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Usucapião: doutrina e jurisprudência

Dilvanir José da Costa

Sumário
1. Conceito e fundamentos. 2. Pressupostos.
2.1. Prescrição aquisitiva e extintiva: afinidades.
3. Efeitos. 3.1. Modo originário de aquisição.
4. Requisitos. 5. Acessio possessionis. 6. Posse com
animus domini. 6.1. Inversão do título da posse.
6.2. Promessa de compra e venda. 6.3. A posse
injusta como fonte de usucapião. 6.4. Furto e
roubo. 6.5. Veículo furtado. 7. Posse contínua e
pacífica. 8. Justo título e boa-fé. 9. Usucapião
dos móveis: desnecessidade de ação, salvo
automóvel e telefone. 10. Usucapião entre
condôminos. 11. Usucapião de imóveis públi-
cos. 12. Usucapião especial rural ou pro labore.
12.1 Terras devolutas. 13. Usucapião especial
urbano: requisitos – termo inicial do prazo –
área de até 250 m². 14. Cláusula de inalienabili-
dade. 15. Conclusão.

1. Conceitos e fundamentos
Usucapião é o modo autônomo de
aquisição da propriedade móvel e imóvel
mediante a posse qualificada da coisa pelo
prazo legal. Provém de usus (posse) e capio,
capere (tomar, adquirir), ou seja, adquirir pela
posse.
Desde a mais alta antiguidade se reco-
nheceu a necessidade social desse instituto.
O Direito Romano o disciplinou como modo
de aquisição. A Igreja lhe fez restrições, por
razões morais e com suporte no Direito
Natural, pelo fato de admitir o usucapião
Dilvanir José da Costa é Professor de Direito uma expropriação sem indenização. Não
Civil nos cursos de graduação e pós-graduação assim o Direito Civil, sobretudo ao consa-
da Faculdade de Direito da UFMG. Doutor em grar a propriedade com função social. Daí a
Direito Civil. Advogado. colocação do instituto ao nível da utilidade
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social da res judicata e da presunção absoluta móvel ou imóvel sem consentimento ou
de conhecimento da lei. mesmo contrariando a vontade do respectivo
O domínio perpétuo tem limites e dono);
condições. Ao proprietário não é dado II – nascimento da ação real para o titular
negligenciar o seu direito, sob pena de ofendido (busca e apreensão, ação posses-
perdê-lo no interesse social. Segundo um sória ou reivindicatória etc. );
brocardo italiano, “o amor faz passar o III – inércia ou negligência do titular em
tempo e o tempo faz passar o amor”. Até o movimentar a respectiva ação ou outra
amor se perde com o tempo... medida interruptiva da prescrição;
A doutrina admite duas ordens de IV – decurso do prazo legal de usucapião
fundamentos para o usucapião: subjetivos aplicável à espécie.
e objetivos. Sob o aspecto subjetivo, a perda
da propriedade por usucapião tem a 2.1. Prescrição aquisitiva e extintiva:
justificá-la a renúncia presumida do titular afinidades
do direito real, em favor do possuidor. Assim É grande a afinidade entre o usucapião
se interpreta a sua atitude omissa ou ou prescrição aquisitiva e a prescrição
negligente em relação à coisa, por todo o extintiva. Basta atentar para os mesmos
tempo previsto na lei. Sob o aspecto objetivo pressupostos lógicos:
ou do interesse social, o usucapião é a I – ofensa ou violação de direito subjetivo
garantia da estabilidade dos direitos reais.
pessoal ou obrigacional, de família ou
Não haveria segurança dos titulares de
sucessório (não-pagamento de dívida ou
direitos reais se fosse possível investigar a
obrigação no vencimento etc. );
legitimidade dos títulos de propriedade
II – nascimento da ação respectiva;
através dos séculos. Pelo princípio da
III – inércia ou negligência do credor ou
filiação dos domínios, um só título ineficaz
titular do direito;
comprometeria todos os posteriores, ense-
IV – decurso do prazo legal.
jando ação reivindicatória imprescritível ou
Como conseqüência, em última análise,
eterna, a ameaçar os atuais proprietários
ocorre a perda do crédito ou do direito
indefinidamente. Também sob o aspecto
processual, a admissão da prova imemorial pessoal ou obrigacional. Dir-se-á que
ou diabólica do domínio, com levantamento também aqui se verifica um fenômeno
dos títulos através dos séculos, geraria o aquisitivo: o devedor se enriquece, liberando-
caos nos tribunais. Com o usucapião ou se da dívida; assim como ocorre um fenô-
prescrição aquisitiva nada disso é neces- meno extintivo no usucapião: o titular do
sário. A posse pacífica por vinte anos sana direito real o perde para o possuidor. Logo,
todos os vícios dos títulos e até prescinde há simetria entre a prescrição extintiva e o
dos mesmos, gerando um domínio por modo usucapião. São dois aspectos do mesmo
próprio e autônomo, tranquilizando os fenômeno. Não foi sem razão que o Código
proprietários e, com eles, suas respectivas Civil francês regulou os dois institutos
famílias e toda a sociedade. Por isso o usu- conjuntamente (arts. 2.219 a 2.281). Mas
capião contribui para a paz social. E também andou bem o nosso código em regular o
para o progresso, estimulando a posse e uso usucapião na parte especial, como modo
das coisas, sobretudo os imóveis. autônomo de aquisição da propriedade e
dos direitos reais de gozo.
2. Pressupostos
3. Efeitos
supostos lógicos: A conseqüência imediata do decurso do
I – ofensa ou violação de um direito prazo legal da posse com os demais requisi-
tos é a aquisição do direito real por usucapião,
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modo autônomo que joga por terra o direito no usucapião, o herdeiro pode alienar ou
anterior, inclusive o registro imobiliário do ceder direitos hereditários antes da adjudi-
imóvel. Técnica e juridicameante, esse efei- cação ou partilha.
to é conseqüência imediata e lógica do O efeito imediato da aquisição por
decurso do prazo legal na posse, indepen- usucapião, tecnicamente, com o implemento
dentemente da ação declaratória de usu- do prazo, enseja uma questão: qual a conse-
capião e do registro público da respectiva qüência se o possuidor vem a perder a posse
sentença, ambos com efeito apenas declara- após o decurso do prazo legal, inclusive a
tório de um direito adquirido ou constituído perda para o proprietário inscrito no registro
anteriormente. Tanto é lógico e correto que a imobiliário?
Súmula 237 do STF admite a argüição eficaz Obviamente, quem perde a posse deve
de exceção de usucapião em defesa, na ação reagir com a ação adequada, inclusive contra
reivindicatória movida pelo proprietário o dono. Nessa ação mesma poderá ser
inscrito no registro imobiliário contra o argüido o usucapião. Posteriormente seria
possuidor que já preencheu os requisitos do acionada a declaratória erga omnes.
usucapião. Mas a sentença que reconheça o Mas se não se move a possessória e o
usucapião nessa hipótese só terá eficácia ali, tempo vai passando, qual seria o destino do
entre as partes, para evitar a saída do usucapião já consumado? Antes de tudo, é
possuidor qualificado. condição fundamental da ação de usu-
Para aperfeiçoar e valorizar o seu direito capião ser o autor possuidor (art. 941 do
real, ensejando a sua alienação e oneração e CPC), tanto que os artigos 942 e 943 até
o pleno exercício, faz-se necessária a ação exigiam justificação prévia da posse e só
declaratória de usucapião, esta sim com foram alterados por razões de economia
eficácia erga omnes e citação não só do processual. Logo, deve o possuidor esbulha-
proprietário inscrito no registro público do tentar antes de tudo recuperar a posse,
como dos confinantes e terceiros eventuais arguindo, inclusive, usucapião.
interessados, estes por editais. Somente a Outro efeito do usucapião é retroagir à
sentença neste processo pode ser lançada data do início da posse, o que parece
no registro público, com efeito declaratório contraditório com o efeito acima referido, de
apenas mas aperfeiçoador do domínio, se operar no momento da implementação
ensejando a alienação normal do imóvel e a do prazo legal da posse. Por razões outras é
constituição de outros direitos reais como o que ocorre a retroação, a fim de se afastar a
usufruto, a servidão e a hipoteca. pretensão de indenização pelo uso da coisa
O possuidor de imóvel, com prazo de alheia antes do decurso do prazo. O Código
usucapião completado ou não, pode até Civil português de 1966 é expresso quanto
alienar a sua posse, mas só aliena direito e a esse efeito: “Invocada a usucapião, os seus
ação. efeitos retrotraem-se à data do início da
É tal como ocorre na sucessão hereditária, posse” (art. 1.288).
em que o domínio se transfere aos herdeiros
no momento da morte do proprietário, mas 3.1. Modo Originário de aquisição
aqueles têm de aperfeiçoar seu direito, O usucapião constitui modo originário
especificando, identificando e quantificando de aquisição, segundo a maioria da doutrina
a herança em procedimento próprio de e da jurisprudência, e, por isso, não havendo
inventário, cuja sentença de adjudicação ou transmissão de direito real, não gera o im-
partilha de imóvel é levada ao registro posto respectivo. O artigo 945 do CPC refere-
público, com efeito declaratório mas enseja- se a outros tributos. Conferir: TJSC, ap. 29.161
dor do pleno exercício de todos os direitos in JC 61/102; TJRJ, ADCOAS, 1988, nº
reais sobre a coisa. Assim como o possuidor 118.220; TJSP, RT 635/206, RJTJSP 107/239,
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109/277; STJ, REsp. 23-PR, RSTJ 5º/307; 5. Acessio possessionis
STF, acórdão do Pleno no RE 94.580-RS, in
O possuidor pode, para o fim de contar o
RTJ 117/652-667, fundamentado em erudi-
tempo exigido, acrescentar à sua posse a do
to voto do Ministro Moreira Alves, conclu- seu antecessor, sendo ambas contínuas,
indo que: a) o art. 110 do CTN proíbe a lei pacíficas e animo domini (art. 552). A falta de
tributária de alterar a definição, o conteúdo documentos que comprovem a acessio
e o alcance de institutos, conceitos e formas possessionis não fica suprida por vagos
de direito privado, utilizados pela Consti- depoimentos ( TJGO, ap. 36.268-5, BDI, 1995,
tuição para definir ou limitar competências nº 24, p. 14). Não tem posse ad usucapionem
tributárias; b) no usucapião não ocorre quem a recebeu de mero detentor, que a
transmissão a qualquer título, de imóveis exercia sob a dependência do verdadeiro
ou de direitos reais sobre imóveis, e por isso possuidor (TA-PR, ap. 55.832-7, COAD N/
os autores nacionais e estrangeiros que T, 1994, nº 23, sum. 65.768). É necessária a
arrola o consideram modo originário de cessão de direitos por parte de todos os
aquisição (segue-se uma série de juristas herdeiros do antigo possuidor (TJSP, ap.
eminentes, entre os quais Pontes de Miranda 250.425-1, BDI, 1997, nº 3, p. 16).
e Orozimbo Nonato, relator do precedente
no RE 9.056, in RF 121/77. Em conseqüência, 6. Posse com animus domini
foi julgado inconstitucional o texto da lei
estadual exigindo o tributo. Depois da posse e do tempo, o grande
Contestando a tese oposta da aquisição requisito do usucapião vem a ser o qualifi-
cativo da posse, que se designa em doutrina
derivada no usucapião (Brinz, Caio Mário),
como posse animo domini, que se traduz
o Ministro Moreira Alves acentua que o
literalmente “com animo ou intenção de
critério verdadeiro para a distinção é a
dono” e tecnicamente “com pretensão de
existência ou não de transmissão e não o dono”. Em nosso Código Civil e na Consti-
fato de a coisa ter tido dono anteriormente. tuição, esse requisito vem com a expressão
“possuir como seu”. Vulgarmente e até na
4. Requisitos jurisprudência se diz “posse em nome
próprio”, para se distinguir da posse em
nome alheio, que não gera usucapião.
BENS IMÓVEIS Qualquer das expressões deixa dúvida
Usuc. ord. Usuc. extr. sobre o verdadeiro sentido ou conteúdo
10 anos de posse con- 20 anos de posse con- desse requisito legal, que pode ser apreen-
tínua e pacífica entre tínua e pacífica, com dido melhor recorrendo-se à idéia contrária.
presentes ou 15 anos animus domini e inde- Assim, não possui “como seu” quem tem
entre ausentes, com pendente de título e
posse contratual, pela qual se reconhece o
boa-fé (art. 550).
domínio de outro sobre o objeto. Exemplos
animus domini, justo tí-
típicos são o locatário, o comodatário, o
tulo e boa-fé (art. 551).
depositário, o empregado e similares, os
quais não podem adquirir por usucapião
BENS MÓVEIS (arts. 486 e 487). Nas posses contratuais, o
possuidor direto não exclui a posse do
Usuc. ord. Usuc. extr. possuidor indireto, impossibilitando-se o
3 anos de posse con- 5 anos de posse contí- usucapião por falta do requisito “posse
tínua e pacífica, com nua e pacífica, com exclusiva”.
animus domini, justo animus domini e inde- A propósito, os tribunais têm decidido:
título e boa-fé (art. pendente de título e “Não tem posse em nome próprio
618). boa-fé (art. 619). quem se acha em relação de depen-
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dência para com outro, conservando por falta dos requisitos desta. Mesmo tendo
a posse em nome deste e em cumpri- posse vintenária do imóvel, o Supremo
mento de suas ordens ou instruções. Tribunal Federal vinha negando o usuca-
É a situação da filha em relação ao pião, sob o fundamento de falta do requisito
pai (Carvalho Santos, CCB Interpret., “possuir como seu”. Segundo a Suprema
vol VII, p. 33) ou vice-versa, como na Corte, liderada na questão pelo Ministro
espécie. É fâmulo da posse ou mero Moreira Alves, na promessa de compra e
detentor. Logo, não pode transmitir a venda o promissário reconhece o domínio
outrem (acessio) o inexistente.” ( TAC- do vendedor. Data maxima venia, não tem
PR, ap. 55.832-7, BDI, 1994, nº 13, p. lógica essa jurisprudência e, portanto, a
11). promessa de compra e venda deve ser
“Meros prepostos ou fâmulos não excluída do rol das posses contratuais, para
exercem posse em nome próprio mas efeito de usucapião.
sim em caráter provisório ou precário.” Seria um contra-senso reconhecer o
(TJPR, ap. 25.032-8, COAD, N/T, 1994, usucapião em favor de quem esteja na posse
súm. 64.488). sem efetuar qualquer pagamento pela coisa,
“A posse por mera permissão do visando sua aquisição, e não o reconhecer
de cujus é precária, náo se computando em favor daquele que está na posse com a
para fins de usucapião. Aberta a intenção de adquirir o domínio e até já res-
sucessão, estabeleceu-se condomínio gatou o seu preço... O rigor técnico não pode
entre os herdeiros, afastando o usu- prevalecer contra a lógica e o bom senso.
capião por falta de posse exclusiva.” Mas a situação já mudou. Ao contrário
(TJBA, ap. 20.344-3, j. 11-6-96, COAD, do Supremo Tribunal, que não reconhecia
N/T, 1997, nº 20, súm. 78.408). animus domini no promitente comprador, o
Superior Tribunal de Justiça vem reconhe-
6.1. Inversão do título da posse
cendo até justo título, ensejador de usuca-
Mesmo nas posses contratuais, entre- pião ordinário (REsp. 32.972-SP, 3ª Turma,
tanto, pode, excepcionalmente, vir a ocorrer DJU 10-6-96, p. 20.320, BDI, 1996, nº 25, p.
o requisito, por meio do instituto da inversão 22, adiante transcrito a propósito de justo
do título da posse. É o que ocorre quando o título), assim como passou a reconhecer
contratante possuidor rompe o pacto e (contrariando o STF), ao promissário de boa
desafia o dono, passando a comportar-se fé, o direito a embargos de terceiro contra a
como proprietário (não paga aluguel, penhora do imóvel por dívida do promitente
desobedece às ordens do dono, constrói vendedor, independentemente de inscrição
acessões e benfeitorias, enfim, passa a agir da promessa no registro imobiliário (Súmula
com toda a aparência e arbítrio de proprie- 84 do STJ).
tário, sem que este reaja durante o tempo Tão cabível é o usucapião na promessa
necessário à consumação da prescrição que até se recomenda nas hipóteses de
aquisitiva). O usucapião está sempre documentação incompleta ou mesmo com-
associado à idéia de renúncia presumida plicada, em virtude de sucessões não
do proprietário da coisa possuída. regularizadas, conforme decidido pelo TJSP
na Apelação 269.631-2/0, in BDI, 1997, nº
6.2. Promessa de compra e venda 15, p. 26.
Questão polêmica é a do contrato de
promessa de compra e venda, em que o 6.3. A posse injusta como fonte de usucapião
promissário cumpre todas as obrigações e Vimos que as posses contratuais não
não consegue a escritura espontaneamente geram usucapião, não só porque existe nelas
nem a adjudicação compulsória do imóvel, o reconhecimento do domínio alheio por
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parte do possuidor (falta de animus domini), favor do possuidor violento. O mesmo em
como porque coexiste a posse indireta do relação à posse clandestina, desde que
proprietário (posse não exclusiva do pos- tornada pública, e ao precarista que inverte
suidor – art. 486). o título. O Código Civil português é claro a
Também não geram usucapião as meras propósito:
detenções ou ausência de posse, obviamente, “Se a posse tiver sido constituída
exercidas pelos fâmulos ou servidores da com violência ou tomada ocultamente,
posse (caseiros, administradores, agregados os prazos da usucapião só começam
e similares – art. 487), bem como as decor- a contar-se desde que cesse a violência
rentes de mera permissão ou tolerância dos ou a posse se torne pública” (art. 1297).
verdadeiros possuidores (detenções por “Os detentores ou possuidores
parentes, amigos ou vizinhos – art. 497, precários não podem adquirir para si,
1ª p.). por usucapião, o direito possuído,
Vimos que essas posses contratuais e as excepto achando-se invertido o título
meras detenções podem, eventualmente, da posse; mas, neste caso, o tempo
transformar-se em posses ad usucapionem ou necessário para a usucapião só começa
em nome próprio, pelo fenômeno da inver- a correr desde a inversão da posse.”
são do título respectivo, desde que o detentor (art. 1290).
ou o possuidor em nome alheio se insurja Veja ainda nosso estudo sobre “o sistema
contra o verdadeiro possuidor e passe a se da posse “ na” Revista de Informação
comportar como esbulhador, sem a compe- Legislativa”, Senado Federal, nº 139, p. 109–
tente reação da vítima durante o prazo da 117 e na “Revista dos Tribunais”, v. 757, p.
prescrição aquisitiva. 703–714.
Quais seriam então, por exclusão, as
posses que se enquadram como fontes 6.4. Furto e roubo
típicas de usucapião? Apontamos as seguin- Assim como o esbulhador do imóvel, que
tes hipóteses principais: a) a transmissão afasta o dono pela força, pode vir a usucapir,
voluntária da posse pelo titular a terceiro, também o ladrão ou assaltante pode vir a
em caráter exclusivo (alienação do direito adquirir por usucapião extraordinário, que
de posse); b) a posse resultante de abando- sana todos os vícios da posse. Temos de
no da coisa pelo possuidor; c) e a posse separar o direito de propriedade sobre as
injusta ou resultante de violência (esbulho), coisas, mesmo furtadas ou roubadas, e seus
ocupação clandestina e aquela a título modos de aquisição, tecnicamente, de outros
precário (apropriação), desde que o pos- aspectos do furto e do roubo. O autor do
suidor ofendido não reaja contra tais crime responde penalmente pelo fato na via
usurpações do seu direito. Omitindo-se o própria. E pelo ilícito civil responderá
possuidor ofendido, a posse injusta se também com perdas e danos perante a vítima
instala e pode dar origem ao usucapião. Tais do furto ou roubo, indenizando-lhe o valor
fenômenos se acham disciplinados mais do objeto subtraído, lucros cessantes etc. no
claramente no Código Civil português de prazo prescricional das ações pessoais.Mas
1966 ( aquisição e perda da posse ). o objeto furtado ou roubado passa a inte-
Argumentar-se-á que tais atos são contra grar o seu patrimônio ou de terceiro
a posse, ensejando os interditos, e não possuidor de boa ou de má fé, após cinco
geradores de posse. Isso é correto desde que anos de posse contínua, pacífica e pública,
haja e enquanto durar a reação do possuidor que é essa a técnica dos modos de aquisição
legítimo. Não havendo ou cessando a da propriedade. Antes da prescrição aqui-
reação, cessa tecnicamente a violência e sitiva, cabe, obviamente, a ação real de busca
começa a contar prazo de usucapião em e apreensão da coisa.
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Eis, a propósito, a lição de Pontes de ser mais facilmente apreendido. Aqui
Miranda: se adentra em área pouco explorada
“ A res furtiva, que era espécie de pela nossa doutrina, é verdade, qual
res vitiosa, não podia ser usucapida. a do termo inicial para a contagem
Não, assim, hoje em dia. O ladrão pode dessa posse, o que já foi motivo de
usucapir; o terceiro usucape, de boa críticas do prof. Raul Chaves em seu
ou de má fé, a coisa furtada” (“Tratado artigo ‘A usucapião e o crime’ (in
de Direito Privado”, Borsoi, Rio, 1956, Estudos Jurídicos em Homenagem à
v. XV, parágr. 1.697, nº 2, p. 111). Faculdade de Direito da Bahia, Ed.
Saraiva, 1981, p. 51-79). Se no direito
6.5. Veículo furtado
anterior, como anota Lenine, ‘em que
Em v. acórdão de 17 de maio de 1990, o não se dispensava a boa-fé, o crimi-
egrégio Tribunal de Alçada do Rio Grande noso em tempo algum poderia pres-
do Sul examinou o tema sob esta ementa: crever, apenas podendo-se fazê-lo
“Automóvel furtado. Reconhece-se quando o terceiro viesse a lhe adquirir
usucapião extraordinário pela posse a coisa ignorando-lhe o vício’ (op. cit.,
superior a cinco anos, mesmo que o p. 181), já no Direito moderno existem
primeiro adquirente conhecesse o legislações, como as da Espanha e do
vitium furti. ‘O ladrão pode usucapir; México, exemplificativamente, que
o terceiro usucape, de boa ou de má fé, expressamente prevêem que: ‘A posse
a coisa furtada’ (Pontes de Miranda). hábil para o ladrão e seus cúmplices
Sentença confirmada.” ou acobertadores só começa a fluir
Merecem destaque neste estudo os uma vez prescrita a ação penal ou
seguintes fundamentos do voto do Juiz Jauro extinta a pena porventura concretizada
Duarte Gehlen: na sentença’ (idem, ibidem).
“Já Lafayette, no seu clássico No Direito brasileiro, segundo o já
‘Direito das Coisas’, giza na nota nº citado prof. Raul Chaves e Lenine
55 ao § 66 da obra que: ‘As coisas Nequete, e a partir do pressuposto de
imóveis vi possessae e os móveis que os interesses tutelados pelo Direi-
furtados – res furtivae – segundo o to Penal devem prevalecer sobre
Direito Romano, não podiam ser aqueles mais privatísticos do Direito
prescritas nem mesmo pelo adquiren- Civil, há que igualmente se entender
te que em boa-fé as houvesse recebido que: a) enquanto não prescrita a ação
do autor do esbulho ou do furto’ (...). penal não pode o criminoso, ainda
Esse rigor não foi aceito pelo direito que revista a sua posse os requisitos
moderno. De fato, a posse do terceiro ad usucapionem, invocar a prescrição
adquirente não traz em si o vício da aquisitiva; b) prescrita, todavia, a ação
posse anterior. Por que, pois, negar-lhe penal, assiste ao criminoso aquele
a virtude de produzir a prescrição?” direito, computando-se a posse desde
(op. cit., Ed. Rio, 1977, p. 228/229). o seu início; c) ajuizada a ação penal,
“Cita o eminente Relator lição de mas declarada extinta a pena na
Pontes, segundo a qual até mesmo ‘o sentença irrecorrida, a posse até então
próprio ladrão pode usucapir’. E isso decorrida fica inutilizada, aplicando-
corresponde à melhor interpretação se o art. 74 do CPP, isto é, a restituição
doutrinária que sobre o tema se pode da res furtiva ao lesado, com perdas e
fazer, como já se viu supra. Permitirme- danos; d) absolvido o acusado, toda a
ia, porém, acrescentar a lição de Lenine posse decorrida antes da ação penal,
Nequete sobre o tema, para que possa como a entre esta e a sentença, será
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aproveitada para a contagem ad Desnecessária, na hipótese, a
usucapionem, não se podendo conside- realização da audiência preliminar de
rar interrompida por via de processo justificação de posse, devendo toda a
onde não se concluiu pela condenação. prova ser produzida em audiência de
No concernente ao terceiro aqui- instrução e julgamento. Por outro
rente, exatamente a hipótese dos autos, lado, desnecessária também a presença
também lapidar a conclusão de obrigatória do Ministério Público: não
Lenine Nequete nesse aspecto: ‘... se cuida de usucapião de terras parti-
quanto ao terceiro que adquiriu do culares, quando a lei expressamente
criminoso a coisa, das duas uma: ou a a exige (arts. 944 e 246 do CPC), mas
aquisição se operou com justo título e de usucapião de bem móvel, pelo
boa fé e, nesta hipótese, tollitur quaestio; procedimento sumaríssimo, nos termos
ou, pelo contrário, o adquirente sabia do art. 275, II, “a” do CPC, para a qual
ou tinha razões para suspeitar da a lei não exige essa intervenção
origem criminosa da mesma e, então, obrigatoriamente.” ( 1º TACSP, Ap.
terá ele incorrido igualmente em delito 413.082-5, 7ª Câm., j. 13-6-89, rel. Juiz
(de receptação, dolosa ou culposa), Osvaldo Caron, in RT 644, p. 106 )
situação na qual colherão a seu res- “Ação de usucapião – Bem móvel
peito todas as observações expen- – Furto – A dificuldade da apuração
didas supra.’ (idem, ibidem, p. 182). da vítima do furto do automóvel usu-
Torno a enfatizar que, na espécie, capiendo, para permitir sua citação
o autor/apelado se enquadra na pessoal, ante a adulteração do número
primeira dessas hipóteses, pelo que, do chassi, é superável pela publicação
conclui-se com o monografista citado, de edital, na forma do art 231, I, CPC,
tollitur quaestio.” ( TARS, 4ª Câm. Cível, sem prejuízo do chamamento dos
Ap. 190012799 in JTARGS, nº 75, p. interessados certos, ou seja, aqueles
173–176) que, ultimamente, mantiveram regis-
Confirmam a tese as seguintes decisões: trado o veículo em seus nomes. Sen-
“Usucapião – Automóvel adqui- tença desconstituída. Apelo provido.”
rido por meio de estelionato – Novas (TA-RS – Ac. unân.da Câm. Fér. Cív.,
transferências do carro – Improcede de 19-1-94 – Ap. 193.213.295 – Rel. Juiz
reivindicatória de coisa móvel, contra Breno Mussi, in COAD, N/T, 1994, nº
quem já possui esta, por mais de três 38, súm. 66.785 ).
anos, pacificamente, com justo título
e boa fé”. (TJSP, ap. cível 73.68l )
“Usucapião – Bem móvel – Veículo 7. Posse contínua e pacífica
automotor – A circulação de veículos Para rápida inteligência dos dois con-
automotores nas vias terrestres do ceitos supra, aproveitamos o exemplo do
país exige o certificado de registro ladrão. Desde que permaneça, ininterrupta-
expedido na conformidade do Código mente, por cinco anos, na posse da coisa
Nacional de Trânsito (art. 53, caput). furtada; desde que não seja molestada a sua
Havendo dúvida sobre o número real posse pelo dono durante esse prazo, teremos
do chassi, não coincidente o de fábrica aí presentes os dois requisitos. Deixa de ser
com o existente na peça, aquele que pacífica, por exemplo, se houve interrupção
pretende ver regularizado o veículo da prescrição da ação real por uma forma
em seu poder junto à repartição típica.
administrativa do trânsito pode-se A propósito, decidiu o colendo STJ:
valer da ação de usucapião visando “Posse contínua. O ato formal de
ao reconhecimento de seu domínio. interrupção do prazo afasta a prescri-
328 Revista de Informação Legislativa
ção aquisitiva.” (REsp. 21.228-8-BA, Súmula 84 e com as novas tendências da
DJU 10-12-93) legislação sobre a promessa de compra e
“Posse pacífica. Não perde o venda é a seguinte:
caráter a posse contestada via ação “Usucapião ordinário. Promessa
possessória julgada improcedente, de compra e venda. Justo título.
ainda com liminar de reintegração”. Conceito. Tendo direito à aquisição do
(REsp. 6.569-SP, DJU 3-8-92). imóvel, o promitente comprador pode
exigir do promitente vendedor que lhe
8. Justo título e boa-fé outorgue a escritura definitiva de
Esse é um requisito para o usucapião compra e venda, bem como pode
ordinário ou de prazo menor. Para adquirir requerer ao juiz a adjudicação do
o domínio em prazo mais curto, o adquirente imóvel.
há de ter não apenas o animus domini ou Segundo a jurisprudência do STJ,
pretensão de dono, mas sim a convicção de não são necessários o registro e o
ser dono da coisa. Ele acredita e confia que instrumento público, seja para o fim
seja o legítimo dono, em face do justo título da Súmula 84, seja para que se requeira
de domínio de que dispõe, embora esse título a adjudicação. Podendo dispor de tal
seja ineficaz por algum motivo e ele desco- eficácia, a promessa de compra e
nheça o seu vício. venda, gerando direito à adjudicação,
Logo, justo título é o título hábil, em tese, gera direito à aquisição por usucapião
para transferir o domínio, embora ineficaz, ordinário. Inocorrência de ofensa ao
nulo ou anulável (escritura falsa, aquisição art. 551 do Cód. Civil. Recurso conhe-
a non domino etc. ). Boa-fé é desconhecer o cido pela alínea “c”, mas não provi-
defeito do título. Tendo o título e confiando do.” ( REsp. 32.972-SP, rel. Min. Cláu-
nele o possuidor, merece tornar-se dono por dio Santos, DJU 10-6-96, p. 20.320).
usucapião mais rapidamente, convalidando
o seu domínio adquirido por transcrição ou 9. Usucapião dos móveis:
tradição ineficazes. desnecessidade de ação, salvo
O conceito de justo título vai-se ampli-
automóvel e telefone
ando à medida que a lei e a jurisprudência
vão reconhecendo novos direitos ao promi- Somente o artigo 550 do Código Civil,
tente comprador de imóvel, tais como os em- relativo ao usucapião dos imóveis, contém
bargos à penhora independente de registro esta exigência:
imobiliário do compromisso (Súmula 84 do “... podendo requerer ao juiz que assim
STJ) e a outorga compulsória da escritura o declare por sentença, a qual lhe
definitiva por meio de sentença, conforme o servirá de título para a transcrição no
último figurino do art. 84 da Lei 8.078/90 registro de imóveis”.
(Código do Consumidor), transplantado Relativamente aos móveis, o artigo 618
para o art. 461 do CPC. O STJ não considerou limita-se a dizer:
justo título a promessa de venda por “Adquirirá o domínio da coisa
instrumento particular não registrável (RSTJ móvel o que a possuir como sua, sem
4º/1.468) e a promessa de cessão de direitos interrupção, nem oposição, durante
não registrada (AI 121.060-RS, DJU 19-12-96), três anos”.
esta última assim ementada: “A promessa Por sua vez, o Código de Processo Civil
de cessão de direitos sobre imóvel, sem só regula a ação de usucapião de terras
registro no álbum imobiliário, não é consi- particulares (arts. 941–945).
derada como justo título para fins de usu- O usucapião dos móveis comuns é
capião.” Mas a decisão em harmonia com a automático. Independe de ação declaratória.
Brasília a. 36 n. 143 jul./set. 1999 329
Nos imóveis, é necessária a ação para Não é bem assim hoje na jurisprudência.
aperfeiçoar o domínio, inclusive com o A questão não seria não ser lícito a um
registro declaratório, ensejador da alienação excluir da posse os demais, mas sim o fato
e da constituição de outros direitos reais. de um condômino descumprir a norma e
Nos móveis comuns, nada disso é neces- excluir de fato os demais da posse, como
sário. O usucapiente já tem posse e, portan- acontece. Nem o condomínio exclui por
to, tradição, que presume o domínio. Se o natureza a posse com ânimo ou pretensão
eventual pretenso proprietário vier com a de dono, fenômeno subjetivo que pode
busca e apreensão ou reivindicação, o ocorrer até por inversão do título nas posses
possuidor se defenderá com a exceção de contratuais. A tendência moderna é admitir
usucapião e basta. o usucapião entre condôminos, desde que
Eventualmente pode-se exigir a ação, por presentes os requisitos da posse exclusiva
analogia com os imóveis, quanto a certos de um deles, localizada ou sobre todo o
móveis que dependem de registro policial imóvel, com animus domini e diante da
ou administrativo, como o automóvel, para inércia dos demais pelo prazo legal. A posse
efeito desse registro e liberação ao tráfego. O em nome próprio é decisiva e dependerá das
mesmo com relação ao telefone. Segue o circunstâncias e da prova.
procedimento sumário do artigo 275, II, “a”, Vejam-se estas decisões:
do CPC (1º TACSP, RT 644/106). “Para obter usucapião sobre imó-
A propósito do telefone, há decisões vel em condomínio, o condômino deve
considerando sua assinatura um direito provar sua posse com exclusão dos
pessoal, não usucapível. Mas a tendência direitos possessórios dos demais.
hoje é considerá-lo um bem patrimonial Estes não precisam residir no imóvel
objeto de posse, uso e locação, negociável, para conservar seus direitos.” (RT
penhorável e, portanto, usucapível, confor- 502/79, 538/55, 544/73).
me as seguintes decisões do Superior “Para que a posse do herdeiro seja
Tribunal de Justiça e de outros tribunais: obstáculo à partilha é de mister que
REsp. 41.611-6-RS, 3ª Turma, DJU 30-5-94; ela se exerça com exclusão dos de-
REsp. 64.627-8-SP, 4ª Turma, DJU 25-9-95; mais.” (RT 525/7).
RT 713/226, 723/298; JTA 145/498; RTJE “A ação de usucapião não pode
136/137. ser proposta pelo herdeiro contra os
outros, quando não manifesta a
10. Usucapião entre condôminos intenção de possuir com exclusivi-
Caio Mário da Silva Pereira, com apoio dade.” (RJTAMG 58/59, p. 92).
em Lafayette, Assis Moura e Serpa Lopes, “Usucapião – Condomínio pro
assim escreveu a esse respeito: indiviso – Posse exclusiva do herdeiro
“E em nosso direito, assim antigo sobre todo o imóvel com os demais
quanto moderno, não tem cabida o requisitos. Inércia dos condôminos –
usucapião entre condôminos; uma Possibilidade – (RJTJSP 91/235, RT
vez que não é lícito a um excluir da 680/94).
posse os demais, mostra-se incompa- “Usucapião. Condomínio. Pode o
tível com esta modalidade aquisitiva condômino usucapir, desde que exerça
a condição condominial, que por posse própria e exclusiva sobre o
natureza exclui a posse cum animo imóvel. Caso, porém, em que exercia a
domini.” (“Instituições de Direito posse em nome dos demais. Improce-
Civil”, Forense, Rio, v. IV, 9ª ed., nº dência.“ (STJ, REsp. 10.978-RJ, DJU
307, p. 114). 9-8-93).
330 Revista de Informação Legislativa
11. Usucapião de imóveis públicos 12. Usucapião especial rural ou pro
Eduardo Espínola escreveu: labore
“Os bens públicos, de qualquer A propósito, Washington de Barros
espécie, não podem ser adquiridos por Monteiro escreveu:
usucapião. No direito anterior, os bens “A Constituição de 1946, no art.
dominiais do Estado podiam ser 156, § 3º, secundando as de 1937 (art.
adquiridos por usucapião extraordi- 148) e 1934 (art. 125), instituiu outra
nário; mas o prazo requerido era de modalidade de usucapião, o pro labore,
quarenta anos (Lafayette – Direito das em benefício daquele que, não sendo
coisas, cit., p. 169; Carlos de Carvalho proprietário rural nem urbano, ocu-
– Nova Consolidação, art. 431, pará- par, por dez anos ininterruptos, sem
grafo único). oposição nem reconhecimento de
O Código Civil, porém, depois de domínio alheio, trecho de terra não
classificar os bens públicos, no art. 66, superior a vinte e cinco hectares,
dispõe no art. 67: ‘Os bens de que trata tornando-o produtivo pelo seu
o artigo antecedente só perderão a trabalho e tendo nele sua morada.
inalienabilidade que lhes é peculiar, Reunidos tais requisitos, o ocupante
nos casos e forma que a lei prescrever.’
adquire a propriedade, mediante
Alguns doutores e comentadores e uma
sentença declaratória, devidamente
parte da jurisprudência se pronun-
transcrita.
ciaram contra o usucapião dos bens do
De acordo com esse dispositivo,
domínio do Estado, em face do disposi-
reproduzido na Lei nº 4.504, de 30-
tivo do Código. A interpretação oposta
foi admitida por diversos autores e por 11-1964 (Estatuto da Terra), art. 98, o
decisões dos tribunais. Mas em face dos usucapião pro labore só pode concernir
dispositivos dos Decretos nos 19.924, a prédio rústico, isto é, a imóvel rural
de 27 de abril de 1931, e 22.785, de 31 destinado à pecuária e à agricultura,
de maio de 1933, ficou definitivamente ou outra atividade produtiva. Não se
excluído o usucapião de quaisquer estende, destarte, a terrenos urbanos ou
bens públicos: ‘Art. 2º (do Decreto – citadinos. Distingue-se o usucapião
de 1933): ‘Os bens públicos, seja qual pro labore do previsto pelo Código
for a sua natureza, não são sujeitos a Civil, porquanto seu objetivo é a
usucapião’.” (“Posse, Propriedade, fixação do homem no campo. Requer
Condomínio, Direitos Autorais”, ocupação produtiva do imóvel,
Conquista, Rio, 1956, p. 221– 222 ). devendo neste morar e trabalhar o
A Súmula 340 do STF veio confirmar que usucapiente.
o Decreto de 1933 era lei interpretativa ou Para o seu reconhecimento judicial,
apenas reiterava o que já dispunha o Código dispensam-se justo título e boa-fé, mas
Civil. E fê-lo nestes termos: não poderá abranger área superior a
“Desde a vigência do Código Civil, vinte e cinco hectares. Por último,
os bens dominicais, como os demais anote-se ainda que até bens públicos
bens públicos, não podem ser adqui- podem ser objeto dessa forma de usu-
ridos por usucapião.” capião (Dec.-lei nº 9.760, de 5-9-1946,
O parágrafo 3º do artigo 183 e o parágrafo art. 5º, parágrafo único; Dec.-lei nº 710,
único do artigo 19l da vigente Constituição de 17-9-1938, art. 12, § 1º; Lei nº 4.504,
federal (1988) mantiveram o princípio amplo: de 30-11-1964, arts. 97 – 102).” (“Cur-
“Os imóveis públicos não serão so de Direito Civil”, Direito das Coisas,
adquiridos por usucapião.” Saraiva, SP, 14ª. ed., p. 130-131).
Brasília a. 36 n. 143 jul./set. 1999 331
A Constituição federal de 1967 (art. 164) O professor Sílvio Rodrigues entende
e a Emenda nº que o artigo 188 da Constituição parece dis-
a matéria nestes termos: tinguir terras públicas de terras devolutas,
“A lei federal disporá sobre as para fins de política agrícola, criando nova
espécie de bens dominiais, sujeitos ao
de preferência para aquisição, até cem usucapião (Rev. Liter. de Direito, SP, jan/
hectares, de terrras públicas por aque- fev/97, p. 8 e 9).

seu trabalho e o de sua família.” 13. Usucapião especial urbano:


Houve então quatro inovações: a) a Cons- requisitos – termo inicial do prazo–área
de até 250 m²
sobre a matéria, em vez de regular direta-
mente; b) aumentou a área de terra para até O artigo 183 e seu parágrafo da Consti-
tuição federal de 1988 criaram nova moda-
d) não mencionou prazo de ocupação. lidade de usucapião, com os seguintes re-
Cumprindo a delegação constitucional, a quisitos:
º 6.969, de 10-12-81, assim regulou a a) posse contínua e pacífica, com animus
domini, pelo prazo de cinco anos;
a) limitou a área a 25 hectares ou ao b) área urbana de até 250 m²;
módulo rural superior; b) referiu-se a “terras c) utilização como moradia própria ou
da família;
c) fixou em cinco anos o prazo de ocupação. d) não sendo proprietário de imóvel
Sobreveio a Constituição federal de 1988, urbano ou rural;
e) não recai sobre imóvel público.
único, fixou os seguintes requisitos para o Por se tratar de direito novo e a fim de
usucapião especial rural: evitar surpresa e afronta ao direito de
propriedade, a jurisprudência vai-se fir-
imóvel rural ou urbano; mando no sentido da contagem do prazo
b) possuir com animus domini; somente a partir da vigência da Constitui-
c) pelo prazo de cinco anos, sem inter- ção, como se pode conferir: TAMG: Ap.
rupção nem oposição; 122.426-0, BDI, 1993, nº 2, p. 23; TARS: 1ª,
d) área de terra em zona rural não 4ª e 5ª Câmaras, BDI, 1993, nº 18, p. 12,
superior a cinqüenta hectares; JTARGS 81/145, 91/167, RT 705/92; TJSP:
e) tornando-a produtiva por seu trabalho Ap. 194.233-1, BDI, 1994, nº 12, p. 22; Ap.
ou de sua família e tendo nela sua morada; 242.663-1, BDI, 1996, nº 14, p. 23; STF, RE
f) o imóvel não pode ser público. 145.004-MT, j. 21.5.96.
Vale citar este julgado do TJSP na Ap.
12.1. Terras devolutas 203.229-1/9:
Como espécies do gênero “imóveis “Usucapião urbano – art. 183 CF.
públicos”, as terras devolutas estariam Restou definitivamente assentado
excluídas do usucapião pelo parágrafo ocorrer impossibilidade jurídica do
único do artigo 19l da Constituição, amplo e pedido de usucapião com base em
incisivo. Estaria derrogada a Lei nº 6.969/81 posse anterior à CF. Seria surpresa
e restaurada a Súmula 340 do STF. Essa a iníqua e confisco odioso dos bens
maioria das opiniões (Theotônio Negrão, daqueles que confiavam no ordena-
CPC, Usucapião Especial, Saraiva, 28ª ed., mento jurídico.” (BDI, SP, 1994, nº 22,
p. 1318, nota 1ª ao art. 2º da Lei 6.969/81; p. 19).
Maria Helena Diniz, Cód. Civil Anotado, A propósito da redução de prazo de
Saraiva, 1995, nota ao art. 550). prescrição, já tivemos importante precedente
332 Revista de Informação Legislativa
na Lei nº 2.437, de 7-3-55, que reduziu os nabilidade: desapropriação, execução por
prazos máximos de trinta para vinte anos, dívidas fiscais e subrogação (RTJ 106/770).
entre outros, cuja interpretação gerou a A decisão não é pacífica. Como modo
Súmula 445 do STF, segundo a qual a nova originário de aquisição (nº 3.1. supra), o
Lei se aplicou aos prazos em curso sem usucapião não guarda relação com o
surpresa para os proprietários negligentes, proprietário anterior.
em virtude do longo período de sua vacatio Além disso, o usucapião extraordinário
legis (publicada em 7-3-55, só entrou em vigor supera todos os vícios possíveis da posse,
em 1º-1-56). conforme decidiu o Tribunal de Justiça de
Logo, tratando-se de nova modalidade São Paulo, a propósito de módulo rural
de usucapião e a fim de evitar surpresa para (RJTJSP 141/194). A execução por dívida
os proprietários, o prazo de usucapião fiscal já se ampliou para atingir também o
especial urbano se conta a partir da nova imóvel inalienável em condomínio, cujas
Constituição que o instituiu. taxas de administração são imprescindíveis.
Outro aspecto polêmico do usucapião
especial urbano diz respeito ao requisito 15. Conclusão
“área urbana de até 250 m²”. A interpretação
O usucapião é o mais poderoso modo de
literal excluiria até mesmo o terreno com
aquisição dos bens. Consagra por excelência
acessão ou edificado. A interpretação
o princípio ex facto jus oritur. Joga por terra
sistemática incluiria o terreno edificado,
registros imobiliários, aquisições por
recorrendo-se ao outro requisito: “utilização
acessão e por sucessão hereditária.
como moradia”. Não se mora nem sobrevive
Tem como requisitos básicos a posse
em simples área sem teto... Mas tal interpre-
qualificada dos bens e o decurso do tempo,
tação incluiria até mesmo um luxuoso
e por fundamento subjetivo a renúncia
apartamento de 250 m², o que seria um
presumida do proprietário negligente, que
contra-senso. Logo, a interpretação teleoló-
manifesta desprezo por seus bens. Até as
gica do instituto evita tais excessos. O texto
coisas carecem de trato, assistência e
refere-se a uma área de até 250 m², com as
acessões usuais dessa dimensão de terreno. vigilância.
Em regra, não se constrói uma mansão em Seu fundamento objetivo último reside
250 m², mas uma habitação modesta ou na ordem pública e na paz social, que
popular. Por analogia, poder-se-á compre- decorrem da segurança dos cidadãos e das
ender, no conceito, um apartamento popu- famílias, confiantes na estabilidade de seu
lar. Os demais exigiriam usucapião comum. domínio sobre os bens essenciais da vida
Tudo que extrapolar a finalidade visada pela em sociedade. A segurança é de todos,
Constituição deverá ser excluído do usuca- proprietários titulados e simples possuido-
pião especial. Na dúvida, não se aplica o res a longo prazo. A estes o usucapião
usucapião excepcional, que visa proteger o protege diretamente e àqueles, pela via
possuidor de habitação popular. indireta do reforço ou convalidação de seus
títulos eventualmente defeituosos. Não
haveria tranqüilidade se fosse eficaz ou
14. Cláusula de inalienabilidade proveitosa a pesquisa de nulidades nos
A Primeira Turma do Supremo Tribunal títulos de domínio dos imóveis por gerações
Federal, em decisão unânime no RE 97.707- sucessivas e através dos séculos, pela via
PR, sendo relator o Ministro Alfredo Buzaid, crucis da probatio diabolica.
julgou, com apoio em Clovis Beviláqua, Seu valor social decorre também da
Barros Monteiro e Orlando Gomes, não valorização da posse dos bens, com todos
usucapível o imóvel gravado de inalienabi- os consectários do uso e cultivo em proveito
lidade. Só se admitem três exceções à inalie- e benefício de todos, direta e indiretamente.
Brasília a. 36 n. 143 jul./set. 1999 333
Mas, para evitar manipulações e artifí- COSTA, Dilvanir José da. O sistema da posse.
Artigo in Rev. de Inform.
cios na prática de tão relevante instituto
Legislativa, nº 139, pp 109-117 e in RT 757/
jurídico, a lei o cerca de requisitos técnicos 703-714.
que exigem perícia no seu trato, a exemplo DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado.
da posse com animus domini, que tanto SP: Saraiva, art. 550.
ESPÍNOLA, Eduardo. Posse, propriedade,
desafia a argúcia dos profissionais do
condomínio e direito autoral. Rio: Conquista.
direito, aos quais prestamos modesta GOMES, Orlando. Direitos Reais. Rio: Forense.
homenagem por meio dessa pesquisa. LAFAYETTE. Direito das Coisas. Rio: Freitas
Bastos.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de
Direito Civil. Rio: Forense, v. IV.
Bibliografia PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito
Privado, t.XV. Rio: Borsoi
BARROS MONTEIRO, W. Curso de Direito RODRIGUES, Sílvio. Artigo sobre usucapião
Civil. Direito das Coisas. SP: Saraiva. de terras devolutas in “Revista Literária de Direito”,
BEVILÁQUA, Clovis. Direito das Coisas. Rio: jan/fev 1997, pp 8 e 9, SP.
Forense. SERPA LOPES, M.M. de. Curso de Direito Civil.
CHAVES, Raul. A usucapião e o crime in Direito das Coisas. Rio: Freitas Bastos.
“Estudos jurídicos em homenagem à Faculdade de THEOTÔNIO NEGRÃO. CPC. Usuc. especial.
Direito da Bahia”. SP: Saraiva. SP: Saraiva.

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