qual a ironia supera a si mesma, também anula a si mesma, na espera da

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 239-257.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
244

As ironias do conceito socrático em Kierkegaard


ROCHA, G.K.; SILVA, E. A.

resposta que já se sabe, mas que muitas vezes não importa. Um exemplo disso, é o dizer o
que se pensa em tom sério o que normalmente não é pensado seriamente, e, vice-versa,
sempre pelo lado irônico. Contudo, isso não era visto como algo “bom” pelos interlocutores
de Sócrates, o que leva a crer que, por esse motivo, Kierkegaard entendia a subjetividade da
ironia de Sócrates como negativa.

A ironia socrática [...] é apresentada como um poder de aniquilação


absoluta que não dá nada e, portanto, não deixa nada para trás. Não existe
“ideia positiva”; nada permanece após a “infinita negatividade absoluta”
da ironia, nem mesmo o ironista, que está longe de “controlar” o poder
da negatividade (OUBINHA, 2013, p. 95).

Assim, a ironia de Sócrates é manifesta na relação da palavra (fenômeno) se


posicionando em oposição ao pensamento (essência). Vale dizer que no jogo irônico, o
sujeito é negativamente livre, pois se o seu enunciado não corresponde ao seu pensamento,
este vai sendo, pois, distorcido do sentido imediatamente pretendido. Então, é nesse
movimento que se verifica até mesmo uma maior complexidade entre a afirmação de que o
ser é o pensar. Já que essa forma de filosofar se trata do jogo de movimento infinito com a
realidade, é nesse ponto onde consistia a medida em que Sócrates fingia ser ignorante no
intuito de ensinar os outros e combater os sofismos, arruinando, indiretamente, a ordem
existente. O “fingir saber quando se sabe que não sabe como fingir não saber quando se sabe
que se sabe” (KIERKEGAARD, 1991, p. 218).
O conceito de jogo, bem como o próprio ato de jogar, de se envolver na dialética de
forma esperta e eficaz na busca pelo desenvolvimento da verdade, é fundamental, visto que
o jogo é envolvente e fascinante, é um convite a adentrar dentro do ‘cubo chinês’
kierkegaardiano. Este que se coloca sempre como um jogador em seus textos. No jogo de
“esconde-esconde” que consiste em sair para procurar os esconderijos dos outros jogadores,
se colocando como eles heteronimicamente, exige-se de quem procura estratégias para sair
do labirinto, também a ação de se esconder, de forma que possa se observar e esperar
qualquer movimentação dos adversários, e assim seja possível encontrar uma pista para
encontrar seus esconderijos. Essa brincadeira de criança representa bem o jogo da dialética
irônica de Kierkegaard, uma brincadeira que é levada à sério, pois é na verdade um jogo sobre

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 239-257.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
245

As ironias do conceito socrático em Kierkegaard


ROCHA, G.K.; SILVA, E. A.

a seriedade3. Na medida em que é possível descobrir ou desenvolver estratégias para entender


o pensamento de sua subjetividade, que é tão exposta quanto escondida, em seus textos com
seus vários autores fictícios ou não que se apresentam no texto.
Sobre linguagem irônica Kierkegaard diz: “Quanto mais a ironia se fizer onipresente,
mais livre e poeticamente o poeta flutuará suspenso sobre sua obra poética, a ironia liberta
ao mesmo tempo a poesia e o poeta” (KIERKEGAARD, 1991, p. 275). Ressalta ainda o
autor dinamarquês: “O que às vezes custa tempo ao irônico é o esmero que ele emprega para
vestir a roupagem correta, adequada à personagem que ele mesmo inventou de ser. Neste
aspecto o irônico entende do assunto e possui um lote considerável de máscaras e fantasias
à sua livre escolha” (KIERKEGAARD, 1991, p. 244).
Pelo que foi até aqui discutido, entende-se que o conceito de ironia de Kierkegaard
se redimensiona entre a palavra e a poética transformando a escrita em um instrumento de
rebeldia e libertação, perante seus questionamentos de ser no mundo. É importante ressaltar
que existem interpretações que desclassificaram a ironia kierkegaardiana como uma ação
especulativa, justamente pelo seu caráter descontrolado. Contudo, é preciso distinguir que
em sua paródia hegeliana de uma infinita absoluta negatividade, sua ironia sensu ementiori se
apresenta aparentemente a ironia como infinita, mas não é em si uma infinitude que trata a
subjetividade, mas sim da negatividade absoluta. Ou seja, da forma que a ironia controla a
retórica sofistica e a lança para o nada, cancelando o intuito de “tudo” saber.
A dualidade presente no pensamento de Kierkegaard está presente na oposição entre
pensamento e palavra, levando o indivíduo a se tornar um ser livre, mas que não é a
consequência de uma ação “boa”, mas sim da formação autêntica da sua subjetividade. Para
Kierkegaard a subjetividade da ironia de Sócrates é negativa e é positivada na formação da
autenticidade, por sua maneira peculiar e genuína de construir sua singularidade, é aí que se
aproxima do humor cristão.

O que justifica o humor é justamente seu lado trágico, sua reconciliação


com a forma, cujo desespero, se bem não conheça nenhuma saída, quer
fazer abstração. A ironia é justificada diante do imediato porque o

3 “Kierkegaard diz que a edificação é seriedade (Alvor), isto é, um cuidado com a realidade, pois a realidade
concreta se dá com a relação com o próximo, e nisso o indivíduo mostra que na sua relação com a subjetividade
há uma grande importância da maneira como o outro influencia a edificação desse indivíduo. Logo, muitas
vezes o sujeito tenta se libertar dos paradoxos entre sua maneira de se conceber no tempo e as assujeitações
que recebe da sistemática das inter-relações, de forma que se mostra necessário exercitar-se na tarefa do tornar-
se” (ROCHA, 2015, p. 633).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 239-257.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
246

As ironias do conceito socrático em Kierkegaard


ROCHA, G.K.; SILVA, E. A.

equilíbrio não enquanto abstração, mas enquanto arte de existir, é mais


elevado que a imediação. Uma ironia total, válida uma vez por todas, como
uma ideia a preço mostrada no papel é, como toda abstração, justificada
diante de cada esfera da existência. Com efeito, a ironia é uma abstração e
uma conexão abstrata, mas a justificação do ironista existente consiste no
fato de que exprime existindo o que vive em seu interior.
(KIERKEGAARD apud REICHMANN, 1963, p. 162).

Separados por quatro séculos um do outro, tanto o Cristo como Sócrates foram
incumbidos de promover a bondade e a verdade levando as pessoas a refletirem sobre as
suas ações se eram boas, verdadeiras ou não. Cristo, por sua vez, ministrava pessoas na
intenção de conduzi-los a seguirem o caminho da salvação de suas almas. Ambos buscavam
uma reflexão onde as pessoas pudessem examinar a si mesmas, Cristo e o cristianismo estão
ligados a ideia de humor e Sócrates evidentemente à ironia.

Não se pode perceber o humor até nas palavras do Nazareno, quando


afirma haver mais alegria no céu por um pecador que se arrepende do que
por noventa e nove justos que não necessitam de penitência? Se podemos
reconhecer o humorista pelo sorriso velado de tristeza, é pelo fato de
haver um sofrimento escondido por trás do humor, sofrimento não
provém de nenhuma causa exterior, mas é inerente ao próprio fato de
existir (FARAGO, 2006, p. 40-41).

Uma aproximação dessa questão está em como o indivíduo encara a morte. No


diálogo de Fédon ou Eutífron4 de Platão, é possível entender Sócrates na ocasião de sua morte,
o entendimento de sua reflexão sobre a alma e a morte. Embora não tivesse certeza da
imortalidade da alma, nutria a esperança de uma vida após a morte que fosse melhor às
pessoas justas do que para as más, Sócrates, estava convencido de que sua missão tinha
encerrado, negando o desejo de seus discípulos de fugir de sua sentença.

No Novo Testamento, Cristo é retratado em confronto com escribas e


doutores da lei conhecidos como fariseus, que insistiam na estrita
observância das práticas e cerimônias religiosas. Em estudos comparativos

4 Pode-se ver uma ironia clara nesse diálogo, quando “Sócrates vai ao tribunal em Atenas para cuidar dos
trâmites do processo movido contra ele, e lá encontra Eutífron, um conhecido. Os dois se saúdam e perguntam
um ao outro que assuntos os levam ao tribunal. Para o espanto de Sócrates, Eutífron explica que está
processando seu próprio pai. Nem é preciso dizer que isso é muito incomum, especialmente na Frécia antiga
onde o respeito filial era um valor consagrado. Sócrates percebe imediatamente a óbvia contradição [...] mas
em vez de apontar essa contradição, ele finge presumir que deve haver algo que ele não entendeu e que Eutífron
deve ter algum conhecimento especial sobre esse assunto” (STEWART, 2017, p. 29, tradução nossa).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 239-257.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
247

As ironias do conceito socrático em Kierkegaard


ROCHA, G.K.; SILVA, E. A.

como o de Baur5, frequentemente se traçava um paralelo entre o conflito


de Cristo com os fariseus e o conflito de Sócrates com os sofistas. [...] Aqui
a conexão é clara: Sócrates é como Cristo, e os sofistas são como os
fariseus. Assim, apesar de Sócrates ser um filósofo pagão, ele apresenta
alguns importantes pontos em comum com a mensagem de Cristo que
Kierkegaard crê que foram esquecidos (STEWART, 2017, p. 133,
tradução nossa).

Cristo, por sua vez, ao ser condenado a morte, não se recusou a enfrentar a tal morte,
mas a aceitou, como sendo morte redentora a todos seus discípulos. Ao contrário de
Sócrates, que tinha certeza da imortalidade da alma e na existência de um lugar melhor, onde
todas as almas poderiam encontrar descanso.

AS IRONIAS DO SOCRATISMO

Basta dizer que, como alguém profundamente influenciado pela visão de


Hamann6 sobre Sócrates, Kierkegaard apresenta a ironia socrática como
os primórdios da base para a evolução do diálogo entre positividade e
negatividade, exterioridade e interioridade, do sujeito e da linguagem
(SILVA, 2013, p. 107).

Para compreender a visão de Sócrates da ironia, já que este não deixou nada escrito,
Kierkegaard fez um minucioso estudo hermenêutico nos escritos das principais referências
escritas de Sócrates: Platão, Xenofonte e Aristófanes. Na procura de distinguir o que é
essencialmente socrático nesses autores, e sobre a sua filosofia irônica, buscou-se fazer uma
análise da ironia de Sócrates.
De acordo com Kierkegaard, a visão de Xenofonte7 de Sócrates aparece sempre em
uma diferença frente aos livros sinóticos dos evangelhos, pois eles retratam de maneira real

5 A obra de citada é do teólogo alemão Ferdinand Christian Baur Sobre o cristianismo no platonismo: Sócrates e Cristo
de 1837.
6 Não vamos nos concentrar nessa investigação, visto que a tese da Prof. Ilana do Amaral já fornece muitas

pistas, nesse sentido, ela mesma afirma que “Sobre a distinção entre o humor de Hamman, esta negatividade
cuja vitalidade lhe permite [...] apropriar-se ‘da ideia’ de ‘modo subjetivo’ e a ironia” (AMARAL, 2008, p. 154).
A autora quer dizer que mais ainda do que um socratismo de Hamman, Kierkegaard também herda a relação
da ironia com o humor.
7 “Nem poeta nem filósofo, Xenofonte não vê a menor diferença entre o exterior e o interior, entre a forma e

o conteúdo da mensagem socrática, e se agarra à vida prática em suas manifestações visíveis” (POLITIS, 2009,
p 67, tradução nossa).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 239-257.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
248

As ironias do conceito socrático em Kierkegaard


ROCHA, G.K.; SILVA, E. A.

e fiel a existência de Cristo. Já em Sócrates, só foi perceptível sua maneira de existir através
da verbalização (fala para que eu te veja - loquere ut videam te). Com suas palavras, Sócrates só
se deixava ser mal compreendido enquanto transmitia sua vida através de sua subjetividade.
Esse fato pode ser o motivo pelo qual Xenofonte comete grandes erros. A intenção
de Xenofonte de querer desmistificar a imagem da ameaça política que Sócrates representava
um não aprofundamento na sua filosofia, e, desvalorizando a prática da conversação adotada
por Sócrates, no tocante a isso, pode ser considerada superficial. Xenofonte não dá atenção
aos diálogos e a construção de réplicas que são de importância crucial ao sentido da
conversação. Kierkegaard criticou Xenofonte por este ter feito uma interpretação empírico-
histórica de Sócrates, na qual suas interpretações tornaram o Sócrates “Bom”, ou seja, tiraram
toda malícia de Sócrates.

Pois Xenofonte o defende de tal maneira que Sócrates se torna não


apenas inocente, mas completamente inofensivo, de modo que a
gente fica profundamente assombrado, perguntando-se qual
demônio teria enfeitiçado a tal ponto os atenienses que eles puderam
ver nele mais do que um sujeito bonachão, conversador e
engraçado, que não fazia mal nem bem, que não prejudicava a
ninguém, e que no fundo do coração só queria bem a todo mundo,
contanto que quisessem escutar a sua conversa fiada
(KIERKEGAARD, 1991, p. 28).

Para Kierkegaard, essa visão de Sócrates o prejudicou, pois tirou toda complexidade
e subjetividade da filosofia e de certa forma também tirou dele o mérito de ter sido um
Filósofo que foi acusado de “corromper a juventude”. Em outras palavras, tiraram dele o
mérito de ter feito vir à luz da verdade aos atenienses e de o ser também o pai da ironia. Por
isso, Kierkegaard até se aproximou de Hegel8 em sua forma de entender a ironia de Sócrates.
Contudo, se Kierkegaard considerou o texto de Xenofonte insuficiente para compreender
Sócrates, é porque era preciso ter uma atenção melhor ao texto de Platão e Aristófanes.

Aristófanes, ao mostrar a idealidade em seu ângulo negativo, não a


apresenta simplesmente como o outro lado da idealidade platônica
positiva. O negativo Aristófanes é mais drástico. Aos olhos de
Kierkegaard, o Sócrates sofísticos de As Nuvens, longe de ser um vago
esboço do Sócrates amigo da Ideia, aparece como um indivíduo solitário

8“A ironia é - como dizia Hegel em quem Kierkegaard se inspira neste ponto - a concentração do eu no eu
para o qual todos os vínculos estão rompidos, condenado a viver no gozo vão de seu próprio nada” (FARAGO,
2006, p. 40).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 239-257.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
249

As ironias do conceito socrático em Kierkegaard


ROCHA, G.K.; SILVA, E. A.

dobrado sobre si mesmo, cuja arma não é a dialética filosófica (ou


especulativa) unificadora, mas a dialética estrita negativa que ordena e
divide. O Sócrates de Aristófanes, sendo mais rude do que os sofistas, é
assim o supremo sofista. Ele é dotado de uma inteligência abstrata, neutra
em relação ao bem e ao mal. Deste modo, a compreensão e a vontade são
dissociadas em favor da possibilidade indiferente. Ele não se afasta de uma
neutralidade inteligente em relação ao bem e ao mal, embora uma vontade
corrupta possa facilmente tornar essa inteligência sua cúmplice ativa. No
entanto, mesmo neste pensamento socrático-aristofânico o burlesco e
perturbador, permanece-se no contexto grego ou o “pecado” é ignorância
(portanto, não é pecado) (POLITIS, 2009, p. 87, tradução nossa).

Como Platão, Aristófanes também faz uma captura ideal de Sócrates, só que de modo
invertido, Platão é de uma idealidade trágica, Aristófanes é cômica, enquanto o personagem
platônico idealiza a sua exaltação, o Sócrates aristofânico idealiza a sua depreciação.
Kierkegaard diz: “Platão e Aristófanes têm, então, isto em comum: suas exposições
são ideais, mas em relação recíproca, inversa, pois Platão tem a idealidade trágica e,
Aristófanes a cômica” (KIERKEGAARD, 2006, p. 109).
Tratando-se de um poeta e de um bom humorista, Aristófanes tinha por intenção
sarcástica ridicularizar Sócrates. Na peça de teatro As Nuvens, escrita por Aristófanes,
Sócrates é apresentado como o principal líder dos Sofistas, opondo-se a Platão que o
apresenta como alguém que é contrário aos hábitos sofistas, nele há a idealidade trágica,
heroica, configurando uma imagem positivamente ideal; Aristófanes habita a idealidade
cômica, caricatural, desenhando um Sócrates negativamente ideal. Na obra, Sócrates aparece
como sendo de caráter duvidoso, trapaceiro, esperto, um sofista ateu9 e blasfemador que
abusa da credulidade dos seus alunos fazendo-os dissertar sobre assuntos mais fúteis que os
deuses, mesmo se tratando do céu, daí o nome As Nuvens.

Como sabemos, Platão, Xenofonte foram ambos alunos de Sócrates e


escreveram diálogos nos quais apresentaram seu amado professor como
principal interlocutor. Já Aristófanes fez paródia de Sócrates de maneira
humorística na comédia As nuvens. Ao comparar e contrastar essas fontes
antigas, Kierkegaard pretende chegar à imagem verdadeira de Sócrates. A
perspectiva que Kierkegaard constantemente realça ao longo de sua análise
é a de que Sócrates não tinha nenhuma doutrina ou teoria filosófica, mas
simplesmente refutava o que outros diziam, sem apresentar qualquer
alternativa construtiva. Nesse sentido, Sócrates representa uma força
negativa e destrutiva. Kierkegaard não quer dizer que Sócrates é negativo
no sentido que usamos hoje para nos referirmos a alguém que tem um

9“Quanto a Sócrates ser um ateu que rejeitava os deuses do Estado, Kierkegaard alega que isso foi baseado em
um mal-entendido” (STEWART, 2017, p. 77, tradução nossa).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 239-257.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
250

As ironias do conceito socrático em Kierkegaard


ROCHA, G.K.; SILVA, E. A.

temperamento negativo, isto é, pessimista. Sócrates é negativo porque


solapa a posição dos outros, mas ele mesmo se recusa a apresentar uma
tese ou doutrina positiva (STEWART, 2017, p. 26, tradução nossa).

Para Kierkegaard, a intenção por detrás da idealidade cômica reside na comparação


entre o ideal e o empírico. Na comédia, o ideal consiste no dado proposto pela sociedade e
a contradição a respeito da realidade de um Sócrates sofista.

Conceber apenas a realidade empírica de Sócrates, apresentá-lo na cena tal


qual ele era na vida teria estado abaixo da dignidade de Aristófanes e teria
transformado sua comédia num poema satírico; por outro lado, idealizá-
lo numa tal medida que ele afinal se tornasse irreconhecível teria ficado
completamente fora do interesse da comédia grega. Que esta segunda
hipótese não ocorreu, a própria Antiguidade nos testemunha, pois ela
relata que apresentação d’as Nuvens foi honrada com a presença do crítico
que neste mundo era o mais rigoroso, o próprio Sócrates, o qual, para
diversão do público, levantou-se durante a apresentação, a fim de que a
multidão reunida no teatro pudesse convencer-se da semelhança devida
(KIERKEGAARD, 1991, p. 109).

Na obra As Nuvens, o velho Senhor Estrepsíades que por um casamento insensato e


por ter um filho extravagante se ver mergulhado em dívidas. Na intenção de desenvencilhar-
se dos credores, Estrepsíades se matricula na escola de Sócrates, a fim de aprender as
artimanhas dos sofistas pelo poder da persuasão, porém, logo desiste das aulas, por não
conseguir compreender os ensinamentos de Sócrates. Mas convence seu filho Fidípides a
assistir às aulas do Sábio Sócrates.
No entanto, o pai se arrepende disso, pois Fidípides se envaidece por possuir uma
dialética aprendida com o mestre Sócrates. Estrepsíades ao ser levado ao tribunal, com toda
esperteza de Fidípides, relativiza o que é considerado moral, convence aos juízes de que
Estrepsíades é inocente. No entanto, Fidípides por ter se tornado o verdadeiro “sofista” já
não olha o velho pai com respeito, mas o desafia, e, assim, se volta contra o pai chegando a
agredi-lo, sob a justificativa de que isso era justo.
Indiretamente Aristófanes sublinhou um Sócrates com belezas, alegria e harmonia,
na busca de tratar de suas virtudes e defeitos de maneira cômica e lúdica, mostrando, como
o brilhante pensador, Sócrates, conseguiu chegar às conclusões, quebrando preconceitos,
para o desenvolvimento do pensamento e da reflexão.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 239-257.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
251

As ironias do conceito socrático em Kierkegaard


ROCHA, G.K.; SILVA, E. A.

Para Kierkegaard, o trágico e o cômico10 são representações do negativo, presentes


no fenômeno, o negativo representado na tragédia como poesia e na comédia como ironia.

Com Xenofonte pode-se por isso de bom grado admitir que Sócrates
gostava de perambular e falar com todo tipo de gente, porque qualquer
coisa ou evento exterior serve de pretexto ou ocasião para aquele irônico
que tem sempre uma resposta pronta; com Platão, pode-se de bom grado
deixar Sócrates tocar a ideia, só que a ideia não se abre para ele, sendo,
pelo contrário, um limite. Cada um desses dois apresentadores procurou,
naturalmente, completar o que faltava em Sócrates. Xenofonte puxando-
o para baixo até as rasteiras do utilitário, Platão elevando-o até as regiões
supraterrestres da ideia. Mas o ponto que se situa no meio, imperceptível
e extremamente difícil de fixar é a ironia [...]. A ironia oscila entre o eu
ideal e o eu empírico; um faria de Sócrates um filósofo; o outro, um sofista;
mas o que o faz ser mais do que um sofista é o fato de que seu eu empírico
tem validade universal (KIERKEGAARD, 1991. p.108).

Kierkegaard questiona até onde a filosofia é de caráter socrático ou platônico, mesmo


admirando Platão como um grande discípulo de Sócrates, se faz necessário, diferenciar o que
seria o socrático e platônico. Embora Kierkegaard critique a Platão, prefere a sua visão de
Sócrates que a dos outros, pois Platão compreende melhor a questão de dialética e
subjetividade de Sócrates. Platão se distingue de Xenofonte, fundamentalmente pela
idealidade, enquanto Xenofonte é empírico-histórico, Platão é poético, eleva Sócrates à
condição de um messias do pensamento.
Para falar da visão filosófica de Platão sobre Sócrates de maneira mais detalhada
recorreremos a Apologia de Sócrates, que conta como foi sua condenação à morte que concerne
à análise de Kierkegaard.

A IRONIA DO DESTINO

Na Apologia, Kierkegaard absorve a intencionalidade irônica como método de


conversação, de modo que, a ideia de dialética aparece como realidade, como ponto de vista

10É possível que o cômico seja a correta representação da ironia em relação ao humor, por essa via, Kierkegaard
esclarece que “a lei do cômico é bem simples: existe por toda parte onde há contradição e onde a contradição
não é dolorosa pelo fato de que se vê que ela é suspensa, pois se o cômico não suspende a contradição (ao
contrário, ele a torna manifesta) ao menos o cômico justificado é capaz disso” (KIERKEGAARD apud
REICHMANN, 1978, p. 163).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 239-257.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
252

As ironias do conceito socrático em Kierkegaard


ROCHA, G.K.; SILVA, E. A.

de “estado espiritual”. Platão apresenta Sócrates como jocoso, mesmo em meio a sua
condenação, vive por ironizá-la até mesmo diante da morte. É como se a ironia cantasse sua
liberdade e dissesse “a tudo irei ironizar, incluso minha própria acusação”.

Não há dúvida, porém, que a ironia constantemente referida a Sócrates


ensina ser processo começar aprendendo a se conhecer a si mesmo. Este
é o preceito ao qual toda outra conquista deve ser subordinada. As
opiniões, as crenças, as concepções dos outros, tudo aquilo que recebemos
através da educação, desde a mais tenra infância, tudo isto deve passar
diante do tribunal da autenticidade da vida interior, porque a ironia mais
terrível, a ironia da vida alcança sempre aquele que não se encontrou a si
mesmo, contaminando com a incerteza todos os seus empreendimentos
ou, ao contrário, fazendo-lhe constantemente sentir um contentamento
indébito consigo mesmo ou, então, um desespero desmesurado que nada
justifica (FARAGO, 2006, p. 40-41).

A ironia presente em Sócrates, ao se posicionar a procura de um alguém que fosse


mais sábio que ele para provar que o oráculo estava errado, o coloca no fenômeno em que a
ironia dá a entender que o próprio oráculo tenha feito Sócrates procurar esse “Sábio”,
provando, assim, que o oráculo é irrefutável. E Sócrates fica então no que é chamado de
negativo.

É por isso que é importante reservar ao termo abstrato “Sócrates


socrático” o negativo (que sempre implica uma relação com o positivo, se
este último é determinado ou ainda indeterminado) do que é para o
Sócrates de Platão ou, melhor, para o discurso platônico em algumas de
suas ocorrências. De fato, assim como o mítico pode às vezes, como
aparece nos primeiros diálogos, ser “a indicação de uma especulação mais
abundante”, então o negativo pode ser o índice de um positivo que
prepara ou para o qual ele convida; mas o resumo se abre para nada além
de si mesmo, em uma “infinita transparência desprovida de forma”
(POLITIS, 2006, p. 81, tradução nossa).

Qual é a relação da ironia e a morte? Na ocasião de sua própria condenação, é a mesma


postura diante da morte e do amor. Sócrates se utiliza da morte como uma oportunidade
para reflexão. Como pode Sócrates de forma tão corajosa enfrentar a morte? Seria velhice
ou a desilusão, não tinha nada a perder? Sócrates encara a morte como sendo algo que vem
a ele de modo natural e não algo por ocasião de sua condenação, sentença, que ele mesmo
poderia tentar reverter. O ápice de seu legado, como o encerramento de sua carreira, como
que sua missão já tivesse sido encerrada. Sócrates não teme a morte visto que não a conhece,

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 239-257.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
253

As ironias do conceito socrático em Kierkegaard


ROCHA, G.K.; SILVA, E. A.

neste sentido, ela vem a ser algo positivo; o irônico sente-se bem com isto, acostumado que
está a aporia como pathos da ideia; mas sente-se bem, sobretudo, por encontrar o ponto crítico
perfeito para sua própria concepção filosófica na qual a morte é um resultado positivo de
todo o aspecto negativo da ausência de sentidos a priori da vida. É um momento que sua
filosofia serve para provar o problema da existência, daí então à medida que supera as
limitações empíricas e as contingências.
Enfim, a Apologia é uma grande demonstração irônica de Sócrates. Pois ali se
transforma a sua acusação em um Bem, a morte em um Favor, e, por fim, a própria
condenação como um desígnio de Deus. Redistribuindo todos os papéis atenienses, todos
os valores morais e jurídicos, transformando toda a situação presente na sua grande provação
filosófica. Sócrates diz:

Vejamos a coisa também deste ponto, pelo qual tenho grande esperança
que morrer seja um bem. Morrer é uma destas duas coisas: ou não ser mais
nada e quem morreu não tem sentimento de mais nada, ou ainda, como
dizem alguns, é uma espécie de mutação e de migração da alma deste lugar
para um outro. Ora, se morrer equivale a não mais ter sensações e é como
um sono sem sonhos, é um ganho maravilhoso, a morte. [...] por outro
lado, se a morte é como a mudança daqui para um outro lugar e se é
verdade que nesse lugar, como contam, podem ser reencontrados todos
os mortos, qual bem, ó juízes, poderá ser maior que este? (PLATÃO, 1980,
p. 26-27).

Nisto vemos a relação que existe entre ironia e morte Sócrates, que não é dizer que o
absoluto é um elemento mortífero, sobre isso Sócrates diz:

[...] todo o longo discurso que acabo de fazer para vos demonstrar que, ao
beber o veneno, não permanecerei convosco, mas que vos deixarei e irei
gozar felicidade e bem-aventurança, parece-me ter sido inútil para Críton,
com se não houvesse falado mais para consolar-vos e a mim (PLATÃO,
1977, p. 174-175).

A verdade é que a morte é o limite do negativo, e como a morte é o único destino 11


certo de todo ser humano, só é possível fazer do filosofar um aprender a morrer com algum
retoque de ironia.

11 “Ao fazer do Destino um poder quase externo que reina sobre o significado, é fácil ver - e o exemplo da
tragédia está lá para mostrar - que uma posição é irônica naquela que acentua a ambiguidade dos fenômenos e
que nunca tenha a sensação de que concedemos o sentido pela primeira vez” (VERGOTE, 1983, p. 378).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 239-257.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
254

As ironias do conceito socrático em Kierkegaard


ROCHA, G.K.; SILVA, E. A.

Um tal sono da alma e um tal nada só podiam mesmo agradar mais do que
qualquer coisa o irônico, que possui aqui, aliás, o absoluto à relatividade
da vida, mas um absoluto tão leve que ele não tem dificuldades para
segurá-lo, dado que o possui sob a forma do nada (KIERKEGAARD,
2006, p. 79).

No fim da vida de Sócrates, a ironia é consumada, pelo diálogo Fédon é possível retomar
a ironia, finalmente, quando se vence a morte como um castigo, e se entende como uma
libertação, isso é o “positivo”. Sócrates é irônico antes de morrer, ao pedir a Críton para que
este pagasse o galo à Asclépio, dando fim ao seu ‘drama’. Nietzsche, por exemplo, interpretou
que nesse pedido houve uma valorização negativa da vida pelo ponto de vista filosófico, pois
dar um galo a Asclépio significava render-lhe homenagem pela cura: Sócrates estava, enfim,
curado da vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A curta seção final de O conceito de ironia é intitulada “A ironia como um


elemento controlado, a verdade da ironia”. Essa seção tem gerado muita
controvérsia na literatura secundária. Ela parece ser a apresentação de
Kierkegaard de sua própria perspectiva sobre o uso adequado e apropriado
da ironia. Era impossível para Kierkegaard retornar à antiga Atenas e usar
a ironia do mesmo jeito que Sócrates usava, já que o contexto histórico e
cultural mudou radicalmente desde aquela época (STEWART, 2017, p. 27,
tradução nossa).

O presente artigo, pretendeu estabelecer um estudo ironicamente hermenêutico, ou


melhor, existencial, sobre Sócrates, e, com isso, nos deparamos em vários aspectos com a
possibilidade ética da ironia. Em termos teóricos, conseguimos perceber que entre as várias
facetas da ironia há uma abertura para o humor e o cômico. Apesar de não nos
aprofundarmos nessa questão, sabemos que o cômico, tem um aspecto, uma expressão
sofística de uma abstração pura que tende a destruir o sério [Alvor].
Por conta dessa questão, é bom relembrar mais uma vez o que a ironia tem em relação
com a seriedade.

Se a ironia é a brincadeira por trás da seriedade, designando ao finito aos


seus exatos limites, a sua relatividade, o humor é para aquele que logo se
habituou a dissimular a melancolia sob uma euforia fingida, a seriedade
por trás da brincadeira. Mas o humor surge igualmente naquele que

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 239-257.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
255

As ironias do conceito socrático em Kierkegaard


ROCHA, G.K.; SILVA, E. A.

contempla a realidade em todas as suas contradições (FARAGO, 2006, p.


40-41).

Segundo Henri Vergote, em seu Tomo II de Sens et Repetition, dentro dessa querela da
antiguidade de uma ironia e de uma comicidade que varia entre os sofistas e os socráticos,
foram os socráticos menores, principalmente os cínicos que melhor absorveram o legado
socrático de converter a ironia em humor, ainda que de maneira pagã, liberando do fenômeno
um novo modo de leitura do sentido. “É certo que, além dos cínicos e outros ‘pequenos
socráticos’, vimos na ironia, apenas essa mudança de perspectiva que faz do indivíduo o lugar
onde o divino e o significado de mundo acontecem” (VERGOTE, 1982, p. 378, tradução
nossa). Desse modo, podemos concluir que há muito ainda que se investigar acerca das
relações filosóficas entre a ironia na antiguidade, cristianismo e modernidade, evidentemente,
por meio da apreensão na filosofia kierkegaardiana.
Como uma estratégia final de arguição, podemos fazer uma ponte entre o que Hélène
de Politis e Jacob Hownland traçam da importância espiritual da ironia na relação
Sócrates/Cristo. Para Politis, é preciso encontrar as determinações viáveis da ironia, na qual
a ironia socrática é a descoberta da subjetividade abstrata, inseparável da moralidade e das
normas éticas numa perspectiva da ironia como fenômeno social da linguagem. Nessa
ultrapassagem da ironia ou, melhor, esse deslocamento da ironia ao humor implica uma
compreensão sem precedentes de relações entre o ideal e o real, entre o infinito e o finito,
entre ser e o assunto. Esta é a compreensão autenticamente kierkegaardiana. A ironia é a
ruptura com a adesão às convenções. O mais importante é sempre se lembrar de rir de si e
do mundo, e, com essa alegria enfrentar a tragicomédia da vida. Tanto que Politis afirma que

Grande como era a sua dissimilaridade, Cristo e Sócrates tinham este


ponto é comum: nenhum deles escreveu, mas suas vidas foram fonte de
múltiplas exegeses. Kierkegaard que, a fim de melhor tomar a medida de
sua fé cristã, com a rigorosa peneira do paganismo, fez da ironia socrática
a pedra de toque (não o critério) de discurso verdadeiro, foi no sentido
forte desta palavra um escritor ou, melhor ainda, um escrito (POLITIS, 2006,
p. 14, tradução nossa).

Já Jacob Hownland pode nos fornecer uma conclusão para estudos e


aprofundamentos futuros que complementa essa ideia de Hélène Politis, quando coloca a
ironia do destino de Sócrates e Cristo unidos no fenômeno daquilo que se auto-revela, mas

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 239-257.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
256

As ironias do conceito socrático em Kierkegaard


ROCHA, G.K.; SILVA, E. A.

ao mesmo tempo se oculta. Essa é também a relação entre morte e amor que comentamos,
e precisamente porque a vinda de Deus tem uma duplicidade irônica.

Ainda não está claro onde a analogia com a ironia socrática se desfaz. A
servidão é a verdadeira forma do Deus que não pode significar que é a
verdadeira verdade sobre Ele mesmo. A descida do Deus introduz a
duplicidade, e com isso ironia. [...] À primeira vista, isso parece ser
estruturalmente a mesma tarefa que confronta aqueles que procuram
entender Sócrates. Sócrates expressa seu amor na forma de ignorância,
mas sua aparência não é toda a verdade: Sócrates é e não é apenas o que
ele parece ser. Deus expressa seu amor na forma do servo, mas a aparência
do Deus também não é toda a verdade: ele também é e não é apenas o que
ele parece ser (HOWNLAND, 2006, p 94-95, tradução nossa).

Deus se revela ao não se revelar e essa afirmação profundamente paradoxal é bem


análoga aos conceitos de ironias vividos por Sócrates, interpretados por seus próximos na
Grécia e reunidos existencialmente na alteridade experimentada pelo Magister Kierkegaard.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Ilana. O 'Conceito' de Paradoxo (Contantemente referido a Hegel) - Fé,


história e linguagem em S. Kierkegaard. Tese de Doutorado. São Paulo: PUC, 2008. 247 f.

FARAGO, France. Compreender Kierkegaard. Tradução de Ephraim Alves. Petrópolis:


Ed. Vozes, 2006.

GOUVÊA, Ricardo. Paixão pelo paradoxo: Uma introdução a Kierkegaard. São Paulo:
Fonte Editorial, 2006.

HOWLAND, Jacob. Kierkegaard and Socrates: A study in philosophy and faith.


Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

KIERKEGAARD, Søren. O conceito de Ironia constantemente referido à Sócrates.


Tradução de Álvaro Valls. Petrópolis: Editora Vozes, 1991.

_______. Ponto de vista explicativo da minha obra de escritor: uma comunicação direta,
relatório à História. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, 2002.

OUBINHA, Oscar. Loquere ut Videam: “’Guilty?/‘Not Guilty?” and The writing of irony.
IN: JUSTO; SOUSA: ROSFORT. Kierkegaard and the challenges of infinitude –
Philosophy and literature in Dialogue. Lisboa: CFUL, 2013.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 239-257.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
257

As ironias do conceito socrático em Kierkegaard


ROCHA, G.K.; SILVA, E. A.

REICHMANN, Ernani. Soeren Kierkegaard: Textos selecionados. Curitiba: Editora


Imprensa Universitária, 1978.

_______. Intermezzo lírico-filosófico: Carta a Carlos Galvez. Curitiba: Edição do autor,


1963.

SILVA, Fernando. A subjectivity raised to the second power – Kierkegaard’s view of


Schelegel’s Concept of Irony. In: JUSTO; SOUSA: ROSFORT. Kierkegaard and the
challenges of infinitude: Philosophy and literature in Dialogue. Lisboa: CFUL, 2013.

STEWART, Jon. Søren Kierkegaard: subjetividade, ironia e a crise da modernidade.


Tradução de Humberto Souza. Petrópolis: Vozes, 2017.

PLATÃO. Apologia de Sócrates. In: Os pensadores. Tradução de Jaime Bruna. 2ª Ed.. São
Paulo: Abril Cultural, 1980.

_______. Diálogos: Eutífron – Apologia de Sócrates – Críton – Fédon. Tradução de Marcio


Pugliesi. São Paulo: Hemus, 1977.

POLITIS, Hélène. Le concept de philosophie constamment rapporté à Kierkegaard.


Paris: Editions Kimé, 2009.

VERGOTE, Henri. Sens et Repetition: essai sur la ironie kierkegaardiene. Paris:


Cerf/Orante, 1982.
.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 239-257.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
ISSN 1984 - 5561

CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTILOS DE ESCREVER


E DE EDUCAR FILOSOFICAMENTE:
KIERKEGAARD E A ANTIGUIDADE GREGA

[CONSIDERATIONS ON STYLES OF WRITING AND


PHILOSOPHICAL EDUCATION: KIERKEGAARD AND GREEK
ANTIQUITY]

Leonardo Araújo Oliveira

Mestre em Filosofia pela UNESP, Professor do Departamento de Ciências Humanas, Educação e


Linguagem da UESB
(E-mail: leovash5@gmail.com)

Recebido em: 19 de março de 2018. Aprovado em: 25/05/2018

Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 259-272. ISSN 1984 – 5561


Dossiê Kierkegaard e a Educação
260

Considerações sobre estilos de escrever e de educar filosoficamente :


Kierkegaard e a antiguidade grega
OLIVEIRA, L. A..

Resumo: O presente texto tem como objetivo estabelecer uma relação


entre escrita e educação a partir de uma comparação de distanciamento e
aproximação entre a filosofia de Kierkegaard – por meio de seu estilo e sua
reflexão sobre a escrita – e ideias pedagógicas na antiguidade grega,
destacando, nesse contexto, a figura de Sócrates.

Palavras-chave: Educação. Paidéia. Kierkegaard. Sócrates. Escrita.


Comunicação.

Abstract: The present text has as objective to establish a relationship


between writing and education from a comparison of distance and
approximation between Kierkegaard 's philosophy (through his style and
his reflection on writing) and pedagogical ideas in Greek antiquity,
emphasizing the figure of Socrates.

Keywords: Education. Paidea. Kierkegaard. Sócrates. Writing.


Communication.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 259-272.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
261

Considerações sobre estilos de escrever e de educar filosoficamente :


Kierkegaard e a antiguidade grega
OLIVEIRA, L. A..

INTRODUÇÃO

Sócrates realizou um projeto social e político de importância fundamental na história


do ocidente, ao influenciar as mais variadas tradições, determinando o papel da filosofia grega
na história do pensamento. A realização de sua tarefa, contudo, que movimentou Atenas
como um furacão, não se deu com armas, decisões governamentais ou recursos financeiros,
não foi um movimento de cima para baixo ou que partia do geral para o particular, como era
o costume grego. Embora de modo algum se distanciasse do coletivo – e a obediência a sua
sentença em nome da lei da pólis é um grande testemunho disso –, Sócrates se transforma em
um ponto de viragem através de um contato direto com as individualidades. Buscamos, no
presente artigo, mostrar como Kierkegaard pode ser considerado um Sócrates dinamarquês,
em sua busca por se conectar com interioridades e sua preocupação com a questão da
comunicação.
Iniciaremos discutindo a paidéia dos gregos, para compreender a postura socrática,
trabalhando aspectos essenciais da ideia de formação na antiguidade, como a educação para
cidadania e a importância do conceito de aretê. Em seguida, explicitaremos as alternativas
pedagógicas mostradas por Sócrates, nos atentando também para a forma majoritária pela
qual o filósofo aparece, ou seja, o texto platônico. Por fim, evidenciaremos a aproximação
que Kierkegaard faz de Sócrates, situando sua proximidade e distanciamento dos gregos, com
foco em sua proposta de comunicação indireta, retirando daí consequências para se conceber
modos de educar e aprender existencialmente.

A FORMAÇÃO GREGA

Como apresenta Werner Jaeger (1995) em seu clássico Paidéia: a formação do homem
grego, o desenvolvimento da filosofia grega como berço da própria filosofia se confunde com
o processo de surgimento e desenvolvimento da educação ocidental. A experiência grega
desenvolve conceitos, técnicas e modelos que formam nossa civilização e que ainda hoje
serve de base para discussões pedagógicas. Franco Cambi (1999, p.102), em sua História da
pedagogia, destaca três elementos gregos determinantes para a constituição da educação
ocidental: 1. “a noção de paidéia”, que se desenvolveu como formação integral do ser humano,

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 259-272.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
262

Considerações sobre estilos de escrever e de educar filosoficamente :


Kierkegaard e a antiguidade grega
OLIVEIRA, L. A..

não se limitando mais a um processo de educação infantil e ganhando cada vez mais espaço
dentro de um contexto sociopolítico mais amplo e fortalecendo os laços com a experiência
cultural de um povo; 2. “a pedagogia como teoria”, que dá sentido universal à paidéia através
da conquista de sua autonomia no que tange aos problemas educativos. 3. “a problematização
da relação educativa”, que complexifica a relação entre quem educa e quem é educado,
trazendo um grau de diversificação e riqueza para a figura do educador inexistente ao período
humanista da filosofia, em que ocuparam o lugar de mestre admirado e digno de imitação
nomes como Protágoras, Hípias, Sócrates, Platão, Aristóteles, Epicuro etc.
Antes do nascimento da filosofia a educação grega já era pautada pela aretê, entendida
como virtude, mas também como excelência, possuindo “aplicação mais ampla do que o
contexto propriamente moral” (ZINGANO, 2007, p. 78). A aretê possuía também sentido
político. Mesmo a paidéia “se constituía em si mesma em um aspecto da aretê, ou seja, em um
modo específico de capacitar, qualificar e de habilitar cultural e civicamente os futuros
cidadãos da pólis” (SPINELLI, 2016, p.605). Essa ideia permeia a filosofia e o projeto de
formação grega enquanto projeto social e civil. Aristóteles, que nos diz que uma andorinha
só não faz verão, trabalha exaustivamente o conceito de aretê em sua Ética a nicômaco, ao ponto
de sugerir, sem considerarmos o décimo livro, que a virtude seria o principal elemento
condicionante da felicidade, sem a qual, mesmo coisas como riqueza, beleza e honra ficariam
empanadas. Vale ressaltar que a felicidade, enquanto bem supremo e por isso fim último e
autossuficiente, não é bem para a satisfação de um indivíduo solitário, “mas também para os
pais, os filhos, a esposa, e em geral para os amigos e concidadãos, visto que o homem nasceu
para a cidadania” (ARISTÓTELES, 1984, p.55). Os sofistas, responsáveis pelo processo de
maturação da educação para adultos, foram considerados mestres da excelência. Antes deles
e de Aristóteles, a aretê era buscada através dos heróis das narrativas míticas, que ocupavam
papéis de modelos de conduta.
Contemporâneo da pedagogia sofista, Sócrates também se preocupou com a noção
de virtude e relacionou com a educação, na medida em que realizava associação direta entre
aretê e episteme. Como nos diz o historiador da filosofia antiga Giovanni Reale:

A “virtude” do homem outra não pode ser senão aquilo que faz com que
a alma seja tal como sua natureza determina que seja, isto é, boa e perfeita.
E, segundo Sócrates, esse elemento é a “ciência” ou o “conhecimento”,

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 259-272.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
263

Considerações sobre estilos de escrever e de educar filosoficamente :


Kierkegaard e a antiguidade grega
OLIVEIRA, L. A..

ao passo que o “vicio” seria a privação de ciência ou de conhecimento, ou


seja, a “ignorância” (REALE, 2005, p.95).

Platão, por sua vez, na esteira das discussões éticas de seu mestre, buscou discutir a
aretê. Mas se afastou de dois procedimentos pedagógicos predominantes em seu tempo, o da
leitura de Homero e aquele embasado nos ensinamentos dos sofistas. Para o autor d’A
república, tais procedimentos, baseados na mimese, conduziam os cidadãos para longe do
verdadeiro processo educativo, que tem como base a dialética, o procedimento pedagógico
por excelência.
Platão indica como esse processo é essencialmente pedagógico, quando anuncia que
é a educação dos prisioneiros que faz com que seu olhar seja direcionado para a visão daquilo
que importa verdadeiramente:

A educação seria, por conseguinte, a arte desse desejo, a maneira mais fácil
e mais eficaz de fazer dar a volta a esse órgão, não a de o fazer obter visão,
pois já a tem, mas, uma vez que ele não está na posição correcta e não olha
para onde deve, dar-lhe os meios para isso (PLATÃO, 1993, p.323).

A dialética era um meio que Platão fazia uso para se chegar a verdade enquanto
processo interno de rememoração. É o que vemos no Mênon, que parte da pergunta essencial
à paidéia grega: é possível ensinar a virtude? Nesse diálogo, vemos Sócrates, enquanto
personagem, demonstrar que um homem escravizado que nunca estudara geometria poderia
resolver um problema geométrico por si próprio. A sugestão é que o servo, não tendo
estudado a ciência das formas, deveria conhecê-la internamente, como se a tivesse em seu
espírito e bastasse a ele recordá-la. Platão afirma, assim, que aprender é necessariamente
rememorar (PLATÃO, 2003, p.53).
A dialética, por sua vez, elemento essencial da educação para a filosofia e para a
política, provém de Sócrates, e ela interessa mais ao mestre de Platão do que a reminiscência.
Sócrates, ao contrário do discípulo, não deixou obras escritas para a posteridade. O que
temos dele são alguns testemunhos, como o de Aristófanes, o de Xenofonte e do próprio
Platão. Isso limita consideravelmente todo o caráter de doutrina que possa ser aplicado a
Sócrates, e ressalta a sua filosofia enquanto prática, e principalmente enquanto prática
pedagógica, extraída especialmente dos primeiros diálogos escritos por Platão, os ditos

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 259-272.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
264

Considerações sobre estilos de escrever e de educar filosoficamente :


Kierkegaard e a antiguidade grega
OLIVEIRA, L. A..

aporéticos, que se encerravam com uma abertura ao invés de uma sobreposição de um


conteúdo teórico que parte do “docente” Sócrates para um “discente” qualquer.
Essa prática, no entanto, faz com que Sócrates figure como um educador muito
singular em solo grego, mesmo em relação àqueles que deram continuidade a algumas de
suas ideias.

PEDAGOGIA DA INTERIORIDADE

Se por um lado Sócrates é considerado um modelo de educação no ocidente, por


outro, a sua prática subverte muitos aspectos que vigoram no modelo atual de educação.
Sócrates não costumava discursar para plateias. Salvo na Apologia de Sócrates, o testemunho de
Platão o coloca dialogando sempre com um ou dois indivíduos. O mestre do diálogo não
possuía a pretensão de transmissão de conteúdo, uma vez que partia de saberes enunciados
pelos próprios interlocutores, na tentativa de averiguá-los, se possível esvaziá-los e
possibilitar a manifestação de um conhecimento mais apurado – preexistente no educando
– baseado somente na argumentação, ou seja, na força da dialética.
Sócrates inaugura um procedimento pedagógico que tem como objetivo o pensar por
si mesmo, tendo como consequência uma postura política caracterizada pela importância de
falar por si mesmo. Pensar e falar por si mesmo, no entanto, se faz com o outro, por
intermédio de uma pedagogia dialógica, em que é dissolvida a figura do professor como
detentor único do saber e é fortalecido um projeto de formação em que o processo educativo
se faça em conjunto.
Dentre os elogios a Sócrates na história da filosofia, é marcante o de Kierkegaard,
que focando na educação, vê em Sócrates o processo de aprendizagem como uma relação de
singularidade entre indivíduos, onde o mestre é apenas a ocasião para o aprendiz (Cf.
KIERKEGAARD, 2008, p.33).
Temos assim, uma definição de filosofia, desde o seu surgimento na Grécia, que não
se concretiza apartada da educação, mas também não pode ser separada de um cuidado com
o estilo. Os diálogos socráticos (logoi sokratikoi), escritos por Platão, não relacionam filosofia
e educação somente via conteúdo, por uma ilustração de um projeto político-pedagógico,
que tem seu maior representante n’A República. Indo além, procurando permanecer com a

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 259-272.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
265

Considerações sobre estilos de escrever e de educar filosoficamente :


Kierkegaard e a antiguidade grega
OLIVEIRA, L. A..

essência dos diálogos que Sócrates travava em Atenas, o texto platônico convida o leitor para
o diálogo, atraindo-o seu Eu por um apagamento do Eu do escritor. Platão não escreve em
primeira pessoa, e utiliza Sócrates como máscara. Segundo Kierkegaard (1991, p.244), “o
irônico entende do assunto [de adequação de personagem] e possui um lote considerável de
máscaras e fantasias à sua livre escolha”. Mas antes de Platão é o próprio Sócrates que é em
si mesmo “mascarado”, fazendo uso da ironia e se colocando no lugar da ignorância, pois a
ironia consiste tanto em “fingir saber quando se sabe que não sabe, como fingir não saber
quando se sabe que se sabe” (KIERKEGAARD, 1991, p. 218). Assim como Sócrates,
Kierkegaard se movimenta na tensão de se mostrar e se ocultar, através da ironia, do humor
e da pseudonímia, e acredita que o mestre pode abandonar o seu saber para ocupar o lugar
do discípulo, o lugar do não saber.
Se Kierkegaard admite em maior grau a influência da figura de Sócrates em seu
próprio pensamento, levando-a em consideração, no Conceito de ironia, sob os três grandes
testemunhos gregos (Aristófanes, Platão e Xenofonte), é preciso reconhecer essa
concordância com Platão no que diz respeito ao apagamento do Eu na escrita, se colocarmos
em relevo o fato de que Kierkegaard optou por marcar a maior parte de sua produção com
assinaturas de pseudônimos, em que o jogo de se mostrar e se ocultar é evidenciado pela voz
dada aos variados Eus contidos no pensamento do Sócrates dinamarquês. Kierkegaard não
oculta o caráter imprescindível desse tipo de abordagem na expressão de suas ideias – como
afirma nas últimas páginas do Post-scriptum: “A pseudonímia não teve uma base acidental em
minha pessoa [...], e sim uma base essencial em minha produção” (KIERKEGAARD, 2010,
p.602).
Tais relações se esclarecem com as seguintes passagens de O ponto de vista explicativo
de minha obra como escritor: “Pode enganar-se um homem em vista do verdadeiro e, para lembrar
o velho Sócrates, enganá-lo para o levar ao verdadeiro” (KIERKEGAARD, 1986, p.48), uma
vez que

Ser mestre não é cortar a direito à força de afirmações, nem dar lições para
aprender, etc.; ser mestre é verdadeiramente ser discípulo. O ensino
começa quando tu, o mestre, aprendes com o teu discípulo, quando te
colocas naquilo que ele compreendeu, na maneira como o compreendeu,
ou, se ignoravas tudo isso, quanto simulas prestares-te a exame, deixando
o teu interlocutor convencer-se de que sabe a lição (KIERKEGAARD,
1986, p.42).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 259-272.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
266

Considerações sobre estilos de escrever e de educar filosoficamente :


Kierkegaard e a antiguidade grega
OLIVEIRA, L. A..

A ironia se faz presente, quando se é válido enganar o discípulo para levá-lo ao


verdadeiro. Como dito n’O conceito de ironia: “A ironia é, como o negativo, o caminho; não
a verdade, mas o caminho” (KIERKEGAARD, 1991, p. 278). Mas o que significa, aqui,
enganar?
Logo após o reconhecimento [da influência de Sócrates] supracitado, o pensador
dinamarquês afirma que essa é a única maneira de proceder quando se lida com quem se
encontra na condição de vítima de uma ilusão (Cf. KIERKEGAARD, 1986, p.48). Diferente
do diálogo falado de Sócrates e do diálogo escrito de Platão, a tática kierkegaardiana para
dissipar a ilusão é o que ele denomina de comunicação indireta. Isso implica afirmar que
enganar, nesse contexto, consiste, em certo sentido, em confundir, pois trata-se de expor as
questões em toda sua complexidade – sem reduções simplistas. A “enganação” de
Kierkegaard é a recusa às prescrições filosóficas, às respostas dadas de antemão, ao
imediatismo e à pretensão de clareza e objetividade no que diz respeito aos problemas da
existência. Afinal, a despeito da afirmação de que a “ironia é absolutamente contrária ao
social e uma ironia ‘em maioria’ é, eo ipso, uma coisa inteiramente diversa da ironia”
(KIERKEGAARD, 1986, p. 58), como apontar para os erros de seu tempo e de sua
sociedade, diante do jogo de aparências impostas pelos costumes estabelecidos? Como falar
com autoridade quando se intenta comunicar problemas existenciais, como aqueles
implicados à liberdade humana? (Cf. GUERRERO, 2004, p. 43). A resposta, por ironia, deve
apontar emergencialmente, porém de forma indireta, aos indivíduos.
O acesso ao indivíduo se dá por um percurso da subjetividade, como fazia Sócrates,
ao inaugurar a ética ocidental buscando fazer seus interlocutores refletirem sobre aquilo que
antecipa as suas ações, ou seja, seus costumes, valores, consciências, reflexões pessoais
internalizadas, em suma, suas interioridades. Segundo Valls, na história da filosofia o
“movimento de interiorização da reflexão e de valorização da subjetividade ou da
personalidade começa com Sócrates”, visto que o pai da ironia seria

o primeiro grande pensador da subjetividade, o que, aliás, também


transparecia por seu comportamento irônico. Pois a ironia [que alguns
traduzem como uma ignorância fingida, mas que deve ser muito mais do
que isto] sempre estabelece uma diferença entre o que eu digo e o que eu
quero dizer, e assim entre a formulação e o sentido das proposições – uma
distância, portanto, entre o exterior e o interior (VALLS, 1994, p.18).

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 259-272.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
267

Considerações sobre estilos de escrever e de educar filosoficamente :


Kierkegaard e a antiguidade grega
OLIVEIRA, L. A..

Mas o que teria ocorrido na história da filosofia para que o espírito socrático
precisasse ser retomado? Se toda a liberdade que podemos detectar na prática socrática recusa
a educação institucional que presenciamos hoje, parece recusar também um modelo de
pensamento caudatário do pensamento aristotélico. O próprio fato de Platão possuir um
programa de educação institucional, ao qual a prática socrática parece aversa, indica o início
de uma sistematização do pensamento que se encontra ainda mais fortalecida em Aristóteles.
Sabe-se que Aristóteles recusou o diálogo como a forma filosófica ideal de exposição. Uma
provocação emerge: os tratados do estagirita não encontra como correspondente oral os
longos discursos dos professores que perdura a séculos na educação institucional na forma
das “aulas magistrais”? Mas talvez o que delineia melhor sua sistematicidade e a imagem do
pensamento que legou para a posteridade é o caráter categorial de sua filosofia, fortalecido
por discípulos e organizadores de sua obra. A imagem do pensamento ligada a Aristóteles é
o das categorias e das divisões. Assim como, hodiernamente, temos diferentes disciplinas
encerradas em seus conteúdos específicos nos currículos, visualizamos a rica obra
bibliográfica aristotélica, ainda que em parte formulada por anotações de aulas: um texto
dedicado à ética, outro à política, outro à metafísica, outro à escrita poética, outro à física,
etc.
Por influência direta ou indireta, é essa imagem aristotélica do pensamento que
Humboldt leva a frente quando procura estabelecer um modelo de instituição educacional
em que cada conhecimento ocupa um lugar específico em um sistema regulado pela
especulação (Cf. LYOTARD, 2002, p. 94). Tal programa, mesmo em meio a multiplicidade
de disciplinas, permanece nos dias atuais, sustentada cada vez menos por uma argumentação
rigorosa, como a do próprio Aristóteles (e talvez contra as suas pretensões), e mais por
postulados congelados pela ausência de crítica. Com os desafios contemporâneos e as
respostas caóticas das políticas ou ausências de políticas pedagógicas, o modelo de educação
que prevalece nos tempos hodiernos perde até mesmo a noção moderna de uma unidade
especulativa que coordena os diversos saberes, sobretudo na educação escolar. Temos, assim,
disciplinas compartimentadas que não estabelecem relações e atuam na contramão de um
tipo de conhecimento de caráter mais abrangente, que coloque em evidência para os
estudantes as conexões internas entre os mais diferentes tipos de saberes. Com o
congelamento dos compartimentos de conteúdo e a perda do sentido existencial na produção

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 259-272.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
268

Considerações sobre estilos de escrever e de educar filosoficamente :


Kierkegaard e a antiguidade grega
OLIVEIRA, L. A..

de conhecimento, pensar acaba por significar somente dividir, repartir, adequar cada teoria a
um sistema apropriado apenas a si mesmo.
O estilo de Kierkegaard, que faz com que sua escrita encontre espaço nos mais
diferentes âmbitos, como o filosófico, o religioso e o literário, se insere na via contrária à
imagem do pensamento estatutário, que se expressa pela forma do discurso objetivo e direto.
No entanto, não somente sua forma de expressão o coloca em uma posição crítica em relação
à tradição filosófica, mas também sua reflexão acerca do próprio estilo, que se encontra no
cerne de sua filosofia, pois se envolve com o problema da comunicação de uma teoria
filosófica que trate das questões existenciais.

COMUNICAÇÃO E FORMAÇÃO EXISTENCIAL

Torna-se necessário ao projeto kierkegaardiano a configuração de duas imagens, a do


pensador subjetivo e a do pensador objetivo. Sob a pena do pseudônimo Johannes Climacus,
é estabelecida uma diferenciação entre as duas figuras citadas, afirmando que, quando
aplicadas à interioridade, as estruturas do conhecimento objetivo produzem apenas falsos
saberes (Cf. KIERKEGAARD, 2010, p.342-343). O pensador subjetivo, por sua vez, é quem
pode conscientizar-se da enorme contradição que é a existência. O “subjetivo” aqui não diz
respeito ao refúgio na imaginação ou muito menos em abstrações, pois busca realizar a tarefa
de pensar a existência concreta, com o cuidado necessário para que ela não se encontre
encarcerada ao domínio da pura quantificação.
A cautela se dá diante da objetividade sistemática, que tem como pressuposto o
acabamento e a ânsia por resultados, por isso a existência se opõe a ela, uma vez que para o
sistema pensar a existência, precisa pensá-la superada, isto é, sem o movimento que lhe é
inerente (Cf. KIERKEGAARD, 2010, p.126). O devir que escapa à objetificação reificadora
é o que visa o pensador subjetivo, que ao invés de compreender o concreto de maneira
abstrata, busca compreender o abstrato de maneira concreta (Cf. KIERKEGAARD, 2010,
p.347), diferenciando-se do pensador objetivo em sua indiferença à existência daquele que
pensa, pois esse último opera como o cientista burocrático, sempre “mediante a transcrição
e repetição de resultados e fatos” (KIERKEGAARD, 2010, p.82). Para Kierkegaard, o

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 259-272.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
269

Considerações sobre estilos de escrever e de educar filosoficamente :


Kierkegaard e a antiguidade grega
OLIVEIRA, L. A..

pensador subjetivo não é um cientista, um erudito, mas um artista (Cf. KIERKEGAARD,


2010, p.346), por isso o cuidado estilístico é um elemento central em seu pensamento.
A diferenciação entre os dois tipos de pensadores desdobra-se em um problema
pedagógico, na medida em que tem como consequência a análise de diferentes modos de
comunicação. Segundo Climacus, o pensador subjetivo não perde de vista a relação que
estabelece entre suas singularidades e as de seu interlocutor, uma vez que “sua comunicação,
enquanto sua forma, deve ser essencialmente conforme a sua própria existência”
(KIERKEGAARD, 2010, p.89). O vir-a-ser e a multiplicidade da existência devem refletir
no estilo, pois quem “o tem de verdade, nunca o tem acabado, mas cada vez que inicia, ‘agita
as águas da linguagem’ e consegue que a expressão mais cotidiana surja para ele com a
originalidade de um recém nascido” (KIERKEGAARD, 2010, p.94-95).
O pensador subjetivo se esforça para atentar-se à dialética da comunicação (Cf.
KIERKEGAARD, 2010, p.82). Tal labuta caracteriza o seu constante tornar-se a si mesmo,
libertando-se, no interior do devir e da afirmação de si como pensador existencial. Para
Kierkegaard, assim como o pensador subjetivo se liberta a si mesmo, “o enigma, na
comunicação, reside precisamente em libertar o outro, daí que não se deva comunicar
diretamente” (KIERKEGAARD, 2010, p.83). A comunicação da verdade existencial, ao
partir de um trabalho da interioridade na existência, considera que “objetivamente, se acentua
‘o que se diz’; subjetivamente, ‘como’ se diz” (KIERKEGAARD, 2010, p.204).
Enquanto a comunicação pela via direta reflete apenas a objetividade,
correspondente ao discurso científico, a comunicação indireta reflete o projeto de ligação
intrínseca entre existência e pensamento, uma vez que o caráter enigmático da subjetividade
é diluído no discurso objetivo, o que o torna impróprio para expressar os problemas
filosóficos existenciais. Por isso a reflexão sobre a linguagem em Kierkegaard implica um
conflito com a defesa da institucionalização do discurso direto dos tratados filosóficos
tradicionais e, por conseguinte, potencializa a crítica aos modelos pedagógicos engessados e
compartimentados. Contudo, não se trata acabar com a objetividade, que possui seu campo
de atuação, nem de negar a tradição, mas sim de possibilitar a abertura para a interioridade,
de chamar a atenção para a constituição de uma relação existencial com a história do
pensamento – é o que é feito com a ironia socrática, apropriada por Kierkegaard para pensar
o seu próprio tempo.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 259-272.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
270

Considerações sobre estilos de escrever e de educar filosoficamente :


Kierkegaard e a antiguidade grega
OLIVEIRA, L. A..

A proposta de uma comunicação indireta opera um duplo desvio, concentrando-se


em no afastamento da síntese em que é possível fixar tanto o caminho da comunicação dos
que julgam saber e daqueles que, quando esvaziados de conhecimento prostram-se diante da
via da aquisição de sabedoria enquanto mera recepção. O diálogo com Sócrates emerge. A
comunicação indireta não visa transmitir, mas convocar o interlocutor à interpretação:

Inspirado por Sócrates, um irônico, e Cristo, um mistério, Kierkegaard


não é fácil de decifrar. Em seu jogo de pseudônimos os múltiplos falantes
deixam os discursos em suspenso, como que à disposição da interpretação
do leitor, para que este escolha e se identifique com o que o melhor o
convencer. Como Sócrates, Kierkegaard abre um silêncio à nossa frente
quando escreve. Como Sócrates, fala de muitos assuntos, eruditos e
populares, e percebemos que o que resta é uma interrogação que mexe
com o leitor (VALLS, 2013, p. 68, grifos do autor).

Kierkegaard se preocupa com a liberdade do outro. Uma proposta coerente com essa
preocupação não pode se dar via discurso doutrinário, como em um processo que reduz a
educação à transmissão de conteúdos de professor para aluno. Álvaro Valls (2013, p. 74-75)
é taxativo: “Kierkegaard, não tendo, a rigor, uma doutrina nova para ensinar, recusa-se à
comunicação magistral. As pessoas com indigestão há que receitar um vomitório, e não mais
comida!”. É necessário que o lado positivo do processo resida em uma transmissão de saber
por parte daquele que ocupa o posto professoral ou há espaço para o ato de dispor-se como
guia? Continua Valls (2013, p. 75): “Afinal: será que precisamos de um novo Messias, ou
basta hoje um auxiliar que nos ajude a reler os textos antigos, talvez de maneira mais pessoal,
mais profunda e interiorizada?”.
Dessa maneira, a comunicação indireta aparece como a forma mais apropriada para
expressar o tipo de filosofia que Kierkegaard se propõe a fazer, bem como o tipo de
pedagogia que é possível daí derivar e do diálogo socrático que possibilita a proposta
kierkegaardiana de um pensamento que não se separa da existência e das dificuldades que lhe
são inerentes. A comunicação indireta torna-se uma tática fundamental para uma educação
filosófica por excelência.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 259-272.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
271

Considerações sobre estilos de escrever e de educar filosoficamente :


Kierkegaard e a antiguidade grega
OLIVEIRA, L. A..

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caráter pedagógico do cuidado estilístico de Kierkegaard se faz evidente quando


salienta a importância da comunicação e em como ela deve se afastar do mecanicismo
cientificista, constituindo-se como uma comunicação que toma a existência em seu devir.
Uma consequência pedagógica pode ser o rompimento com o modelo de educação baseado
no discurso oral direto, alicerçado na transferência de conhecimento sem qualquer reflexão
sobre o próprio ensinar, sobre o estilo do processo de ensino-aprendizagem de que participa.
A palavra viva da oralidade socrática é retomada na escrita kierkegaardiana, numa
busca de que o texto não cesse de trazer algo novo. Enquanto Sócrates preocupava-se com
a alteridade ao ouvir seu interlocutor, Kierkegaard valoriza o outro por meio do caráter
enigmático da comunicação. A comunicação do pensador subjetivo é antecipada por
Sócrates, considerando-se um educador das almas gregas de seu tempo, reconhecendo sua
tarefa como a de alguém atento ao cuidado da interioridade.
Uma educação existencial é uma formação para liberdade, pois é educação na
possibilidade, tendo em vista, inclusive, que a angústia, entre outras coisas, é formadora.
Constitui-se como formação ativa pois é possível conceber um educando que se constitui
em um processo de tomada das próprias decisões e que se veja cada vez mais como indivíduo
responsável.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1984.

CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo: UNESP, 1999.

GUERRERO, L. La verdad subjetiva: Sören Kierkegaard como escritor. Ciudad de


México: Universidade Iberoamericana, 2004.

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

KIERKEGAARD, Søren. Migalhas Filosóficas ou um bocadinho da filosofia de


Johannes Clímacus. Tradução de Álvaro Luiz Montenegro Valls e Ernani Reichmann.
Petrópolis: Editora Vozes, 2008.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 259-272.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561
272

Considerações sobre estilos de escrever e de educar filosoficamente :


Kierkegaard e a antiguidade grega
OLIVEIRA, L. A..

KIERKEGAARD, Søren. O conceito de ironia: constantemente referido a Sócrates.


Tradução de Álvaro Valls. Petrópolis: Vozes, 1991.

_______. Ponto de vista explicativo da minha obra de escritor: uma comunicação direta,
relatório à História. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, 1986.

_______. Post Scriptum no científico y definitivo a “Migajas filosóficas”. Salamanca:


Ediciones Sígueme, 2010.

LYOTARD, J. F. A condição pós-moderna. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. 7 ed.


Rio de Janeiro: José Olympio, 2002

PLATÃO. A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.

_______. Ménon. Trad. Maura Iglésias. 2 ed. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Loyola, 2001.

REALE, Giovanni. História da filosofia: filosofia pagã antiga. São Paulo: Paulos, 2005.

SPINELLI, Miguel. O ciclo de estudos básicos (Egkýklios Paidéia) da escolaridade grega.


Educação e Filosofia, v.30, n.60, p.603-646, jul./dez. 2016.

VALLS, Álvaro. O crucificado encontra Dionísio: estudos sobre Kierkegaard e Nietzsche.


São Paulo: Loyola, 2013.

_______. O que é ética. São Paulo: Brasiliense, 1994.

ZINGANO, Marco. Estudos de ética antiga. São Paulo: Paulus; Discurso Editorial, 2007.

Revista Trilhas Filosóficas, Caicó, ano 11, n. 1, Jan.-Jun. 2018, p. 259-272.


Dossiê Kierkegaard e a Educação - ISSN 1984 - 5561

Você também pode gostar