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Análises Sociais
Contemporâneas

Luiz Fernando Dias Duarte & Edlaine de Campos Gomes

TrêsFamílias
Identidades e Trajetórias Transgeracionais
nas Classes Populares
ISBN — 978-85-225-1580-6
Copyright © Luiz Fernando Dias Duarte e Edlaine de Campos Gomes

SÉRIE ANÁLISES SOCIAIS CONTEMPORÂNEAS


Organização: Myriam Lins e Barros, Clarice Peixoto e Maria Luiza Heilborn

Direitos desta edição reservados à


EDITORA FGV
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Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou
em parte, constitui violação do copyright (Lei no 9.610/98).
Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade dos autores.

1a edição — 2008

PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS : Luiz Alberto Monjardim


EDITORAÇÃO E LETRÔNICA: FA Editoração Eletrônica
REVISÃO: Aleidis de Beltran e Mauro Pinto de Faria
CAPA: Adriana Moreno
A POIO :

Ficha catalográfica elaborada pela


Biblioteca Mario Henrique Simonsen / FGV

Duarte, Luiz Fernando Dias


Três famílias : identidades e trajetórias transgeracionais nas classes
populares / Luiz Fernando Dias Duarte, Edlaine de Campos Gomes. —
Rio de Janeiro : Editora FGV, 2008.
308 p. (Análises sociais contemporâneas)

Inclui bibliografia.

1. Família — Aspectos sociais — Rio de Janeiro (RJ). 2. Gerações.


I. Gomes, Edlaine de Campos. II. Fundação Getulio Vargas. III. Título.
IV. Série.
CDD – 301.42
That night, I will have not so much a dream as an image
that repeats itself. I see my own straining body which
stands shaped like a star and realize gradually I am part
of a human pyramid. Below me are other bodies that I
am standing on and above me are several more, though I
am quite near the top. With cumbersome slowness we are
walking from one end of the huge living room to the other.
(...) But at this point we are approaching the door which
being twenty feet high we will be able to pass through only
if the pyramid turns sideways. Without discussing it the
whole family ignores the opening and walks slowly through
the pale pink rose-coloured walls into the next room.
Ondaatje (1983:27)

On conçoit généralement les voyages comme un


déplacement dans l’espace. C’est peu. Un voyage s’inscrit
simultanément dans l’espace, dans le temps, et dans la
hiérarchie sociale.
Lévi-Strauss (1955:94)

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S u m ário

Introdução 9

1 A pesquisa na própria sociedade (e sobre a própria família) 31

2 A família Costa 59

3 A família Duarte 95

4 A família Campos 123

5 Casa e família nas classes populares 161

6 Condições diferenciais de reprodução 191

7 Pertencimento familiar, auto-afirmação, individualização 241

Referências bibliográficas 285

Anexos 305
Quadro genealógico da família Costa
Quadro genealógico da família Duarte
Quadro genealógico da família Campos
Mapas de Jurujuba
Mapa do Estácio
Mapa de São João de Meriti e Éden
Mapa de São João de Meriti

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I n t r o d ução

Feliz aquele que passou a vida nos campos de seus pais!


A casa em que viveu menino é ainda a de ancião.
Apoiado em seu cajado, no chão em que engatinhou,
Conta os longos anos de sua mesma cabana.
Claudius Claudianus, apud Novak Neri (1992)

A presenta-se aqui um estudo da dinâmica social de três redes familiares


de classe popular na área do Grande Rio de Janeiro, observada transge-
racionalmente como tensão entre a referência a uma base identitária (simbo-
lizada pela relação com uma casa familiar) dotada de um ethos compartilhado
(eventualmente expresso através de um pertencimento religioso) e a referência
ao trajeto de auto-afirmação ou “individualização” relativa de alguns de seus
membros e novos núcleos familiares descendentes.
São dimensões constitutivas desse quadro: a situação de luta ingente pela
garantia de sobrevivência econômica; o regime de identificação e solidarieda-
de intrafamiliar generalizado; a preservação e manutenção de um espaço de
habitação referencial essencial para a rede familiar (e da qualidade moral de
sua vizinhança ou entorno); a competição diferencial específica dentro das
fratrias (e das linhagens decorrentes); os complexos efeitos das mobilidades
ascendentes e descendentes entre os membros e as linhagens (o que inclui
situações de trabalho, estudo, agência política, casamento etc.); os efeitos de
conjuntura (econômicos, políticos, religiosos etc.) relacionados aos diferentes
momentos do ciclo de desenvolvimento das unidades domésticas; as implica-
ções das marcas de “cor” e da hexis corporal construída dentro das redes; e os
efeitos de ethos religioso (incluindo a recente emergência de uma pluralidade
religiosa popular no Brasil). Serão utilizados materiais relativos aos projetos,
rituais e dramas que pontuam a história dessas redes, com seus mitos constitu-
tivos, suas referências identitárias compartilhadas, seus personagens paradig-

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10 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

máticos, suas franjas identitárias e seus estilos ou regimes de controle moral e


de satisfação psicossocial.
Três situações empíricas diferentes permitem um exercício comparado
sistemático. A primeira decorre de pesquisa realizada por L. Duarte1 com uma
família de implantação imemorial no bairro de Jurujuba, município de Nite-
rói. A convivência com diversas gerações dessa rede familiar (fortemente asso-
ciada ao trabalho na pesca) ao longo de três décadas permite uma percepção
aguda dos processos identitários e trajetórias a partir da casa da matriarca,
falecida ao final dos anos 1980, e do casal encabeçado por seu filho mais ve-
lho, atualmente com mais de 80 anos. As características constitutivas de um
“bairro de pescadores” são indissociáveis dos trajetos que se afastam progressi-
vamente desse marco identitário em múltiplas direções. A diferenciação moral
das linhagens colaterais pela primeira geração passou, inclusive, a se expressar
recentemente no código da pluralidade religiosa.
A segunda decorre de outra pesquisa de Duarte com os descendentes de
uma rede familiar implantada no começo do século XX no bairro do Estácio,
município do Rio de Janeiro, e fortemente associada ao serviço público mu-
nicipal. O casal fundador dessa rede faleceu nos anos 1950, época em que a
segunda geração atingia o ápice de um processo de longa luta pela auto-afir-
mação e estabilização social. A casa original, no entanto, continuou até hoje
habitada por diferentes membros da família, apesar da crescente desqualifica-
ção do bairro, e ainda povoa a imaginação de parte dos descendentes. O autor
é membro de um ramo socialmente ascendente dessa rede, e essa condição é
parte da reflexão em curso na pesquisa e neste livro.
A terceira decorre de pesquisa feita por E. Gomes com uma rede familiar
implantada no bairro de Éden, município de São João de Meriti, Baixada Flu-
minense, nos anos 1950 e até hoje relacionada ao complexo residencial inau-
gurado pelo casal original, migrado do interior de Minas Gerais. O patriarca
faleceu em 1988, e sua esposa, em 2003. É uma rede dotada de grande varie-
dade de relações com o mundo do trabalho, do controle moral e do estudo,
enfrentando hoje com toda a força os efeitos da diferenciação social e da emer-
gência da pluralidade religiosa popular brasileira. A autora também é membro
de um ramo socialmente ascendente dessa rede, o que permite o adensamento
da reflexão ensejada em conjunto com L. Duarte sobre os processos identitá-
rios e as trajetórias transgeracionais a partir de um núcleo familiar original de
classe popular.

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Introdução 11

O presente livro resulta, mais diretamente, de pesquisa conduzida por


L. Duarte e E. Gomes sobre família, reprodução e ethos religioso. O projeto
original previa o estudo e a discussão da relação entre a construção social
da pessoa, o entranhamento familiar e os valores e práticas que envolvem
a reprodução humana na sociedade brasileira contemporânea. Propunha-se
que um foco analítico e comparativo importante seriam as diferenças de ethos
religioso envolvido em cada estágio dos ciclos do desenvolvimento pessoal e
doméstico. Deveriam estar aí tematizadas questões tais como as estratégias
de formação ou manutenção das redes de aliança/filiação, o comportamento
sexual e reprodutivo, o tipo e grau de adesão a determinadas opções religiosas
e, finalmente, as condições de inter-relação dessas dimensões nas carreiras e
trajetórias dos diferentes sujeitos sociais. O trabalho contou com outros pes-
quisadores em diferentes momentos de sua consecução e resultou em diversas
publicações anteriores.2 O empreendimento que resultou neste livro, embora
tenha sido especificamente conduzido por seus dois autores, nutriu-se das
continuadas discussões e trocas intelectuais ocorridas nesses últimos cinco
anos sobretudo com Naara Luna, Rachel Aisengart Menezes, Marcelo Nativi-
dade, Juliana Jabor, Diana Lima e Paulo Victor Leite Lopes. Ana Daou, Octavio
Bonet, Zoy Anastassakis e Carlos Eduardo Dullo foram prestimosos auxiliares
e interlocutores em diferentes momentos da pesquisa.3
Pretende-se aqui proceder claramente a um experimento. O que insti-
gou os autores, em primeiro lugar, foi a possibilidade de iluminar a dinâmica
transgeracional através da comparação de três casos muito diferentes, por di-
versos motivos, e no entanto associáveis pela sua origem em algum segmento
das “camadas” ou “classes populares” do Grande Rio de Janeiro ao longo do
século XX. Nos três casos, decidiu-se partir da relação originária entre um
casal e uma residência (ou complexo residencial), envolta por todas as demais
propriedades de sua condição social nessa época.4 A partir daí, procurou-se
acompanhar a trajetória da descendência desses casais de referência até o pon-
to em que sua dinâmica ainda parecesse depender diretamente das condições
e desafios colocados pelo “ponto zero” do processo. O meio do século repre-
senta como que uma dobradiça temporal entre um dos casos, mais pretérito, e
os dois casos contemporâneos. Com efeito, o casal original da família Duarte
se constituiu em 1900 e deixou a cena nos anos 1950, enquanto os outros dois
se constituíram entre os anos 1940 e 1950 e continuaram ativos até o final
do século (os dois membros do casal Campos faleceram entre 1980 e 2003, e

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12 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

os dois membros do casal Costa ainda estão vivos, ainda que muito idosos e
alquebrados).
Assim, não se trata, neste livro, de produzir uma etnografia densa de cada
um desses casos, com o exemplar efeito monográfico tão essencial para a refle-
xão antropológica. Essa tarefa exigiria a produção de três livros diferentes (que
podem, quiçá, vir a ser escritos em algum tempo vindouro). As informações
trazidas à consideração do leitor são as que mais pareceram iluminar a questão
analítica central, embora seja essa uma fronteira claramente arbitrária. Consi-
derações de ordem prática, como as da limitação ao tamanho de um livro, cer-
tamente prevaleceram aí, mais do que a possibilidade de separar claramente
os dados etnográficos pertinentes e impertinentes para o argumento central.
Como sempre em antropologia, o pressuposto de uma íntima conexão entre
todas as dimensões de cada caso de experiência humana permanece pulsante,
alertando para o risco das pré-construções e vieses analíticos.
A informação etnográfica é díspar entre os três casos por diversas razões.
A primeira é que a família Duarte foi observada a partir do foco de duas ge-
rações passadas, cujos membros já se encontravam quase todos falecidos no
começo dos anos 2000. Os dados foram assim obtidos num confronto entre as
memórias pessoais do pesquisador e as de alguns outros membros de sua gera-
ção (a terceira) e da seguinte, a partir de um trabalho conjunto sobre o acervo
de fotos da família (e a rememoração da experiência social passada, assim
suscitada). É também essa família bem menor em tamanho do que as outras
duas, no âmbito de filiação e geração privilegiado. A família Costa é retratada
a partir de um trabalho mais convencionalmente “etnográfico”, decorrente de
um longo contato de pesquisa e convivência de L. Duarte com um espaço so-
cial distante do seu próprio e concentrado em uma série de anos das décadas
de 1970 e 1980 e de outra série desta primeira década do século XXI. O casal
de referência concentra muito o acesso do pesquisador ao universo social do
campo (com a exceção do período de seis meses em que o pesquisador residiu
no bairro, no ano de 1976, e das diversas saídas de pesca de que participou
naquela época). A família Campos é apresentada também numa situação con-
temporânea, embora o casal fundador já tivesse falecido à época do início
da pesquisa. E. Gomes pertence à terceira geração da família e pôde, assim,
combinar suas memórias pessoais com uma atitude sistemática de observação
e entrevistas. Trata-se de uma família muito mais numerosa do que as outras
duas, o que implica um volume de dados correspondentemente maior.

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Introdução 13

Nos três casos foi explicitado aos interlocutores (parentes e não-parentes)


que se procedia a uma pesquisa sobre “família”, com mais ênfase na história
e memória familiares no caso das famílias Duarte e Costa, e com mais ênfase
na religião no caso da família Campos (embora, mais ao final, também se te-
nha dado ênfase à história e à memória). Essa explicitação não correspondeu,
como é evidente, a um comum entendimento entre esses círculos sobre o que
pudesse significar uma pesquisa sobre tal tema (nos três casos, repontou em
algum momento a imagem de uma pesquisa “genealógica”, de recuperação
da memória dos encadeamentos passados das gerações). No caso da família
Costa, como o pesquisador fizera originalmente um estudo local centrado nas
questões do trabalho na pesca, essa associação sempre reforçou a tendência a
que a memória da família deslizasse para a memória do bairro e do trabalho
(que ainda é pensado como de “pescadores”).
Levantou-se assim, para os pesquisadores, uma série de inquietações e
cuidados com a dimensão ética do trabalho. No caso das próprias famílias,
não se poderia, por princípio, adotar a estratégia do anonimato dos infor-
mantes, o que não deixava de constituir um desafio incômodo. No caso da
família Costa houve grande hesitação. Embora desde o começo fosse intenção
do pesquisador apresentá-la com seus nomes verdadeiros, em função do tipo
de material apresentado e do tipo de relação mantida com os seus membros,
houve um momento em que ele cogitou de adotar o anonimato, por consi-
derar que — embora não se explicitasse nada que não tivesse sido mais ou
menos notório no interior da família em algum momento ou que pudesse
comprometer sua imagem pública — sempre se trataria de uma objetivação
estranha à auto-imagem espontânea e contemporânea de todos os seus mem-
bros, podendo vir a causar mal-estar.5 Afinal, resolveu o pesquisador levar ao
conhecimento de seu principal informante e cabeça da rede estudada o texto
do capítulo 2 deste livro, o mais etnográfico e mais crítico — no sentido de
mais diretamente expor informações objetivadas sobre essa família. Uma vez
obtido um claro aval para a publicização desse material, foi tomada a decisão
de explicitar a identidade de toda a rede. Mas o tema e suas implicações são
abordados no primeiro capítulo.
No que toca às três famílias, houve a retenção de um número pequeno de
informações nos casos em que sua exposição pública pudesse ter implicações
de segurança (para os vivos) ou de estigma para um ou outro informante ou
membro das redes (ainda que mortos). Trata-se de dados que os pesquisado-

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14 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

res, de qualquer forma, consideram que não interferem de maneira nítida ou


intensa nas interpretações aqui apresentadas (ou que não desmentem quais-
quer de suas hipóteses). Embora considerados mais delicados, alguns dados
sobre a família Campos foram incluídos na análise com a ciência e autorização
dos familiares envolvidos, a fim de contextualizar a inserção da casa nos códi-
gos morais do bairro.
Embora se trate de uma dimensão séria e crítica o fato de esta pesquisa
ter se voltado — em parte — para segmentos das próprias famílias dos pes-
quisadores, não se pretende exercitar aqui um particular aprofundamento da
reflexão sobre o problema da proximidade/distanciamento do pesquisador em
relação ao mundo observado. Essa dimensão pode ser considerada como a
segunda característica do experimento em curso e será tratada no capítulo 1,
porém mais para ser distinguida das outras ocorrências ou análises do tema do
que propriamente para ser exaustivamente discutida. Trata-se simplesmente, é
necessário repetir, de um exercício restrito, controlado, de comparação entre
três configurações identitárias — que compartilham elementos comuns e se
distinguem por muitos outros — e seus destinos sociais através de algumas ge-
rações. A condição de membros das redes familiares em questão é inseparável
de outra igualmente marcante: as trajetórias dos pesquisadores os trouxeram
a uma posição de estranhamento e reflexividade diferencial em relação a sua
condição social de origem (ou a parte dela, pelo menos), o que é ao mesmo
tempo um pressuposto e uma característica do material e da análise aqui apre-
sentados.
A tradição dos estudos de “cultura popular” ou de “cultura das classes
populares” é composta por diversas linhas tradicionais das quais este trabalho
se nutre, mas também se afasta. Não se trata, em primeiro lugar, de propor
alguma nova formulação para a especificidade dessas possíveis “subculturas”
(ou de seus princípios estruturantes). Também não se trata de uma contri-
buição explícita à tradição dos estudos de “cultura operária” ou das “classes
trabalhadoras”, uma vez que uma boa parte dos atores aqui apresentados não
se considera (ou jamais se considerou) pertencente a um operariado, nem de-
fine sua identidade prioritariamente enquanto “trabalhador(a)”. Finalmente,
este livro dialoga apenas obliquamente com a questão da marginalidade e da
violência que acometem a maioria dos bairros populares das grandes cida-
des brasileiras, embora alguns dos personagens sobrevivam nessa zona limi-
nar do “trabalho por conta própria”, do comércio ambulante ou da “viração”.

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Introdução 15

Duas das três casas axiais encontravam-se, nos seus respectivos períodos de
observação, muito melhor protegidas da violência do que a maior parte das
zonas residenciais de classe popular urbana, sobretudo nas últimas décadas,
em relação ao caso mais contemporâneo. A terceira casa acompanhou mais de
perto o adensamento populacional das áreas pobres da Baixada Fluminense,
encontrando-se assim mais próxima dos cenários de violência, sem fazer par-
te tampouco de algum de seus mais dramáticos epicentros. Em apenas dois
dos casos pode-se reconhecer, na linhagem central ou em suas proximidades,
alguma presença do que é chamado, no modelo marxista, de lumpemprole-
tariado, embora esse limite também possa se apresentar nas franjas colaterais
mais distantes da terceira rede de parentesco em questão. Mesmo que as ca-
sas tenham-se tornado progressivamente vizinhas de favelas ou de periferias
muito pobres, com todas as implicações físicas e morais dessa proximidade na
vivência popular contemporânea, a tendência prevalecente foi a sua distinção
ou afastamento dos limites mais baixos da precariedade (e, eventualmente, da
indignidade) da reprodução social. No contexto da associação prioritária, hoje
prevalecente na “opinião pública”, da imagem dos bairros populares com a
marginalidade e a violência, em função de condições graves, notórias e muito
generalizadas de convivência com uma violência cotidiana e sistêmica aí pre-
dominantes, este trabalho contribui para a visibilização de núcleos familiares
e formas de reprodução que são majoritariamente distantes daquela imagem.
Para a maioria dos personagens aqui aportados, apresentar certa “dignida-
de” moral, apesar das duras dificuldades enfrentadas, parece ser um ponto
de honra suadamente defendido. As poucas exceções a esse padrão acabam
muitas vezes por ser relidas ou reelaboradas naqueles moldes (inclusive por
vias religiosas). De qualquer forma, embora o objetivo do trabalho não seja
etiquetar as unidades familiares aqui analisadas, proceder-se-á a uma revisão
dos modelos que se acaba de evocar, de modo a melhor ressaltar algumas pro-
priedades desses perfis sociais.
O problema da modelização ou classificação dos diversos segmentos,
camadas, classes ou grupos sociais nas sociedades ocidentais modernas tem
sido um dos mais permanentes desafios do pensamento social desde o sé-
culo XVII, legado com grave peso às ciências sociais emergentes no século
XIX. A dissolução do “antigo regime” das sociedades européias, caracterizado
essencialmente por estamentos de status atribuído, cedeu lugar a uma nova
configuração em que a possibilidade relativa de aquisição de novos status se

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16 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

impunha como uma dimensão ideológica importante. Entre as batalhas ideo­


lógicas que levaram às “revoluções”, por um lado, e a complexidade dos siste-
mas de classificação social delas emergentes, por outro, prevaleceu uma nítida
classificação triádica: a oposição entre as “elites” e o “povo”, entrecortada pela
gente “do meio” (remediados, middlings, classes ou camadas médias). Inúme-
ras modelizações especificadoras dessa oposição foram propostas desde então,
obedecendo inclusive às consideráveis mudanças nas condições sociais de re-
produção de todos os diferentes grupos ao longo dos dois últimos séculos. A
definição da abrangência deste trabalho como referente às “camadas popu-
lares” exige, portanto, uma revisão dessa problemática e uma justificação da
categoria privilegiada, o que será empreendido no capítulo 7.
O problema da modelização ou da classificação dos grupos é indissociá-
vel da temática da “mudança social”, ou seja, da possibilidade de algum tipo
de “mobilidade” ou “ascensão social”, de aquisição de status diverso do que foi
atribuído aos sujeitos em seu “berço” social. A complexidade e multiplicidade
tanto dos processos de transformação das condições de reprodução quanto das
representações sobre sua posição na sociedade fazem com que a compreen-
são dessa dinâmica seja um desafio recorrente e inevitável. Essa problemática
tem se apresentado freqüentemente sob a forma de questionamentos sobre o
“individualismo” ou sobre a “individualização” dos sujeitos, o que poderia ser
representado como microrreplicações (ou variações) ontogenéticas do grande
deslocamento identitário filogenético ocorrido com a “grande transformação”
característica da modernidade ocidental. Essa questão será examinada, através
da distinção entre “auto-afirmação” e “individualização”, nos capítulos 6 e 7.
L. Duarte iniciou seu trabalho antropológico com uma análise dos pro-
cessos diferenciais do trabalho na pesca em Jurujuba nos anos 1970. Essa
pesquisa dialogava com os então intensos investimentos no conhecimento dos
processos de reprodução das “classes trabalhadoras” em distintos contextos
sociais. A caracterização dos diferentes regimes de produção então prevalecen-
tes naquele bairro e a decorrente “diferenciação social” emergente no interior
daquele grupo impunha a definição de um interesse nessas “classes trabalha-
doras”, locução herdada da bibliografia inglesa para definir o operariado em
seu sentido mais lato, ou seja, não restrito ao que se constituía no interior da
“grande indústria” (e ao qual se atribuíam propriedades sociais e ideológicas
específicas). O tema da transformação de “pequenos produtores mercantis”
em “capitalistas” e “trabalhadores” parecia permitir melhor compreensão das

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Introdução 17

mudanças aceleradas então em curso naquele contexto. A pesquisa se con-


centrou prioritariamente nas condições de constituição e reprodução dessas
“classes trabalhadoras”, mas não deixou de evocar o tema da “diferenciação” e
os desafios de sua caracterização, uma vez que se tratava de um caso etnográ-
fico muito raro de observação da emergência de “capitalistas” (por “pequenos”
que fossem) e da convivência, como parentes ou vizinhos, destes com seus
“operários” — o que constituía uma questão desafiadora para os próprios ato-
res locais. Já nessa ocasião parecia importante para o pesquisador distinguir
entre a busca pela “estabilização” da reprodução, perseguida por todos os que
se esfalfavam no contexto instável e imprevisível da produção pesqueira, e a
“acumulação diferencial” e eventual mudança para outra “classe” social.
Dada a importância dessa temática na experiência etnográfica, sua pes-
quisa voltou-se posteriormente para a compreensão das formas diferenciais
de atualização e representação do que veio a chamar de “perturbações físico-
morais”, ou seja, a complexa gama de transtornos ou padecimentos que me-
diavam entre o “nervoso” e a “loucura”. Era importante para a compreensão
desses fenômenos distinguir a noção de pessoa que os caracterizava da noção
de “indivíduo” das camadas médias, sobretudo aquela que se distinguia (na
dupla acepção da palavra) por conceber a existência — entre o corpo e a
alma — de um psiquismo singular, capaz de ser conhecido e transformado
pelos saberes psicológicos. Esse movimento de relativização da noção de pes-
soa ocidental moderna — por se aplicar não a distantes socialidades tribais,
mas a segmentos da “mesma” sociedade nacional — impunha a revisitação
do tema da “mudança social” e das transformações conexas ou concomitantes
nas formas de representação e construção da pessoa. O desafio da melhor
caracterização desses processos levou assim o pesquisador a deslocar seus in-
vestimentos na direção de uma melhor compreensão dos processos de “psi-
cologização”, ou seja, de mudança (ou conversão, transformação, alternação
etc.) nas representações da pessoa caracterizadas pela invenção superveniente
de uma vida psíquica individual. Como essa mudança dependia de condições
originárias de instituição do sujeito que emergiam no interior da vida familiar
dos infantes, a temática da “família” tornou-se novamente central para seus in-
vestimentos (uma vez que já tinha sido analisada e modelizada anteriormente
no contexto das relações de trabalho entre os pescadores). Mais recentemente,
acoplou-se à temática da família e de sua dinâmica diferencial entre as classes
da sociedade nacional a dimensão crucial da “religião”, intimamente ligada

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18 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

à definição da ordem moral familiar, acompanhando o recrudescimento dos


estudos decorrentes da recente emergência de um efetivo pluralismo religioso
nas classes populares. Também aqui repontava a dimensão da mudança social,
pela via da “conversão” ou “passagem” entre alternativas religiosas, imposta
pela novidade das formas de pessoa e de experiência social constituídas nas
diferentes denominações evangélicas ou pentecostais.
A temática da religião atravessou toda a formação acadêmica de E. Go-
mes. Inicialmente, suas pesquisas enfocavam a dinâmica entre as novas deno-
minações pentecostais surgidas a partir do final dos anos 1970 e os meios de
comunicação, enfatizando a heterogeneidade do movimento pentecostal em
contraposição aos estudos que tendiam a uma visão homogeneizante. A partir
dessa perspectiva, desenvolveu sua pesquisa de doutorado sobre as especifi-
cidades da Igreja Universal do Reino de Deus dentro do campo evangélico. A
análise centrou-se no posicionamento dessa igreja diante das acusações que lhe
moviam diferentes setores da sociedade brasileira. A tese buscou demonstrar
como a noção nativa de “autenticidade” norteou seu projeto institucional, no
qual sobressaíam as idéias de permanência e de consolidação. A pesquisa identi-
ficou o papel central desempenhado pela narrativa da conquista, da superação e
do compromisso no discurso institucional, materializados na construção de suas
“catedrais”, especialmente de sua sede mundial, no Rio de Janeiro.
Ainda antes de ter defendido a tese, a pesquisadora passou a integrar
o projeto de pesquisa “Família, religião e ethos religioso”, coordenado por L.
Duarte, dando continuidade à reflexão sobre o panorama religioso contem-
porâneo. As preocupações relativas à análise formal de instituições religiosas,
somadas aos debates promovidos no grupo de pesquisa então constituído,
ensejaram novas abordagens articuladas à relação entre religião e construção
social da pessoa moderna. O registro se modificou, embora a importância do
aspecto institucional ainda constituísse uma referência para a compreensão do
fenômeno religioso. O interesse centrava-se na apreensão dos conflitos, aco-
modações, rupturas e continuidades presentes no cotidiano das famílias — de
camadas populares — que tiveram suas configurações internas sensivelmente
transformadas pela emergência do pluralismo religioso, especialmente marcado
pelas conversões às igrejas evangélicas. Essa característica consagrou-se como
fator preponderante para a realização da pesquisa junto à família Campos. Na
etnografia surgiu um novo tipo de pluralismo que se mostrou extremamente
significativo para uma compreensão das transformações na dinâmica familiar:

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Introdução 19

aquele de tendência exclusivista. No movimento rejeição-aceitação do “outro”


— no caso, a família se caracterizara pela tradição católica englobante — há,
concomitantemente, uma reafirmação generalizada de identidades religiosas
exclusivas, mesmo por parte de seguidores do catolicismo. A apreciação de
trajetórias religiosas marcadas por processos, muitas vezes tensos, de conver-
são e desconversão contribuiu para um maior entendimento dessa dinâmica.
O pluralismo de tendência exclusivista passou a ser um ponto etnográfico
norteador das análises propostas por E. Campos, que veio a utilizá-lo como
recurso fundamental para analisar transformações nas relações cotidianas ex-
ternas à família, como na vizinhança, no bairro e no espaço público.
Vê-se assim como se compôs esta dupla de autores para propor o expe-
rimento aqui desenvolvido — e como as questões que o inspiram já vêm há
muito impulsionando o seu investimento de pesquisa. Ao lado desse breve
histórico da problemática substantiva que inspira o trabalho, também é conve-
niente esclarecer desde já algumas dimensões metodológicas essenciais.
Os capítulos 2, 3 e 4 deste livro pretendem apresentar o máximo possível
de “dados” sobre as três famílias estudadas, do ponto de vista de sua relevância
para a consecução do objetivo experimental. Toda objetivação é necessaria-
mente uma redução da riqueza da experiência vital dos observados e do pro-
cesso de observação. Isso é notório e inevitável. O que vem há algum tempo
instigando a reflexão antropológica é a possibilidade e necessidade de explici-
tação dos modos pelos quais essa redução se processa, seja em função das ca-
racterísticas dos observados, seja das características dos observadores ou — o
que é mais evidente — das condições em que se produziu cada fragmento de
informação, cada pista de interpretação, cada vislumbre de compreensão. Dos
trabalhos monográficos espera-se, sobretudo, que apresentem e reflitam com
particular profundidade sobre essa dimensão. Num trabalho como este, em
que se visa a atualização de um experimento controlado restrito, não será pos-
sível explicitar toda a complexidade dos processos de construção dos dados.
No primeiro capítulo se concentrará, de todo modo, esse tipo de reflexão. Mas
é imprescindível esclarecer desde já que o relato das famílias e de seus locais
de vida nos três capítulos mais descritivos assume a posição do observador
abstrato, soberano, que apresenta sua construção como um fato externo, obje-
tivo, já dado. Uma tensão inevitável entre uma visão ética, objetivista, externa,
que procura privilegiar o oferecimento ao leitor de parâmetros de localização
e comparação de cada um desses lugares sociais aqui explorados, e uma visão

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20 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

êmica em que os critérios internos, locais, de representação do seu “mundo”


possam transparecer é essencial para uma compreensão sociológica mais pro-
funda. Mas preferiu-se, nesse caso, em proveito da compreensão do processo
analítico, assumir uma apresentação mais objetivada nos capítulos centrais,
explicitando sempre que possível nos capítulos mais analíticos as condições
de produção daqueles dados (e o caráter relativo de sua “verdade”).
Uma parte importante dessa explicitação é a que decorre da localização
das “versões” das histórias aqui trabalhadas. Como voltaremos a discutir no
primeiro capítulo, que trata das circunstâncias particulares do trabalho dos
pesquisadores com as suas próprias famílias, o fato de haver uma concentra-
ção sobre a experiência vital do seu próprio grupo de parentesco não importa
de modo algum uma transparência ou homogeneidade de representações e de
discursos sobre sua vida. Todos os fatos apresentados — às vezes os que se es-
pera serem mais objetivos, como a data ou o lugar de um evento — podem va-
riar em função de quando, como e por quem foram apresentados. É evidente
que os autores se apoiaram em alguns informantes privilegiados, de modo que
o efeito de suas propriedades de posição sobre a qualidade dos dados deve ser
levado em conta. Por outro lado, os sentidos que podem ser atribuídos a uma
suposta característica ou qualidade dentro da mesma família também podem
variar enormemente conforme se tenha ou não acesso a outros observadores
externos àquele recorte e se possa deles obter registros e avaliações a serem
incluídos no quadro. Os autores, por outro lado, tanto no caso de suas famílias
quanto no da família observada num campo mais distante, nunca deixaram
de fazer suas próprias escolhas, mais ou menos conscientemente, e mesmo de
intervir como agentes dessas histórias. O desafio é como incorporar o máximo
de reflexividade contextual à compreensão ensejada. Em cada um dos três
casos — ainda é preciso acrescentar — apresenta-se um certo modo de articu-
lação entre as imagens atuais e os dados históricos disponíveis, por um lado,
e o olhar nativo, de dentro, para fora do bairro, na direção do vasto mundo
externo, por outro lado. Por mais flexíveis, sutis e cambiantes que sejam as
fronteiras entre essas casas e suas ruas, elas se apresentam continuamente em
ação, tornando sensíveis e palpáveis as transições efetuadas nos dois sentidos.
Daí a necessidade de uma reflexão acerca de como os pesquisadores foram
vistos/construídos nesses universos e como essa percepção interagiu com a
produção das informações, a criação dos settings e o tom geral da convivência
de pesquisa.

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Introdução 21

Não é dos menores condicionantes dessas propriedades de posição a di-


ferença de gênero dos dois pesquisadores e o acesso diferencial, daí decor-
rente, a certos dados ou pontos de vista tanto na pesquisa com a família mais
distante quanto na pesquisa com as próprias famílias dos autores. A posição
de gênero opera com particular ênfase justamente no interior das tramas fami-
liares, constitutiva como é das oposições e dinâmicas identitárias que aí se en-
contram em ação. Também é necessário sublinhar a importância da diferença
de posição em relação à geração de referência das famílias dos pesquisadores.
O contato de L. Duarte com a família Costa se deu prioritariamente com o che-
fe da primeira geração e com sua hoje falecida mãe (que habitava na casa do
filho àquela época). Isso demarca fundamente todo o contato com as gerações
subseqüentes, com efeitos que serão oportunamente explicitados. Embora em
ambos os casos da pesquisa com a própria família tenha-se escolhido como
geração de referência a de seus avós — paternos num caso, maternos noutro —,
os avós de L. Duarte morreram quando ele ainda tinha cinco ou seis anos, e os
de E. Gomes, quando ela já tinha 18 anos (avô materno) e 33 (avó materna),
respectivamente, o que os expôs de maneira muito diferenciada à vivência
direta do campo de valores, identificações e alianças ativo na geração primor-
dial. Isso tem implicações para a obtenção e compreensão das informações
circulantes sobre esse período.
A temática da transgeracionalidade é uma das balizas da reflexão aqui
empreendida. Embora não se vá revisar mais sistematicamente a abundante
literatura — sobretudo psicológica e psicanalítica — que tem se dedicado a
explorar o potencial heurístico da observação dos efeitos sócio e psicodinâ-
micos das diferentes modalidades culturais da transmissão de qualidades ou
disposições através das gerações, assim como das múltiplas implicações das
condições concretas, vivenciais, em que se dão todas as suas atualizações tó-
picas, têm os autores claramente consciência da crucialidade dessa dimensão
dos fenômenos sociais e buscam contribuir para sua maior explicitude nos
estudos sociológicos e antropológicos através da análise aqui empreendida
(sobretudo nos capítulos 5, 6 e 7).6
Em qualquer pesquisa exige-se particular atenção à possibilidade dos
entreditos, dos murmúrios, dos não-ditos ou mesmo dos segredos confiados
em campo.7 Há ainda as aparentes contradições ou as imprecisões recorrentes,
os “buracos” mais ou menos conscientes em torno de temas, épocas ou even-
tos passados (sobretudo os que envolvem a sexualidade, a transgressão ou a

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22 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

ilegalidade), os mistérios assumidos (questões que os próprios informantes


declaram não saber explicar), a construção de “fachadas”, a elaboração de “re-
leituras”,8 e a própria disposição diferenciada para colocar a vida em discurso
em função dos diversos graus ou modos de letramento, racionalização e dis-
tanciamento (que é, inclusive, a matéria-prima direta dos dramáticos “teste-
munhos” pentecostais). A plena assunção da renúncia à ambição de acesso a
uma verdade absoluta sobre o mundo observado não significa, no entanto, a
renúncia à ambição de melhor compreensão da ordem dos fenômenos regis-
trados e de sua experiência nativa. Nessa linha instável constroem-se e se justi-
ficam a inscrição, a interpretação, a modelização e a narrativa antropológica.
Hoje veicula-se com freqüência a denúncia da disposição interpretativa
como o indício de um autoritário privilégio do observador sobre a experiência
nativa. A posição do projeto antropológico não tem como não ser assimétrica,
uma vez que as disposições culturais que o suscitam são diferentes daquelas
que inspiram ou inspiraram a vida de todas as demais ordenações simbólicas
emergentes no mundo. Reconhecer essa assimetria “situacional” não significa,
porém, assumir necessariamente alguma preeminência ontológica ou episte-
mológica sobre os “nativos” (inclusive os internos a nossas próprias socieda-
des, populares ou eruditos, subordinados ou dominantes, marginais ou hege-
mônicos). A idéia de que seja possível, por outro lado, conceder às concepções
do outro um lugar de mais verdade — com maior coerência cosmológica ou
autenticidade vivencial, por exemplo — acaba por expressar uma sofisticada
e rematada arrogância, como se de nós, ainda seus observadores e descritores,
dependessem a revelação e chancela de tal dignidade ontológica.9
A preservação e a defesa, implicadas nesse exercício, da interpretação
e modelização dos fenômenos humanos dentro de certos parâmetros expe-
rimentais pressupõem, assim, a consciência de que a dimensão “societária”,
“identitária”, “extensiva”, “molar” e “convencional” das unidades significativas
em que se organizam as socialidades humanas não é um obstáculo ao reco-
nhecimento da dimensão “experiencial”, “inventiva”, “multifacetada”, “inten-
siva”, “molecular” ou “plural”, e sim a sua contrapartida necessária: afinal, as
categorias de vida, experiência, fluxo, criatividade ou singularidade são tão
específicas de nossa cultura ocidental quanto as de razão, identidade, ordem,
representação e totalidade. A ênfase na segunda dimensão é, porém, tanto
mais justificada e inevitável num trabalho que se desenvolve sobre segmentos
das “sociedades” nacionais modernas para os quais as convenções da “iden-

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Introdução 23

tidade” são parte essencial, estruturante, de sua cosmologia nativa.10 A lógica


complexa das identificações e da construção ou transformação de identidades
não é simplesmente uma invenção dos segmentos letrados e racionalizantes
(embora também o seja), mas faz parte da “experiência vital” de nossos obser-
vados — por mais complexa, tensa, fluida, cambiante e ambígua que possa se
apresentar.
Reconhece-se, porém, quão problemática é a tensão entre essas dimen-
sões (e considerar que se trata de “dimensões”, e não de “alternativas”, já é
uma tendenciosa tomada de posição) e quão desafiadora ela se apresenta para
a construção do texto interpretativo. Avulta, entre muitos exemplos, o pro-
blema da objetivação dos dados sobre parentesco em quadros sistemáticos,
formalmente racionalizados, em detrimento da visão êmica, vivencial, dos
observados sobre essa dimensão de suas vidas. Essa crítica está presente na
antropologia pelo menos desde Louis Dumont (1971).11 No entanto, apesar
de seu claro viés cultural, não parece haver outro modo de iniciar a compre-
ensão do que está ocorrendo na vida relacional de qualquer cultura. No caso
de variantes de uma mesma cultura em sentido amplo, como as que temos
aqui em mãos, é tanto mais inevitável apresentar os dados básicos das redes
de parentesco naquele formato, mesmo sabendo-se que nenhuma das famílias
estudadas tem o hábito de racionalizar sua rede de parentesco ou de conceber
o seu pertencimento familiar daquela forma.12 De qualquer modo, a manei-
ra com que se desenharam os quadros apresentados nos anexos exige uma
explicitação complementar. As declarações de relações de parentesco podem
variar enormemente de critérios em função de diversas circunstâncias muito
discutidas na literatura antropológica.13 No caso da família Costa, um quadro
genealógico construído em 1974 com uma informante particularmente pa-
ciente (e “especialista” nas relações de sua família) apresentava 298 persona-
gens. Um quadro de tamanha extensão (a que ainda se teria que acrescentar
todos os personagens incorporados por casamento, nascidos ou representados
de alguma maneira como parentes desde então) seria de nulo interesse para
os fins deste livro — embora tenha sido sempre útil para localizar as referên-
cias concretas e cotidianas (ou não) a parentes diversos naquele contexto de
pesquisa. Decidiu-se, assim, apresentar apenas o quadro da linhagem descen-
dente dos casais de referência, que contém informações fundamentais para o
acompanhamento da análise (à exceção de uma linhagem colateral da família
Costa). Aparecerão eventualmente no texto outros parentes, descendentes dos

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colaterais das primeiras gerações, ou mesmo contraparentes que não será di-
fícil localizar, apesar de sua ausência nos quadros do anexo.14 A tensão entre
informação básica, externa, de “localização” dos fenômenos aqui trabalhados
e a visão interna das relações reais, vivenciais, de família e parentesco em cada
uma de nossas unidades também não reduz a importância de alguns outros
anexos objetivantes, como os mapas aqui apresentados. Em muitos momentos
é inevitável deixar transparecer a ilusão de um observador abstrato, universal.
Sem essa objetivação, nos perderíamos na mera constatação fenomenológica
de uma justaposição de experiências parciais — a que corresponde apenas
uma dimensão da vida de nossos observados. Espera-se que essa linha instá-
vel aqui construída possa desenhar um horizonte heurístico mais amplo em
torno dos fenômenos observados e ensejar contornos inspiradores para outros
alheios e futuros desenhos.
O compromisso com uma objetivação das experiências observadas e ana-
lisadas implica assumir uma visão “realista” da dimensão simbólica fundado-
ra da condição humana (uma cultura, uma ordem simbólica, um sistema de
significação etc.), só em relação à qual as ações, interações, fluxos e eventos
podem emergir como significativos. Opõe-se tal visão às tendências empi-
ristas e nominalistas contemporâneas que buscam sustentar a possibilidade
de uma invenção etnográfica exclusivamente fundada nas formas fenomenais
mais imediatas, tais como as que se manifestam nos atos e formas interativas e
comunicacionais. O estatuto das diferenças reconhecidas, construídas e obje-
tivadas em quaisquer níveis da vida social é tanto mais complexo, imprevisível
e desafiador quanto se considere que essa ordem simbólica abrangente a partir
da qual se erigem nem é totalmente consciente, nem é totalmente integrada
ou unívoca. Isso significa pressupor que pode haver tensões e contradições
entre diversas dimensões da experiência social, sem que elas surjam apenas da
superveniência de graves desafios externos à sua dinâmica própria, mas que
estejam contidas em sua própria ordenação “principial” — como as de que
trata Sahlins (1985), nos dois níveis. O estatuto não-consciente de dimensões
estruturantes da lógica cultural que sustenta uma determinada ordem simbó-
lica concreta não significa que os sujeitos sociais sejam meros marionetes de
forças ocultas, e sim que a não-transparência das motivações de seus valores
e atos lhes faculta certas condições de agência e de reflexividade, e não outras
(diferentes em função justamente das características do agenciamento sim-
bólico englobante e de suas formas estabilizadas de objetivação). Quaisquer

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Introdução 25

outras propostas que tendam a reduzir a experiência humana à sua agência


e reflexividade imediata apenas reiteram etnocentricamente os pressupostos
individualistas da cultura ocidental, que tão penosamente se vem buscando
relativizar.15 A posição aqui defendida também não considera que o trabalho
de interpretação intrínseco à prática antropológica desqualifique as represen-
tações, os argumentos e as racionalizações conscientes dos sujeitos observa-
dos, ao buscar iluminá-los do ponto de vista de modelizações mais abstratas
(“experience distant”, nos termos de Geertz), mas que — pelo contrário — ele
tende a revelar a riqueza da capacidade de invenção simbólica humana a partir
de tantas ordens de implicação externas e internas (no sentido da construção
cultural de sua subjetividade e de sua relacionalidade).
Algumas das fórmulas correntes a respeito dos riscos dos “grandes divi-
sores” parecem pressupor que a experiência social dos sujeitos dependentes
da cultura ocidental possa ser reduzida à que se manifesta nos segmentos
letrados portadores da “grande tradição” erudita, maximamente representada
pelo establishment científico e por seus pressupostos cosmológicos (como a re-
presentação de “ciência”, de “natureza”, de “experiência” e de “razão”). Todos
os testemunhos etnográficos conhecidos sobre a experiência desses sujeitos
revelam enorme complexidade e considerável distância dos pressupostos cos-
mológicos eruditos englobantes. Revelam ainda, por outro lado, como esses
pressupostos se disseminam diferencialmente, no tempo e no espaço, pelas di-
ferentes “sociedades”, “classes”, “grupos” e instituições em que se constituem.
É difícil assim presumir que todos os sujeitos sociais disponham do mesmo
estilo de “reflexividade”, mesmo que todos sejam portadores da mesma ra-
cionalidade e, quiçá, da mesma razoabilidade. Há modos culturalmente ins-
truídos de produzir reflexividades, eventualmente aplicáveis à própria ordem
cultural que assim opera. Riqueza e complexidade cosmológicas não são as
mesmas interculturalmente — mesmo que se lhes deva conceder o privilégio
abstrato de não terem que ser traduzidas pela nossa para poderem usufruir de
sua plenitude “cosmológica”.
Eis o que nos revelam fartamente as análises sobre as “classes populares”
no Ocidente. L. Duarte, por exemplo, elaborou em diversos de seus trabalhos
a questão da diferença, distância ou especificidade da cultura das classes po-
pulares brasileiras, em relação à “grande tradição” ocidental, a respeito das
representações sobre “doença”, “loucura”, “perturbação”, “pessoa”, “natureza”,
“família”, “sexualidade” e “religião”. Ropa e Duarte (1985) insistiram numa

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26 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

refutação do modelo proposto pelo “jovem” Boltanski (1979) de graus maiores


ou menores de “reflexividade da cultura somática”, justamente para ressaltar
a alta complexidade dos modelos populares de saúde/doença. Mas a literatura
é pródiga em relação a esses e a muitos outros tópicos de máxima relevância
para a compreensão da dinâmica social desses segmentos.
Ao assumirem essa posição “realista” em relação à condição ontológica
do material aqui trabalhado, os autores se dissociam também das tendências
neo-românticas contemporâneas que, a partir de um fundamento empirista-
nominalista, postulam a “inexistência” das objetivações identitárias correntes
nas sociedades ocidentais ou a inconveniência da produção de uma compre-
ensão sociológica que as leve em conta, por suporem que essas objetivações
se encontram, na verdade, no aparelho conceitual da tradição racionalista ilu-
minista, e não no universo social examinado (não passariam de flatus vocis).
Embora se reconheça que esse privilégio à dimensão mais fluida, inconsútil,
molecular, da vida social possa iluminar com nova luz determinadas áreas ou
dimensões específicas, não se considera que ela possa se substituir completa-
mente à análise das dimensões mais objetivadas. Os estudos sobre a experi-
ência religiosa não têm como operar do mesmo modo que os que se voltam
para a vida institucional religiosa ou para o papel moral da religiosidade na
vida cotidiana; a questão do erotismo envolve estratégias heurísticas diversas
das que exigem as formas institucionalizadas da sexualidade, da conjugali-
dade e da reprodução; a experiência de situações liminares como o consumo
de drogas, as carreiras de transgressão, a vida em comunidades religiosas ou
alternativas importa em focalizações diversas das que prevalecem em relação
aos níveis mais convencionais da vida social, sobretudo nas classes populares.
Essa é, aliás, a posição explícita de Bruno Latour, que — apesar ou talvez jus-
tamente em função de seu empirismo radical — considera sua estratégia de
conhecimento aplicável apenas às situações caracterizadas pelo que ele chama
de “controvérsias”.
Essa questão foi tratada de modo muito esclarecedor por Marilyn Stra-
thern (1987) em uma reflexão sobre “auto-anthropology”, ou seja, a realização
de pesquisa antropológica sobre as próprias sociedades dos observadores. O
que se chamou há pouco de “focalização” parece ser o que ela evoca sob o
nome de “atividade produtiva”, sugerindo que o critério fundamental para
a pertinência da apropriação analítica antropológica é o da busca do reco-
nhecimento do sentido das experiências originais, em sua radical diferença

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Introdução 27

do sentido que “nós” próprios viemos eventualmente a atribuir-lhes.16 Essa


tarefa é particularmente desafiadora no trato com os segmentos das socieda-
des ocidentais que não sejam os portadores de sua “grande tradição” — e é
provavelmente ainda mais crítica para os pesquisadores que têm que lidar com
a presença de diferentes tradições socioculturais em suas próprias trajetórias
familiares. O reconhecimento da diferença entre os “focos” ou “atividades pro-
dutivas” existentes nesses outros meios e os que prevalecem no universo dos
produtores intelectuais universitários talvez seja, porém, revelador do desafio
que está presente também no trabalho com os segmentos sociais mais próxi-
mos do núcleo cultural hegemônico, que — nem por isso — compartilham
das convenções estruturantes dos saberes sociológicos em sentido lato. Essa
diferença seminal do sentido das “atividades produtivas” (de sentido) não pa-
rece passível de resolução por meras declarações piedosas de “simetria” entre
“interlocutores”. A antropologia não pode deixar de ser um espaço de reflexão
que se caracteriza por uma disposição de “simetrização”. Todo o seu trajeto
é um testemunho das dificuldades de efetivação desse ideal, mas também do
enorme potencial de avanço nessa direção. Um resíduo irredutível parece ja-
zer, porém, no fundo do empreendimento: a variedade de “observação” que
caracteriza o agente típico das versões eruditas da cultura ocidental moderna
(com seus pressupostos cosmológicos de realidade, natureza, razão, reflexi-
vidade, e seus competentes contrapontos reativos românticos) não é jamais a
mesma de qualquer outro agente, da sua ou de qualquer outra cultura (por
mais “racional”, “reflexivo”, “inventivo” que seja). Acresce a essa propriedade
de condição geral a circunstância de que essa variedade de “observação” se
atualiza em determinada “situação” (no sentido de Evans-Pritchard) ou “nível”
(no sentido de L. Dumont), fazendo com que a entrevista de um antropólogo
metropolitano por outro colega de mesma formação e competência estabele-
ça inevitavelmente entre os dois uma desconfortável, ainda que promissora,
“dissimetria”.
A eventual acolhida de tais considerações pelo leitor (ou leitora) permiti-
rá que a devida atenção ao fato de estarem os autores às voltas com a questão
de uma pesquisa parcialmente voltada para suas próprias famílias não altera
substancialmente os desafios característicos da disposição antropológica; ape-
nas talvez lhe aponha alguns complicadores de estratégia, autoconsciência e
método,17 impostos em boa parte pela necessidade de atenção ao senso co-
mum acadêmico, mais do que a vetores propriamente epistemológicos.

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28 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

Notas

1
Os autores adotaram algumas convenções um tanto arbitrárias para permitir a re-
dação de um trabalho conjunto, baseado no entanto em experiências etnográficas
conduzidas em separado por cada um deles. Assim, as partes comuns serão as-
sumidas por um ente bifronte chamado alternativamente de “os autores” ou “os
pesquisadores”, conforme se enfatize mais o texto final ou o processo investigativo
subjacente. As referências a informações, interpretações ou experiências específicas
de cada um dos autores serão apresentadas em terceira pessoa: L. Duarte ou E. Go-
mes. É uma solução um tanto estranha para os próprios “autores”, mas lhes pareceu
mais conveniente para a construção da narrativa do que compartimentar o texto em
segmentos de autoria comum ou individual.
2
Duarte, 2005b, 2006a, 2006b, 2006c e 2007; Duarte et al., 2006; Gomes, 2006a,
2006b e 2006c; Natividade e Gomes, 2006.
3
Também deve ser reconhecida a importância da interlocução com os participantes
de diversos encontros científicos realizados nesse período por iniciativa ou com a
participação de L. Duarte e E. Gomes.
4
O horizonte de pesquisa que resultou neste livro tem muitos pontos de contato
com a proposta de Pina Cabral e Lima (2005) de uma “história de família” como
método de análise socioantropológica específica, sobretudo do ponto de vista da
íntima imbricação entre família e casa.
5
Há uma longa tradição de reconhecimento antropológico das mudanças que ocor-
rem na auto-imagem dos sujeitos sociais ao longo de suas trajetórias e cujo exem-
plo mais clássico ainda é o de Mintz (1960). As críticas de Latour e de Boltanski
à “sociologia crítica” de Bourdieu, em que os sujeitos não podem se reconhecer
nos relatos analíticos, interpretativos, só fazem sentido no contexto radicalmente
empirista em que se formulam as problemáticas desses autores e em relação ao tipo
de situação e de agência por eles privilegiados — os segmentos sociais altamente
reflexivos das elites ocidentais, em situações de controvérsias e justificações em que
os saberes eruditos dessa mesma cultura desempenham papel crucial.
6
Um importante ramo da psicanálise francesa contemporânea, comprometida com
o que chama de “transmissão transgeracional” (que se constrói em diálogo com a
“terapia sistêmica” de origem anglo-saxã), vem produzindo análises de grande inte-
resse sociológico. As informações de que dispõem os psicanalistas sobre a vivência

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Introdução 29

da trama familiar são muito diferentes, no entanto, das que pode produzir a pesqui-
sa antropológica. De qualquer modo, o diálogo com essa corrente está subjacente à
formulação do interesse na transgeracionalidade presente neste trabalho (ver Kaës,
1993; Ancelin-Schützenberger, 1997; Tisseron, 1999; Attias-Donfut, 2000). A so-
ciologia francesa contemporânea que se ocupa de fenômenos equivalentes repousa,
no entanto, quase exclusivamente sobre a experiência das classes médias, o que a
torna menos estratégica para este estudo (ver Muxel, 1996; Coenen-Huther, 1994;
Déchaux, 1997; Segalen, 1991; Singly, 2001a, 2001b e 2001c).
7
Gomes e Natividade, 2006.
8
Mintz, 1960; Pollak, 1990.
9
Os riscos de um “populismo” epistemológico que sempre cercaram o empreendi-
mento antropológico no trato com os segmentos dominados ou englobados das
sociedades ocidentais parecem hoje rondar algumas aplicações ou extrapolações do
“perspectivismo etnológico”.
10
Sahlins, 1996.
11
Strathern (1992b) refez essa crítica em termos quase homólogos e, aparentemente,
sem conhecimento da crítica de Dumont, apesar de ambos partirem de horizontes
epistemológicos antípodas.
12
Trata-se de um processo homólogo ao da construção da gramática (ou de um glos-
sário escrito) de uma língua ágrafa. Embora se trate de uma formalização estranha
à vivência nativa, ela é imprescindível para qualquer tipo de trânsito cultural a ser
estabelecido regularmente entre os falantes de duas línguas diferentes (e diferente-
mente vivenciadas).
13
Schneider, 1968.
14
É necessário desde já explicitar algumas convenções aqui utilizadas. A categoria
“família” estará sendo utilizada quase exclusivamente num dos seus sentidos “nati-
vos”: o de “família extensa” ou de “rede familiar” (“parentela” ou “grupo de paren-
tesco”). Eventualmente haverá referência às “unidades domésticas” como “núcleos
familiares” (por força da categoria analítica de “família nuclear”). A categoria “rede”
será utilizada para designar o quadro mais amplo da relacionalidade de cada “famí-
lia”; a categoria “linhagem” designará o conjunto dos descendentes (e seus respecti-
vos afins) de um determinado ego dentro da rede; e a categoria “ramo” designará o
conjunto dos membros de uma “linhagem” do ponto de vista de sua contraposição
aos demais. Chamar-se-á de “colateral” a linhagem descendente de outro membro
das fratrias dos ascendentes de algum ego, e de “primo” o membro individual den-
tro do conjunto dos “colaterais”. Será feita menção, menos freqüente, a “contrapa-

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30 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

rentes”, ou seja, os parentes dos afins em cada linhagem. O uso dos nomes próprios
ocorrerá apenas em relação aos personagens da primeira e da segunda geração. Nas
subseqüentes será feita apenas a localização pela linhagem ou ramo e pela ordem na
fratria, de modo a não sobrecarregar a atenção do leitor com uma galeria nominal
excessiva, nessas que são as mais numerosas gerações.
15
Sobretudo nos casos mais recentes que se apresentem como tendo resolvido — ain-
da que apenas retoricamente — o problema da “dicotomia” entre “indivíduo” e
“sociedade”, falsamente apresentado como uniforme e estável em toda a tradição
antropológica precedente.
16
Segundo Strathern (1987:19) “we need to have some sense of the productive activity
which lies behind what people say, and thus their own relationship to what has been said.
Without knowing how they ‘own’ their own words, we cannot know what we have done in
appropriating them”.
17
Strathern (1987:18) busca distinguir entre “reflexividade” e “autoconsciência”:
“there is a tendency to equate reflexivity with heightened self-consciousness, and thus
to regard it like a personal virtue, which this or that sensitive person displays in their
writings”. Nesse caso, querem os autores sublinhar realmente a dimensão de “auto-
consciência” implicada em uma pesquisa desse tipo — seja qual for a “virtude” aí
envolvida.

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Capítulo 1

A p e s q u i s a n a p r ópria sociedade
( e s o b r e a p r ó pria família)

De te fabula narratur...

E ste trabalho tem como uma de suas características o fato de que, das três
famílias aqui analisadas, duas correspondem às famílias dos próprios auto-
res. E. Gomes é membro de um ramo socialmente ascendente da rede familiar
aqui analisada como a família Campos, seus parentes matrilaterais. L. Duarte
também é membro de um ramo socialmente ascendente da rede que aqui
porta o seu sobrenome paterno. A referência imediata à condição de mem-
bros de “ramos ascendentes” não visa engrandecer os autores em relação a sua
parentela de classe popular (o que, embora legítimo, não seria razoável num
trabalho como este), mas deixar desde logo claro que a condição de autoria
intelectual de uma análise desse tipo dependeu de uma condição de prévio
distanciamento, ambíguo e complexo — não sem implicações para o formato
do trabalho realizado.
A possibilidade de formalizar numa pesquisa sistemática a convivência
com ramos das próprias famílias dos autores, incorporando a complexa in-
formação vivida aí num registro pessoal, surgiu paulatinamente, no decorrer
do projeto sobre “família, reprodução e ethos religioso” em que, juntos, traba-
lhavam. A pesquisadora aportou, a partir de determinado momento, dados
de sua própria família para iluminar, nas discussões, alguns dos tópicos de
interesse comum, o que foi suscitando da parte de L. Duarte uma crescente
curiosidade sobre essa rede em que se apresentavam tantos dados e dimen-
sões esclarecedoras. A partir de certo momento, ocorreu-lhe sugerir que a
pesquisadora passasse a pesquisar explicitamente a própria família, apesar das

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inquietações que tal procedimento suscitava em ambos e das reservas quanto a


tal iniciativa que se levantariam no campo antropológico em geral. A principal
justificativa então formulada para tal procedimento era que, no relatório final
da pesquisa, a ser transformado num livro, se procederia a uma discussão e
reflexão sistemáticas sobre as condições e implicações dessa decisão.1 A partir
daí começaram a se evidenciar os enormes ganhos heurísticos provenientes do
trabalho de E. Gomes, o que levou L. Duarte, coordenador da pesquisa, por
seu lado, a também decidir enveredar por esse rumo, adensando percepções
esparsas acumuladas em sua trajetória de vida e de pesquisa e dispondo-se a
“objetivar”, pelo menos parcialmente, sua experiência familiar pessoal. Assu-
mir a disposição de modelizar e apresentar publicamente informações con-
sideradas como tão próximas e íntimas e obtidas através de uma radical mas
inexplícita e heterodoxa “observação participante” só parecia ser permissível
tendo em vista a densidade do material assim obtido, mesmo que à custa de
uma reflexão constante sobre as peculiaridades de uma pesquisa desse tipo.
São raras as experiências de pesquisa que se aproximam explicitamente
de tais circunstâncias. Em alguns casos, há uma reflexão sobre a relação entre
as condições sociais originárias da trajetória pessoal e determinadas proprie-
dades do seu rumo e afirmação, embora se revele aí quanto a experiência
originária chegou a inspirar (de maneira mais ou menos inconsciente) certas
ênfases analíticas ou a permitir determinados insights e argumentos. A teoria
da “objetivação participante” de Pierre Bourdieu (2003) é um exemplo ma-
gistral dessa orientação. Há também muitos exemplos, explícitos ou não, de
trabalhos realizados no interior da rede social do pesquisador, o que certa-
mente coloca em cena o seu estatuto duplo, pessoal e profissional; mas isso
não é a mesma coisa que a “objetivação participante” aplicada à rede familiar
propriamente dita. Segundo Bourdieu (2005:89-93), pesquisar “um mundo
social que conheço sem conhecer, como sucede em quaisquer universos fa-
miliares”, requer uma “verdadeira conversão epistemológica”. Por um lado,
estar próximo aparenta uma familiaridade, portadora quase inequívoca de
um conhecimento. Na mesma medida, esse “conhecimento” é tido como
contaminado e impreciso para adquirir status acadêmico. Esquece-se que
o antropólogo incorpora complexos instrumentos de pesquisa, observação
e estranhamento ao longo de sua formação. Mesmo aquilo que seria uma
“familiaridade familiar” passa por um processo de autoconsciência e de re-
flexividade que, de forma alguma, exclui o que foi apreendido. Não é o

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mesmo olhar que está em jogo quando o pesquisador se dedica a pesquisar


em campos tão afetivamente envolventes.2
Há uma dificuldade suplementar no caso em questão, homóloga à que
analisa Bourdieu com relação à sua própria identidade e trajetória: os ramos
familiares aqui examinados têm suas raízes nas classes populares. Os intelec-
tuais brasileiros tendem a se auto-representar fundamentalmente como uma
“elite”, mesmo nos casos em que isso só possa ser entendido em sentido muito
lato ou mesmo implicar posições contestatórias ou radicais.3 Assim, não é
nada evidente, nesse contexto cultural, vir a expor publicamente uma origem
social pouco prestigiosa.
No processo de organização dos projetos de pesquisa sobre família em
que se envolveu L. Duarte a partir de 2002 tinha surgido a possibilidade de
proceder à análise de coleções fotográficas, seguindo os estimulantes exem-
plos encontráveis na literatura.4 Como teste do banco de dados encomendado
para a indexação desse tipo de material proveniente da pesquisa com outras
famílias, resolveu utilizar parte de sua própria coleção familiar. Essa tarefa,
que exigia uma atenção redobrada a cada peça do acervo — e aos seus perso-
nagens, lugares e situações — foi-lhe revelando o grande potencial de infor-
mação sociológica ali concentrado. Consultar os parentes mais velhos sobre as
fotos de períodos anteriores ao da própria vida do pesquisador veio a impor
a realização de verdadeiras entrevistas, com o desvendamento de outros acer-
vos, informações e pontos de vista.
Para L. Duarte, a oportunidade de objetivar parcial e sistematicamente
seu pertencimento familiar veio se agregar, assim, a um longo processo de
observação e apercepção das características de seu universo social de origem,
na medida mesmo em que se tinha tornado mais treinado na “objetivação”
de tantos outros contextos sociais ao longo de suas pesquisas. A produção
desse distanciamento ou estranhamento foi tanto mais desafiadora quanto as
propriedades diferenciais de sua ascendência paterna e materna não se apre-
sentavam espontaneamente como “diferenças de classe” em sua vivência e for-
mação. Como as duas linhagens habitavam cidades diferentes, com estilos de
sociabilidade muito diversos, isso se tornava tanto mais “naturalizado” (em-
bora houvesse também pelo menos uma unidade da rede familiar materna
habitando o Rio de Janeiro e uma unidade paterna, num grau de parentesco
mais distante, habitando Petrópolis). Ademais, o clima oficialmente cordial
que passara a prevalecer entre as duas “famílias” a partir da realização do ca-

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samento, assim como o fato de que a “estabilização” da família paterna a fazia


aproximar-se progressivamente do status de parte da família materna (ten-
do-se criado algumas relações de amizade regular entre membros dos dois
grupos) não ensejavam uma percepção de clara fronteira social entre as duas
linhagens. Os freqüentes problemas de relacionamento tendiam a serem li-
dos exclusivamente como resultado, em primeiro lugar, do confronto entre os
“temperamentos” pessoais — sempre considerados muito díspares — dos dois
cônjuges (seus pais), e, subsidiariamente, das maiores ou menores “simpatias”
ou “afinidades” diádicas entre os numerosos elos das duas redes. O estilo de
uso pessoal, pelo pesquisador, da casa da família paterna no período em que
lá morou (entre 1969 e 1978) ainda ensejou, no entanto, alguns pequenos
conflitos com o ramo que permanecera por ela oficialmente responsável — ex-
pressivos das diferenças de ethos ainda aí pulsantes.
Autores como Bourdieu (2005:91-92) e Abu-Lughod (1986) assumiram
que os familiares tiveram algum tipo de participação em suas pesquisas de
campo. Em duas situações, os pais de Bourdieu aparecem como fontes signi-
ficativas em suas análises das “estratégias matrimoniais no sistema de repro-
dução”. Foi um comentário banal de sua mãe sobre uma família vizinha que
o fez migrar do modelo de regra de parentesco para o modelo de estratégia
em sua pesquisa sobre celibato. Na mesma pesquisa sobre “não casáveis”, o
autor comenta que, em entrevistas com “velhos solteiros” da geração de seu
pai, este o acompanhava e até mesmo o ajudava “com sua presença e discretas
intervenções”. Abu-Lughod revela a importância da participação de seu pai no
trabalho de campo que realizou entre os beduínos. Conhecendo os objetivos
de pesquisa da filha, ele logo se dispôs a acompanhá-la. Após grande insis-
tência, a autora aceitou a companhia, embora sentisse certo constrangimento.
Foi somente após viver entre os beduínos por um longo tempo que ela pôde
compreender a postura assumida pelo pai. Este era árabe e conhecia bem as
tradições locais, nas quais o lugar da mulher é bastante distinto daquele que
conhecemos no Ocidente.5
Renato Rosaldo (1989) realizou uma análise da emoção a partir da morte
de sua esposa, a antropóloga Michelle Rosaldo, durante o trabalho de campo
entre os Ilongotes. Para o autor, essa elaboração veio a significar não apenas
a expressão do luto vivenciado, como poderiam supor alguns leitores, mas
uma reflexão sobre o fazer antropológico. O luto e a viuvez experimentados
em campo possibilitaram-lhe descobrir como seus interlocutores expressavam

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seus sentimentos, assim como o fizeram refletir sobre os seus próprios na re-
lação com eles.6
Não chega a ser uma novidade a ativação dos contatos pessoais para
a abertura de redes que possibilitem a entrada em campo. Mas a família é
vivenciada como o reduto do privado, da proteção, do segredo em relação à
dinâmica do mundo externo. Investigar a própria rede familiar é um desafio,
pois pode colocar em risco essas características. No entanto, esta não foi a
impressão inicial de E. Gomes quando das primeiras conversas com L. Du-
arte sobre os direcionamentos da pesquisa sobre família, reprodução e ethos
religioso. Essa via foi por ela sempre considerada de extrema relevância para
a compreensão do campo religioso brasileiro atual. A inserção original numa
ampla rede familiar de origem popular da Baixada Fluminense, com caracte-
rísticas expressivas das mudanças ocorridas nas últimas décadas no panorama
religioso, pareceu-lhe imediatamente um caminho profícuo e digno de análise.
A própria trajetória intelectual da pesquisadora, direcionada para a antropolo-
gia da religião, possibilitou a realização dessa investigação. Desafio múltiplo,
por acionar mecanismos de defesa que partem dos diferentes posicionamentos
localizados na própria rede e na academia, em níveis diferenciados, de acordo
com a posição do próprio pesquisador nesses espaços. Em outras ocasiões, já
havia acionado membros de sua rede familiar, vizinhos e amigos como infor-
mantes. A então novata assistente de pesquisa serviu de elo entre os pesqui-
sadores seniores e seus objetos de pesquisa por ser quem era: originária da
Baixada Fluminense e das camadas populares, por associação, ainda que inte-
grante de um ramo ascendente de sua rede familiar. Essa região (assim como
as favelas e áreas suburbanas consideradas como “periferia”), enquanto lugar
de efervescência religiosa e ao mesmo tempo distante das áreas de prestígio so-
cial e acadêmico do Rio de Janeiro, sempre obteve atenção das ciências sociais.
O acesso foi facilitado pela emergência de alunos universitários provenientes
de áreas periféricas da cidade — movimento também efervescente a partir da
metade dos anos 1980 —, impulsionada particularmente pela experiência ju-
venil nos diversos movimentos sociais que proliferavam à época. Inicialmente,
eles eram percebidos como “informantes privilegiados”, pois supostamente
teriam experiências anteriores que os habilitavam a compreender e a dar mais
agilidade ao campo. Estudar o próprio território ou o seu próprio grupo so-
cial era uma injunção que balizava as primeiras experiências de pesquisa de
muitos dos estudantes da geração de E. Gomes — e das seguintes. O status

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conferido era o de “auxiliar”, importante para a realização das pesquisas aca-


dêmicas, mas subalterno na autoria.
Uma das mais significativas experiências foi a primeira pesquisa de que
participou, sobre o processo de conversão ao pentecostalismo em programas
de televisão e rádio. Buscava-se verificar a eficácia das mensagens transmitidas
e o tipo de vínculo estabelecido entre ouvintes/telespectadores e suas respecti-
vas denominações. Tratava-se de uma pesquisa exploratória e inovadora, que
propiciou um contato com os primeiros fundamentos teórico-metodológicos
no campo da sociologia. As conversões a esse ramo do cristianismo eram e, em
grande medida, ainda são vistas como indissociáveis da condição econômica
desprivilegiada da população. Pertencer à Baixada Fluminense possibilitaria,
assim, um conhecimento prévio sobre suas características e um acesso mais
direto a seus habitantes. Primeira pesquisa e primeira associação entre pes-
quisadora e seu local de origem. Nessa e em outras pesquisas posteriores, nas
quais atuava como auxiliar, diversas pessoas de sua relação mais íntima foram
acionadas, seja como informantes diretos ou como intermediários.
Assim, para E. Gomes, não chegou a ser propriamente uma novidade a
pesquisa no próprio meio social que veio a redundar no presente trabalho. A
diferença no empreendimento atual reside na sua condição de pesquisado-
ra plena, tendo passado de auxiliar e informante-meio a autora. O processo
reflexivo ocorreu durante toda a pesquisa, desde o primeiro aceno de L. Du-
arte para a possibilidade de pesquisar a própria família, já que no grupo de
discussão sobre o campo religioso brasileiro então formado sempre pareciam
pertinentes as conexões e os exemplos provenientes da experiência pessoal
e familiar da pesquisadora e de outros membros da equipe. A proposta foi
aceita, mas desde o início do projeto ficou claro que não se trataria de uma
autobiografia — partindo de ego, como na produção de uma árvore genealó-
gica moderna — ou de um inventário e (re)construção da história da família
auto-referenciada. O foco centrou-se inicialmente na receptividade ou rejeição
às mudanças de religião dos integrantes da rede e em como a convivência plu-
rirreligiosa afetava a organização e as relações cotidianas da família.
A trajetória de E. Gomes apresenta um diferencial em relação à rede fa-
miliar, sendo fundamentalmente marcada pelo investimento na instrução for-
mal, compartilhada também por seus irmãos. O ramo a que está associada se
estruturou em torno da educação dos filhos, distinguindo-se sobremaneira
dos outros nove que compõem a rede. O acesso aos estudos e a conclusão dos

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mesmos eram ponto de honra, sendo percebidos como processo obrigatório


e incontestável. Caçula e única filha entre cinco irmãos, recebeu atenção es-
pecial, sendo matriculada na instituição de ensino mais prestigiosa da cidade.
Seus dias eram quase todos tomados com as atividades no colégio, que ficava
espacialmente distante do bairro e da rede familiar. A rigidez de sua educação
se confirmava na proibição de “circular” pelas casas de parentes e pelo bairro
sem a companhia dos pais ou irmãos. O afastamento em relação à família
extensa e ao bairro era a tônica. O acesso à universidade veio acentuar essa
característica. De certo modo, sempre esteve distante — embora não alheada
— da lógica que estrutura o universo familiar da rede estudada. O caráter
individualizante de sua formação pautou a imersão no campo. “Olhar de fora”
a própria família, por mais complexa que seja tal relação, não lhe pareceu ser
destoante do exercício do ofício antropológico. O estranhamento (empatia ou
antipatia), a aproximação e o afastamento analíticos constituíram o processo
mesmo da pesquisa. Como em qualquer trabalho de campo, houve estraté-
gias de inserção e negociação entre a pesquisadora e os “nativos”. A afetação
é mútua, seja qual for o sentimento envolvido.7 Informações pessoais foram
reveladas, e outras, escondidas. Aquelas consideradas mais dramáticas, ligadas
em especial à segurança de membros do grupo, não foram liberadas para di-
vulgação. A própria “proibição” é um fator importante para a análise, estando
no âmbito da dinâmica segredo-fofoca, tão cara às relações sociais.
Quando se trata de pesquisar a “familiaridade familiar”, como a classifica
Bourdieu, revelar ou não revelar situações ou eventos torna-se um nódulo
reflexivo importante, podendo levar a uma sensação de “traição” junto aos pa-
res, aqui representados por familiares e vizinhança. Ao refletir sobre a utiliza-
ção de dados provenientes de sua própria experiência no Béarn, diz Bourdieu
(2005:91):

a compunção objetivista de meu propósito prende-se decerto por um lado ao


fato de que experimento o sentimento de cometer algo análogo a uma traição
— o que me levou a recusar por muito tempo a reedição de textos que a pu-
blicação em revistas eruditas de difusão restrita protegia contra as leituras mal-
intencionadas ou voyeuristas.

Nos três primeiros anos de pesquisa, a questão da dupla pertença não se


configurava uma preocupação essencial para a pesquisadora. A investigação

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na própria rede familiar somente passou a constituir um verdadeiro problema


com o início das apresentações públicas do material. Nesses encontros surgi-
ram reações contundentes quanto à validade da etnografia empreendida. A
decisão de explicitar a dupla pertença da pesquisadora, conjugando trajetória
familiar e acadêmica, provocou tensões, tentativas de esclarecimento externo
(no caso dos interlocutores acadêmicos) e interno (devido principalmente à
retomada do contato com a rede familiar mais ampla). No grupo familiar,
assumir a posição de pesquisadora dedicada a analisar sua própria família
também conduziu a discussões mais intensas, sobretudo no núcleo mais ínti-
mo, por ser mais intelectualizado e, portanto, dotado do tipo de reflexividade
necessário para apoiar ou questionar os procedimentos de pesquisa.
No universo da antropologia, ser “nativo” assumia dimensões não pres-
tigiosas, e combinar essa condição com a de “pesquisador” podia implicar
o não-reconhecimento da “cientificidade” da análise proposta. As discussões
metodológicas foram desencadeadas em diferentes momentos, com variados
níveis de aceitação, envolvendo nódulos metodológicos tais como a relação
sujeito-objeto, o tema da pesquisa “experience-near versus experience-distant”,8
o do “observar o familiar”,9 ou o do transformar o “exótico em familiar” e o
“familiar em exótico”.10 Vale ressaltar que grande parte do debate ocorreu nas
coxias dos fóruns oficiais, após as apresentações em grupos de trabalho, em
situações de sociabilidade informal nas quais as animosidades e enfrentamen-
tos teóricos podiam ser mediados pela cortesia. O tratamento cordial se ma-
nifestava principalmente quando havia algum tipo de reconhecimento — afe-
tivo — entre os pares. Pelo menos duas posições opostas emergiram:11 uma
provocativa, que expressava descontentamento metodológico, e outra, mais
acolhedora, que revelava a angústia de muitos outros pesquisadores que de
alguma maneira realizavam etnografias baseadas em redes de pertencimento
ou de conhecimento pessoais, mas que não explicitavam essa condição de suas
fontes. A conversação girava em torno de uma “certa coragem” de assumir a
pertença publicamente e de enfrentar o debate.
As reações da família foram as mais díspares: desde o desconhecimento
total (mais freqüente) sobre o que significa uma etnografia até a leitura crítica
e discussão dos textos produzidos e dos procedimentos empregados. Na ver-
dade, ninguém, nem mesmo no próprio núcleo da pesquisadora, compreen-
dia o que significa ser cientista social: “afinal de contas, para que serve?”. O
prestígio advinha da formação universitária em si, e não do reconhecimento

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ou esclarecimento da função profissional. Algumas situações são exemplares


e explicitam diferentes interações entre sujeito e objeto nesse tipo de campo.
Uma prima em primeiro grau apresentou a pesquisadora a seu companheiro
como “aquela prima que faz árvore genealógica. É só dizer seu nome que ela
vai descobrir de onde você veio”. Longe de implicar desqualificação da figura
do pesquisador pela parentela, em função do desconhecimento da significa-
ção do ofício de antropólogo, a situação evidenciou que as definições a res-
peito do status profissional apenas prescindiam de precisão. O mesmo pode
ser dito quanto ao esclarecimento sobre o tema da pesquisa: mudanças (ten-
sões e acomodações) provenientes do pluralismo religioso na esfera familiar
em camadas populares. Nesse caso, não se tratava de subestimar a qualidade
das impressões que o “antropólogo” gerava na relação estabelecida com os
“próximos”. Ao contrário, tratava-se de admitir que o fenômeno abordado
não era classificado com o mesmo grau de importância analítica para a vida
de todas aquelas pessoas, como sublinhou Abu-Lughod (1990), lembrando
que há uma tendência psicologizante e etnocêntrica nas ciências sociais de
considerar que todos os seres humanos estão comprometidos cotidianamente
com a autocompreensão e a interpretação de suas vidas. Na verdade, isso era
pouco relevante para a maioria. Não era uma questão. Todos sabiam que pri-
mos, tias e sogras não mais compartilhavam da mesma religião, tornando-se
o fato ainda menos crítico nas gerações mais novas. Narravam os incômodos
com a adoção de práticas religiosas fechadas, chatas (“exclusivistas”, no jargão
dos antropólogos da religião). A nova vida — o renascimento — promovida
pela conversão também era ressaltada, seja pelos convertidos, em sua leitura
no registro da conversão, seja pelos parentes que não professavam a mesma
religião, ao reconhecerem o papel positivo da mudança de religião, inclusive
aqueles mais contrários à entrada do pluralismo na família. A convivência
mais ou menos pacífica, as antipatias e simpatias se mostravam no cotidiano
das relações familiares. A constatação era de que a religião — em seu sentido
amplo — dava sentido à trama familiar e era expressa através de conflitos,
quase sempre inexplícitos, e acomodações.
Na relação com os mais chegados, tornou-se difícil perceber se a religião
entrava nas conversas por ser um tema latente e central ou por causa da pre-
sença da parente-pesquisadora. Era só E. Gomes chegar para receber alguma
notícia relacionada à pesquisa. Não tinham nem mesmo receio de falar mal
dos “parentes-crentes”, no caso dos católicos. A intimidade e a proximidade,

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de familiar e pesquisadora, servia quase que como motor para a evocação dos
posicionamentos religiosos. A pesquisa acabou ocupando espaços significa-
tivos da vivência familiar da pesquisadora. A antipatia para com os “crentes”
— considerados os “outros” da relação — era tida como um sentimento com-
partilhado por todos ou, pelo menos, um sentimento parecido.
A permanência em constante “estado etnográfico”, hábito adquirido nos
anos de pesquisa em religião, funcionou como um termômetro da conexão
estabelecida externamente entre o tema, a pesquisadora e a família. O plu-
ralismo estava lá, rejeitado por uns e comemorado por outros. A emergência
das novas opções religiosas estava nas conversas, intrigas e fofocas, mesmo
antes de a pesquisadora tentar objetivá-la. Durante muitos anos, houve receio
de que o trabalho junto aos pentecostais pudesse transformar-se em adesão
religiosa. Na verdade, as duas dimensões se confundiam para aqueles que
não compreendiam o ofício do antropólogo. A imersão em campo, com idas
freqüentes às igrejas e contatos constantes com integrantes dessas confissões,
sempre foi percebida como um risco pela família nuclear de origem da pesqui-
sadora, originalmente católica e capitaneada pela filha mais velha do casal ori-
ginal dos Campos, que detém a posição de transmissora dos valores familiares
(incluindo os religiosos, fundados no catolicismo). Em diversas oportunida-
des, a antipatia pelos evangélicos em geral, e pelos pentecostais em particular
— expressa abertamente por aquela liderança —, foi enfatizada como meio
de demonstrar a insatisfação com — ou a quase impossibilidade de aceitação
de — uma possível conversão de sua prole. Quando se tratava de entrevistas
ou conversas estabelecidas em torno dos objetivos da pesquisa, havia relativi-
zações acerca da positividade das conversões, que afinal teriam surtido efeito
regulador sobre os “crentes”, os quais reconhecidamente teriam mudado suas
trajetórias, antes desviantes (em relação a alcoolismo e transgressões sexuais,
sobretudo).
Extrapolar a dimensão do pluralismo religioso intrafamiliar, buscando
analisar outros aspectos das condições diferenciais de reprodução, como tra-
balho, instrução, cor e preconceito, violência, estratégias reprodutivas, mani-
festações explícitas de “diferenciação” social, entre outros, acirrou o processo
reflexivo (ou de autoconsciência...) da pesquisadora.
A relevância maior da família em relação à pesquisadora-nativa estava na
retomada de laços de proximidade. Estes são acompanhados de uma série de
prestações e contraprestações. A (re)inserção na família, promovida pela pes-

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quisa, se refletiu substancialmente na pesquisadora e na construção da própria


pesquisa. De certa maneira houve o encontro, longe de ser sem tensão, entre o
indivíduo-projeto12 e a pessoa relacional, que num contexto de família extensa
de camada popular, apesar dos atravessamentos do modelo de família moder-
na, ainda tem um valor primordial. Esse movimento, orientado pelos instru-
mentos da antropologia, levou E. Gomes a perceber melhor as dinâmicas e as
transformações em curso nas suas relações familiares. Exemplo paradigmático
é a centralidade das festividades organizadas pelos diferentes ramos da rede.
A reciprocidade é esperada e se materializa no convite e no comparecimento
aos eventos. A relevância desse aspecto fez emergir lembranças, anteriores à
pesquisa, sobre os vários convites recebidos para casamentos, festas de aniver-
sário e outras comemorações, que foram simplesmente desconsiderados, por
motivos diversos. A proximidade/afetividade estava quase que restrita ao seu
próprio ramo e às relações de amizade, em sua maioria estabelecidas fora das
fronteiras do bairro e da família. Neta mais velha e membro de um núcleo as-
cendente, só veio a constatar a importância do “seu lugar” quando finalmente,
depois de anos e já realizando a pesquisa, participou de um aniversário da fi-
lha de um de seus primos. Sua presença foi amplamente notada e comentada.
Lembrou-se que, anos antes, tinha realizado uma festa para sua filha e para
a qual convidara todos os parentes. Nesse dia recebera convites para aniver-
sários de diversas outras crianças da família, a que não compareceu. Quando
passou a analisar as relações de prestação e contraprestação dentro da rede,
a reciprocidade em ação nos vínculos familiares, percebeu quanto se tinha
distanciado desse universo. De alguma forma esse foi um momento crítico
no andamento da pesquisa. A presença nas festividades gerava expectativas
que não se relacionavam com a pesquisa, mas com o contato mais próximo
de um familiar que estivera distante e finalmente retornara para compartilhar
momentos festivo-afetivos.
Bourdieu (2005:94) revela que, com freqüência, puxava assunto sobre
problemas que lhe interessava investigar. Em alguns momentos tinha dúvidas
se “gostava mesmo das pessoas, como cheguei a acreditar um tempão, ou
se não acabara lhes dirigindo apenas um interesse profissional, que também
pode implicar uma forma de afeição”. E. Gomes também teve essa sensação
quando se deu conta de que não estava só pesquisando, mas também produ-
zindo — concomitantemente — uma reinserção na família. As características
de ser a mais velha entre 11 netas, escolarizada, independente, individuali-

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42 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

zada não tinham sido objetivadas em nenhum outro momento. Esse “dar-se
conta” do seu próprio papel no arranjo familiar permitiu uma complexificação
da reflexão sobre os dados. Houve uma sensação prazerosa de vivenciar uma
aproximação, de rever pessoas ou conhecer as novas gerações. Mas a aproxi-
mação se deu no âmbito de uma pesquisa, o que enseja uma experiência tanto
de membro da família — mesmo que distante da rede mais ampla — como
de antropóloga.
A leitura da produção também fez e ainda faz parte dessa interação. Tão
logo foi publicado, o primeiro artigo com os resultados da pesquisa despertou
interesse entre os familiares mais íntimos. Após o lançamento, a pesquisado-
ra hospedou-se na casa de um irmão que morava mais próximo do local do
evento. A primeira atitude dos presentes foi pegar o livro e verificar se nele
constavam informações secretas sobre parentes. Trechos foram lidos em voz
alta, diante de todos, incluindo a pesquisadora. O desejo era se reconhecerem
nas situações e falas apresentadas no artigo. Nele não constavam nomes e se
evitou elaborar descrições muito precisas, já que se tratava de análise de temas
ligados à sexualidade e reprodução. Um “inquérito” foi realizado pelos presen-
tes. E. Gomes teve que responder a vários questionamentos: uns mais ligados
à fofoca, outros mais à vergonha diante do tema tratado. Por exemplo: “mas
você disse essas coisas aí? Que vergonha!!”, disse uma tia que, em entrevista,
confessou que nunca conversara sobre sexo com suas filhas, pois elas “apren-
deram na escola, na televisão e com as amigas”. Apesar de, à época da entrevis-
ta, estar ciente da utilização das informações, ela se sentiu constrangida — e a
pesquisadora também. Esta voltou a explicar os objetivos da análise: não era
para expor as pessoas a fofocas, mas para saber como, ou se, a religião molda
o comportamento sexual e reprodutivo das pessoas. Apesar de entenderem
formalmente a explicação, a dinâmica fofoca-vergonha prosseguiu.
O desafio antropológico de trabalhar com a própria família extrapola
os limites do trabalho de campo realizado, por exemplo, na cidade, como
na antropologia urbana. Pesquisar o “próximo”, ou de “dentro”, como sugere
Magnani (2002), é algo que em termos cognitivos, afetivos e espaciais se insere
nos limites do que se chama de “familiar” em seu sentido genérico. O limite
se rompe quando a abordagem parte da análise da própria família. Em nosso
caso, não só em relação ao objeto de pesquisa que está próximo, em termos
afetivos ou espaciais, como na antropologia urbana ou numa antropologia das
sociedades complexas, mas também pelo fato de o tema ser a “família”. Falar

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A pesquisa na própria sociedade (e sobre a própria família) 43

da própria família é quase uma profanação, é expor aquilo que há de mais sa-
grado e pulsante, paradoxalmente, no discurso moderno. É nela que os temas
mais críticos e privados se ancoram: sexualidade, conjugalidade, afetividade,
decisões reprodutivas, religião. A família como “crucialidade e intensidade
próximas a uma religiosidade” estabelece — assim como a religião — uma
mediação entre o público e o privado, como acentua Duarte (2006). Família,
lugar de segredo, reduto daquilo em que a sociedade não interfere ou que não
se revela. Lugar privado/sagrado, por isso tabu por excelência na sociedade
moderna. Observar de dentro e expor o que deveria estar circunscrito a uma
redoma de névoa, que permite a visão externa mas não revela suas nuanças,
seria uma subversão total do método antropológico, que pressupõe, em algu-
ma medida, a capacidade de designar um “outro”, estranhá-lo, fazê-lo pró-
ximo e, em seguida, objetivá-lo de forma que possa ser “de fato” conhecido.
Acusação quase religiosa, já que aciona a tradicional relação/oposição entre
“conhecimento” e “experiência”.
Não é descabido evocar em tal contexto o modo como se constrói uma
questão análoga nas narrativas de ficção em nossa cultura. Uma reflexão siste-
mática sobre a relação dessa “invenção” com a experiência biográfica do autor
estabeleceu-se desde o final do século XVIII (veja-se o oitocentista “madame
Bovary c’est moi” de Flaubert) e não deixou de influenciar as recentes correntes
do pensamento antropológico dedicadas a refletir sobre a condição do “antro-
pólogo como autor” e sobre as relações entre o texto etnográfico e as condições
da subjetivação em seu trajeto acadêmico.13
A questão do “distanciamento” está tão presente nos estudos externos
quanto nos que se dedicam às próprias redes, sobretudo familiares. A imagem
de um compartilhamento homogêneo das informações no interior de uma
família ou de uma rede de parentesco é certamente ilusória. Cada unidade
doméstica, cada fratria ou cada relação diádica componente dessa trama po-
dem dispor de um acervo de informações sobre si mesmos ou sobre os outros
que lhes é próprio e que não extravasa para os demais parentes. Fluxos de
segredo ou de “não-ditos” são aí tão palpáveis quanto os fluxos do comparti-
lhamento. Além do mais, as propriedades diferenciais de posição de cada um
desses elementos tende a lhes ensejar um ponto de vista sobre os demais que
não é perfeitamente claro para todos. Também aqui a ilusão de um ponto de
vista absoluto sobre os “nativos” se revela em toda sua crucialidade, até mes-
mo por se dar num lugar social onde o máximo de percepção comum parece

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44 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

prevalecer. É claro que o conjunto da rede familiar pode compartilhar algumas


informações que um acordo mais ou menos tácito impede que extrapolem as
fronteiras intrafamiliares, mas esse obstáculo é da mesma ordem metodológica
que o anterior.
No que se refere à possibilidade de tornar pública uma reflexão pessoal
sobre parte de sua experiência familiar, a situação de L. Duarte é diferente da
de E. Gomes, embora suscite idênticas inquietações epistemológicas e éticas.
Como se mencionou na introdução e ficará mais claro no capítulo 3, havia
considerável diferença de ethos entre sua ascendência paterna e a materna, mas
isso só pôde ser formulado em termos sociológicos bem tardiamente em sua
trajetória, quando já se iniciava na reflexividade específica de um treinamento
antropológico. Surgiu, nesse processo, a possibilidade crescente de objetiva-
ção de um longo acervo de experiências pessoais até então cercadas de grande
ambigüidade e ambivalência. A “descoberta” de que a casa tão acolhedora de
sua família paterna, onde vinha passar curtos períodos de visita ou férias, era
parte de uma “vila operária” só se deu quando ele já estava ali habitando há
alguns anos, casado, e a necessidade de responder a uma pesquisa sobre o
conjunto o levou a procurar obter informações, por telefone, com a tia que
mais longamente ali antes vivera. Assim, não foi sem certa surpresa que ele se
viu diante do fato de que seu avô, que ele mal conhecera e de quem sempre
ouvira falar como “funcionário da prefeitura”, era na verdade um trabalhador
manual, mestre das oficinas de mecânica do então Distrito Federal — um
“operário”, afinal de contas. A disposição “aristocratizante” adquirida no am-
biente muito envolvente de sua família materna, na distância acolchoada da
serra, se acomodava mal com a nova consciência de seu contexto familiar. Ao
mesmo tempo, inúmeros aspectos da experiência de seu núcleo doméstico
(e de sua criação e educação nesse contexto) e da convivência com os diferen-
tes ramos derivados das parentelas materna e paterna se deixavam iluminar
sob novos ângulos e com ampliadas ressonâncias. Essa experiência foi mais ou
menos coetânea de sua decisão de realizar a dissertação de mestrado sobre um
grupo de “classe trabalhadora” e — mais do que isso — sobre os processos de
diferenciação social que ali se apresentavam de maneira desafiadora e dolorosa
(para muitos dos atores envolvidos). No entanto, na ocasião, a decisão de pes-
quisa se afigurava como descida exclusivamente do céu abstrato da formação
antropológica no Museu Nacional, combinando a ênfase na observação empí-
rica com algumas das tendências de análise sociológica e da reflexão filosófica

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A pesquisa na própria sociedade (e sobre a própria família) 45

então prevalecentes.14 Isso não deixava de ser parte da verdade, mas pôde ser
— anos mais tarde — complementado pela percepção das ressonâncias de
uma investigação sobre a ambigüidade sociológica de sua formação.
A pesquisa de campo impõe, no entanto, um regime de objetivações que
permite — felizmente — extrapolar ou metamorfosear, em alguma medida,
as condições subjetivas originárias. O mesmo não ocorre com a reflexão co-
tidiana sobre essas mesmas condições, ainda que longamente auxiliada pelos
mecanismos amplificadores da autoconsciência propiciados pela experiência
psicanalítica. As memórias e as dúvidas sobre os detalhes, pormenores, ênfa-
ses e inflexões das trajetórias das duas famílias sempre permaneceram como
um tema reflexivo digno de investimento privado. Evidentemente, essas preo­
cupações ou incitações (uma “vontade de saber” — bem se poderia dizer,
no seu sentido tanto psicanalítico quanto foucaultiano) estiveram em diálogo
com muitas outras dimensões da carreira acadêmica do pesquisador — sem
que seja esse o motivo pelo qual essas questões são aqui evocadas. Com efeito,
diferentemente do rico desenvolvimento que deu Bourdieu à questão da “ob-
jetivação participante” — já antes evocada —, não é o objetivo dos pesquisa-
dores neste livro refletir sobre o modo pelo qual o habitus decorrente de suas
condições sociais de origem pôde ensejar a análise aqui empreendida — ou
qualquer outra parte da obra de cada um dos autores. Trata-se, isto sim, de
“objetivar” diretamente a própria experiência familiar, encapsulando-a numa
“pesquisa” mais ou menos formal, tendo em vista uma comparação entre os
processos de identificação transgeracional aí envolvidos.
Para tanto, porém, é necessário proceder a essa sempre parcial explicita-
ção do leito subjetivo sobre o qual se adensou o fluxo de tal empreendimento.
Diferentemente de E. Gomes, o pesquisador nunca tinha feito uso explícito de
informação sobre a experiência social de sua família ao decidir-se por essa via,
no decorrer da pesquisa que aqui desemboca. Inicialmente, a tarefa lhe pare-
ceu fascinante e relativamente fácil, até mesmo porque se daria de modo mais
indireto — histórico, por assim dizer — do que no caso de sua colega. Além
do mais, podia dispor do recurso do arquivo digitalizado das fotos de família,
recém-terminado. Ao começar as conversas/entrevistas com os poucos paren-
tes sobreviventes da terceira geração, surpreendeu-se não só com a quantidade
de informação que objetivamente ignorava sobre a vida de seus ascendentes
e colaterais paternos, mas também com a diferença dos registros e dimensões
dessa memória entre esses primos. Também cresceu a preocupação com a di-

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mensão ética da exposição dessas informações numa obra pública, mesmo que
tivesse sempre procurado deixar claro que seu interesse em suas memórias
— além de afetivo — era também profissional. Duas primas foram particu-
larmente receptivas (juntamente com o marido de uma delas). Uma terceira
prima, de quem os demais núcleos da família se encontravam mais afastados
devido a uma série de circunstâncias até hoje pouco claras para o pesquisador,
pareceu extremamente cordial no primeiro contato, marcado com antecedên-
cia por telefone, em que também esteve presente seu marido. Através dela
pude saber um pouco mais sobre sua linhagem (que inclui um irmão e seus
descendentes, igualmente afastados há algum tempo das demais linhagens).
No entanto, logo na semana seguinte, ao trocar mensagens eletrônicas com
sua filha, que me enviara fotos de família escaneadas em seu escritório, foi a
comunicação interrompida sem qualquer explicação ou justificação. Parece
ao pesquisador que, feita por escrito, a referência à dimensão profissional da
pesquisa se tornara mais palpável e viera a incomodar esse ramo dos parentes,
interferindo talvez na expectativa de um reatamento de laços exclusivamente
afetivos ou evocando sentimentos negativos de outros tempos ou de outra or-
dem. O pesquisador não insistiu no contato nem procurou esclarecer o caso,
que lhe pareceu capaz de produzir um desgaste emocional ainda maior entre
as partes. Havia ali certamente alguma diferença de “atividade produtiva” a
empanar o fluxo dos sentidos.
Tal episódio parece revelador do modo como esse tipo de pesquisa pode
envolver negociações tão ou mais duras e complexas do que as que se dão
normalmente entre desconhecidos trazidos ao contrato a termo de uma pes-
quisa. Mostra, sobretudo, como o acervo transgeracionalmente acumulado de
identificações e afetos pode incluir poderosos sentimentos negativos que a
situação de pesquisa faz rebrotar na forma familiar (no duplo sentido) dos
ressentimentos e mágoas. A experiência com seus parentes mais próximos,
seus irmãos mais moços, seu cunhado e seu filho, revelou, por outro lado,
quão distante a história da família Duarte se lhes afigurava. A leitura de al-
guma versão preliminar do capítulo 3 despertou simpatia e curiosidade, mas
não suscitou qualquer participação ativa na pesquisa — pela óbvia razão de
que, por força de sua posição geracional, pouco tinham participado daquela
dinâmica. Por outro lado, sua atitude também revelava quão mais fortemente
se identificavam com a família materna do pesquisador, em cujo contexto se
tinha desenrolado fundamentalmente sua experiência de vida.

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A pesquisa na própria sociedade (e sobre a própria família) 47

Nesse amplo leque de sentimentos devem estar incluídos, inevitavelmen-


te, os do próprio pesquisador — em múltiplos níveis. Richard Hoggart, em
seu trabalho sobre as transformações da cultura das classes populares ingle-
sas, oferece um raro exemplo de reflexão sobre uma trajetória intelectual que
inclui a observação do mundo social do qual se afastou o pesquisador. Essa
reflexividade é carregada de sentimentos ambivalentes e de implicações para a
“objetividade” da enorme massa de informação assim organizada. Como bem
diz Hoggart (1973:21): “sou oriundo das classes proletárias e, mesmo hoje,
sinto-me a um tempo próximo e afastado delas”. Esse duplo movimento im-
plica, ainda, o que ele chama de uma “lente deformadora da nostalgia” a se
insinuar na reconstrução sociológica dos seus fatos de memória.
Roberto DaMatta (1978:28-29), numa discussão mais genérica, buscou
definir o processo do conhecimento antropológico numa via dupla: “trans-
formar o exótico no familiar e/ou transformar o familiar em exótico”. Nessa
segunda via, que ele compara a um “auto-exorcismo”: “a viagem é como a do
xamã: um movimento drástico em que, paradoxalmente, não se sai do lu-
gar”. Gilberto Velho (1978:39, 45), à mesma época, chamou a atenção para a
multivocidade da categoria “distância” aplicada à relação entre pesquisador e
pesquisado, buscando distinguir “distância social” de “distância psicológica”.
Nos seus próprios termos: “o processo de estranhar o familiar torna-se possível
quando somos capazes de confrontar intelectualmente, e mesmo emocional-
mente, diferentes versões e interpretações existentes a respeito de fatos, situa-
ções”. “Familiar”, para ambos os autores, se emprega na acepção lata do que é
cultural ou socialmente próximo, e não no sentido estrito do que diz respeito
à família. Esse deslizamento de significado é, por outro lado, significativo em
si mesmo para nossa discussão.
Embora boa parte dos estudos feitos na tradição aberta por Gilberto Ve-
lho sobre as camadas médias urbanas brasileiras encontre um ponto de apoio
nas redes mais próximas dos pesquisadores (majoritariamente pertencentes
aos mesmos segmentos por eles estudados), não parece ter havido algum re-
gistro de que as próprias redes familiares estivessem sendo estudadas ou in-
cluídas nos recortes privilegiados.15 A “familiaridade” está sempre aí presente e
é trazida à reflexão do pesquisador e à percepção do leitor, mas não enquanto
“familialidade”.
A proposta da “objetivação participante” de Bourdieu (2005) porta outra
ambição, como refração inevitável sobre o próprio pesquisador das estraté-

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gias de localização sociológica das diferentes práticas humanas (o “espaço dos


possíveis”). Incumbe passar, assim, a uma “auto-socioanálise”, com implica-
ções peculiares em relação aos demais regimes de objetivação.16 O processo é
considerado possivelmente mais denso de deslizamentos entre as dimensões
cognitiva e afetiva. Bourdieu fala de uma “conversão”17 ou de um “percurso
iniciático”,18 metáforas que não são raras para a referência a toda a experiência
antropológica, tal como fez DaMatta na passagem há pouco citada. L. Duarte
explorou a propriedade do uso de imagens das transformações intensas e in-
corporadas, normalmente associadas à experiência religiosa, para expressar o
idêntico atravessamento da totalidade da pessoa em formações profissionais
tais como a da antropologia e da psicanálise — uma vez que de apercepções
totalizantes da experiência coletiva ou pessoal justamente se trata para tais
Bildungen, para a conformação de tais disposições adquiridas.19
No caso do debruçar-se reflexivamente sobre a experiência pessoal no
interior da própria rede familiar emergem, porém, de maneira mais intensa
— ou mais imediata — as dimensões afetivas, entranhadas, em que se banha
toda intersubjetividade. Emerge, sobretudo, essa ambivalência tão notória no
campo antropológico desde os depoimentos íntimos de Malinowski: a empatia
combina-se com o desprezo, a dedicação tinge-se de distanciamento, a auto-
estima volve-se em vergonha, um sentimento de traição pode coroar a trama
inextricável em que se desenvolve o projeto. Bourdieu evoca explicitamente
esses dois últimos sentimentos no contexto da sua “auto-socioanálise”.
O regime de intensidade e de ambivalência que preside a tais empreen-
dimentos importa no que Bourdieu (2005:123) chama de um “habitus clivado,
movido por tensões e contradições”, onde prevalece uma “coincidência entre
contrários”.20 A clivagem por tensões e contradições pode se manifestar de
diferentes formas, no entanto, em função justamente das propriedades que
condicionam o estranhamento e o reconhecimento das relações originais.
Bourdieu (2005:110) evoca, para o seu caso, a ambigüidade da condição de
funcionário público pobre do pai, num meio de trabalhadores rurais (“os em-
pregados de mãos brancas”), a qual se aproxima da que caracteriza a diferença
entre o avô operário e o pai funcionário público de L. Duarte. A anisogamia
do casal imediatamente ascendente deste último caso — o que não parece ter
correspondência na ascendência de Bourdieu — impõe, além do mais, consi-
deráveis tensões na forma fenomenal e nas implicações identificatórias e afe-
tivas da transgeracionalidade. Por outro lado, a sua mera presença não impõe

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A pesquisa na própria sociedade (e sobre a própria família) 49

rumos uniformes a tais trajetórias. A anisogamia estava presente nas gerações


imediatamente anteriores tanto de L. Duarte quanto de E. Gomes e não deu
lugar, nos dois casos, a processos de identificação diferencial do mesmo tipo.
Toda esta reflexão sobre a especificidade de uma situação de pesquisa
na própria família não deve obscurecer as continuidades que tem uma pes-
quisa desse tipo com quaisquer outras conduzidas na própria sociedade do
observador. Muitos procedimentos objetivantes mais gerais foram utilizados
ao lado das reminiscências, reuniões domésticas, entrevistas e discussões com
a rede familiar. A localização social dos bairros, ruas, instituições e fenômenos
envolvidos nessas histórias familiares foi motivo de sistemático esforço de in-
vestigação por via bibliográfica, de arquivos ou da internet.
As condições da terceira janela etnográfica aqui presente, a da família de
Jurujuba, foram cercadas de um idêntico aparato crítico. É claro que o fato de
o pesquisador ter anteriormente publicado diversos livros e artigos em que
aspectos do bairro e de suas atividades já tinham sido apresentados21 ajudou
consideravelmente na seleção dos elementos mais relevantes para o presente
experimento. O foco principal das pesquisas anteriores no bairro não tinha
sido, no entanto, nem o tema da família, nem particularmente a família aqui
estudada. Na verdade, na primeira fase de contato, nos anos 1970-80, o pes-
quisador sequer fizera entrevistas gravadas com o chefe da família Costa, de-
vido à crescente preeminência da condição de amigo e ao fato de que — para
as questões que então lhe interessavam — não faltavam outros informantes.
Tinham sido feitas gravações, no entanto, com sua mãe, em função da muito
especial disposição (e tempo) que tinha Amélia Costa para conversar sobre
quaisquer aspectos da vida pessoal ou comunitária.
Na fase mais recente de pesquisa, esclarecido o novo foco de interesse
do pesquisador,22 passou-se a fazer entrevistas mais formais, inclusive grava-
das, na casa principal da família Costa. Três problemas de gravidade diversa
interferiram na condução da pesquisa nessas novas condições. O primeiro foi
o fato de que minha condição de “amigo” do chefe da família me tornava seu
quase exclusivo interlocutor, inclusive em função da preeminência hierárqui-
ca desse personagem sobre toda a família. Uma tentativa de consultar uma de
suas filhas, que utiliza a internet regularmente, para obter dados precisos a
respeito da história familiar teve resultado nulo. Algum tempo depois de espe-
rar em vão por sua resposta, encontrei-a em casa de seu pai e ela deixou bem
claro que lhe havia repassado a questão, sugerindo que ele me respondesse

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50 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

(possivelmente por telefone — um meio que eles só muito raramente usaram


com o pesquisador). Essa condição não teria sido tão adversa se o chefe da
família, com sua avançada idade, não estivesse apresentando sinais, já desde
2006, de alguma redução de sua outrora prodigiosa capacidade mnemônica,
o que tornava nossas entrevistas incomodamente repetitivas (provavelmente
para ambos). O terceiro fator, verdadeiramente catastrófico, foi o grave adoe-
cimento (e subseqüente falecimento em 2006) da filha mais velha do casal de
referência, que sempre fora uma excelente informante — a única dos filhos a
dispor de uma informação abrangente sobre a família (por razões que ficarão
mais claras no capítulo 2) e a se dispor a uma interlocução mais direta com
o pesquisador. Isso se justificava pelo fato de ser este conhecido e amigo de
seu marido, tendo inclusive assistido ao casamento dos dois e participado das
obras da casa em que vieram a habitar nas proximidades da casa paterna. En-
tre seu adoecimento e morte ocorreu o falecimento súbito do próprio marido
— o que caracterizou um período de grande comoção familiar. Por motivos
intensamente afetivos, mas também práticos, o pesquisador sentiu-se longa-
mente paralisado em sua atividade de pesquisa, comungando penosamente do
luto familiar. Veja-se assim que a intensidade da dimensão afetiva — cujas im-
plicações para a pesquisa com a própria família foram já mencionadas — não
esteve ausente de uma relação tão longa e tão cara quanto a que une o pesqui-
sador aos Costa.
Mencionou-se na introdução que alguns poucos fatos e informações re-
lativos às três famílias tiveram que ser omitidos neste trabalho. Reitera-se aqui
que não se trata em nenhum caso de matéria que pudesse subverter grave-
mente a visão dos processos sociais que se veio a expressar. É claro que todo
detalhe etnográfico é importante para a composição de um quadro abrangente
da situação retratada, e eles poderiam — cada um deles — permitir-nos an-
gulações diferentes do clima moral das três famílias. Procurou-se, no entanto,
deixar aberta a possibilidade ao leitor de perceber em que direções, momentos
e posições poderiam estar surgindo comportamentos transgressivos ou des-
viantes — e em função de que circunstâncias, quando isso parecesse possível
para os próprios pesquisadores, o que nem sempre foi o caso. É importante
ressaltar que essas reservas não ocorreram para proteger a dignidade das famí-
lias dos pesquisadores, mas para manter o respeito a determinados persona-
gens vivos ou mortos, cuja atitude original em relação a tais fatos (ou a de seus
descendentes) é (ou foi) a de encobrimento, em qualquer uma das famílias.

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A pesquisa na própria sociedade (e sobre a própria família) 51

Outro motivo imperioso foi a segurança física de alguns personagens — ques-


tão mais delicada ainda para eles que para os autores.
De qualquer forma, não é sem considerável mal-estar que L. Duarte de-
cidiu apresentar o material da família Costa sem o recurso ao anonimato habi-
tual em tais casos. Diversas razões impuseram esse rumo. Em primeiro lugar,
o fato de que a última fase da pesquisa implicara a constante referência a um
livro em que apareceria — de alguma forma — a história da família (e as en-
trevistas gravadas se justificavam em nome desse fim). Em segundo, o fato de
que a apresentação da rede familiar completa, com especificações etnográficas
detalhadas, tornaria completamente inútil (e mesmo ridículo) o recurso da
troca de nomes: quem quer que conhecesse minimamente o bairro de Juruju-
ba logo reconheceria todos os personagens da trama. Evitar a “traição” de não
expor sua “história” neste livro implica, no entanto, cometer necessariamente
outra “traição”: o modo pelo qual o autor supõe que essas pessoas possam
conceber a sua “história” não tem certamente nada a ver com o modo como as
informações sobre a família estarão aqui apresentadas.23 Certamente, as ênfa-
ses naquilo que é mais importante ou mais digno de ser exposto publicamente
não coincidem com o que pareceu ao pesquisador ser mais iluminador das
condições em que a luta pela reprodução local se distendeu ao longo dessas
gerações. O que pode parecer honroso e digno de nota a quem examina com-
paradamente as mais variadas trajetórias pessoais e familiares (de um ponto
de vista “soberano” e “distanciado”) distingue-se fortemente daquilo que cada
um sente como a trama das dimensões pessoais de sua vida cotidiana.24 So-
mam-se, assim, aos riscos de uma leitura deste trabalho como desfocado e
impertinente, os outros riscos, acadêmicos, de servir ele como exemplo da
persistência de uma atitude “objetivista”, “positivista”, “colonialista”, dentro
do arraial antropológico. O primeiro risco não tem o autor outra alternati-
va senão assumi-lo, em função das circunstâncias do contrato que manteve
com seus amigos-informantes da família Costa. O segundo ele refuta com ar-
gumentos que já se esboçaram na introdução: sendo impossível a “simetria”
entre observador e observado, o máximo que se pode oferecer na produção
antropológica é a busca da explicitação mais constante possível dos sentidos
circulantes de cada lado dessa estranha díade, sobretudo quando estiverem
em questão temáticas tão “dadas”, “naturalizadas”, como a da vida familiar e
das relações transgeracionais (uma “atividade produtiva” concebida de forma
completamente diversa lá e aqui).

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52 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

Uma das muitas reflexões que podem ser assim ensejadas, no caso de
uma pesquisa com as características desta, é relativa à “propriedade” dos “da-
dos” sobre uma família. O modelo ocidental das relações de “propriedade”
como institutivas da identidade dos sujeitos25 reaparece aqui sob a forma de
uma ambigüidade entre a identidade abrangente, diferenciada e complexa de
uma rede familiar e a capacidade de algum de seus membros de dispor da me-
mória desse conjunto como se fosse especificamente sua (ou, pelo menos, de
sua versão a esse respeito). Na impossibilidade de romper com uma contradi-
ção intrínseca à nossa cultura, os autores assumiram que alguns “indivíduos”
estratégicos poderiam “autorizar” a exposição dos dados de suas famílias num
trabalho como este. No caso da família Costa seguiu-se a representação nativa
da autoridade inconteste de seu chefe, por mais idoso e adoentado que esteja.
Em relação a suas próprias famílias, a questão se colocava de maneira ainda
mais acendrada, já que — como membros da própria rede observada — não
tinham por que não se considerarem autorizados a falar sobre “suas” próprias
famílias. As informações dadas e as negociações estabelecidas com alguns pa-
rentes da família Campos e da família Duarte deveram-se assim a uma atitude
híbrida de “respeito ao informante” e recurso de evitação de uma crise intrafa-
miliar causada por constrangimentos e pelo quase inevitável circuito da “fofo-
ca” que pode ser acionado com a exposição de fatos e ações de determinados
integrantes das respectivas redes.
Hoggart (1973) nos falava de uma nostalgia deformadora, ativa nesses
processos de “visitação da casa paterna”. Aqui, ambos os autores têm consci-
ência de que efetivamente algo da ordem da nostalgia tinge parte de sua dis-
posição e de sua produção em torno da pesquisa com suas próprias famílias.
L. Duarte tem certeza de que seu próprio trabalho de pesquisa em Jurujuba
— por mais distante que fosse originalmente de seu mundo social — sempre
foi atravessado por um profundo sentimento de nostalgia que ele acredita
compartilhar com boa parte de seus interlocutores locais. Tem certeza de ser
também uma parte fundamental de sua atitude afetiva geral em relação ao
mundo.
De qualquer modo, este livro busca refletir sobre as condições em que
as “mudanças” — essa precondição de qualquer esperança ou nostalgia — se
dão através de algumas gerações em famílias ancoradas originariamente na ex-
periência do mundo popular brasileiro. E as mudanças são como viagens para
longe daquilo que ficou, lá e cá, como memória ativa. Nada pode ser mais ca-

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A pesquisa na própria sociedade (e sobre a própria família) 53

racterístico do modelo pleno da pessoa ocidental moderna, em que a ênfase na


invenção de um futuro a conquistar, a adquirir, longe dos constrangimentos e
convenções originárias, se combina constantemente com a ênfase no pertenci-
mento e continuidade enquanto critérios de uma existência autêntica. Não em
vão encontra-se, entre os papéis de João Duarte, um de nossos personagens, a
transcrição a mão de um longo poema de Casimiro de Abreu (����������
“���������
No lar���
”��, As pri-
maveras, 1857)���������������������������������������������������������������
, onde o narrador, que acaba de retornar à casa avoenga, assim
expressa — em dado momento — o sentimento de continuidade:

“Eis meu lar, minha casa, meus amores,


A terra onde nasci, meu teto amigo,
A gruta, a sombra, a solidão, o rio
Onde o amor me nasceu — cresceu comigo.

Notas

1
Uma das dimensões importantes dessa reflexão está lucidamente contida numa
observação de Narayan (1993:678) sobre a diferença do processo de conhecimento
antropológico quando se trabalha com a própria sociedade (e tanto mais com o
mesmo segmento social e com a “mesma família”): “in some ways, the study of one’s
own society involves an inverse process from the study of an alien one. Instead
��������������������
of learning
conceptual categories and then, through fieldwork, finding the contexts in which to ap-
ply them, those of us who study societies in which we have preexisting experience absorb
analytic categories that rename and reframe what is already known. The reframing es-
sentially involves locating vivid particulars within larger cultural patterns, sociological
relations, and historical shifts”.
2
Dumont (1985:219), talvez em função de sua preocupação central com os efei-
tos heurísticos da comparação pelos contrários, em que a sua “Índia” servia como
roteiro para uma relativização do seu “Ocidente”, manifestou-se freqüentemente
sobre os riscos de uma antropologia do próprio mundo social. Isso em duas dire-
ções: a primeira, relativa aos riscos epistemológicos, entranhados na possibilidade
de não obtenção de um suficiente estranhamento, pela ausência da comparação.
A segunda direção, de caráter mais cosmológico e político, enfatiza os riscos que a
generalização de uma relativização dos valores estruturantes de uma cultura podem
acarretar para sua própria sobrevivência. �����������������������������������������
Cita os efeitos desmapeadores da cultura

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54 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

altamente reflexiva florescente sob a República de Weimar, possivelmente favorece-


dores da ascensão do nazismo (como ideologia da restauração de uma ordem vista
como tradicional e ameaçada). Bruno Latour, por sua vez, coerentemente com sua
ênfase na “simetria” entre observador e observado na pesquisa em antropologia da
ciência (e das “controvérsias” em geral), manifesta-se favoravelmente à pesquisa
com situações próximas. Essa proximidade se restringe, no entanto, a contextos ou
cenários muito particulares em que a comum humanidade consista numa comum
reflexividade.
3
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Em princípio essa posição é oposta à dos intelectuais franceses, com seu senti-
mento de pertencimento ao peuple, mesmo quando esse não é claramente o caso,
do ponto de vista de suas origens e capitais originários. No entanto, os processos
de distinction são também aí suficientemente fortes para que Bourdieu expresse
idêntica sensibilidade à exposição de uma origem social “fraca”.
4
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Há um conjunto de trabalhos muito ricos sobre memória familiar nas ciências so-
ciais brasileiras que influenciou esse direcionamento: Barros (1987); Leite (1993);
Strozemberg e Barros (1993); Candido (2002). Há também trabalhos mais memo-
rialísticos, extremamente interessantes, como os de Telles (2003) e Teixeira (1991),
em que a imagem se faz ativamente presente.
5
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Diz Abu-Lughod (1986:11): “as an Arab, although by no means a Bedouin, he knew his
own culture and society well enough to know that a young, unmarried woman traveling
alone on uncertain business was an anomaly”.
6
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Exemplo interessante no Brasil é a tese de Guérios (2007), que se debruça sobre a
memória de parte de sua própria família (e reflete heuristicamente sobre o modo
fenomenal e as implicações desse processo), mas o faz para investir na memória
coletiva de um grupo étnico específico. Schneider (1968:13), em seu clássico es-
tudo sobre o parentesco norte-americano, diz que “the final source of information is,
of course, my own personal experience, since I was born and reared in America, am a
native speaker of the language, and have lived in America almost all of my life. (I should
add that in my own view, I am not a bad informant, although I have worked with better”.
O que quer que tenha sido usado no livro a respeito de sua própria família não é,
no entanto, explicitado, tampouco a posição ocupada por essa origem familiar no
conjunto das variações possíveis no sistema nacional.
7
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A mútua afetação entre pesquisador e pesquisado foi enfatizada por Orlandella
(2005:303, 377), que ressaltou a importância, para sua vida, do trabalho desen-
volvido por Foote Whyte, de quem havia sido informante e ajudante. Ele tinha
“esperança de que a pesquisa fosse ajudar as pessoas de fora a entenderem melhor

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A pesquisa na própria sociedade (e sobre a própria família) 55

o que realmente fazia o North End funcionar daquele modo, e quais suas necessi-
dades”. Como ajudante do antropólogo, aprendeu métodos de pesquisa que foram
úteis em sua trajetória profissional e pessoal: “sim, Bill Whyte deu uma virada
completa em minha vida. Ele expandiu meu pensamento, para que eu pudesse
apreciar e entender melhor o North End”. Os dois se tornaram grandes amigos:
“conheci Bill e Kathleen quando tinha 20 anos de idade. Dentro de poucos meses
terei 62, e é esse o tempo que vem durando nossa amizade”.
8
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Geertz, 1974.
9
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Velho, 1978 e 2003.
10
���������������
DaMatta, 1978.
11
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Houve também uma postura, muitas vezes mesclada à crítica metodológica, de
acionar um discurso psi aplicado à escolha “inquietante” do objeto. Foram dirigi-
dos os seguintes conselhos à pesquisadora: “ao invés de pesquisar a família, devia
fazer análise”; “tomar cuidado para não ficar muito mobilizada”; “cuidado com sua
exposição”, entre outros.
12
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Velho, 1994.
13
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A corrente chamada de “pós-moderna” nos EUA expandiu consideravelmente a
reflexividade sobre as condições da produção do texto antropológico, mas acabou
se voltando mais para sua condição retórica do que para sua condição de teste-
munho de uma experiência dialógica vital (ver Clifford, 1986). Há, por outro lado,
a tradição herdada de Bourdieu, que enfatiza mais esta segunda direção. São impor-
tantes também as reflexões sobre o que foi chamado na literatura de anthropology
at home, de “auto-antropologia” ou de “antropologia nativa”. Já foi aqui citado o
artigo de Strathern (1987), publicado numa coletânea dedicada inteiramente ao
último tema. Peirano (1998:61 e segs.) reviu a tradição internacional da anthropol-
ogy at home, destacando o distanciamento da produção brasileira de suas premissas
e horizontes, e propôs uma classificação de quatro vias diferenciais do estatuto
da “alteridade” na antropologia nacional. Um trabalho como este seria certamente
classificável como um exercício de “alteridade próxima”, nos seus termos. Sobre
“antropologia nativa” há um bom resumo no artigo de Narayan (1993:671) em que
ela questiona a possibilidade de jamais se qualificar algum antropólogo como um
autêntico insider, em função da complexidade das condições em que se pode ser
“nativo”.
14
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Nesse caso, diante da expectativa de constituição de uma antropologia marxista,
inseparável de algumas dimensões do estruturalismo, nada podia parecer mais
oportuno do que estudar in loco a mudança num bairro de classe trabalhadora.

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56 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

15
Salem, 1985.
16
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A referência é explícita a um trajeto paradigmático da auto-reflexividade moder-
na posta a serviço de uma disposição de conhecimento universalista: a da “auto-
análise” de S. Freud.
17
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Segundo Bourdieu (2005:87), “a palavra não é mesmo muito forte para designar a
transformação intelectual e afetiva que me levou da fenomenologia da vida afetiva
(quem sabe derivada também das afeições e das aflições da vida, que era preciso
denegar com sabedoria) a uma prática científica que requeria uma visão do mundo
social mais distanciada e mais realista em seu conjunto�� ”�.
18
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Diz Bourdieu (2005:90): “todavia, eis a prova de que o trajeto heurístico também
tem algo de um percurso iniciático pela imersão total e pela felicidade dos achados
que lhe é concomitante: sucede uma reconciliação com coisas e pessoas das quais
insensivelmente me afastara por conta do ingresso em outra vida e as quais a pos-
tura etnológica obriga naturalmente a respeitar, os amigos de infância, os parentes,
suas maneiras, suas rotinas, seu sotaque. É toda uma parte de mim que me é devol-
vida, essa mesma pela qual eu me ligava a eles e a qual também deles me afastava,
porque eu só podia negá-la dentro de mim ao renegá-la, na vergonha deles e de
mim mesmo��� ”��.
19
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Duarte, 2006d.
20
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O pesquisador pensa reconhecer nessas manifestações a corroboração de sua hipó-
tese de que a experiência da familialidade em nossa cultura se reveste de caracterís­
ticas assemelháveis às de uma religiosidade. A exposição desse sacrário íntimo
comporta o horror de uma profanação. Ver Duarte (2006a).
21
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Duarte, 1986, 1987a, 1987b, 1987c, 1999 e 2005b.
22
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A condição de pesquisador (enquanto professor universitário) nunca foi comple-
tamente absorvida pelo grupo local, nem mesmo pelos mais próximos e apesar
de terem em mãos um exemplar de meu livro sobre a pesca local. No começo da
relação, a condição de “professor” levou a uma demanda de ajuda nos estudos das
crianças — o que foi feito de modo assistemático, mas inesquecível para todos até
hoje. A expectativa de uma possível denúncia das condições da vida dos trabalha-
dores ali conhecidos (na pesca, na indústria enlatadora ou na indústria metalúr-
gica) freqüentemente se impôs, com a assimilação da identidade do pesquisador à
de um jornalista.
23
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Segundo Strathern (1987:20), “ultimately the use anthropologists make of their data is
for ends also of their own making. In this sense anthropology domesticates an exogenous
world, making new uses for materials originating under quite different circumstances, and

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A pesquisa na própria sociedade (e sobre a própria família) 57

thereby encompassing the different uses which people have for the way they live their lives.
Such encompassment is experienced as exploitation when people perceive that others have
the power to turn data into materials whose value cannot be shared or yielded back to
them in return”.
24
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Com os originais deste livro quase prontos, resolveu o pesquisador — como já
dito — apresentar o capítulo 2 ao juízo de seu informante principal. O texto foi
aprovado e mesmo elogiado por Humberto Costa, que acompanhou toda sua lei-
tura (com a presença de um dos filhos durante algum tempo). Esse recurso pareceu
eticamente necessário ao pesquisador, sem que qualquer dos problemas evocados
tivesse sido, com isso, esconjurado. A acolhida foi favorável por se inserir na longa
e intensa relação do pesquisador com a família Costa, mais do que por sua ime-
diata faticidade, fidedignidade ou veracidade. Por outro lado, Humberto contou
mais uma vez ao pesquisador, durante essa “entrevista”, um episódio que retorna
com freqüência a seu espírito: quando se encontrava, anos atrás, na frente das
câmeras de uma rede de televisão, na rua principal do bairro, dando mais uma de
suas numerosas entrevistas sobre o bairro, aproximou-se um vizinho jovem, de
carreira desviante, e fez um comentário, alto e bom som, sobre a possibilidade de
Humberto estar mentindo sobre sua própria vida. Pareceu significativo que esse
episódio — que o magoou particularmente — tenha reemergido no momento em
que o pesquisador lhe fazia a leitura de sua versão do que tinha sido sua vida. De
algum modo, creio que — apesar da intimidade e delicadeza de alguns detalhes
— a colocação por escrito desse relato possa ter-lhe parecido produzir um efeito de
“verdade” útil para sua própria identidade.
25
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Ver, sobre esta relação, de um ponto de vista mais histórico, Macpherson (1979) e
Capitan (2000). Dumont e Strathern se encontram entre os antropólogos que mais
diretamente refletiram sobre as implicações negativas desse traço ideológico para a
compreensão cultural comparada.

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Capítulo 2

A f a m í l i a Costa

Mas é isso, Fernando: a vida da gente


é uma história muito grande.
Entrevista com Humberto Costa (2005)

A primeira parte deste livro decorre da pesquisa de L. Duarte com uma famí-
lia de implantação imemorial no bairro de Jurujuba, município de Ni-
terói. A convivência com diversas gerações dessa rede familiar (fortemente
associada ao trabalho na pesca) ao longo de três décadas permitiu uma per-
cepção bastante densa dos processos identitários e trajetórias a partir da casa
da matriarca viúva, falecida ao final dos anos 1980, e do casal encabeçado por
seu filho mais velho, atualmente com mais de 80 anos.
A delimitação sociogeográfica de Jurujuba não é nada unívoca. A desig-
nação oficial abarca hoje todos os territórios da ponta de terra que fecha pelo
norte a boca da baía de Guanabara, entre a ponta da Tabaíba, na crista do mor-
ro da Viração, lindeiro à praia de Piratininga, e o pequeno saco de mar outrora
chamado de Furna do Gato e que hoje abriga o Clube Naval, dentro da baía
(entre a praia do Preventório e a ponta do Samanguaiá). A área chamada de
Preventório (onde hoje se instala a nova estação de transporte marítimo para
o Rio de Janeiro) não pertence oficialmente ao bairro de Jurujuba, embora o
hospital psiquiátrico ali localizado seja freqüentemente chamado de Hospital
de Jurujuba.1
A área onde hoje se situa o bairro de Jurujuba é dotada de algumas ca-
racterísticas físicas que tiveram considerável peso na conformação das con-
dições de existência e dos padrões identitários locais. O fato de ser uma es-
treita língua de terra habitável entre diversos morros, na parte interna da baía
de Guanabara mais próxima do oceano, não lhe permitiu o mesmo tipo de

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60 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

desenvolvimento agrícola das demais terras à margem da baía, não ocupa-


das pelos centros urbanos. As terras da atual Jurujuba fizeram nominalmente
parte das sucessivas fazendas de cana-de-açúcar centradas no atual bairro da
Charitas, compartilhando, perifericamente, de algumas de suas características
temporárias, como a de redução de índios (ao tempo dos jesuítas). O registro
formal de atividades de pesca na região remonta ao início do século XIX, mas
o mais provável é que já se desenvolvessem ali há muito mais tempo. Hoje, é
inevitável referir-se ao bairro em associação com as diversas fortalezas que o
rodeiam, aproveitando-se de sua posição estratégica em relação à baía. A for-
taleza de Santa Cruz, a mais formidável delas, só obteve um acesso por terra,
no entanto, em meados do século XX, dependendo de comunicação marítima
direta com as cidades desde sua fundação, ainda no século XVI. O forte de São
Luiz (ou do Pico) é do século XVIII, e os fortes de Rio Branco e de Imbuí, de
meados do século XIX.
Como o acesso a esses fortes mais internos se faz por um vale associado à
área limítrofe da Várzea, onde outrora houve uma ligação marítima entre a baía
e o oceano, e a lógica do funcionamento das guarnições militares impõe hoje
uma considerável segregação do entorno social, o seu contato com os núcleos
populacionais de Jurujuba não é muito grande. Chegou a ser muito maior,
quando os núcleos populacionais e as guarnições compartilhavam do mesmo
isolamento.2 A abertura dessas terras para as primeiras enseadas protegidas ao
norte da baía tornou-as muito propícias para a atividade pesqueira, mais do
que suas correspondentes ao sul, como Botafogo ou Flamengo, incorporadas
muito cedo à trama urbana, em função da expansão litorânea da cidade do
Rio de Janeiro.3 A densidade populacional não deve ter sido nunca muito
grande,4 e ao longo do século XIX a decadência das grandes fazendas, com o
subseqüente parcelamento de suas terras, permitiu a construção de numerosas
residências ocupadas pelas elites urbanas, encantadas com a exuberância da
paisagem, o bucolismo do contexto quase insular e a relativamente maior salu-
bridade. Há registros literários nostálgicos da vida nessas residências isoladas,
em contato próximo com os núcleos pescadores, de cujas embarcações deviam
seus habitantes depender para o deslocamento até os centros urbanos.5
A região mais próxima a Jurujuba é marcada pela ocupação dos jesuítas,
que exploraram uma extensa fazenda de que restou apenas a bela sede (do-
cumentada pelo menos desde 1750), na praia da Charitas, hoje conhecida
como o Casarão. Também é desse período a Igreja de São Francisco Xavier,

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A família Costa 61

construída entre 1666 e 1669. Outras construções coloniais ainda eram visí-
veis até recentemente, como o chamado castelo de Jurujuba, na atual estrada
Fróes, que foi sede do Iate Clube Brasileiro, incendiado durante a II Guerra
Mundial, por causa de sua predominante clientela alemã. No século XIX, a
região passou a ser muito associada à imagem do lazareto fundado na atual
praia do Preventório em 1851, substituído em 1853 pelo imponente Hospital
Marítimo de Santa Isabel, depois chamado de Hospital Paula Cândido e de
Preventório. A sobrecarga desse hospital, ocupado com as ocorrências marí-
timas e portuárias da febre amarela e do cólera, levou inclusive à instalação
de um lazareto flutuante no meio da enseada.6 A memória local desse antigo
hospital é atualmente confundida com a de um hospital psiquiátrico instalado
ao lado, já no século XX. Backheuser (1994:153) transcreve uma passagem
do Dicionário geográfico, histórico e descritivo do Império do Brasil (Paris, 1863),
de Milliet de Saint-Adolphe, relativa à área de Jurujuba, na década de 1840,
que menciona uma “população assaz numerosa, composta por pescadores,
fazendeiros e índios”. A forte presença indígena é freqüentemente ressaltada,
considerando-se que fossem descendentes dos que os jesuítas tinham atraído
para sua fazenda.7
A Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Várzea foi erguida, na área
que até hoje é conhecida por esse nome em Jurujuba, entre 1629 e 1667 e
incorporada à Ordem do Carmo em 1716,8 chegando a se constituir na sede
de uma extensa paróquia criada em 1861, como núcleo de uma nova freguesia
com o mesmo nome, que tinha sido demarcada em 1838.9 Foi por diversas
vezes abandonada, tomando a sua forma atual por ocasião da última restaura-
ção, terminada em 1969. A Igreja de São Pedro, tão importante para a identi-
dade atual do bairro, foi erguida em seu formato atual em 1947,10 no lugar de
uma capela mais humilde, construída pelos pescadores por volta de 1910. A
procissão de são Pedro, em que se carrega a imagem lá entronizada, realizava-
se originalmente por terra, desde 1901. Só em 1932, segundo informações
locais, veio a se transformar em procissão marítima.
A história da propriedade da terra parece ter sido muito complexa, à
exceção das áreas de ocupação popular mais antiga11 e de algumas das habita-
ções da elite, cercadas por extensos jardins.12 A habitação popular ocupou os
interstícios das grandes propriedades, onde se concentrou por muito tempo a
população sob a forma típica de uma aldeia caiçara — tal como a descrevem a
literatura e meus informantes mais antigos. A memória dos habitantes registra

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62 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

os anos de 1940 a 1950 como os de mais acelerado aumento da população,13


o que levou à ocupação progressiva de algumas encostas e à extinção das terras
desocupadas. Na verdade, os moradores atuais se queixam do adensamento
excessivo da ocupação do bairro (que eu mesmo tenho observado em minha
freqüentação nos últimos 30 anos), embora os registros oficiais acusem uma
pequena redução do contingente populacional.14
Na atualidade, as designações locais flutuam ao sabor das propriedades
de situação do discurso. Meus informantes principais habitam o segmento
mais próximo à ponta de Jurujuba, depois da praia da Várzea, e freqüente-
mente se referem a essa área como distinta de tudo o que se segue à Várzea e
ao morro do Lazareto — Cascarejo, Imbuí, Peixe Galo, Salina etc. —, onde
ficam, no entanto, elementos importantes da identidade nominal do bairro,
como o atracadouro do porto de pesca, a Escola Estadual, o Iate Clube, o
Posto de Saúde, o Núcleo de Saúde da Família, todos portadores do qualifica-
tivo de Jurujuba. De todos os marcos simbólicos importantes, o único que se
localiza no último segmento é a Igreja de São Pedro, onde está a imagem que
sai na procissão do dia onomástico e em torno da qual se concentra a festa
respectiva. É o único, mas um dos mais cruciais para a identidade local, ritu-
almente festejada em torno do santo padroeiro dos pescadores.15
L. Duarte teve seus primeiros contatos com a área de Jurujuba em 1974,
quando buscava um foco etnográfico para realizar um trabalho de antropo-
logia urbana em sua pós-graduação no Museu Nacional. Depois de muitas
aproximações e perambulações infrutíferas, bateu à porta de uma das primei-
ras casas à beira do último núcleo habitacional do bairro, na rua da Igreja de
São Pedro (embora ela tenha um nome oficial, este só é utilizado para fins de
correio). O dono dessa casa recebeu-o muito cordialmente e atendeu a suas
primeiras indagações, relativas à identidade do bairro. Humberto Abreu Cos-
ta tornou-se seu principal interlocutor e um amigo querido nesses últimos
30 anos, apesar de longos intervalos de afastamento. A informação sobre seu
contato de campo naqueles primeiros tempos e algumas notas sobre suas im-
plicações para a análise que veio a desenvolver sobre o trabalho na pesca es-
tão registradas sobretudo em Duarte (1999). Concentrou-se, nessa dissertação
de mestrado, na questão da efetivação, reprodução e impasses dos modos de
produção pesqueira então prevalecentes no bairro. Mas, para tanto, tratou da
questão da família, já que sua preeminência vivencial se impunha em qualquer
contato e em todos os níveis da vida local, com enorme influência sobre a or-

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A família Costa 63

ganização das relações de trabalho. Com efeito, a pequena produção mercantil


tradicional do bairro, a pesca em canoas, organizava-se a partir de uma pecu-
liar elaboração do tema da colaboração intrafamiliar, a companha. Mas mesmo
nas grandes unidades de produção, constituídas pelo regime das traineiras, a
presença das redes de relação familiares era notória, imbricando-se com a in-
cipiente despersonalização implicada naquelas frágeis aproximações da lógica
da produção capitalista.
Humberto era (e é ainda, apesar de seus 87 anos) um sujeito extremamen-
te articulado. Como foi descobrindo o pesquisador, sua trajetória profissional
o tornara um mediador atilado entre a lógica local e o mundo englobante. Sua
condição de membro de uma das mais antigas redes familiares do bairro, filho
de uma senhora muito prestigiada como antiga parteira e líder religiosa, lhe
concedia, ademais, um status preeminente na população do bairro — o que se
refletia em seu papel de leiloeiro da festa de são Pedro, ponto máximo da vida
social e da identidade local. Sua figura imponente e sedutora se impunha em
qualquer rede de encontros locais — o que não deixava de lhe valer também
resistências e oposições tenazes.
Humberto entrara para a Escola de Grumetes em Angra dos Reis (‘‘Es-
cola Almirante Batista das Neves”, como ele prima em dizer) em 1939, aos
19 anos, após já ter tentado o exame, infrutiferamente, no ano anterior —
seguindo um desejo entranhado (suscitado pelo conselho de um oficial de
Marinha que freqüentava o bairro na sua infância, sogro de um comerciante
local)16 que o levara a cursar a Escola de Aprendizes da Marinha, no Rio de
Janeiro. Teve uma carreira eficiente, que ele atribui a sua experiência preco-
ce de marinhagem na pesca e a sua dedicação à carreira (tendo feito outros
cursos técnicos dentro da Marinha). Diz ter feito dois anos de estágio, no
qual muito o teria ajudado o que chama de “handicap da pesca”, dando a essa
palavra um sentido positivo, certamente. A carreira foi propulsionada pela
intensa participação nas patrulhas de costa durante a II Guerra Mundial,17 o
que viria a torná-lo um dos mais jovens ‘‘pracinhas” do país, com a cessação
do estado bélico.
Sobre essa época, tanto fala da tensão extrema das temporadas a bordo
e dos exercícios de tiro quanto dos momentos de desconcentração em terra.
Declara ter as melhores lembranças da Bahia, onde teria conhecido Dorival
Caymmi numa festa. Menciona a compra e venda de garrafas de uísque trans-
portadas de porto a porto. Mas, sobretudo, a possibilidade de prática dos es-

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64 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

portes em que sempre se sobressaiu. Há um jogo de futebol de que participou


em Feira de Santana que é recorrente em suas reminiscências.
O período do pós-guerra lhe traz ainda outros motivos de satisfação, muito
enfatizados nas entrevistas do começo dos anos 2000. Uma viagem até Cuiabá
desde o rio da Prata ou o desfile militar em que foi incumbido de ser o porta-
bandeira, como “símbolo do batalhão”. Ao contar episódios de sucesso profis-
sional e prestígio junto aos superiores militares, acaba sempre por evocar a inve-
ja alheia, à qual — de algum modo — atribui a denúncia de envolvimento com
a esquerda em 1964. Há também um episódio em que reconhece, por acaso, na
residência de um oficial superior uma peça de aparato que desaparecera de um
navio em que estivera embarcado. A descoberta — que não chegou a denunciar
— tê-lo-ia, no entanto, colocado na mira de um inimigo prestigioso.
Sua dedicação, eficiência e — provavelmente — sua vívida atenção às
coisas do mundo tinham-no levado, de qualquer modo, à aproximação com
o oficialato menos conservador da Marinha. Em 1964, trabalhava no gabi-
nete do almirante Paulo Mário da Cunha Rodrigues, que o golpe militar fez
cair em desgraça.18 Seu próprio nome foi arrolado em sucessivos IPMs, e sua
promissora carreira, interrompida subitamente, com severos impactos sobre
sua reprodução familiar e sobre sua estabilidade emocional.19 Em meados dos
anos 1970, ainda afastado da ativa, Humberto externava uma intensa fúria
contra a irracionalidade de todo esse processo, oscilando entre sublinhar a sua
inocência das acusações levantadas (de participação em algum tipo de conspi-
ração comunista) e externar uma contundente crítica às condições do trabalho
assalariado em geral e do trabalho na pesca em particular.20 Sua reprodução
baseava-se à época num trabalho de meio expediente obtido no Correio cen-
tral do Rio de Janeiro (atual EBCT) por intermédio e influência de um oficial
conhecido de seu tempo como embarcado. Mantinha, ao mesmo tempo, uma
continuada relação com o universo da pesca, ora embarcado, ora como in-
termediário entre os pescadores e armadores e as diversas instâncias que se
ocupavam da fiscalização e controle daquela atividade (a Colônia de Pesca, a
Sudepe, a Capitania dos Portos). Mais recentemente, mostrou ao pesquisador
sua carteira da Colônia, com infindáveis registros relativos a essa carreira tão
peculiar — ultimamente na condição de “motorista de pesca”, a mais presti-
giosa das rubricas profissionais previstas.21
Só se obteve um relato intenso, longo e emocionado da carreira militar
de Humberto muito tempo depois dos primeiros contatos, quando já se en-

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A família Costa 65

contrava reintegrado à carreira, o que só ocorreu em 1984. Hoje, o tema da


Marinha é o que prevalece em sua memória, e não mais o da pesca e o do
trabalho nos Correios, antes tão onipresentes. Nada mais compreensível, não
só pela difícil situação econômica que enfrentou entre as décadas de 1960 e
1980, como pela perturbação físico-moral que o enredou num tratamento
psiquiátrico que até hoje persiste sob a forma de recorrentes consultas e per-
manentes medicações.
É possível que suas referências pessoais ao sofrimento e tratamento psi-
quiátrico sejam um dos motivos que levaram L. Duarte a dedicar uma segunda
etapa de sua pesquisa naquele local ao código dos nervos e do nervoso como via
régia para a compreensão das formas de construção da pessoa naquele meio
social.22 Efetivamente, ao longo de seu trabalho nessa direção, Humberto foi
um dos poucos homens de classe popular a se referir sem pejo ao seu pró-
prio “estado nervoso” ou “problema mental”, fora do espaço asilar. É possível
que as muitas qualidades sociais que podia apresentar a um pesquisador de
fora compensassem suficientemente, a seus olhos, a desvalorização sempre
implícita na condição nervosa, quando incidente sobre o gênero masculino.
Era também, por outro lado, a comprovação mais imediata de seu impotente
repúdio às “perseguições” movidas pelo governo militar — uma espécie de
prova da gravidade desses eventos para sua identidade privada e pública (“mas
a revolução me destruiu, não é? A mim e a muita gente...”).
Humberto teve — como se viu — inicialmente uma carreira considerada
vitoriosa para os padrões locais, ainda que o obrigasse a viver freqüentemente
embarcado, afastado do bairro.23 Casou-se em 1952 com uma moça de família
de origem local, grande e considerada como estabelecida (uma fratria de sete),
que se transferiu posteriormente, com todos os seus outros membros, para
áreas próximas, particularmente aquela conhecida como estrada da Cacho-
eira.24 Os eventos relacionados ao golpe de 1964 intervieram negativamente
nessa trajetória ascendente, mas o obrigaram, por outro lado, a participar mais
constantemente da vida da família e do bairro, retornando, por exemplo, às
atividades da pesca, seja diretamente como trabalhador, em diversas funções e
em diferentes tripulações, seja como uma espécie de despachante não-oficial
junto às autoridades da Capitania dos Portos, graças às suas relações pessoais
no mundo profissional da Marinha. O trabalho nos Correios, em meio ex-
pediente (mas às vezes em turnos), não interferiu tão fortemente nessa nova
posição — certamente ainda preeminente. Disse ter trabalhado no setor de

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correspondência da embaixada dos EUA, o que o teria capacitado a sair-se


bem no teste a que fora submetido para entrar nos Correios. Há motivos para
supor que Humberto já tivesse sofrido de perturbações antes de 1964, a julgar
pela referência — feita nos anos 1970 — a uma grande crise de vida sofrida
em 1956.25 É possível que tenha estado afastado por problemas de saúde en-
tre esse ano e o de 1963, quando reaparecem os registros de sua vida militar
ativa. Por volta de 1976, um processo que ele considerava à época complexo
e sigiloso, envolvendo os Correios e a Marinha, levou-o à aposentadoria pelo
primeiro serviço, onde se integrara ainda em 1964. Há motivos para supor
que, mais uma vez, o “nervoso” o estivesse levando a um afastamento do tra-
balho ativo — e, desta vez, a uma aposentadoria por invalidez.26
O intenso envolvimento de Humberto no universo da pesca propiciou-
lhe uma percepção muito aguda das contradições e impasses das condições de
trabalho nessa área, donde o seu interesse pela pesquisa de L. Duarte e diver-
sas outras realizadas por alunos e professores universitários. Aliás, seu contato
com outros mediadores mais imediatamente políticos, como seu amigo Milton
Brasil — secretário do Partido Comunista e um bravo aliado na “luta pelos
direitos” na atividade pesqueira, segundo Humberto — teria sido a causa de
sua prisão em 1964, de onde só saíra graças à intervenção de parentes seus
oficiais das Forças Armadas. O pesquisador teve a oportunidade de conhecer
esse amigo (“gente simples como nós”, dizia Humberto), que estava passan-
do uns dias hospedado em sua casa. Humberto falou de seu prazer em ver
se encontrarem “dois amigos tão queridos e tão interessados na condição do
pescador”. Dando um passeio pelo bairro com Milton (que já era um senhor
bem combalido nos anos 1970), pude constatar a sua grande popularidade no
local, embora ela já não o freqüentasse há pelo menos 10 anos.
Desde a sua reintegração, Humberto voltou a participar ativamente da
Associação dos Ex-Combatentes do Brasil, sendo já há alguns anos vice-pre-
sidente da seção de Niterói. Nessa condição, é freqüentemente convidado a
participar de todo tipo de solenidades formais em quartéis do Exército, da
Marinha, da Polícia Militar e dos Bombeiros, quando então se apresenta de
terno azul, com um quepe de feltro com o símbolo da Marinha, as insígnias
de seu posto atual e as medalhas obtidas ao longo da carreira, inclusive na
guerra. Assim pode-se vê-lo numa foto tirada dentro de um navio de guerra.
Como ele me confidenciou, traz hoje em dia escondidos todos esses símbolos
de sua condição de militar, devido aos riscos acarretados pela onipresença das

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A família Costa 67

quadrilhas do narcotráfico. A família se preocupa muito com essas suas saídas,


procurando fazer com que ele esteja sempre acompanhado de algum parente.
Por outro lado, o fato de ser um dos últimos sobreviventes de sua geração o
torna cada vez mais requisitado para tais eventos e solenidades. Até recente-
mente ele ainda se desincumbia das tarefas de professor de educação física
no bairro, inclusive como treinador na escola de vela de Axel Grael, instalada
perto do Preventório.
Em toda a sua trajetória de trabalhador, Humberto sempre foi um dos
mais explícitos portadores do “ethos de trabalho”, descrito pelo pesquisador
como característico da maioria dos pescadores de Jurujuba.27 O sentimento de
dignidade do trabalho manual, justificado por uma complexa combinação do
valor da força com o do saber, somava-se às implicações relacionais daí de-
correntes: o sustento da família, o controle da “farra”, a preservação da honra.
Também é muito enfatizada a qualidade da honestidade, com a regular anate-
matização de todos os perversos hábitos — dispersos por todos os segmentos
sociais — de ladroagem, cobiça, deslealdade ou avareza.
Desde os primeiros contatos, porém, a ética do trabalho foi apresentada
ao pesquisador no mesmo pé de igualdade que o valor do “estudo”. É possível
que a condição de “professor” de seu interlocutor estimulasse maior ênfase
nessa dimensão de seus ideais, embora sua constância durante tão longa con-
vivência possa contrabalançar tal impressão. Nos anos 1970, Humberto dizia
que seu ideal era ter os 10 filhos na universidade. De fato, todos eles freqüen-
taram a escola primária e o ginasial num curso noturno, então mantido por
uma sociedade beneficente. Os mais velhos tiveram os estudos básicos inter-
rompidos pela crise dos anos 1960, mas os retomaram posteriormente.
A complexa oposição entre o trabalho manual (na pesca ou em outras
atividades mais propriamente operárias) e o “não-trabalho” do serviço público
se misturava à oposição entre o trabalho e o estudo, produzindo um inevitá-
vel quadro de ambigüidades e contradições que será tratado no capítulo 6.
Para Humberto, isso se materializava diretamente na combinação dos serviços
prestados na Marinha, na pesca e nos Correios — fonte de constante reflexão
de sua própria parte.
Sua disposição para falar desses valores devia-se principalmente ao dese-
jo de transmiti-los aos filhos, que freqüentemente estavam presentes durante
nossas conversas ou entrevistas. Humberto certamente buscava fazer valer sua
preeminência hierárquica na família para influenciar e orientar os jovens, ape-

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68 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

sar de reconhecer a precariedade dos recursos de que todos eles dispunham


(sobretudo os rapazes, constantemente envolvidos nos trabalhos da pesca ou
já em outras atividades, quando tinham então entre 18 e 25 anos).
A preeminência de Humberto em sua unidade doméstica, embora se nu-
trisse dos componentes básicos da valorização hierárquica do marido/pai, típi-
ca da família popular, tinha certa peculiaridade. Sua esposa, que então contava
cerca de 50 anos, não se apresentava como uma dona-de-casa típica desse
meio. Aparentemente, sua saúde delicada e uma condição “nervosa” precoce
a mantinham sempre presente e benignamente disponível, mas ligeiramente
alheada de algumas dimensões da condução da unidade doméstica. Àquela
altura, a primogênita, ainda solteira, se desincumbia de parte dessa função,
como o controle do orçamento doméstico, por exemplo. Por outro lado, o
afastamento forçado da Marinha, a aposentadoria pelo Correio (em meados
dos anos 1970) e a aleatoriedade do trabalho na pesca possibilitavam a Hum-
berto fazer-se mais presente na vida doméstica do que a maioria dos pais de
uma família popular podem se permitir ou suportar. Tudo isso, somado ao fato
de que a residência fora herdada da família de Humberto e que sua mãe já ali
habitava há alguns anos, conferia a tal personagem uma preeminência toda
especial. Assim, por exemplo, na festa de aniversário da filha caçula em 1976,
Humberto foi quem recebeu a primeira fatia do bolo, antes de qualquer um
dos parentes ou das visitas (entre as quais o pesquisador e sua mulher).
Nos anos 2000 prevalecem outras condições que serão mais bem com-
preendidas a partir das trajetórias de seus filhos, descritas mais adiante. Mas
pode-se desde já adiantar que Humberto, então completamente afastado de
qualquer trabalho devido à idade elevada e à saúde combalida, mas ainda
ocupa­do com as atividades de representação decorrentes de sua condição de
“ex-combatente”, encarava estoicamente o resultado de sua longa luta — e
assim a resume: “criei meus filhos. Estão todos encaminhados. Não são cate-
dráticos, mas têm seus meios de vida, então não me perturbam”. Percebe-se
nessa fórmula uma ponta de desgosto pelo fato de que todos eles tenham in-
terrompido os estudos, mas também satisfação por terem constituído família
e disporem — uns mais, outros menos — de recursos para sobreviver com
dignidade, qualidades tão prezadas em sua linhagem.
Certamente contribui para essa relativa tranqüilidade o fato de que o
soldo de segundo-tenente que ele passara a receber desde sua reintegração
(e, posteriormente, de primeiro-tenente) é bastante alto para o nível de vida da

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família, mesmo que a renda não se destine exclusivamente ao casal, servindo


também como um fundo comum para suprir as eventuais carências de todos
os descendentes. É também só agora que Humberto diz ter outrora encora-
jado — sem sucesso — seus filhos homens a entrarem na Marinha. Antes de
sua reintegração essa idéia jamais fora mencionada. É o que o faz também ter
esperanças, agora, de que algum dos netos (ou mesmo netas) venha a seguir
uma “carreira” naval.
Em várias ocasiões, Humberto se referiu à “estrela” de cada um. Noutras,
inquiriu-se sobre a sua própria estrela — que hoje certamente não considera
de um brilho insuficiente. Fazem parte desse brilho a memória de seu passado
na Marinha e os benefícios identitários que isso lhe rende até hoje (ou, melhor
dizendo, sobretudo hoje).
A mãe de Humberto — elemento crucial no destino do filho — consi-
derava sua família moradora de Jurujuba desde sempre, literalmente. Dona
Amélia disse ao pesquisador que seus antepassados incluíam índios nativos
daquela região. Como prova disso, chamava a atenção para os olhos amendoa­
dos dela própria e de parte da família. Embora já muito idosa nos anos 1970
e 1980 (nascera em 1900), quando foi entrevistada diversas vezes, mantinha
a memória muito ativa, dedicando-se a rememorar episódios cuja localização
temporal sempre ficava imprecisa, numa durée vivencial muito diversa do re-
gistro historiográfico ou da representação letrada de uma história de vida pes-
soal ou familiar. Ao fazer os levantamentos de fontes externas sobre a história
do bairro, foi possível reconhecer alguns traços dessas reminiscências de Amé-
lia, às quais o pesquisador outrora dera pouca atenção. Não se tratava apenas
da ascendência indígena (realmente muito provável), mas de outros assuntos,
como a ausência de sacerdotes na gestão da antiga Igreja de Nossa Senhora
da Conceição, o comércio de escravos nas proximidades (a que associava o
ancoradouro da aterrada Furna do Gato e uma sua antepassada, Maria José,
holandesa, casada com um português, “mulher muito má” — segundo ela), as
ruínas das capelas de uma sede de fazenda no morro do Morcego, onde sua
própria família teria habitado em tempos idos.
Havia em geral uma forte presença da memória dos tempos da escravi-
dão, com cujos resquícios ela convivera durante a sua infância: esse desembar-
cadouro dos contrabandistas de escravos, o sepultamento dos escravos mortos
nas praias de Adão e Eva (cujas implicações simbólicas foram analisadas por
Duarte (1987b), o convívio com ex-escravos, moradores da localidade. Assim,

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por exemplo, a senhora conhecida como “Mãe Mulata”, que lhe ensinara a
arte de partejar e com quem compartilhara na juventude esse ofício essencial
numa comunidade tão distante dos recursos médicos antes da II Guerra (foi
ela quem fez o parto de seu filho Humberto). Essa memória da escravidão está
presente também no discurso deste último, que começa um de seus relatos
sobre a história do bairro fazendo menção ao fato de que ali viviam muitos ex-
escravos (“homens e mulheres”, sublinha ele). São peculiares essas memórias,
ao mesmo tempo aproximando e afastando esses vizinhos “ex-escravos”. Amé-
lia conta, por exemplo, que, por retirar-lhes os bichos-de-pé e cuidar-lhes dos
eventuais ferimentos, compravam-lhe (“para nhãnhã” — diz) garrafas de licor
de um doceiro italiano que por lá passava de vez em quando. Evoca também
o medo que tinham seus antepassados da “magia dos negros”, despertado por
uma história de aparição sobrenatural em volta de uma fogueira.
A personalidade pública de Amélia era associada sobretudo à sua condi-
ção de parteira principal do bairro durante décadas, atendendo até a distante
Pendotiba.28 No entreguerras participara de um treinamento sob a direção do
dr. Arnaldo de Moraes, importante médico carioca,29 com quem passou a ter
uma longa relação profissional — como ainda lembra com orgulho a família.
Essa relação a levou a participar de atividades ligadas à Legião Brasileira de As-
sistência e ao Hospital de Icaraí. Ainda há pouco, em 2007, foi realizada uma
cerimônia em memória de Amélia (e de sua benemérita atividade passada),
promovida pela Associação dos Moradores de Jurujuba, com a participação
dos alunos do colégio público local. Muitos dos habitantes mais velhos do
bairro ainda se consideram seus “filhos”, por terem sido por ela trazidos ao
mundo. À época em que ficava conversando à porta de sua casa, eram muitos
os que vinham pedir-lhe a bênção.
A verdade, porém, é que essa eminência de Amélia era também muito
ligada à sua condição de rezadeira local. Muito provavelmente, como era co-
mum no Brasil rural,30 as duas funções se complementavam. O pesquisador
chegou a presenciar algumas rezas feitas por ela na varanda de sua casa, com
crianças acometidas de diferentes mazelas. Não há notícia de qualquer outra
rezadeira no bairro desde os primeiros contatos de pesquisa na década de
1970. Isso tornava certamente ainda mais estratégica a função que ela aí de-
sempenhava.
Amélia fazia deslizar suas reminiscências muito tranqüilamente entre o
foco da família (tanto a de origem quanto a que constituíra) e o foco de suas

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A família Costa 71

atividades como parteira, rezadeira, membro importante do laicato da Igreja


de São Pedro e alguma outra coisa que nunca esclareceu muito bem, mas que
o pesquisador sempre supôs ser uma relação com a umbanda (devido a pelo
menos uma referência murmurada sobre alguma dança). O relativo segredo
em relação a esta última atividade se devia, segundo ela, ao fato de que sua
nora e suas netas (em cuja casa morou nos seus últimos anos) não gostavam
daquilo que chamavam de “suas bruxarias”. É possível que se tratasse, no
entanto, apenas de práticas do catolicismo popular, de registro semelhante ao
das encantações terapêuticas. É um assunto sobre o qual não foi possível obter
maiores esclarecimentos. Numa das gravações ela faz o relato de um episódio
ambíguo. Estava internada num hospital, sob os cuidados de um médico que,
segundo ela, era “espírita”. Como iria passar em frente ao hospital uma pro-
cissão de são Jorge, ela disse ao médico ser “filha de são Jorge” e fez ali uma
oração pela família dele, “concentrando-se na ponta da lança da imagem”.
Isso lhe teria garantido daí em diante um excelente tratamento. Suas referên-
cias aos banhos de ervas que deviam acompanhar os partos ficavam também
numa zona oblíqua de pertencimento. Dizia-me a esse respeito: “eu tenho fé
e guiné”.
A vivacidade mental e expressiva de Amélia a fazia sempre transmitir
uma totalidade de vida em que o sagrado e o profano se combinavam inti-
mamente. Passa das valsas do seu tempo de namoro aos hinos religiosos com
que encantou um bispo na festa de são Pedro. Conta que em sua juventude
participava de quadros vivos em festas religiosas e também do pastoril que
se realizava entre as duas igrejas. Relata o seu encontro com uma cartomante
que a deixou fascinada e a convidou para segui-la em sua vida errante, convite
que quase aceitou. Todos os dias, às duas da tarde, costumava assistir a um
programa de rádio de um conselheiro espiritual que ensinava receitas terapêu-
ticas. Certo dia, pôs as mãos na cintura, ensaiou um passo de dança e disse
brincando: “vivo com Deus e rio-me dos homens”.
De qualquer modo, a relação com a igreja era muito constante. Foram
feitas gravações de diversos cânticos religiosos entoados por ela. Um deles es-
tava talvez relacionado com uma congregação religiosa criada na Igreja de São
Pedro por volta dos anos 1950, o Apostolado da Oração, segundo Humberto.
Na última procissão de são Pedro a que assisti no bairro em 2005, Humberto
e Hermínia ocupavam numa posição estratégica entre os sacerdotes presentes
— inclusive o próprio arcebispo de Niterói — e o andor do santo. Usavam

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72 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

roupas brancas e uma insígnia com fitas vermelhas, que eram os distintivos
daquela congregação.
A relação com o catolicismo em geral e com a Igreja de São Pedro em par-
ticular é uma tônica também da segunda e terceira gerações. Nenhum de seus
membros, porém, faz qualquer referência a outras dimensões religiosas (salvo
num caso, ambíguo, como depois veremos). Segundo Amélia, havia uma for-
te resistência ao seu sincretismo, como era típico dessa linhagem dos Abreu
Costa. A casa de Humberto está hoje repleta de imagens e inscrições religiosas,
numa das quais se lê: “cuide de sua vida e deixe que Jesus cuide da minha”.
Além de vários crucifixos e imagens, há um grande pôster de santo Antônio de
Lisboa, três Santas Ceias (duas com pequenos relógios embutidos), um Bom
Pastor (também com relógio embutido), uma Santíssima Trindade em gesso,
uma folhinha com o Menino Jesus — tudo isso em meio a enfeites de diversos
tipos, fotografias emolduradas, aparelhos de televisão e de som, plantas natu-
rais e de plástico.31 Sobre uma estante na sala vê-se uma imagem da Virgem,
coberta por uma espécie de manto de renda. Segundo Humberto, trata-se de
uma dessas imagens itinerantes que levam a bênção aos lares.
Uma das razões para esse aparente recrudescimento devocional é talvez a
presença cada vez maior de evangélicos no bairro e no seio da própria família
extensa. Humberto foi o primeiro a me falar, já nos anos 2000, da conversão
à Assembléia de Deus de seu irmão Geraldo, a que se seguira a conversão
paulatina de sua mulher e de parte de sua grande descendência. Humberto
se queixa das diversas tentativas, por parte dos “crentes”, para convertê-lo ou
à sua linhagem. Dá a entender que não os prezava, por sua baixa escolarida-
de e precária condição social. Formula argumentos interessantes, que teria
anteposto a tais iniciativas de proselitismo: a Igreja Católica é mais antiga e,
portanto, mais séria ou justa do que “essas novidades” de duvidosa legitimi-
dade. Repete, assim, as costumeiras representações de uma parte da sociedade
brasileira sobre uma espúria confusão entre religiosidade e dinheiro nessas
denominações religiosas.32
Mas o catolicismo dessa linhagem não é apenas reativo, pois toda a fa-
mília sempre esteve estreitamente ligada à Igreja. Na festa de são Pedro, por
exemplo, Humberto exerce há décadas a função de pregoeiro do leilão, consi-
derado outrora um dos pontos altos das comemorações.33 Na referida congre-
gação local, compete-lhe a tarefa peculiar de polir os castiçais e lampadários
do templo pelo menos uma vez por ano, antes da festa. Além disso, sempre

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A família Costa 73

participa das procissões terrestre e marítima. Um de seus filhos mais velhos,


dotado de considerável habilidade técnica, ocupava-se outrora da montagem
das gambiarras das lâmpadas que contornam a fachada da igreja nas noites
da festa. Muitas das mulheres da terceira geração participam das atividades
da paróquia, cuidando, por exemplo, da organização das barracas de vendas
durante a festa. Outra característica devocional que não se alterou desde os
anos 1970 é a montagem, no Natal, de um grande presépio na varanda aberta
da casa, onde pode ser admirado por todos os vizinhos e passantes. É um tra-
balho sempre minucioso e criativo, além de muito peculiar em seu contexto
social. Humberto tem por padroeira santa Catarina, nome de sua única irmã,
morta solteira nos anos 1950, e também de uma de suas filhas. Há sempre
uma imagem dessa santa em algum canto da casa.
Amélia Pereira de Abreu se casou em 1918 com Fausto Costa, prove-
niente de uma família de pescadores de Maricá (“pescaria de lagoa”, como diz
Humberto, sublinhando a diferença em relação à pesca de Jurujuba).34 Após
um período de embarcamento forçado como marinheiro, na “guerra de 14”,
veio a estabelecer-se em Jurujuba devido ao casamento com Amélia. Antes
de Humberto, haviam tido uma filha, “morta com nove meses e três dias”
— segundo ela por causa da sífilis do marido, doença que teria sido assim
“purgada” —, vindo depois Catarina Luiza e finalmente Geraldo (que deve ter
nascido em 1929).
Os dados sobre Fausto, pai de Humberto, não são muitos: além dos que
já mencionei, destaca-se o fato de que foi, por muito tempo, o leiloeiro da festa
(tal como, depois, seu filho) e que era muito “carnavaleiro” ou “baileiro”, como
dizia sua viúva. Foi cedo acometido de algum tipo de reumatismo ou doença
paralisante, motivo pelo qual teve Humberto que “ajudar em casa, desde a ida-
de de sete anos”. A dor pelo seu falecimento em 1965 junta-se, nas memórias
de Humberto, aos sofrimentos decorrentes do golpe militar.
Catarina Luiza, por sua vez, sempre morou com os pais na casa original
da família, junto à pedreira. É considerada uma espécie de santa pelos dois
irmãos. Segundo Geraldo, “morreu virgem como nasceu”. Amélia lamentava
freqüentemente sua morte, que acabou por impedi-la de — já idosa — per-
manecer em sua própria casa, tendo que se mudar para a do primogênito e
alugar, por um tempo, a sua. A gravidade dessa perda só foi percebida pelo
pesquisador quando participou dos trabalhos de reforma da casa que viria a
acolher a primeira filha de Humberto a se casar. Era mais ampla do que o habi-

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74 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

tual no bairro e dispunha de um quintal razoável, com várias árvores frutíferas


e muitas plantas decorativas. Um tanto isolada das sobreposições e entrecru-
zamentos construtivos que caracterizam os bairros populares favelizados, ela
ainda remetia ao contexto idílico, meio caiçara, das memórias do passado do
bairro. De Catarina Luiza, de qualquer modo, sublinha-se sempre sua perfeita
conformação à imagem da mulher recatada e filha exemplar. Amélia lembra
que ela lhe dissera, ao ver desfeito seu longo e infrutífero noivado: “eu tenho
amor é à senhora, minha mãe”.
Geraldo chegou a servir na Aeronáutica, mas lá não permaneceu (sem
que se esclareça o motivo). Esteve quase toda a vida ligado à pesca, como tra-
balhador assalariado, membro das “companhas” de canoas e das tripulações
de traineiras — a típica vida dos trabalhadores locais, à mercê da precariedade
das relações de trabalho e da instabilidade e insalubridade das condições de
produção.35 Em 1974, disse numa entrevista estar se “encostando” no INSS
devido a problemas de saúde. Com isso receberia a pensão e continuaria a
trabalhar sem carteira. Contou, na mesma ocasião, que sua própria mulher
também já estava “encostada”, por problemas nervosos. Nelsina era sua pri-
ma-irmã, mas sempre foi considerada pela linhagem de Humberto como uma
pessoa indigna de suas relações. Ao iniciar uma entrevista no barraco em que
viviam nos anos 1970, Geraldo lhe explicou que o pesquisador lhe tinha sido
apresentado pelo irmão. Ela retrucou, numa advertência inamistosa: “vá atrás
de Humberto para você ver...”.
Geraldo disse, em 1974, estar há 20 anos casado com sua segunda mu-
lher. Viviam à época no morro, precariamente, ajudados com toda certeza por
Amélia — enquanto esta pôde dispor do aluguel de sua casa. As vicissitudes
de sua vida (um de seus 11 filhos teve paralisia infantil) e o óbvio desprestí-
gio local de sua família, em comparação com a do irmão, não impediam que
sentisse um certo orgulho da linhagem maior: “atualmente nossa família agora
é pouca gente; teve época em que Jurujuba em peso era Pereira de Abreu”
(o sobrenome de sua mãe). Durante uma parte dos anos 1970 morou em São
José do Imbassaí, em Maricá, terra da família de seu pai. E, no começo dos
anos 1990, surpreendeu a muitos com sua conversão à Assembléia de Deus.
Observadas à distância, as trajetórias dos dois irmãos não poderiam ser
mais díspares, inclusive no que toca o compartilhamento dos recursos familia-
res. Quando ficou desamparada, Amélia foi morar com Humberto, e quando
a filha mais velha deste último se casou, foi-lhe destinada a casa original, que

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A família Costa 75

estivera alugada por uns anos. Geraldo, por sua vez, sempre morou em situa-
ção muito precária, no morro, ainda mais considerando-se o tamanho de sua
família. Exemplo marcante desse contraste foi o fato de Cosme, um dos filhos
mais velhos de Geraldo, primeiro de sua coorte a casar, ter sido obrigado a tan-
to (segundo o pai) por ter engravidado a namorada, ao passo que o primeiro
casamento da fratria descendente de Humberto foi o de sua filha mais velha,
numa cerimônia religiosa formal, seguida de uma festa suntuosa no salão da
Igreja de São Pedro (a que compareceu o pesquisador).
A notícia de que Geraldo tinha se convertido à Assembléia de Deus, al-
gum tempo depois da morte da mãe, impôs imediatamente a percepção de
uma “reconversão” social associada a essa “conversão” religiosa. Com efeito,
não obstante numerosas desqualificações dos “crentes”, Humberto reconhecia
que essa experiência tinha sido boa para Geraldo e para parte de sua linhagem,
cujas qualidades sociais eram bastante fracas tanto do ponto de vista moral
quanto social. Humberto se mostrou surpreso por ter visto uma dessas pessoas
vestindo terno, mas não deixou de reconhecer a conveniência de tal mudança.
Dá-se a entender na família que Geraldo tem uma posição administrativa ou
pastoral na sua igreja, o que lhe garantiria hoje uma reprodução muito mais
estável e legítima, tendo abandonado totalmente a pesca.
A filha mais velha de Humberto, Telma Jocelyn, casou-se com um vi-
zinho, metalúrgico da Companhia Costeira de Navegação (a “Costeira” das
referências cotidianas), envolvido nos anos 1970 na luta sindical devido às
ameaças de privatização da empresa. Como quase todos os homens do bairro,
era também pescador, sempre que havia tempo para tentar a sorte na pescaria
pequena, de canoa. Nos anos 2000 já o encontrei aposentado, torcendo com
a camisa do Flamengo, elogiando o Brizola, com um pouco mais de cerveja
emborcada do que gostaria a família. Morreu subitamente, do coração, com
pouco mais de 50 anos. Sua mulher dedicava-se à gestão da casa paterna
— devido às dificuldades enfrentadas pela mãe — e se preparava para o ves-
tibular de administração, sem grandes expectativas, porque sabia que o curso
noturno que freqüentava era fraco. Depois que se casaram na Igreja de São
Pedro, em 1976, com uma grande festa, foram morar na antiga casa de Amélia,
restaurada com um mutirão dos homens da família. Era uma pessoa de grande
simpatia e intensa dedicação a tudo o que fazia. Foi certamente uma das mais
pacientes informantes da pesquisa de L. Duarte, a ela se devendo o grande
quadro da sua rede de parentesco, com todas as ramificações, compadrios,

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76 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

intercasamentos, habitações, ocupações e alianças. Um ano antes da morte do


marido surgiu-lhe um câncer no cérebro, operado com aparente sucesso, mas
que dois anos depois reapareceu e foi fatal. Os três filhos homens, então com
idades em torno dos 20 anos, ficaram morando na casa dos falecidos pais,
acompanhados do avô paterno, que, separado da esposa, lá se refugiara ainda
ao tempo em que vivia o filho. Nas poucas vezes em que os encontrei, já que
costumavam estar entre o estudo e o trabalho, faziam alguma refeição eventual
na cozinha da casa de Humberto. O mais velho parece ser o mais arredio à
família e deve estar atualmente freqüentando algum curso noturno. Dedica-
se intensamente à musculação e trabalha como treinador de educação física
numa academia. Os dois menores encontram-se empregados nos Correios.
Em 2007 encontrei os dois mais jovens na festa de primeiro aniversário
de seu sobrinho mais jovem. O do meio estava acompanhado da namorada.
O menor, ainda adolescente, conversava com outro primo sobre seu gosto
comum pela música instrumental. Embora fosse muito tímido, tocava muito
bem bateria e participava do conjunto que tocava na Igreja de São Pedro.
O segundo filho de Humberto, conhecido como Betinho por ter o mes-
mo nome do pai, trabalhou nos Correios como estafeta, provavelmente por
influência do pai, à época em que este lá estava. Nos anos 1970 fazia um curso
de programador e pretendia fazer o vestibular em 1976, embora já trabalhasse
nos Correios. Dedica-se regularmente à pesca, tendo herdado a canoa que fora
do pai e que em 2007 estava em reparos. Esta, segundo um de seus irmãos, era
ótima para ir pegar peixes grandes para o lado das Cagarras, mas, como tinha
um motor pouco potente, uma tempestade súbita podia fazê-la soçobrar.36
Depois que largou os Correios, abriu um pequeno serviço de venda de salga-
dinhos, cujo movimento e rendimento não esclareceu. Quando o pesquisador
começou seus contatos com a família, Betinho já era mais velho e andava mais
afastado da casa paterna. Além do mais, sempre pareceu mais arredio. Nunca
o vi sentado na sala com o pai, como costumam fazer todos seus irmãos. Na
festa de aniversário do sobrinho, já mencionada, ficara um tanto afastado dos
irmãos, junto com a mulher e uma de suas duas filhas, com quem mora numa
casa no morro.
O terceiro filho é conhecido como Pituta. Foi o que mais conviveu com
o pesquisador nos anos 1970, quando fazia um curso de desenho técnico
(além do ginásio noturno) e se preparava para um concurso da Petrobras. Fi-
cara atrasado nos estudos, como seu irmão mais velho, por ter que ajudar no

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sustento da família nos anos 1960. Nos sete anos de interrupção dos estudos,
trabalhara inclusive num bateau-mouche no Rio de Janeiro. Como a escola de
desenho fechara em 1976, falou-me de seu projeto de vir a estudar inglês.
Naquele ano ele já estava empregado como torneiro-mecânico numa indús-
tria metalúrgica (na verdade, tinha acabado de ser despedido da Dieselbrás).
Essa especialização garantiu-lhe diversos outros empregos de remuneração
razoável durante os anos 1970 e 1980. A contração da atividade industrial
fluminense (sobretudo naval, que era sua especialidade), associada à crescen-
te demanda de profissionais com formação técnica escolar (“com diploma”,
como ele diz), deixou-o quase sempre desempregado desde meados dos anos
1990. Em 2003, tinha uma pequena oficina mecânica montada ao lado da casa
paterna, com um bom maquinário (“uns 60 mil reais”, calculava ele), para ser-
viços avulsos de torneiro. Em 2004 já tinha fechado a oficina, porque obtivera
outro emprego. Hoje se encontra novamente desempregado, amargurado com
as contínuas rejeições a seu currículo, onde a experiência avulta, mas falta o
diploma.
Pituta casou-se com uma moça que vivia perto dos parentes maternos
dele, na estrada da Cachoeira, e foram morar no Fonseca, próximo ao centro
de Niterói, numa casa por ele mesmo construída. Lá tiveram um único filho,
que tem hoje 15 anos e estuda numa escola particular nas proximidades. Em-
bora não esteja indo muito bem nos estudos, tanto o pai quanto o avô esperam
que ele venha a entrar para a Marinha, já que gosta muito do mar (está sempre
pescando, nos fins de semana, com alguém do bairro). Pituta diz que o colo-
cou cedo num curso preparatório para a carreira naval, onde ficou por pouco
tempo porque a diretora o aconselhara a só retornar quando já estivesse maior,
pois era ainda muito infantil. Numa ocasião em o pesquisador passeava com
Pituta e o filho pela beira de uma das praias da região, os dois falavam com
imenso gosto sobre os muitos aspectos desse vasto saber que se esconde sob
a rubrica singela da pesca: marés, peixes, redes, luas, lajes, barcos, motores,
ventos, âncoras, mariscos, mercados, tudo entremeado por histórias fantásti-
cas e episódios dramáticos que faziam luzir os olhos do rapaz.
O casal se lamenta da crescente violência na região em que habitam, com
tiroteios freqüentes. Pituta está construindo outra casa, mais uma vez com
as próprias mãos, nos horários vagos, em Jurujuba, na orla da praia atrás da
Igreja de Nossa Senhora da Conceição, na outra extremidade do bairro, ou
seja, a Várzea. Diz que a casa do Fonseca poderia estar valendo uns R$ 160

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78 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

mil, mas que, devido à violência, ele hoje não conseguiria por ela mais do que
R$ 80 mil.
Pituta tem incontáveis histórias sobre situações em que tentaram ludi-
briá-lo ou humilhá-lo, ou em que assistiu à vitória da injustiça ou da incom-
petência. Nesses casos, sempre ressalta a preocupação que teve em não partir
para a briga física, já que tem a constituição de um touro, o que o faz — como
diz — literalmente muito “estourado”. Não esconde que esse tipo de atitude
não tem facilitado sua permanência nos empregos e lamenta sua incapacidade
de “baixar a cabeça”. Há alguns anos, Pituta adquiriu um barco que estava fora
de serviço, reformou-o e se dispôs a colocá-lo na pesca, como um pequeno
armador, ou seja, sem a contribuição do seu trabalho pessoal. Hoje o barco
está em reparos, e ele diz não estar disposto a tornar a colocá-lo na pesca, pela
dificuldade de conseguir uma tripulação de confiança. Por outro lado, diz es-
tar querendo aposentar-se pelo INSS, uma vez que já teria tempo suficiente de
serviço. Mas o processo parece depender, em parte, de alguma ação coletiva
que não nos foi possível compreender.
O quarto filho, batizado como Juscelino em homenagem ao então presi-
dente da República, é conhecido como Teco. Era o preferido de sua avó Amé-
lia, em cuja casa viveu boa parte de sua infância e adolescência. Foi o único
a prestar o serviço militar, no forte do Imbuí, ali perto. Sua disposição para
os esportes foi muito estimulada nesse período, tendo começado a disputar
competições em nome do batalhão. Nos anos 1970, freqüentava um curso de
contabilidade, estudava violão e pretendia fazer um concurso para a Petrobras,
assim como o seu irmão Pituta. Mais tarde tornou-se treinador de educação
física e de natação, tendo trabalhado numa grande empresa internacional cujo
time ele acompanhou numa excursão à Alemanha. Trabalhou também como
professor de educação física para crianças (que diz adorar) em colégios e clu-
bes. Ultimamente fez um curso de fisioterapia e técnicas de condicionamento
corporal (acupuntura, pilates etc.), o que lhe permitiu ser contratado por uma
grande empresa de prestação de serviços nessa área, onde parece estar bem
satisfeito.
Quando o pesquisador o conheceu, ainda adolescente, era o que parecia
menos ligado à vida do bairro e da pesca, parecendo disposto a enveredar por
rumos diferentes dos de sua família. Hoje está casado e tem dois filhos ado-
lescentes. Mora em São Gonçalo, num bairro que considera tranqüilo (Estrela
do Norte), onde estão estudando os filhos. O mais velho, com 18 anos, se

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prepara para o vestibular de Comunicação Social na UFRJ, fazendo o cursinho


pré-vestibular da UFF.37 Participa de um conjunto de música jovem e toca na
Igreja de São Lourenço, perto de São Gonçalo. Ao vê-lo tão dedicado à família,
veio-me à lembrança Humberto, nos anos 1970, furioso por que Teco, encar-
regado de cuidar dos passarinhos da casa, deixara morrer de fome o seu sabiá
preto de estimação.38
Teco esteve ultimamente recuperando uma velha carcaça de barco que
ele desenterrou da praia para montar um novo, de “brincadeira”, como ele
diz, assim enfatizando — como fazem hoje quase todos os pescadores — a
impossibilidade de viver da pesca. Evidencia-se assim quão enganado estava
o pesquisador sobre o seu distanciamento do mundo da pesca. Na verdade,
ele o construiu pela via do uso do corpo, da “brincadeira” da natação, que se
transformou em meio de vida. É ainda esse foco marítimo que o faz dizer ao
pesquisador que o filho pretende fazer “engenharia naval” — o que depois pa-
receu causar surpresa ao rapaz, quando lhe foi apresentada essa representação
paterna. Na festa de são Pedro, em 2007, ele saiu no seu barquinho com os
dois filhos e aproveitou para esticar o passeio até Botafogo, apesar do tempo
chuvoso.
A filha seguinte, quinta de sua fratria, chama-se Catarina Gerusa, embora
seja conhecida apenas como Gerusa. O Catarina de seu nome era uma home-
nagem a sua tia paterna. Gerusa já está viúva do marido, com quem teve seus
dois filhos. Mora numa casa simples (“não tem forro”, ressalta um parente), na
Salina, uma área de ocupação precária, no início de Jurujuba. A filha mais ve-
lha, casada com um pescador que é dono de traineira, mas sem filhos, também
reside nesse mesmo recanto do bairro.
Seu filho homem já está casado e é pai do primeiro bisneto de Humberto
— uma criança muito mimada por toda a família, mas particularmente pelo
bisavô. Essa nova unidade vive na casa de Gerusa, que por sua vez desloca-se
com freqüência para a casa dos pais, para assumir as funções de gestão domés-
tica que eram cumpridas por sua falecida irmã mais velha.
Esse filho tem relação com o trabalho na pesca, uma vez que Humberto
já havia falado da dificuldade dele em registrar-se como condutor-motorista
em 2005. Ele se apresenta com um visual particularmente “moderno”, com
tatuagens espalhadas pelo corpo, e pratica surfe, inclusive nas praias de Adão
e Eva, para grande inquietação de Humberto, que diz haver por lá algumas

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80 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

ferragens abandonadas por um falido empreendimento de maricultura. Sua


mulher e o filho estão freqüentemente na casa dos bisavós.
Roseane Margaret é a sexta da fratria. É casada, tem dois filhos homens e
mora no interior de Minas Gerais, perto dos sogros, por causa do trabalho do
marido, ao que parece. A família toda lamenta com freqüência essa distância,
e Humberto critica o que considera ser uma certa instabilidade profissional
desse genro.
Margaret fazia com grande empenho um curso de desenho nos anos
1970, o mesmo em que estudou seu irmão Pituta. Chegou a ter meia bolsa
no curso, que parece ter sido interrompido pelo casamento e pela mudança.
Ao encontrá-la em casa dos pais, no dia do aniversário de Humberto, em
2007, falou-me de seu continuado gosto pelo desenho e a pintura, a que se
dedica eventualmente. Num dado momento, nesse mesmo dia, pôs-se a expli-
car para as cunhadas, irmãs e sobrinhas uma técnica doméstica de tecelagem
que pareceu fascinar todas as mulheres presentes. Seu filho mais velho está
se encaminhando para a Marinha. Em 2007 encontrava-se prestando exames
periódicos no Rio com esse intuito, já tendo sido aprovado em alguns.39 O
mais moço também tentara o exame para a Marinha, mas fora reprovado logo
na primeira prova.
Maria Inês, a filha seguinte, pretendia ser aeromoça nos anos 1970 e to-
mava aulas de inglês com esse intuito. Casou-se com um representante comer-
cial e mora na estrada da Cachoeira, perto dos parentes de sua mãe. Trabalhou
longamente no comércio e teve uma única filha, a quem dera o nome da irmã
que a sucede na fratria e que fazia o curso secundário em 2004 num colégio
privado e pretendia estudar biologia marinha. Inês teve um câncer por volta
de 2003, antes do de sua irmã mais velha, mas parece totalmente recuperada.
A filha, em 2007, já tivera uma experiência de trabalho no comércio, após
concluir o secundário, e freqüentava um curso noturno preparatório para o
vestibular de publicidade.40 Inês também está freqüentemente em casa dos
pais, a cuidar dos afazeres domésticos e da própria saúde, além de prestar
serviços de manicure para toda a família. A mãe e o avô esperavam que a filha
de Inês viesse a seguir a carreira da Marinha.
Janaína segue-se a Inês, como a sétima filha. Casou-se e foi habitar no
morro, numa casa ao lado da de seu irmão mais velho. Nada se diz sobre o
que faz seu marido, que não freqüenta a casa dos sogros nem as festas de
família. O casal tem três filhas. A mais velha era estudante de jornalismo na
Faculdade Estácio de Sá de Niterói, quando procurava por um estágio. Em

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2007 estava com a faculdade trancada, ocupando-se da venda de roupas, em


duas pequenas lojas, uma em Jurujuba e outra no Preventório. Apresenta-se
com um visual marcadamente moderno, com piercings no rosto. Janaína está
freqüentemente ajudando na arrumação da casa dos pais.
Ana Lídia, a oitava da fratria, casou-se com um subtenente (tinha esse
posto em 2005), paraense, lotado no forte de São João, onde se desincum-
be de funções técnicas em informática, embora seja formado em engenharia,
segundo seu sogro — que muito o admira por isso. O casal mora numa casa
funcional dentro do forte e tem dois filhos. O mais novo é o vigésimo e mais
recente neto de Humberto.
Lídia fizera, junto com o irmão Teco, um curso de fisioterapia e técnicas
de condicionamento corporal. Estivera empregada na empresa onde hoje tra-
balha seu irmão, que veio ocupar o seu lugar, já que ela tivera de se afastar em
2006 para cuidar do recém-nascido.41 Trata-se do casal em melhor situação
financeira atualmente. Há sobre o aparador da sala de Humberto uma foto
colorida de Lídia, de busto, numa pose estilizada, com uma roupa de aparato.
Lídia orgulha-se do talento musical de seu núcleo doméstico: o marido toca
violão popular e clássico, seu filho mais velho estuda flauta, e ela própria fala
de seu gosto pela música clássica. Ela usou uma máquina fotográfica digital
para registrar a imagem de seu bebê no colo do pesquisador em 2006, e seu
filho mais velho usa um laptop para ficar jogando na sala da casa do avô. É
também a única de sua geração a fazer uso da internet, por onde enviou ao
pesquisador algumas mensagens circulares. Tratava-se de dois textos em tom
“nova era” (um dos quais de autoria de Dráuzio Varela) e de um terceiro sobre
Chico Xavier e sua caridade. Como era voz corrente que seu marido era muito
ligado à Igreja de São Pedro, não ficou à época muito claro o significado dessas
mensagens.
Foi apenas na festa do primeiro aniversário de seu último filho, reali-
zada num salão de festas do forte do Imbuí em 2007, à qual o pesquisador
compareceu como convidado, que se esclareceram as relações entre esses
sinais de religiosidade. A festa estava muito concorrida, e, quando perguntei
às pessoas da família (o pesquisador dera carona a algumas delas, já que o
acesso ao local da festa era complicado) quem mais estava por lá, responde-
ram que eram sobretudo companheiros do grupo da Igreja de São Pedro. A
certa altura ficou claro que o palhaço animador das brincadeiras das muitas
crianças ali presentes era um agente religioso, com o nome de Jesus inscrito

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82 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

na camiseta. Da animação das crianças, perfeitamente laica, ele passou à


animação de um culto de estilo carismático. Formou-se um círculo com
todos os convidados em volta do aniversariante e de seus pais, e o animador
passou a produzir um discurso ritual, reiterativo, em que sobressaíam as
categorias “vitorioso”, “campeão”, “vencedor”, sob a inspiração de Deus e de
Jesus. Todos à roda levantavam suas mãos e participavam dessa invocação. O
ritual, depois repetido à mesa do bolo e antes do “parabéns”, enfatizava uma
espécie de destino de auto-afirmação, garantido pela união entre os pais e os
filhos. Só mais tarde vim a saber que se tratava de um núcleo do movimento
“Perdão e Reconciliação”, fundado originalmente por um padre colombiano
para se contrapor à violência e ao sofrimento em seu país.42 Lídia e o mari-
do são ativistas do movimento, já tendo viajado até para outros estados em
atividades a ele relacionadas.
Humberto e a mulher não foram à festa, pois não se sentiam bem. Tam-
bém os grupos familiares de Inês e da irmã caçula estavam ausentes. Dos de-
mais, faltavam apenas um ou outro dos sobrinhos de Lídia e o marido de Janaí­
na. Havia diversos parentes do lado da mãe, mas não estava presente nenhum
membro da linhagem do tio paterno, Geraldo.
Finalmente, Minda, a caçula, assim chamada por ter o mesmo nome da
mãe, Hermínia, mora hoje no andar superior da casa dos pais, há pouco re-
formada justamente para poder abrigar seu núcleo familiar. Pelo que consta,
após se casar, fora morar longe, em Jacarepaguá, provavelmente em situação
precária. O marido esteve ligado à política municipal, tendo sido candidato
— derrotado — a vereador pelo PT nas últimas eleições.43 Minda sempre foi
muito mimada e tinha um temperamento mais desabrido que o de seus ir-
mãos. Tem agora dois filhos, ainda pequenos, que se parecem muito com ela
na mesma idade e que são considerados por todos como muito levados. Estu-
dam em uma escola particular fora de Jurujuba.
As relações entre tantos irmãos e irmãs não podiam deixar de ter suas
tensões. Nos anos 1970, elas eram mais perceptíveis entre os três rapazes,
até mesmo porque — fora Telma — as filhas do casal eram ainda crianças.
Nos anos 2000, transparece mais claramente a competição entre algumas das
irmãs, embora não seja nada muito aberto nem agressivo (pelo menos não
diante do pesquisador). Transparece também, por outro lado, uma intensa
solidariedade e mútua ajuda, como ficou mais manifesto na triste sucessão das
mortes de Telma e de seu marido.

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A família Costa 83

Os primos irmãos, filhos de Geraldo, transitam nas fímbrias do espa-


ço social de Humberto, de maneira quase invisível. Mais de uma vez, pude
entrever algum deles entrando ou saindo da cozinha de Humberto, sem que
alguém se dispusesse a apresentá-los ao pesquisador.
O mais velho é casado e tem vários filhos. Nos anos 1970 vivia da pesca,
fora de Jurujuba, embora viesse às vezes pescar com os primos, sempre meio
arrogante por seu saber pesqueiro. Também tinha sido operário da fábrica
Faet, tendo depois trabalhado nas obras do “aeroporto supersônico”. Não foi
possível saber onde estava ou o que fazia nos anos 2000.
O segundo filho foi o que se casou obrigado, como antes mencionado.
Tem dois filhos e uma trajetória conturbada de trabalho. No começo de 2007
era cozinheiro de um movimentado restaurante local, mas já não mais estava
ali em meados daquele ano.
Pouco foi possível saber sobre a terceira, a quarta e a quinta filhas. A
terceira e a quarta estavam casadas, com filhos, cujos nomes a linhagem de
Humberto ignorava. A quinta vivia com outra mulher.44 Seu irmão seguinte,
o sexto, não se casara. Os cinco últimos já eram todos casados, com um, dois
ou três filhos, enquanto o penúltimo, que ficara com seqüelas de uma paralisia
infantil, estava se casando no dia de são Pedro, em 2007, tendo como testemu-
nha o tio Humberto. Ele e a esposa, uma senhora negra muito comunicativa,
foram apresentados ao pesquisador quando foram pedir a bênção aos tios.
Fora o mais velho, consta que todos habitam no morro de Jurujuba, ou seja,
em precárias condições, tanto quanto seus pais.
A rede familiar já se distribuía prioritariamente como uma vizinhança
desde várias gerações, na linhagem ascendente de Amélia.45 Ainda hoje isso
ocorre, como se viu em relação à descendência de Humberto. Mas há ainda
muitos outros personagens, colaterais, afins ou contraparentes, de que não se
poderá tratar aqui.46 Na verdade, seu estatuto de parentes só se atualiza em
determinadas condições, não sendo, de modo geral, mais importante que o de
vizinhos longamente conhecidos. Por exemplo, a sogra e a cunhada de Telma
moram ali perto, mas são consideradas como pessoas distantes. A cunhada,
única irmã do marido de Telma, morara fora de Jurujuba por um longo tempo,
fora funcionária do Ministério da Fazenda, mas retornara para viver com os
pais (na verdade, com a mãe, já que o pai, ao separar-se já idoso da mulher,
fora morar com o filho e a nora) depois de aposentada. Nos anos 1970, era
apontada como exemplo do comportamento egoísta assumido pelos que so-

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84 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

bem na vida — segundo Humberto, “todos os que sobem esquecem dos de-
mais”. O pesquisador só a viu uma vez, no casamento do irmão, trajada com
um luxo ostensivo.
Bem ao lado da casa de Humberto, do outro lado da rua, fica a casa
de um dos filhos de uma irmã de Amélia que era casada com um senhor de
modos particularmente violentos e que era descrito nos anos 1970 como um
“sócio arrendatário de armador”. Esse filho é descrito como economista, hoje
aposentado como “ministro” de algum tribunal em Brasília. É solteiro e deve
ter como hobby a pintura a óleo, já que Humberto tem em sua sala um quadro
dele representando a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Várzea. Um
de seus três irmãos é considerado “maluco” e mora um pouco mais acima, na
direção do morro.
Ali perto morava também nos anos 1970 um primo irmão de Humberto
que era armador — um homem rico para os padrões locais. Sua casa, grande
e ostentatória, ocupava uma esquina prestigiosa do bairro, de frente para os
jardins da casa dos Behring de Mattos. Havia também diversos outros parentes
pescadores, de canoa ou de traineira, espalhados pelo bairro, com posições
sociais muito diferenciadas.
Do que aqui se descreveu ressalta sobretudo a importância fundante da
dimensão da “família” nesse meio social, por mais móvel e inconstante que
seja a sua fronteira. Isso significa, em primeiro lugar, a família como rede, mais
ou menos ampla, da qual uns se afastam e outros se aproximam, num jogo
complexo em que o que permanece é o reconhecimento de um fio comum,
elástico, unindo família, localidade e pesca — três dimensões do pertenci-
mento comum. Como já se mencionou, essa representação retira considerável
força simbólica da percepção do caráter historicamente consolidado da trama
(como dizia Geraldo nos anos 1970, “antigamente isso tudo aqui era uma
família só”).
Essa representação também se nutria da forma fenomenal das relações
de trabalho no modelo ideal da produção canoeira. Como já se descreveu em
outro trabalho,47 a “companha” era uma unidade produtiva concebida nos
moldes da solidariedade e hierarquia familiares: um mestre/pai em relação
com companheiros/filhos/aprendizes. Apesar da superação da produção cano-
eira tradicional pela produção das traineiras e mesmo da decadência genera-
lizada da pesca local, ainda se realiza esse ideal sob a forma da “brincadeira”
em saídas de pesca que irmanam pescadores mais velhos com seus familiares

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A família Costa 85

mais jovens (filhos, sobrinhos, primos), nos fins de semana, nas férias ou em
qualquer ocasião propícia.
Por outro lado, há toda uma série de processos pelos quais o pertenci-
mento familiar pode ser “manipulado” para longe da ideologia de consangüi-
nidade prevalecente. Isso ocorre com a vizinhança longa e bem-sucedida, mas
pode contemplar elementos da rede de amizade ou de trabalho, através do
compadrio ou de uma mera aproximação com a condição de contigüidade e
confiança imanente características do parentesco: a categoria “parente empres-
tado”48 não é incomum e, embora seja meio jocosa, certamente expressa essa
maleabilidade de tal condição.49 Há uma dimensão de efetividade da relação
de parentesco que acaba por impor, a médio ou longo prazo, a proximidade
física como mais importante do que a proximidade de “sangue”. Isso parecia
se expressar no fato de que os amigos do pesquisador em Jurujuba nunca
perguntavam sobre sua família de origem, da qual sabiam apenas viver longe.
Já no caso da família de sua mulher, que tinha duas antigas e prestigiosas uni-
dades residenciais no bairro da Charitas que eles podiam localizar claramente,
havia um recorrente interesse, mesmo muitos anos depois do anúncio da se-
paração conjugal do pesquisador.
Mas a família é também expressa pelo espaço doméstico, a casa no seu
sentido mais vivencial, cuja importância se aborda no capítulo 5. Trata-se de
um sentimento construído por práticas cotidianas e rituais de compartilha-
mento do mesmo espaço por um tempo continuado, mas trata-se também
— mais especificamente — de um recurso de reprodução fundamental, para
onde afluem as rendas de diferentes tipos e de onde se obtém a alimentação, a
acolhida e outras dimensões da própria renda. Já se mencionou aqui o trabalho
antigo das mulheres na tecelagem das redes de pesca e a importância conti-
nuada da costura doméstica. Mas há práticas ainda mais diretamente voltadas
para a fronteira entre o mercado e a sobrevivência: as “criações”, por exemplo.
Na casa de Humberto, em certa ocasião, não se podia passar pela porta da sala
porque a varanda tinha sido transformada em criadouro de pintos. Vários vizi-
nhos do pesquisador no morro criavam e cevavam leitões para o Natal.
Uma dimensão muito importante desse espaço doméstico é o seu caráter
de casulo infantil. Devido à intensa relacionalidade prevalecente e à concomi-
tante compressão do espaço, percebe-se que as crianças ocupam (e freqüen-
temente dominam) a cena familiar, sobretudo quando mais jovens. Em casa,
os parentes mais velhos sempre estavam cercados de crianças de todos os

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86 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

tamanhos (de bebês a quase adolescentes). Avós e netos (ou bisnetos) sempre
faziam junto os seus passeios rotineiros. A televisão continuamente ligada na
sala atende na maioria das vezes à curiosidade infantil, embora prevaleçam
os interesses específicos dos adultos em relação a certos programas, como
os jogos de futebol, as corridas de carro e as novelas. Um traço que sempre
impressionou ao pesquisador na família de Humberto (e que não parece ser
exclusivo dela) é a condescendência com que se atende à contínua demanda
de guloseimas, sorvetes e refrigerantes por parte dos pequenos. A festa de
Cosme e Damião retira em parte desse ambiente de acolhimento ao desejo
infantil sua importância e onipresença nas classes populares urbanas.50 Uma
das filhas de Humberto diz que, apesar da idade, não perde nunca a festa de
Cosme e Damião. Escapa do trabalho e vem pegar os sobrinhos pequenos para
coletar doces.
A família não deixa de ser também — nesse formato tão onipresente
— fonte de diversos problemas de difícil solução. Um caso marcante foi o
relato de Pituta, que desistira de manter sua oficina de torneiro-mecânico no
local porque, como disse, “aqui tudo é parente, né?”, querendo dizer com isso
que tinha que fazer serviços de graça ou pagos em prestações, sempre adiadas
ou esquecidas.
A sucessão na irmandade51 é certamente fonte de grandes tensões, mes-
mo em situações sociais em que os bens não são vultosos economicamente.
Por isso mesmo a transferência de unidades restritas e indivisíveis, como o
espaço doméstico ou a posse de uma canoa ou barquinho, é potencialmente
desafiadora da comunhão de uma fratria descendente. Nos anos 1970, um
pescador local, primo de Humberto, que vinha gerenciando o uso da canoa do
pai idoso como “mestre”, inquiria-se sobre o seu próprio destino por ocasião
da morte do pai, quando a embarcação poderia passar a outro irmão.52 É difícil
imaginar, por exemplo, como se resolverá a transmissão da casa de Humberto
após o falecimento do casal.
As condições do casamento parecem ter-se alterado muito da segunda
para a terceira geração. Amélia descrevia com detalhes as peripécias de seu
casamento, devido à oposição do pai. Humberto e Hermínia casaram-se na
Igreja de São Pedro, e uma bela foto lembra essa cerimônia, vendo-se aí o
casal muito bem trajado, diante do altar, acompanhado de três pequenas
damas de companhia. Como já foi mencionado, o casamento da filha mais
velha — assistido pelo pesquisador — se revestiu de grande pompa. Os de-

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A família Costa 87

mais ocorreram no período em que o contato com o bairro esteve suspenso,


de modo que não sabemos como foram, Mas cabe supor que tenham sido
realizados na igreja. Já na geração seguinte esse procedimento é substituído
amplamente pelas uniões informais ou apenas civis. Lídia, em conversa in-
formal com o pesquisador, disse uma vez, referindo-se a uma de suas sobri-
nhas: “junto com fé, casado é”.
As condições de vida da família Costa são balizadas, ademais, pelas di-
mensões do trabalho da pesca, com sua especificidade técnica, sua instabilida-
de e precariedade. Embora não seja mais o ganha-pão da maioria unidades do-
mésticas, a pesca continua a dominar a imaginação de todos e a transparecer
sob a identidade local. Há também toda a dimensão de lazer e encanto de que
se reveste a criação e a habitação num local aprazível, à beira-mar, cercado de
belas matas e representado como uma grande extensão do domínio doméstico
(apesar de algumas contradições e tensões).
A combinação entre trabalho e lazer num ambiente marítimo tem
implicações indeléveis sobre a construção dos hábitos corporais e, assim,
sobre o destino social de seus portadores. Por outro lado, o companhei-
rismo masculino muito específico da vida pesqueira, enfatizado pela prá-
tica comum de esportes como o futebol (há três campos de pelada no
perímetro do bairro), facilita a criação de um ethos de diversão masculina
extradoméstica, chamada localmente de farra,53 que, por suas ligações com
o excesso da bebida e com as possibilidades de sexo extraconjugal ou he-
terodoxo, sempre importa em um estilo de vida bastante próprio, mais
condizente com alguns destinos sociais do que com outros. Porém, dessas
dimensões tratar-se-á mais detidamente nos capítulos finais, no contexto
da comparação com as condições prevalecentes na vida das duas outras
famílias aqui apresentadas.

Notas

1
Muitas atividades de promoção social que têm sido iniciadas na área se defrontam
com a questão dos recortes identitários locais. A ONG BemTv, através do projeto
Olho Vivo 3, por exemplo, manteve atividades desde o morro do Preventório até
Jurujuba em sentido estrito. Neste último local, conseguiu suscitar o interesse de
alguns jovens para editar um jornal diferente do que editava no Preventório, o

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88 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

Mar de Histórias, de que acabaram saindo apenas três números em 2005. De sua
comissão de atividades participava o Comitê de Defesa de Direitos da Criança e
do Adolescente de Charitas e Jurujuba, cujo nome revela uma visão externa, mais
abrangente, do que seja o ‘‘bairro”.
2
Casadei (1988) encontrou registros, na Cúria Diocesana de Niterói, de diversos
casamentos entre militares aquartelados nesse forte e moças habitantes da região na
segunda metade do século XIX. No material de pesquisa atual há apenas um caso
desse tipo.
3
Há menção à freqüente ocorrência de pesca com cercados ou currais ao longo de
toda a costa de Niterói no século XIX, chegando a Jurujuba. Algumas referências
sugerem que fossem considerados como propriedades privadas, com o uso de tra-
balho escravo ou assalariado. Ver Casadei (1971:128).
4
Não há registros de população específicos para o que se chama hoje de Jurujuba,
até 1920. Os que existem cobrem toda a zona litorânea até Icaraí, o que impede a
comparação com os dados atuais. De qualquer forma, pode-se registrar que, nessa
freguesia ampliada, havia 2.479 habitantes em 1872, chegando a 9.056 em 1920.
Os dados, já específicos de Jurujuba, quanto ao número de habitantes, para as
décadas recentes são os seguintes: 1970 — 4.278; 1980 — 3.724; 1991 — 3.507.
Ver, ainda, para dados sobre a estrutura social contemporânea do bairro, Soares et
al., 2005.
5
Há informações interessantes retiradas das Memórias do Visconde de Taunay
(1889), a cujo original não se teve acesso: “em meados de 1852, fomos passar boa
temporada na Jurujuba, para lá da baía do Rio de Janeiro, por detrás do maciço
rochoso da fortaleza de Santa Cruz, um dos mais pitorescos locais da baía, que os
tem tantos e tão variados. Habitávamos vasta casa abarracada e em parte ladrilha-
da, pertencente ao governo e que meu pai ou alugou ou ocupou, gratuitamente,
por algum tempo — não sei bem. (...) Tenho bem vivas as amenas perspectivas que
se desfrutavam de diversos pontos da casa da Jurujuba, edificada no alto de suave
outeiro, já sobre o grosso da povoaçãozinha à esquerda, já sobre a praia da frente,
no nosso porto de desembarque, já sobre a praia da igreja, por onde se ia à praia de
Fora, isto é, à orla do mar alto, fora da barra” (apud Motta, 1989:9). Ver também
Casadei, 1971:113.
6
Casadei, 1988; Wehrs, 2002.
7
A cidade mesma de Niterói tem sua fundação associada à aldeia indígena de São
Lourenço, instalada no século XVI para o assentamento dos Temiminós de Arari-
bóia, e que ainda subsistia, decadente, no começo do século XIX, acossada pela
cobiça por suas terras, englobadas crescentemente pela expansão urbana.

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A família Costa 89

8
Borges, 1980; Pimentel, 2004.
9
Wehrs, 2002; Borges, 1980.
10
Uma informante local contou ao pesquisador com longos detalhes uma história
sobre essa nova construção: uma milionária argentina, proprietária do Cassino de
Icaraí, teria perdido toda sua fortuna. Assistindo à procissão de São Pedro, fez a
promessa ao santo de lhe reconstruir a igreja, caso recuperasse os seus bens — o
que veio a ocorrer, ensejando o cumprimento do voto.
11
A área plana em torno da Igreja de São Pedro, onde hoje estão as duas principais casas
da família Costa, pertencia a um grande proprietário, que a loteou por volta de 1936.
As casas mais antigas da família, uma ainda de pé, pertencente a um ramo colateral dis-
tante, ficavam mais para trás, nas duas encostas do caminho das praias de Adão e Eva.
12
A grande propriedade da ponta de Jurujuba lindeira ao morro do Morcego per-
tenceu, até os anos 1990, à família dos irmãos Darke e Jorge Bhering de Oliveira
Mattos, grandes empresários no Rio de Janeiro. Jorge é considerado um pioneiro
ecológico, tendo replantado áreas devastadas que doou a diversas prefeituras, como
o parque Darke de Mattos, na ilha de Paquetá. Os ‘‘notáveis’‘ de Jurujuba, entre os
quais Humberto e Hermínia, eram anualmente convidados para um jantar com a
última proprietária, dona Astréia — de quem se falava com grande respeito. Mais
recentemente, a população local assumiu a luta pela preservação dessa área, amea­
çada por um grande empreendimento imobiliário. Segundo dizem, conseguiram
até que a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, fosse até lá para confirmar o
status protegido da área.
13
É parte da representação local sobre essa mudança sua associação à abertura do
acesso rodoviário ao bairro, em função dos interesses estratégicos dos fortes duran-
te a II Grande Guerra. Antes havia apenas trilhas longas e tortuosas em direção a
Charitas e Itaipu.
14
Prefeitura Municipal de Niterói, 1996.
15
O Plano Diretor (Estatuto da Cidade) de Niterói classifica a “sub-região Jurujuba”
como parte da “região das praias da baía”. Ali estão oficialmente sediados o Colégio
Estadual Fernando de Magalhães, um posto de atendimento do Sistema de Saúde
da Família, a sede da Colônia de Pescadores Z-8 e a sede da Associação de Mora-
dores de Jurujuba. Nas estatísticas oficiais sobre o bairro no ano de 1996, a área
abarcava 882 domicílios, dos quais 78% tinham homens como chefes. A taxa de al-
fabetização era de 84,53 (uma das mais baixas do município), e 78% das unidades
sobreviviam com até três salários mínimos. Eram classificadas como ‘‘aglomerado
subnormal” (casas de favela) 49,37% das residências (Prefeitura Municipal de Ni-
terói, 1994, 1996). Muita atenção tem sido dada, na imprensa e nos documentos

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90 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

oficiais, à atividade de criação de mariscos, iniciada nos anos 1970 na área da


Várzea. Uma tese recente apresenta uma rica descrição dessa nova dimensão do
trabalho local, que o pesquisador ignorava quase totalmente (o que confirma o
dado analítico de uma considerável segregação do grupo que o realiza, uma rede
de origem nordestina que ocupa um espaço habitacional bem confinado (Ritter,
2007). É interessante que esses marisqueiros, situados no pólo social oposto ao
que freqüentou o pesquisador, tinham uma designação para o lugar de habitação
de seus informantes que ele próprio jamais ouvira: o ‘‘Ponto Final”.
16
Ele enfatiza essa influência explicitamente, mas pode-se imaginar que o fato de o
pai ter sido marinheiro durante a ‘‘Guerra de Quatorze” não seja irrelevante para tal
disposição.
17
Humberto pode descrever hoje com minúcia, e durante horas, todos os navios em
que esteve embarcado (inclusive no famoso e já então envelhecido encouraçado
Minas Gerais, que serviu como bateria flutuante em defesa de Salvador durante
a II Guerra Mundial), os oficiais sob cujas ordens trabalhou, as tarefas de que se
desempenhou, os portos em que atracou, os aborrecimentos funcionais em que se
envolveu.
18
O almirante da reserva Cunha Rodrigues foi nomeado ministro da Marinha pelo
presidente João Goulart poucos dias antes do golpe de 1964 (Gaspari, 2002). Ti-
vera uma brilhante carreira militar, mas era considerado próximo do Partido Co-
munista. Como lembra Humberto, fora chamado de “Almirante Vermelho” em
uma matéria do Time Magazine naquele período. Tinham se conhecido quando
Humberto ainda era grumete e vieram a manter uma longa amizade. Humberto o
escolheu como padrinho de uma de suas filhas.
19
Como é usual em se tratando de tais assuntos, Humberto não deixa jamais perfei-
tamente claros os seus “problemas mentais”, tal como se refere a eles em 2007. Por
vezes menciona o efeito dos tiros para quem se desincumbia, como ele, da função
de “ajustador” de canhões durante a guerra. Fala também do choque com a morte
do pai, em 1965, que se superpõe ao início de sua longa luta com os processos do
governo militar. Desde que o conheci, sempre manteve algum tipo de medicação
psiquiátrica, o que não o impede de se sentir pior em alguns momentos, com
alguma sensação penosa na cabeça que atribui ao “quarto de lua cheia” (Duarte,
1986:148, 244).
20
Humberto descrevia nos anos 1970, com riqueza de detalhes, as detenções, os in-
terrogatórios, a ilogicidade das acusações — mas, ao mesmo tempo, deixava revelar
que efetivamente circulara entre os grupos mais diretamente envolvidos, mesmo
que — provavelmente — sem o mesmo comprometimento ativo. A propósito de

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A família Costa 91

sua freqüentação do Club Humaitá (uma associação de ex-funcionários da Marinha


com sede na rua Visconde do Rio Branco, no Rio de Janeiro), por exemplo, con-
firmava que conhecia gente de lá, mas que aí não participara de reuniões políticas
formais.
21
Duarte, 1999.
22
Id., 1986.
23
Deve ter sido a época em que era conhecido localmente como apelido de “Fortu-
na”, apelido que já não mais se usava ao tempo da pesquisa, entre os anos 1970 e
2000.
24
Trata-se de uma extensa região demarcada pela estrada que leva do Saco de São
Francisco a Itaboraí e às praias oceânicas de Niterói. É uma região de ocupação
complexa, com uma mescla de segmentos de classe média e de classe popular.
25
Noutro trabalho sobre Jurujuba, Duarte (1986:24) assim descrevia a situação:
“muitas vezes me falou de seu próprio nervoso, das muitas lutas e sofrimentos, da
experiência de participação na guerra (serviu na Marinha, nos patrulhamentos cos-
teiros), que produziu tantos neuróticos de guerra com quem convivera regularmente
na Associação dos Ex-Combatentes. Discorre com sistemática reprovação sobre os
hospícios, de cuja violência teria sido vítima no Hospital do Exército. Certa vez per-
guntou-me de supetão se eu também tinha “problemas de... de... nervos” e como eu
respondesse que sim, disse que também ele, acrescentando “acho que é uma psico-
se”. Recomenda-me expressamente que não tome drogas; que ele próprio quando se
sente com uma alteração, “assim de vez em quando...”, trabalha intensamente, para
cair na cama de cansado”.
26
Como foi discutido por Duarte (1986), no entanto, o “encosto” ou a aposentadoria
por “nervoso” junto ao INSS eram (e talvez sejam ainda) estratégias de sobrevivên-
cia nada raras, sendo despropositado imaginar que se possa distinguir em tais pro-
cessos a “realidade” de uma perturbação físico-moral e a “realidade” das dificulda-
des do enfrentamento de determinadas condições ou características de trabalho.
27
Duarte, 1999.
28
Uma sua tia materna, dona Maria Viúva, tinha sido parteira antes dela e de “Mãe
Mulata”.
29
“Quando se fala em prevenção do câncer ginecológico, imediatamente vem à me-
mória a figura de Arnaldo de Moraes, grande mestre da ginecologia brasileira. Com
visão de futuro e espírito empreendedor, Arnaldo de Moraes foi o precursor da
prevenção do câncer ginecológico. Foi quem deu os primeiros passos rumo à mo-
dernização do ensino da ginecologia no Brasil, que, desde então, transformou-se
em especialidade. Em 1947, por seu ideal e realização, é fundado o Instituto de Gi-

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92 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

necologia da UFRJ, sendo o seu primeiro diretor. (...) Entre seus vários feitos cons-
tam a criação, em 1936, da revista Anais Brasileiros de Ginecologia, que seria durante
muitos anos o órgão oficial da cátedra, e a realização, em setembro de 1956, da
Assembléia de fundação da Sociedade Brasileira de Citologia. Além disso, foi presi-
dente da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro (1957/58 e 1959/60)
e diretor da Faculdade de Medicina da UFRJ de 1958 a 1961, ano em que faleceu.”
Disponível em: <www.medicina.ufrj.br/noticiasAntDet.asp?TipoConsulta=0&id_
boletim=62>. Acesso em: 22 maio 2007.
30
Cascudo, 1962; Santos, 2007.
31
A estética doméstica popular, tema que foge ao escopo deste trabalho, é no entanto
fundamental para a caracterização do “estilo de vida” ou da “imagem” que cada família
procura erigir de si mesma. Trata-se, em alguns casos, de verdadeiros altares, como su-
geriram, em momentos e contextos muito diferentes, Heye (1979) e Duarte (2006a).
32
Giumbelli, 2002; Gomes, 2004.
33
A festa tem se transformado muito nos últimos anos, mas por trás da parafernália
externa pode-se observar a mesma tensão entre a parte mais religiosa ou devocio-
nal, cujas manifestações a Igreja busca controlar, e a parte mais lúdica ou profana,
incluindo música e danças, além do risco dos excessos alcoólicos masculinos.
34
Jurujuba sempre fez parte de uma linha constante de contatos e trocas entre co-
munidades pesqueiras, informações e recursos de trabalho que iam desde o Caju,
do outro lado da baía, até Campos, para o norte. Itaipu e Maricá, no entanto,
eram muito mais próximas da auto-imagem local, mesmo que — nesse último caso
— não se praticasse a pesca marítima.
35
Duarte, 1999.
36
Na entrevista em que foi lido para Humberto este capítulo, em fevereiro de 2007,
ele acrescentou ter acabado de adquirir um novo motor, a diesel, mais confiável.
37
Posteriormente, ele disse ao pesquisador que só conseguira passar para o curso de
produção cultural, no campus da UFF em Rio das Ostras.
38
A possível relação entre o cuidado masculino precoce das gaiolas de passarinho e
o seu treinamento na “obrigação” para com a casa e a família foi tratada por Duarte
(1986:184) e tornará a aparecer no capítulo 3 deste livro.
39
Em 2008, vim a saber que ele foi bem-sucedido ao final do concurso, tendo-se
inscrito na Escola de Aprendizes Marinheiros de Vitória, por não querer ficar no
Rio de Janeiro (por causa da violência generalizada). É o primeiro descendente de
Humberto a cumprir com suas expectativas de ver a família na Marinha.
40
Atualmente ela está inscrita no curso de publicidade e marketing de uma univer-
sidade particular muito cara, o que a obriga a continuar trabalhando no comércio.
Sua mãe tem a esperança de obter para ela uma bolsa de estudos.

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A família Costa 93

41
Ela continua praticando a acupuntura, mas, aparentemente, apenas para os mem-
bros da família. Na visita de fevereiro de 2008, Pituta comentou que seu filho
estava melhor na escola, graças a um tratamento longo que sua tia lhe fizera com
aquela técnica.
42
“O padre Leonel Narváez é sociólogo, doutor pela Universidade de Cambridge,
membro do comitê temático de negociação com os guerrilheiros das Farc e com
o governo da Colômbia, e assessor da prefeitura de Bogotá, onde desenvolve um
trabalho de apoio a homens e mulheres vítimas da violência.” Disponível em:
<http://carosamigos.terra.com.br/do_site/sonosite/entrev_dez05_leonel.asp>.
Acesso em: 29 jun. 2007.
43
Em 2008, o marido de Minda tinha uma camioneta estacionada em frente à casa,
na qual se informava que iria trabalhar em transportes de cargas.
44
Quando o pesquisador estava revendo, nos anos 2000, com Humberto (na pre-
sença de sua quinta filha) o “quadro de parentesco” da família, traçado a partir das
informações da primogênita, foi mencionado com jocosa simpatia o caso dessa
prima que vivia com uma mulher — e que assim passou a figurar na seqüência dos
cônjuges de sua fratria.
45
Amélia e Humberto sempre se referiam aos descendentes de um João de Abreu,
seus primos “muito distantes” (inclusive “almirantes” e uma importante atriz do ci-
nema mudo nacional), que teriam morado numa das casas mais antigas do bairro.
46
Essa distribuição se alterou muito entre os anos 1970 e 2000, devido às sucessões
e ao destino das novas gerações. As informações sobre esses parentes, que aparece-
ram em diferentes ocasiões relacionados com Amélia ou com a linhagem de Hum-
berto, são inevitavelmente fragmentárias e freqüentemente ambíguas, o que reflete
diferentes momentos e condições sociais de atualização dos vínculos em questão:
um quadro permanentemente móvel, cuja sistematização foi aqui restrita às duas
linhagens descendentes de Amélia.
47
Duarte, 1999:35.
48
Ibid., p. 107.
49
Schneider (1968) constrói parte de sua interpretação do parentesco norte-ame-
ricano a partir de uma distinção entre “o parente como pessoa e a pessoa como
parente”, a qual possibilita a compreensão das múltiplas variáveis intervenientes no
reconhecimento desse vínculo.
50
Gomes, 2008b.
51
Duarte, 1999:124.
52
Ibid., p. 115.
53
Ibid., p. 252.

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Capítulo 3

A f a m í l i a Duarte

Que Deus abençoe este dia e a vós, para que nos


possais abençoar como membros descendentes de tão feliz união.
Discurso de uma neta dos Duarte em suas bodas de ouro (1950)

O segundo foco deste livro decorre da experiência pessoal e de pesquisa


suplementar de L. Duarte com os descendentes de uma rede familiar im-
plantada no começo do século XX no bairro do Estácio, na cidade do Rio de
Janeiro, e fortemente associada ao serviço público municipal. O casal fundador
dessa rede faleceu nos anos 1950, época em que a segunda geração atingia o
ápice de um processo de longa luta pela estabilização social. Sua casa original,
no entanto, continua habitada por um ramo colateral da família, num bairro
intensamente desqualificado, e povoa a lembrança e a imaginação de parte dos
ex-habitantes e seus descendentes.
Em 1900, casaram-se em São José das Taboas, então município de Santa
Teresa (depois Rio das Flores), no interior do estado do Rio de Janeiro, Sebas-
tião Ferreira Duarte e Maria das Dores de Oliveira Montenegro (Maricota). Ele
nascera em Marquês de Valença em 1877 e vivia à época em Taboas. Ela viera
do Rio de Janeiro para lá passar as férias em casa de uma irmã casada com
um comerciante português — no intuito de recuperar-se de um grande abalo
emocional: a morte precoce, por tuberculose, de seu noivo carioca.
Maricota estava a essa altura com 20 anos de idade. Vivia com Amélia,
sua mãe viúva, e dois de seus três irmãos na residência de seu falecido avô
paterno, na rua Vista Alegre, no Catumbi, a meia altura da encosta de Santa
Teresa. O pai morrera quando ela tinha 13 anos, atropelado por um bonde de
burro na avenida Passos (então rua do Sacramento), ao cochilar e cair do ban-
co de outro bonde, quando saía de seu plantão de jornalista encarregado da

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96 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

cobertura de eventos mundanos e culturais. A viuvez impusera a Amélia uma


convivência difícil com a família do morto, agravada pelas condições adversas
em que esta então se encontrava. As duas tipografias da família Montenegro
tinham fechado em 1898,1 por motivos hoje ignorados, ao cabo de 30 anos
de funcionamento, de modo que entre os descendentes dos dois casamentos
sucessivos do patriarca havia grande tensão por causa do espólio da empresa
e do seu fundador. Alijada da herança, Amélia dedicou-se ao único ganha-pão
honesto para uma mulher pobre no seu tempo: as costuras por encomenda
(no seu caso, para o Arsenal de Marinha). As duas filhas tiveram desde cedo
que ajudá-la, em detrimento de sua educação, que se tinha iniciado promis-
sora.
Sebastião não tivera melhor sorte na vida. Seus pais, descendentes de
imigrantes recentes, portugueses e suíços, haviam morrido durante o surto de
tifo, em 1893, deixando-o jovem, com seus três irmãos, na pequena cidade
de Marquês de Valença, onde tinham sido comerciantes. Valeu-lhes a ajuda de
um tio paterno, único parente próximo, ele próprio homem de poucas posses.
O irmão mais velho arrumou emprego na Estrada de Ferro do Rio das Flores,
que implantara em 1882 a Estação de Taboas, no vizinho município de Santa
Teresa. Sebastião começou a trabalhar cedo nos serviços de manutenção da
ferrovia, estabelecendo uma estreita relação de confiança com o engenheiro
encarregado daquele ramal, que viria a dar-lhe a carta de referência necessária
para seu estabelecimento no Rio de Janeiro — antes do casamento com Mari-
cota. Efetivamente, com essa carta, conseguiu tornar-se funcionário do Distri-
to Federal, como mecânico de sua garagem central.2 Com isso pôde ele alugar,
poucos anos depois, uma das casas do grande conjunto recém-construído na
Cidade Nova para abrigar os funcionários públicos mais pobres.3 Era o núme-
ro 138 da avenida Salvador de Sá — um endereço que viria a se constituir na
base físico-moral da família aqui estudada.
A Cidade Nova, assim conhecida desde o final do século XVIII por opo-
sição à Cidade Velha, colonial, constituía uma extensa área entre a praça Onze
de Junho (o antigo Rocio Pequeno) e o Catumbi, de um lado, e a Tijuca, de
outro, e que terminara de ser saneada com a consolidação do canal do Man-
gue e sua extensão até o mar, mediante a drenagem do Saco e dos mangues
de São Diogo, em 1910. O processo se iniciara com a construção da usina da
Companhia do Gás, ali estabelecida no ano de 1857, por iniciativa do barão
de Mauá.

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A família Duarte 97

A Cidade Nova incluía também a franja de terra firme continuamente


ocupada desde o século XVIII, que fazia a ligação entre os caminhos que vi-
nham da Lapa (rua de Mata-Cavalos, agora Riachuelo) e do Campo de Santana
(rua Nova do Conde da Cunha, hoje Frei Caneca) e os caminhos que subiam
para o Catumbi, o Rio Comprido, a Tijuca e São Cristóvão (sobretudo a rua do
Engenho Velho, hoje Haddock Lobo). Um marco importante fora a construção
do Chafariz Grande e do seu vizinho Chafariz do Lagarto, pelo vice-rei dom
Luís de Vasconcelos, em fins do século XVIII. A área chamou-se, até o começo
do século XX, Mata-Porcos e, apesar do nome deselegante, foi ocupada por
quintas e palacetes, dando continuidade ao prestígio residencial oitocentista
da rua de Mata-Cavalos. Sua localização tinha diversas vantagens, como a pro-
ximidade da estação principal da Estrada de Ferro Dom Pedro II, inaugurada
em 1858; o imediato acesso ao Campo de Santana, principal jardim público
da cidade, remodelado por Glaziou em 1873; e a proximidade da primeira
biblioteca municipal da cidade, fundada em 1874. Havia, porém, um senão: a
transferência para a área entre o Catumbi e Mata-Porcos da Casa de Correção e
Detenção (hoje Presídio Frei Caneca) em 1835. Mas foi a urbanização do canal
do Mangue que permitiu a ocupação sistemática da banda norte desse bairro,
ao longo da nova avenida Salvador de Sá.
Entre as muitas obras ensejadas pelas reformas do prefeito Pereira Passos
(1902-06) encontram-se a abertura dessa avenida4 e a construção aí de uma
vila operária,5 que obedecia aos princípios higienistas mais modernos à época.
Uma vila menor, mas no mesmo estilo, foi erguida no bairro do Catete, à bei-
ra do Outeiro da Glória — depois demolida com a construção do Metrô nos
anos 1970.6 Essas vilas operárias atendiam, ainda que timidamente, à imensa
demanda habitacional gerada pelas demolições na Cidade Velha durante as
reformas do começo do século passado e pela política de restrição aos cor-
tiços característicos do Rio oitocentista. Na verdade, o problema da carência
e precariedade da habitação popular se acentuava desde os últimos anos do
Império. Data de ����������������������������������������������������������
1882 o primeiro decreto favorecendo a construção de casas
populares higiênicas,7 e em 1889 criou-se a controvertida Companhia de Sa-
neamento do Rio de Janeiro, cujas obras de péssima qualidade acabariam por
levar à suspensão de suas atividades. A população da cidade crescera muito
em termos absolutos: em 1906, eram 811.444 habitantes, segundo Benchimol
(1992:172), de longe a maior do Brasil, já que Salvador e São Paulo tinham
pouco mais que 200 mil. Além disso, o “bota abaixo” (como ficara conhecida a

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98 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

reforma de Pereira Passos) afetava gravemente as suas condições de habitação


— sobretudo levando-se em consideração a precariedade do transporte e do
uso do solo suburbano.
A Cidade Nova passava por outras transformações cruciais nesses pri-
meiros anos do século XX. �������������������������������������������������
Na sua zona limítrofe com o centro, a área antes
conhecida como Rocio Pequeno, junto aos mangues que por ali adentravam
a cidade, passou a se chamar praça Onze de Junho (comemorativa da data da
batalha do Riachuelo) e se tornou o bairro popular mais cosmopolita do Rio
de Janeiro. Imigrantes espanhóis, italianos e judeus8 de várias procedências ali
se misturavam com milhares de migrantes da Bahia — pobres e negros. A pra-
ça Onze transformou-se no reduto dos sambistas, e seus fundadores até hoje
são lembrados nos desfiles das escolas de samba, na “ala das baianas”, quesito
obrigatório dos desfiles.
Em torno de 1906, quando aquele processo era ainda incipiente, o
novo núcleo da família Duarte, consolidado com o nascimento de dois filhos
(o primeiro, João Baptista — assim chamado em função do seu santo ono-
mástico —, em 1901, e o segundo, Rolembergue, em 1903), veio a ocupar
a casa da avenida Salvador de Sá, acompanhado de Amélia. Fora oportuna a
mudança, dada a difícil convivência de Amélia e seus filhos com a família do
falecido marido, no casarão da rua Vista Alegre. Além disso, ali perto, numa
chácara da rua Itapiru, morava uma das melhores amigas da família de Mari-
cota, casada com um rico comerciante português. Esta viria a prestar-lhe apoio
nos freqüentes momentos de dificuldade causados pelo aumento da família e
a precariedade da renda de Sebastião. Também para os parentes de ambos os
lados que viviam em Valença e Taboas a casa da Salvador de Sá9 passou a cons-
tituir uma referência obrigatória nas vindas à “Corte”,10 sobretudo da família
de Georgelina, a irmã de Maricota era funcionária dos Correios e esposa do
principal negociante de Taboas.
João, o primogênito, aos 14 anos foi empregado como auxiliar de seu
pai, em regime precário, no serviço da prefeitura, tendo que interromper por
um longo período sua escolarização. Amélia já então colaborava menos na
manutenção da casa, devido à idade avançada. Além disso, tinham nascido
mais dois filhos do casal: Milton (1905) e Walquíria (1911). João, que sempre
demonstrou grande dedicação aos pais, nunca se queixou dessas condições
em suas reminiscências. Pelo contrário, enfatiza as muitas oportunidades de
lazer que os momentos de folga lhe propiciavam em sua infância e juventu-
de. Nadar na praia de Santa Luzia, brincar no Campo de Santana, na Quinta

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A família Duarte 99

da Boa Vista (cujos jardins tinham sido remodelados e abertos regularmente


à visitação em 1911) ou mesmo nos terrenos descampados do bairro (onde
lhe apeteciam particularmente os abricós-da-praia), acompanhar os pais em
passeios pela nova avenida Central, seguir os préstitos, sociedades e corsos do
Carnaval no centro do Rio, tudo isso eram lembranças caras de divertimentos
baratos — gratuitos na verdade — e todos então bastante recentes, fruto das
reformas urbanas do começo do século XX, que beneficiavam sobretudo as eli-
tes e aqueles que — como os Duarte — habitavam próximo a todas essas faci-
lidades. Um serviço de transporte público bastante eficiente naquela parte da
cidade permitia, além do mais, fácil e rápido acesso aos seus locais de trabalho
e a numerosas escolas públicas.11 Havia outras diversões, como as viagens de
trem para passar férias com os parentes do interior, um piquenique na Penha,
uma ida a Paquetá ou um filme de Tom Mix no pequeno cinema pioneiro no
Catumbi. João guarda a lembrança de seus primeiros anos na casa da família
Montenegro, com seus sinais de prestígio burguês ainda preservados.12 Tam-
bém manteve uma forte ligação com a família moradora da rua Itapiru, de cuja
casa recorda o amplo jardim e o contínuo som do piano.13 A lembrança dos
muitos espetáculos públicos ilumina uma dimensão importante de sua infân-
cia e juventude: as exposições internacionais de 1908, na Praia Vermelha, e de
1922, na esplanada do Castelo; uma apresentação da dançarina Ana Pavlova
na Quinta da Boa Vista; e as óperas assistidas na “torrinha” do recém-inaugu-
rado Teatro Municipal.14
A essas amenidades contrapunham-se os severos desafios da manutenção
regular da família. A única filha solteira do tio que ajudara a criar Sebastião
veio passar a velhice na casa da Salvador de Sá, como agregada, até sua morte.
Por outro lado, Amélia faleceu em 1917, deixando assim de contribuir com a
renda do seu trabalho de costura. Porém, graças ao aluguel subsidiado da resi-
dência e aos salários estáveis de Sebastião e de João, os demais filhos puderam
prosseguir um pouco mais nos estudos. A capacidade de trabalho de Sebastião
o levou progressivamente ao nível mais alto de sua carreira de trabalhador
manual: mestre das oficinas de mecânica. Sua habilidade era considerada no-
tável, tendo inventado uma peça nova para as engrenagens dos carros Ford
da garagem do serviço municipal (de que a família sempre lamentava não ter
registrado a patente). Na tentativa de obter recursos extras,15 ocupava-se em
casa de pequenos inventos e de trabalhos de marcenaria fina, para os quais
veio a adaptar com êxito uma máquina de costura.

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100 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

O crescimento da família (com o nascimento de mais um filho, Vladimir,


em 1915) e a contínua flutuação de familiares agregados exigiram a constru-
ção de um quarto anexo no quintal dos fundos e, já por volta de 1950, de
uma varanda coberta na área de acesso interno, assim aumentando bastante a
comodidade da casa, que tinha originalmente apenas uma sala e três quartos.
Essa última obra foi realizada pelo próprio serviço da prefeitura que supervi-
sionava o conjunto habitacional.
O formato geral de um conjunto de casas geminadas com dois andares
certamente facilitou desde o início a formação de laços de amizade e solidarie-
dade com numerosas famílias vizinhas. Na memória familiar (e na coleção de
fotografias), os personagens dessas famílias aparecem com destaque, variando
ao sabor das gerações, das coortes e dos deslocamentos eventuais. Embora a
rede prioritária de relações tenha sempre sido a família extensa, com os pri-
vilégios de algumas linhagens ou personagens oscilando ao longo do tempo,
relações perenes se estabeleceram entre alguns desses vizinhos, subsistindo
mesmo após seu afastamento daquele endereço.16
É muito provável que o adensamento das relações entre gente que se
considerava “decente” na área do conjunto tenha sido reforçado pela amea-
ça de desclassificação social representada pela crescente concentração, num
conjunto de ruas próximas, do baixo meretrício, expulso de várias partes do
centro da cidade (como a rua da Conceição). A repressão à prostituição pú-
blica nas regiões centrais começara em 1896, somando-se às reformas de Pe-
reira Passos, que destruíram boa parte dos imóveis onde antes se abrigava. A
isso veio acrescentar-se o acelerado crescimento das fileiras das “profissionais”,
com a imigração de jovens judias pobres do Leste europeu durante a I Grande
Guerra (as chamadas “polacas”), arrebanhadas por uma complexa rede inter-
nacional.17 A partir de 1906, a dispersão central ensejou novas concentrações
na Lapa e no Mangue (onde funcionava confinada a alguns quarteirões entre
o canal e o largo do Estácio, à maneira de um gueto). Neste último local, o
processo teria atingido o seu auge por volta de 1930, vindo a decair a partir
de 1940, com a abertura da avenida Presidente Vargas e outras modificações
no entorno do bairro.18
Rolembergue foi o primeiro filho a sair da casa paterna, casando-se com
Sylvina (de uma antiga família de comerciantes que residia, à época, na rua
Frei Caneca) em 1925 e indo morar primeiramente numa pensão e, depois,
sucessivamente, com uma avó e com os pais da esposa, no Andaraí e na Tiju-

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A família Duarte 101

ca, respectivamente. Em 1926 nasceu sua única filha, que viria a iniciar um
curso superior em letras, interrompido para casar em 1947 com um contador,
funcionário de cartório de imóveis (depois tabelião por muito tempo), sendo
ela a primeira, entre vários parentes, a se estabelecer no bairro de Copaca-
bana, em 1948.19 O marido tinha sido seu colega no Colégio Vera Cruz, em
Vila Isabel. Seus pais também se mudaram para Copacabana mais ou menos à
mesma época.20 Rolembergue entrara para o serviço público municipal muito
jovem, em cargos humildes, tendo galgado rapidamente uma posição eminen-
te, como funcionário das influentes secretarias de Viação e Obras e de Finan-
ças.21 Sua filha teve também uma única filha, formada pela Escola Normal e
professora do estado, que veio a se casar e dar à luz, por sua vez, dois filhos.
Mora hoje no Arpoador. Rolembergue teve um papel articulador fundamental
a partir da segunda geração. Graças a sua influência, tornou-se o mediador do
ingresso de vários parentes no trabalho “na prefeitura”, como se dizia na fa-
mília. Seu irmão Vladimir, sua irmã Walquíria (após a doença do marido), um
de seus sobrinhos (filho de Milton) e dois primos (por parte de mãe) deveram
a ele seus empregos. Destes dois últimos, um veio a se formar em medicina,
estabelecendo-se depois em Taboas, onde seu pai tinha sido chefe da estação
ferroviária por longos anos. O outro, considerado meio irresponsável, acabou
vindo morar na casa da Salvador de Sá muito mais tarde, como se verá.
Milton foi o segundo a deixar a casa, em 1931, ao se casar com uma
prima irmã que morava em Paty do Alferes (cidade da família de seu pai),
indo residir numa região suburbana ainda quase rural à época, Ricardo de
Albuquerque, onde Sebastião acabou adquirindo também um pequeno lote de
terras para produção e consumo doméstico de frutas. Laura era filha de uma
irmã de Sebastião que morreu cedo, o que levou o marido a colocar a filha
numa instituição religiosa em Paty do Alferes, onde foi criada e educada até
seu noivado com o primo. Milton desde criança se distinguira por uma grande
habilidade no desenho, o que lhe valeu um emprego público municipal nessa
função, conseguido pelo irmão mais velho. Apesar das dificuldades de susten-
to, que os fizeram mudar freqüentemente de residência, criaram dois filhos:
o mais velho tornou-se também funcionário público, e o segundo, após os
cursos do Colégio Militar e da Academia Militar das Agulhas Negras, chegou
a oficial do Exército, na arma da Cavalaria. Nenhum desses dois teve filhos.
Milton e Laura tinham, porém, adotado um casal de sobrinhos, ainda muito
pequenos, filhos de um irmão de Laura e que foram por eles criados, tendo-se

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102 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

posteriormente também encaminhado para o serviço público municipal, onde


fizeram longa e bem-sucedida carreira. O motivo da adoção fora a morte da
cunhada, por tuberculose, logo após o nascimento do segundo filho.22 Esses
filhos adotivos (e também sobrinhos) vieram a se casar também com funcio-
nários públicos; um teve três filhos, e a outra, uma filha. O primogênito do
primeiro já tem, por sua vez, dois filhos. A única filha da segunda também
já esteve casada, mas não teve filhos. Os quatro membros da quarta geração
dessa linhagem ou já concluíram a universidade ou a estão cursando (direito,
turismo, publicidade, química e engenharia industrial). Moram todos no bair-
ro da Tijuca.
Walquíria casou-se em 1934 com um empregado do comércio, filho de
um guarda civil residente no Engenho Novo, e ambos foram morar na casa
da Salvador de Sá após o casamento. Logo após o nascimento de sua segunda
filha, em 1942, ele contraiu tuberculose, numa época em que a doença ainda
representava um grave risco para o enfermo e para os mais próximos. Teve
que abandonar o emprego de gerente de uma importante farmácia e passou a
viver recluso na casa, ocupando sozinho um quarto mais isolado, cercado de
mil preocupações profiláticas. Walquíria, que já tinha tido uma breve expe-
riência de trabalho em solteira, na secretaria de um jornal, foi obrigada a tra-
balhar fora, exercendo diversas ocupações temporárias, como a de chapeleira
no Clube Municipal, enquanto não conseguia um emprego público, afinal
obtido com a mediação de seu irmão junto aos vereadores, como telefonista na
Câmara Municipal. As duas filhas tiveram seus estudos garantidos pela famí-
lia e formaram-se na Escola Normal nos anos 1960, tornando-se professoras
municipais e estaduais.23 Nenhuma das duas teve filhos, embora uma delas
tenha ficado por muitos anos casada com um funcionário do Banco do Brasil,
já falecido.
Vladimir, o caçula, só se casou em 1947, tendo-se mudado com a esposa
para um apartamento alugado. A essa altura, também ele já estava há muito
tempo no serviço público municipal. Esse casal não teve filhos e vivia sempre
muito ligado à família da esposa, de ascendência italiana. A viúva de Vladimir
— primeiro a falecer de sua fratria — mora ainda hoje no bairro da Urca, num
apartamento herdado de uma irmã.
O primogênito João foi o último a deixar a casa paterna. Combinavam-se
em suas memórias a ênfase no divertimento juvenil (o carnaval, os esportes, as
amizades, os passeios, as numerosas admiradoras, já que era considerado um

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A família Duarte 103

homem muito atraente) e as referências pontuais a dificuldades que não pare-


cem ter sido de pouca monta (o trabalho precoce e o adiamento dos estudos;
a gagueira na infância; um desastre rodoviário que o traumatizou a ponto de
não mais voltar a dirigir; uma promessa cercada de mistério a Nossa Senhora
da Penha, religiosamente cumprida, ano após ano). Após um longo período
de trabalho como escriturário e de permanente apoio à família, conseguiu
retornar aos estudos, tendo-se formado em ciências contábeis em 1943 — aos
42 anos, portanto. Foi o único de sua fratria a retornar aos estudos, ainda
que tardiamente, e a concluí-los. Já estava com 48 anos quando conheceu
sua futura esposa em Petrópolis, onde veraneava na casa de uma prima (filha
da tia de Taboas e também casada com um negociante). Casaram-se no ano
seguinte, apesar da resistência da família e do círculo social da mulher, que
tinha uma posição eminente na burguesia local. Compraram uma pequena
casa em Niterói, com recursos da mulher, onde residiram durante poucos
anos e tiveram os dois primeiros filhos. Depois, construíram uma casa num
terreno de propriedade da família da mulher, em Petrópolis, para onde se
mudaram e tiveram a terceira e última filha. Como João ainda trabalhava no
Rio, mas estava perto de aposentar-se, resolveu ficar passando a semana com
sua família de origem, na casa da Salvador de Sá, subindo para a serra apenas
nos fins de semana. Prorrogou assim por mais quatro anos sua longa e intensa
relação com a velha casa. Esse casal chegou a ter seis netos, de seus três filhos,
todos casados. Apesar de ter sido o último casamento de sua fratria, esse foi o
mais prolífico em sua descendência. Embora os três filhos tivessem começado,
cada um a seu tempo, os estudos universitários, apenas dois os completaram,
tendo o filho do meio aderido ao movimento da contracultura, no começo dos
anos 1970. Este acabou tendo quatro filhos: um mora hoje em Manaus com
a família da mãe, e as demais com o pai em Petrópolis. Seu irmão reside no
Flamengo, e sua irmã, no Arpoador. Nessa linhagem, na quarta geração, três
membros já terminaram seus cursos universitários (economia, marketing e
administração), estando dois ainda no 2o grau.
Muitos outros parentes residiram por períodos mais curtos na Sal-
vador de Sá, ao longo do século. Além de Amélia, mãe de Maricota, já se
havia mencionado a filha solteira do velho tio de Sebastião, que lá veio a
falecer. A mãe de sua grande amiga da rua Itapiru ali esteve morando por
algum tempo, depois da falência do genro e a morte da filha. Um sobrinho-
neto de Maricota, filho da sobrinha que morava em Petrópolis, viveu na

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104 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

casa algum tempo, preparando-se para um concurso da Panair, nos anos


1940. Uma das netas da irmã de Maricota nasceu nessa casa, onde se hos-
pedava sua mãe à época.
Os três filhos de João, criados em Petrópolis, vieram habitar a casa da
Salvador de Sá nas décadas de 1960 e 1970, quando então iniciaram seus
cursos universitários: o primeiro em direito, o segundo em física e a terceira
em belas-artes. Após a morte de Sebastião e Maricota, respectivamente em
1955 e 1956, e a aposentadoria e mudança definitiva de João para Petrópolis,
em 1959, a casa ficou com a linhagem de Walquíria, abrigando seu marido
inválido (que morreu em meados dos anos 1960) e suas duas filhas, uma das
quais, após casar, mudou-se para o Grajaú, onde tinham as três conseguido
comprar um apartamento com suas economias. Quando o filho mais velho
de João veio ao Rio para cursar a faculdade, foi lá morar com a tia e a prima.
Elas já estavam preparando sua mudança para um pequeno apartamento que
haviam comprado em Copacabana. L. Duarte lá ficou morando sozinho entre
1969 e 1973 (período em que abrigou muitos hóspedes temporários, estudan-
tes, assim como seus próprios irmãos), e depois casado, entre 1973 e 1978,
quando, formado e empregado como funcionário público federal, transferiu-
se para um apartamento no bairro da Glória, adquirido com uma herança de
sua família materna. Walquíria, que continuava como ocupante oficial da casa,
devido a sua condição de funcionária pública municipal, cedeu o uso da mes-
ma a um primo distante, sobrinho-neto de Maricota, também funcionário “da
prefeitura” (graças ao primo Rolembergue), que se encontrava em dificuldades
financeiras. Hoje, é ainda a família dele que ocupa a casa, apesar da decadên-
cia do bairro e do conjunto. Em 2006, completou-se um século de relação dos
Duarte com a casa da Salvador de Sá.
L. Duarte começou sua carreira profissional como funcionário público na
UFRJ, por indicação da filha de um grande amigo de seu pai (seu “colega de
repartição”), funcionária prestigiosa da reitoria. Seu cargo de tradutor só al-
guns anos mais tarde se transformaria no posto inicial de uma carreira docente
na mesma universidade. Assim, até a terceira geração, os únicos descendentes
do casal fundador que não se tornaram funcionários públicos, civis ou milita-
res foram seus dois irmãos (uma, empresária, e o outro, rentier) e a filha de seu
tio Rolembergue, que sempre foi dona-de-casa. E, mesmo na quarta geração,
a bisneta mais velha do casal de referência, nascida no final dos anos 1940,
ainda seguiu o mesmo rumo.24

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A família Duarte 105

O fato de a casa dos Duarte se achar próxima dos recursos urbanos em


geral influenciou bastante a intensa dedicação aos esportes que caracterizou a
vida dos homens da segunda geração. João e Rolembergue praticaram regular-
mente a natação e o remo nos clubes do Boqueirão do Passeio e Guanabara.
Milton e Vladimir dedicaram-se ao basquete, tendo o primeiro se tornado
mais tarde juiz e dirigente da Confederação Brasileira de Basquetebol.
O carnaval carioca foi uma das paixões da família. Nos álbuns de foto-
grafias, muitas são as fotos carnavalescas dos membros da segunda, terceira
e mesmo quarta gerações. Tratava-se sobretudo de atividades coletivas, em
grupos fantasiados no carnaval de rua ou em blocos de foliões aparentados
ou conhecidos em clubes ou “sociedades” carnavalescas. Mas há também vá-
rias fotos em que aparecem crianças da terceira geração, posando com suas
fantasias de carnaval.25 As atividades carnavalescas, embora obedecessem a
distribuições sociais nítidas e importantes, eram as que mais permitiam apro-
ximações entre segmentos distanciados no mapa social. João, por exemplo,
conta que, num dos carnavais de sua juventude, flertou com uma foliã que lhe
permitiu acompanhá-la até sua casa. Ao deixá-la à porta de um palacete em
Botafogo, deu-se conta de que não tornaria mais a vê-la, consciente da distân-
cia social que a inversão carnavalesca momentaneamente apagara.
A experiência do carnaval não se resumia ao “tríduo momesco”. Ela se
prolongava no trabalho de confecção das fantasias para o ano seguinte, ou na
freqüentação nos bailes das “sociedades”, fora da época (as escolas de samba
ainda eram então incipientes). Os sambas ou marchas carnavalescas faziam
parte do repertório musical de vários outros tipos de bailes ou festividades,
havendo inclusive versões para piano que eram executadas em festas domés-
ticas. Na própria casa da Salvador de Sá chegou a haver um piano, por pouco
tempo, mas, pelo que consta, ninguém da família chegou a aprender a tocá-lo
bem.26
Apesar dessa disposição festiva da família, n������������������������
ão há uma única foto de
Maricota, ao longo de toda sua vida, em que ela esteja sorrindo. O rigor de
seu controle moral era notório e não dava margem a contestações por parte de
seus descendentes. Certa vez, ao visitar João em Petrópolis, reclamou que ele
estivesse usando bermudas: “vá se vestir corretamente”, disse-lhe. Sebastião
era mais afável e bonachão, mas, afora seus trabalhos manuais e inventos do-
mésticos, tinha como única distração os charutos — com que os filhos sempre
o presenteavam.

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106 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

O quadro de parentesco não revela uma clara incidência da transição de-


mográfica entre as gerações examinadas. As gerações ascendentes, em todas as
direções e níveis conhecidos, já não tinham sido muito prolíficas, afora o caso
de Florentino José Pedro Montenegro (avô de Maricota), que tivera oito filhos
de dois casamentos. O casal aqui chamado de original teve cinco filhos.27 Es-
tes, por sua vez, tiveram no máximo — e num só caso — três filhos. De todos
os descendentes, o único caso discrepante é o do filho do meio de João (com
quatro filhos), explicável pela peculiaridade de sua trajetória alternativa e tal-
vez também pelo fato de ter feito o único casamento hipogâmico na terceira e
quarta gerações.
Os membros vivos da segunda e terceira gerações nada sabem sobre as
estratégias reprodutivas de seus ascendentes (ou pelo menos assim dão a en-
tender). Todos se dizem católicos, mas poucos são praticantes ou devotos, o
que faz supor que não se submetessem aos rígidos preceitos da Igreja a esse
respeito. Essa variável só é evocável no caso das esposas de Milton e de João,
ciosas de sua ortodoxia religiosa. A primeira teve dois filhos, e a segunda, três
— apesar de ter casado já com 37 anos. Assim, cabe supor que este último
caso tenha sido o único diretamente influenciado pelo ethos religioso de um
dos cônjuges.28 Considera-se, na família, que os dois casais inférteis nessas
gerações o tenham sido por motivos físicos, e não intencionais. O fato de
três membros da terceira geração não terem casado nem tido filhos não pode
deixar de ser levado em conta nesse contexto, seja qual tenha sido o motivo
desse celibato.
Na verdade, o mapa religioso da família era mais complexo. O catolicismo
formal e oficial convivia, para muitos de seus membros, com a experiência do
espiritismo kardecista. Isso começou — segundo alguns relatos — com a crise
sofrida por Milton em sua adolescência (ou seja, nos anos 1920), quando ele
passou a “falar em línguas”, como foi então interpretado o seu caso. De qual-
quer modo, é certo que isso não envolveu tratamento psiquiátrico (embora
houvesse o caso de um tio de Maricota que fora internado num manicômio).
O fato é que as crenças espíritas já se haviam insinuado na família nessa oca-
sião.29 Segundo uma das filhas de Walquíria (nascida em 1935), em sua gera-
ção, parte da família participava regularmente de sessões de mesa, com toalha
branca e copo d’água, na casa da Salvador de Sá. Era uma atividade intensa,
congregando não apenas parentes próximos, de toda uma linhagem colateral
(um irmão de Maricota e seus descendentes), mas também diversos vizinhos,

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A família Duarte 107

em torno de Milton, considerado um médium de grande capacidade. Parte da


família de sua cunhada Sylvina, também próxima do espiritismo, veio também
a participar desse circuito de crença. Outros membros da família mantinham
distância em relação a essa dimensão religiosa, como João e Rolembergue, ou
eram francamente refratários, como as esposas de Milton, João e Vladimir.
Milton conduzia, aliás, essas sessões na casa dos pais provavelmente devido à
resistência de Laura.30 De qualquer modo, essa experiência constituía um foco
moral importante para o sentimento de participação familiar em torno da casa
da Salvador de Sá e reforçava sua aura para muitos dos membros da rede.31
Segundo sua sobrinha, Milton recebia diversos espíritos, às vezes relacionados
com seus episódios de glossolalia (ou de psicofonia), e produzia freqüente-
mente mensagens psicografadas, de interesse dos parentes vivos ou referentes
aos parentes falecidos. Porém, ela enfatiza que, nesse círculo, não se buscava
comunicação direta com os espíritos de parentes, nem se especulava sobre
reencarnações no âmbito direto da família.32
Por outro lado, cumpriam-se todos os rituais da Igreja Católica e manti-
nham-se muitas de suas devoções. Todos os membros da rede foram batizados
e realizaram casamentos católicos, à exceção de dois membros da terceira ge-
ração, que casaram apenas no civil. A primeira comunhão de alguns membros
da segunda geração e de praticamente todos os da terceira está registrada nos
álbuns de fotografias familiares. Essa prática católica se restringiu à metade
dos membros da quarta e da quinta gerações. Há registro de muitas devoções
católicas específicas nas duas primeiras gerações: por exemplo, Nossa Senhora
da Assunção para Maricota; são Sebastião para Sebastião; são João Baptista e
Nossa Senhora da Penha para João. O quarto de dormir do casal original na
casa da Salvador de Sá tinha a parede do fundo quase inteiramente coberta de
imagens religiosas, à volta do espaldar da cama. Os descendentes lembram-se
de pelo menos dois enormes quadros de são Jorge e de Jesus Cristo, desenha-
dos a carvão por Milton. João — assim chamado de acordo com a antiga usan-
ça de homenagear o santo do dia de nascimento — sempre conservou consigo
uma gravura da Nossa Senhora da Glória venerada na catedral de Marquês de
Valença e manteve — como já se mencionou — uma promessa vitalícia a Nos-
sa Senhora da Penha. Sebastião confeccionou, na técnica de marcenaria fina,33
que era o seu hobby predileto, alguns oratórios e peanhas. Os maiores e mais
elaborados abrigavam um são Sebastião e um são João (que João levou consigo
para sua nova residência). Uma das filhas de Walquíria recebeu como segundo

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108 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

nome próprio o de Teresinha, no apogeu da popularidade da devoção a santa


Teresinha de Jesus (ou de Lisieux).34 Até a segunda geração, permaneceu como
foco de interesse devocional complexo a festa de Nossa Senhora da Glória rea­
lizada em Marquês de Valença, que nas primeiras décadas do século XX fora
um ponto de encontro e lazer importante para a família.
As devoções familiares das duas primeiras gerações incluíam diversos
elementos esparsos, remanescentes da religiosidade popular brasileira, tais
como disposições específicas para o destino do cordão umbilical, a colocação
de plantas contra mau-olhado num vaso atrás da porta de entrada da casa, o
presente de uma jóia em formato de figa aos recém-nascidos etc. Essas práticas
foram perdendo o sentido ao longo da segunda geração e sendo substituídas
certamente por outras, de difícil percepção, nas gerações seguintes, dada a dis-
persão da família e a complexidade dos rumos tomados por cada linhagem.
Nas primeiras gerações, uma ampla rede de igrejas católicas da cidade
acolhia suas eventuais devoções. Nas proximidades da casa da Salvador de
Sá havia a Igreja do Divino Espírito Santo, no limite norte da Cidade Nova,
que remonta ao século XVIII e hoje se destaca, quase isolada, no meio de uma
grande área de demolições, próxima ao centro administrativo da prefeitura.
Tornara-se a sede da Paróquia do Espírito Santo em 1865, incluindo Mata-
Porcos e o Catumbi. Alguns membros da segunda geração se referem à Capela
de Nossa Senhora da Conceição, construída em 1886, no largo do Catumbi,
e que foi demolida à época da abertura do túnel Santa Bárbara. Essa igreja
fez durante algumas décadas pendant com uma outra, ainda mais próxima
da avenida Salvador de Sá, a Igreja de Nossa Senhora da Salete, em estilo
neogótico, cuja construção fora iniciada em 1918 com uma missa do cardeal
Leme. O cemitério da Venerável Ordem Terceira de São Francisco, inaugurado
em 1850,35 completava a zona moral religiosa do antigo Catumbi, fortemente
ligada aos antepassados de Maricota.
Embora a sede da Primeira Igreja Batista do Rio de Janeiro fosse também
muito próxima, em frente ao complexo do Hospital dos Bombeiros, com seu
frontão neoclássico demarcando o largo em que se conectam a avenida Salva-
dor de Sá e a rua Haddock Lobo, a família não chegou a ter nenhuma relação
com o mundo protestante. O primeiro — e aparentemente único — sinal des-
se processo, que acabou se tornando tão importante nos segmentos populares
da sociedade brasileira contemporânea, foi a conversão�������������������������
à religião batista, nos
anos 1960,���������������������������������������������������������������
de um sobrinho-neto
��������������������������������������������������������
de Maricota, que depois se tornou pastor.

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A família Duarte 109

Porém, trata-se de um ramohá muito afastado do Rio de Janeiro e do convívio


com a rede aqui estudada.
As descendências de Rolembergue, Walquíria e Milton se mantiveram
próximas da religião. A filha de Rolembergue disse ter acabado de cumprir
uma promessa a Nossa Senhora da Cabeça numa capela de difícil acesso no
bairro do Jardim Botânico. Numa entrevista com a filha mais velha de Walquí-
ria, a forte presença do kardecismo vem acompanhada de certa atração pelo
movimento carismático da Igreja Católica. Ela convivera na juventude com o
círculo espírita de seu tio Milton e hoje freqüenta regularmente um centro em
Copacabana. Diz que teve um ou dois contatos, já adulta, com a umbanda,
“para conhecer”, e que gostaria de dedicar-se ao seu desenvolvimento espi-
ritual, mas que se considera já fraca para tais atividades. Seus sentimentos
nessa área estão fortemente ligados, pelo menos a essa altura de sua vida, à sua
capacidade de fazer contato (em sonhos muito vívidos) com os seus parentes
mais caros logo depois de mortos (o que teria ocorrido pelo menos com sua
avó materna e com sua mãe). Fala também de seu sentimento de parentesco
espiritual com um primo de sua geração. Talvez por influência de um círculo
social de que participam ela e sua irmã (formado sobretudo por antigas cole-
gas professoras), teve contato com a pregação, em estilo carismático, do padre
Marcelo. Tem alguns de seus discos, que diz ouvir com satisfação, e também
costuma pôr um copo d’água ao lado da televisão durante o seus programas. Já
os descendentes dos dois filhos sobreviventes de Milton se apresentam como
católicos, tendo casado na igreja e mantido a prática do sacramento da pri-
meira comunhão para seus descendentes. São exemplos dos caminhos mais
recentes da religiosidade no interior da rede.
A descendência de João, por outro lado, se caracteriza por um grande
afastamento das formas institucionalizadas de religião. Seus membros estive-
ram mais próximos das versões psicologizadas da pessoa desde os anos 1970,
mas também circularam por diversas práticas associáveis ao estilo “nova era” e
à contracultura, particularmente o filho do meio, que chegou a freqüentar os
círculos do Santo Daime na Amazônia, no começo de sua institucionalização.
A ênfase acentuada nas estratégias de reprodução por meio do serviço
público e a conseqüente perda de interesse por estudos mais prolongados
na segunda e terceira gerações talvez tenham contribuído para criar entre a
maioria dos membros da família uma espécie de desconfiança em relação a um
ethos mais intelectual ou interiorizado. “Música clássica me deixa deprimida”,

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110 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

disse certa vez uma das mulheres da terceira geração. A exceção, mais uma
vez, foi João, com sua dedicação tardia ao estudo e seu gosto pelas artes, que
transmitiu à linhagem. Rolembergue, aparentemente, chegara a compartilhar
com o irmão primogênito interesses mais “cultivados” em sua juventude, ten-
do presenteado um sobrinho, filho de João, com alguns livros e discos antigos
de ópera, pouco antes de morrer (talvez porque não visse interesse nessa área
entre seus próprios descendentes). A construção de sua carreira privilegiou a
competência e a ascensão profissionais no serviço público, no que foi o mais
bem-sucedido de toda a fratria.
A maior parte da família tampouco se dedicava às paixões mais típicas
das classes populares, como o futebol. Apenas o marido e a filha menor de
Walquíria eram torcedores notórios. O marido de Walquíria, na verdade, de-
dicava-se também a uma outra devoção tipicamente popular: a criação de
passarinhos. O quintal da Salvador de Sá, durante o longo tempo em que ele
lá viveu confinado, abrigava um grande viveiro e inúmeras gaiolas, por ele
cuidadas com zelo.
Alguns dos membros da terceira e quarta gerações (não apenas da linha-
gem de João) passaram por situações de perturbação físico-moral que tratadas
com psicoterapias ou medicação psiquiátrica, combinadas ou não com re-
cursos espiritualistas ou da “nova era”. Um dos membros da terceira geração
morreu nos anos 1980 em conseqüência de alcoolismo, mas não foi possível
saber se algum tipo de recurso terapêutico ou religioso chegou a ser utilizado
em seu caso.
Como ficou claro, foi muito importante para o desenvolvimento dessa
família sua forte vinculação ao “serviço público”, sobretudo municipal, onde
as diferentes linhagens e gerações foram sendo introduzidas por força das re-
lações pessoais acumuladas dentro da própria rede familiar. Essa característica
teve diversas implicações que serão discutidas mais adiante neste livro. Mas
pode-se desde já ressaltar a importância, para o destino da família, da incor-
poração das técnicas corporais do “serviço público” brasileiro prevalecentes
até os anos 1960. No nível dos serviços “administrativos” em que foram pro-
gressivamente ingressando todos os membros da rede, à exceção do próprio
fundador (que se desincumbiu até a sua aposentadoria de serviços manuais,
que hoje seriam chamados de “técnicos”; embora numa posição de “mestria”
e supervisão),36 havia um minucioso processo de subordinação às convenções
de uma apresentação “civilizada” de si próprio. Para os homens, por exemplo,

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A família Duarte 111

o uso permanente de terno e gravata (a que se acrescentavam, no entreguerras,


o chapéu, a bengala, o alfinete de gravata, o lenço do bolso do paletó, o relógio
de algibeira e muitos outros itens ou detalhes da “correta” apresentação públi-
ca) impunha um controle corporal diferente daquele que caracterizava os seg-
mentos das camadas populares não submetidos a essa disciplina. Além disso,
o serviço administrativo ou burocrático obrigava os egressos de uma família
popular como a de Sebastião a conviverem com gente de diversos segmentos
das elites que compunham geralmente as diretorias e ocupavam os cargos
mais especializados — ou aí encontravam abrigo em trajetórias descendentes.
Esse processo tendeu a ser tanto mais eficiente na segunda geração quanto
encontrava eco nas disposições sociais transmitidas pela memória da condição
social superior da família de origem de Maricota. É preciso sobretudo lembrar
que o período coberto pela trajetória familiar aqui examinada se caracterizava
por um maior prestígio relativo da administração pública do que o que pas-
sou a prevalecer com a enorme expansão e complexificação das estruturas
estatais a partir dos anos 1950.37 Isso implicava, à época, para os “funcioná-
rios administrativos”, exigências de decoro público possivelmente maiores do
que as que se aplicam hoje no mesmo nível de qualificação, sendo os cargos
mais prestigiosos reservados aos que possuem formações universitárias cada
vez mais exigentes e sofisticadas. Examinando-se as fotos da segunda geração
tiradas ao longo de suas vidas pode-se ver como esse crescente domínio dos
recursos expressivos característicos das camadas médias foi sendo incorpora-
do, burilado e cuidadosamente registrado.38
O mesmo processo de “emburguesamento” relativo pode ser verificado
na evolução dos comportamentos de lazer e de consumo cultural durante o
processo de “estabilização” ou “auto-afirmação” das diferentes linhagens da
família a partir da segunda geração. Das férias em casa de parentes do inte-
rior passa-se imperceptivelmente a estadas em hotéis no interior do estado
até chegar à freqüentação de estações de águas ou aos veraneios nas cidades
serranas.39 Também aí o melhor testemunho é o das fotos da família, onde se
pode demarcar claramente esse deslocamento dos investimentos sociais, mes-
mo que não homogêneo entre as diferentes linhagens. É interessante sublinhar
que o processo foi mais nítido nas trajetórias dos dois filhos mais velhos, se
bem que em ritmos diferentes (devido, sobretudo, aos momentos simetrica-
mente inversos em que os dois constituíram suas respectivas famílias).40 Um
motivo plausível para essa diferença é o maior contato deles com a experiência

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112 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

e o imaginário da família Montenegro. Como homens e primogênitos, podem


ter sofrido também com mais intensidade os efeitos projetivos das expectativas
de recuperação social de sua mãe. A única filha também poderia ter seguido
esse rumo, dada a forte relação que a unia à mãe, não fosse a posterior falência
social de seu marido. É interessante sublinhar o fato de que os acervos de fotos
antigas da família se tenham concentrado nas mãos de João e de Walquíria,
que os legaram a seus respectivos descendentes, e que nesse mandato de me-
mória e status tenha cabido a João o álbum, muito manuseado e desfalcado, da
família Montenegro, que pertencera a Amélia no começo do século. O aspecto
interno da casa também foi sendo bastante modificado após a morte do casal
original: eliminou-se o galinheiro que ficava no fundo do quintal, ganhando
este um aspecto de jardim; desapareceu a pletora de imagens religiosas; e mu-
daram-se o revestimento, as cores e a decoração dos aposentos.
Há ainda outras duas dimensões do serviço público, especificamente na
prefeitura do então Distrito Federal, que tiveram seu papel na estabilização
das condições de existência da família ao longo das três primeiras gerações.
Trata-se, em primeiro lugar, das condições excepcionais de assistência médica
(e, posteriormente, de previdência social) específicas do serviço público de
um município de regime tão especial quanto o da capital da República, o que
constituía um recurso precioso, sobretudo nas primeiras décadas do sécu-
lo XX, antes da progressiva implantação do regime assistencial e previdenci-
ário nacional.41 O papel do Montepio dos Empregados Municipais, transfor-
mado mais tarde no Instituto de Previdência do Estado, pode ter sido mais
importante para a família do que o empréstimo que — como mencionado ao
pesquisador em conversa informal — permitiu a aquisição da primeira resi-
dência própria da linhagem de Rolembergue.
Também foi de grande importância para a vida social da família a criação
do Club Municipal, em 1932 (constituído originalmente como Associação dos
Servidores Públicos do Distrito Federal). Inicialmente instalado em sobrados
no centro da cidade, adquiriu em 1942 uma sede própria na rua Haddock
Lobo, bem próximo à avenida Salvador de Sá, vindo aos poucos a se trans-
formar num grande clube, com uma sede social na Cinelândia (mantida até
os anos 1960), que funcionava como uma versão singela de um club burguês
(com biblioteca, salão de leitura e bar, por exemplo), e um complexo social e
esportivo na Tijuca. Tratava-se de um palco muito propício à encenação das
propriedades sociais que permitiriam aos membros da família transitar para

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outros níveis, mais estáveis e menos particularistas, de sociabilidade. A prática


sistemática de esportes e a participação em competições públicas, a freqüen-
tação de festas, bingos, excursões e cerimônias coletivas de múltipla ordem, o
uso da biblioteca, a própria experiência da participação na gestão de um órgão
meio privado e meio sindical, ao mesmo tempo dependente e interlocutor
do governo municipal, tudo isso se vê registrado nas memórias, em recortes
de jornais, em antigos documentos e nas imagens fotográficas das coleções
familiares.
A participação constante dos membros da segunda geração na adminis-
tração pública levou a uma relativa intimidade com membros da classe políti-
ca, sobretudo no nível municipal, o que era estratégico para a boa condução
das trajetórias funcionais de toda a família. Esses relacionamentos de caráter
ao mesmo tempo personalizado e instrumental talvez estejam na raiz da im-
pressão de “despolitização” que emana da história familiar. O único caso de
participação propriamente partidária foi a breve adesão de um dos filhos de
Sebastião ao movimento integralista.42 João nunca manifestou entusiasmo por
qualquer candidatura política, a não ser pela do brigadeiro Eduardo Gomes43
— em função de ter sido companheiro de trabalho e se considerar amigo de
sua irmã. Nas entrevistas, surgiu a informação de que Sebastião tinha sido
fortemente anti-americano e germanófilo até as vésperas da II Grande Guerra.
Essa atitude tinha, aparentemente, no entanto, conotações mais técnicas do
que políticas, dada a admiração que nutria pelo engenho e “seriedade” da
indústria mecânica alemã. Seu filho João, no entanto, lembrava-se de chorar
na rua — junto com muitas outras pessoas — ao saber da entrada das tropas
alemães em Paris, em 1940.
Enquanto estavam vivos os membros da segunda geração, eram fre-
qüentes e intensas as trocas sociais entre todas as linhagens. Mesmo os des-
cendentes de João, que moravam em Petrópolis, vinham passar períodos
de férias na Salvador de Sá, sozinhos ou acompanhados do pai. Eventu-
almente, alguns dos membros cariocas visitavam e se hospedavam em Pe-
trópolis. Também muitos dos colaterais visitavam a casa episodicamente,
encontrando-se aí com os primos cada vez mais distantes.44 Os aniversários
da linhagem de Walquíria eram os momentos em que mais claramente se re-
constituía a comunhão imaginária, uma vez que esses eram os únicos ainda
realizados na velha casa, após a morte do casal original.45 As reuniões sociais
realizadas nas casas das outras linhagens nunca reuniam todas as demais,

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114 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

em função de ritmos, ênfases e interesses que começavam a divergir. Houve


um período em que os casamentos e as bodas prevaleceram como momentos
de encontro mais gerais da rede, ainda que diluídos nas redes de sociabili-
dade mais amplas de cada um dos casais. Depois, muitos enterros e missas
de sétimo dia passaram a ocupar esse lugar. A quarta geração, tomada em
seu conjunto, veio a ser menor do que a terceira, em função dos celibatos e
da diminuição das proles, o que contribuiu ainda mais para a restrição da
sociabilidade interna. A última reunião de família realizada na Salvador de
Sá deu-se com a presença de quase todos os membros então vivos (acresci-
dos de alguns colaterais da primeira geração e de alguns contraparentes da
segunda e terceira gerações) em 1973, no ano seguinte ao do casamento de
L. Duarte, que lá estava então residindo. Eram ao todo 25 membros da rede
central (já haviam falecido dois membros da segunda geração), dois colate-
rais e quatro contraparentes. Apenas dois membros da terceira geração não
estiveram presentes.46
A casa da Salvador de Sá ainda é hoje ocupada por uma unidade de um
ramo colateral da família, mas seu entorno social foi totalmente transformado.
Toda a Cidade Nova (que constitui hoje a 3a Região Administrativa da Sub-
prefeitura da Tijuca) foi profundamente afetada pela abertura do túnel Santa
Bárbara, em 1960, que destruiu a trama social do antigo bairro do Catumbi e
interrompeu a continuidade entre a rua Frei Caneca e a avenida Salvador de
Sá. No outro extremo do bairro ergueu-se, em 1971, o elevado sobre a avenida
Paulo de Frontin, associado à abertura do túnel Rebouças, que descaracterizou
e desvalorizou, por sua vez, o bairro do Rio Comprido.
Outra grande transformação se deu pelo lado da avenida Presidente Var-
gas, com o início da construção do Centro Administrativo São Sebastião, novo
núcleo da Administração da prefeitura, a partir dos anos 1970. Precedeu-a à
remoção da zona do meretrício, ali fixada desde o começo do século, para as
vizinhanças da praça da Bandeira. A inauguração do primeiro segmento do
Metrô da cidade dotou as redondezas, em 1979, de duas estações: praça Onze
e Estácio, cuja construção fizera avançar ainda mais as demolições ao longo
do seu trajeto. Em 1984, inaugurou-se o Sambódromo, construído sobre o
antigo eixo de acesso ao Catumbi, a rua Marquês de Sapucaí, cruzando a ave-
nida Salvador de Sá. O processo de descaracterização e pauperização da área
foi finalmente agravado com o transbordamento da influência das favelas dos

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A família Duarte 115

morros da Coroa e de São Carlos (com suas gangues de narcotráfico) para as


áreas urbanas limítrofes, já na década de 1990.
O círculo vicioso foi-se estreitando: com o progressivo afastamento dos
ocupantes de melhores condições sociais, o estado de manutenção dos edifícios
decaiu celeremente, sem que a prefeitura tivesse tomado tampouco qualquer
iniciativa no sentido de conter a degradação generalizada. Consta ter havido,
na administração do prefeito Luiz Paulo Conde (1997-2000), planos de restau-
ração e recuperação da antiga Vila Operária, associados aos processos sempre
retomados e nunca muito bem completados de revalorização das zonas centrais
da cidade, devastadas por múltiplas transformações urbanas e desqualificadas a
partir da hegemonia social da Zona Sul e das regiões litorâneas de São Conrado
e Barra da Tijuca. Também
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consta que o conjunto foi objeto de um processo de
tombamento pelo Patrimônio Municipal, completado em 1985.
A rede familiar dos Duarte aqui examinada dispersou-se, entrementes,
por diversos outros bairros, pela próxima cidade de Petrópolis e pela mui-
to distante cidade de Manaus. Como se viu, existem atualmente no Rio de
Janeiro três unidades na Tijuca, uma no Grajaú, uma no Flamengo, uma na
Urca, duas em Copacabana e duas no Arpoador. Essa distribuição já é em si
mesma significativa das variações de ethos prevalecentes nos diferentes ramos,
com a progressiva e inevitável perda de contato entre os colaterais a partir da
quarta geração. Essa variação poderia ser de grande interesse analítico, mas
escapa aos limites deste livro, na medida em que a dinâmica identitária passa
a depender, nesse nível, de outras variáveis, entre as quais avulta certamente
a diferença entre as características das novas alianças matrimoniais. Aliás, dos
18 membros da quarta geração e da seguinte (incluindo os afins), apenas duas
mulheres chegaram a conhecer pessoalmente a velha casa, e uma delas numa
única e breve visita infantil. Eis por que pouco se diz aqui dessas últimas ge-
rações, cujas trajetórias diferenciais se desenham de acordo com outros parâ-
metros identitários e outros horizontes de valores.

Notas

1
Berger, 1984:124, 165; Laemmert e Laemmert, 1868 e 1898.
2
Uma cópia dessa carta foi conservada por seu filho mais velho até sua morte, como
testemunho de sua importância para o destino familiar.

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116 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

3
O projeto original previa a sua compra paulatina pelos seus moradores (Finep,
1983:38), o que não chegou a concretizar-se. Por isso as casas pertencem até hoje
ao município, que as aluga.
4
��������������������������������������������������������������������������������
Segundo Benchimol (1992:237), “a avenida Salvador de Sá, primeira radial aberta
por Passos, com 800 m de extensão e 17 m de largura, destinava-se a evitar a curva
da freqüentadíssima rua Frei Caneca. Começava nela, em frente ao quartel da polí-
cia, e ia até o começo da rua Estácio de Sá, que foi alargada até o largo do Estácio,
centro de convergência dos caminhos do Engenho Novo, São Cristóvão e outros
arrabaldes daquela zona”. Ver também Gerson (2004).
5
���������������������������������������������������������������������������������
“Pereira Passos, por sua vez, obteve do Conselho Municipal autorização para cons-
truir algumas casas para operários em sobras de terrenos desapropriados para a aber-
tura da avenida Salvador de Sá — uma gota d’água no oceano da problemática habi-
tacional” (Benchimol, 1992:287). Esse ato se concretizou pelo Decreto no 1.042, de
18 de junho de 1905 (cf. Lobo et al., 1989; ver também Bonduki, 2004).
6
Finep, 1983; Carvalho, 1980.
7
��������������������
Benchimol, 1992:154.
8
Sobre a comunidade judaica instalada no entorno da praça Onze, incluindo as
prostitutas da zona do Mangue, ver Fridman (2007).
9
A família sempre teve uma maneira peculiar de se referir a esse endereço. Não se
dizia “isso ocorreu na Salvador de Sá” (forma habitual de se referir a uma rua), mas
“em Salvador de Sá”, como se se tratasse de um bairro ou de uma cidade — o que
é significativo.
10
João recorda-se de ouvir a pergunta, ao chegar de férias no interior: “nhôzinho
chegou da Corte?”.
11
�����������������������������������������������������������������������������
Desde 1869, a Rio de Janeiro Street Railway Company (depois Companhia de São
Cristóvão) atravessava a região com seus bondes em direção a Tijuca, Rio Compri-
do, Catumbi e São Cristóvão. A partir de 1874, também a Cia. Ferro Carril Flumi-
nense passou a atravessá-la na direção da praia Formosa, na altura da atual Estação
da Leopoldina (Benchimol, 1992:104 e segs.).
12
Da biblioteca de seu avô, João conservou um romance de capa-e-espada em vá-
rios volumes, que escapou da dispersão dos bens decorrente da falência. Sua avó
Amélia conservou apenas uns poucos objetos desse período: uma jóia, um prato de
louça e duas compoteiras, que também permaneceram na casa da Salvador de Sá
até os anos 1960 — e com as descendentes de Walquíria até hoje.
13
Dessa residência que lhe fora tão cara João herdou uma fruteira que se manteve na
casa da Salvador de Sá até o seu casamento.

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A família Duarte 117

14
A importância da “torrinha” é sublinhada por Araújo (1993:346) num quadro geral
da sociabilidade urbana carioca do começo do século XX, incluindo as formas do
lazer público.
15
A busca de fontes alternativas de recursos conjugada a suas habilidades técnicas
levaram-no a tentar reencher embalagens metálicas de lança-perfume descartadas
no carnaval, o que valeu apenas o susto de uma grande explosão doméstica. Por
outro lado, um de seus filhos lembra que Maricota costumava apostar pequenas
somas no jogo do bicho.
16
Uma das netas de Maricota criadas na casa da Salvador de Sá diz ainda manter rela-
ções com uma antiga vizinha, uma senhora negra que fora sua “mãe-de-leite”; embo-
ra ambas tivessem se mudado há décadas para outros bairros, distantes entre si.
17
Mattos, 2002.
18
O estatuto muito peculiar de todo o conjunto, dependente de uma concessão go-
vernamental (o valor do aluguel pago foi-se tornando irrisório com o decorrer do
tempo), sempre permitiu um rigoroso controle moral da ocupação das unidades
pela própria vizinhança, já que qualquer denúncia comprovada de irregularidade
do comportamento dos moradores à prefeitura podia acarretar a perda da autoriza-
ção de uso.
19
Sobre o processo de ocupação acelerada de Copacabana na segunda metade do sé-
culo XX e sua relação com os processos mais amplos de mudança social na cidade
do Rio de Janeiro, ver Velho (1972).
20
A história é um pouco mais complicada: o casal tinha ficado um ano morando
com os pais da mulher numa vila na Tijuca. Rolembergue obteve um empréstimo
no Montepio da Prefeitura para comprar um apartamento em Copacabana, cujas
prestações eram pagas pelo genro. O jovem casal foi morar lá em 1948, vindo a
comprar outro apartamento, também no Posto 6, em 1953, onde mora até hoje.
Os pais dela foram morar no primeiro apartamento naquele mesmo ano, tendo lá
vivido até sua morte.
21
Esse prestígio o levou à direção de diversas associações de funcionários, chegando
a ser presidente do Club Municipal, entre 1970 e 1976.
22
A linhagem descendente da única irmã de Sebastião teve uma trajetória particu-
larmente acidentada até a terceira geração: ela própria órfã precoce de pai e mãe,
deixou cedo seus cinco filhos órfãos. Uma filha se suicidou na juventude; os dois
filhos homens viveram sempre com grandes dificuldades econômicas (um deles
perdeu um filho com dois anos, enviuvou cedo e teve que entregar os dois outros
filhos à irmã para criar); e Laura, finalmente, veio a ser a única a ter uma vida razoa­

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118 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

velmente estável. A linhagem dependeu do apoio do ramo de Sebastião Duarte e


de um ramo colateral do marido de sua irmã, proprietário de uma fazenda em Paty
do Alferes. Damos aqui mais informações sobre as condições sociais da cônjuge
de Milton, entre os membros da segunda geração, por se tratar também de uma
parenta consangüínea, de um ramo colateral da primeira geração.
23
Sebastião prometera premiar o primeiro neto que “se formasse” com uma de suas
obras de marcenaria (um porta-tinteiro). Como a filha de Rolembergue deixara a
faculdade, a filha mais velha de Walquíria ganhou o prêmio.
24
Não há muitos trabalhos etnográficos sobre “funcionários públicos” em geral — e
no Brasil em particular. Rodrigues (1988) realizou uma pesquisa com “pequenos
funcionários administrativos” em São Paulo, abordando o “clientelismo”, a per-
da de prestígio dos ocupantes dos cargos administrativos mais tradicionais e sua
estrita dependência da lógica da “carreira” burocrática. Numa pesquisa com um
grupo específico de funcionários públicos federais no Rio de Janeiro (inspetores na
área de segurança e saúde do trabalhador, no Ministério do Trabalho), Braz (1995)
chama a atenção para o fato de que estes se consideravam majoritariamente como
membros de uma “classe média remediada” ou “média média” e que atribuíam à
geração de seus pais a “ascensão social” para as “classes médias”. Realizada pouco
tempo depois das reformas neoliberais do governo Collor, a pesquisa constatou um
generalizado sentimento de “instabilidade” e “ressentimento” nesse meio.
25
Como pude verificar em outros acervos fotográficos, essa prática era bastante co-
mum em todos os segmentos da sociedade brasileira que dispusessem de máquinas
fotográficas ou que pudessem pagar por fotos posadas. É claro que a distinção so-
cial se manifestava a partir desse patamar mínimo através da riqueza das fantasias,
do contexto dos instantâneos e da própria qualidade mais ou menos artística dos
“retratos”.
26
O domínio do piano pelas mulheres era um dos sinais importantes de distinção
social na sociedade brasileira do fim do século XIX e da primeira metade do sécu-
lo XX, mas só o fato de se possuir esse instrumento já conferia prestígio (Weber,
1995). Na segunda geração dessa família, apenas as esposas de João e de Vladimir
tocavam piano. Na terceira geração, a única neta de Rolembergue e a única filha de
João estudaram piano por muito tempo, mas a contragosto.
27
Nas linhagens colaterais dos dois cônjuges, apenas uma sobrinha de Maricota che-
gou a ter cinco filhos. Todos os demais tiveram entre três e quatro descendentes na
segunda e terceira gerações, número que baixou ainda mais nas subseqüentes.

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A família Duarte 119

28
Tanto assim que, segundo sua esposa, João não pretendia ter filhos ao se casar, dada
a sua idade avançada. A autorização, pela Igreja Católica, do uso do método de
Ogino-Knauss, também conhecido como “tabelinha”, só ocorreu em 1951, quando
esse casal já tinha o seu primeiro filho (Luna, 2002). Essa posição não era, porém,
incondicional, já que, nos anos 1980, quando uma de suas noras (a que chegou a
ter quatro filhos) engravidou mais uma vez, numa atitude que considerava irres-
ponsável, foi francamente favorável a que ela recorresse a um aborto.
29
O espiritismo kardecista estabelecera-se no Brasil desde os anos 1860, ganhando
crescente popularidade e legitimidade, sobretudo a partir da iniciativa de Bezerra
de Menezes de organizá-lo como “religião” — considerada, no entanto, compatível
com o catolicismo — e de promover a sua dimensão letrada, “científica”, tanto
quanto a caritativa. A primeira Sociedade Espírita Brasileira obteve reconhecimento
oficial na Bahia em 1873, ano em que também foi fundada a primeira sociedade ca-
rioca. Em 1884 criou-se a Federação Espírita Brasileira, sediada na avenida Passos,
no Centro do Rio. A difusão do kardecismo passou a se dar através de numerosos
periódicos, como O Reformador, criado em 1884. Os processos sociais que levaram
à realização, em 1941, de um congresso de “fundação” da umbanda como religião
específica favoreceram a continuidade do kardecismo como experiência religiosa
fundamentalmente de classe média. Ver Aubrée e Laplantine (1990).
30
Dos quatro filhos do casal, apenas o primogênito, que veio a se tornar oficial do
Exército, aproximou-se da religiosidade espírita do pai. Os demais mantiveram-se
mais próximos do catolicismo. Uma das descendentes ressalta que essa pluralidade
religiosa no seio da família jamais resultou em tensões ou pressões visando à uni-
formidade de crenças.
31
Atualmente, o tipo de experiência descrito como “falar em línguas” está associado
ao pentecostalismo, cuja presença era extremamente restrita no Brasil do entre-
guerras. O tratamento da perturbação pela via do espiritismo é muito significati-
vo do ethos que a família estava então assumindo. ����������������������������
Segundo Aubrée e Laplantine
(1990:197),��“au Brésil, comme ce fut le cas en France à ses débuts, le livre — signe
d’instruction — renvoie donc toujours dans le spiritisme à un désir de respectabilité socia-
le. Cette
�������������������������������������������������������������������������������������
doctrine ne cherche pas son fondement dans des secrets originels mais dans une
incessante révélation, ouverte et dynamique, attestée par le ‘savoir universel’ que produi-
sent les personnalités hors du commun que sont, d’une part, les savants et, de l’autre, les
artistes”.
32
A hipótese lhe havia sido colocada pelo próprio pesquisador, em função do fasci-
nante exemplo de imbricação entre parentesco terreno e extraterreno disponível

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120 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

em Mazur (2006). Essa mesma informante mencionou apenas ter experimentado


pessoalmente uma grande comunhão espiritual com um primo de sua mesma faixa
etária, filho de Milton — sem que isso tivesse jamais suscitado algum tipo de inves-
tigação sobre seu parentesco extraterreno.
33
Tratava-se de uma técnica de origem italiana (pelo menos os moldes provinham da
Itália) em que lâminas finas de madeira eram recortadas em filigrana, produzindo
peças rendilhadas ou povoadas de imagens, que ornavam objetos de variada ser-
ventia: oratórios, peanhas, porta-tinteiros etc. A memória familiar não registra que
essa atividade tivesse jamais envolvido algum interesse comercial, apesar de seu
considerável interesse estético.
34
O nascimento dessa Teresinha deu-se no mesmo ano (1935) da inauguração da
igreja dedicada à santa do mesmo nome em Botafogo, à boca do Túnel Novo.
35
�������������������
Benchimol, 1992:89.
36
Na certidão de casamento de Sebastião, datada de 1900, ele aparece qualificado
como “artista” (certamente no sentido de artesão, trabalhador manual qualificado).
Em sua carteira de identidade, de 1915, consta que ele é “empregado municipal”,
assim como nos documentos posteriores.
37
A transferência da capital federal para Brasília, em 1960, teve fortes implicações
para o estatuto do funcionalismo do antigo Distrito Federal, englobado pela nova
configuração do estado da Guanabara. Em 1963, decidiu-se que o novo estado cor-
responderia a um único município, o que transformava a administração municipal
em estadual. Em 1974, deu-se, afinal, a reunificação da cidade ao estado do Rio
de Janeiro, com o restabelecimento da administração municipal. Essas reviravoltas
não foram necessariamente prejudiciais às carreiras individuais, mas a perda de
prestígio da cidade e dos seus corpos de funcionários foi-se tornando cada vez mais
evidente desde então.
38
A foto que reúne toda a família engalanada para as bodas de ouro do casal de refe-
rência, em 1950, é um registro precioso da construção de distinção por ela alcan-
çada àquela altura, bem como das sutis diferenças no modo de atualização desse
processo.
39
Até serem substituídos, a partir da terceira geração, pelo prestígio das viagens de
longo alcance, sobretudo as internacionais.
40
As modificações nas técnicas do corpo certamente corresponderam também a mo-
dificações no ethos cultural, sobretudo no tocante à “alta cultura”, que não cabe
explorar aqui. De modo geral, o primogênito da segunda geração — o único a

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A família Duarte 121

retomar os estudos formais — foi o que mais se aproximou dos sinais de distinção
auferíveis da freqüentação das artes e dos saberes eruditos, legando-os à sua des-
cendência.
41
A assistência da prefeitura transformou-se, em 1932, em Sociedade Beneficente do
Servidor Municipal, com a estrutura de uma policlínica, embora a contribuição que
a sustentava se tivesse mantido voluntária até 1944. Um decreto do prefeito inter-
ventor Henrique Dodsworth (1937-45) encampou a sociedade, transformando-a
no Departamento de Assistência ao Servidor da Prefeitura, englobando a assistência
médico-cirúrgica e dando-lhe o nome de Hospital do Servidor e Centro de Perícias
Médicas. Esse departamento deu lugar ao Instituto de Assistência aos Servidores
do Estado da Guanabara — Iaseg em 1960, com a criação do novo estado da Gua-
nabara. O Decreto-Lei no 99, de 13 de maio de 1975, criou o Iaserj (com a fusão
dos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara), transformando-o em autarquia
vinculada à Secretaria de Administração, com sede na cidade do Rio de Janeiro. O
Decreto no 11.277, de 6 de maio de 1988, vinculou o Iaserj à Secretaria do Estado
de Saúde, mas em 15 de janeiro de 1977, pelo Decreto no 2.2922, o instituto tor-
nou-se novamente vinculado à Secretaria do Estado de Administração. As notícias
mais recentes dão conta da quase completa decadência do seu mais importante
hospital, próximo à praça da Cruz Vermelha, muito utilizado outrora pela família
— seguindo o destino de tantos outros hospitais públicos do Rio de Janeiro (dispo-
nível em: <www.iaserj.rj.gov.br/quem_somos.asp>. Acesso em: 12 mar. 2007).
42
O dado apareceu espontaneamente — e um tanto jocosamente — durante uma en-
trevista e mereceu uma rápida desqualificação do descendente imediato presente.
O pesquisador jamais ouvira antes falar de tal fato.
43
Candidato derrotado nas eleições presidenciais de 1945 e de 1950.
44
A segunda geração dos Duarte cultivava uma ampla rede colateral, com 17 primos
irmãos (com numerosa descendência) e uma série de primos mais distantes, des-
cendentes de uma tia paterna e de um tio materno de Maricota (estabelecido em
São Paulo). Uma das primas irmãs casou-se inclusive com Milton Duarte. A geração
seguinte passou a ser mais seletiva nesses contatos, privilegiando alguns ramos, em
função de sua maior ou menor proximidade social/afetiva. Poucos membros da
linhagem retiveram a memória do conjunto do quadro. Pode-se afirmar que os seg-
mentos espíritas foram os que mais preservaram o contato com os segmentos fracos
ou decadentes da rede, em função — certamente — do papel da caridade nesse
universo simbólico (Cavalcanti, 1983). Pelo menos esse parece ser o caso entre os
descendentes atuais do casal Duarte (à exceção, agora, do próprio pesquisador). É

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122 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

verdade também que essa posição é ocupada sobretudo por uma filiação uterina
(neta do casal através de uma filha), o que garante o seu caráter de “cuidadora” da
rede — efeito muito conhecido na literatura sobre memória familiar.
45
A festa de casamento da filha mais nova, realizada em 1967 na própria casa da
Salvador de Sá, teve o mesmo papel de agregação abrangente.
46
Ao deixar a casa da Salvador de Sá, L. Duarte acreditava que ela seria devolvida
à prefeitura, uma vez que todos os membros de sua linhagem já tinham seguido
outros destinos e se estabelecido em outras partes. Foi com grande surpresa que
soube por sua tia que um primo distante, de que ele jamais ouvira falar antes
(era bisneto da irmã de Maricota que morava em Taboas e tinha sido beneficiário
da intervenção de Rolembergue para a obtenção de um cargo de funcionário da
prefeitura), iria ocupar a casa com sua família (mulher e dois filhos). Encontrava-
se em grande dificuldade financeira, sem residência fixa, e esse recurso lhe seria
imensamente oportuno. Durante a mudança, ele e o pesquisador encontraram-se
uma única vez. Depois disso, todas as eventuais notícias lhe seriam dadas por uma
prima que mantinha o contato geral entre os ramos. Numa das últimas entrevistas,
ficou claro que esse primo não morava mais lá com a família, não por ter se sepa-
rado da esposa, mas por ter sido condenado à prisão por um crime cometido no
interior do estado.

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Capítulo 4

A f a m í l i a Campos

A paisagem mudava conforme o tempo corria. Comecei a perceber que


as coisas haviam mudado, que minha própria vida mudaria...
Entrevista com Elza Campos

A terceira família retratada neste livro é a família materna de E. Gomes. Seus


pais, Geraldo Cirino de Campos e Maria do Carmo Campos — conhecida
como Pequitita e caçula de 16 irmãos —, conheceram-se em Muriaé, Minas
Gerais, e casaram-se na Igreja Católica em 1939. Pequitita era mestiça, filha
de mãe branca com pai puri, uma etnia indígena local. Sua mãe chamava-se
Joaquina Rosa de Lima, e seu pai, Malaquias Antônio Dias. Joaquina era fi-
lha do tropeiro Joaquim Valério, casado com Rosa, figura pouco presente na
memória familiar. Malaquias andava sempre descalço, pescando e tomando
banho de rio. Era mascate: vendia peixes e aves. Conta-se que este era seu
nome de “branco”, retirado da Bíblia e adotado após a catequese dos puri pe-
los missionários. Ele seria o único representante “do pessoal da terra” que teria
permanecido na área urbana da cidade de Muriaé, no início do século XX. A
adoção do sobrenome Dias estaria relacionada à prática de conferir aos índios
catequizados os sobrenomes dos responsáveis pela pacificação dos povos in-
dígenas. A relação de Malaquias com a cidade e, por conseguinte, com o mito
de origem familiar se fixa na imagem de um quadro, recordado pela família,
no qual era ele o personagem principal. A pintura comemorava os 100 anos
da cidade em 1955 (esta, até 1923, tinha-se chamado São Paulo de Muriaé).1
Do final do século XIX até os anos 1950, a monocultura cafeeira tinha repre-
sentado a principal fonte de recursos econômicos da região, tendo sobrevivido
com dificuldade à crise de 1929. A inauguração da estrada Rio-Bahia, em
1939, possibilitou o desenvolvimento de outras atividades econômicas e sua

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124 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

conseqüente diversificação. Aos poucos, as fazendas cafeeiras foram entrando


em decadência, seus herdeiros promoveram a divisão das terras, e o modo de
vida de muitos membros dessas famílias se alterou significativamente.
Foi o que ocorreu com a família de Geraldo, marido de Pequitita. Ele
era neto de um português e de uma escrava, chamada Felícia. Esse casal con-
cebeu, entre outros filhos, Aníbal Cirino de Campos, que na juventude co-
nheceu Elidia Maria de Jesus, filha de fazendeiros portugueses. Casaram-se
e tiveram vários filhos, entre os quais Geraldo. A posição social da família de
origem de Elidia e a herança dela recebida — uma fazenda — possibilitaram
uma vida confortável aos filhos do casal. Após a morte de Elidia e Aníbal, a
fazenda foi dividida entre os filhos, cabendo uma parte a Geraldo. Aos pou-
cos, cada uma das partes foi sendo vendida, com valor subestimado, para o
mesmo advogado que realizou a divisão. A fonte de segurança, deixada como
legado da família, deixou de existir. Sabe-se que, já adulto, Geraldo possuía
sua própria marcenaria, na cidade, e que seu ofício nessa especialidade estava
consolidado. Permitiu-se assim cortejar Pequitita.
Embora ele tivesse melhores condições financeiras que a família da noi-
va, esta não viu com bons olhos o casamento. Pesava mais o fato de ele ser
mulato do que a aliança com uma pessoa mais abastada. O processo de “bran-
queamento” da família não teria prosseguimento com um tal pretendente para
a filha caçula. No entanto, as rejeições não impediram o enlace, solidificado
paulatinamente com o nascimento de 11 filhos. Mas a questão da cor per-
maneceria como um aspecto relevante no entendimento da configuração das
gerações subseqüentes.
O motivo primordial da migração para o Rio de Janeiro foi a falência de
Geraldo. Com a crise econômica que assolava então a região, sua marcenaria,
com seu maquinário e empregados, teve que ser fechada. O Rio de Janeiro
parecia acenar com a possibilidade de melhores condições de vida. O processo
migratório dos Campos acompanhou a intensificação do deslocamento popu-
lacional que se dava então em todo o território nacional. Os fluxos migratórios
de Minas Gerais para o Rio de Janeiro tinham sido constantes desde o início do
século XX. Nos anos 1940 e 1950, no entanto, uma crise mais grave impulsio-
nou a migração para os estados com maior crescimento urbano e industrial.
Assim, Geraldo vendeu o que possuía e partiu para o Rio de Janeiro, numa pri-
meira tentativa de mudança. Em 1948 o casal se estabeleceu com os primeiros
quatro filhos, ainda pequenos, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, e lá

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A família Campos 125

tiveram mais um filho. A mudança não foi bem-sucedida, já que Pequitita não
se conformava em viver distante de sua família. Durante a estada de dois anos,
viajaram diversas vezes a Muriaé para visitar os parentes. Retornaram então
à cidade natal, onde permaneceram até 1956, quando conceberam mais uma
filha, e em seguida empreenderam a migração definitiva. Mas os vínculos com
os familiares mineiros não se desfizeram imediatamente. Pequitita e os dois
filhos mais velhos, especialmente, ainda mantiveram contato com os de sua
geração, inclusive levando filhos e netos para conhecer os parentes e a cidade
de origem.
O período entre as décadas de 1930 e 1950 é descrito pela literatura so-
ciológica como de intenso fluxo migratório para a Baixada Fluminense — que
integra a região metropolitana do estado do Rio de Janeiro2 — proveniente
sobretudo dos estados do Nordeste, do Espírito Santo e de Minas Gerais.3 A
ocupação desse território não obedeceu a nenhum planejamento urbano, es-
tando ligada a processos migratórios espontâneos, por um lado, e à política de
remoção de favelas das áreas nobres da então capital federal, por outro.
A cidade escolhida pelo casal foi São João de Meriti. À época seus filhos
estavam com idades entre 14 e dois anos (posteriormente, tiveram mais três
filhos). Nessa mudança o casal deixou a filha mais velha em Muriaé, com
parentes, para concluir o ano letivo. A nova cidade passava por uma etapa
de intenso povoamento. Recém-emancipada do município de Duque de Ca-
xias (11 de agosto de 1947), adquirira autonomia político-administrativa. Seu
crescimento fora estimulado pela infra-estrutura de transporte decorrente da
eletrificação da linha auxiliar da Estrada de Ferro Central do Brasil, em 1935,
e da abertura da rodovia Presidente Dutra, em 1946.4
O local de moradia ficava no interior de São João de Meriti, num bairro
ainda hoje denominado Éden, cortado à época pela linha férrea, hoje desa-
tivada. Geraldo comprou um primeiro terreno na Vila Norma — uma das
regiões de Éden — com os recursos oriundos da venda dos bens que possuía
em Muriaé. Mas abandonou a idéia de construir ali a sua casa e adquiriu outro
terreno, longe do “centro” do bairro, no Gato Preto. Disse à família que ficava
num lugar mais bonito, um vale cercado de montanhas. Enquanto construía
a tão sonhada casa, instalou-se com sua prole numa residência alugada, onde
funcionara anteriormente uma mercearia. Esse imóvel pertencia ao casal Go-
mes, um português casado com uma italiana, pais daquele que viria a ser um
dos seus genros, marido da filha mais velha.

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126 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

O processo de ocupação da região é contado por meio de uma lenda


relativa ao nome do bairro. Conta-se que o antigo nome do bairro Éden era
Itinga. Especuladores imobiliários inventaram que havia uma bruxa que asso-
lava aquelas terras, com o intuito de provocar a desocupação da área. O “tiro
saiu pela culatra” porque, depois, ninguém se apresentou para comprar os
lotes de terra. Éden foi o nome mágico escolhido para tirar o “mau agouro” do
nome anterior.5
Geraldo passou um tempo empregado numa fábrica de móveis em Ni-
lópolis, cidade vizinha a São João de Meriti. Certo dia, ao cortar uma peça,
teve decepado o seu dedo médio da mão direita. Ao se desligar da fábrica,
passou a realizar serviços em sua própria casa. Na luta diária para prover o
sustento da família, Geraldo chegou até a cortar cabelo, passando a ser cha-
mado pela vizinhança de “Seu Faz-tudo”, apelido que refutava com safanões
e xingamentos, apesar do risco de assim vir a perder potenciais clientes. De
fato, ele fazia de tudo para manter os 11 filhos, diante das condições precárias
em que se encontravam. Usava um dos cômodos como oficina para fabricação
de móveis, desenhados por ele mesmo. Quando suas filhas vinham a se casar,
ele gostava de presenteá-las com móveis de quarto feitos por ele. Trabalhava
num cômodo que dava diretamente para a rua, com acesso pela lateral da casa
(havia uma ampla janela para a rua, de modo que, do exterior, era possível
vê-lo trabalhando). Ao lado havia uma garagem que também servia como de-
pósito e onde guardava um carro antigo, que ele dirigia sem habilitação. Mais
adiante, esse espaço veio a ser transformado em moradia para as filhas que se
casavam. Posteriormente, na década de 1990, foi modificado para comportar
um pequeno “centro comercial” sob a responsabilidade de alguns membros da
família, com barbeiro, sacolão e lanchonete. A marcenaria foi ainda utilizada
por dois de seus filhos após a sua morte, que tinham aprendido o ofício com
o pai, mas o trabalho não vingou, como se verá mais adiante.
Pequitita recebeu esse apelido porque media menos de 1,40 m de altura.
Além de pequenina, tinha sido também a filha caçula, o que lhe rendia privi-
légios especiais, e sua aparente fragilidade a transformara em objeto de muitos
cuidados da família. Apesar de mestiça e de não ser proveniente de família
abastada, comportava-se como uma “sinhazinha” e era tratada como um “bi-
belô” pelos irmãos, segundo sua filha mais velha. Era extremamente vaidosa e
ciumenta do marido. Geraldo só “andava alinhado”, saía de casa de terno de
linho branco e sapato bicolor, com seu inseparável chapéu, para farrear. Re-

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A família Campos 127

tornava então com presentes para a esposa, logo recusados. Não era raro que
trouxesse comida de bar, como salgadinhos. Os filhos contam que a mãe os
jogava no chão e que eles, rapidamente, corriam para catá-los.
Geraldo, além de suprir financeiramente às necessidades básicas da casa,
assumia a tarefa de realizar as compras, inclusive das roupas e dos produtos
de maquiagem da mulher. Pequitita “nunca soube o preço de um quilo de
arroz”, disse uma das filhas. Duas interpretações sobre esse dado convivem
nos relatos dos descendentes. A primeira sugere que ela não se desincumbia
ativamente das tarefas da casa, distribuindo-as entre as filhas, especialmente
a mais velha, por estar sempre às voltas com os filhos pequenos. O cuidado
do marido em relação à esposa teria essa justificativa. Outra vertente avalia
que ela “gostava de ficar de frozô” e que Geraldo se responsabilizava pelas
compras, na verdade, para controlar os gastos. Há, no entanto, lembranças
de Pequitita tentando colaborar, por algum tempo, com as despesas da casa,
fazendo pastéis e cocadas, que seus filhos vendiam pelas ruas do bairro.
O bairro ocupa um lugar central na organização da rede familiar. O Gato
Preto aparece nas lembranças de infância e, também, como parte integrante
da constituição das famílias nucleares na fase adulta dos filhos do casal origi-
nal. A percepção nostálgica vincula casa e bairro. Há a rememoração de um
tempo — os primeiros anos da migração e, conseqüentemente, da infância
— que, embora marcado pelas dificuldades, é percebido como mais organiza-
do e menos sofrido. A paisagem é sempre evocada como um diferenciador do
tempo passado em relação ao tempo presente. No período da infância ou da
adolescência dos filhos do casal Geraldo e Pequitita — que atualmente contam
entre 46 e 66 anos —, o bairro ganha uma descrição bucólica: morros cobertos
por árvores, estradas de barro e casas distantes umas das outras. Era também
menos violento, ao contrário das décadas posteriores, quando a segunda ge-
ração estava na fase adulta: os anos 1970 e 1980 foram marcados pelo grande
número de assassinatos na região. A estação de trem e a Igreja Católica no
centro da praça também são relevantes na construção da paisagem nostálgica
do passado do bairro.
Outras impressões do Gato Preto estão ligadas especialmente à fase adul-
ta da segunda geração e correspondem a diferentes tipos de relação do local
com a família extensa. A recomposição da rede familiar, por meio dos suces-
sivos casamentos dos filhos a partir de meados da década de 1960, implicou
diferentes modos de organização familiar. Mudanças e continuidades são per-

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128 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

cebidas na relação que a terceira geração estabelece com a casa do Gato Pre-
to. Os diferentes significados que ela encerra dependem de diversos fatores:
vivência compartilhada no espaço, no caso dos netos que foram criados no
tipo de experiência familiar fundado no modelo de “quintal”; vivência parcial
no espaço, entre aqueles que passaram períodos no local; e, ainda, a vivência
distanciada em relação ao “quintal”, dos netos que ali não foram criados.
A lembrança era de que havia escassez de comida para dividir entre os 11
irmãos, mas muito espaço para correr e brincar. Uma bisnaga de pão era cor-
tada na diagonal para que cada pedaço aparentasse ser maior do que de fato
era.6 A imagem da divisão do pão se repetiu em diferentes relatos. Foi repro-
duzida da segunda geração para a terceira e utilizada como argumento moral a
respeito das dificuldades do passado e da “abundância” nas novas gerações. A
idéia é que, no passado, na infância, o pouco que se tinha era valorizado, em
contraste com o presente, com muitas facilidades. Portanto, as gerações mais
jovens tenderiam a não dar valor ao que possuem, devido ao quadro mais
geral de “abundância” e “possibilidades”.
Como já foi dito, Geraldo esteve algum tempo empregado numa mar-
cenaria em Nilópolis, vizinha a São João de Meriti, estando Éden (ou Vila
Norma) situada na fronteira entre essas duas cidades. Foi então que se deu o
acidente com Geraldo, que o levou novamente ao trabalho autônomo, tendo
ele transformado em oficina um dos cômodos da casa. O nexo entre casa,
vizinhança e trabalho é característico da rede familiar. Quando a segunda ge-
ração ainda estava na infância, os filhos de Geraldo e Pequitita partilhavam a
vida doméstica e a vida profissional do pai, na marcenaria. A necessidade do
sustento da família estava entranhada na forma como esta se organizava. Era
no quintal que os meios de subsistência ganhavam contorno. Aí circulavam
galinhas, criadas para o abate, a fim de suprir às necessidades da casa. Assim
como os filhos adultos, muitos dos netos — a terceira geração — também
vivenciaram tal experiência.
O investimento na educação escolar dos filhos não recebia atenção es-
pecial do casal, sendo a subsistência mais urgente. Além disso, a região não
contava com uma rede de ensino público consolidada, e o acesso à educação
formal era dificultado pelas grandes distâncias e a precariedade dos meios
de transporte. Assim, metade dos filhos do casal Geraldo e Pequitita possui
apenas as “primeiras letras”. O primeiro filho e os dois mais novos concluíram
o 1o grau (hoje chamado ensino fundamental). A trajetória educacional da

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A família Campos 129

filha mais velha (segunda na fratria) foi radicalmente oposta à do restante dos
irmãos, tendo ela retomado os estudos após o casamento e o nascimento de
seus cinco filhos. Recomeçou da 3a série do ensino fundamental e alcançou
o nível de pós-graduação. O investimento na escolarização é evidente em seu
núcleo familiar: todos os filhos concluíram cursos superiores em universida-
des públicas e privadas (direito, medicina, fisioterapia, análise de sistemas e
ciências sociais).
A segunda geração seguiu as mais diversas carreiras profissionais, formais
e sobretudo informais, em sua maioria não relacionadas ao grau de ensino
alcançado. Cabe ressaltar que os filhos homens conviveram com o ofício do
pai e serviram como ajudantes, aprendendo as técnicas de marcenaria e es-
pecialidades tais como desenho, corte e montagem de móveis, pintura e lus-
tração. Somente os dois irmãos mais velhos, Silvério e Elza, se integraram ao
serviço público, o primeiro na carreira militar. Silvério integrou-se à Polícia do
Exército cumprindo com as regras de recrutamento em vigor antes do golpe
militar de 1964. Foi então incorporado e levado a trabalhar no Serviço Na-
cional de Informação, onde permaneceu até o final do período militar, sendo
posteriormente transferido para outros setores. Hoje está aposentado como
sargento. Após retomar os estudos, Elza conquistou o cargo de professora e,
depois, de orientadora educacional na Secretaria de Educação do estado do
Rio de Janeiro. Quando a filha caçula completou oito anos, Elza, então com
34, retornou aos bancos escolares numa escola particular perto de sua casa,
a mesma em que seus filhos estudavam. Concluiu o ensino fundamental no
regime de supletivo, e o 2o grau, no sistema regular. Fez o curso de formação
de professores, no período matinal, sendo obrigada a usar uniforme escolar
apesar de sua idade. No ano seguinte à formatura, fez o exame vestibular e
passou para o curso de pedagogia da Universidade Gama Filho. Concomitan-
temente, realizou com sucesso um concurso público para o cargo de professo-
ra. Atualmente está licenciada por motivo de saúde. Rubens, o irmão seguinte,
sempre foi barbeiro. O ofício lhe foi ensinado, precariamente, pelo pai, que
comprou uma cadeira de barbeiro para que ele pudesse iniciar uma profissão.
Geraldo exercia essa profissão em “época de vacas magras”, mas não era sua
especialidade: “inventou o corte caminho de rato”, brinca um de seus netos.
Rubens também foi motivo de preocupação para a família no período militar.
Foi preso várias vezes e torturado, pois era tido como “subversivo” pelo regi-
me. Sempre foi assumidamente de esquerda, atuando na resistência contra os

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130 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

militares. Ao falecer em 2008, ainda aguardava uma decisão judicial a respeito


de seu pedido de indenização por perseguição política.
Carlos Alberto é camelô, mas durante muito tempo confeccionou e re-
formou sofás. Quando o negócio deixou de dar certo, mudou-se para outra
região com sua esposa e filhos, tornando-se vendedor ambulante nas praias da
Zona Sul e no Centro da cidade do Rio de Janeiro. Hoje possui uma barraca
onde vende caldo-de-cana e salgados, próximo à sua residência. Na juventude
viveu num circo com a esposa, que vinha de uma família circense. No novo
lugar de moradia, transformou-se em referência política, chegando a concor-
rer a vereador nos anos 2000. Walter seguiu o ofício paterno da marcenaria e
carpintaria, mas, antes de se casar, foi ajudante numa pensão. Trabalhou com
o pai até que este faleceu. Permaneceu na profissão, no mesmo local, até adoe­
cer. Sua esposa também aprendeu a reformar sofás e, quando o marido ficou
doente, chegou a trabalhar sozinha nessa atividade. Na trajetória profissional
de Sílvio — o irmão seguinte — prepondera o biscate ou outra ocupação infor-
mal, como a produção e venda de artesanato. Em algumas ocasiões foi “catador
de lixo”, revendendo aos ferros-velhos da região os jornais e latas de refrigeran-
tes que coletava na vizinhança. Aproveitava esse material para exercer o ofício
de artesão, fazendo flores de papel ou de plástico para vender. Tinha como
principal compradora sua irmã mais velha. Sebastião, por sua vez, era segurança
de banco, “com carteira assinada”, mas passou a “fazer biscate” quando ficou
desempregado. Atualmente faz entrega de bujões e de galões de água.
A relação trabalho-localidade desempenha um lugar central nesse uni-
verso, inclusive nas gerações mais recentes. As relações de trabalho se dão
principalmente na própria rede familiar, no bairro e em regiões próximas,
na Baixada. Na segunda geração, como dito, somente dois dos 11 filhos do
casal Geraldo e Pequitita conquistaram posições remuneradas e constantes no
serviço público — o chamado “trabalho fixo”. Os demais, principalmente os
homens, prestavam serviços não-especializados, como autônomos, e de bai-
xo rendimento. Excetuando-se aqueles dois membros da fratria, a principal
característica dos meios de subsistência é a “viração”: viram-se como podem
para sobreviver. O trabalho autônomo, sem benefícios como os da previdência
social, ocupa assim lugar eminente.
Já a posição das mulheres dependeu fundamentalmente do casamento.
Elas foram criadas para ser donas-de-casa, mas em várias situações tiveram
que se dedicar a outros serviços para poder completar a renda do marido.

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A família Campos 131

Neuza teve cinco filhos e ajudava na “birosca”7 do marido. Depois de enviu-


var, passou a fazer faxina e a cuidar de crianças para complementar a pensão
(salário mínimo) deixada pelo marido. Costuma associar-se a movimentos de
“sem-terra” e “sem-teto”. Maria Luiza tem três filhos. Quando criança, morou
com a irmã mais velha, Elza, e ajudou na criação de seus filhos. Já casada e
com os filhos crescidos, trabalhou numa creche perto de casa. Cuidou tam-
bém de várias crianças, enquanto as mães trabalhavam. Mais tarde, já com os
filhos criados, passou a exercer uma função remunerada, cuidando da filha
de uma sobrinha, que também ajudara a criar. Após o casamento, Lenimar
passou a ajudar na pequena fábrica de bolsas do esposo.
A venda em circuitos privados de produtos valorizados pelas camadas
populares constitui outra atividade recorrente das mulheres da segunda gera-
ção, filhas e noras do casal original, desde o final dos anos 1970. É ideal para
a manutenção do modelo da preeminência masculina na unidade doméstica.
O método utilizado nesse tipo de atividade é a encomenda de acessórios de co-
zinha, produtos de maquilagem, roupas, perfumes etc., por meio de catálogos.
Tal sistema é bem aceito nas camadas populares por ser realizado no próprio
ambiente doméstico ou em seu entorno, na vizinhança. As mulheres, especial-
mente as donas-de-casa, podem conciliar essas tarefas com o espaço doméstico,
que costuma ser ampliado para o bairro e a vizinhança. Além disso, a oferta e a
circulação dos produtos correspondem às relações socioafetivas vigentes entre
os familiares e a rede de sociabilidade. O sistema orientador da rede familiar
também opera na compra e venda dos produtos. Não são relações apenas mer-
cantis: há algo da lógica da dádiva nesse tipo de circulação de objetos.
A dinâmica oferta-demanda possui uma justa relação com a posição
ocupa­da pelo vendedor e pelo comprador na hierarquia familiar. Na maioria
dos casos, compra-se ou vende-se para ajudar o parente. No caso de parentes
mais abastados, a oferta impõe a aquisição. Ofertante e comprador sabem que
o negócio se realizará tão logo seja proposto. O mesmo pode ser dito em rela-
ção ao desejo de aquisição dos produtos pelos mais pobres. No entanto, nesses
casos, quem está na berlinda é o parente vendedor, que se vê “obrigado” a
encomendar o produto sob pena de romper ou afetar a sua rede de relações,
mesmo desconfiando que, provavelmente, não receberá o valor combinado.
Nessas relações estão em jogo o status, a honra, a confiança e o cuidado.
As relações hierárquicas tradicionais são imperativas na segunda gera-
ção. O trabalho feminino não representa, de forma alguma, uma conquista de

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132 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

autonomia. As mulheres são profundamente marcadas pelo regime de depen-


dência. Mesmo quando a remuneração representa a maior parte ou mesmo a
totalidade da renda familiar, o papel de provedor moral da casa restringe-se
ao homem, o que não significa que não haja um discurso sobre autonomia
feminina nas falas das mulheres. Mas este funciona geralmente como recrimi-
nação pelo não-cumprimento da função do homem, pela sua incapacidade de
suprir às necessidades da família. Essa questão é mencionada nas conversas de
forma velada, pois o fundamento hierárquico permanece como eixo condutor
das relações.8
O cuidado das crianças e da casa constitui um aspecto crucial da atividade
das mulheres da família. Atualmente já se vê essa atividade sendo remunerada
dentro da rede, em detrimento das antigas relações de mútua ajuda ligadas às
funções domésticas das mulheres. Mas, mesmo nesses casos, a confiança ain-
da tem que coexistir com a moeda sonante. Em várias situações observadas,
a própria relação entre as mães (da segunda geração) e os filhos (da terceira)
passa a ser marcada também pela função remunerada. Não há como negar que
já existia algum tipo de benefício no cuidado das avós com seus netos ou filhos
adultos, mas não se tratava de remuneração. O pagamento pelo cuidado dos
filhos vem sendo agora realizado monetariamente e é um aspecto relevante
das relações familiares atuais. A concepção básica é a da ajuda mútua entre
mães e filhas. Em geral, as primeiras não têm profissões qualificadas, sempre
foram donas-de-casa, não possuem renda, nem contribuíram para a previ-
dência social. Mas há um expressivo reconhecimento do papel de cuidadoras
que elas podem assumir, recebendo para tanto um salário mínimo ou outra
quantia fixa, como o pagamento de sua contribuição à previdência social, de
modo que possam se habilitar à aposentadoria. Esse “contrato de trabalho”
não se restringe ao vínculo mãe/filha, mas também ocorre entre primas, sogras
e noras, tias e sobrinhas.
Esse tipo de relação possui significados e implicações ainda imprecisos,
pois se encontra em processo de consolidação. Antes, a geração das mães, tias e
sogras se sobrepunha à geração seguinte em termos hierárquicos englobantes.
A “sabedoria” adquirida com a experiência de vida e o poder de transmissão
de valores aos netos eram reconhecidos. No entanto, o apelo maior para a sua
presença é a relação de confiança no cuidado prestado às crianças, sentimento
anterior e fundante, inalcançável por um estranho. A monetarização desse tipo
de vínculo reforça, portanto, um tipo de organização familiar tradicional, pois

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A família Campos 133

reconhece a importância do papel da geração mais velha na transmissão de


valores e, ao mesmo tempo, cria uma espécie de cuidado invertido, pois tenta
protegê-la das intempéries da velhice. Por outro lado, pagar a previdência
social também garante a incorporação de uma nova renda para a família ou,
em última análise, evita possíveis gastos futuros com esse integrante da rede.
Trata-se, pois, de uma nova manifestação da estratégia fundamental de manu-
tenção e reprodução da família.
A lógica do “se virar”, do “fazer de tudo um pouco”, tão característica
das camadas populares, permanece como base da ação de grande parte dos
integrantes da terceira geração, salvo algumas exceções exemplares. Em certos
casos há passagens esporádicas por trabalhos com “carteira assinada”, mas
apenas no âmbito das relações familiares e de vizinhança, fundadas em regras
de reciprocidade. Não é um “se virar” individual, um “partir para o mundo”
moderno, possibilitado pelos deslocamentos entre periferia e centros metro-
politanos. Em certa medida, isso corresponde ao tipo de investimento realiza-
do pelos responsáveis dos diferentes ramos, o qual freqüentemente não estava
relacionado a carreiras que implicassem efetiva inserção no ensino formal.
Nesse tipo de vínculo de trabalho, a principal característica é a preemi-
nência do pertencimento familiar. Os favores entre parentes constituem um
fator significativo para a incorporação no âmbito do trabalho. Em certos casos,
como na abertura de um pequeno comércio, a relação de confiança estabe-
lecida entre parentes é relevante para a incorporação de “empregados”. Mas
esse tipo de interação não ocorre sem tensões, pois os vínculos muitas vezes
são estabelecidos informalmente, sem a cobertura dos benefícios trabalhistas,
por exemplo. A cobrança por melhores condições trabalhistas seria considera-
da traição ou falta de consideração, gerando um mal-estar generalizado entre
familiares que se orientam pelo modelo tradicional. A concepção central é a
ajuda entre parentes, o que pressupõe laços ao mesmo tempo hierárquicos e
afetivos. O “biscateiro” é um personagem constante e nem sempre está dire-
tamente associado a um trabalho permanente com algum parente. Ele exe-
cuta serviços esporádicos: pinta, faz pequenos consertos, procede à retirada
de entulho, serve como ajudante de pedreiro, recebendo “um trocado” pelas
atividades realizadas.
A profissão, o grau de instrução e os deslocamentos espaciais interagem
na dinâmica de aproximação ou afastamento em relação à rede familiar e à
vizinhança. O lugar do trabalho é normalmente o próprio bairro ou regiões

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134 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

próximas. O cotidiano é vivenciado da mesma forma. O fator “acessibilidade”


possui extrema relevância na articulação família-casa-trabalho. Assim, o aces-
so se relaciona com a espacialidade (deslocamento moradia-trabalho-mora-
dia), a escolaridade (no caso, pouca permanência no ensino formal) e a baixa
qualificação profissional. O campo de atuação da maioria dos membros da
rede familiar é restrito, e os recursos são escassos.
O caráter do trabalho autônomo, ainda que de maior regularidade, pre-
valece também entre os genros do casal original. Os quatro exerceram ofícios
sem “carteira assinada”. Três deles abriram seus próprios negócios: um foi
dono de loja de móveis e depois de um hotel; outro, dono de birosca; e o
terceiro, dono de uma pequena fábrica de bolsas e cintos. O marido de Elza,
João, era o genro considerado mais bem-sucedido nos negócios: possuindo
uma rede de relacionamento ampliada, convivia com autoridades políticas e
policiais, marginais, pessoas de todos os tipos. Isso se devia principalmente à
sua estreita ligação com a localidade: era “nascido e criado” na região, e o vín-
culo social com amigos que exerciam atividades ilegais não se constituía em
tabu. À época, a marca dessa geração era a honra forjada no “crescer junto”,
na relacionalidade. A “esquina”9 da praça de Éden era o local de encontro,
até fins dos anos 1980. Os outros três genros do casal principal eram “de
fora”. José, casado com Neuza, era de Minas Gerais e veio para Éden já adulto.
Construiu uma birosca na própria casa e sustentava precariamente seus cinco
filhos. Adílson, marido de Maria Luiza, veio da Bahia já com 18 anos e desde
então trabalha como empregado. Mauro, esposo de Lenimar, veio do Ceará,
também já adulto. Junto com os irmãos abriu uma pequena fábrica de bolsas e
cintos. Posteriormente, passou a trabalhar sozinho, em sua própria casa.
É significativo que três dos genros tenham desenvolvido suas atividades
nos mesmos locais em que viviam com suas famílias. Suas casas e locais de tra-
balho são interligados por diferentes tipos de acessos. O que está empregado
trabalha há anos numa fábrica de produtos de plástico, sem “carteira assinada”
nem contribuição como autônomo para a previdência.
Casa, família, trabalho e localidade estão portanto interconectados na or-
ganização familiar dos Campos, tornando quase imperceptível a distinção dos
núcleos formados pelos filhos do casal fundador. O quintal e a patrilocalidade
como regra de residência estão na base dessa característica. O casal fundador
originou 10 núcleos familiares. Os casais formados estão na faixa etária de
47 a 67 anos. Silvério e Marinete tiveram cinco filhos: quatro homens e uma

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A família Campos 135

mulher. O mais velho faleceu na adolescência. Elza e João também tiveram


cinco filhos, entre os quais uma mulher. Rubens e Orlinda possuem apenas
uma filha. Carlos Alberto e Leda conceberam três filhos. Walter e Isa também
tiveram três filhos, e Neuza e José, cinco. O casal Sílvio e Ângela teve um único
filho, que faleceu ao nascer. Maria Luiza e Adilson tiveram três filhos; Lenimar
e Mauro, dois; e Sebastião e Ednéia, três (o primeiro faleceu com seis meses
de idade).
A constituição desses núcleos envolveu diversas mudanças na configura-
ção da casa original. Para os Campos, a localidade do Gato Preto se confundia
com a casa de Geraldo e Pequitita, o centro de referência de todos os seus
membros, pelo menos até a morte do casal. É comum ouvir os membros da
rede familiar dizerem: “vou passar no Gato Preto” ou “vai ser no Gato Preto”, o
que demonstra a conexão entre a casa dos pais e o bairro onde construíram sua
história. A concepção de casa é ampliada, extraterritorial, e abarca até mesmo
as moradias daqueles que não convivem diariamente no mesmo espaço.
Os primeiros cômodos extras (ao todo são seis) do quintal da família
Campos foram construídos pelo próprio patriarca para obter renda, sendo alu-
gados para solteiros e casais conhecidos ou indicados por parentes e vizinhos.
Podiam ser considerados “cabeças-de-porco” por sua área exígua — o que
veio a servir como categoria acusatória durante o processo de individualização
de alguns dos membros da família. Havia apenas um banheiro para todos os
inquilinos, e não havia saneamento, situação que perdurou até poucos anos
atrás. O esgoto corria a céu aberto pela pequena área que mediava o terreno.
Aos poucos, com o início da vida conjugal dos filhos, o casal original
passou a acolhê-los como inquilinos, gratuitamente. Os dois filhos mais ve-
lhos haviam casado e constituído suas famílias em outros locais do bairro.
Assim, o intuito passou a ser auxiliar os filhos que não tinham condições de
comprar ou alugar suas próprias residências. Alguns haviam tentado em vão
estabelecer moradia fora do quintal. O casal original era o suporte afetivo
e material das novas famílias e daqueles que já compartilhavam do modelo
doméstico adotado: os filhos homens. O primeiro casal a ocupar um desses
cômodos foi Rubens e Orlinda, após passarem um período morando de alu-
guel. Depois vieram Walter e Isa, que antes moravam no quintal da família da
esposa, e Sílvio e Ângela, que residiam numa quitinete alugada. Desde então,
todos se tornaram moradores fixos do quintal. Os casais passaram a ocupar os
pequenos cômodos integrados, que foram sendo transformados em espaços

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136 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

relativamente mais privados. O fator econômico é importante nesse tipo de


arranjo familiar. Dadas as condições precárias de subsistência dos filhos ho-
mens — boa parte deles sem remuneração mensal fixa —, a casa dos pais era o
único local disponível para a constituição de novas famílias. A patrilocalidade
foi a regra de residência mais presente na nova organização: os filhos homens
agregaram suas esposas e filhos à família de seus pais.
A relação com a casa dos pais é significativa: apenas três dos 10 filhos
vivos do casal não moraram nela jamais, após terem constituído família. Os
demais já lá moraram ou ainda moram e construíram pequenos módulos ge-
minados, ampliando os já existentes. Silvério e sua linhagem moravam numa
residência alugada, quase em frente à casa original. Após a morte de Geraldo,
mudaram-se para o quintal, construindo cômodos na parte superior da casa
principal. Atualmente ali moram Silvério, a esposa, netos e o filho mais novo.
Elza morou fora do quintal desde o casamento com João. Carlos Alberto e
Sebastião foram os outros irmãos que não ocuparam cômodos do quintal após
formarem suas linhagens, tendo construído suas vidas em outros locais, após a
vida adulta e o casamento. Carlos Alberto se casou com uma mulher de família
circense, partindo então para uma vida nômade, imposta por aquela atividade,
mas que logo foi interrompida, passando ele a dedicar-se à reforma de sofás na
residência que estabeleceram em outro local do mesmo bairro da família ori-
ginal. No entanto, após algum tempo, enfrentando problemas com o negócio,
mudaram-se para outra cidade da Baixada Fluminense. Sebastião, o caçula,
converteu-se à Igreja Batista — a conversão foi concomitante ao namoro com
a mulher, integrante da mesma congregação — e foi morar na casa da família
dela, no mesmo bairro, rompendo com a tradição religiosa familiar.
De maneira geral, os homens da segunda geração se casaram com mulhe-
res provenientes de famílias pobres e sem instrução, que foram incorporadas
à disposição hierárquica tradicional: a casa (espaço privado e interno) como
domínio da mulher, e a rua (espaço público e externo) como lugar do ho-
mem.10 Em alguns casamentos, pode-se mesmo dizer que houve hipergamia
por parte das noras, que viviam em condições de extrema pobreza. No caso
das mulheres da segunda geração, o modelo hierárquico também prevalece:
todas estiveram submetidas aos maridos, dedicando-se à manutenção da uni-
dade doméstica e aos cuidados com os filhos.
Essa dinâmica impôs uma característica à configuração do quintal: foram
os filhos homens, com suas respectivas famílias, que se fixaram nesse espaço

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A família Campos 137

familiar. A garantia da moradia permanente sempre esteve relacionada aos ho-


mens, havendo conflito quando o quadro se invertia: filhas incorporando no-
vos integrantes masculinos no quintal. Na terceira geração, a patrilocalidade
continuou importante. As netas, com algumas exceções, tenderam a acompa-
nhar seus respectivos cônjuges, indo morar nos quintais das sogras, enquanto
os netos permaneceram próximos de seus familiares. Observa-se que a maioria
dos cônjuges, ainda nessa geração, é proveniente do mesmo bairro ou das re-
dondezas. A patrilocalidade, de maneira geral, continuou como característica
até a terceira geração.11
Elza, nascida em 1943, foi a primeira a se casar, em 1963, em cerimônia
religiosa na igreja de Nossa Senhora das Graças, localizada na praça principal
do bairro. O casamento com João, nascido em 1939, foi um marco na histó-
ria da fratria. Mesmo sendo ela a segunda dos 11 filhos do casal, até hoje é
considerada a liderança moral da família. Não foi somente entre os Campos
que o enlace provocou reações. João era filho de Ventura e Olímpia. Ventura,
português de Trás-os-Montes, veio para o Brasil com o pai e um dos irmãos.
O pai era tapeceiro e juntos vendiam a produção pelas ruas e para o comércio
do Centro do Rio de Janeiro. Olímpia, nascida em 1902, era filha de imigran-
tes italianos que chegaram ao Brasil no final do século XIX, acompanhando a
intensa migração promovida pelo Estado brasileiro com o intuito de “civilizar”
e “branquear” a nação. Conta-se que ela teria nascido na Itália e vindo ainda
muito pequena para o Brasil. Segundo outra versão, teria nascido já no Rio de
Janeiro, logo após a imigração de seus pais. Interessa aqui o fato de que ela se
sentia italiana, branca, européia. Sua família possuía uma alfaiataria na rua do
Ouvidor e morava nesse mesmo prédio. Foi por meio do comércio que Olím-
pia e Ventura se conheceram. A união não foi abençoada pelos pais da noiva,
que teve que romper com a família para se casar com o rude português. O
casal migrou inicialmente para São Paulo, em busca de melhores condições e
também para se afastar dos conflitos familiares. Tiveram muitos filhos — che-
ga-se a falar em 18 —, mas somente sete chegaram à fase adulta. João, o quin-
to entre os sobreviventes, nasceu quando seus pais já haviam retornado ao Rio
de Janeiro, à época vivendo em São Mateus, bairro de São João de Meriti. Ven-
tura se dedicava ao comércio (abriu uma mercearia), mas também aos jogos
de azar. Oriunda da classe média urbana das primeiras décadas do século XX,
Olímpia passou a ter que sustentar a família, como costureira, numa região
ainda caracterizada como rural. A insegurança financeira era a tônica. Aos 13

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138 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

anos, João obteve seu primeiro trabalho com carteira assinada, como ajudan-
te numa loja de móveis dos Abraão Davi, tradicional família de Nilópolis. O
ramo de móveis foi durante quase duas décadas sua principal fonte de renda.
Já adulto, abriu sua própria loja na praça de Éden. Já era comerciante quando
conheceu Elza, em 1961. Esse encontro fez voltar à tona a questão do precon-
ceito racial. A apresentação da futura esposa à família foi dramática. Devido à
sua cor, Elza foi recebida com a pergunta cortante de Olímpia: “tem preto na
família?” Olímpia viu esse casamento como uma nova queda de status. Além
de “preta”, na perspectiva dos olhos azuis da italiana, a nora vinha de família
mais pobre. No entanto, a despeito da resistência de Olímpia, o casamento
foi realizado. O primeiro grande confronto foi a escolha do local para a festa.
Para marcar posição, Elza resistiu aos apelos da sogra, que não queria ver a
festa realizada na casa de Geraldo e Pequitita. A casa era muito simples, com
chão de terra batida, e não condizia com o que a sogra gostaria de mostrar aos
parentes que viriam da cidade do Rio de Janeiro. O fato é que a mistura das
cores tornou-se inevitável. Ventura morreu no ano seguinte ao casamento, e
Olímpia viveu até os 86 anos. A questão da cor continuou presente nos demais
casamentos da mesma geração e nos da geração seguinte.
O casamento da filha mais velha repercutiu profundamente na organi-
zação da casa de Geraldo e Pequitita. As falas de suas irmãs mais novas expli-
citam fortes (res)sentimentos em relação a esse evento. A diferença de idade
entre a filha mais velha e suas irmãs mais novas é de cerca de uma década.
“Abandonadas” pela irmã, ainda receberam toda a carga de responsabilidade
deixada por ela — cuidar da casa, lavar e passar roupa. Neuza casou-se com
apenas 14 anos, pouco depois do casamento de sua irmã mais velha, e foi
morar com o marido em outra casa, mas na mesma região. Teve o primeiro
dos cinco filhos com 15 anos, tornou-se avó com 32 e bisavó com 46. Maria
Luiza, então com 10 anos, foi morar com a irmã mais velha assim que nasceu
o primeiro filho desta, só saindo de lá ao se casar, aos 24 anos. Assim, a tarefa
de ajudar na casa materna teve que ficar a cargo da caçula, Lenimar Aparecida.
Mas, nesse período, a maioria dos irmãos já havia constituído suas respectivas
famílias nucleares e moravam em casas separadas das dos pais, ainda que no
mesmo quintal. Os irmãos homens passaram a ser “cuidados” por suas respec-
tivas esposas, enquanto as irmãs cuidavam de seus respectivos maridos.
A casa principal, mais ampla, serviu sobretudo como lugar de passagem
para as filhas mulheres. Chegou a ser reformada para receber as duas filhas

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A família Campos 139

mais novas, já casadas, que moraram por algum tempo com os pais. A casa foi
adaptada, na medida do possível, para permitir aos casais certa privacidade.
A filha mais velha, no entanto, jamais voltou a morar ali após seu casamen-
to. Neuza, a segunda filha, casada aos 14 anos com José, foi morar com seu
marido em outro local do bairro, vindo a ocupar esporadicamente um dos
cômodos do “quintal” somente após o falecimento do marido, no início da
década de 1990. As outras duas passaram pela casa dos pais no início da vida
conjugal. Os dois casais formados buscaram diversas alternativas de moradia.
A residência no local também não foi concomitante. Maria Luiza e Adílson,
após um ano morando de aluguel, mudaram-se para o quintal de Neuza. Seu
filho mais velho nasceu nesse período. Devido a conflitos com José, o casal
mudou-se para a casa original, aí permanecendo por três anos até consegui-
rem construir uma “meia-água” em terreno próprio. Foi ainda no quintal que
tiveram suas duas filhas. À época, a irmã mais nova, Lenimar, já havia se casado
e fora morar no quintal da sogra, lá ficando por um ano. Assim que Maria Luiza
e sua família desocuparam o cômodo, Lenimar passou a viver lá com o marido
e a filha, aproximadamente pelo mesmo tempo em que sua irmã o utilizou. Em
seguida, foram morar de aluguel numa residência que ficava em frente à casa da
sogra. Mais tarde, conseguiram adquirir uma casa na mesma rua. A não-perma-
nência no quintal das famílias formadas pelas mulheres da fratria estava de certo
modo vinculada ao seu caráter patrilocal. A figura masculina externa entra em
disputa com os “de dentro” e desafia a organização familiar vigente.
A mesma característica se apresenta na terceira geração: nenhuma neta
morou no local após o casamento. Essa geração é composta por 31 netos (dois
faleceram na primeira infância, e um, na adolescência), tendo o mais velho
nascido em 1966, e o mais novo, em 1991. São 11 mulheres e 19 homens, en-
tre 15 e 42 anos. Todos moraram no bairro Éden na infância e adolescência. A
preponderância da localidade segue seu curso. Somente três netos, integrantes
da linhagem de Elza, se distanciaram desse tipo de vínculo e foram morar na
cidade do Rio de Janeiro, onde exercem profissões liberais. Outros continua-
ram morando no Éden e arredores e trabalhando “lá embaixo”12 — no Centro
da cidade do Rio de Janeiro.
Dos 17 netos homens, cinco chegaram à universidade. O restante acom-
panha o mesmo perfil irregular de educação formal da geração anterior, tendo
o ensino fundamental incompleto, na maioria dos casos. Entre as 11 netas,
quatro chegaram à universidade: duas a concluíram, uma a está cursando e

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140 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

outra abandonou os estudos ainda no primeiro ano. Há uma acentuada dife-


renciação no investimento em educação da terceira geração. As trajetórias de
oito dos nove netos com formação universitária sofreram forte influência da
primeira filha do casal original: cinco enquanto seus próprios filhos e três en-
quanto filhos da irmã por ela criada, em sua casa, após o casamento. Além dis-
so, uma certa estabilidade no âmbito do trabalho dos pais da segunda geração,
aqui relacionado à figura masculina, permitiu o investimento na educação dos
filhos.13 Outra característica importante desses núcleos mais estabilizados é a
capacidade de se manterem fora do modelo do quintal, mostrando uma auto-
nomia — mesmo que relativa, em alguns casos — em relação à rede familiar.
Nesses núcleos emergiu um nítido projeto educacional para os filhos,
homens ou mulheres. A idéia norteadora era que a conquista de melhores con-
dições de vida dependia da carreira educacional. Mesmo havendo incentivo
à entrada no mundo do trabalho, o projeto educacional preponderava como
meio de ascensão social. Exemplo disso é o núcleo da filha mais velha do casal
original. Todos os filhos estudaram em colégios particulares da região.14 Os
quatro filhos homens ajudaram no comércio do pai desde a adolescência, mas
não se tratava de suprir às necessidades básicas, o que era responsabilidade do
pai provedor. Era uma iniciativa moral: criar homens responsáveis e honrados
por meio do ethos do trabalho. À filha cabia, por um lado, o estudo, a forma-
ção intelectual; por outro, a preparação para o casamento.
A outra trajetória orientada pela educação formal que não passou ne-
cessariamente pela influência direta da filha mais velha tem a ver principal-
mente com a composição singular do núcleo familiar originário, composto
por pai, mãe e uma única filha. O investimento na educação de um só filho
é bem menos vultoso, mesmo que se trate do ensino público. Estudar impli-
ca muito mais do que o pagamento de mensalidades. Necessita-se menos de
investimento financeiro que da presença, mesmo que em tensão, de um pro-
jeto individualizante. A primeira integrante da terceira geração a se converter
ao pentecostalismo, ainda na adolescência, sendo hoje adepta da Igreja do
Evangelho Quadrangular, casou-se com um membro da própria igreja. O ethos
religioso protestante parece ter sido um apoio fundamental em sua trajetória
profissional.
Nos núcleos menos estabilizados, a carreira escolar tende a se interrom-
per cedo. No entanto, em algumas trajetórias, principalmente entre as mulhe-
res da terceira geração, podem-se identificar tentativas de retorno aos estudos

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A família Campos 141

na fase adulta. O incentivo inicial para enfrentar as salas de aula é a possibili-


dade de “conquistar um futuro melhor”, mas dar continuidade a esse projeto
torna-se inviável pelas dificuldades cotidianas.
Essas novas formas de relacionamento demonstram quanto a localidade
é significativa no modelo de família seguido pelos Campos. Quanto mais dis-
tante das relações familiares mais imediatas, incluindo a convivência com pa-
rentes e a proximidade da moradia, mais remota é a possibilidade de arranjos
e favores relativos a trabalhos tradicionais. Os parentes mais individualizados
vêem com maior desconfiança o vínculo trabalho-parente e o tornam menos
habitual em suas trajetórias. Como idéia central, trabalhar com parentes não
funciona da mesma forma que com estranhos, quando há uma relação pautada
pela impessoalidade. No primeiro caso, o vínculo com o trabalho é caracteriza-
do pelo caráter relacional — principalmente quando se trata de ajuda englobada
pelo sistema de reciprocidade da família extensa —, no qual possíveis rompi-
mentos podem ocasionar tensões com a rede mais ampla. Essa relação não de-
saparece totalmente. A idéia de ajudar um parente permanece, mas depende do
grau de afinidade ou da disposição de enfrentar possíveis conflitos familiares.
Importa frisar que, entre os núcleos formados na terceira geração — ca-
racterizados pela ascensão social através do ensino formal e por trajetórias in-
dividualizadas —, as relações com os parentes são mais distanciadas. As novas
famílias são estruturadas, idealmente, segundo o modelo moderno: pai, mãe e
filhos vivendo em residências próprias e isoladas da rede familiar. No entanto,
ainda é possível recorrer eventualmente à solidariedade familiar, quando se
torna impossível manter uma residência própria.
Para a terceira geração, o Gato Preto também é uma referência. Mas as-
sume outra dimensão, como o lugar onde parte da família está estabelecida,
e não propriamente como a casa da família. Essa fragmentação se evidencia
— não sem misturas e combinações — especialmente nos núcleos familiares
que se consolidaram fora do quintal ou nos que obtiveram algum tipo de
auto-afirmação ou ascensão econômica ou social. Para os netos e bisnetos que
foram criados e ainda convivem nesse espaço familiar, esse tipo de fragmen-
tação existe, mas permanece englobado pelo modelo dos quintais, no qual a
combinação tripartite é recorrente e consolidada. A terceira geração está forte-
mente ligada ao modelo moderno de família nuclear, embora apresente laços
com o quintal que dependem, em maior ou menor grau, da relação afetiva ou
econômica que os netos estabeleceram com a casa do Gato Preto. No entanto,

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142 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

de alguma maneira, o modelo do quintal é reproduzido sob novas roupagens,


fundado basicamente na solidariedade entre parentes.
A adoção de novas casas-referência é perceptível na segunda e terceira
gerações, com maior ênfase nesta última. Na fase adulta os netos costumam
dizer “vou lá em casa” ou “vou lá no [bairro tal]” para referir-se à casa dos pais,
e não à dos avós e demais familiares — mesmo que já tenham formado suas
próprias famílias nucleares e morem em casas diferentes.
Na terceira geração, observa-se que o modelo de casa dos avós (ou o
quintal onde a maioria dos filhos homens da segunda geração mora com
suas respectivas famílias) é reproduzido em outros contextos. Um dos netos
do casal (o caçula de três irmãos, convertido ao campo evangélico), que mo-
rou no quintal original desde seu nascimento até o casamento, veio a ocupar
um terreno que era de seu irmão (posse), no mesmo bairro, e lá construiu
sua casa. Seu irmão mais velho também construiu no mesmo terreno, levan-
do consigo a esposa e os seis filhos (quatro deles filhos de sua esposa com
outro homem). Mais tarde seus pais foram morar com eles, devido à doença
do pai.
Entre os Campos, a casa da filha mais velha do casal original (Elza),
embora distanciada do quintal original, sempre esteve aberta para receber por
curtos ou longos períodos os descendentes dos seus irmãos. Elza criou uma
de suas irmãs, que com ela viveu até se casar, e cuidou de uma sobrinha (filha
de outra irmã), dos sete aos 13 anos. Nesse ínterim, também cuidou da irmã
desta, por um período mais curto. Ambas as sobrinhas continuaram o proces-
so de circulação, indo morar com outros parentes até que suas vidas conjugais
vieram a se definir. Concomitantemente, Elza cuidava de um menino que fora
abandonado no local de trabalho de seu marido e que tinha então seis anos.
A essa altura, seus cinco filhos estavam entrando na fase adulta, os mais no-
vos terminavam o ensino médio, e os mais velhos estavam na universidade.
“Passar uns tempos” é a expressão que caracteriza esses vínculos. Tem-se a
impressão de que as pessoas — crianças — não pertencem aos cuidadores: a
qualquer momento podem partir.
Esse tipo de vínculo envolve principalmente a relação entre as mulheres
da fratria. “Fica-se” com os filhos das irmãs, na grande maioria dos casos. Esse
modelo é reproduzido nas famílias de origem das esposas dos homens da
fratria. Isso não significa que não existam outros tipos de relações de cuidado
envolvendo parentes afins. Durante um ano, por exemplo, Elza recebeu em

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A família Campos 143

sua casa um sobrinho, filho de um irmão de seu marido, que estava em pro-
cesso de separação.
A casa de Elza e João, além de ocupar um lugar central para as suas res-
pectivas redes familiares, ganhou outra dimensão com a entrada de João na
política em 1986. Para a surpresa de muitos de seus amigos integrantes de
partidos políticos de “direita”, ele se filiou ao Partido Socialista Brasileiro (PSB)
para poder concorrer a vereador. Para aqueles, ele tinha um nome forte para
concorrer e, com o apoio logístico que a direita arregimentava na Baixada Flu-
minense, acreditava-se que teria chance real de conquistar um cargo legislati-
vo municipal. No entanto, sua opção foi pela esquerda e pela implementação
de um projeto político por meios próprios. As prévias das eleições de 1988
chegaram e houve a possibilidade de coligação entre os partidos de esquerda
do município, que até então tinham representatividade incipiente. O PSB não
concordou com essa estratégia política. João e outros pré-candidatos se trans-
feriram para o Partido dos Trabalhadores, fundado pouco tempo antes em São
João de Meriti. Muitos integrantes do PT ficaram insatisfeitos com a entrada de
um comerciante nas fileiras do partido, pois ele era considerado um represen-
tante das forças conservadoras. Afinal, não era o típico trabalhador proletário.
Acontece que o filho mais velho de João era um dos fundadores do PT no
município. Como líder sindical do funcionalismo público federal e militan-
te do movimento de direitos humanos, influenciara sobremaneira a carreira
política do pai. A casa passou a ser o núcleo do partido no bairro, abrigando
regularmente reuniões da diretoria, para organização da campanha e outras
atividades relativas à associação de moradores. Na eleição de 1988, o PT não
conseguiu votação de legenda necessária para eleger candidatos. Mesmo que
isso tivesse ocorrido, os votos conquistados por João não seriam suficientes
para sua própria vitória. Sua candidatura foi novamente apresentada na elei-
ção seguinte, em 1992, e novamente derrotada nas urnas. Ele não perdeu o fô-
lego e preparava-se para voltar a concorrer ao pleito de 1996 quando faleceu,
no início do mesmo ano. Mas a política não deixou de estar presente na casa.
Elza era brizolista há anos, votava somente em integrantes do PDT, mas
não se filiara ao partido. Filiou-se ao PT quando João passou a integrar seus
quadros. Após se recuperar da morte do marido, resolveu candidatar-se ao
cargo de vereadora nas eleições de 2000. Sua militância na esquerda nunca es-
tivera associada a grupos organizados, mas, junto com João, ajudara a escon-
der perseguidos políticos no pequeno hotel da família, inaugurado em 1970.

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Certa vez, ainda solteira, por pouco não foi presa como subversiva. Trabalhava
então na rádio local, cuja programação era transmitida através de alto-falan-
tes distribuídos pela praça do bairro. Em seu programa, reproduzia músicas
solicitadas pelos ouvintes, lia recados enviados pelos moradores e cantava,
a pedidos, principalmente músicas de Dalva de Oliveira. Certo dia escolheu
uma música instrumental para a abertura da programação da rádio. O sinal
foi captado pelos aparelhos da Marinha brasileira, e tratava-se nada mais nada
menos que o hino da “Internacional Socialista”. No dia seguinte, a pequena
rádio foi invadida e destruída por militares. Houve muita tensão, mas Elza
escapou da prisão “milagrosamente”. O dono da rádio alegou que tudo tinha
sido um grande engano, ensejado pela pouca idade e ingenuidade da jovem.
Não se soube o porquê da atitude benevolente dos militares nesse caso, já que
o regime se caracterizava por notória truculência. A rádio nunca reabriu, e a
carreira de Elza nessa área foi abortada. Àquela época, ela se sentia responsável
pela guarda de dois de seus irmãos: um militar e outro “subversivo”. Por mo-
tivos diversos, ambos passavam longos períodos desaparecidos: um, atuando
como agente do regime; outro, participando da resistência.
Na campanha eleitoral de 2000, a candidata realizava visitas às famílias
antigas do bairro. Em sua casa não mais se realizavam reuniões partidárias,
e ela assumiu a campanha praticamente sozinha. Com a implementação da
lei de cotas para mulheres,15 os partidos precisavam incrementar a participa-
ção das mulheres nos pleitos. Sua candidatura não gerou grande polêmica,
mas também não contou com apoio expressivo do partido, que até então não
conquistara nenhuma vaga na Câmara de Vereadores do município e investia
maciçamente em certos nomes que supostamente teriam mais condições de
eleger-se.16 Ao final da apuração, ela conquistou suados 130 votos, entre os
amigos e a família. Nesse período houve atritos com parentes que não se com-
prometeram a votar na filha mais velha do casal fundador dos Campos. Alguns
deles eram cabos eleitorais de outros candidatos, recebendo pagamento em
troca; outros seguiam as orientações dos pastores de suas respectivas igrejas.
O conflito não se devia ao receio da derrota nas urnas, já que era reconhecida
a fragilidade de sua candidatura. A questão central era a confirmação de que a
família não vinha mais em primeiro lugar. Elza enfrentou nova campanha nas
eleições de 2004, agora um pouco menos ativa que da vez anterior. Também
não conquistou a vaga, mas colaborou com seus 82 votos para a eleição do
primeiro vereador do partido na cidade. É interessante mencionar que os três

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A família Campos 145

filhos que se haviam mudado para a cidade do Rio de Janeiro não transferiram
seu domicílio eleitoral para poderem votar em Elza. Nessa mesma eleição,
mais dois filhos do casal principal se candidataram ao cargo de vereador: um
em São João de Meriti e outro em Nova Iguaçu. Nenhum deles foi eleito.
A casa de Elza se consolidara como um importante suporte para os Cam-
pos desde seu casamento. Mas a doença e a morte do patriarca em 1988 pro-
vocou sensíveis mudanças na organização familiar, incluindo a maior centra-
lidade da casa da filha mais velha. Alto, muito magro, Geraldo jamais coubera
em sua cama. Após adoecer, ficava com as pernas, da canela até os pés — se-
gundo sua filha —, apoiadas numa banqueta. Ele não se locomovia mais sozi-
nho devido às dores que sentia. Após longos anos de trabalho autônomo, sem
contribuir para a previdência social, deixou como herança material apenas o
quintal. Com o seu falecimento, Pequitita passou a morar com a filha mais
velha, fora do espaço físico do quintal. Após o velório de seu marido, nunca
mais voltou a morar na casa. Com isso, o centro de decisão familiar — ético
e moral — foi transferido para a casa da filha mais velha, que sempre tinha
desempenhado um papel central na família. Conta-se que Pequitita não quis
voltar a morar na casa, pois Geraldo tinha sido velado na sala.
A estada da viúva na casa da filha mais velha se estendeu por mais de
uma década. Sem nenhum tipo de subsídio deixado por seu marido, passou a
contar afetiva e materialmente com a assistência desse núcleo, o mais estável
da família. Anos mais tarde, passou a receber um benefício previdenciário,
a “renda mensal vitalícia”, popularmente denominada “pé na cova”. Com a
Constituição Federal de 1988, seu valor passou de meio salário mínimo para
um salário mínimo integral. Tratava-se de benefício individual e intransferível,
concedido aos que jamais contribuíram ou haviam contribuído parcialmente
para a previdência social. Era preciso apresentar uma declaração do empre-
gador, o endosso de alguma autoridade e realizar uma entrevista no INSS. No
caso de Pequitita, foi acionado o tradicional “jeitinho brasileiro”. Para com-
provar que tinha realizado “trabalho urbano sem contribuições”, amigos da
família declararam que ela tinha trabalhado como passadeira em sua casa.
Outra conhecida, diretora de uma escola (e autoridade moral), confirmou a
veracidade do fato, e Pequitita foi preparada pelos familiares para a entrevista
sobre sua “carreira profissional”.
Em 2001, a convivência diária com o núcleo familiar de sua filha mais
velha foi bruscamente interrompida por um câncer desta última. Como o tra-

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146 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

tamento seria longo, ela não teria mais como se responsabilizar pessoalmente
pela mãe, que, já em idade avançada e com deficiência cardíaca, necessitava
de atenção constante. Estando ambas fisicamente debilitadas, foi necessário
delegar a responsabilidade às outras irmãs. Esse período foi bastante instável
para a mãe, que constantemente mudava-se para a casa de um ou outro filho.
Houve, de qualquer modo, a transferência do cuidado para os outros filhos.
Em 2003, Pequitita faleceu. Diferentemente de seu marido, que mor-
reu e foi velado em casa, ela faleceu aos 87 anos no hospital e foi velada no
cemitério. A morte não era mais um momento a ser partilhado com a família
dentro de casa. Nenhum familiar quis “vestir a falecida” para prepará-la para
o funeral. As roupas foram enviadas para o hospital pela filha mais velha, e lá
uma enfermeira realizou o procedimento. O contato com o corpo sem vida do
ente querido estava em processo de transformação.
Todos achavam, àquela altura, que Pequitita “não morreria mais”. Por
diversas vezes estivera internada em centros de terapia intensiva — CTIs. Os
médicos a tinham desenganado uma dúzia de vezes: tinha o “coração grande”
e por isso não teria muito tempo de vida. Essa situação gerava brincadeiras
entre os filhos e netos: tão pequena, com um coração tão grande. Nas últi-
mas internações, os parentes pararam de se preocupar, pois acreditavam que
ela voltaria. Na última vez em que foi internada, a família não se mobilizou.
Na certeza de sua recuperação, não cancelaram nem mesmo um almoço em
comemoração pela primeira comunhão de um de seus bisnetos. No meio da
celebração, foram avisados de que ela estava “nas últimas”. Ninguém se im-
portou com a notícia. Pouco depois, ao receberem o aviso da morte, quase não
acreditaram.
No funeral, realizado num recinto do próprio cemitério, estiveram pre-
sentes filhos, noras, genros, netos, bisnetos, vizinhos e velhos amigos. Figura
muito querida de todos, do alto de seu 1,40 m de altura, era quase uma “lenda
viva”, como disse um de seus netos. Seus descendentes costumavam carregá-la
nos braços de um lado para o outro. Raramente falava alguma coisa, somente
ria das situações e das conversas. Mas era muito vaidosa, pintava os cabelos de
preto, fazia as sobrancelhas, pintava as unhas e adorava vestidos novos. “Não
contrariava ninguém”, diziam.
As situações que cercaram as mortes dos fundadores dos Campos mos-
traram tensões e mudanças importantes nos rumos da família, principalmente
em seu perfil religioso. Religião e experiência religiosa são temas centrais en-

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A família Campos 147

tre os Campos. O catolicismo ocupa lugar especial, como confissão religiosa


herdada e principal referência para a família. A princípio incontestável, essa
condição passou por profundas transformações. Antes, a palavra “igreja” au-
tomaticamente remetia ao catolicismo. “Fica perto da igreja” significava que o
endereço era próximo à igreja católica. A “igreja da praça” povoa a lembrança
daqueles que viviam na Baixada Fluminense nos anos 1950 e 1960. As igrejas
protestantes já tinham um papel definido na região há décadas, mas a predo-
minância do catolicismo se evidenciava também nas referências espaciais.
Tempos antes de falecer em seu próprio quarto, durante o período de
intenso sofrimento provocado por um câncer no pulmão, Geraldo recebeu a
visita de uma de suas noras, esposa de seu terceiro filho, ambos recém-con-
vertidos ao pentecostalismo.17 Lá encontrava-se também a filha mais velha de
Geraldo, que estava lhe fazendo uma visita.
O cenário era composto pelo patriarca doente em seu leito de morte,
sua filha mais velha, católica, e sua nora evangélica. Naquela situação aflitiva,
permitiram que se fizesse uma oração nos moldes pentecostais, apesar da an-
tipatia de Elza por essas práticas. Visitar os doentes e orar pela sua cura é uma
prática pentecostal. “Aceitar Jesus” é um imperativo para a salvação proposta
por esse campo. Não foi diferente a oração feita para Geraldo. Sua nora queria
mostrar com suas palavras quanto seria importante que ele “aceitasse Jesus”.
Sua salvação dependia dessa resposta. Num dado momento, o doente ergueu
um de seus braços. Com esse gesto iniciou-se uma grande controvérsia que se
prolongou pelas duas décadas seguintes. A “conversão do patriarca” se tornou
um mito familiar crítico, cercado por sentimentos conflitantes, de acordo com
a perspectiva de cada grupo religioso em questão. Suas respectivas versões
para o acontecimento correspondiam a dois processos concomitantes: a legiti-
mação da posição evangélica e a resistência da hegemonia católica.
A mão erguida foi interpretada de maneira totalmente diversa pelos pre-
sentes. A filha católica sustenta que o pai levantou o braço para manifestar
desagrado com as orações da nora, mandando-a ir embora. Esta, por sua vez,
tomou o gesto como uma a resposta positiva à pergunta: “você aceita Jesus?”.
A controvérsia sobre a conversão, ou não, do patriarca continuou duran-
te o ritual funerário, presenciado por todos os familiares. Havia representantes
das duas correntes religiosas em conflito. Os rituais deveriam seguir a tradição
religiosa familiar. Um padre católico faria a “encomenda” do corpo. Mas, como
viesse à tona a conversão do defunto, os familiares evangélicos reivindicaram

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148 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

sua participação nos ritos, legitimada pela conversão. Católica praticante e au-
toridade moral da família, a irmã mais velha não permitiu manifestações evan-
gélicas no velório e no enterro, impedindo as orações. Foi, assim, segundo o
ritual católico que enterraram Geraldo, aos 72 anos, junto com a sua própria
interpretação dos eventos ocorridos logo antes de sua morte.
Outra dimensão desse episódio foi apresentada à pesquisadora por João,
neto mais velho de Geraldo, também católico e primeiro dos cinco filhos de
Elza. Segundo ele, seu avô tinha chegado a lhe pedir que chamasse um padre
para ministrar a extrema-unção. Assim foi feito, e um padre amigo da família
realizou o ritual no próprio quarto do enfermo. O informante relatou esse fato
para confirmar a identidade católica de seu avô, principalmente porque não
tivera conhecimento da controvérsia até aquela entrevista, mostrando-se então
sensivelmente contrariado com tal “acusação”, capaz de manchar a memória
de seu avô.
A suposta conversão do patriarca permaneceu no imaginário familiar,
contribuindo para a disputa por legitimidade religiosa. Mas algumas mudan-
ças tornaram-se evidentes no funeral de Pequitita, em 2003. Momentos antes
do enterro propriamente dito, os netos convertidos ao pentecostalismo toma-
ram a palavra e fizeram orações em voz alta. A baixa escolaridade e a esponta-
neidade das falas era evidente. Não faltaram “aleluias!” e “Senhor Jesus”. Não
foram, no entanto, impedidos de manifestar sua fé e render suas homenagens.
As críticas continuavam a existir, mas começava-se a reconhecer o pluralismo
religioso intrafamiliar.
O cortejo fúnebre se encaminhou até o local onde o corpo seria enterra-
do. Lá chegando, fizeram-se novas orações. Não havia ali um padre católico,
pois nenhum estava disponível.18 A oração do pai-nosso congregou todas as
facções, mas o ritual católico ainda prevaleceu, com as orações finais e a en-
comenda do corpo. Confirmava-se assim uma crescente aceitação das conver-
sões religiosas e da participação efetiva dos evangélicos nas comemorações
familiares ao longo das décadas de 1990 e 2000, principalmente no tocante à
terceira geração. Ao mesmo tempo, os grandes encontros da família — com a
presença de todas as 10 linhagens descendentes — tornaram-se escassos.
Com a complexificação do campo religioso, principalmente devido à ex-
pansão e crescimento das igrejas pentecostais a partir dos anos 1970, as refe-
rências religiosas e espaciais foram ampliadas. Não há mais apenas uma igreja,
mas muitas, de vários nomes e tipos, não raro situadas lado a lado. A paisagem

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A família Campos 149

do bairro se modificou, à medida que se ampliava o rol de opções no campo


religioso. As igrejas evangélicas passaram a se destacar no panorama urbano
de São João de Meriti a partir dos anos 1980 — e o mesmo ocorreu nas outras
cidades da Baixada. Tornou-se inclusive difícil contá-las. Ao mesmo tempo, a
região sempre se caracterizara pelo grande número de terreiros de umbanda
e candomblé; mais discretos em sua disposição espacial. Essas religiões per-
manecem fortemente presentes na região, com grande número de terreiros
nos diversos municípios.19 Sempre mantiveram um convívio complexo com
o catolicismo, nos moldes do sincretismo hierárquico, vertical, tradicional no
campo religioso brasileiro.
Essa característica se evidencia no relato, muito repetido, sobre o poder
religioso que Pequitita, embora católica, detinha sobre os representantes das
religiões afro-brasileiras. Pequitita era católica fervorosa, carregava um terço
dentro das roupas, junto ao peito. Todas as noites rezava antes de dormir e
não era incomum vê-la durante o dia rezando “Ave Marias” e “Pais Nossos”.
Costumava andar com medalhinhas de Nossa Senhora do Carmo presas com
alfinetes na roupa. Essa característica está bastante vívida nas lembranças de
E. Gomes, que pôde conviver com a avó durante parte de sua juventude, pois
passou a dividir seu quarto com ela, após a morte de Geraldo.
A filha mais velha conta que o reconhecimento de seu “poder” vinha dos
próprios integrantes da umbanda e do candomblé. Diziam que sua mãe era
“filha de Nanã” e “protegida de Oxalá”. Quando algum filho-de-santo a via
passar na rua, logo lhe fazia reverências: abaixava a cabeça e pedia sua bênção.
Diz que sua mãe jamais teria participado de “rituais de santo”, não era “feita”,
nem gostava de freqüentar terreiros. Certa vez foi convidada para uma festa num
terreiro e, lá chegando, ficou assustada quando começaram a lhe fazer reverên-
cias, até mesmo se “ajoelhando aos seus pés”. Essa dimensão da vida de Pequi-
tita é contada com grande ênfase, mas em nenhum momento sua ligação com
as religiões afro-brasileiras, mesmo que distante, é vista como algo negativo. Os
contatos com as “pessoas de santo” não afetavam sua identidade católica.
Um episódio da vida religiosa de Geraldo aparece associado a esse mes-
mo tipo de religiosidade sincrética. Estava ele indo de trem para levar um filho
quase desfalecido ao médico, quando foi interpelado por uma mulher que lhe
disse que o problema não seria resolvido pela medicina, dando-lhe o endereço
do terreiro de um pai-de-santo. Geraldo mudou seu caminho e foi até lá para
uma “consulta”. E, segundo consta, seu filho realmente teve uma melhora.

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150 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

É notável a influência das religiões afro-brasileiras na primeira e segun-


da gerações dos Campos, ainda que não houvesse conscientemente qualquer
vínculo formal com elas. Tal fato, porém, remete às lembranças pessoais da
própria pesquisadora. Em diversas situações falou-se da possibilidade de rea­
lizar “trabalhos”, contra ou a favor de algum parente. Uma vez descoberto o
pretenso feitiço, na forma de despachos colocados no portão, na esquina ou
na linha férrea que atravessa o bairro, a conduta de praxe entre os familiares
era ir até lá e jogar urina em cima para “quebrar o feitiço”. Os “pozinhos” en-
feitiçados eram constantemente mencionados nas conversas, principalmente
entre as filhas de Geraldo e Pequitita, e por vezes apareciam espalhados pela
casa, guardados ou escondidos em saquinhos de pano. Geralmente eram uma
tentativa de interferir em uniões conjugais, seja para acirrar ou para apaziguar
os ânimos. Há notícia de casamentos alcançados por meio de “feitiçarias”.
Na própria vivência no quintal, esse sincretismo era evidenciado sobre-
tudo pelos casamentos com pessoas provenientes de famílias que praticavam
umbanda ou candomblé. Três dos filhos homens se casaram com mulheres
nitidamente enraizadas no universo afro-brasileiro. Um dos casos é mais en-
fatizado, por uma suposta associação com a quimbanda, considerada uma
vertente mais perigosa do culto. A mãe de uma das noras era mãe-de-santo “do
terreiro mais temido de Éden”, pois consta que lidava diretamente com “magia
negra”. O pertencimento mais explícito era o da referida nora de Geraldo e Pe-
quitita, que incorporava uma entidade denominada “Vovó Catarina” e atuava
como benzedeira no quintal de sua casa. A convivência era pacífica, mas por
vezes a tensão se manifestava em comentários jocosos dos parentes.20
Entre as mulheres da segunda geração também havia uma relação muito
próxima com essas religiões. A sogra de Elza, a filha mais velha, era partici-
pante ativa da umbanda. A sogra de Luiza integrava um candomblé da Bahia,
com todo o valor de autenticidade associado a essa origem. Mas, como se vê,
as religiões afro-brasileiras eram associadas sobretudo aos outros, aos afins. A
família — de sangue — é sempre apresentada e representada como católica.
Os que passaram a integrá-la por meio de relações de afinidade é que traziam
para o seu seio a magia e a feitiçaria, nas quais, entretanto, se acredita. Os
feitiços são reconhecidos e precisam ser quebrados, com mais fé, mais rezas,
ou até mesmo com o seu descarte. Numa ocasião, a amante de um integrante
da rede enviou um pudim para o aniversário de um dos filhos dele. Quando

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A família Campos 151

se descobriu a origem da iguaria, a primeira reação foi associá-la a algum tipo


de “macumba rouba marido”. A rejeição não foi puramente moral, devido à
impertinência da personagem, mas também, e sobretudo, religiosa.
Na terceira geração essa crença permanece, mas agora pautada pela influ-
ência evangélica. A noção a respeito das religiões afro-brasileiras se altera, pois
ao mesmo tempo em que se reconhece a sua eficácia — como nas gerações
anteriores —, há uma mudança de tom: elas devem ser combatidas, uma vez
que suas formas de expressão são consideradas demoníacas.
Um traço importante nessa relação concerne à associação negativa que é
estabelecida entre os praticantes das religiões de possessão e as “perturbações
físico-morais”.21 Os membros mais individualizados recorrem a argumentos
psicologizantes para explicar a adesão de membros da família a outras confis-
sões religiosas que não a católica, em função da presença da possessão, tanto
afro-brasileira quanto pentecostal. Cabe ressaltar que, mesmo admitindo-se a
“perturbação”, a crença na magia não perde o sentido. O ditado é sempre re-
petido: “não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem”. Em algumas
falas é impossível distinguir a diferença entre “problema de nervos” e ques-
tão religiosa. Um episódio recorrente, que evidencia essa ambigüidade, tinha
como principais personagens a nora que incorporava a “Vovó Catarina” e um
de seus cunhados, filho do casal de referência, diagnosticado como “psicóti-
co”. Valter estivera internado em clínicas psiquiátricas em diversos períodos.22
Toda vez que “surtava”, um de seus principais alvos era a cunhada. Sua “ma-
luquice” exprimia-se no deboche sobre a condição de “cavalo” que a cunhada
assumia ao “receber” o seu caboclo. Ele apontava insistentemente para ela e a
xingava, às gargalhadas, talvez querendo com isso dizer que também ela seria
“maluca”, embora não recebesse tratamento como ele. Os parentes chama-
vam então o Corpo de Bombeiros, que enviava uma ambulância para recolhê-
lo à internação. No caso do “nervoso”, o diagnóstico médico corroborava a
conveniência do afastamento do “doente” do ambiente familiar. Em relação à
manifestação da entidade, havia uma disposição ambígua, com limites muito
imprecisos. Embora uma parte acreditasse no discurso medicalizado — com
laivos de crença na magia —, outros temiam seu poder religioso. O fato é que
só o “psicótico” dizia abertamente aquilo que muitos parentes pensavam.
O código de leitura através das “perturbações” segue hoje seu curso com
mais vigor, com um novo alvo: os evangélicos. No entanto, a recusa emerge
numa relação contrastiva, de oposição, e não de englobamento. O catolicismo,

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152 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

a umbanda, o candomblé e mesmo a “magia negra” da quimbanda estavam


num mesmo registro religioso. As relações mudaram quando o novo persona-
gem surgiu em cena, para dar nova configuração ao perfil religioso familiar.
Foi esse o desafio da conversão às igrejas evangélicas na fase adulta dos fa-
miliares da segunda geração e da geração subseqüente. A primeira conversão
— como se viu — ocorrera ainda na segunda geração, nos anos 1980, quando
o filho mais novo se converteu à Igreja Batista.
A conversão não se deu sem tensão. A herança religiosa familiar passava
a correr maior risco: um integrante, de dentro, se recusava a assumir o papel
o que lhe fora designado. Foi o primeiro contato mais próximo e crítico com
a possibilidade do pluralismo religioso intrafamiliar. Sebastião era o filho mais
novo dos 10 irmãos vivos. A primeira reação da família, de tradição católica,
foi de resistência ao relacionamento, com base num pertencimento religioso
que figurava como marca distintiva da identidade familiar. Em geral, os “cren-
tes” eram considerados fanáticos e passíveis de ser enganados pelos pastores.
A posição na fratria — de filho caçula — corroborava a presumida incom-
patibilidade com a religião adotada. Para a família, ser caçula significava ser
sempre menor, tutelado, ingênuo. Para o “transgressor”, a mudança de religião
e o casamento acabavam por romper, de alguma forma, com essa condição
inferiorizada em relação aos demais. O processo de adesão à nova confissão se
deu já na idade adulta e teve como resultado sua inserção numa família batista
tradicional do bairro. O casamento também trouxe mudanças na regra de re-
sidência. Foi Sebastião quem seguiu sua esposa, indo morar na casa dos pais
dela. Ele permanece até hoje na Igreja Batista e na mesma residência, com sua
esposa e filhos. Professora de formação, ela trabalha em escolas da rede pú-
blica e é filha única de uma família de classe média baixa que investiu na ins-
trução da filha. Portanto, existe aí também um componente de auto-afirmação
social pela hipergamia. Esse foi apenas o início de uma crescente diversificação
do perfil religioso da rede familiar — evidente na terceira geração —, tendên-
cia que parece acompanhar as mudanças gerais observadas no panorama do
campo religioso brasileiro contemporâneo.
O que caracteriza as relações conjugais da segunda geração é a formali-
zação do vínculo conjugal a partir do casamento religioso, com forte ênfase na
regulação pelo catolicismo. Já na terceira geração, a tônica é a diversificação
dos tipos de relações estabelecidas e a maior legitimação dos casais “amigados”
e dos casamentos evangélicos. Enquanto na segunda geração o casamento reli-

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A família Campos 153

gioso se dava majoritariamente na Igreja Católica, na terceira geração os casa-


mentos evangélicos assumem posição de destaque. Dos 28 netos vivos, nove
se casaram no religioso — três na Igreja Católica e sete em igrejas evangélicas.
O perfil religioso da terceira geração é diversificado, mas o dado mais inte-
ressante é que durante uma década não houve nenhum casamento católico,
enquanto cinco ocorreram em igrejas evangélicas. Em 2007, depois de muitos
anos e muitos preparativos, foi realizado o casamento de uma filha de Maria
Luiza e Adílson na Igreja Católica. No entanto, mesmo nesse casamento se
percebem as mudanças no perfil religioso. Os noivos, católicos praticantes e
simpatizantes do catolicismo carismático, organizaram o casamento com mú-
sicas e orações nessa linha. O padre, primo do noivo, seguia o mesmo perfil.
Começou o ritual “invocando” enfática e performaticamente a presença do
“Espírito Santo”. O pluralismo se fez presente e atuante. Uma prima, ainda
adolescente, mas convertida à Assembléia de Deus e membro do coral dessa
igreja, cantou uma música evangélica em momento de oração. A mãe do noi-
vo, batista, abençoou os noivos juntamente com os pais católicos da noiva.
O casamento no religioso, seja qual for a confissão, não é hegemônico.
Enquanto na segunda geração houve apenas uma relação conjugal classificada
como “amigamento”,23 na terceira essa modalidade de vínculo afetivo ganhou
espaço. Ainda que para diversos membros da rede familiar se trate de um laço
frouxo entre parceiros, sempre incompleto e passível de dissolução, não há
separações entre os casais amigados. A tendência é que, com certo tempo de
convivência, os parceiros legitimem a união por meio do casamento civil ou
religioso. O casamento é um valor que orienta a ordem familiar, tanto quanto
todos os demais tipos de vínculos afetivo-sexuais presentes na rede familiar.
Já se mencionou que oito dos nove netos que chegaram à universidade
tinham sofrido forte influência da filha mais velha do casal original. Pode-se
afirmar que eles integram os dois núcleos mais identificados com o catolicis-
mo. A trajetória da nona dessas netas entrecruza dois pontos cruciais: é filha
única e se converteu, ainda na adolescência, à Igreja Brasil para Cristo (pente-
costal), tendo-se casado com um membro da mesma denominação religiosa.
De acordo com a percepção católica, há uma desvalorização dos laços con-
sangüíneos após uma conversão evangélica. “Os irmãos agora são eles!”, disse
a liderança católica da família, com certa mágoa e em tom de acusação, expres-
sando o novo sentido de família que os convertidos adquirem. As festividades
evangélicas, religiosas ou não, além de serem vistas como um chamariz osten-

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154 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

sivo, passam a ser consideradas como espaços de competição. A parte católica


demonstra ressentimento e receio de que a família extensa se desintegre através
das conversões. Por outro lado, os membros que se convertem às confissões
evangélicas buscam legitimar seu lugar na família, organizando festas e celebra-
ções. Assim é que os convertidos são acusados pelos católicos de “se sentirem
o máximo”. As conversões são tidas como uma traição, na medida em que vão
contra a unidade da família. Ao mesmo tempo representam um risco para a he-
gemonia católica, que vem perdendo o poder de agregar a rede familiar.
O convertido adota comportamentos distintos daqueles anteriores à con-
versão, privilegiando as relações de sociabilidade com seus “irmãos de fé”. As
mudanças podem ser encaradas pelos outros membros da rede familiar como
positivas ou negativas. A conversão é positiva quando promove mudanças in-
dividuais de comportamento que levam ao abandono de práticas vistas como
desordens ético-morais relacionadas ao alcoolismo, às drogas, à sexualidade,
sobretudo. Por outro lado, a perspectiva católica percebe as conversões de
forma negativa quando as novas práticas adotadas pelo convertidos se substi-
tuem à relação com os familiares consangüíneos.
Apesar da parte católica manter certa rejeição, há o reconhecimento de
alguma positividade nas conversões. O passado transgressor assume um sig-
nificado importante no processo de restauração de suas vidas, tendo a religião
e a família como principais elementos dessa ordenação da vida. Para o lado
católico, um aspecto positivo das conversões é quando a moralidade pregada
por uma nova opção religiosa regula a prática afetiva e sexual através do ca-
samento. Mesmo que este seja realizado em igreja evangélica, a aceitação do
evento se torna mais fácil, ainda que a tensão permaneça.
A participação, ou não, da “mãe menor” (ou “filha mais velha”) — lide-
rança católica da rede — nas festas e celebrações organizadas por membros
convertidos da família é uma questão permanente. Nota-se que existem graus
diferentes de importância para os eventos: casamentos e batismos não pos-
suem o mesmo valor que festas de aniversário, por exemplo. Ir a uma festa de
aniversário significa prestigiar a família, ainda que integrantes da “família de
fé” do organizador do evento estejam presentes e sejam feitas orações ou reali-
zados outros rituais religiosos. A tensão é evidente em situações mais formais,
como, por exemplo, uma cerimônia de casamento no religioso. A participação
da filha mais velha é solicitada e esperada. Sua ausência ou presença implica
sentimentos muito profundos de satisfação ou de recriminação.

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A família Campos 155

Os casamentos ganham especial relevância no processo de aceitação e


negação do pluralismo religioso intrafamiliar. Em geral, rituais como batismos
não contam com a presença de representantes de outras confissões religio-
sas, sejam eles católicos ou evangélicos, pois só fazem sentido para aqueles
que compartilham do mesmo pertencimento. Num casamento a questão é
mais complexa, por ser considerado um ritual mais relacionado à coletividade
abrangente. É um evento tanto religioso quanto social. A filha mais velha não
participa de eventos que possam consolidar o lugar dos evangélicos na família.
Recusa-se a participar das cerimônias de casamento em templos evangélicos,
mas marca sua presença nas comemorações posteriores ao ritual. Já quando
lida com as regras de sociabilidade familiar, ela busca compatibilizar as dife-
renças para não romper os laços de solidariedade. Dependendo da situação,
elaboram-se diferentes argumentos, mediações e percepções. Para a filha mais
velha, “casamento mesmo é na Igreja Católica”. No entanto, há limites para
essa rejeição: é o sentimento familiar que dá o tom.
A disputa por espaços assume outra dimensão quando se considera o
lugar do gênero nos arranjos familiares. A adesão às práticas religiosas da mãe
do marido tem sido freqüente. Mesmo que este não freqüente a denominação
de sua mãe, a sogra assume papel crucial na adoção de um novo ethos reli-
gioso pela nora. Esse processo deve ser analisado em conjunto com a regra
de patrilocalidade, uma vez que são as mulheres da rede familiar estudada
que se mudam para os “quintais” das famílias de seus maridos. O quintal é
aqui entendido de maneira ampla, levando em conta os domínios morais da
respectiva família de adoção. A adesão à nova família não ocorre sem tensão,
principalmente quando também inclui a adoção da confissão religiosa da fa-
mília do marido, evidenciada na escolha do local do casamento religioso.
Vários são os motivos para a ausência dos católicos nos casamentos e
outros eventos organizados pelos evangélicos. Pode-se não comparecer para
não legitimar o evento, para que os evangélicos não “se sintam o máximo”. Os
não-religiosos justificam sua ausência pela restrição de bebida alcoólica nessas
ocasiões, consideradas como “momentos chatos”. Havendo ou não participa-
ção, esses eventos se tornam assunto de conversas até muito tempo depois
de sua realização. São situações recorrentemente lembradas para demonstrar
contentamento ou mágoa, rejeição ou acomodação.
A rede familiar analisada passou por significativas mudanças com a emer-
gência do pluralismo religioso e a convivência com uma nova lógica religiosa

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156 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

exclusivista. A participação dos evangélicos nas celebrações e rituais familiares


é percebida pelos católicos como uma cortesia, já que os aturam por respeito
ao bem maior: a família. Por outro lado, os evangélicos procuram conquistar e
afirmar seu espaço. Em geral, seguem sua disposição proselitista, englobando
a vida familiar pela religião.
As mudanças prosseguem. É possível afirmar que as conversões não fo-
ram paradigmáticas: os que se convertem não são os que têm uma trajetória
de forte adesão ao catolicismo. Na segunda geração houve uma forte reação às
conversões, por representarem uma ruptura com a tradição religiosa familiar.
A conversão do filho mais novo só foi aceita porque se reconheciam a res-
peitabilidade e estabilidade da nova família adotada. Na terceira geração, os
convertidos ganharam espaço, mas a luta por sua legitimação ainda prossegue.
Hoje, são eles quem mais realizam festas e celebrações no intuito de agregar
toda a rede familiar. A relação é ambígua. Por um lado, a mudança de religião
pode ser reconhecida como uma atitude séria, caso haja uma adesão compro-
metida, identificada pela fidelidade religiosa. Mas o argumento católico pode
insistir em desqualificar e duvidar da autenticidade das conversões. As tensões
religiosas são hoje — de qualquer modo — centrais dentro da rede familiar.
Talvez se deva pensar não numa oposição entre “família de fé” e “família de
sangue”, mas em diversas configurações de uma mesma família de sangue com
diferentes tipos de fé.
A configuração do bairro-vizinhança e da rede familiar se alterou signi-
ficativamente nas últimas três décadas do século XX. Em relação ao bairro,
nos anos 1970 e 1980, quando a maioria dos integrantes da terceira geração
estava entre a infância e a adolescência, havia um comprometimento moral
dos moradores pelo fato de “morarem no mesmo bairro” e de terem partilha-
do a infância e a adolescência. Conhecia-se a ascendência de cada um, para o
bem ou para o mal, e as linhagens eram reconhecidas por estarem associadas
à tradição local. Um dos principais pontos de encontro era a rua. As crianças
brincavam, em geral, coletivamente. Para os jovens e os adultos, as esquinas
eram os principais pontos de encontro, principalmente aquelas onde havia
bares e padarias. A esquina situada na praça principal do bairro era a preferi-
da. Ovos coloridos, torresmos, carne assada, caldinho de feijão e mocotó eram
os petiscos consumidos, sempre acompanhados de cerveja, em conversas que
se estendiam até de madrugada e que serviam para pôr em dia os assuntos
e problemas individuais e coletivos. Não havia uma fronteira moral nítida

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A família Campos 157

entre os integrantes: tratava-se de uma ligação afetiva e relacional promovida


pelo “crescer junto”, “jogar junto” jogos de azar ou “peladas” nos campos de
futebol da região. Nesse espaço podiam ser encontrados políticos, policiais,
“justiceiros”, “bicheiros”, comerciantes, professores etc. As transgressões e os
limites ético-morais de todos eram reconhecidos. Havia um código fundado
na honra, na confiança e no respeito à hierarquia, mesmo em relação àqueles
que exerciam atividades ilícitas e ou mesmo violentas.
Nos anos 1980, esse modelo perdeu espaço gradativamente. A família
Campos também foi afetada por essas mudanças. Morando no bairro há quase
quatro décadas, sentia-se plenamente segura diante das normas de vizinhança
vigentes. Dificilmente os moradores antigos e suas linhagens eram atingidos
pelas vicissitudes do crime, principalmente assaltos. Estes passaram, no en-
tanto, a ocorrer e foram percebidos como uma verdadeira afronta a todos. Um
assalto à casa da filha mais velha do casal fundador é um bom exemplo disso.
Por volta das três horas da manhã de um sábado do ano de 1986, dois homens
jovens, armados, invadiram a casa. Não contavam com a presença do “chefe
da casa”, que dormia com a esposa em seu quarto. Apenas dois filhos estavam
em casa naquela noite. João percebeu o movimento estranho e, segundo di-
zem, “atirou primeiro para perguntar depois o que eles estavam fazendo ali”.
Portar uma arma em casa ou andar armado na rua não era um comportamento
incomum em Éden. Um dos invasores fugiu, e o outro tombou com um tiro
no peito. João desapareceu e, como se comentou depois, “saiu do flagrante”.
Foi até à “esquina”, que fica a uns 100 metros da casa, e lá encontrou seus
companheiros, que imediatamente foram ao encontro do “meliante abusado”.
Até aquele momento, pensavam que o assaltante estava morto — o que não
ocorreu.24 Enquanto amanhecia, armou-se uma cena curiosa: um grupo de-
cidia o seu destino. Uns defendiam o “arquivamento” do caso por meio da
eliminação do sujeito: “mata e joga na vala”. Essa proposta foi radicalmente
rejeitada pelo dono da casa, que, paradoxalmente, teve de negociar pela vida
do invasor. Este foi então conduzido até à delegacia pelos policiais. Nos dias
subseqüentes, o casal e seus filhos receberam visitas. O tom das conversas era
de indignação, não pelo assalto em si, mas pela audácia de ter sido realizado
na casa de uma família tradicional do bairro. O fato repercutiu enormemente.
Amigos, vizinhos e parentes circulavam pela casa. João teve que realizar várias
reuniões em seu escritório, inclusive com políticos e autoridades policiais.
Tratava-se de momentos essencialmente masculinos. E. Gomes lembra que

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158 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

entre os participantes estava até mesmo uma importante figura do submun-


do da Baixada Fluminense, um “justiceiro” que tinha “mais de 100 mortes
compu­tadas”, segundo as fofocas que circulavam pelos outros cômodos da
casa. Todos se puseram à disposição do aviltado, dando-lhe apoio para o que
ele resolvesse. Foi muito difícil convencê-los de que seu desejo não era elimi-
nar os dois bandidos. Obviamente, os dois ficaram com seus nomes marcados
na lista dos “grupos de extermínio” que reinavam na região.25 Contudo, uma
dessas visitas foi marcante: os pais de um dos rapazes foram até à casa de João
e Elza, pediram para entrar e foram recebidos com cortesia. Puseram-se cadei-
ras no quintal e todos conversaram por alguns minutos. O motivo da visita era
pedir “perdão” pelo ocorrido em nome da família, que estava profundamente
envergonhada: afinal, também eram moradores do bairro e, principalmente,
evangélicos. João procurou desvincular o comportamento do filho da figura
de seus pais. A conversa foi “de homem para homem”, apesar da presença das
respectivas esposas. O anfitrião foi taxativo: “com vocês não tenho problema
algum, podem ficar tranqüilos. Mas, quanto a ele, diga para nunca mais apa-
recer no bairro. Mande que não atravesse o meu caminho”. O respeito pela
família afrontada prevalecia, mas era evidente o receio de retaliações, pois
sabiam o papel e a posição ocupada por João no bairro. A presença do filho
assaltante seria considerada como ofensa e falta de respeito. Por duas vezes,
nos anos seguintes, esse acordo não foi cumprido, o que gerou uma reação
truculenta. Hoje o bairro convive com distintas lógicas, quase sempre em con-
fronto. Como acentua Elza: “mantenho meu portão trancado, diferente do que
fazia antes, quando estava sempre aberto. Hoje tenho medo”.

Notas

1
Disponível em: <www.muriae.mg.gov.br>. Acesso em: 6 jun. 2007.
2
A Região Metropolitana do Rio de Janeiro é composta pelos seguintes municípios:
Belford Roxo, Duque de Caxias, Nilópolis, Japeri, Nova Iguaçu, Queimados, São
João de Meriti (todos na Baixada Fluminense), Guapimirim, Itaboraí, Magé, Man-
garatiba, Maricá, Niterói, Paracambi, São Gonçalo e o próprio Rio de Janeiro.
3
Costa (2006) elabora uma boa síntese da história e do processo de estigmatização
da região e de seus moradores. Destaca, no entanto, a existência de “novas constru-

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A família Campos 159

ções identitárias” locais a partir dos anos 1990, quando a Baixada passa de “gueto”
a “caldeirão cultural”. Ver também Enne (2002).
4
A região, considerada uma “cidade dormitório”, fornece mão-de-obra especialmen-
te para a cidade do Rio de Janeiro. Em conjunto com os demais municípios, São
João de Meriti tornou-se conhecido por figurar nas páginas policiais dos jornais
como “área de desova” e quase sempre como sinônimo de violência e miséria, o que
lhe confere uma carga negativa e preconceituosa (ver Alves, 1998). Sua densidade
demográfica é hoje a mais elevada do país (ver IBGE, 2000).
5
Disponível em: <www.prefeiturasaojoaodemeriti.rj.gov.br/eden.html>.
6
Mas também há relatos sobre a conservação das carnes em banha de porco, em
latões de 20 litros. Geraldo não comia abóbora porque era “comida para porcos”
nas fazendas. Essa postura pode parecer contraditória, mas, se a associarmos ao
período próspero anteriormente vivido em Minas Gerais, em contraste com o pos-
sível passado de pobreza na infância, torna-se compreensível que “comer abóbora”
simbolizava sucumbir à nova condição de pobreza que se apresentava.
7
Birosca é um tipo de comércio familiar construído à frente das casas, em bairros
populares. Geralmente aí se vendem vários produtos, mas principalmente bebidas
e salgados. Ver Machado da Silva (1969) para uma análise do botequim de favela,
antecessor da birosca.
8
Bourdieu, 1962; Salem, 1981; Duarte, 1986; Sarti, 1995 e 1996.
9
Whyte, 2005.
10
DaMatta, 1997.
11
Essa “patrilocalidade” poderia ser interpretada nos termos do privilégio da relação
entre os filhos homens e suas mães nas classes populares, tal como proposto por
Salem (2006) com relação ao conhecido tema da “matrifocalidade”. O modelo re-
ferido, no entanto, aplica-se às freqüentes unidades domésticas em que o pai pro-
vedor é fraco ou está ausente e em que a moradia do filho representa, no mais das
vezes, sua separação da companheira ou da mãe de seus filhos. A situação aqui é
outra, já que se trata da agregação de novos núcleos completos a uma unidade ori-
ginal em que o pai esteve presente até sua morte (ocasião em que a viúva se afastou
de sua própria casa).
12
Essa locução marca a distinção entre a Baixada Fluminense e a cidade do Rio de Ja-
neiro. Quando se dirigem para o Centro da cidade do Rio de Janeiro, os moradores
da Baixada costumam dizer que vão “descer para a cidade”.
13
Nas camadas populares, a entrada masculina na “viração” ocorre já na adolescência
ou mesmo na infância, sem considerar outras dificuldades supervenientes para a

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160 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

permanência em todo o período escolar. A entrada precoce no mundo do trabalho,


quase sempre informal, é uma constante.
14
Ensino privado não significa, automaticamente, ensino de qualidade. Garantir o
acesso dos filhos ao ensino formal se relaciona mais à presença de um ethos que
privilegie a educação como meio de ascensão social do que à simples dicotomia
entre ensino público ou privado.
15
A Lei no 9.504, de 30 de setembro de 1997, no §3o do art. 10, visando criar meca-
nismos de estímulo à participação feminina, estabelece: “do número de vagas resul-
tantes das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação deverá reservar o
mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo”.
16
O PT só alcançou esse objetivo nas eleições municipais de 2004, elegendo um padre.
17
Essa nora era conhecida por incorporar uma entidade chamada “Vovó Catarina” e
por ser rezadeira. Era procurada pela vizinhança para tratar de “espinhela caída”,
“mau olhado” e outros males.
18
São poucos os padres para atender a todas as paróquias e comunidades católicas
da região. Boa parte dos rituais e celebrações é coordenada por leigos, os chamados
“ministros da palavra”.
19
Em 1997 havia pelo menos 3,8 mil terreiros na Baixada Fluminense, segundo o
Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira — Cenarab.
20
Um dado curioso concerne sua aparência: loura de olhos azuis, era a nora mais
“branca” do casal Campos.
21
Duarte, 1986.
22
Segundo sua irmã mais velha, era o mais “sensível” dos irmãos; marceneiro como o
pai, gostava de cantar e tocar instrumentos musicais.
23
Sílvio e Ângela mantiveram esse tipo de vínculo por quase três décadas, até a morte
da mulher.
24
Depois descobriu-se que a bala que atingira o assaltante, por estar fora de validade,
havia ricocheteado. Por causa disso, João foi apelidado pelos “rapazes da esquina”
de “xerife ricochete”, em alusão a um desenho animado da época.
25
A existência de uma “lista” de pessoas marcadas para morrer no correr do ano não
é uma ficção. No bairro, ela ficava afixada na parede de um mercado. A lógica era a
do “escreveu não leu, o pau comeu”. Era muito grande o número de assassinatos e
de corpos “desovados” no bairro, fato que perdurou até início dos anos 1990. Sus-
peita-se que na década de 1970 alguns desses assassinatos se davam por motivos
políticos. E. Gomes lembra que, em casa, sempre ouvia dizerem em voz baixa: “mas
esse era trabalhador!”.

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Capítulo 5

C a s a e f a m í l i a nas classes
p o p u l ares

O acesso a uma casa — que representa sua inclusão em uma família — pode
representar a diferença entre a possibilidade de se manter nos segmentos mais
estabilizados da classe trabalhadora ou de se transformar em um morador
de rua, naquele “trabalhador que não deu certo”, na apropriada
expressão de Delma Pessanha Neves.
Guedes, 1983:133

O ente social que se chamará aqui de “família X” corresponde a um recorte


numa rede de pertencimentos relacionais assim definidos a partir de de-
terminado ego ou determinada unidade doméstica. Esse tipo de rede não tem
contornos fixos em nenhuma cultura, mas apresenta uma particular variabili-
dade na cultura ocidental moderna.1 Não
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só a rede se transforma fisicamente a
partir de nascimentos, casamentos e mortes, como também o reconhecimento
do pertencimento dos distintos elementos varia ao longo da trajetória de ego
ou do ciclo de desenvolvimento do núcleo doméstico,2 ou, ainda, numa mes-
ma faixa temporal, em função das situações em que a exigência de definição
se lhe apresente.
O ente moral aqui chamado de “família” corresponde a uma rede de
“parentes entre si” que se consideram descendentes, em parte, de ancestrais
comuns e que entendem que isso lhes propiciou também algum tipo de
comunhão de experiência de vida e de circunstâncias sócio-históricas que
pode ser rememorada, revivida, celebrada ou transmitida a outros descen-
dentes. Em certos casos, pessoas que não possuem relações de consangüini-
dade ou de afinidade com os informantes são consideradas “como parentes”,
enfatizando-se assim sua forte proximidade e identificação. São notórios, em
nossa cultura, os apelativos de parentesco aplicados a não-parentes numa
ampla gama de situações em que prevalecem relações densas (amizade, es-
cola e religião, sobretudo). Laços de compadrio também expressam a possi-
bilidade de ampliação da noção de parentesco, pois pelo batismo é possível

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162 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

o ingresso no rol de parentes (pai e mãe) “espirituais”.3 Tais nomeações ocor-


rem “dentro de um conjunto potencialmente muito mais amplo, o conjunto
aberto de relações que são concebidas como relações biológicas entre os
indivíduos (relações de sangue), as relações estabelecidas pelos casamentos e
as relações de consideração”.4
Um dos aspectos marcantes do sistema de parentesco ocidental a inter-
ferir nesse contínuo trabalho classificatório é a preeminência da ideologia da
herança bilateral,5 que pressupõe o interesse simétrico pela parentela paterna
e materna. É notório, no entanto, que esse equilíbrio dificilmente se produz,
pois tendem a se estabelecer marcadas diferenças na extensão ou no tipo de
pertencimento de cada uma das linhagens. Nesse caso, o afastamento ou a
proximidade relacional não é uma questão puramente instrumental, relacio-
nada ao distanciamento espacial. Morar no mesmo bairro ou nas imediações
não significa vínculo ou reconhecimento imediato da inserção no sistema de
parentesco.
A maior ou menor amplitude da rede reconhecida também depende do
peso diferencial atribuído aos consangüíneos e afins, ao sabor do tempo ou
das situações. Em determinados momentos ou para determinados objetivos,
os afins podem ou não ser incluídos na trama (ao lado dos parentes “naturais”,
de sangue).6 Em casos extremos, alguns dos consangüíneos podem ser excluí-
dos desse entrelaçamento, podem ser esquecidos ou colocados à margem nos
relatos elaborados sobre a constituição das redes familiares.7
Também varia muito a profundidade temporal do reconhecimento per-
sonalizado da descendência. Em princípio, nas sociedades ocidentais, as elites
tendem a conservar maior profundidade, por motivos pragmáticos (heranças
de diversos tipos, inclusive de recursos objetivados de memória) ou de pres-
tígio (emulando provavelmente o antigo privilégio aristocrático das linhagens
portadoras transgeracionalmente de determinada aura social). Nas classes po-
pulares, a profundidade raramente supera a barreira de três gerações ascen-
dentes em relação a ego. Como visto no caso da família Costa, a memória
familiar pode ter a pretensão de cobrir uma extensão mais que centenária,
com a menção a ancestrais quase míticos, mas o fio da descendência não é
conservado de acordo com as convenções objetivadas eruditas. Esse fenômeno
tende a ser generalizado em situações de isolamento social (como foi o caso
de Jurujuba até recentemente), com a evocação de ancestrais fundadores da
“comunidade” atual. Na família Campos a manutenção da memória familiar

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Casa e família nas classes populares 163

não faz parte das preocupações essenciais de seus integrantes. Salvo raras ex-
ceções, a lembrança dos antepassados se restringe ao nome dos avós e de
alguns episódios, geralmente engraçados (ou assim considerados a posteriori),
que evocam atitudes presenciadas pelos respectivos netos. Estes, já adultos
e com filhos que conviveram por poucos anos com os avós, compartilham
essas lembranças ou com a geração anterior ou com a sua própria. É notória
a defasagem na transmissão dessas informações à geração subseqüente, ou
seja, os filhos dos netos, que, mesmo participando dos encontros familiares,
são ainda crianças e não incorporam os detalhes das narrativas. Além disso,
não há uma pedagogia de transmissão da memória familiar a elas direcionada.
As recordações e os nomes se atualizam entre os adultos, que poucas vezes
se reúnem para “lembrar” e se perdem na relação frouxa estabelecida com as
novas gerações. Assim, os vínculos com os antepassados são paulatinamente
esquecidos, na falta de recursos formais ou institucionais de memória.
Outro problema regular da pesquisa com redes familiares consiste na
objetivação de uma experiência fluida e móvel de relações de parentesco num
“quadro” estabilizado. Não é recente na antropologia a consciência e a crítica
do efeito desvirtuador do sentido da experiência relacional original produzido
pela representação ocidental de um “quadro genealógico”, “grade de parentes-
co” ou “árvore genealógica”,8 em virtude da hegemonia de nossa ideologia da
descendência “de sangue”, da conseqüente bilateralidade do reconhecimento
dos laços ascendentes e descendentes e do enrijecimento, num esqueleto for-
mal, de uma complexa e permanente mobilidade.
Embora a ideologia da descendência substantiva pelo sangue seja com-
partilhada por todos os segmentos das sociedades ocidentais, ela não leva
necessária nem regularmente à formalização de quadros genealógicos. Trata-
se de uma prática que, no caso aqui examinado, era totalmente estranha aos
Costa, aos Gomes e aos Duarte, que não dispunham de qualquer representa-
ção objetivada desse tipo. A própria preocupação com a preservação da me-
mória da composição das gerações pretéritas não era distribuída uniforme-
mente nessas famílias. Sempre parecia haver portadores preferenciais dessa
memória,9 mas sua sucessão não era linear ou garantida. Na medida em que
são os membros mais velhos dessas redes (e, entre eles, prioritariamente as
mulheres) que tendem a assumir a função de rememorar as condições ante-
riores da vida familiar — e, por meio delas, as formas passadas de composi-
ção das redes —, também se pode verificar uma distribuição desse papel nas

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164 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

gerações mais novas.10 É difícil prever, no entanto, em cada momento das


trajetórias familiares, quem, na geração que se vai tornando adulta, acolherá
tal atribuição, ou mesmo se esta não será relegada ao esquecimento, em vir-
tude de algum outro fator centrífugo.
Os Duarte, sobretudo em função da ideologia de distinção de sua li-
nhagem materna, chegaram a manter pelo menos um membro da segunda
geração e dois outros da terceira geração ocupados em preservar alguns as-
pectos da memória das linhagens e da referência dos colaterais das gerações
passadas. Mas isso por causa da continuada presença, na família, de alguns
objetos herdados, tidos como prestigiosos, e de um acervo fotográfico anti-
go de alguma monta. Além disso, o fato de ter havido relações sociais mais
ou menos regulares com colaterais muito afastados exigia um registro mental
das conexões que os tornavam reconhecíveis como parentes (embora isso já
não fosse totalmente claro para os membros da terceira geração). O trabalho
de memória não parecia assim muito autonomizado, mas atrelado à perma-
nência de testemunhos ou vínculos das relações familiares passadas. No caso
dos Costa, a memória da família se confundia facilmente com a memória do
bairro “pescador”, uma vez que, como disse Geraldo, “atualmente nossa famí-
lia agora é pouca gente. Teve época em que Jurujuba em peso era Pereira de
Abreu [a família de sua mãe]”. Entre os Campos, quem conserva a memória
dos antepassados é a filha mais velha, que pôde conviver com os avós e com
alguns dos distantes colaterais de seus pais na infância e guarda desse período
situações, histórias e eventos. Os demais integrantes da segunda geração mal
sabem citar os nomes de seus avós e, quando inquiridos a respeito, sempre
repassam a questão para a primogênita. Raros são os objetos legados aos des-
cendentes do casal original. São fotografias de eventos marcantes das vidas dos
próprios filhos, como primeira comunhão e casamento, e fotos três por quatro
tiradas para documentos oficiais, em sua maioria em antigos lambe-lambes.
Atualmente, grande parte desse acervo está sob a guarda de E. Gomes, que o
recebeu para integrar o material de pesquisa.
Nas casas existem objetos de consumo e relíquias familiares. Os objetos
religiosos ocupam lugar de destaque, ao lado daqueles que adquiriram atri-
butos afetivos singulares para as famílias a que pertencem, como os que são
legados de geração a geração. Evocando Mauss (2001), o objeto/coisa que cir-
cula “não é inerte”, transcende seu conteúdo puramente material, incorpora e
transmite como “espírito” os valores e os significados das relações sociais nele

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Casa e família nas classes populares 165

inscritas. Assim como a lembrança dos nomes dos antepassados não vai muito
além dos avós, salvo para os poucos especialistas das “memórias familiares”, os
objetos parecem também se perder na dinâmica familiar das camadas popu-
lares. Os significados ficam restritos a determinados ramos ou núcleos e facil-
mente se diluem logo nas primeiras gerações subseqüentes. Os deslocamentos
espaciais (na casa ou entre casas) e transgeracionais dos objetos sempre lan-
çam luz sobre as dinâmicas englobantes.11
L. Duarte foi o primeiro a transformar os dados esparsos das memórias
individuais das famílias estudadas numa tabela ou quadro racionalizado (tanto
para os Costa quanto para os Duarte). Em ambos os casos, houve certa dificul-
dade, por parte dos informantes a quem foram mostrados esses quadros, para
perceber através das convenções antropológicas da descendência as relações
reais a que buscavam se referir. A partir daí, no entanto, interessavam-se em
completar ou corrigir as lacunas dessa fórmula, embora ficasse claro — mais
para os Costa do que para os Duarte — que a memória e o conhecimento não
eram uniformemente distribuídos na trama bilateral e na sucessão das gera-
ções. Por vezes eram evocados “parentes” cuja localização na “árvore” não era
totalmente clara, embora isso não lhes tirasse a condição de “parentes”. Uma
informante da família Duarte, por sua vez, ao ver o nome de uma parente por
afinidade (ou seja, uma “contraparente”) no quadro, na linha correspondente
à segunda geração, fez ver ao autor que aquela pessoa não era “parente” e,
portanto, não devia figurar ali — ainda que, na condição de viúva sem filhos,
tivesse participado intensamente da rede familiar do cunhado. Na casa dos
Costa, ao discutir com Humberto o quadro que compusera com sua falecida
filha mais velha há mais de 30 anos, uma outra filha presente exclamou em
tom meio irônico: “ah, é a nossa árvore genealógica!”, mas na verdade não par-
ticipou com grande entusiasmo da tarefa, evidentemente um tanto aborrecida
para todos, de checar nas respectivas memórias se tal primo distante casara,
mudara ou tivera filhos. O quadro de que dispunha o pesquisador — bastante
abrangente e de que outrora muito se orgulhara — parecia agora um instru-
mento tosco e incômodo. Ocorreu também um fato análogo entre os Campos.
E. Gomes, como mencionado anteriormente, fora reconhecida pelos familiares
como uma “profissional que faz árvore genealógica”. Em termos instrumentais,
foi a pesquisadora que acabou por compô-la, com o auxílio de alguns familia-
res. A principal informante foi Elza, a responsável pela tarefa de “lembrar”. No
entanto, o inventário dos nomes se relacionava aos antepassados, aos de sua

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166 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

geração e aos da subseqüente (principalmente os consangüíneos). Havia uma


lacuna relativa aos nomes dos cônjuges de seus sobrinhos e dos integrantes
da quarta geração (bisnetos do casal original), que foi preenchida por uma de
suas irmãs. De fato, o entusiasmo com a “árvore” era fugaz, insuficiente para
suscitar maior interesse ou investimento pessoal na objetivação das origens.12
Como é notório na experiência antropológica, porém, é inevitável que
algum tipo de registro desse tipo seja estabilizado pelos pesquisadores —
sem o que dificilmente se podem organizar as informações explícitas ou
implícitas que se vão apresentando sobre as formas da relacionalidade local.
É nesse sentido que consideramos útil apresentar aqui os quadros genea­
lógicos das três famílias, reduzidos apenas às linhagens e gerações mais ime-
diatamente envolvidas na pesquisa. Os quadros mais abrangentes seriam
despropositados para tal fim, embora tenham desempenhado papel relevan-
te na condução das pesquisas.13
A casa original dos Duarte continua lá, na avenida Salvador de Sá, ocupada
por um ramo da família. Foi erguida como parte da política habitacional da
época, voltada para funcionários públicos mais pobres, sob o regime das novas
orientações da política de higienização. A centralidade de sua localização e a
proximidade da “Corte” representam parcela significativa de sua característica
de acolhimento de parentes ao longo do tempo. Pertence à família desde a sua
construção, há mais de um século, embora, contraditoriamente, ainda seja
uma “casa alugada”. A transitoriedade característica do “morar de aluguel”
se contrapõe à continuada permanência dos Duarte na casa. Sua alma é cen-
tenária, construída e atualizada pelas relações afetivas entre aqueles que ali
residiram, por períodos mais longos ou mais curtos. O sucessivo fluxo de mo-
radores e agregados obrigou-a a crescer. Inicialmente contava com uma sala,
três quartos, banheiro e cozinha. Havia um bom espaço livre que, mais tarde,
foi em parte ocupado por um quarto anexo. A construção de uma varanda
coberta também foi providencial, fortalecendo seu caráter receptivo.14 Embora
construída no modelo mais econômico de casas geminadas e padronizadas,
esse formato possibilitou a formação de laços estreitos e duradouros entre
vizinhos. A casa ampliou-se para receber.
Esse tipo de casa não foi concebido para abrigar qualquer tipo de conti-
nuidade com o mundo do trabalho. No entanto, algumas atividades econômi-
cas chegaram a ser aí exercidas, como a costura profissional da mãe de Mari-
cota no começo do século XX. Após sua aposentadoria, Sebastião usou-a para

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Casa e família nas classes populares 167

suas contínuas atividades manuais, porém sem fins econômicos (pelo menos
regulares). Assim como a casa, o originário bairro operário passou por intensas
transformações. A paulatina degradação urbana e a pauperização do entorno
do Centro da antiga capital federal alterou a paisagem do bairro operário ori-
ginal, pondo em xeque o modelo sanitarista anterior. Algumas relações de vi-
zinhança construídas na interação de casa e bairro ainda sobrevivem ao tempo
e às mudanças de endereço. A casa é ponto de referência e, ao mesmo tempo,
de passagem, de modo a ensejar a impressão de que se pode sempre retornar.
Permanece habitada por membros da família, assim como nas lembranças da-
queles que por ali passaram.
Em Jurujuba, como já dito, a “casa” tem, na verdade, uma configuração
mais ampla e um tanto frouxa, de que participam várias construções não con-
tíguas. A presença física do casal original numa dessas construções lhe confere
um status focal, mas a memória familiar e a experiência pessoal concreta do
habitar abarcam uma rede de unidades domésticas mais ou menos próximas.
O fato de se localizarem no mesmo bairro confere à maioria delas um caráter
mais intenso que o das demais. Como a implantação da família no bairro é
imemorial (podendo-se mesmo falar de um mito de autoctonia), há pouca
ênfase na história de cada uma das unidades, como se casa e localidade se
confundissem ou se amalgamassem em determinados níveis. Em certos relatos
surge uma espécie de linhagem de casas (físicas) pelas quais perpassa a casa
moral. Algumas ainda subsistem como residências de parentes, outras se en-
contram em ruínas, na mata. As duas casas vivenciadas como principais, a de
Humberto Costa e a que pertencera a seus pais (e veio a ser ocupada por sua
filha primogênita e seus descendentes) foram provavelmente fruto de auto-
construção e passaram por numerosas modificações, tendentes a expandir sua
capacidade de acolhimento e a incorporar as novas modalidades de conforto
doméstico surgidas ao longo do século XX.
A casa de Humberto não se caracterizava como um espaço de trabalho.
Porém, do ponto de vista da antiga pesca artesanal, podia ser considerada
como uma unidade conjunta com a pescaria e com a “companha” (nela se
guardavam parte dos apetrechos móveis da atividade, se teciam e remendavam
redes, se salgava parte do pescado para consumo doméstico). No período em
que o pesquisador lá esteve, essa característica começava a se diluir, embora
Humberto até hoje teça redes para a família na sala de visitas, como forma de
“se distrair”. Como foi mencionado, num determinado momento da carreira

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168 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

de um de seus filhos, construiu-se ali uma oficina mecânica, como um “puxa-


do” em direção à rua.
No caso dos Campos, a casa original sofreu diversas modificações em
suas quase seis décadas de existência. Fora construída em área pouco habita-
da, em meio a uma paisagem bucólica, característica de lugarejos interioranos,
com escassa benfeitoria trazida pela urbanização. Contava com três quartos,
uma sala e uma cozinha. Havia um único banheiro do lado de fora, no quintal,
próximo à porta da cozinha. Em frente havia um poço, sempre tapado com
ripas de madeira, para abastecimento da casa. O terreno restante, atrás da
casa, perdera suas características originais, pois ali foram construídos peque-
nos cômodos geminados, dispostos de maneira a deixar uma pequena área
de circulação, para alugar e complementar a renda familiar. Portas e janelas
davam para esse espaço, aumentando ainda mais a falta de privacidade. O
banheiro servia a todos, familiares e inquilinos. O esgoto corria a céu aberto,
passando muito próximo ao poço. Ali também ciscavam galinhas, criadas para
consumo doméstico. Havia também a oficina de marcenaria, que ocupava o
cômodo de frente para a rua. Assim, para se chegar à sala de estar era preciso
passar por um portão de madeira e um pequeno corredor que ligava a casa à
rua. Apesar de ter sido construída em alvenaria, era bastante rústica. O chão
de terra batida dos primeiros anos fora substituído por cimento pintado, que
pode ser encerado — o chamado “vermelhão”. A casa assim permaneceu du-
rante alguns anos, até os casamentos dos filhos. Os cômodos foram adaptados
de modo a se ajustar aos núcleos familiares e seus descendentes. Com o passar
dos anos, ganhou-se certa privacidade com a construção de banheiros nas pe-
quenas residências. Um novo andar foi acrescentado em algumas casas. A casa
principal também foi sendo adaptada de acordo com as novas necessidades,
principalmente para receber, por períodos longos ou curtos, novos integran-
tes, provenientes dos casamentos de algumas filhas. Assim, ela era vista mais
como possível local de passagem pelas filhas e como residência permanente
pela maioria dos filhos. Somente dois dos seis filhos homens não construíram
vínculos fortes com o local, por viverem em outras residências. Um foi morar
na casa da família da esposa, e outro se mudou para outra cidade, na mesma
região. Após a morte do patriarca — e a conseqüente mudança de sua esposa
para a casa da filha mais velha, situada fora do quintal, mas no mesmo bair-
ro —, a casa principal passou por mudanças substanciais. Foi construído um
segundo andar, que foi ocupado, junto com alguns cômodos de baixo, pelo

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Casa e família nas classes populares 169

filho mais velho e alguns de seus descendentes que até então moravam nas
imediações. Os cômodos de baixo foram transformados em pequenas lojas
(“sacolão”, barbearia, lanchonete), construídas para o sustento dos ramos res-
ponsáveis pelos respectivos comércios ali instalados.
As três casas abrigam distintas histórias familiares, marcadas por profun-
das mudanças sociais, principalmente a partir de meados do século XX. Foram
espremidas pela ocupação desenfreada de seus entornos, em decorrência de
um longo processo de pauperização e luta pela sobrevivência da população
dos bairros pobres ou das periferias metropolitanas. A casa, o bairro e a vizi-
nhança reúnem elementos imprescindíveis para a manutenção e reprodução
da família popular. Nas três casas15 das famílias analisadas, a combinação fa-
mília-casa se soma a bairro ou localidade como categoria significativa, que os
seus integrantes tomam como referência.16 As memórias das três casas origi-
nais estão atreladas à história das localidades nas quais foram construídas.
Jurujuba, Salvador de Sá (Estácio) e Gato Preto (Éden) assumem em muitas
situações a qualidade de sinônimos das famílias Costa, Duarte e Campos, res-
pectivamente. Os termos se confundem e são freqüentemente utilizados para
designar a ocorrência de algum evento na respectiva casa. “Passar no Gato Pre-
to”, por exemplo, significa que se fará uma visita à casa original dos Campos.
Casa, família e localidade estão integradas nas lembranças dos grupos domés-
ticos, amalgamadas por sua longa vinculação no tempo. Hoggart (1973:99)
assinala a essencialidade da família, do bairro e da vizinhança na vida das
classes operárias e os riscos da fluidez da vida moderna para a preservação
de sua identidade. Essa característica se impõe pela crucialidade das relações
mais próximas, face a face, de redes densas:

o indivíduo sabe que está integrado num grupo, porque experimenta o calor
humano e a sensação de segurança que lhe são facultados pelo próprio fato de
pertencer ao grupo, porque o grupo se mantém sempre igual a si mesmo, e por-
que se vê freqüentemente obrigado a recorrer à ajuda dos vizinhos (...).

A importância da casa como reduto do sujeito, lugar que o resguarda


das “forças exteriores” pautadas pela fluidez e pelo anonimato, é ainda mais
marcante. A casa não é percebida como um espaço meramente funcional,
passível de ser medido objetivamente por fita métrica, como acentua DaMat-
ta (1997:16), nem como um cenário onde as relações familiares se atuali-

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170 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

zam no cotidiano intenso dos entrelaçamentos das gerações; tampouco é um


bem ou objeto individual meramente transmissível, como assinala Marcelin
(1999). Este autor observa que a casa é o “lugar no qual e pelo qual” os
integrantes das famílias se definem e sustentam sua existência social como
pessoa.17 Trata-se de um “espaço moral” demarcado não somente por seu
contraste com a rua, mas também com as demais casas. Esse espaço pode se
estender por metros ou quilômetros, por meio das relações afetivas estabe-
lecidas entre os membros de diferentes gerações. Esse “espaço moral”, que
pode ser chamado de “configuração de casas”, constitui-se num “conjunto
de casas vinculadas por uma ideologia da família e do parentesco”.18 Decorre
dessa interação a equivalência entre os termos “casa” e “família”, irmanados
numa “significação ontológica” comum. Para Woortmann (1982:33), a casa
é percebida pela classe trabalhadora como um “espaço social fundamental,
locus da instituição da família”. Também é “espaço de memória” para a famí-
lia, segundo Bosi (1979:344):

As lembranças do grupo doméstico persistem matizadas em cada um de seus


membros e constituem uma memória ao mesmo tempo una e diferenciada.
Trocando opiniões, dialogando sobre tudo, suas lembranças guardam vínculos
difíceis de separar. Os vínculos podem persistir mesmo quando se desagregou
o núcleo onde sua história teve origem. Esse enraizamento num solo comum
transcende o sentimento individual.

As mudanças na arquitetura da casa e nos objetos ali guardados e expos-


tos também constituem aspectos relevantes das lembranças familiares com-
partilhadas. As três casas originais sofreram adaptações estruturais ou rece-
beram novos cômodos: quartos, varandas, andares e banheiros. A ampliação
dos espaços contíguos para acolher novos habitantes, geralmente devido aos
casamentos dos descendentes, pode ser classificada sob a categoria “quintal”.
Para Simoni Guedes (1998:9), são

os conjuntos de casas que foram construídas ao longo do tempo num mesmo


lote ou terreno, a partir de uma casa inicial, em que o proprietário realiza ele
mesmo ou permite a realização de novas construções. Podem apresentar-se em
densidade variável: há quintais com três, quatro ou cinco casas e muito espaço
disponível, há outros em que mais de 10 casas encontram-se lado a lado, outros

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Casa e família nas classes populares 171

ainda que cresceram verticalmente em direções dificilmente imagináveis, com-


pondo uma arquitetura surpreendente.

Os “quintais” constituem um modelo representativo de organização e


reprodução das relações familiares presentes nas camadas populares. Há certa
preocupação com a necessidade de privacidade dos novos habitantes, devido
especialmente ao status adquirido de “casal”. Há uma conciliação do modelo
nuclear e conjugal de família com o modelo de família extensa, imerso nas
relações de vizinhança, compadrio e parentesco. Mesmo assumindo o formato
nuclear,19 essas famílias não deixam de ser famílias extensas, abertas e porosas
à relacionalidade englobante. A privacidade oferecida às novas unidades nu-
cleares não está associada à construção da individualização hegemônica oci-
dental, mas ao segmento de uma “totalidade englobante, produtora dos seus
membros e não produzida por eles”, segundo Guedes e Lima (2006:137).20
Nas três famílias, nos seus tempos respectivos, mesmo entre aqueles que
não habitam a casa original, é perceptível a influência dos valores fundados na
idéia de família extensa, com a agregação de familiares por meio da amplia-
ção ou reordenação dos espaços da casa. A permanência nesses “quintais” ou
“configurações” implica ajustes mais ou menos tensos, dependendo do nível
de comprometimento com os códigos ali inscritos.
A casa está sempre na expectativa das alterações afetivo-estruturais in-
trínsecas à vida familiar: novos “parentes” vão impondo a construção dos “pu-
xados”, anexos, “lajes”.21 A laje permite a extensão vertical de um novo andar,
geralmente edificado bem depois. Esse recurso é uma garantia de que pelo
menos parte da descendência possa ali habitar. A importância da autocons-
trução é evidente nas famílias Campos e Costa. Geraldo construiu e ampliou
a casa original dos Campos. Posteriormente, seus filhos foram-lhe acrescen-
tando novos cômodos. As duas casas principais da família Costa foram pro-
vavelmente produto de autoconstrução, e as intensas modificações impostas
nas últimas décadas certamente dependeram de mutirões da mão-de-obra
familiar. Um dos filhos de Humberto, além de ter construído quase sozinho
sua primeira casa, fora do bairro, dedica-se já há alguns anos a erguer uma
outra na vizinhança paterna. Cabe frisar que, em várias situações, construir
ou ampliar constituem-se em eventos sociais agregadores, nos quais familia-
res, amigos e vizinhos (e até pesquisadores...) se reúnem para ajudar, muitas
vezes retribuindo o auxílio recebido anteriormente. Esses encontros podem se

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172 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

transformar em festas, quando então se servem bebidas e petiscos ou até um


“churrasco”. É possível que as atividades mais técnicas, ou parte delas, sejam
remuneradas. De qualquer forma, o contrato leva em conta a confiança que
estreita as relações interpessoais.
A proximidade das residências é importante para a manutenção da reci-
procidade22 entre parentes, consangüíneos ou afins, mas os vínculos de troca
podem permanecer mesmo apesar de considerável distância espacial.23 A refe-
rência ao núcleo original, porém, vai-se modificando de acordo com a geração
e com o tipo de relação que se estabelece com as respectivas casas: morador
fixo, transitório, não-morador. A distância espacial pode contribuir para o en-
fraquecimento dos laços, mas não é o principal fator de tensão ou rompimento
com a casa-família, pois o que importa é estar moralmente ligado à ideologia
da casa. O “sistema de sentidos”24 que funda esse tipo de conformação familiar
pode sofrer maiores ou menores alterações em função de diversos tipos de
trajetórias cuja relação com a auto-afirmação e a individualização será discu-
tida no capítulo 7. A prevalência da relacionalidade sobre a individualização
nas famílias populares nas sociedades ocidentais é uma de suas características
essenciais, de acordo com uma vasta bibliografia. A emergência da auto-afir-
mação individual, por diferentes vias e através de diferentes processos, impõe
o afastamento da casa original, com rompimentos mais ou menos radicais com
a ideologia da casa. Pode-se dizer que existem três modalidades de afastamen-
to/proximidade nas relações entre os integrantes da rede familiar, das famílias
nucleares constituídas e da família extensa: afetivo, afetivo-espacial e espacial.
No primeiro caso, o membro da família se dissocia afetivamente dos demais,
sem a proposta de mudança de local de moradia — não rompe com a localida-
de. O afastamento afetivo-espacial se dá de forma mais radical, havendo tanto
um afastamento da rede familiar quanto da localidade. Já no terceiro caso há
o desligamento da localidade, mas não dos familiares, mesmo que isso possa
dificultar um contato mais próximo com as atividades coletivas promovidas
pela rede familiar.
Por mais que se reconheça que os vínculos estão se esvaindo na atuali-
dade, sempre em oposição a um “passado” nostálgico no qual a família teria
estado unida, essa mesma referência indica a importância que ainda se atribui
ao contexto moral familiar.25 A rede de socorro mútuo ainda é fortemente
acionada em diversas situações. L. Duarte (1999) descreveu essa característica
na comunidade de Jurujuba, na qual a família Costa está inserida. Os laços de

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Casa e família nas classes populares 173

compadrio são expressão desse sistema de obrigações recíprocas. O batismo


não significa simplesmente a inserção nos ritos religiosos católicos: está-se
entrando num sistema no qual a relacionalidade é fundante. Batiza-se para
que o novo integrante tenha seu lugar reconhecido na hierarquia das relações
familiares e sociais. O sistema de compadrio, autenticado nesses grupos pelo
batismo católico, é forte aliado na ajuda entre os integrantes das redes familia-
res. Assim, o vínculo do “compadrio” permite uma manipulação dos papéis aí
envolvidos que vai muito além de uma funcionalidade restrita ao campo reli-
gioso”.26 Mesmo no caso do compadrio vertical, em que a escolha se relaciona
com o status do escolhido, os sentimentos pessoais positivos também contam
como fator relevante, nunca se tratando de uma relação exclusivamente ins-
trumental. Entre os Campos a escolha preferencial de padrinhos se concentra
nos parentes mais próximos, em relações tipicamente horizontais. Continua
assim até hoje, nos núcleos ligados ao catolicismo. Um caso recente revela o
potencial de ambigüidade que essa lógica passa a ter num contexto de dife-
renciação social dentro da família. Tal caso envolve dois primos situados em
lados hoje opostos dentro da rede, em termos educacionais e econômicos. O
convite para apadrinhar um de seus sete filhos foi feito por um membro muito
pobre da rede a seu primo mais velho, que ocupa um lugar particularmente
importante, pois, além de pertencer à terceira geração do ramo ascendente da
família, exerce uma atividade profissional prestigiosa: advogado. A situação
de extrema pobreza do proponente e o tamanho de sua prole já eram motivo
de grande preocupação na família, que se mobilizara financeiramente para
a realização de uma laqueadura em sua esposa, quando ela estava ainda no
quarto filho. O convite foi, afinal, recusado, já que a proposta foi interpretada
pelo convidado como uma tentativa de transferência unilateral das responsa-
bilidades paternas, e não de estabelecimento de um pacto de reciprocidade.
O desenlace do caso revela que o princípio da reciprocidade intrafamiliar tra-
dicional não pode mais prevalecer num contexto em que as condições sociais
de reprodução diferem acentuadamente. Mas não se trata apenas de condi-
ções econômicas, e sim de diferenciação nas condições morais abrangentes:
a negação não decorrera da mera pobreza do parceiro, mas de uma avaliação
de “irresponsabilidade” e, quiçá, de oportunismo. Além dessa dimensão mais
interna, não se pode deixar de levar em conta que a auto-afirmação do primo
advogado já o afastou do sistema hierárquico familiar original, ganhando ca-
racterísticas crescentemente individualistas.

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174 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

O compadrio nas famílias Duarte e Costa também era sobretudo ho-


rizontal, com alta incidência na rede familiar e de amigos próximos. Uma
exceção interessante é a que Humberto Costa estabeleceu com um oficial que
fora seu superior na Marinha e, depois, companheiro de militância e infortú-
nio político. Como ele ressaltava, no entanto, esse almirante era uma “pessoa
muito simples”, considerada como um amigo, tendo havido alguma troca so-
cial entre as duas famílias por muito tempo. A reciprocidade alcançava aí um
patamar de relacionalidade compatível com as regras locais. Entre os Duarte,
até hoje se fala em tia Adélia, a grande amiga de Maricota que morava numa
rica chácara da rua Itapiru e que fora uma onipresente comadre. Também aí
a diferença econômica se deixava englobar pela intensidade das relações de
amizade.
Outra importante característica da casa nas famílias populares é a ampla
e intensa circulação de pessoas: parentes, vizinhos, agregados. Existem dife-
rentes modalidades de experiência da casa: “casa da família, “casa da família
e local de passagem” e “casa da família e local de moradia”. Em geral, não há
horários rígidos nem dias estabelecidos para os “mais chegados”. Podem ser
em grande número aqueles que não são considerados “visita”. A “comida” ou o
“cafezinho” são oferecidos sem demora e muitas vezes com grande insistência.
Esses códigos são tão relevantes que até hoje Elza — liderança dos Campos
— continua fazendo a mesma quantidade de comida desde o tempo em que
seus filhos moravam em sua casa e o fluxo de familiares e agregados era bem
maior. Não se trata nesse caso de comensalidade no sentido do “comer junto”,
mas de uma genérica receptividade. Embora essa disponibilidade se vincule à
preocupação com a precariedade vivida por alguns parentes, a “comida pron-
ta” não está ali apenas destinada ao saciar a fome.
Como já dito, a circulação relacional e a comensalidade também carac-
terizaram a casa da Salvador de Sá e ainda caracterizam a casa de Jurujuba.
Numerosos foram os parentes, afins e colaterais que habitaram a primeira ao
longo do século passado, por períodos mais ou menos longos. Férias e visitas
prolongadas traziam os parentes de Taboas, Valença, Paty do Alferes e Petró-
polis para o convívio comum na velha casa. Mas também crises domésticas,
doenças que exigissem cuidados especiais ou consultas médicas metropoli-
tanas suscitavam tais acolhimentos, aproximando eventualmente primos já
muito distantes. O próprio pesquisador, ao descer de Petrópolis para cursar
a faculdade, lá foi habitar por um tempo — que acabou se prolongando por

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Casa e família nas classes populares 175

um bom número de anos. Assim também fizeram, ainda que por períodos
bem mais curtos, seus dois irmãos. Antes disso, o círculo kardecista de Milton
Duarte tinha mantido intensa a circulação moral local. Já se falou também da
importância das festas que ali congregavam a parentela, desde os aniversários
dos moradores ou de outros parentes até festas de casamento ou de bodas.
Para o pesquisador, o cheiro de mate queimado é até hoje indissociável do in-
defectível lanche da tarde servido com pão e manteiga a um cambiante círculo
de convivas na varanda dos fundos.
A casa de Humberto Costa ainda é o epicentro das trocas sociais da rede
de parentes, vizinhos e amigos. Nela dificilmente estão presentes apenas os
seus moradores regulares (os que ali dormem todas as noites), sobretudo agora
que a avançada idade e precária saúde do casal exigem companhia constante.
Em diversos momentos convivi com pessoas que ali habitavam e cujo estatuto
me era impossível discernir — um pouco agregados, um pouco empregados
ou acompanhantes, confundiam-se com o fluxo dos parentes. A parte frontei-
riça da casa (varanda, sala e cozinha) está na maior parte do tempo disponível
para quem quer que se aproxime, embora a porta da sala só costume ser aberta
para acolher “visitas”, como a do pesquisador. O acesso dos familiares se faz
normalmente pela cozinha. Em ocasiões festivas, como na festa de são Pedro,
a casa permanece literalmente aberta, com uma enorme panela cheia sobre o
fogão, da qual os mais variados visitantes vão-se servindo. De vez em quando,
alguma das muitas mulheres da rede trata de pôr ordem na mesa da cozinha e
nas pias, para possibilitar o fluxo constante dos comensais.
Trata-se sempre de uma “cozinha relacional” — e não de um mero en-
contro de indivíduos —, pautada pelas relações interpessoais que envolvem
a “comida” numa sociedade com as características da brasileira.27 A distinção
entre “comida” e “alimento” é um aspecto relevante para se abordar o tema.28
Gonçalves (2007:182) afirma que “a comida é assim social e culturalmente
significativa e conseqüentemente distinta da experiência estritamente fisioló-
gica de alimentar-se. A ‘comida’ tem a ver com apetite e paladar. No caso do
‘alimento’, o apetite é substituído pela fome”. Ele ressalta a importância da
referência feita por DaMatta (1984) ao lugar da farinha no sistema culinário
brasileiro, relacional, em oposição a outros sistemas nos quais os alimentos
são servidos em pratos separados, individualizados, civilizados. A farinha seria
o componente que permite a mistura, a combinação entre os diferentes ali-
mentos e seus sabores. E. Gomes lembra-se de um episódio em que essas duas

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176 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

visões entraram em choque. À época, já na universidade, resolveu preparar


uma sopa, sua especialidade, para um jantar em casa de sua mãe. Uma das
crianças que estava ali presente, ao servir-se da comida, logo estendeu a mão
para alcançar o pote de farinha. O gesto foi abruptamente interrompido pela
“dona” da sopa, que achou um absurdo gastronômico adicionar farinha a um
alimento tão “puro”. Após muita discussão, o caldo acabou sendo engrossado
pela menina, e a farinha serviu mais uma vez, como disse DaMatta (1984:63),
“como cimento a ligar todos os pratos e todas as comidas”.
A circulação de crianças é, além da “comida”, outra característica do ethos
de receptividade dessa casa. São personagens importantes no sistema amplia-
do de trocas. Fonseca (1995) observa que essa é uma dinâmica que orienta
toda a organização familiar, constituindo-se numa propriedade particular dos
valores dos grupos populares urbanos. Longe de evidenciar uma patologia ou
uma desorganização, a circulação de crianças é uma fórmula societariamen-
te rica de manter em funcionamento um segmento importante das socieda-
des complexas.29 Trata-se de “um dos processos rotineiros de socialização, as
crianças transitam entre as casas de diversas ‘mães’: madrinha, avó, vizinha e
genitora”.30
Entre os Campos há, pelo menos, três níveis de circulação de crianças.
No primeiro e mais corriqueiro, as crianças passam pouco tempo em dife-
rentes casas, para aí fazerem as refeições ou para que as mães possam realizar
alguma atividade fora de casa: por exemplo, um dia almoçam na casa dos
avós e jantam na casa da tia, no outro, invertem, e assim sucessivamente. No
segundo tipo, as crianças permanecem por períodos mais longos em casa de
parentes, sobretudo quando pai e mãe trabalham fora. O terceiro tipo é mais
radical: a criança fica efetivamente sob a responsabilidade de um parente ou
de um integrante da rede por um período mais longo, ou até que se torne
“independente”. Em nenhum dos casos ocorre a adoção formal ou algum tipo
de trâmite legal em que a responsabilidade passa a ser de quem detém a tutela
da criança. Os verbos utilizados para descrever essas práticas informais são
“cuidar” e “ficar”. Sarti (1996) assinalou a distinção entre “adotar” e “cuidar”
nas camadas populares, sendo a adoção um ato extremamente raro.
Com menos freqüência, dada a menor extensão das redes familiares, o
mesmo estilo de circulação de crianças pode ser encontrado também entre os
Costa e os Duarte. Pelo menos dois sobrinhos jovens e dois outros meninos
cuja origem (e destino) se perdeu nos registros familiares (mas cujas fotos e

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Casa e família nas classes populares 177

esparsas memórias jocosas ainda perduram) foram “criados” por longos perío­
dos por Sebastião e Maricota Duarte. E, num caso mais extremo, por se ter
consolidado até o fim de suas vidas, ocorreu a “adoção” informal, por Milton e
Laura, do casal de sobrinhos órfãos. Em Jurujuba, o permanente fluxo entre as
unidades componentes da configuração doméstica torna difícil definir quais
crianças estão morando com quem em cada momento. A situação mais nítida
e formal foi a do terceiro filho homem de Humberto, que foi oficialmente
“criado” por Amélia, enquanto esta morava autonomamente.
A circulação não é jamais percebida como um abandono, pois as crianças
não são “dadas” a outros, e sim cuidadas por pessoas próximas, que comun-
gam de uma mesma lógica familiar.31 Nesse ponto não há diferença entre a cir-
culação entre parentes que vivem no mesmo quintal ou entre aqueles que mo-
ram fora dos limites desse território. A noção de casa é ampliada moralmente,
passando a incluir os parentes externos ao quintal. No caso da circulação de
crianças no circuito de parentes mais distantes, um fator importante para a
decisão é o lugar ocupado pelo cuidador na hierarquia familiar, geralmente
avaliado pela linha feminina.
O empenho dos autores em transmitir a estranheza que causa aos obser-
vadores de “classe média” a experiência de um tão intenso regime de circula-
ção de bens e pessoas talvez possa dar ao leitor a impressão de uma excessiva
idealização da imagem de um paraíso relacional em via de se perder (ou ine-
xoravelmente perdido, no caso dos Duarte). Cumpre então repetir que o re-
trato assim traçado visa a iluminar as dimensões lembradas e vivenciadas por
seus interlocutores como positivas e dignas de mais enfático registro. Elas são
sempre o contraponto cálido e acolhedor de memórias ou registros presentes
de vidas extremamente mais complexas, onde o papel da luta, do sofrimento
e dos conflitos é absolutamente crucial. Melhor dizendo, é talvez o pano de
fundo contra o qual se recortam todas as qualidades positivas da solidariedade
e da comunhão. Não se trata aí apenas das dificuldades de reprodução eco-
nômica, da falência dos projetos de vida, das ameaças da doença e da morte.
A comensalidade, o acolhimento e a circulação de crianças não se dão sem
tensões e desapontamentos. O insucesso relacional pode ser tão enfatizado
nos relatos quanto seu curso positivo, dependendo da posição dos sujeitos e
da situação de entrevista ou conversa. Amélia Costa, por exemplo, tão vivaz
em toda a sua relação com a vida e o passado, expressava sentimentos extre-
mamente amargos em relação ao núcleo familiar com o qual era obrigada a

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178 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

conviver. Deve-se reconhecer, porém, que essa atitude estava condicionada


pelo fato fundamental de sua perda de autonomia e, em última instância, por
sua incapacidade crescente para se impor como sujeito em qualquer nível da
rede familiar.32
Por outro lado, a perspectiva da acolhida, da permanente disposição para
receber, pode vir a ser paulatinamente contida. A ideologia da casa, em seu
formato tradicional, pode vir a se adaptar a um formato mais “civilizado”, no
sentido eliasiano, em que os controles espaciais e temporais correspondem ao
“autocontrole” constitutivo de um novo modelo de pessoa: fixar ou solicitar
horários mais adequados para as visitas, receber para refeições em datas e
horários previamente combinados, vestir-se apropriadamente para determina-
das interações. As mudanças tornam-se perceptíveis em tudo o que envolve
a receptividade da casa, e são mais visíveis (e incompreensíveis para muitos
dos parentes) no que se refere aos encontros familiares, festas de aniversário,
casamentos, batismos ou mesmo funerais.
O resgate de memórias familiares que remontam a mais de cinco déca-
das, por meio de relatos orais, de objetos, de fotografias e, em nosso caso, de
muitas reminiscências pessoais dos acontecimentos, permite constatar essas
mudanças que extrapolam o âmbito privado das relações familiares, mas afe-
tam-nas fortemente, tocadas, como são,

pela difusão permanente, ainda que irregular, da cosmologia moderna nas so-
ciedades contemporâneas, levada a cabo por uma disseminação produtora de
“institucionalizações” estruturantes que vêm atingindo inclusive as camadas po-
pulares: mercantilização, igualitarização, liberalização do espaço público.33

Esses efeitos são sentidos em todas as esferas sociais, e a família é um ex-


celente lugar para verificar o seu alcance. Um caso exemplar são as mudanças
ocorridas no cenário religioso brasileiro nas últimas décadas do século XX,
com a emergência de um pluralismo de tendência exclusivista e combativo
em sua ação na esfera terrena. A religiosidade sincrética, hierárquica, que pre-
dominava sobretudo nas camadas populares, vem-se alterando rapidamente.
O englobamento
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das religiões afro-brasileiras pelo catolicismo e a preeminên-
cia da Igreja Católica sobre as demais instituições religiosas se constituíam
numa dimensão básica do campo. O catolicismo popular funcionava, nesse
contexto, como o grande mediador das crenças religiosas. Embora os limites

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Casa e família nas classes populares 179

oficiais fossem nítidos e perenes, o fluxo das trocas simbólicas e materiais


era tão intenso e dinâmico que dificultava seu reconhecimento prático.34 A
nova postura religiosa surgida com os evangélicos pentecostais, enfaticamente
manifestada no espaço público, foi o motor fundamental de tais mudanças. À
frente desse processo estiveram as igrejas chamadas neopentecostais, nascidas
nos anos 1970, que se colocam positiva e diretivamente diante do mundo.
No bojo desse movimento, deu-se no interior do catolicismo a emergência da
Renovação Carismática Católica, com práticas muito semelhantes às dos evan-
gélicos pentecostais. Isso se traduz não só na manifestação do Espírito Santo e
seus dons, mas também na forma como se “apresentam no mundo”, no espaço
público, colocando sua “fé em ação”.35 Os membros dessas confissões assu-
mem a própria conversão e a conversão dos outros como missão primordial
de sua prática religiosa, quase sempre numa experiência religiosa que não se
caracteriza como “hábito aborrecido”, mas como “febre ardente”, para usar as
palavras de William James (1991).
Essa nova tendência veio tensionar e complexificar o perfil sincrético da
população. A recusa, ao menos no discurso oficial, do modelo sincrético se
tornou ponto relevante para a compreensão do panorama religioso. A propos-
ta exclusivista que enfatiza o discurso da distinção, o comportamento ético e
o investimento no “compromisso identitário” dos respectivos membros com
as instituições religiosas reverbera no âmbito das relações familiares e da vizi-
nhança. Como característica marcante desse tipo de pluralismo, o proselitismo
não é percebido como escolha, mas como missão cotidiana, a ser levada a cabo
tanto nas relações mais imediatas e próximas (família, vizinhança) quanto nas
redes pessoais mais amplas (trabalho, educação) e no espaço diversificado de
interações proporcionado pelo contato com os equipamentos urbanos.36 Já se
ressaltou aqui a existência de um movimento de reação às conversões ao ramo
evangélico nas complexas relações internas de duas das famílias analisadas,
originariamente católicas. Verificou-se, por outro lado, um fortalecimento do
catolicismo como religião pessoal em alguns integrantes das famílias, numa
postura claramente reativa. O “ser católico” passou a ser acionado como ca-
racterística contraposta ao “ser evangélico”. Essa tendência não foi somente
identificada nas diretrizes institucionais e no discurso manifestado publica-
mente pelas lideranças da Igreja. Uma maior adesão às práticas religiosas ins-
titucionalizadas e a intensificação da freqüência à igreja são exemplos da con-
formação do pertencimento religioso de católicos e evangélicos.37 O modelo

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180 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

de “católico praticante” ganha maior espaço, em especial no caso dos católicos


carismáticos. E surge mesmo no campo uma nova categoria, a de “evangélico
não-praticante”; paradoxal até recentemente, já que “ser evangélico” tem seu
significado ligado à indissociabilidade entre adesão e pertencimento e o com-
promisso congregacional.38 Ao mesmo tempo em que ocorre essa intensifica-
ção generalizada do pertencimento religioso, pode-se reconhecer que se trata
de um movimento marcado pelo primado da escolha e da liberdade individu-
al, pela rejeição às religiões familiares atribuídas, pela não-adesão formal per-
manente a instituições religiosas e pelo trânsito ou passagem religiosa — fe-
nômeno às vezes designado como “desinstitucionalização”.39 Isso não significa
ausência da dimensão religiosa como experiência vital, mas uma flexibilização
do sentimento religioso em relação ao pertencimento institucional tradicional
e uma recomposição do sistema de crenças pessoais em torno de valores antes
considerados laicos, tais como a “subjetividade” pessoal e a “natureza”.40
A religiosidade compõe tradicionalmente o sistema de sentidos que con-
figura a casa — em sua poderosa e englobante dimensão moral. A �����������
conversão,
flexibilização ou desinstitucionalização de seus membros gera tensões, mu-
danças e ajustes nesse sistema. Nas trajetórias das três famílias analisadas,
esse processo ���������������������������������������������������������������
aparece em diferentes situações. Entre os Costa, Amélia atuava
como rezadeira e parteira, funções muitas vezes entrelaçadas em situações
mais tradicionais. Além de templo familiar, local de proteção e recepção, a
casa comportava uma dimensão explicitamente religiosa. Tornava-se templo
quando Amélia recebia parentes e vizinhos na varanda41 para serem “rezados”.
Era também um importante componente do laicato católico e, de alguma ma-
neira, parece ter chegado a transitar pela umbanda. As fronteiras do catolicis-
mo popular, como já dito, são extremamente fluidas. Embora muitas vezes
rechaçado, ou não reconhecido (no caso, pela própria família), o sincretismo
era ali evidente. Assim como Amélia, o casal Humberto e Hermínia ocupa lu-
gar prestigioso na organização católica do bairro. Hoje estão expostos na casa
mais objetos religiosos do que antes: imagens, quadros e folhinhas de santos e
de Jesus Cristo compartilham os espaços com outros elementos da decoração
e fotografias. Uma inscrição passou a integrar esse conjunto com destaque
especial, pois está localizada logo acima da porta de entrada da casa: �������
“cuida
de sua vida e deixa que Jesus cuida da minha”. Trata-se de uma demarcação
de território, um aviso profilático contra as investidas proselitistas comuns
aos integrantes de determinadas igrejas evangélicas pentecostais, que podem

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Casa e família nas classes populares 181

(e devem) converter dentro da própria família. Isso ocorreu entre os Costa,


com a conversão de parte da linhagem de Geraldo, caçula de Amélia. Humber-
to ressaltou o incômodo gerado pela insistência dos parentes “crentes” na sua
conversão. A vertente carismática do catolicismo também aparece vinculada
ao núcleo de Ana Lídia, uma das filhas mais novas de Humberto. A descrição
feita anteriormente da festa em que o animador de crianças era também um
agente religioso evidencia essa penetração. Durante o tradicional “parabéns”
em torno do bolo de aniversário, ele imprimiu um teor religioso ao discurso,
enfatizando a “conquista” e a “vitória”, categorias orientadoras do discurso
religioso atual de evangélicos e carismáticos.42
O mapa religioso da família Duarte também se apresentava diversificado.
Inicialmente, embora todos se identificassem como católicos, poucos eram
praticantes. Relatos revelam a convivência do catolicismo formal e oficial com
o espiritismo kardecista desde a década de 1920. Milton, filho do casal original,
nascido em 1905, “falou em línguas”, fato que veio marcar sua adolescência e
integra a memória familiar. Prevaleceu a explicação religiosa para tal evento. A
crença nos espíritos estava ali implantada. Parte da família participava assidua­
mente das sessões de “mesa branca”.43 A casa da Salvador de Sá ganhava nova
função receptiva: reunir parentes e vizinhos em torno da reconhecida mediu-
nidade de Milton, em sua fase adulta. Concomitantemente, os rituais católicos
— batismos, primeira comunhão, casamentos — e as devoções continuavam
predominantes. A casa comportava espíritos e santos. As imagens de santos
afixadas na parede do quarto do casal original atestam a importância do cato-
licismo para a família. A ascensão social da linhagem central ocorreu antes do
período de popularização do pentecostalismo, o que certamente explica sua
total ausência do quadro. A maioria dos ramos permanece próxima à religião
católica, com incursões na vertente carismática e continuada dedicação ao
kardecismo, mas também houve a adesão a um subjetivismo psicologizante
e a formas desinstitucionalizadas de religiosidade, como é o caso do ramo
descendente de João.
O lugar da religião
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entre os Campos não é muito diferente. O modelo
do sincretismo hierárquico católico era predominante. A maioria se identifi-
cava como católico, mas poucos de fato praticavam a religião. A prevalência
da identidade católica se evidenciava principalmente no cumprimento dos
ritos sacramentais, nas novenas e no cotidiano da paróquia, conformado por
missas, celebrações e festas. Assim como Amélia, a trajetória de Pequitita é

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182 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

exemplar no que tange ao sincretismo religioso. Embora católica praticante


(com o porte cotidiano do terço e de uma medalhinha de Nossa Senhora),
possuía uma relação muito peculiar com as religiões afro-brasileiras, sendo
reconhecida como possuidora de grande poder espiritual. O catolicismo po-
pular, caracterizado pela devoção aos santos e pelo recurso às benzeduras e
promessas, era predominante, embora as dificuldades de transmissão da re-
ligião familiar começassem a ganhar espaço. Até a geração dos netos o ba-
tismo na Igreja Católica era regra, exceto em dois casos, cujos pais seguiam
a tradição batista. Foi com a constituição desse casal que o protestantismo
entrou efetivamente na família. Em meados da década de 1980 a vertente
pentecostal começou a ocupar cada vez mais espaço, até chegar a concorrer
ativamente na dinâmica familiar. Assim como as casas dos Duarte e dos Costa,
a casa dos Campos também era utilizada como espaço de rituais religiosos. A
sua própria forma de “quintal”, com várias pequenas residências geminadas,
permitia que as mais inusitadas situações pudessem ocorrer. Uma das noras
ali recebia pessoas que a buscavam por ser rezadeira e também incorporar
uma entidade da Umbanda. Ao mesmo tempo, agregava parentes e vizinhos
que ali participavam de novenas e orações. Essa figura sincrética, de uma ca-
tólica que incorporava uma “preta-velha” — embora controversa, pois gerava
entre os parentes tanto respeito quanto desconfiança sobre seus atributos so-
brenaturais — bem exemplifica a complexa dinâmica religiosa intrafamiliar;
sobretudo pelo fato de ter vindo a se converter ao pentecostalismo. O avanço
das conversões promoveu mudanças significativas na dinâmica da casa, que
abalaram as relações preestabelecidas, mas não culminaram em nenhuma rup-
tura radical. O pluralismo já existia, mas não com o mesmo teor exclusivista
atual, combativo e desassombrado. Os falecimentos de Geraldo e Maria, com
uma década de distância, demarcaram o processo de acomodação e conquista
de espaço dos evangélicos no âmbito familiar. No caso da morte do patriarca,
a casa velou seu corpo.44 Teve ela oportunidade de se despedir daquele que a
construíra, assim como décadas antes havia recebido convidados para a festa
de casamento da filha mais velha do casal original, que assumiu efetivamente
o papel de líder da família.
As mudanças decorrentes do pluralismo religioso em sua configuração
contemporânea podem ocorrer de forma mais ou menos tensa, conflituosa em
alguns momentos, mas apaziguadas em outros, conforme vão sendo incorpo-
radas no cotidiano das famílias. Sabe-se que é comum a utilização de apelati-

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Casa e família nas classes populares 183

vos de parentesco nas relações estabelecidas em determinadas instituições re-


ligiosas. Entre os evangélicos, o termo “irmão” articula e nivela os membros da
“congregação”, o que a coloca em oposição à família. Na verdade, ela se apre-
senta como uma alternativa à família, “uma hiperfamília dotada de um senso
de comunhão e reverência capaz de produzir uma redobrada intensidade”.45
As relações de aliança assumem uma dimensão que extrapola as da família
de “sangue”.46 “Família de sangue” e “família de fé” se relacionam tensamen-
te, especialmente quando a segunda passa a estar mais presente na vida dos
convertidos, como característica quase indissociável da identidade evangélica.
É marcante tal distinção entre os Campos, ensejando mútuos ressentimentos
e disputas de espaço. Na percepção dos católicos, há uma desvalorização dos
laços consangüíneos após uma conversão. O relato de Elza sobre a questão é
sugestivo:

Ficou muito difícil. Se (...) eles tiverem que ir para a igreja, não deixam de ir para
a igreja para estar com a família. É aquele negócio, a família deles é mais lá. Eles
consideram mais lá. Eu acho que eles consideram mais irmão os de lá que os ir-
mãos mesmo. Só esse negócio de aniversário, fazer bolo, levar para partir na igreja
e deixar os outros olhando. Mora lá nos fundos, passa com bolo cheiroso e leva
para a igreja. Os irmãos estão ali, no mesmo quintal e não ganham nenhum peda-
ço. Não pode! Há uma separação. Eles separam, sim. Eles separam. Se convertem
e ficam se sentindo o máximo. Aí, os sobrinhos pequenos vão porque vai cortar
o bolo lá [na igreja]. Quer dizer, é um chamariz. Igual na macumba, quando tem
bolo e guaraná o pessoal vai. Igual a Cosme e Damião. Aí enche a igreja.

Ao mesmo tempo em que ocorre um afastamento em relação à família


extensa, dá-se um englobamento pela “família de fé” adquirida, de modo a
incorporar não somente o casal, mas também os demais membros das respec-
tivas congregações religiosas. Tal movimento não ocorre sem tensões e ajus-
tes. Esse processo de auto-afirmação ou de relativa individualização se torna
incompatível com a centralidade da família extensa.47 É nesse sentido que os
convertidos são acusados de “se sentirem o máximo”. A conversão é tida como
traição, na medida em que vai contra a solidariedade da família. De alguma
forma, aparece como transgressão à ordem familiar preestabelecida, pautada
pela preeminência do hierárquico sobre o individualizado: “pessoas relacio-
nais destinadas a integrar outras e idênticas unidades familiares (...) é antes

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184 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

essa família ou ‘grupo doméstico’ do que o sujeito social isolado que valoriza-
mos sob a categoria indivíduo”.48 A autoridade tradicional — relacional — é
abalada pela autoridade individual, sobretudo quando o convertido assume
um novo status influente dentro da dinâmica familiar.
Assim como a inscrição na fachada da casa de Humberto Costa, novas
atitudes foram surgindo em decorrência do contexto religioso contemporâ-
neo. Elza, responsável pelas memórias materiais e imateriais da família dos
Campos, assumiu nova função: guardiã de objetos sagrados rejeitados e de-
serdados devido às conversões de familiares e conhecidos. A casa convive dia-
riamente com o pluralismo religioso na vizinhança, no bairro e nas próprias
relações de parentesco. Elza faz questão de enfatizar suas marcas distintivas
em relação aos evangélicos. É integrante da tradicional Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos. Entre seus objetos fa-
voritos e dignos de um lugar especial em seu quarto estão imagens e quadros
de santos, além do Sagrado Coração de Jesus e da Sagrada Família. Essa cole-
ção não ocupa grande espaço no conjunto da casa, mas se destaca por ostentar
a forte adesão ao catolicismo. A coleção vem recebendo novos objetos, por
vias curiosas. Sua nora lhe contou que uma conhecida não sabia o que fazer
com uma estátua de são Jorge que estava há tempos na família. A conversão ao
pentecostalismo lhe impusera o afastamento da devoção ao santo. Não queria
quebrá-la, como demonstração explícita de seu novo pertencimento religioso.
Embora demonstrasse forte adesão ao novo credo, não desejava destruir a
imagem, embora necessitasse romper afetiva e efetivamente com ela. O dilema
foi resolvido com a adoção do são Jorge por Elza, que propôs recebê-lo em
sua casa. A ex-devota convertida não teve que levar às últimas conseqüências
a iconoclastia de sua nova confissão, e a católica ficou satisfeita por salvar a
imagem de sua devoção.
Batismos, casamentos, aniversários e outras reuniões se configuram como
aglutinadores dos familiares pertencentes às três casas. Novos contornos e sig-
nificados para tais rituais — muitas vezes sutis — são identificáveis em fun-
ção da emergência do pluralismo religioso dentro das famílias. A participação
nesses eventos e a relação com os rituais e objetos que neles circulam também
vão-se alterando de acordo com diversos outros fatores ao longo do tempo,
com a sucessão das gerações, a bifurcação e afastamento das linhagens, as dife-
renciações sociais, as mudanças mais gerais impostas pelo processo histórico.
Apesar de todas essas mudanças gerais e das transformações por que passa-

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Casa e família nas classes populares 185

ram as relações nas três famílias e suas bases domésticas originais, é inevitável
concordar com DaMatta (2006:18) quando ele diz que a casa “continua sendo
uma instituição ainda sem rival na sociedade brasileira”.

Notas
1
�����������������������������������������������������������
Schneider, 1968; Lévi-Strauss, 1983; Singly, 2001a e 2001b.
2
������������
Goody, 1969.
3
����������������
Woortmann, 1995.
4
�����������������
Guedes, 2006:141.
5
��������������������������������������������������������
Dumont, 1971; Schneider, 1968; Strathern, 1992a e 1992b.
6
Abreu, 1982; Schneider, 1968.
7
Cabral, 2005.
8
É importante destacar que o ensino formal atual no Rio de Janeiro, principalmente
em colégios privados, adota materiais didáticos que estimulam a coleta de infor-
mações sobre os antepassados, por meio da confecção de árvores genealógicas que
partem de ego para os ascendentes, geralmente até os avós maternos e paternos.
9
Barros, 1987; Lomnitz e Perez-Lizaur, 1987; Carvalho, 2005; Duarte, 2006a.
10
Barros (2006:25) aponta diferenças de percepção entre homens e mulheres em
relação às lembranças sobre a casa. Esta, nos relatos das mulheres, era associada ao
“extenuante trabalho doméstico que se misturava com a “ajuda” ao marido”, geral-
mente no local de trabalho dele, como um comércio, ou na própria casa, como é o
caso da costura, da lavagem de “roupa para fora” etc.
11
Carvalho, 2005; Gonçalves, 2007.
12
A gestão das famílias sobre sua identidade no tempo pode variar enormemente,
mesmo dentro de grupos de ethos muito semelhantes. Na família Duarte, por exem-
plo, uma das linhagens menos preocupadas com as fotos dos antepassados (dis-
pondo mesmo de muito poucas) tinha grande zelo pelo acervo de fotos dos vivos
e descendentes (a filha e os netos da informante, por exemplo). No entanto, esse
membro da terceira geração que dispunha de tão poucas fotografias era o mesmo
que conservara maior número de documentos pessoais e mesmo de objetos de seu
pai (como uma camisa que ele usava para praticar remo nos anos 1930).
13
A amplitude e o significado dos três quadros de parentesco apresentados em anexo
não são os mesmos para cada uma das redes. As famílias Costa e Duarte reconhe-
cem numerosas linhagens colaterais (às vezes remontando a várias gerações), mais

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186 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

ou menos próximas de alguns ramos da linhagem privilegiada. A família Campos,


em parte por força de sua migração mais recente, apagou quase completamente a
memória dos colaterais da primeira geração aqui tratada. Por outro lado, os qua-
dros foram construídos em forma “descendente”, ou seja, a partir de cada um dos
casais originais, ao passo que cada membro tende a dispor de uma representação
básica da rede “ascendente” a partir de ego, mesmo que essa “árvore” não se estenda
por muitas gerações.
14
Guedes e Lima (2006:143) enfatizam o caráter de constante reciprocidade exis-
tente nas famílias de trabalhadores, ou de camadas populares, como as estamos
chamando aqui, nas quais a casa tem importante papel agregador e acolhedor. Nela
as famílias são abertas, mesmo que estejam protegidas pelos limites fechados do
modelo nuclear, pois sempre há possibilidade de que algum agregado ali se instale,
provisoriamente ou não.
15
A categoria “casa” poderia ter sido grafada aqui com maiúscula ou em itálico, para
sublinhar sua densa qualidade institucional (a de um verdadeiro “fato social total”),
por oposição à sua qualidade objetal básica. João de Pina Cabral (2003:121), ao
analisar algumas “histórias residenciais de famílias urbanas da baixa burguesia e do
proletariado” em Portugal, busca “demonstrar que a associação a uma casa parti-
cular assume uma importância central para estas pessoas enquanto marco de iden-
tidade individual e de pertença familiar nestes contextos de relativa insegurança
urbana. Estas casas são ‘âncoras na cidade’ que funcionam como meios de criação
de identidades num contexto urbano que é entendido como instável e propenso à
erosão dos laços sociais e da identidade pessoal”. Para uma análise mais objetivada
do papel da “habitação”/“casa” na França contemporânea, em que a relação com
a “transgeracionalidade” familiar se manifesta com igual intensidade, ver Bonvalet
(1991).
16
Elias (2000:197) assinala que a “aldeia” não pode ser desprezada como fator signi-
ficativo da estruturação das famílias: “é perfeitamente possível investigar a estrutura
das famílias e da comunidade ao mesmo tempo. Quando isso é feito, logo transpa-
rece a interdependência dessas respectivas estruturas”.
17
A partir de dados sobre as transformações no mercado de trabalho masculino e
feminino nas três últimas décadas do século XX no Brasil, Ribeiro (2007) discute a
preeminência da “casa” como unidade da reprodução social no Brasil, mesmo para
os fins das estatísticas socioeconômicas nacionais.
18
Marcelin, 1999:33.

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Casa e família nas classes populares 187

19
Guedes (1997:144) sugere que a incorporação do modelo de família nuclear con-
jugal pode ser vista como uma tentativa de adequação “a um modelo de família que
se naturalizou como ‘o’ modelo, impondo-se por diversas vias”.
20
Gell (1998:104) desenvolve uma interessante análise do que chama de distributed
personhood, para dar conta da “emanação” contínua que se desprende dos entes
dotados de uma qualidade religiosa (e “artística”) no seu meio social, para além
dos limites de suas corporalidades imediatas. Menciona, inclusive, em homologia,
a experiência das fotografias como índices da presença real das pessoas. Embora
pareça apenas uma versão empirista da noção maussiana do mana (abstraída como
“significante flutuante” por Lévi-Strauss), essa imagem pode ser útil para evocar a
qualidade quase palpável desse “éter” em que se banham as relacionalidades fami-
liares populares. Numa rede mais holista de relações, como as que se analisam aqui,
esse entranhamento precede os sujeitos que aí emergem. As identidades constro-
em-se nas interações concretas de cada trajetória, mas isso ocorre num mundo já
dado, culturalmente imantado. Sofrerá talvez mutações nesses trajetos, em função
dos muitos eventos que poderão (ou não) desafiá-lo, de geração para geração. Ver
também Sahlins (1985).
21
Guedes e Lima (2006:139) assinalam a importância dos “puxados”, “quintais” e
“lajes” no estabelecimento das relações familiares e de vizinhança no Grande Rio.
Pode-se acrescentar aqui o papel das “esquinas” (Foote Whyte, 2005) e “calçadas”
como locais de agregação e sociabilidade das periferias urbanas, como os subúr-
bios.
22
Segundo Mauss (2001:122), na reciprocidade “sabemos que nos comprometemos
(...). Faz-se mais do que se beneficiar de uma coisa e de uma festa, aceitou-se um
desafio, pôde-se aceitá-lo porque se tem a certeza de retribuir, de provar que não se
é desigual”.
23
Peixoto, 2000.
24
Marcelin, 1999:33.
25
Referindo-se à diferença entre a sociedade norte-americana e as sociedades me-
lanésias por ele estudadas, Wagner �����������������������������������������
(1981:91)��������������������������������
faz uma afirmação que bem pode
aplicar-se à preeminência da casa sobre seus membros observada no meio social
aqui analisado: “these ‘styles’ of familial and kin interaction differ from those of middle-
class Americans in that they make family and relationship the invisible context of explicit
individual action, rather than make the individual the implicit context of purposeful fa-
milial existence. The
������������������������������������������������������������������������������
family (and for that matter ‘society’ as a whole) is not ‘planned’, it is
precipitated”.

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188 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

26
Duarte, 1999:26.
27
DaMatta, 1984.
28
Cascudo, 1962; DaMatta, 1984.
29
Maués (2006) fez uma análise interessante da circulação de crianças, estendendo-a
a outras camadas sociais. A seu ver essa prática pode ser considerada um elemento
básico no tipo de organização de parentesco encontrado no Brasil.
30
Maués, 2006:188.
31
Sarti, 1996.
32
“Por todas estas razões, a vida no proletariado parece guiada por uma espécie de
hedonismo, que considera a vida muito aceitável, desde que se consigam evitar as
grandes preocupações (as dívidas, a bebida, a doença), e enquanto seja possível
“ter alguns prazeres”. Mas esse hedonismo é muito relativo, pois subsiste sempre
a convicção profunda de que as melhores coisas da vida são para outros. (...). São
muito comuns as frases do gênero “temos de ver o lado bom das coisas”, “o que
é preciso é cara alegre”, “os pequenos prazeres é que dão graça à vida”, “temos de
aproveitar o que há de bom em cada dia”, “não somos ricos, mas tiramos partido
da vida”. Hoggart, 1973:163.
33
�����������������������
Duarte et al., 2006:17.
34
Para uma discussão mais aprofundada sobre esse debate, ver Sanchis,1994 e San-
chis et al., 2001.
35
Gomes, 2008.
36
Segundo Vera Telles (2006:75), “as formas de moradia e sua localização no tecido
urbano, para além dos indicadores de maior ou menor precariedade habitacio-
nal, traduzem tempos coletivos e trajetórias urbanas, representam a consolidação
ou rupturas de redes sociais e teias de solidariedade e interagem com dinâmicas
familiares e formas de composição da vida doméstica, tudo isso convergindo na
construção de uma topografia da cidade que não corresponde ao seu mapa físico.
É uma topografia feita de marcações de distâncias e proximidades, desenhada pelos
circuitos e que interagem com os fluxos urbanos que, em princípio, os serviços
públicos organizam ou deveriam organizar”. Bott (1976:109) considera como fator
significativo para a compreensão da “família urbana” o “grau de conexidade das
redes estabelecidas (‘malha estreita’ e ‘malha frouxa’), dependendo este do investi-
mento das próprias famílias no estabelecimento da amarração das malhas. Fatores
como escolher ou não a aproximação com a vizinhança e as mudanças de endereço
afetam as conexões que sustentam as redes”.

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Casa e família nas classes populares 189

37
Gomes, 2006a; Couto, 2001. Ver também a análise que Reinhardt (2007) fez das
relações entre as instituições de culto afro-brasileiras e as igrejas pentecostais em
Salvador, na Bahia.
38
Fernandes, 1998.
39
Birman, 2003; Hervieu-Léger, 1997; Mariz e Machado, 1998.
40
��������������������
Duarte et al., 2006.
41
A importância do espaço da varanda nesse meio social foi apontada por Guedes
(2006:138). Também para os informantes de Heilborn (1984:95), caracterizados
como de “baixa classe média”, no subúrbio carioca, a varanda tinha grande impor-
tância, diferenciando-se dos casos aqui analisados por ser dupla: uma frontal e uma
posterior (mais íntima).
42
A idéia de vitória como sinônimo de conquista (Gomes, 2004 e 2007) orienta as
vertentes mais recentes do cristianismo, em especial as neopentecostais e as ca-
rismáticas católicas, que acentuam o papel da prosperidade em suas doutrinas e
práticas. Ver também Lima (2007).
43
Magnani (1991:43-44) aponta a existência de distintos tipos de umbanda, não sen-
do possível a realização de uma síntese doutrinária e ritual. O kardecismo de “mesa
branca” tem caráter mais “ocidentalizado”, contido, o pólo oposto ao candomblé,
no qual “desaparecem os atabaques, pontos cantados e riscados, substituídos por
palmas, preces e música suave, havendo predileção pela ave-maria (...). Tudo muito
organizado, os horários seguidos à risca (...), onde só descem espíritos evoluídos de
médicos, padres, cientistas”.
44
Ao contrário do que ocorreu com sua esposa, cuja morte foi intermediada pela
instituição hospitalar — “morte moderna” (Ariès, 1981), “medicalizada” (Foucault,
1979) e afastada da vida cotidiana dos parentes e vizinhos (Elias, 2001).
45
Duarte, 2006:20.
46
Entre os Campos observou-se um investimento contínuo na conquista de espaço
entre os participantes das correntes religiosas em disputa. Uma característica inte-
ressante, a ser aprofundada em próximas pesquisas, é a freqüente adesão às práticas
religiosas da mãe do marido, quando são as esposas que se mudam para o “quintal”
da família do cônjuge. A sogra assume papel crucial na adoção de um novo ethos re-
ligioso pela nora, mesmo que o cônjuge não freqüente a denominação de sua mãe.
A adesão à nova família não ocorre sem tensão, principalmente quando também
inclui a adoção da fé religiosa da família do marido, tornada evidente na realização
do casamento no espaço religioso da nova família. Ver Gomes (2006a e 2006b).

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190 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

47
A combinação entre conversão e casamento está fortemente presente na terceira ge-
ração. Isso incrementa a dinâmica interna de diversificação religiosa da rede fami-
liar. Entre os netos, as formas de regulação das relações conjugais via religião estão
articuladas ao espaço adquirido pelos evangélicos pentecostais dentro da rede fami-
liar na década de 1990. Nas conversões ao campo evangélico, as relações de aliança
e sociabilidade vinculadas à opção religiosa tendem a se tornar mais preeminentes
que as relações de sangue. Os casais que se formam — aqueles que privilegiam o
casamento no religioso — tendem a ser intra-evangélicos.
48
Duarte, 1995:33.

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Capítulo 6

C o n d i ç õ e s d i f erenciais de
r e p r o dução

Life as inventive sequence has a particular character, a certain quality of brilliance


that beggars comparison with our busy world of responsibility and performance. It is this,
not “nutrition”, or “survival”, that animated the long-gone camps that our archeologists
study as charcoal diagrams; it is this, not “primitiveness” or “stone-age mentality”,
that makes the contradictory and paradoxical encounters of “middle-class” people with
peasants, tribal peoples, and those of the “lower class”, and it is this that is “missing” in
a camp or village denuded of its population by labor-recruiting and so on. The dullness
that we find in mission schools, refugee camps, and sometimes in “acculturated” villages
is symptomatic not of the absence of “culture”, but of the absence of its very antithesis
— that “magic”, that very swaggering image of boldness and invention that makes culture,
precipitating its regularities by failing in some final sense to overcome them.
Wagner, 1981:89

A s formas pelas quais os sujeitos que povoam este livro foram construin-
do suas trajetórias, mais ou menos centradas no núcleo casa/família, de-
pendem de uma série de fatores envolventes, de um “contexto”, que se pode
apreciar de um ponto de vista mais socioeconômico ou mais moral, bastante
variável ao longo do período histórico aqui privilegiado.
A separação entre essas diferentes condições de reprodução não é apenas
um artifício ético, exógeno, decorrente das compartimentações dos saberes
sobre o humano em nossa cultura erudita. Também os sujeitos observados
buscam delimitar patamares diferentes de explicação dos processos que en-
frentaram em suas histórias de vida — patamares que podem variar situa-
cionalmente, é claro. Não procedem, porém, a essa busca com os mesmos
instrumentos e a partir das mesmas propriedades reflexivas que os dos pesqui-
sadores. A possibilidade de objetivação ou racionalização desses “fatores” está
contida nas regras mesmas de construção de seu mundo significativo, onde

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192 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

algumas dimensões se expressam de forma mais “naturalizada”, e outras, de


forma mais “distanciada” ou “problematizada”.1
As dimensões mais “naturalizadas” são certamente aquelas que compõem
a zona do pertencimento familiar, a “esfera privada”, o domínio das relações
densas, incorporadas, entranhadas, que qualificam o círculo próximo, intenso
e personalizado das relações significativas. Destacam-se aí, como já se mencio-
nou, as dimensões do “gênero”, da “geração” e da “fratria”. Além disso, elas são
inseparáveis de uma condição muito peculiar, que se poderia chamar de “en-
tranhamento moral”. Quer-se com isso expressar a prevalência da ordem da
“dádiva”2 nas relações aí correntes. Isso não quer dizer que as ordens externas,
mais distantes, não contenham dimensões da troca entranhada (em luta com
aquela outra, desentranhada, da esfera pública e do mercado), e sim — efeti-
vamente — uma prevalência ou hegemonia. As tensões e conflitos permanen-
temente pulsantes no interior das redes de parentesco, de amizade e de vizi-
nhança podem ser muito fortes, talvez até mais dramáticas e sofridas do que as
que envolvem personagens das esferas exteriores, mas isso ocorre justamente
porque se trata aqui de relações densas, incorporadas e naturalizadas — onde
as brechas da solidariedade ensejam feridas mais dolorosas e movimentos de
aproximação e distanciamento mais pendulares e assistemáticos.
Eis o que permite que as condições diferenciais de gênero, geração e
fratria se apresentem normalmente entranhadas em avaliações personalizadas,
que remetem a processos de denúncia e justificação não-universalizáveis.3 Os
irmãos e as irmãs, os primogênitos e os caçulas, assim como as relações cruza-
das de gênero e geração (filhas e filhos com mães e pais) dispõem de roteiros
relacionais muito diferentes em qualquer estrutura de parentesco. No meio
popular de uma sociedade como a brasileira esses roteiros tendem a ser menos
relativizados ou contrabalançados pela ideologia da igualdade e, portanto, a se
impor de forma mais imediata.
Por outro lado, a precariedade mais ou menos permanente dos recursos
socioeconômicos de reprodução impõe uma distribuição diferencial mais ób-
via entre os membros de uma fratria em função de seu gênero e posição. De
modo geral, os descendentes mais velhos podem se beneficiar de condições
mais propícias de acesso aos bens de reprodução, assim como os homens em
relação às mulheres. Como a ideologia da hierarquia de gênero propõe que a
identidade feminina permaneça englobada pela masculina, maiores investi-
mentos podem ser feitos visando à afirmação dos filhos homens, na expectati-

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Condições diferenciais de reprodução 193

va de que — a longo prazo — as filhas se beneficiem das estratégias homólo-


gas difusas em seu meio.4 Contradições importantes emergem em tal contexto.
Por exemplo, como o trabalho tem prioridade sobre o estudo para os rapazes,
podem as moças vir a dispor de mais tempo de escolaridade — o que lhes fa-
cultará, nas condições atuais de instabilidade do trabalho manual masculino,
vantagens relativas no mercado de serviços.5 É possível que essa variável tenha
influenciado no caso de Elza Campos, que permaneceu em Muriaé até termi-
nar as primeiras letras, vindo a retomar os estudos somente após o casamento
e a criação dos filhos. Mas esse é um processo mais recente, não observado na
segunda geração da família Duarte no entreguerras, por exemplo. Nesse caso,
a ideologia da mulher englobada não favoreceu em nada o único membro fe-
minino da fratria, tendo inclusive sobrecarregado os irmãos mais velhos com a
co-responsabilidade pelo sustento coletivo. Já na família Costa esse processo é
mais nítido. A filha primogênita da segunda geração se beneficiou de significa-
tivos investimentos sociais, como contrapartida por ter assumido a função de
liderança moral sobre a fratria. O mesmo pode ser dito, embora por motivos
diferentes, da primogênita da terceira geração, a própria E. Gomes, que soma-
va duas características distintivas: única mulher e caçula da fratria. Ao contrá-
rio dos irmãos, nunca foi instada a trabalhar no comércio do pai, função que
era obrigatória para os filhos homens a partir do início da adolescência. A úni-
ca exigência dos pais se relacionava à sua formação educacional, realizada em
colégio católico, distante do bairro original, porém na mesma cidade de São
João de Meriti. Outro exemplo desse tipo de investimento no núcleo observa-
se também na terceira geração, porém relacionado ao fato de ser filha única.
A idéia de retribuição ao investimento — mesmo que precário — está aqui
muito evidente: mesmo sendo casada, sem filhos, ela é hoje responsável pelo
cuidado dos pais. Muito se fala a respeito de uma aptidão para o estudo, como
se o processo de aprendizagem estivesse vinculado a um dom, a uma natureza
que faz com que as crianças tenham mais ou menos capacidade para apren-
der. A importância da educação formal, como um pressuposto de construção
diferencial da pessoa, não caracteriza a segunda geração dos Campos, afora as
exceções já mencionadas. “Nunca foi bom de estudo” e “não gosta de estudar”
são frases recorrentes para justificar a evasão escolar, que pode vir acompa-
nhada do ingresso precoce no mundo do trabalho. Na geração seguinte não
há mudanças significativas nessa orientação, embora se tenham ampliado as
políticas educacionais. Os filhos caçulas, tanto dos Duarte quanto dos Costa

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194 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

(na segunda geração), vieram a se constituir como sujeitos relativamente fra-


cos, pouco dispostos a uma ingerência mais nítida em seus respectivos meios.
O caso da família Campos aponta para uma exceção peculiar: o caçula (da
segunda geração) converteu sua relativa fragilidade no móvel de um ato pre-
coce de auto-afirmação, realizando o primeiro casamento fora do catolicismo
e se afastando do círculo da casa original. Na terceira geração há outro caso de
conversão de um filho caçula de um dos núcleos, e um dos netos mais novos,
no qual o ethos religioso adquirido — evangélico —, somado ao trabalho, e
não à educação formal, também é primordial no processo de auto-afirmação.
Trata-se de uma das crianças que vivenciou a dinâmica da circulação no quin-
tal — à época era até mesmo apelidada de “Pintinho”, pelo seu tamanho e por
estar sob a guarda, mesmo que precária, dos habitantes do quintal. A metáfora
é sugestiva: era “criado” junto às galinhas. Sua posição mostra a ambigüidade
desse sistema, já que se é de todos e de ninguém ao mesmo tempo. A trajetória
de “viração” começou desde cedo, vendendo balas em trens e ônibus que liga-
vam o bairro ao Centro do Rio de Janeiro. Na adolescência ele passou a vender
verduras e legumes, de casa em casa, junto com seu irmão. Dessa circulação pelo
bairro até a “sedentarização” do trabalho transcorreram alguns anos, até que veio
a se instalar num espaço do próprio quintal, dedicado ao comércio familiar. A
conversão foi concomitante, e o casamento intra-religioso ocorreu em seguida.

O trabalho

As expectativas do trabalho masculino são muito diferentes nos casos aqui


analisados. As vias do serviço público, civil ou militar, para a família Duarte,
entre os anos 1910 e 1980, a do trabalho na pesca para diversas gerações da
família Costa, ao longo do século XX (conjugada às vias do serviço militar e
civil de modo mais pontual), e as múltiplas vias combinadas nos processos de
reprodução da família Campos, entre os anos 1950 e 2000, revelam condições
muito diversas de acessibilidade, desempenho e estabilidade.
Encontramos nesse quadro, ainda, condições mais específicas, como a
do operariado metalúrgico ligado à indústria naval (caso de Pituta Costa e de
seu cunhado mais velho), a dos novos serviços ligados à qualidade de vida
em geral (caso de dois filhos, um homem e uma mulher, de Humberto Costa,
empregados como “fisioterapeutas” de uma empresa terceirizada).

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Condições diferenciais de reprodução 195

Há ainda uma série de outros trabalhos menos formais, como o serviço


temporário juvenil masculino, como auxiliar da pesca ou de serviços maríti-
mos (como o de um dos filhos de Humberto num bateau-mouche turístico), ou
juvenil feminino, como empregadas do pequeno comércio ou como domés-
ticas (em que estiveram envolvidas pelo menos duas das meninas da família
Costa, ainda nos anos 1970), a manutenção de pequenas indústrias domésti-
cas (como a confecção e venda local de doces entre os Campos), o comércio
ambulante e a “viração” (os mais diferentes tipos de trabalhos informais e
temporários, como o de entregador de galões de água, de um Campos). Há
alguns casos de empregados de comércio mais estáveis (o marido de Walquíria
Duarte e Inês Costa). E há, finalmente, algumas empresas de comércio ou de
serviços de médio porte. A utilização da casa como espaço de trabalho é uma
estratégia de sobrevivência muito presente entre os Campos, tradição herdada
de Geraldo, com sua marcenaria. Exemplo atual é o conjunto de pequenos
comércios instalados no local. Ressalta-se também o sistema de vendas de pro-
dutos de catálogos, vastamente utilizado nas camadas populares. Constitui-se
num “trabalho” eminentemente feminino, capaz de fazer circular dinheiro,
objetos e sentimentos, no qual são acionadas relações familiares e de vizinhan-
ça. Embora possa representar parte significativa do orçamento doméstico, em
geral é considerado como “ajuda” no sustento da casa, uma atividade extra e
irregular realizada por “donas-de-casa”.
Os profissionais liberais de formação universitária só se apresentam a
partir da terceira geração nas famílias Duarte e Campos (e apenas nos seg-
mentos socialmente ascendentes), ficando restritos na família Costa aos dois
“fisioterapeutas” (atividade com maior acessibilidade e, portanto, menor pres-
tígio nesse nível) e ao marido militar — e, segundo consta, engenheiro — da
fisioterapeuta. Na família Campos, restringe-se aos filhos de Elza (respectiva-
mente advogado, médico, fisioterapeuta, analista de sistemas e antropóloga) e
ao núcleo que recebeu sua influência direta, com apenas uma integrante for-
mada em pedagogia numa universidade federal em 2007. Outro personagem
da mesma geração fez graduação de curta duração em estudos sociais, para
ministrar aulas no ensino fundamental. O processo de construção de autono-
mia das mulheres via estudo é ainda incipiente. Aquelas que chegaram ao 3o
grau de ensino se dedicam à área de educação infantil, à exceção de E. Gomes,
embora esta também esteja, afinal de contas, na área educacional. É sugestivo

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196 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

que assumam uma carreira tradicionalmente tida como “feminina” — pois se


refere à relação entre cuidado de crianças e sensibilidade “natural” para lidar
com elas, um pressuposto da “essência feminina” —, mesmo que possam fazer
escolhas dentro do campo de possibilidades ao qual estão vinculadas. Talvez
os problemas não se comparem àquele enfrentado por Elza, quando finalmen-
te conseguiu ingressar no ensino superior. À época, desejava se inscrever para
o curso de direito, mas foi impedida pelo marido, que somente a apoiaria se
o curso “escolhido” fosse pedagogia. O mapa de escolhas das mulheres da
terceira geração, que ascendem pela via da educação formal, parece estar mais
associado à escassez de oportunidades sociais das camadas populares — como
acesso a boas escolas e necessidade de entrada rápida no mercado de trabalho
— do que, necessariamente, às heranças patriarcais.
A referência genérica ao serviço público civil deve comportar muitas nu-
anças. Como dito no capítulo 3, as características do serviço público munici-
pal, a que tanto se associou a família Duarte, eram muito peculiares, em fun-
ção do estatuto preeminente do Distrito Federal até a transferência da capital
para Brasília. Também foram muito diversas as características gerais do serviço
público no Brasil, antes da generalização dos acessos e das avaliações por qua-
lificação específica e mérito impessoal.6
As condições eminentemente “pessoais” do acesso a esse tipo de
ocupação e o conseqüente desenvolvimento de uma carreira bem-sucedida no
período histórico em que se deu a experiência das duas primeiras gerações dos
Duarte em nada discrepam, no entanto, daquelas que descreveu agudamente
Antonio Candido (2002:11) no caso de ascensão social pelo acesso ao “funcio-
nalismo público” sob o Império:

Dantes, a classe do meio era rala e composta em boa parte pelos próprios fun-
cionários, cujos cargos, dos poucos regularmente pagos, permitiam situar o in-
divíduo num quadro definido da hierarquia social. Quando se pensa que as
oligarquias provinciais e depois estaduais reservavam ciosamente para si a indi-
cação do pessoal das repartições e de lugares como delegado, coletor provincial
ou geral; quando se pensa nisso é que se vê até que ponto a vida na nação girava
em boa parte à volta do ser ou não ser funcionário.

A análise de Candido (2000:183) se concentra justamente na improvável


ascensão de um sujeito social desprovido de capital econômico e social a uma

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Condições diferenciais de reprodução 197

alta posição na administração imperial, através de uma das raras portas abertas
à mudança de status na sociedade brasileira:7

Tinha saído do nada e queria subir. Quais os caminhos? Podia ser comer-
ciante, traficar escravos, contrabandear, arranjar concessões públicas; mas
para isso era preciso uma certa paixão do ganho que quebra a linha, e ele
evitava por natureza os aspectos brutais da luta. A política seria a carreira
suprema, mas estava praticamente fechada porque lhe faltavam, além da vo-
cação, outros requisitos: não era doutor, não tinha parentela, nem dinheiro,
nem aliados. Nessa redução de perspectivas, a burocracia foi a porta estreita
que daria o pão com o respeito, que permitiria exercer o mando depois de
muito obedecer, que poderia capitalizar como trunfos as boas maneiras, as
boas leituras, o bom jeito.

Como já se ressaltou, aliás, as primeiras décadas da República não fizeram


senão tornar mais amplo o leque desses acessos, com o aumento exponencial
dos quadros do funcionalismo, sobretudo na capital e nos níveis inferiores de
trabalho — em função de uma radical intensificação da intervenção estatal em
todos os níveis.8 Isso não quer dizer que não houvesse um componente de de-
sempenho pessoal na composição das carreiras. A diferença entre os destinos
dos cinco filhos de Sebastião Duarte, todos situados nesse nicho do serviço
público, é marcante. Apenas Rolembergue gerenciou sua carreira com sucesso
notável, tendo ascendido ao topo da escala, como já se descreveu. Os irmãos
ascenderam burocraticamente, por assim dizer, “letra por letra”.9 Houve mes-
mo um primo que, apesar de admitido no emprego público por intermédio de
Rolembergue, veio a ter um destino social fortemente descendente, chegando
a ocupar a casa da Salvador de Sá no período de sua decadência (tanto sua,
pessoal, quanto da casa e do bairro). Um dos membros da terceira geração
da família entrevistados em 2007 refere-se ao método de acesso ao emprego
público prevalecente na geração anterior à sua como o “teste de QI” — na
acepção maliciosa de “quem indica”.
A mesma composição entre clientelismo e desempenho se verifica, em
nosso material, a respeito de outros tipos de serviço público civil, como
no caso dos “Correios”, a que estiveram (ou estão) associados diversos
membros da família Costa.10 Humberto relata ter feito, com sucesso, um

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198 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

teste para ser confirmado num cargo nessa empresa pública, para o qual,
no entanto, tinha sido indicado por um oficial amigo num momento par-
ticularmente difícil de sua vida. Desse emprego, fonte de grande ambi-
valência para Humberto, em função de sua associação prioritária com a
pesca e a marinha, ele conseguiu, afinal, obter sua primeira aposentadoria,
ainda que por motivos de saúde. O único filho que, por influência sua,
entrou também nesse emprego acabou sendo afastado. Hoje, dois de seus
jovens netos lá se encontram trabalhando, ao mesmo tempo em que estu-
dam — mas não foi possível saber se alguma influência pessoal se juntou
à necessária aprovação nos concursos oficiais para ingresso na empresa,
mesmo em seus níveis menos qualificados.
O acesso e a promoção por desempenho já estavam mais firmemente
implantados no serviço público militar há mais tempo, aliás, apesar de con-
sideráveis contradições, sobretudo na Marinha,11 e em relação aos soldados,
praças e suboficiais. De qualquer modo, é parte inseparável do orgulho de
Humberto em relação à sua carreira militar o fato de ter sido aprovado no
exame para escola de Angra dos Reis. Sua menção aos contemporâneos que,
à mesma época, tinham sido majoritariamente mal-sucedidos sublinha a im-
portância desse fato nos anos 1930, sobretudo para gente associada às lides
do mar, como os pescadores. Não se pode deixar de ressaltar a importância
da estabilidade (apesar das vicissitudes de uma carreira como a de Humberto)
e do valor relativamente alto dos soldos (sobretudo em contraste com outras
áreas do serviço público).12
As carreiras de professora (pela Escola Normal) e de militar (pela via da
Escola Militar e da Academia Militar), mais comuns entre os elementos mais
velhos da terceira geração dos Duarte (três mulheres e um homem, entre os
oito nascidos até 1950), derivavam parte de seu grande prestígio do caráter
mais claramente não-clientelístico de sua efetivação — tal como as carreiras
universitárias vieram a se apresentar a partir da ampliação de suas bases nos
anos 1960. Isso não quer dizer evidentemente que não houvesse um suporte
social mínimo para tal desempenho diferencial. Na verdade, poder-se-ia di-
zer que o prestígio decorria mesmo da relação entre a qualidade “meritocrá-
tica” da avaliação por “concurso” e a posse de um certo capital social, de um
habitus suficientemente elaborado para a vitória nessa seleção. Impunha-se
assim uma nova ética da distinção social, já então menos personalizada ou
patrimonialista.

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Condições diferenciais de reprodução 199

É notável o número de concursos que os filhos de Humberto Costa es-


tavam se preparando para fazer ou fizeram nos anos 1970 — tal como revela
o caderno de campo de L. Duarte (a Petrobras avultava, à época, certamente
em funções técnicas associadas às competências mecânicas e de marinhagem
dos então jovens Costa).13 Também são referências constantes na vida dos seus
netos desde 2000. Alguns deles haviam feito ou estavam fazendo cursos pre-
paratórios a duras custas, apesar de se tratar de cursos mais baratos e menos
prestigiosos.
O sucesso dos Duarte e o insucesso dos Costa nesses concursos é o mais
claro sinal do rumo diferencial que tomaram as expectativas de auto-afirmação
nas duas famílias, pelos muitos motivos que se está justamente tentando es-
clarecer, dentro do novo horizonte de despersonalização do acesso diferencial
aos bens públicos. Entre os Campos, os casos de acesso ao serviço público por
meio de concurso também ocorreram no núcleo ascendente. O processo de
construção da auto-afirmação de Elza — iniciado com seu retorno aos estudos
e culminando na conclusão do curso universitário em pedagogia — concluiu-
se com sua aprovação para o quadro de docentes do Estado e, mais tarde, em
2006, para um cargo de supervisora pedagógica num município da Baixada
Fluminense.14 Outro caso da segunda geração foi a adesão ao serviço militar
do primogênito, que assim pôde ter uma trajetória profissional um pouco
mais regular que os demais. Na terceira geração, o acesso ao trabalho no servi-
ço público foi conquistado somente pelos que finalizaram seus estudos, entre
os quais três dos cinco filhos de Elza e duas de suas sobrinhas, ambas profes-
soras de escolas públicas.
Transcreveu-se, há pouco, o modo como Antonio Cândido descreveu a
alternativa com que seu “funcionário do Império” respondeu à carência de
seus recursos de atribuição: “capitalizar como trunfos as boas maneiras, as
boas leituras, o bom jeito”. Certamente,
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esses elementos devem ter sido cru-
ciais nas muitas etapas de sua ascensão na administração da Corte, mas algo
deve ter havido na origem, lá no início do processo, que lhe permitiu escapar
pouco a pouco da determinação mais imediata ou linear de sua condição so-
cial. E disso nada se sabe, já que os registros históricos, os arquivos revelado-
res são coetâneos dos primeiros sinais de uma disposição já desencadeada. Já
para os informantes de nossas famílias, pode-se mais claramente perceber os
vetores diferenciais em ação. E também aqui “��������������������������������
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as boas maneiras, as boas leitu-
ras, o bom jeito��������������������
”�������������������
serão essenciais.

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200 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

O habitus e o estudo

Como parece ter ocorrido com o conselheiro Tolentino, não era ainda crucial
para a segunda geração dos Duarte dispor de um alto capital escolar formal.
Claro que tinham que estar presentes as condições básicas para as “boas lei-
turas”, numa população ainda majoritariamente analfabeta.15 À medida que
avança o século e aumenta a disponibilidade escolar, os requisitos para o pro-
cesso de estabilização e eventual auto-afirmação vão se tornando maiores — e
menos acessíveis, na verdade, para os membros das classes populares. Tam-
bém fazia (e continua fazendo) uma considerável diferença a maior ou menor
proximidade física dos meios qualificados de aprendizado. Compreende-se
assim que tenha sido duplamente mais fácil para os Duarte atingir os pata-
mares mínimos das “boas leituras”, no entreguerras e em seu bairro central.
Tanto para os Costa quanto para os Campos, as escolas em geral, e as boas em
particular, estavam longe, e os patamares de exigência mínima de desempenho
tinham subido consideravelmente a partir dos anos 1960.16
As condições diferenciais do acesso ao estudo são inseparáveis de dispo-
sições entranhadas ou incorporadas, associadas às idéias de autocontrole, con-
tenção e civilização. As “boas maneiras” e o “bom jeito” acompanham necessa-
riamente as “boas leituras”. O desempenho escolar adequado pressupõe e/ou
impõe um jogo de corpo/mente muito peculiar, envolvendo as habilidades de
domínio gestual e cinestésico, concentração mental, abstração conceitual e
capacidade expressiva. Essas habilidades correspondem a um habitus cultural-
mente característico das classes médias e das elites, que buscam imprimi-lo a
seus infantes desde o nascimento.
O ethos familiar é inseparável, por sua vez, dos universos da vizinhan-
ça e do trabalho, onde os processos de auto-regulação corporal-expressiva
se impõem imperceptivelmente, não sem contradições, hesitações e adapta-
ções desviantes ou criativas. Esses processos são mais nítidos em contextos de
maior densidade ou entranhamento das relações, tais como os que se podem
encontrar justamente nas vizinhanças populares e em trabalhos que pressu-
ponham uma cooperação corporal, presencial. Diz-se que eles são mais níti-
dos. Seria melhor dizer que parecem mais nítidos, em contraste com a forma
de auto-regulação corporal-expressiva característica dos segmentos médios e
superiores, que também depende, evidentemente, dos contextos onde ela se

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exerce, mas obedece a critérios mais generalizados, presentes em circuitos am-


pliados de convivência pública, mais do que nos círculos restritos da moradia
ou do trabalho.17
Os caminhos diferenciais dos Duarte e dos Costa são mais uma vez pe-
culiares. O habitus de funcionários públicos civis desenvolvido na segunda
geração dos Duarte é diametralmente oposto ao habitus dos pescadores que
acompanha indelevelmente as gerações dos Costa até hoje — quando essa
ocupação já se afigura secundária e simbólica, no contexto de suas novas con-
dições de sobrevivência. Há mesmo um contraste estrutural entre a figura fran-
camente operária de Sebastião Duarte e a de seus descendentes white-collar, e
entre a figura marcadamente militar de Humberto Costa e a de seus respecti-
vos descendentes. A família de Sebastião habitava, porém, uma “vila operária”
muito peculiar, construída em pleno ambiente metropolitano, com grande
autonomia das unidades habitacionais, mesmo que se tivessem estabelecido
vínculos fortes de vizinhança ao longo de décadas de convivência. Seus filhos
(à exceção dos dois mais velhos, no começo de suas carreiras) circularam ex-
clusivamente por “repartições” burocráticas, afastados dos esforços corporais
conjuntos da oficina de seu pai. Já a família de Humberto permaneceu todo o
tempo entranhada na espessa trama do bairro de Jurujuba, com a referência
contínua do trabalho intensamente corporal e coletivo da pesca a envolver seu
imaginário e sua prática da vida social. É interessante sublinhar que, para os
homens de ambas as famílias, a natação e o remo foram experiências impor-
tantes. No caso dos Duarte, porém, tratava-se, a partir da segunda geração, de
um cultivo já “esportivo”, com tons hedonistas e estetizantes,18 desenvolvido
crescentemente no contexto das piscinas de clubes sociais (depois do aterro
da saudosa praia de Santa Luzia das memórias infantis de João Duarte). Para
os Costa, até hoje, nadar e remar são exercícios abrangentes, misto de lazer e
preparação para o trabalho, recurso conjunto de prazer, flexibilidade e força.
A pesca, hoje, pode ser declarada apenas uma “brincadeira”, mas como ainda
é séria! Todos os homens da família, empregados ou desempregados, estão
sempre falando de suas “pescarias” (o termo designa o conjunto dos barcos
de pesca e os diversos utensílios necessários ao desempenho da atividade pro-
dutiva). Até mesmo os que, agora, bem jovens, são encaminhados pelos pais
e avós para as mais diversas carreiras externas retornam para as brincadeiras
de beira-mar nos fins de semana. Os corpos assim construídos destacam-se,

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202 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

portanto, pelas marcas de uma competência física muito diversa da dos des-
cendentes de Sebastião.
Um ponto muito importante dessa construção diferencial dos corpos
masculinos no contexto de um bairro como Jurujuba é o seu uso combati-
vo juvenil. São freqüentes as histórias masculinas a respeito de brigas, lutas
corporais, nos mais diversos contextos e sob os mais diversos pretextos. Em
princípio, elas se concentram na sociabilidade juvenil, em torno de episódios
ligados aos esportes, ao namoro ou mesmo ao trabalho. Em alguns casos, o
tema da força física e das vantagens e riscos envolvidos no seu uso permanece
pertinente através da vida adulta — tal como se relatou anteriormente a pro-
pósito de Pituta Costa. Neste último caso, paira uma permanente ameaça do
uso inadequado dessa força como disposição belicosa, sobretudo no contexto
mais formal do trabalho assalariado (como operário). No universo do trabalho
pesqueiro, essa disposição belicosa e os meios de fazê-la valer são bem mais
toleráveis ou mesmo convenientes, em função de diversas características do
processo de trabalho tanto no mar quanto em terra (no tenso espaço do mer-
cado de peixe, por exemplo).19 Nada de semelhante se apresentava na memó-
ria familiar da experiência juvenil da segunda geração dos Duarte — o que não
quer dizer que não tivesse existido de alguma forma, em algum dos contextos
sociais em que circularam. Mas certamente não teve o peso estruturante que
marcou a juventude em Jurujuba, nem conservou o peso imaginário que con-
tinua tendo para os agora adultos Costa.
Um caso interessante é o do mais novo dos filhos de Humberto, que
parecia ser, nos anos 1970, o que menos atenderia às expectativas de auto-
afirmação paternas. Fazia um uso mais recreativo do corpo do que os irmãos,
sobretudo a partir do serviço militar, durante o qual se destacara pela disposi-
ção esportiva. Hoje é, dos três irmãos, o que parece estar em melhor situação
profissional. Encaminhou lenta e tentativamente sua disposição esportiva para
o ensino de natação em clubes e outros serviços ligados aos esportes. Chegou
a ser treinador esportivo de uma grande empresa, onde trabalhou com sucesso
por longo tempo, chegando a acompanhar seus atletas numa viagem à Euro-
pa — experiência que ainda marca fortemente sua imaginação. Atualmente,
depois de um curso de treinamento em fisioterapia (feito na mesma “clínica”
freqüentada por uma de suas irmãs menores), trabalha numa empresa de pres-
tação de atendimento fisioterápico (o que, no caso de ambos os irmãos, en-
volve também acupuntura, pilates e outras técnicas terapêuticas alternativas).

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É um caso significativo de conversão (ou reconversão) em vantagem daquilo


que poderia ter sido uma limitação.
Isso não quer dizer que não tenha havido mudanças na configuração
mais geral da corporalidade masculina em Jurujuba nessas três décadas. Nos
anos 1970, pelo menos um jovem da localidade já praticava surfe, o que pare-
cia ser um traço da cultura juvenil de classe média mais facilmente apropriável
pelos jovens pescadores. Mas isso ainda era associado à farra ou a uma certa
irresponsabilidade (ou à suspeita sempre presente do uso de drogas). Atual-
mente, um dos netos de Humberto, justamente aquele que mais claramente se
acha ligado à pesca, combina esse trabalho com a prática mais ou menos regu-
lar do surfe. Seu aspecto físico geral combina, de maneira menos contrastiva
do que outrora, características de pescador e de surfista (inclusive com o uso
de tatuagens, cabelo parafinado etc.).20 Um outro neto, dos mais velhos, afas-
tou-se da pesca em que fora iniciado pelo pai e pelos tios e, tendo praticado
desde cedo o halterofilismo, veio a trabalhar como treinador numa academia
de fisiculturismo — num trajeto semelhante ao de seu tio fisioterapeuta.
Os processos de auto-regulação corporal-expressiva afetam também as
mulheres, obviamente, através dos circuitos da vizinhança, da sociabilidade
juvenil e da informação midiática. O aspecto das moças de Jurujuba hoje pa-
rece — à primeira vista — muito mais “moderno”, ou seja, semelhante ao
das moças das camadas superiores, do que três décadas atrás. Há certas ca-
racterísticas de uso do corpo que se disseminaram de modo surpreendente
para o pesquisador, como o piercing ou as tatuagens. Com mais atenção — e
sobretudo em situações festivas, pode-se reconhecer, no entanto, um estilo
mais explicitamente sensual, que acentua ao máximo as qualidades corporais,
exibidas no jogo das seduções pré-matrimoniais.21 Um interesse mais explícito
pela corporalidade e pelos meios de sedução transparece no fato de uma das
netas, que abandonara a faculdade particular de jornalismo, ter montado um
pequeno negócio de revenda de roupas esportivas femininas. Entre os Campos
— longe da costa — as recordações de infância se relacionam a brincadeiras
tradicionais, como soltar pipa e jogar bola de gude. As brincadeiras coletivas
ganham maior importância na terceira geração, sendo realizadas principal-
mente com as “turmas da rua”, como na “queimada”.22
Na terceira geração, a capoeira surge como atração para alguns netos de
Geraldo e Pequitita, especialmente no núcleo de Neuza: quatro de seus cinco
filhos “jogaram” capoeira em algum momento de suas vidas, incluindo as duas

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filhas, que chegaram aos mais altos níveis dessa atividade. Pode-se dizer que
a capoeira serviu como instrumento de auto-afirmação de uma delas. Durante
muito tempo, “ser capoeirista” permitiu-lhe expandir as fronteiras do bairro.
Juntamente com o marido, ambos mestres na arte, fazia apresentações em di-
versos locais, incluindo a Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Tal habilidade
possibilitou-lhes dar aulas particulares a pessoas de outro meio social. A do-
ença do marido e outras circunstâncias levaram-nos a abandonar a atividade.
Contudo, permanecem vinculados à rede de sociabilidade construída no meio
da capoeira.
O tema da corporalidade envolve muito diretamente — embora não line-
armente — as estratégias e trajetórias matrimoniais. A dimensão da “beleza”,
tão particularmente crítica nas suas implicações para o destino social dos su-
jeitos quanto é ambígua e controversa no tocante aos seus critérios e compo-
nentes, é matéria pouco explorada nas ciências sociais.23 Entram aí em jogo os
dados sobre a constituição física básica da pessoa e os mais variados níveis dos
processos de auto-regulação, mais ou menos bem-sucedidos em cada etapa da
história de vida. Avulta, em primeiro lugar, a questão dos estigmas físicos em
geral (como no caso do sobrinho deficiente físico de Humberto, que só conse-
guiu casar já bem adulto) e dos juízos relativos à “cor”.
Esse último ponto é particularmente delicado, já que não aparece
explicitamente no material relativo às famílias Duarte e Costa, embora seja
bem vívido na família Campos. Não parece de todo descabido especular
sobre a possível correlação entre a precoce perturbação físico-moral de
Milton Duarte e seu casamento tardio com o fato de ter sido o mais escuro
de pele de sua fratria (tal como se verifica nos retratos de família), numa
situação simetricamente inversa à de seu irmão Rolembergue, o mais claro
de pele e cabelos, o primeiro a se casar e o mais bem-sucedido na carreira
burocrática. Esse dado só faz sentido se observado da perspectiva mais
ampla da relação entre a observação, pelo pesquisador, dos acervos foto-
gráficos de sua família paterna e os discursos espontâneos ou induzidos
em situações de entrevista a respeito da história familiar. Com efeito, é
bem provável que a questão da “cor” de Milton evocasse uma questão da
“cor” no tocante à família de sua mãe. Um retrato tardio do avô paterno de
Maricota, o baiano Florentino Montenegro, do final do século XIX, deixa
pouca dúvida sobre o seu caráter “mestiço”, aparentemente mais “mulato”
do que “caboclo”. As próprias fotos de Maricota revelam um tipo que,

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em sua própria família, se teria chamado de levemente “amulatado” (bem


menos nítido em seus dois irmãos, igualmente presentes nas fotos). Essa
leitura do material de arquivo não corresponde, no entanto, a qualquer
manifestação de reconhecimento dessa condição na auto-imagem pública e
nos discursos dos membros da família; o que não quer dizer que não possa
ter sido uma questão presente e relevante nos processos identificatórios
da segunda geração. Um ou dois dos membros das gerações descendentes
poderiam ser considerados, aos olhos do pesquisador, como portadores de
algum sinal dessa condição mestiça a partir de uma certa idade — sem que
isso tampouco tenha jamais gerado qualquer alusão ou reflexão pública a
respeito. O pesquisador não teve chance de quebrar esse silêncio em suas
entrevistas, embora ficasse muito tentado a fazê-lo, pois teria sido interes-
sante saber não a “verdade” sobre tal fato, mas se ele esteve presente nas
preocupações familiares da terceira geração — e com que grau de expli-
citude. O pesquisador assim acabou participando, afinal, da perpetuação
“nativa” desse silêncio, e é apenas pela mediação ambígua dessa interpre-
tação textual que o tema é de algum modo objetivado.
Essa mesma presença do “preconceito de marca”, observada na experiên-
cia social das classes populares brasileiras,24 pode-se verificar no destino social
da penúltima filha de Humberto Costa — embora com um desenlace positivo.
Lídia era, em criança, a menos bonita de suas irmãs (numa família formada
por pessoas muito bonitas, na opinião de seus próprios vizinhos e parentes) e,
certamente, a menos clara de pele. Entre os anos 1970 e 1980, comportava-
se de maneira retraída, muito sensível particularmente à competição com sua
irmã caçula, encantadoramente abusada e mimada. Foi uma grata surpresa
para o pesquisador encontrá-la nos anos 2000 aparentemente muito segura
de si e satisfeita com os rumos de sua vida. Na estante da sala de Humberto
há uma bonita foto dela, tirada recentemente num estúdio, com uma pose que
expressa sua nova qualidade e prestígio.25 Lídia fez o melhor casamento de
sua fratria, tendo encontrado no bairro um oficial de origem paraense, cujo
biótipo, aos olhos do pesquisador, parece de “caboclo”. É ela ainda quem mais
avançou nos estudos e na profissionalização, dedicando-se agora com afinco,
significativamente, à referida rede carismática do “Perdão e Reconciliação”.
A “cor” sempre foi uma questão na família Campos. A ideologia do
branqueamento aparece desde a constituição do casal Geraldo e Pequitita.
Geraldo era filho de Elidia Maria de Jesus, branca, filha de portugueses,

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e Aníbal Cirino de Campos, por sua vez, era filho de um português com
uma escrava chamada Felícia. “Essa sim era preta retinta”, disse a filha mais
velha de Geraldo ao discorrer sobre a composição racial de seus ascenden-
tes. Os nomes e a quantidade de integrantes das fratrias dos antepassados
se perderam. Entre os Campos esses elementos não figuram como centrais
na construção e na transmissão da memória familiar: “todo mundo só quer
lembrar dos portugueses”, diz Elza. No caso específico dos antepassados
negros, os registros socioafetivos sucumbiram à hierarquia de cor vigente,
que relegava ao esquecimento ou ao segredo o parentesco consangüíneo ou
por afinidade com negros, principalmente escravos, mesmo que a “cor” e
os traços — cabelo, nariz, boca — denunciassem as origens negras. Esses
vínculos remontam a um passado longínquo e inexpressivo, ao contrário da
origem indígena, que é evocada romanticamente nos relatos. A postura de
Pequitita é marcante para se compreender a inserção do “branqueamento”
na família nas gerações seguintes. Mesmo não sendo “branca” e tendo casado
com um mulato, a contragosto da família, ela reagia às “escolhas” preferen-
ciais de seus netos, principalmente os filhos de Elza, dizendo: “demoramos
tanto para branquear as cores e agora...”. Lembremo-nos de que sua filha
mais velha casou com um homem mais obviamente “branco”, filho de um
português com uma italiana. Mas essa mistura, de certa maneira, foi singular
nessa geração, pois todos os demais irmãos — homens e mulheres — ca-
saram com “mestiços”. Ou melhor, um dos irmãos de Elza casou com uma
mulher loura, de olhos claros, mas não foi possível esclarecer sua ascendên-
cia (afinal de contas, o grau de mistura alcançado na população brasileira
permite possibilidades infinitas de variação de cores a partir de toda sorte de
combinações). Para a ideologia materna, Elza foi quem ascendeu: mestiça,
somente com as primeiras letras, casou com homem branco e comerciante.
Geraldo, no entanto, tinha outra opinião: ficava todo risonho quando sabia
das namoradas mulatas de seus netos, como se revivesse a situação inicial de
seu casamento. A presença da “mistura” na família é sua base fundamental,
mas está sempre em tensão, principalmente quando estão em jogo relações
afetivo-sexuais que levam a namoros mais sérios, com a possibilidade de
vínculos duradouros. O fato é que, dos três filhos de Elza e João que se
casaram, dois o fizeram com pessoas “mulatas”, configurando-se ao olhar
de todos como casais heterocrômicos. Dois novos membros foram assim
incorporados: a mulher do segundo filho e o marido da filha mais nova. A

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aceitação de ambos não se constituiu num drama para a linhagem em si, ao


passo que para os demais, apesar da “cor” continuar sendo um referencial
negativo, tal aceitação se devia à condição de professor universitário e de
estudante de direito desses cônjuges (que é também uma característica da
autonomia desses dois filhos de Elza: um médico e uma professora univer-
sitária). Mas a marca diferencial da cor permanece presente nos dois casais.
O primeiro casal teve dois filhos, ambos de pele muito clara, apesar de se
“parecerem” muito com a mãe mulata. Situações constrangedoras ocorrem
com freqüência, como ser confundida com a babá da filha, quando moravam
num prédio de classe média no subúrbio. No outro caso, mesmo ocupando
posição prestigiosa como professor universitário, várias vezes o pai se preo-
cupou em andar com a documentação da filha para confirmar o parentesco,
por haver uma significativa diferença de “cor”. A questão se inverte quando
se trata de mãe e filha: a “cor” e os traços mais negros da segunda contrastam
com a pele mais clara da primeira.26
A questão da cor no núcleo de Elza passou por profundas mudanças.
Nem sempre a aceitação de namoros heterocrômicos ocorreu sem tensões. O
preconceito de marca era naturalizado e vinculado ao projeto de auto-afirma-
ção social. Namorar um negro não fazia parte do projeto dos pais para seus
filhos. A idéia de “ter um futuro” englobava, além do investimento nos estu-
dos, a expectativa de um “bom” casamento. O envolvimento de dois dos filhos
nas prévias da Campanha da Fraternidade de 1988, focada na questão racial,
e também no movimento de direitos humanos da Baixada Fluminense mar-
cou significativamente a casa de Elza. Os debates da militância externa eram
levados ao seio da família, suscitando um diálogo sobre discriminação antes
impensável, mesmo porque o contexto ideológico reinante era a “democracia
racial”. O processo reflexivo levava a perceber que o preconceito estava na-
turalizado e que continuava a ser reproduzido. Esse período foi significativo,
principalmente na trajetória de Elza, que mudou de atitude, reconhecendo
a existência de discriminação racial não só na sociedade em geral, mas so-
bretudo em sua própria postura.27 Não se tratava apenas da incorporação do
discurso “politicamente correto”, amplamente adotado nos anos 1990, mas de
uma experiência pessoal intensa. Um fato culminante dessa nova disposição
foi sua entrada na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos
Homens Pretos.28

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As peculiaridades do trabalho e do habitus em Jurujuba

A onipresença da referência ao trabalho na pesca em Jurujuba exige a explici-


tação de algumas características desse universo, relevantes para a reprodução
diferencial dos membros da família Costa. Tanto os informantes dessa família
como todos os outros, mais velhos, com quem o pesquisador teve contato ao
longo dos anos no bairro sublinhavam as dificuldades sempre enfrentadas para
a sobrevivência através da pesca. Mas há alguma ambivalência nessa afirmação,
sobretudo nestes últimos anos, quando essa atividade parece ter mesmo quase
desaparecido. Quando o peixe era abundante, os meios de produção eram
precários, limitados, tornando imprevisível o resultado do trabalho e instável
a vida no mar; hoje, quando os meios técnicos atingiram um tão alto nível de
precisão e capacidade, é a matéria-prima que escasseia, a não ser em condições
inacessíveis para os pescadores de Jurujuba. Na verdade, aí pelos anos 1970,
era expressa com muita clareza para o pesquisador a difícil situação em que
todos se encontravam: os meios técnicos já tinham se tornado incomensura-
velmente mais poderosos que antes, era necessário aplicá-los com toda a ener-
gia possível, em função das características do mercado e da competição, mas
com isso o peixe começava a rarear, escapulindo dos pesqueiros cada vez para
mais longe, mais fundo, mais refugiado em suas locas.29 Esse quadro exigia
um esforço reflexivo muito intenso de todos os envolvidos, que especulavam
continuamente sobre o que estaria acontecendo e a quem se poderia atribuir
a responsabilidade pela renda sempre decrescente. Essa reflexão envolvia a
análise das relações de trabalho, de produção e de mercado (que incluía o pa-
pel da legislação e da fiscalização governamental em diversas frentes), mas se
voltava também para as qualidades dos próprios trabalhadores. A disposição
para viver do suor do trabalho, o peso da experiência na atividade pesqueira,
a peculiaridade de um trabalho em que se tinha de lidar com uma presa que
era também um contendor (“peixe tem rabo e cabeça” — diziam, querendo
sublinhar a sua capacidade de resistência aos processos de predação).
Essa reflexão envolvia uma contradição ou ambigüidade mais imediata: a
do pescador como trabalhador cioso de sua capacidade e conhecimento e a do
pescador “mendigo” ou “peixeiro”, incapaz de afirmar perante a sociedade a
dignidade intrínseca da condição em que se tinha constituído como sujeito.30
À “unidade moral” com que se representava a condição coletiva local passada
contrapunha-se nos anos 1970 o desafio da “mudança” onipresente, envol-

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vendo a diferenciação social e a possível proletarização. Essa ameaça não era


compatível com a forte consciência da complexidade de seu “trabalho produti-
vo”, sustentado por uma “arte” ou um “saber fazer”. A garantia de sua “obriga-
ção” era assim interrompida, tornando-se necessário recorrer às “emendas” de
trabalho, semelhantes à “viração” tão presente na rede da família Campos.
Também as mulheres de pescadores tomavam parte nessa rede de signifi-
cação, mas de forma cada vez mais marginal ao longo do período examinado.
Nas gerações anteriores exigia-se um comprometimento muito maior de toda
a unidade familiar. Amélia Costa fazia referência a um tempo mais duro, na
sua infância, quando a pesca incluía uma franja essencial de trabalho femini-
no, seja na tecelagem das redes (antes do surgimento das “panagens” de plás-
tico), seja no “conserto” do peixe (ou seja, sua preparação para consumo), já
que a precariedade dos meios de conservação exigia que se salgassem grandes
quantidades de pescado na própria casa. A essas tarefas acrescentavam-se to-
das as outras da manutenção doméstica, além da regular confecção de roupa,
num tempo bem anterior ao da mercantilização maciça de roupa barata. A
relação feminina atual com a pesca é completamente indireta, mediada pela
experiência dos pais, filhos e maridos.
Esse quadro de ambivalência em relação à pesca envolve também o pró-
prio bairro. Quem quer que conheça Jurujuba pode facilmente imaginar o que
está em jogo na auto-imagem local: uma mistura de qualidades paradisíacas e
condições miseráveis, de evocação nostálgica de integração à natureza e à pai-
sagem e a percepção da onipresença contemporânea da sujeira, da sordidez,
da degradação ambiental.
Quando L. Duarte começou a freqüentar o bairro, já havia essas carac-
terísticas. Foram atenuadas em alguns aspectos, com o fechamento das três
grandes indústrias locais de farinha de peixe (as “salgas”), que produziam uma
intensíssima poluição do ar e do mar, e com a melhoria do acesso à água en-
canada (imensamente difícil desde que o velho poço comunal, contaminado,
teve que ser lacrado). Foram, por outro lado, agravadas com o adensamento
da população e a diminuição dos espaços livres e de muitas das marcas mais
antigas do bairro. O belo e arruinado casarão térreo, com seu imenso quintal
de mangueiras perdendo-se na mata, datado de 1823 e que, segundo Hum-
berto, pertencera a um pescador da família do cantor Sílvio Caldas deu lugar
a um prédio moderno banal, que acolhe um templo pentecostal. O “pico”,
grande tanque de cimento à beira-mar, onde outrora se ferviam as redes de

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210 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

algodão ao fim de cada saída de pesca, desapareceu num processo de urbani-


zação recente da praia do porto.
Apesar de todas essas limitações e dificuldades, permanece um forte sen-
timento de pertencimento e de comunhão, que envolve ao mesmo tempo as
relações humanas e as relações com o “mundo envolvente”31 (o mar, o vento,
as matas próximas, a esplêndida paisagem, a possibilidade de manter sempre à
mão um barquinho para as “brincadeiras” familiares de fim de semana). Hoje,
essas qualidades ganham um tom de “tranqüilidade” fortemente contrastante
com a experiência direta ou indireta das ameaças de violência existentes na
maioria dos bairros populares.32
É difícil falar de Éden, por exemplo, sem considerar o aspecto da violên-
cia. Mas a ocupação, nos anos 1940, da região onde o bairro se localiza carac-
terizava-se pela distância — territorial e econômica — em relação à capital.
Era também uma das poucas opções para aqueles que buscavam uma “vida
melhor” no Rio de Janeiro. Afinal, já se contava com a ferrovia, que ligava o
bairro, a partir de algumas estações relativamente próximas, à Central do Bra-
sil. Essa percepção está presente no relato de Elza, que lembra sua chegada ao
bairro, para começar uma nova vida. Ao migrar de Minas Gerais para o Rio de
Janeiro, o casal Geraldo e Pequitita Campos a deixaram em Muriaé, para que
terminasse o ensino primário, e levaram consigo os demais filhos. Enquanto
estudava, ela não tinha noção das dificuldades enfrentadas por sua família no
Rio de Janeiro e, de certa maneira, estava ansiosa para morar nesta cidade.
Segundo ela,

Meu pai foi me buscar em Minas. Durante a viagem me contou muitas histórias
sobre o lugar onde eu ia morar. Viemos de carona num caminhão de um amigo
de meu pai. Na época, o caminho era muito longo. Sei que cheguei ao Rio e ele
me levou para ver a praia. Era uma novidade para mim. Eu vinha perguntando:
“já está perto, estamos chegando?”. E nada. Pegamos o trem, e o tempo foi pas-
sando, já estava bastante cansada. “Já está chegando” — ele tentava remediar. A
paisagem mudava conforme o tempo corria. Comecei a perceber que as coisas
haviam mudado, que minha própria vida mudaria. Chegamos em Nilópolis e
pegamos outra condução, até que chegamos na praça de Éden, que tinha apenas
uma igrejinha — só mais tarde é que a igreja principal foi construída. Mas, ainda
não era ali. Tivemos que andar um bom pedaço de chão para chegar em casa.
Acho que ele não sabia mais o que dizer. A casa era de chão, muito pobre, mas

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tinha um bom terreno. Não pude mais estudar. Com 10 anos tive que cuidar dos
meus irmãos, que eram todos pequenos ainda.

A Baixada Fluminense passava por profundas transformações ao final


da primeira metade do século XX: a região, antes repleta de chácaras, sítios
e plantações dedicadas sobretudo à citricultura, fragmentou-se. As terras dos
sítios foram divididas em lotes. Nova Iguaçu perdeu grandes faixas territoriais
com as emancipações de Nilópolis, Duque de Caxias e São João de Meriti. A
literatura aponta a ferrovia como um dos principais atrativos para a ocupação
da Baixada Fluminense nesse período. Historicamente constitui-se num local
de passagem, intermediário, dando acesso a São Paulo, Minas Gerais, Espírito
Santo e interior do estado. Área de passagem e, por isto, estratégica.33 A região
contava desde a segunda metade do século XIX com uma expressiva rede
ferroviária (Leopoldina e Pedro II — antigo nome da Central do Brasil), que
foi sendo expandida desde então. Na década de 1910, com o prolongamento
da Estrada de Ferro Central do Brasil, foram inauguradas as estações de Pa-
vuna, Nilópolis, São Mateus e São João, que davam acesso a Éden.34 Era nas
imediações da linha férrea que os migrantes se concentravam, espalhando-se
pelo entorno, de acordo com a disponibilidade de recursos. Os investimentos
públicos eram inexistentes.35 A grande maioria das localidades acabava sendo
gerida, precariamente, pelos próprios moradores. O crescimento populacional
nas décadas de 1950 e 1960 deu um salto impressionante,36 transformando
radicalmente a paisagem,37 antes rural, numa “cidade dormitório”, um anexo
empobrecido da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.38
A região convive com a violência desde há muito. Enne (2004) observa
que a imprensa contribuiu sobremaneira para a criação de um “imaginário”
negativo sobre a Baixada, associado à violência. Tal vínculo tinha a ver prin-
cipalmente com a fama alcançada por Tenório Cavalcanti, político e pistoleiro
retratado até mesmo em filme, e com as disputas pela posse da terra, devido
à fragmentação de seu território. Sua identidade de “terra sem lei”, “faroeste
fluminense” e “terra de Marlboro” se amplia e se cristaliza nas décadas de 1970
e 1980, com o advento de um novo personagem, o “mão branca”, sinônimo de
justiceiros identificados aos grupos de extermínio. Foi somente nos anos 2000
que ocorreu uma mudança de registro, e a imagem da Baixada como sinônimo
de violência perdeu espaço nos jornais. Alguns trabalhos como os de Costa
(2002) e de Enne (2002) apontam para uma forte mobilização identitária na

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região, envolvendo a luta por direitos e reconhecimento da “cultura” local.


No início dos anos 1980 ali já estavam presentes as Comunidades Eclesiais
de Base, que prosperaram especialmente nessa região. Os movimentos sociais
organizados cresciam e se dedicavam a combater os desmandos dos grupos de
extermínio e da força policial — que, em muitos sentidos, estavam entrecru-
zados. O papel e a atuação dos grupos de direitos humanos foi então crucial,
denunciando o “apartheid socioterritorial” vivenciado pelos moradores da Bai-
xada Fluminense à época dos “arrastões” nas praias cariocas, que marcaram
o início dos anos 1990. Os passageiros da região que então utilizavam trans-
portes coletivos que ultrapassavam as fronteiras da cidade do Rio de Janeiro
eram diariamente revistados e humilhados por barreiras policiais.39 No capítu-
lo relativo à família Campos vimos como a questão da violência se alterou no
decorrer dos anos 1980 e 1990 no bairro. Este era antes organizado a partir
das relações de honra e confiança características das sociedades tradicionais,
onde o “criminoso” também tem seu lugar demarcado. A pessoalidade foi sen-
do paulatinamente substituída pelo tom beligerante e “empresarial” do narco-
tráfico, que desconsidera as relações mais duradouras entre os habitantes das
localidades populares. E. Gomes lembra que um fator de mudança expressivo
nas orientações do “crime organizado” local, ligado ao tráfico, foi a chacina de
Vigário Geral.40 As lideranças do tráfico se dispersaram e invadiram as “bocas”
de outras regiões, incluindo as localizadas em Éden. Daí por diante as relações
de vizinhança e com o próprio bairro se tornaram bastante tensas. A “sensação
é que não se conhece mais ninguém”, pois muitos “desviantes” locais foram
assassinados, instalando-se um novo código.41 Mas não se pode esquecer que,
nesse campo de disputa, ainda sobrevivem os “justiceiros” ou “seguranças da
comunidade”, negociando e regulando a ordem local. Cabe ressaltar a existên-
cia de um forte vínculo com a localidade: apesar do medo causado pela situa­
ção atual de violência, verifica-se concomitantemente a defesa dos vínculos
estabelecidos e enraizados durante os quase 60 anos de vivência no bairro.
A mesma impressão de comunhão moral (que não significa ausência de
conflitos, muito pelo contrário) continua prevalecendo em Jurujuba e caracte-
riza-se pela freqüente utilização de apelidos ou de designativos relacionais42 e
pelo que sempre pareceu ao pesquisador um desinteresse ostensivo em relação
à cor das pessoas. Na verdade, a única referência que jamais ouvi no bairro
à questão da cor foi indireta, através da menção aos “escravos” de outrora e
sua participação na vida naquela região.43 Como já foi dito anteriormente, a

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religião católica ofereceu (e continua oferecendo) muitas oportunidades de


expressão de sentimentos de pertencimento e comunhão, através de diversos
tipos de cultos, práticas e rituais. O evento máximo da identidade coletiva
local continua sendo a festa de são Pedro, em sua complexa e cambiante com-
binação de dimensões profanas e sagradas. O crescimento da adesão às igrejas
evangélicas alterou consideravelmente o horizonte dos sentimentos religiosos,
introduzindo o que se poderia chamar de um elemento reflexivo mais intenso
na definição dos pertencimentos, o que certamente se refletiu na sociabilidade
local.44
Não é de estranhar que a rede familiar de Humberto esteja sempre vol-
tada para Jurujuba, através de projetos de retorno residencial ou da visitação
constante. É verdade também que muitos deixaram o bairro (inclusive pessoas
que o pesquisador conheceu bem, alguns aparentados com Humberto), ha-
vendo mesmo uma pequena redução demográfica registrada oficialmente em
relação ao conjunto do bairro. Creio que isso se deve principalmente à relativa
falta de espaço livre para novas habitações, como demonstra a sobreposição
das construções na parte mais adensada das três encostas de morro onde se
concentra o grosso da população. Na parte mais freqüentada pelo pesquisa-
dor, hoje é praticamente impossível distinguir a casa onde ele morou há cerca
de 30 anos, em meio a um labirinto de “puxados” e extensões que incluem
mesmo um trecho de caminho transformado em “túnel”.
O clientelismo de Estado, tão característico da trajetória da família Du-
arte, não deixou de estar presente na experiência dos Costa, tanto na Marinha
quanto nos Correios ou na pesca. No caso desta última, a informação sempre
foi abundante, quase impossível de resumir: a presença de “padrinhos” era par-
ticularmente reconhecida e prezada no tocante à área crítica do atendimento
médico. Havia um atendimento precário na sede local da colônia (até os anos
1980), mas o foco das expectativas — e, agora, das reminiscências saudosas
— eram o Hospital do IAPM45 e a Policlínica dos Pescadores, que funcionava
na praça 15 de Novembro, no Centro da cidade do Rio de Janeiro (uma área
muito densa para os pescadores, por ser também o principal mercado de pes-
cado do estado e ter abrigado por décadas a sede da Sudepe). A fundação da
Policlínica e do Hospital do IAPM (assim como da Caixa de Crédito da Pesca)
era creditada a Getúlio Vargas e suas políticas sociais — como novidades nas
condições de cidadania dos pescadores nacionais.46 Essa lembrança positiva
era reforçada pelo sentimento de iniqüidade associado à extinção de todas

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essas instituições pelos governos militares pós-1964. A pequena escala des-


sas antigas instituições de assistência médico-hospitalar permitia estabelecer
duradouras relações pessoais com seus funcionários (sobretudo os médicos),
graças a pequenas contraprestações — belos peixes bem frescos, como se diz
em Jurujuba.
Embora já se tenha tratado desse tema em outros capítulos, não se pode
deixar de sublinhar que certas condições da socialização47 do corpo no tra-
balho marítimo, pesqueiro, constituíram uma dimensão importante de sua
reprodução diferencial. A socialização muito precoce no enfrentamento do
mar e no treinamento das inúmeras tarefas da pesca tendia (e ainda tende) a
conformar um corpo dotado de competências físicas muito amplas e afirma-
tivas.48 A força, por exemplo, será freqüentemente evocada para a capacitação
em outras ordens de competência. A construção de moradias por iniciativa
própria, ou autoconstrução, é possivelmente a principal delas, embora aí tam-
bém — para certos fins — se possa depender de habilidades específicas. As
residências dos Costa são fundamentalmente o resultado desse trabalho (ou,
pelo menos, de sucessivas reformas de não pouca monta), que dependia de
poucos especialistas para sua realização.
Uma certa combinação de força e destreza pôde conduzir alguns dos
membros da família à especialização profissional (em mecânica, por exemplo)
ou a carreiras ligadas ao esporte (natação, futebol, musculação). É claro que,
nesse último caso, não se trata apenas da construção pessoal conduzida pela
vida de trabalho precoce, mas também do aporte constante do treinamento
infantil no mergulho e na “pelada” (há três campos de futebol disponíveis no
apertado espaço do bairro).
Essa preeminência da construção da corporalidade masculina no enfren-
tamento dos desafios do mar, na lida com os apetrechos da pesca e nos jogos
(de que não se pode separar as eventuais “brigas” juvenis) impõe um conflito
estrutural entre o estudo e o trabalho, em que o primeiro, apesar dos esforços
parentais, raramente leva a melhor.49
É parte importante dessa socialização diferencial a outra face do mundo
do trabalho. A “farra” é, com efeito, tão crucial para a conformação da pleni-
tude masculina quanto aquela outra dimensão.50 Ela também está relacionada
à corporalidade, mas sob outro regime: o que importa aqui é o pavoneamento
das qualidades positivas (paulatinamente adquiridas na adolescência), o trei-
namento num jogo de corpo expressivo da “macheza” essencial, o domínio

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das técnicas da interação ritual entre homens (que envolve uma complexa
etiqueta, ligada à bebida, ao carteado e, sobretudo, ao complexo jogo de ba-
zófia, ameaças e acusações que se estabelece em torno do futebol e da sexua­
lidade/gênero/conjugalidade). A participação na farra é muito variada para
cada homem em cada momento de sua trajetória. Em princípio, trata-se de
um comportamento juvenil ou de solteiros, mas envolve a maioria dos adul-
tos, mesmo casados, em certas circunstâncias quase rituais, como o retorno
de longos períodos no mar. O espírito de communitas que caracteriza a farra
pode se manifestar de forma plena ou parcial. A farra paradigmática envolve
um grupo grande, num local público porém reservado, com intenso consumo
de bebida e a presença eventual de uma ou outra prostituta.51 Em certas con-
dições, a prática do próprio futebol pode estar envolvida nesse clima, com o
uso de uma linguagem mais desabrida e a presença mais ostensiva do clima de
agressividade entre machos.52
Em toda essa outra dimensão da formação da legítima identidade mas-
culina, a bebida desempenha um papel crucial.53 É mesmo o principal vetor
diferencial das conversões evangélicas masculinas, menos comuns e menos
estáveis que as femininas. Nos anos 1970, os comportamentos negativos asso-
ciados ao excesso de bebida tinham muito a ver com as freqüentes batidas po-
liciais nos bares da orla, que provocavam uma generalizada indignação local.
Entre a esfera do trabalho e da obrigação, por um lado, e a da farra e
da influência, por outro, desenha-se uma dimensão intermediária, de cética
inquietação com os destinos de sua ocupação tradicional: “pescaria é ilusão”,
diziam-me alguns rapazes nos anos 1970. Esse sentimento basicamente nega-
tivo, em que o reconhecimento da imprevisibilidade do trabalho e da renda
prevalece, não deixa de conter, no entanto, um grão de prazer na submissão
ao jogo do acaso: a “sorte” sempre pode vir a sorrir. E engloba ainda, muito ex-
plicitamente, o valor da “liberdade” subjacente a esse mundo menos regulado
e confinado do que o de um operário ou funcionário típicos.

As condições de habitação

As formas de acesso e manutenção da habitação são outro vetor crucial da


reprodução diferencial. Como se ressaltou, a autoconstrução é um elemento
básico constante das carreiras dos Costa (até hoje) e dos Campos (pelo menos,

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na primeira geração e em algumas linhagens da segunda e da terceira). Foi


substituída pela própria ação do Estado na família Duarte, afora a construção
do anexo dos fundos do quintal, que ainda contou com o trabalho de Sebas-
tião, ao lado de profissionais contratados. Seus filhos se concentraram pro-
gressivamente na construção de uma corporalidade white-collar. Havia uma
grande ênfase na qualidade da letra entre os que seguiram a carreira amanuen-
se (como João, cuja rebuscada assinatura era considerada uma “obra-prima”,
e Vladimir), bem como no domínio das máquinas de escrever. Isso não fora
tão importante para Milton, cujas capacidades manuais se concentraram no
desenho técnico ou “à mão livre”, atividade com a qual se manteve profis-
sionalmente e que sempre encantou a família (por exemplo, seus quadros
sacros, já mencionados no capítulo 2). Do mesmo modo, para Rolembergue,
as competências se desviaram para as atividades de supervisão e fiscalização,
que tinham sido um outro aspecto do trabalho de Sebastião enquanto “mestre”
de oficina. As sobrinhas de João lembram sua habilidade para improvisar brin-
quedos por bricolagem, o que parece ter alguma ligação com a conversão do
trabalho manual profissional de Sebastião num trabalho artesanal doméstico
bastante eclético e constante a partir de sua aposentadoria, em 1934. A família
recorda a importância que teve a partilha de sua caixa de ferramentas e de suas
máquinas após sua morte — mesmo que não tivessem senão uma genérica
utilidade doméstica para seus descendentes.
Não se pode deixar de sublinhar o quanto essa concentração das capaci-
dades corporais nas tarefas da escrita, do desenho, da supervisão (e da leitura,
inevitavelmente, em se tratando de trabalhos burocráticos) é mais consentânea
com a hexis letrada, vindo a permitir, nessa família, um deslizamento mais na-
turalizado na direção do “estudo” por parte das gerações subseqüentes. Algo
parecido ocorreu no núcleo ascendente dos Campos. O investimento nas artes
e no desenvolvimento da escrita se evidenciava na produção de poesias dos
dois filhos mais velhos de Elza,54 que sempre obtiveram os primeiros lugares
nos concursos de que participavam. O filho mais velho ainda se dedicava ao
xadrez e, na adolescência, viu sua habilidade ser reconhecida ao vencer tor-
neios locais. O outro estudou piano clássico e violão popular desde os oito
anos, somente interrompendo a carreira de músico ao entrar na faculdade de
medicina. O talento para desenhar do filho seguinte também recebeu atenção
dos pais, que lhe propiciaram condições para estudare no Liceu de Artes e
Ofício, no Centro da cidade do Rio de Janeiro. O quarto filho também jogava

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xadrez e era mais afeito à matemática. A caçula chegou a cursar piano e canto
durante alguns anos de sua adolescência. Importa ressaltar que, para além das
aptidões e desejos dos filhos, havia um projeto de proporcionar — a duras pe-
nas — a formação mais completa possível, para que pudessem galgar posições
sociais mais prestigiosas. O processo de distinção segue seu curso, agora com
a quarta geração. Elza tem cinco netos consangüíneos e mais duas por afinida-
de. São cinco meninas e dois meninos. Todos estudam em escolas privadas e
realizam atividades extracurriculares. O menino mais velho se dedica ao vio-
lão e coleciona diversos instrumentos musicais. Entre as meninas, a principal
atividade é o balé. Com talento, ou não, as meninas passam grande parte de
seu tempo em academias de dança. Em contraste com a capoeira, atividade
realizada por alguns membros dos Campos, o balé expressa o caráter distinti-
vo alcançado por esse ramo da família. A idéia é que essa atividade disciplina
o corpo e a mente. De certa maneira, o balé atua no fortalecimento dos laços
familiares — do núcleo de Elza e seus descendentes, além de outros poucos
parentes. A cada final de ano são realizadas apresentações das academias em
diferentes teatros, fazendo com que todos se reúnam em torno das crianças.
São eles também os que mais se distanciaram espacialmente do bairro e da
casa original. O processo de distinção impõe esse estranhamento, principal-
mente na expressão dos novos valores e status adquiridos pela terceira geração.
Não é à toa que aqueles que saíram do bairro para regiões consideradas mais
aprazíveis, como as zonas Sul e Oeste, especificamente nas áreas de classe
média, foram os que vieram a ter filhos.
O acesso à casa e sua manutenção têm certa relação com o tamanho da
rede familiar que lhe está associada, sobretudo em situações como as que se
está estudando aqui, na qual foi possível explorar o espaço útil em diversas
direções ou lhe agregar outras unidades próximas. Essa flexibilidade é funda-
mental para atender aos diferentes momentos dos ciclos de desenvolvimento
das unidades domésticas e às diferentes configurações que a rede familiar vai
assumindo ao longo do tempo. O quarto suplementar e a varanda que servia
como sala de almoço na casa da Salvador de Sá mal dava conta das necessi-
dades do núcleo doméstico por volta de 1950, quando sete ou oito pessoas
ali viviam regularmente. A partir de 1969, a casa veio a ser confortavelmente
habitada por uma, duas ou três pessoas concomitantemente, até voltar a abri-
gar cinco ou seis pessoas nos anos 1980 e 1990. A casa principal de Jurujuba,
antes das ampliações efetivadas nos anos 1990, chegara a abrigar pelo menos

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13 pessoas, até a morte de Amélia e a série de casamentos que fizeram os filhos


irem se mudando, um a um. Como já se disse, no entanto, os membros dos
diversos núcleos descendentes, quer habitem próximo ou não, sempre estão
por lá, sob diversos pretextos. E há a habitação permanente de todo o núcleo
da filha caçula no novo andar superior. O conjunto de habitações do Éden foi
capaz de abrigar 20 pessoas ou mais, ao longo de sua variada história. Em to-
das as fases (apenas com a família original, composta pelos pais e os 11 filhos;
com a família e inquilinos; com a rede ampliada a partir do casamento dos
filhos etc.), nunca esteve ocupada por menos de 10 pessoas.
Como é notório, a existência de uma base domiciliar com tais caracterís-
ticas não é uma precondição para o desenvolvimento de uma grande família,
como demonstra o caso do irmão de Humberto Costa, que também teve 10
filhos, mesmo sendo incapaz de conseguir um domicílio minimamente estável
e acolhedor. Mas é certamente uma condição para um desenvolvimento razoá­
vel dos sujeitos que engendra, permitindo-lhes uma experiência integrada de
relacionalidade a longo prazo.
Por outro lado, é possível que a existência desse núcleo físico-moral da
residência estável de uma família ampla justifique a sua condição atrativa em
relação não apenas aos descendentes e aos colaterais de diferentes gerações
— como aconteceu com todas as três famílias —, mas também à vizinhan-
ça, freqüentemente incorporada ao círculo doméstico mais íntimo. Trata-se,
assim, em suas diferentes modalidades, de focos relacionais de grande impor-
tância nos bairros populares, pelo menos até que viessem a prevalecer as for-
ças desagregadoras do banditismo organizado (em associação com a crescente
corrupção do braço policial do aparelho de Estado).
Para duas das famílias estudadas essa atração atingiu as linhagens colate-
rais à primeira geração: o casal Costa teve 10 filhos, mas o único irmão casado
dele também teve o mesmo número, embora não tivesse casa estável; o casal
Duarte teve cinco filhos, mas, dos irmãos de Sebastião, uma teve três filhos,
outro teve quatro; e dos irmãos de Maricota, um irmão teve quatro filhos, outro
teve três, e a irmã teve quatro. A maioria dos descendentes pela via colateral
freqüentou as casas de que aqui se trata, apesar de uma parte dos parentes de
Sebastião e de Maricota Duarte ter vivido em outras cidades do estado do Rio
de Janeiro. Hoje em dia, a unidade descendente dos Costa que mora em Minas
Gerais retorna em visitas periódicas a Jurujuba. Já a memória dos colaterais
do casal original dos Campos se perdeu em parte com a migração (apesar de

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ter havido algumas visitas a Minas Gerais) e, posteriormente, com a morte de


Geraldo e Maria. Elza lembra ter conhecido quatro irmãos de seu pai, mas ob-
serva que vários outros já haviam morrido à época. Também não sabe ao certo
o número de irmãos de sua mãe, mas acha que eram mais de 12.
Essa capacidade atrativa de um foco moral legítimo não deixa de depen-
der das condições mais gerais da localidade, do bairro em que se constitui,
como ficou claro nos capítulos mais etnográficos. Impõe-se assim a compara-
ção entre os três casos examinados. O Estácio, em primeiro lugar, se caracte-
riza pela sua qualidade “central” — com todas as facilidades implicadas nessa
condição. Não é necessário ressaltar a diferença que sempre fez o fato de aí
se dispor de todos os serviços públicos e condições de habitabilidade — ao
contrário da maioria dos bairros populares (e mesmo dos cortiços da Cidade
Velha, à época de sua construção). Pode-se dizer que era um bairro de alta
permeabilidade urbana, permitindo o deslocamento fácil e multidireciona-
do, normalmente característico dos bairros de classe média. Talvez a própria
ameaça moral representada pela proximidade com a principal zona de baixa
prostituição da cidade e com um centro boêmio popular bem notório tenha
contribuído para uma certa coesão moral contrastiva. Também já se fez refe-
rência à permanente vigilância decorrente do seu caráter de concessão pública
passível de revogação. Outras forças podem ter contrabalançado os efeitos
da alta racionalidade que presidiu à implantação do conjunto, que poderia
ter propiciado uma ainda maior autonomização das unidades do que efeti-
vamente se pôde verificar com o peso das relações de vizinhança. É possível
especular que o conjunto em si poderia ter crescido em prestígio e valor social,
caso sua vizinhança ampliada não se tivesse degradado de maneira radical a
partir dos anos 1970, pelos motivos já mencionados. O afastamento da família
Duarte, assim como da maioria das famílias da vizinhança, deveu-se antes à
desclassificação de toda a região do que a alguma inconveniência da residência
e de seus recursos. De qualquer forma, a diáspora da segunda geração se deu
antes do acirramento desse processo, o que aponta para a força das incitações
positivas para a auto-afirmação, tanto quanto para a fuga da desclassificação.
Jurujuba sempre se caracterizou por uma condição peculiarmente perifé-
rica: um bairro distante geográfica e socialmente, mas de acesso relativamente
fácil ou seguro (pelo menos desde a abertura da estrada costeira nos anos
1940). Em contraste com o Estácio, sempre foi um bairro de baixa permea-
bilidade externa e de intensa integração interna. A ideologia do trabalho na

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pesca certamente foi um dos princípios vitais dessa identidade, mas não se
pode descartar o efeito da posição de enclave territorial a que já se aludiu — e
que permanece até hoje bem atuante. Aí as vantagens físicas de um bairro in-
tegrado numa natureza exuberante, variada e acolhedora55 sempre se contra-
puseram à precariedade dos serviços públicos em todos os níveis, até resultar
na atual — e irônica — combinação de poluição generalizada com relativa
melhoria do acesso a água potável.
A experiência social dos Costa pode apontar para a face negativa das van-
tagens de se crescer protegido numa “comunidade” densa e bem delimitada,
com acesso a recursos naturais privilegiados: parece ter havido para todos os
descendentes de Humberto um menor estímulo à busca por saídas individu-
ais, uma dificuldade maior de civilização das técnicas corporais, uma con-
siderável restrição do circuito possível de trocas conjugais e uma irrefutável
permanência da representação da casa ancestral como eixo não relativizado da
representação de uma vida plena.
Éden também é um bairro periférico, mas num sentido mais ordinário,
por fazer parte dessa vastíssima Baixada Fluminense, cuja identidade se dese-
nha em simétrico contraste com o centro urbano carioca (e seu entorno pres-
tigioso). A grande distância dos pólos dinâmicos de serviços e trabalho, não
compensada — como no caso de Jurujuba — por uma especialização profis-
sional característica, representa um considerável estreitamento das possibili-
dades de desenvolvimento pessoal ou auto-afirmação. A linhagem ascendente
se caracteriza justamente por um pertencimento relativo — um pé dentro,
outro fora —, que redundou na saída do bairro de parte da terceira geração.
É claro que o impulso fundamental para esse afastamento se deve à atitude
interior relativamente distanciada de Elza, mas não se pode deixar de levar em
conta que a identidade de seu marido e as condições econômicas diferenciais
de seu negócio também contribuíram para isso.56
As condições de habitabilidade do bairro se modificaram radicalmente
desde o tempo dos pioneiros até hoje, como já se descreveu. De modo ge-
ral, as vantagens originais da terra livre e da tranqüilidade foram cedendo
lugar às desvantagens da distância, da precariedade dos serviços públicos e
dos equipamentos urbanos, e da crescente violência. Apesar de sua distância
dos pólos urbanos dinâmicos, o bairro não deixa de apresentar uma grande
permeabilidade, como o demonstra a dispersão de boa parte da família. Essa
permeabilidade parece se restringir, no entanto, ao circuito da própria Baixada
e dos subúrbios do Rio de Janeiro, a não ser em alguns casos especiais.

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A habitabilidade envolve e pressupõe todos os fios morais que se entre-


tecem à volta da casa — e de cuja construção ela própria participa. A maior
ou menor presença da parentela ampla nas redondezas ou o maior ou menor
acolhimento de parte da vizinhança na intimidade da família são elementos
importantes desse regime moral. A primogênita dos Costa fez um casamento
muito prezado com um vizinho próximo, embora as duas famílias não se re-
lacionassem muito bem. Elza Campos também realizou seu casamento com
o filho de um casal em cuja casa a família dela havia se hospedado em seus
primeiros tempos no bairro. O caráter mais permeável do Estácio e a precoce
dispersão laboral da segunda geração dos Duarte, por outro lado, não enseja-
ram que o bairro funcionasse como um isolado conjugal.
Esse sentimento de comunhão moral era sancionado por um comum
pertencimento religioso (mesmo em situações de sincretismo vertical entre
espiritismo e catolicismo, ou entre umbanda e catolicismo, como foi o caso de
parte das três famílias). As alianças podiam ser reforçadas por meio do com-
padrio e pressupunham o respeito a códigos de moralidade compartilhados,
embora freqüentemente inexplícitos.
Um elemento fundamental da ordem assim constituída sempre foi o “res-
peito” aos membros das gerações mais velhas, mesmo que a contragosto e
mesclado a profundos ressentimentos e mal-estares. Esse elemento continua a
prevalecer nos três círculos familiares, mesmo quando transmutado na reve-
rência aos antepassados falecidos, que pode se manifestar sob a forma de ver-
dadeiros cultos particulares.57 Foram apresentados diversos exemplos desse
respeito nos capítulos etnográficos, mas convém lembrar o caso paradigmáti-
co da manipulação das circunstâncias da morte do patriarca dos Campos para
a legitimação das novas alternativas religiosas dentro da rede.58
Esse respeito é construído pelo reconhecimento do papel que os an-
cestrais tiveram na manutenção de uma ordem doméstica e supradoméstica
propícia a seus processos pessoais de subjetivação e auto-afirmação. Não se
trata do reconhecimento de um desempenho social ou de um sucesso eco-
nômico marcantes. Muito pelo contrário, em si mesmos, os três patriarcas
aqui tratados não podem ser vistos como sujeitos bem-sucedidos do ponto
de vista material (afora Humberto Costa, já no final da vida). Eles o foram, no
entanto, do ponto de vista moral, pelo exemplo de luta, dedicação, obrigação
que propiciaram a seus descendentes e pela efetiva sustentação identitária que

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222 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

ensejaram. Mesmo no caso de Humberto Costa, que enfrentou graves crises


físico-morais, sua preeminência patriarcal jamais foi questionada, e os filhos
se desdobram no cumprimento dos múltiplos rituais e liturgias domésticas
que celebram esse valor. O mesmo se pode dizer das matriarcas, ainda mais
estruturalmente comprometidas com a reprodução da vida moral de suas fa-
mílias.59 Ainda que, no caso de Pequitita Campos e de Hermínia Costa, seu
desempenho na gestão da economia doméstica não tivesse sido tão modelar
quanto o de Maricota Duarte, Elza Campos ou Amélia Costa.
Tratar da gestão moral das unidades familiares na rubrica da habitabili-
dade faz sublinhar o caráter basicamente relacional das propriedades aí en-
volvidas. A exemplaridade e a fundamentação identitária referidas são a face
interna da contínua agência externa desses sujeitos, no enfrentamento dos
demais parentes, dos vizinhos, dos colegas de trabalho, dos empregadores,
dos agentes do Estado e das múltiplas ameaças que, de toda parte, espreitam
a reprodução familiar. Mas esse enfrentamento é particularmente exemplar
para a experiência dos infantes no tocante ao bairro e à vizinhança, pois é aí
sobretudo que ela se impõe como imediata, visível, entranhada. Para alguns
dos filhos homens a experiência precoce de contato com o mundo do trabalho
paterno pode até ocorrer (como ocorreu, aliás, com os filhos mais velhos de
todas as três famílias), mas ela tende a dar continuidade, ou não, à experiência
local, vicinal.
É também primeiramente na vizinhança que se impõe a dignidade moral
das mulheres, tanto das mães quanto das filhas, cercadas pela contínua cobiça
e sedução masculinas.60 Esse ponto será crucial nas estratégias que conduzirão
aos casamentos, seja dos filhos, seja das filhas — todos imantados pela aura da
unidade de origem (o que não impede que seja freqüente e mesmo escandalo-
samente transgredido, aqui e ali, pelas gerações emergentes).
É possível que a transição demográfica nessas famílias (e mais generali-
zadamente nesses segmentos, como comprovam as estatísticas oficiais) esteja
baseada exatamente na crescente percepção da impossibilidade de garantir
essa unidade moral para conjuntos amplos de descendência. Essa, pelo me-
nos, é uma representação nativa que foi encontrada em nossas três famílias.
Um discurso de denúncia da degradação moral do mundo ambiente é fre-
qüentemente articulado a propósito de qualquer caso dramático registrado na
vizinhança, na televisão ou no jornal. A adesão às igrejas evangélicas não faz
senão reforçar essa avaliação negativa do universo moral abrangente.61 Em-

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Condições diferenciais de reprodução 223

bora a diferença seja sutil, não parece tratar-se da mesma justificação para a
transição prevalecente nas camadas médias.62 Nestas trata-se mais explicita-
mente da maior possibilidade de permitir uma formação individualizante para
os infantes, de regular o número de filhos de acordo com a capacidade dos
orçamentos domésticos para cobrir os pesados investimentos visando a equi-
pá-los como indivíduos autônomos. Nas famílias que estudamos (excetuados
os segmentos ascendentes), o argumento é bem mais negativo que positivo,
já que o reconhecimento das dificuldades se aplica tanto a uma grande prole
quanto a uma pequena.63
A relacionalidade que conforma a habitabilidade inclui diversas dimen-
sões de “apresentação de si”, de infinita complexidade. Avulta, nesse quadro, a
receptividade à vizinhança e aos estranhos adventícios. O papel das varandas
ou das cozinhas meio abertas ao acesso público é bastante conhecido nos
bairros populares. Mais uma vez, a racionalização originária da vila operária
da avenida Salvador de Sá privava-a de tal recurso, fazendo com que as casas
mostrassem uma fachada inabordável e as varandas só se abrissem para os
fundos. Isso não impedia, como se viu, um intenso trânsito entre as casas, mas
a “fachada” era literalmente mantida sob a forma do anonimato e da autono-
mia.64 Em Jurujuba, a varanda dos Costa era um dos pontos mais conspícuos
do bairro, por seu tamanho, sua localização estratégica e sua acessibilidade.65
A sala de visita que se lhe segue é literalmente coberta de signos variados,
hoje relativos sobretudo à religião católica, provavelmente em função — como
já se aventou — das tensões com os evangélicos proselitistas. O quintal dos
Campos fazia às vezes de “varanda”, já que sua estrutura não comportava um
recinto como esse. Por vezes, membros da segunda geração se sentavam à
frente da casa, na calçada. Esta também representa um espaço de sociabilidade
importante para as camadas populares. É comum — ainda que a violência pú-
blica tenha avançado tanto — a reunião de vizinhos nas calçadas das periferias
urbanas, que podem mesmo acolher encontros festivos, regados a churrasco
e cerveja. À semelhança dos Costa e dos Duarte, a varanda da casa de Elza
— como foi visto anteriormente, passou a ser o personagem central para a fa-
mília após a morte de Geraldo, como local de recepção de parentes e vizinhos.
Todos os assuntos eram ali resolvidos, e das conversas sérias aos bate-papos
despretensiosos era ela testemunha.
E. Gomes (2008) examinou minuciosamente o significado da festa de são
Cosme e são Damião, com seus rituais tradicionais de circulação coletiva e pú-

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224 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

blica de guloseimas, bem como as transformações por que ela vem passando
devido à sua associação com os cultos afro-brasileiros e à crescente presença
evangélica. A distribuição e recepção desses “doces” era um componente da
sociabilidade das três famílias, mas tinha um caráter muito mais amplo e sis-
temático entre os Campos. A distribuição de doces no dia das crianças e no
de Cosme e Damião é uma prática corrente, especialmente na Baixada Flumi-
nense e no subúrbio do Rio de Janeiro, podendo assumir diferentes formatos
ao longo do tempo.66 Na primeira forma de “dar doce”, mais comum nos anos
1970 e 1980, quando a terceira geração dos Campos ainda estava entre a in-
fância e a adolescência, várias pessoas se colocavam nos portões das casas e
distribuíam saquinhos de papel com diversos tipos de doces — em sua maioria
industrializados, embora alguns deles, como bolos e cocadas, ainda pudessem
ser feitos em casa. A maneira de “pegar doce” era sair de casa com sacolas e an-
dar pela vizinhança com colegas ou algum adulto. A segunda maneira era ir a
um centro de umbanda, geralmente de “mesa branca”, ou a uma casa de algum
integrante dessa religião. Lá se encontrava uma grande mesa, coberta com toa-
lha branca, recheada de guloseimas, como bolos e doces caseiros. Ainda havia
as festas de erê, nos terreiros de candomblé, porém menos procuradas pelos
“pegadores de doce” que não se relacionassem mais diretamente com essa
religião. O terceiro modo de se obter os doces era recebê-los em casa. Nessa
modalidade, as relações de amizade ou vizinhança se reforçavam: mesmo que
as crianças não fossem buscar os doces, estes eram guardados e enviados no
mesmo dia ou nos dias subseqüentes. Em todos os formatos o que conta é a
relacionalidade presente nos laços sociais. De casa em casa, de saquinho em
saquinho, as pessoas comungavam de uma certa sociabilidade religiosa. Du-
rante anos, Elza e João “deram doces”. Na casa, toda a família sempre estava
envolvida no ritual. Os preparativos requeriam a ajuda de todos: escolher e
comprar os doces em quantidade e variedade suficiente para encher o núme-
ro de saquinhos estipulado pela promessa; ensacá-los de modo equânime; e,
por fim, distribuí-los. “Dar doce” em casa pressupõe acolhida e confiança na
reciprocidade. No momento da distribuição, a casa, de certa maneira, estava
sendo partilhada com os visitantes. Mas esse desprendimento parece não mais
caracterizar as relações de sociabilidade atuais. “Dar doce” em casa significava
uma proximidade e afetividade que, em contextos modernos e individualistas,
podem ser consideradas invasivas e até mesmo perigosas. Ultimamente tem-se
destacado uma nova maneira de “dar doce”: o ofertante vai à rua, mostra sua

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Condições diferenciais de reprodução 225

disposição de “dar doces” e espera os mais receptivos se aproximarem. A ex-


pectativa da procura é semelhante à das pessoas que utilizam o espaço da casa
para realizar a doação. Seria um tipo de dádiva entre estranhos,67 em formato
arriscado, pois dá margem a situações conflituosas e/ou constrangedoras.
Atualmente o “dar doce” está associado às relações de sociabilidade que
se expressam no contato entre confissões religiosas distintas e exclusivistas.
As regras que pautam as relações de sociabilidade se transformam juntamente
com os novos modos de lidar com o corpo: a maneira de se vestir e de cortar
os cabelos, andar sempre com a Bíblia, introduzir nas conversas cotidianas
temáticas religiosas, assumindo características de pregação e evangelização.
“Dar e receber” era o movimento esperado; mas esse registro se altera quando
é grande a possibilidade de recusa. Em diferentes situações, essa atitude se
generalizou. Elza diz que, em sua família, ela mesma oferecia doces a todas as
crianças, mas se incomoda com o fato de eles serem hoje considerados pelos
convertidos como ofertas ao “maligno”. A questão passa a ser: “como tratar as
crianças de maneira desigual?”.68
A importância das guloseimas na sociabilidade intrafamiliar é, aliás, tema
que mereceria uma atenção mais sistemática — e não apenas nos meios po-
pulares ou nas três famílias estudadas. O modo como os diferentes grupos
de ethos lidam com a aparentemente generalizada disposição infantil para o
consumo de produtos açucarados em nossa cultura pode ser analisado à luz
de uma antropologia da alimentação ou do uso de substâncias extraordinárias
ou suntuárias.69 Mas
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poderia servir também a uma antropologia da criança ou
da criação infantil, dada a importância que aí tem o modo como se regula o
fluxo aceitável do açúcar, em função de muitas variáveis das formas de ma-
nifestação do desejo e das formas de inculcação de controles físico-morais.
L. Duarte sempre se espantou com a munificência com que se propiciava o
consumo dessas guloseimas a todas as crianças, em todas as três gerações dos
Costa. Certamente se tratava de um regime muito diferente daquele a que fora
habituado em sua própria casa familiar, mas não deixava de lembrar aquele
que — em escala mais discreta — prevalecia na casa da Salvador de Sá. É
provável que a diferença se dê também em função do crescimento acelerado,
nestas últimas décadas, da disponibilidade e variedade dos produtos “doces”
comercializados — mas trata-se de questão que mereceria um estudo mais
preciso, por sua riqueza de significados no tocante à produção da pessoa e do
seu ethos privado. E. Gomes pode descrever o regime alimentar de sua família

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226 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

como muito parecido com aquele descrito para os Costa.70 Os “doces” sem-
pre foram importantes na alimentação da rede familiar, em particular em seu
próprio núcleo. Neste chegava a ser uma forma de expressar distinção e auto-
afirmação. A variedade e a fartura significavam a capacidade de extrapolar as
necessidades imediatas, uma demonstração de status. Além do mais, sua casa
estava continuamente aberta aos parentes, sendo sempre necessário “oferecer
alguma coisa”.
A condição moral da habitabilidade é um ponto que emana continua-
mente de todas as manifestações dos informantes das três famílias, seja em
relação a uma situação atual, palpável, para os membros das famílias Costa e
Campos, seja em relação a uma situação passada e rememorada, para alguns
dos membros da família Duarte. A aura do casulo prístino, apesar de suas limi-
tações, dramas e crises, perdura intensamente em algum patamar da memória
afetiva dos informantes, inclusive dos pesquisadores — como já se ressaltou.
A sensação é que ela, a casa, estará sempre lá, receptiva e em seu lugar original,
mesmo que já não mais se queira lá voltar.
As condições de encantamento e desencantamento em relação a essas
“casas” variam em função das trajetórias pessoais e da fração da experiência
coletiva vivenciada diretamente por cada um: houve os que conviveram mais
longamente sob o mesmo teto com os mesmos personagens de sua fratria ou
de sua coorte; houve os que a vivenciaram mais como uma referência indi-
reta, episódica ou periódica (mesmo numa família mais entranhada como a
dos Costa); houve os que cresceram imersos no mesmo ambiente familiar por
todo o seu período de formação subjetiva; houve os que experimentaram o
contraste entre diferentes unidades e tradições familiares durante esse mesmo
período; houve homens e mulheres; houve primogênitos e caçulas; houve de-
votos e transgressores.
Os tempos em que se deram essas vivências também foram diferentes
ao longo da história do século XX, com seus múltiplos reflexos sobre a vida
cotidiana e popular, assim como foram diferentes as formas com que a tem-
poralidade (e, particularmente, o passado) se impôs à experiência singular. A
imagem da casa, atual ou em seus formatos passados, pôde ser transmitida
pelas reminiscências pessoais, pelas rememorações narrativas ou rituais (que
incluem relatos cosmogônicos, heróicos e etiológicos) ou pelo uso de recursos
objetivados (documentos, objetos, fotografias). Ou por tudo isso junto.

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Condições diferenciais de reprodução 227

Em todos os casos, a permanência do encantamento vivido ou a experi-


ência do desencantamento decorrem desse amplo feixe de circunstâncias que
cercou a instituição e o desenvolvimento das famílias em suas casas ao longo
do período examinado — das mais “objetivas” e conscientes às mais “morais”
e inefáveis. O desencantamento — que pode ser, na verdade, mais um reen-
focamento do sagrado do que uma verdadeira desmagicização — é parte de
diversos mecanismos que levam para fora da casa, eventualmente para um
mundo muito mais vasto — de que se trata no capítulo seguinte.

Notas
1
Isso é, provavelmente, o que quis dizer Strathern (1987:19) ao falar sobre o
sentido diferencial das “atividades produtivas” entre pesquisador e “nativo”.
Hoje são comuns as fórmulas mecânicas a respeito da “simetria” entre os parti-
cipantes de uma experiência de pesquisa antropológica, como se as situações de
campo devessem ser sempre consideradas como colocando em cena “sujeitos”
em condição igualitária, mutualista. Afora as propriedades hierarquizantes da
“situação” muito peculiar dessa cena, é necessário atentar para a complexidade
da difusão da “reflexividade” (ou da autoconsciência, talvez melhor dizendo)
entre as múltiplas dimensões da experiência vital de cada sujeito (dentro de
cada cultura ou ordem simbólica). Os informantes desta pesquisa certamente
incluem pessoas extremamente atiladas, que se preocupam em discutir e ex-
plicar para si mesmos e para seus círculos algumas dessas dimensões. Isso não
pode ser generalizado, no entanto, para todas as dimensões. Muitas delas per-
manecem como “dadas”, e não como “construídas”. Humberto e Pituta Costa
podem discorrer e especular indefinidamente sobre as condições e vicissitudes
do mundo do trabalho na pesca ou na indústria mecânica. Amélia Costa ou
João Duarte podiam retornar a suas memórias de juventude com impressio-
nante minúcia, especificando os focos de prazer e desprazer — no tocante à
música, por exemplo. Elza Campos enfrentou, a partir de sua formação univer-
sitária, de sua militância política e das transformações do campo religioso em
sua família, consideráveis desafios cognitivos que a fizeram mudar de posição
— por exemplo, em relação à sua identidade de cor.
2
No sentido abrangente e instituinte de Mauss (2001) e levando em conta as im-
plicações mais recentemente levantadas por Bourdieu (1980), Strathern (1988) e
Godbout (1999).

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228 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

3
Trata-se de questões que se desenrolam num regime que Boltanski e Thévenot
(1991) classificariam como característico da cité domestique, por oposição ao da cité
civique, onde avultam as possibilidades de uma análise em termos de controvérsias
e casos e de colocação em cena das capacidades reflexivas dos agentes.
4
Essa não é certamente a única fonte das mudanças recentes no peso relativo da
contribuição feminina à reprodução familiar. Diferentes vias de acesso a maiores
possibilidades de agência ou autonomia permitem o que Cabanes (2006:31) chama
de “inovações no domínio das relações sociais de sexo e da divisão do trabalho”,
descrevendo-as com adequada minúcia no quadro dos “percursos familiares”.
5
Bourdieu (1962) descreveu um caso clássico de vantagem relativa das mulheres
num momento de desorganização da economia de seu mundo de origem, baseada
na preeminência do trabalho e da responsabilidade masculinas. Estando apenas
subordinadamente comprometidas com a ideologia da reprodução da casa campo-
nesa, sua adaptação à vida citadina se tornava mais fácil que a dos homens — in-
clusive e sobretudo por força da diferença dos habitus incorporados. Um exemplo
homólogo recente é a comunidade pesqueira estudada por Sautchuk (2007b) no
Amapá.
6
Hoje associadas à criação do Dasp (a Constituição de 10 de novembro de 1937
previu, na estrutura burocrática do governo federal, um Departamento de Admi-
nistração Geral, e a Lei no 579, de 30 de julho de 1938, criou o Departamento Ad-
ministrativo do Serviço Público), mas que remontam a uma tendência mais antiga,
originalmente localizada no Exército, ainda no século XIX. Ver Castro (1995).
7
É interessante que Nicolau Tolentino, o personagem tão ricamente analisado por
Antonio Candido, seja — ao que consta — um antepassado seu, o que não fica, no
entanto, claramente expresso na obra.
8
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Segundo Benchimol (1992:�������������������������������������������������
177),��������������������������������������������
“considerando agora o período compreendido
entre os Censos de 1890 e 1906, verifica-se que o terciário apresenta uma dinâmi-
ca surpreendentemente grande em alguns de seus segmentos. (...). O [número] de
militares, policiais e funcionários públicos quase duplicou, passando de 17.254,
em 1890, a 30.793, em 1906 (15.831 militares e policiais; 14.692 burocratas).
O contingente de funcionários públicos aumentou 108,4% entre as duas datas, ao
passo que a população total da cidade cresceu 46,8 %”.
9
O tema do funcionalismo público como um segmento privilegiado e ineficiente,
em função do clientelismo, atravessa toda a segunda metade do século XX, da de-
núncia das “marias candelárias” à dos “marajás”. Exemplo interessante, justamente
por evocar a hierarquia das “letras” da ascensão na carreira, é a marcha considerada

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Condições diferenciais de reprodução 229

como a melhor do carnaval de 1952, “Maria Candelária”, uma sátira aos funcio-
nários apadrinhados que, ao invés de trabalharem e fazerem carreira no serviço
público, já chegam ao topo da escala do merecimento sem esforço algum: “Maria
Candelária/ É alta funcionária/ Desceu de pára-quedas/ E caiu na letra ó/ Ó, ó, ó,
ó!/ Começa ao meio-dia/ Coitada da Maria/ Trabalha, trabalha/ Trabalha de fazer
dó /Ó, ó, ó, ó!”. Disponível em: <http://decadade50.blogspot.com/2006/08/maria-
candelria-sassaricando-no-servio.html>. Acesso em: 15 nov. 2007.
10
Em 1931, a Diretoria Geral dos Correios e a Repartição Geral dos Telégrafos foram
fundidas no Departamento de Correios e Telégrafos — DCT (como autarquia do
Ministério da Viação e Obras Públicas). O departamento foi substituído pela Em-
presa Brasileira de Correios e Telégrafos — EBCT, instituída pelo Decreto-Lei no
509, de 20 de março de 1969, como empresa pública vinculada ao Ministério das
Comunicações — situação que se mantém até hoje.
11
A ênfase na “hierarquia” certamente tornava menos linear a aplicação do critério
do “mérito”, uma vez que a atitude adequada à posição de cada um influenciava
fortemente a carreira. Humberto é muito claro sobre a contradição entre essas duas
dimensões em sua memória da carreira naval. É interessante lembrar que foi no
encouraçado “Minas Gerais”, em que Humberto viria a servir durante a II Guerra,
que estourou a “Revolta da Chibata”, em novembro de 1910, contra a aplicação
de castigos físicos aos marinheiros, abolidos em 1889 e restabelecidos em 1890. A
violenta repressão aos participantes da revolta justificou-se exatamente em função
da ruptura da hierarquia.
12
A tão esperada promoção de Humberto a primeiro-tenente, comunicada ao pesqui-
sador por telefone — para grande satisfação mútua — no final de 2008, significou
o acesso a um soldo muito superior ao salário deste último como professor univer-
sitário.
13
Em oposição a esses concursos blue-collar a que podiam aspirar os Costa na Petro-
bras ou na Costeira, essa é a época de apogeu do prestígio dos concursos white-
collar para o Banco do Brasil, num dos quais fora aprovado, justamente no começo
dos anos 1960, o marido de uma das Duarte formadas pela Escola Normal.
14
Não podemos esquecer das mudanças nesse tipo de inserção no mundo do traba-
lho a partir da Constituição de 1988, que passou a impedir — de maneira mais
universalizada e imperiosa do que antes — o acesso ao funcionalismo sem concur-
so público. É claro que ainda existem brechas para a via relacional das contratações,
possibilitadas pelos cargos de confiança e pela terceirização dos serviços públicos,
mas sempre em tensão com o sistema meritocrático.

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230 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

15
As taxas de analfabetismo nacionais podem ser resumidas na transição dos 65,3%
da população acima de 15 anos em 1900 para 50,06% em 1950 e 13,6% em 2000
(embora esta última taxa possa subir provavelmente para o dobro, se calculada em
termos de “analfabetismo funcional”). Ver Pinto et al. (2000).
16
Vale sublinhar a crescente freqüentação de escolas privadas mesmo por alguns seg-
mentos das classes populares (e não apenas pelas classes médias, como é mais
notório). Pelo menos metade dos netos de Humberto freqüenta pequenas escolas
privadas, próximas dos bairros de moradia de seus pais — diferentemente das ge-
rações anteriores, exclusivamente dependentes dos colégios públicos (e de um ou
outro curso pago técnico ou pré-vestibular de caráter popular). O mesmo ocorre na
quarta geração dos Campos, mas com menos intensidade. O investimento no es-
tudo segue a lógica da geração anterior, na qual o ensino formal representa o prin-
cipal meio de afirmação social, postura seguida pelos núcleos ascendentes. Cabe
considerar a extrema diferença de qualidade entre as instituições de ensino privado
existentes nas regiões de periferia, na qual se destacam, em especial, as poucas es-
colas católicas. Estas são poucas e acessíveis apenas às camadas mais privilegiadas,
as “elites locais”.
17
Os círculos em que se movem as elites são mais amplos, mas constituídos explici-
tamente como uma pirâmide de redes seletivas, distribuídas em patamares rigoro-
samente delimitados e muito restritos no seu topo. A lógica da “distinção” depende
de uma aguda consciência do meio mais amplo em que se manifesta, justamente
por seu caráter intrínseca e continuadamente diferenciador. Donde a importância
dos múltiplos rituais públicos em que essa seletividade se expressa (e se reproduz
como inculcação de um habitus entre os descendentes). Ver �������������������������
Pinçon e Pinçon-Char-
lot (1989); Lomnitz e Perez-Lizaur (1987); Lima (2003).
18
Entre as múltiplas mudanças acarretadas pela difusão maciça dos valores român-
ticos através da contracultura inclui-se um radical investimento na construção de
uma corporalidade humana que se caracterizaria pela visibilidade pública (como
sinal da “autenticidade” individual). Isso implicou uma complexidade muito me-
nor do sistema de vestuário ocidental, tanto masculino quanto feminino, e um
intenso investimento na construção de corpos destinados a serem imediatamente
vistos — por meio de diversas estratégias estéticas e funcionais (ver Goldemberg,
2002). Esse processo se deu primordialmente entre as camadas médias, mas veio
progressivamente a afetar as classes populares, onde acabou dando lugar a um ou-
tro modelo, combinado com a tradicional ênfase na apresentação pública da força
masculina e na exposição da qualidade sensual do corpo feminino (ver Piccolo,
2006; Sautchuk, 2007a).

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Condições diferenciais de reprodução 231

19
Duarte, 1999.
20
Como não foi feita por L. Duarte pesquisa direta a respeito do trabalho na pesca no
seu último período de campo (a partir de 2000), não é possível aquilatar a relação
do ethos desse jovem com o dos seus outros companheiros atuais.
21
Fernanda Piccolo (2006) apresenta dados etnográficos muito ricos sobre a apre-
sentação de si de jovens de uma favela do Rio de Janeiro, incluindo as técnicas
corporais e o vestuário feminino.
22
Tipo de jogo em que duas equipes que se distribuem em lados opostos de um cam-
po, com o objetivo de atingir com uma bola o corpo de algum dos adversários.
23
O estatuto transcultural do “belo” é um dos grandes desafios da comparação antro-
pológica — e há uma rica literatura sobre a questão, construída sobretudo a partir
do tema da “arte”. No que toca à beleza humana (e mesmo essa demarcação não
deveria ser tomada como óbvia), conhecemos apenas dois estudos marcantes: o de
Bateson (1967) sobre a máscara de uma “bela mulher” iatmul e o de Sahlins (1985)
sobre a beleza “corporal” como índice de valor na sociedade havaiana tradicional
(no que ele chamou de uma “economia política do amor”). Para a sociedade brasi-
leira, ver Goldenberg (2002, especialmente o artigo de Peter Fry).
24
Nogueira, 1998.
25
Há na casa outras fotografias de duas de suas irmãs mais velhas, mas tiradas ambas
em sua juventude, como a ressaltar sua beleza de então.
26
As implicações das relações afetivo-sexuais heterocrômicas no Brasil e na África
do Sul foram discutidas detalhadamente por Moutinho (2004). A autora avalia
que, entre os casais heterocrômicos, aqueles formados por “homem negro e mulher
branca” são mais passíveis de sofrer preconceito. Cabe frisar que, ao ultrapassarem
as barreiras e oposições familiares, há uma tendência de diluição da “cor” e da
“raça” dos neoparentes, principalmente quando se trata de narrativas construídas
pelas famílias sobre suas próprias composições.
27
Sabe-se que as trajetórias individuais não são lineares. As alternações são possíveis,
como sugere Berger (1976:61). Em sua trajetória, o indivíduo pode “alternar entre
sistemas de significado logicamente contraditórios. A cada alternação, o sistema de
significados que ele adota proporciona-lhe uma explicação de sua própria existên-
cia e de seu mundo, incluindo-se nessa interpretação uma explicação do sistema de
significados que ele abandonou. Além disso, o sistema de significados lhe oferece
instrumentos para esclarecer suas próprias dúvidas”.
28
Segundo Paiva (2007:4), “da união das confrarias de Nossa Senhora do Rosário e
de São Benedito, ambas fundadas por negros alforriados, ladinos e escravos, fun-

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232 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

dou-se, em 1640, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos


Homens Pretos no Rio de Janeiro. No início do século XVIII, através das doações,
os escravos construíram a sua igreja na rua Uruguaiana, antiga rua da Vala, visando
o culto aos padroeiros e o enterro de seus mortos”.
29
Duarte, 1999:115 e segs.
30
Ibid., p. 39.
31
A interessante noção fenomenológica de Umwelt, normalmente atribuída a Jakob
von Uexküll e reposta em circulação por Tim Ingold, segundo Sautchuk (2007b:85),
retoma os modelos holistas da ciência romântica do século XIX.
32
Em uma das festas de são Pedro de que participou o pesquisador nos últimos anos,
aconteceu um episódio em que ficou claro que havia algum tipo de “segurança”
contratada pelos moradores: um dos moradores me explicou que, antes, eles mes-
mos se ocupavam disso; mas que agora estava tudo muito mais complicado (“mas
não é coisa de matar não; é só para dar um susto”). À época o pesquisador ainda
não ouvira nenhuma referência ao fenômeno, depois tão generalizado e controver-
tido, das “milícias”. Não foi possível obter maiores dados locais sobre o assunto
desde então, mas também jamais emergiu qualquer menção a problemas com essa
possível nova forma de regulação da ordem moral interna ao bairro. Como esse
sempre foi um bairro relativamente protegido, pela sua posição isolada e envolta
por quartéis, é possível que a “proteção” local seja mais amena do que a que parece
estar vindo a prevalecer alhures.
33
Alves, 1998.
34
A história das ferrovias e seu significado para a expansão da região metropolitana
carioca é riquíssima. De maneira resumida pode ser encontrada no site da As-
sociação Nacional de Preservação Ferroviária (disponível em: <www.anpf.com.br/
histnostrilhos/historianostrilhos22_maio2004.htm>. Acesso em: 14 jan. 2008).
35
O período entre as décadas de 1930 e 1970 foi marcado por enormes mudanças
no sistema escolar brasileiro. O analfabetismo, mesmo tendo diminuído em muito,
continuou alto e, sobretudo, irregularmente distribuído. A exclusão escolar das
camadas populares evidenciava-se, em especial, nas regiões periféricas e afastadas
dos grandes centros urbanos, carentes das estruturas (escolas, mão-de-obra espe-
cializada, material escolar etc.) de acesso ao ensino formal (Beisieguel, 1977). Esse
quadro mais geral afetava substancialmente a Baixada Fluminense dos anos 1950 e
1960, que, concomitantemente, passava por um intenso processo de povoamento
e delimitação das fronteiras dos municípios componentes.

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Condições diferenciais de reprodução 233

36
Segundo Alves (1998:63), “a população da Baixada, como um todo, havia passado
dos 140.600 habitantes, de 1940, para os 360.800, de 1950. Um salto maior ainda
seria dado entre 1950 e 1960. Neste último ano chegava-se aos 891.300 habitan-
tes, num crescimento de quase 150% na década. Para abrigar esta massa urbana as
fronteiras iam se estendendo, até chegar aos limites atuais por volta de 1940. Daí
em diante houve mais um adensamento do que um avanço desta onda urbanizado-
ra. Os fatores desta atração, onde apenas 12,3% dos migrantes que chegavam, entre
1930 e 1950, iam para as favelas, tendo o restante se dirigido para os subúrbios,
funcionavam de forma conjunta com a evasão dos pobres do centro carioca”.
37
As paisagens arquitetônicas dessas localidades, como Éden e Jurujuba, são seme-
lhantes e se aproximam da descrição feita por Guedes (1997) ao tratar da cidade
de São Gonçalo, também integrante da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o
Grande Rio, sob os aspectos da “horizontalidade” e da “heterogeneidade visual”.
O primeiro aspecto se caracteriza pela quase exclusiva existência de construções
que não ultrapassam a altura de sobrados e por um comércio variado que atende à
população local, geralmente instalado no terreno das casas, como ocorre entre os
Campos e (em circunstâncias especiais) entre os Costa.
38
É crescente e preciosa a produção sociológica sobre a Baixada Fluminense, prin-
cipalmente a partir dos anos 1990. Ver Grynszpan (1990); Alves (1998); Enne
(2002); Costa (2002 e 2006).
39
E. Gomes acompanhou de perto esses acontecimentos, quando participava dos
debates sobre direitos humanos e relações raciais na Baixada Fluminense.
40
Ocorrida em 29 de agosto de 1993, a chamada “chacina de Vigário Geral” consistiu
no assassinato de 21 pessoas em represália à morte de quatro policiais na Zona
Norte do Rio de Janeiro. As discussões e conseqüências desse evento podem ser
encontradas em Leite e Birman (2004).
41
No caso descrito no capítulo 4, a violência ganha novos contornos, distintos daque-
les observados num modelo hierárquico englobante. A quebra dos valores tradicio-
nais, ligados à casa e à vizinhança, nos casos da mudança de registro efetivada pela
violência, considerada “externa”, traz novos códigos que se chocam com os antigos,
baseados na reputação, no respeito e na honra, mesmo entre os desviantes. Fonseca
(2000:44, 126) observa, por exemplo, que “para os ladrões ‘profissionais’ é uma
questão de honra não ‘trabalhar’ na vizinhança. Os maconheiros não excluem todos
os vizinhos do rol de vítimas potenciais, mas são levados a respeitar o pacto implí-
cito que existe entre os ‘integrados’ do grupo. O novo tipo de violência, instaurado
pela invasão de uma ‘bandidagem outsider’, leva ao rompimento dos ‘laços de inti-

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234 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

midade’ construídos pelas ‘famílias antigas’ e que estão assentados nas relações de
vizinhança. (...) na relação entre os ‘aldeões’ e os ‘recém-chegados’, há temor de que
ocorra mudança no estilo de vida já muito bem estabelecido”.
42
Duarte, 1987c.
43
No contexto do trabalho embarcado, onde a monossexualidade e as propriedades
relacionais decorrentes da confluência da colaboração com a competição produ-
ziam uma exacerbação marcante dos rituais de agressão, a cor chegou a aparecer
como tema (com o “branco” característico dos “catarinos” — tripulantes vindos do
Sul do Brasil — em posição francamente desprivilegiada), mas muito aquém dos
significantes oriundos do mundo do futebol e da sexualidade/conjugalidade. Ver
Duarte (1987b e 1987c).
44
Algumas famílias, como a da linhagem de Humberto, reforçaram notavelmente os
sinais públicos de sua continuidade de adesão ao catolicismo: há hoje certamente
muito mais imagens religiosas espalhadas pela casa e pela varanda do que há três
décadas atrás. Por outro lado — e de modo semelhante ao que caracterizou essa
clivagem na família Campos —, os católicos reconhecem as virtudes de experiên-
cias religiosas capazes de “pôr na linha” muita gente cujo comportamento deixava
a desejar. Se há, por um lado, uma ruptura da antiga continuidade família/vizi-
nhança/Igreja Católica, por outro, as conversões podem contribuir para reforçar o
“ambiente familiar” coletivo tão prezado.
45
Polignano, 2007.
46
A regulamentação oficial da pesca no Brasil teve início com a instituição do dízimo
do pescado em 1534. Em 1602 deu-se a criação dos pesqueiros reais e a oficiali-
zação das armações de baleias. A criação das Capitanias dos Portos, a que sempre
esteve subordinada a navegação pesqueira, data de 1845. O Decreto no 358 autori-
zou o governo a estabelecer uma capitania dos portos em cada província marítima
do Império. No mesmo período foram instituídos os distritos de pesca. Em 1919
criou-se o sistema das colônias de pesca (ainda oficialmente em vigor), em parte
devido à iniciativa do comandante Frederico Villar, a qual envolvia a promoção
social dos pescadores e questões de defesa marítima do território. Amélia Costa
guardava uma lembrança muito vívida desse processo, cujo significado social mais
amplo é bem analisado por Callou (1994). Houve códigos de pesca no Brasil pro-
mulgados em 1934, em 1938 e em 1960 (atribuindo-se a este último o estímulo à
industrialização, em detrimento da chamada “pesca artesanal”). Pela Lei Delegada
no 10, de 11 de outubro de 1962, foi criada a Superintendência do Desenvolvimen-
to da Pesca (Sudepe), como autarquia federal, com sede na cidade de Rio de Janei-

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Condições diferenciais de reprodução 235

ro, subordinada ao ministro da Agricultura. Competia-lhe elaborar o Plano Nacio-


nal de Desenvolvimento da Pesca (PNDP) e promover a sua execução. A Policlínica
dos Pescadores, criada pelo Decreto-Lei no 3.118, de 14 de março de 1941, assim
como a Escola de Pesca Tamandaré lhe foram agregadas nessa ocasião. A Sudepe
foi extinta pela Lei no 7.735, de 22 de fevereiro de 1989 e substituída pelo Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), com as
alterações subseqüentes das leis no 7.804, de 18 de julho de 1989, no 8.028, de 12
de abril de 1990, e da Medida Provisória no 2.123-30, de 27 de março de 2001.
47
O conceito de “socialização” tem sofrido críticas por uma parte da antropologia
inglesa recente, em nome de uma ênfase empirista radical na experiência relacional
instituinte entre o infante e seu entorno (cf. Toren, 1999; Ingold, 1991; Strathern,
1992b). Evita-se assim a qualidade valorativa, simbólica, cultural, em que esses
processos estão entranhados, por considerar que levá-la em conta exacerba a etno-
cêntrica oposição entre um corpo/indivíduo e um valor/sociedade. Em compensa-
ção, propõe-se um sujeito dotado de qualidades muito semelhantes ao “indivíduo”
da ideologia ocidental moderna, descritível inclusive sob a forma de uma autopoiesis
(cf. Toren, 1999:6).
48
Duarte, 1999:161.
49
Segundo Duarte (1999:276), “viu-se como a educação dos filhos procura até cer-
to ponto manter um equilíbrio entre o ficar e o sair da pesca pela concomitância
do aprendizado e do estudo: na espera dos resultados dessa imprevisível batalha.
Pois contra a expropriação, contra a sujeição à condição de pescador assalariado,
sempre existe a possibilidade de obter pelo estudo um lugar de dignidade fora da
pesca; um lugar onde um outro conhecer e um outro produzir possam reinstaurar a
legitimidade da vida de obrigação”. Essa temática é recorrente nas classes populares
e, apesar de ser crucial para entender as vicissitudes da construção da identidade
masculina, não pode ser completamente explorada aqui. A referência à pesquisa
recente de Sautchuk (2007b) sobre a construção diferencial da pessoa masculina
em duas modalidades de pesca existentes na mesma pequena localidade costeira
do estado do Amapá torna-se, no entanto, impositiva pela homologia com algumas
propriedades desse fenômeno em Jurujuba e pela riqueza da interpretação do pon-
to de vista de uma “antropologia da técnica”, que permitiu a discriminação de um
regime de “gestação” dos lagoeiros, cuja socialização nessa modalidade de pesca
lhes impõe desde muito cedo um radical entranhamento com seus instrumentos
de trabalho e um regime de “metamorfose” dos pescadores de mar, expostos mais
tardiamente à integração com seus meios de produção. A situação em Jurujuba

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236 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

poderia ser vista como comportando tanto elementos de “gestação” como de “me-
tamorfose”, em função de trajetórias menos nitidamente polares. É comum, no
entanto, enfatizar-se a primeira dimensão, como no dito “só vive da pesca quem
nasce na pesca”.
50
Duarte, 1987c e 1999:112.
51
Um dos pescadores solteiros que viviam em Jurujuba nos anos 1980 criava, junto
com seus pais, um filho havido de uma relação com uma prostituta. Era um dos
mais “farristas”; o que significava encontrar-se no limite do consumo de bebida
aceitável para um trabalhador. Suas companhias mais próximas, de dentro e de
fora de Jurujuba, encontravam-se no mesmo limite, chegando em alguns casos à
condição de “mendigos”. Entre as descrições muito diversas de que se pode dispor
de tais eventos, ocorre a menção a eventuais experiências homoeróticas (sempre
mencionadas como ocorridas com outras pessoas), devido à presença de alguma
“bicha” ou “travesti”, ou à “escorregadela” de algum colega. Como esse é um tema
constante do sistema de conflito verbal e de acusações morais entre os pescadores,
nunca fica claro em que medida se trata de eventos reais ou de fórmulas demarca-
doras das qualidades modelarmente “masculinas” do informante. A ambigüidade
do tema pode ser expressa por uma de diversas histórias etiológicas a esse respeito:
um pescador aceitara acompanhar outro homem até a praia deserta que fica entre
Piratininga e Camboinhas com a intenção de “comê-lo”, mas, lá chegando, teria
sido forçado a assumir a posição oposta. Está aí claramente em jogo o modelo
“hierárquico” do homoerotismo popular descrito por Fry (1982), com sua poten-
cial ambigüidade. A praia em questão era sempre mencionada nas conversas com
o pesquisador, inclusive quando se passava de barco ao seu largo, como lugar de
prazer e transgressão — como o é toda farra, na verdade.
52
Em certa ocasião, nos anos 1980, o pesquisador aproximou-se do campo de futebol
durante um jogo, sem ser visto por seus amigos. Humberto usava de uma lingua-
gem desabrida e de um tom de voz desafiador e jocoso que ele nunca apresentara
antes, ao longo de tantas situações de contato. Ao ver o pesquisador, manteve-se
onde estava e com o mesmo interesse na partida, mas passando a conversar no
seu registro contido e formal habitual. É um evento que bem expressa a impossi-
bilidade do mesmo pesquisador ter acesso a todas as dimensões vivenciais de seus
interlocutores, em função do “contrato de imagem” por ele passado.
53
Duarte, 1999.
54
Não só as “letras” assumiam papel significativo; a voz sempre esteve presente na
trajetória de Elza como um componente em seu processo de distinção. Em sua

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Condições diferenciais de reprodução 237

juventude, apresentava programas na rádio local, com uma programação que ia da


leitura de recados a cantar músicas a pedido dos ouvintes. Mais tarde, fez curso de
locutora e passou a ler livros — e gravá-los — para uma prestigiosa instituição que
se dedica ao ensino para cegos.
55
Não se tratava apenas das diversas praias disponíveis e do porto bem abrigado, mas
também do convívio com a vegetação de um belo fragmento de Mata Atlântica,
relativamente preservado graças à vigilância dos fortes e dos proprietários de umas
poucas grandes residências patrícias. Há numerosos relatos nostálgicos das incur-
sões juvenis nessas matas, para caçar passarinhos, colher frutas ou simplesmente
desfrutar da convivência com um universo vegetal prístino, o qual a família Costa
parece ainda associar ao antigo quintal de Amélia, cheio de fruteiras e plantas deco-
rativas à beira da encosta selvagem. Duarte (1987b) analisou o caráter socialmente
construído desse valor da natureza num bairro de classe popular tão peculiar como
Jurujuba (incluindo o mar e a mata). Essa qualidade exuberante, variada e aco-
lhedora não é uma fantasia, evidentemente, em oposição à situação de Éden, por
exemplo, onde não pode ser senão nostalgia. Mas tampouco é um dado externo,
manifestação de uma entidade universal, oposta à cultura e à civilização. Como se
ressaltava então, essa natureza é um valor engendrado e vivenciado direta e incor-
poradamente, como condição de uma existência social específica, entranhada nas
relações de parentesco, vizinhança, companheirismo e trabalho.
56
Dos cinco filhos de Elza, dois permanecem morando em sua casa, mesmo podendo
mudar de localidade. Exercem as respectivas profissões relacionadas aos cursos uni-
versitários (fisioterapia e análise de sistemas) que realizaram. Um deles mantém suas
atividades profissionais vinculadas ao bairro, e o outro percorre diariamente uma
longa distância até seu local de trabalho, no Centro da cidade do Rio de Janeiro.
57
Duarte, 2006a.
58
Como visto, as versões sobre a conversão do patriarca no leito de morte permane-
cem em disputa, mas como assinala Ziegler (1977:271), “nesse instante, a inversão
dos papéis é extraordinária. É o homem vivo, o sacerdote, o médico, o parente
sentado junto ao leito quem nada sabe e é o agonizante que tudo sabe”.
59
Duarte, 1986; Sarti, 1995 e 1996.
60
Duarte, 1987a; Salem, 2004; Piccolo, 2006.
61
Seria interessante dispor de informação qualitativa mais sistemática sobre as es-
tratégias reprodutivas dos segmentos evangélicos durante sua adesão a igrejas que
veiculam a teologia da prosperidade e que poderia embaralhar essa tendência. No
caso específico da Igreja Universal do Reino de Deus, o planejamento familiar as-

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238 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

sume um papel significativo no discurso da “vida em abundância”. Num de seus


documentos lê-se: “A Iurd orienta os casais a programarem o número de filhos e,
em alguns casos, a terem consciência de que é melhor não tê-los” (Iurd, 2003:72).
A restrição do número de filhos, o uso de contraceptivos, a laqueadura e a va-
sectomia e mesmo o aborto são procedimentos defendidos pela igreja. No dis-
curso religioso hegemônico em geral, e nas evangélicas em particular, a “família
estruturada” — restaurada e harmônica — é condição para a efetiva conversão.
Na Iurd há um investimento institucional, com a vinculação entre planejamento e
harmonia familiar aparecendo em seus registros oficiais dessa maneira. Ver Gomes
(2003 e 2004).
62
Nas famílias pesquisadas houve redução considerável no número de filhos, embora
ainda ocorram exceções. De certa maneira, as políticas públicas direcionadas à re-
produção das camadas populares — planejamento familiar, relacionado ao controle
de natalidade — produzem seus efeitos, apesar de toda a dificuldade de sua efetiva
aplicação e efetividade (cf. Paim, 1998; Citelli, Souza e Portella, 1998)
63
Já aqui se prenuncia o objeto do capítulo 7, em que se procurará distinguir “in-
dividualização” e “auto-afirmação”. Esse juízo mais entranhado das condições
morais em que se terão que desenvolver os infantes é característico do universo
em que se espera a “auto-afirmação”, e não a desentranhada trajetória implicada
na “individualização”.
64
Havia uma estratégia peculiar para burlar essa disposição espacial, no sentido de
uma intensificação da troca: os Duarte dispunham de um longo banco de madeira
que às vezes era trazido do quintal dos fundos e colocado diante da fachada, sobre
a calçada. Há fotos familiares de grupos aí sentados, incluindo vizinhos e visitantes,
sobretudo no carnaval.
65
L. Duarte foi apenas um de uma série de pesquisadores, jornalistas e documenta-
ristas que encontraram nessa varanda a acolhida sempre entusiástica de Humberto
Costa e de sua família. Ela foi reduzida com a reforma dos anos 1990, mas ainda é
um ponto de encontro e acolhimento.
66
Tanto a questão do tempo quanto a do pertencimento social alteram as formas de
distribuição dos doces. “Dar doce” também representa obtenção ou manutenção
de prestígio diante da vizinhança (ver Piccolo, 2006:106). É uma celebração que
mobiliza e incrementa as relações cotidianas dos bairros, e uma data importante
mesmo nas agendas de políticos em época de eleições.
67
Godbout, 1999.
68
Para esses grupos, os “doces” representam o mal ou a idolatria. O doce ofertado
possui uma espécie de mana negativo, ligado às religiões afro-brasileiras e ao catoli-

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Condições diferenciais de reprodução 239

cismo popular, marcado pelo sincretismo religioso. Provém de uma “religião falsa”,
que deve ser combatida, e deve ser evitado por todo aquele que professa a “religião
verdadeira”. No entanto, há possibilidade de adequações. A distribuição de doces
de Cosme e Damião é reconfigurada por representantes de determinadas igrejas,
como a Iurd, que distribui na mesma época “doces consagrados”. Esses rearranjos
são mencionados por Silva (2005), que aponta a existência de uma sincronia entre
o calendário da Iurd e o das religiões afro-brasileiras. As controvérsias que cercam
o debate sobre a autenticidade das práticas iurdianas, incluindo os doces consagra-
dos, foram analisadas por Gomes (2004). Seu trabalho mostra como inautentici-
dade e sincretismo aparecem como categorias acusatórias no diálogo dessa igreja
com a sociedade mais ampla. Dentro do próprio campo evangélico ela é vista como
“igreja menos pura”, “igreja desfigurada”. A Iurd elaborou um tipo de autenticidade
distinta através da categoria nativa “pontos de contato”, isto é, os “objetos” ou “coi-
sas físicas” por ela utilizados em suas práticas rituais e cuja característica essencial
é não possuírem, em si, um poder mágico. Eles servem com uma espécie de porta
para a ativação da fé, fato que não se caracterizaria como idolatria. A utilização ou
não desses “pontos” depende do grau de inserção que o fiel possui em relação à
igreja. Conforme vai “amadurecendo” a crença, a importância desse uso entra em
declínio.
69
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Campbell, 1995; Schivelbusch, 1993; Sahlins, 1996.
70
A forma dessa disponibilização das guloseimas, dirigida sobretudo às crianças me-
nores, lembra a “paparicação” descrita por Ariès (1978) para o período pré-mo-
derno na cultura ocidental. Uma interpretação nessa direção encontraria eco na
socialização muito precoce no mundo adulto dessas crianças (sobretudo através
do trabalho) e na própria prática da “circulação” tratada em outra parte deste livro
— como uma modalidade diferente da construção do sentimento da infância em
relação àquela prevalecente nos segmentos superiores.

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Capítulo 7

P e r t e n c i m e n to familiar,
a u t o - a f i r m a ç ã o , individualização

Porque os parente é os dente, e eles dói!


Entrevista com Geraldo Costa, Jurujuba (1976)

C omo se deixou claro anteriormente, é uma dimensão importante deste


trabalho a observação e compreensão dos processos de mudança por que
passaram e continuam passando as famílias em exame. As mudanças podem
ser da mais variada ordem, uma vez que é próprio da experiência social hu-
mana encontrar-se em permanente fluxo. Isso é tanto mais inevitável numa
sociedade marcada pelo dinamismo “ocidental moderno”, em que a mudança
não é apenas uma propriedade comum da vida em sociedade, mas um valor
permanentemente buscado e institucionalizado. As classes populares não co-
mungam do mesmo modo que as camadas superiores, letradas, desse valor
intrínseco da mudança (com as implicações próprias da ideologia do progres-
so, do avanço, da vanguarda etc.), embora se vá perceber que a incorporam
num sentido muito específico. Há, porém, uma dimensão da mudança gene-
ralizada que merece uma atenção particular do observador — uma vez que se
trata tanto de objeto permanente da atenção nativa quanto de tema crítico e
permanente da reflexão sociológica. Trata-se da mudança que faz transitar os
sujeitos sociais (pessoas ou famílias) de uma determinada condição e identi-
dade coletiva para outra, experimentada e representada como diversa, afastada
da que os qualificava originariamente. Esse tema, conhecido mais tradicional-
mente através das categorias da “ascensão social” ou do “emburguesamento”,
pode ser também relacionado com a “individualização” que acompanha um
processo de “modernização”.

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242 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

Embora o interesse na discussão da temática da “individualização” não


seja aqui primordialmente abstrato ou teórico, é indispensável proceder a uma
revisão preliminar das condições analíticas de sua formulação antropológica
atual. Para os autores, porém, trata-se apenas de um meio para tentar compre-
ender aquelas transformações críticas na relação da pessoa com sua trama re-
lacional atribuída que possam implicar uma mudança mais ou menos estável
de estilo de vida, de auto-imagem, de formulação de projetos individuais (ou
relativos à família nuclear) e de assunção de uma visão de mundo igualitarista.
Isso tudo se encontra presente — como há de se lembrar o leitor — em situa-
ções concretas enfrentadas por diferentes membros de cada geração de nossas
três famílias. Mas não se encontra apenas no relato etnográfico, como questão
suscitada pela imaginação sociológica dos pesquisadores; encontra-se como
questão nativa, como um tema que instiga a reflexão de todos aqueles que,
um pouco mais ou menos, aspiram a uma estabilização ou melhoria de sua
condição de vida e para tanto levam em conta suas imagens do que seja uma
vida adequada, satisfatória ou legítima. Essa reflexão se baseia num acervo de
informações e fantasias bastante heteróclito, reunindo fragmentos de contatos
diretos com aspectos da vida de outros segmentos sociais (vistos como mais
bem-sucedidos) ou de dados indiretos, como os que fornecem as impressões
de parentes, amigos, vizinhos e colegas a respeito daquele mesmo “outro mun-
do” e, hoje em dia, também as imagens que sobre ele projetam as novelas da
televisão.1 Uma série de características da diferença representada nas classes
populares em relação tanto aos que “estão melhor de vida” quanto em relação
aos que estão “pior de vida” poderia ser subsumida na categoria analítica da
“individualização” da pessoa, caso esta não estivesse comprometida com uma
acepção radical e específica: a da conversão à visão de mundo caracterizada
pela hegemonia da ideologia individualista.
Trata-se de um terreno fartamente cultivado nas ciências sociais: a dis-
cussão do(s) estatuto(s) das pessoas, da construção social da pessoa, no cam-
po comparado das culturas. Como têm sublinhado muitos autores, a cultura
ocidental moderna repousa sobre um postulado cosmológico fundamental: a
existência de “indivíduos” que compõem as “sociedades”.2 Esses “indivíduos”
ideais são caracterizados por uma autonomia primordial, garantida por uma
série de atributos: o da “alma” individualmente criada e portada; o da “razão”
naturalmente implantada em cada sujeito humano; o da “igualdade” que deve
presidir a sua posição no mundo; o da “vontade” (ou “livre-arbítrio”) que per-

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Pertencimento familiar, auto-afirmação, individualização 243

mite à razão se expressar numa agência particular; o da “propriedade” de si


e das coisas do mundo; o da “interioridade” em que se espraia sua autocons-
ciência; o da “singularidade” que os torna insubstituíveis em relação a cada
um de todos os demais seres humanos; e o da “criatividade” que lhes permite
inventar a singularidade de suas “vidas individuais”. Essas características ou
dimensões não se combinam em todas as interpretações do fenômeno, muito
pelo contrário. Porém, é fundamental para a argumentação deste capítulo le-
var todas elas em consideração.
A experiência comparativa da antropologia permitiu-lhe relativizar esse
postulado e interpretá-lo à luz de modelos diferentes, que têm em comum
a negação da universalidade da existência de “indivíduos”. Uma solução de
compromisso, por assim dizer, foi, para alguns autores, supor um “indivíduo”
apenas logicamente subjacente às suas “máscaras” (ou personae) sociais,3 o que
pode ser transmutado na versão de um portador abstrato de “direitos” e “de-
veres” socialmente definidos. Preservar-se-ia, assim, o fundamento ontológico
último do “indivíduo”, embora reconhecendo que — empírica ou fenomenal-
mente — ele só se pudesse apresentar recoberto pelos atributos específicos
de “pessoa”. Essa via pressupõe a possibilidade de distinguir entre a noção de
“pessoa” e a de “indivíduo”, de tal forma que a primeira expresse o entranha-
mento universal (ainda que imensamente variado) dos sujeitos sociais em sua
trama relacional,4 e a última, o seu suporte abstrato. Outro caminho, mais ra-
dical, é negar a própria noção de um “indivíduo” abstrato, substituindo-a pela
compreensão dos sujeitos ou agentes sociais nas diferentes culturas em múlti-
plos registros êmicos, nativos. Por essa via poder-se-á sublinhar que a pessoa
assim constituída não tem os atributos característicos do “indivíduo” ociden-
tal, embora possa haver considerável variação entre os modos de descrição
dessa outra modalidade dos seres sociais. De primeira importância nesse pro-
cesso é a ênfase na “relacionalidade” característica da construção das pessoas.
Substitui-se assim a idéia de uma autonomia não por uma “heteronomia” (que
seria o seu antônimo linear), mas por um contexto relacional do qual parti-
cipam agentes situacionalmente qualificados. Esse contexto relacional pode-
rá ser concebido como razoavelmente pré-construído, sob a forma de uma
“sociedade” que distribui diferencialmente seus atributos entre os seres que
a compõem,5 ou como uma experiência coletiva de qualidades e contornos
puramente circunstanciais e relacionais, onde não há nem “indivíduos” nem
“sociedade”.6 Poderá ainda ser enfatizada, na trilha da “fractalidade” de Wag-

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244 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

ner (1991), a qualidade fundamentalmente combinatória e complementar dos


agentes em situação (como nas propostas de “partição” e de “distribuição” da
pessoa em Strathern (1992b) e Gell (1998)). Em todas essas direções subjaz
o sentido de preeminência da “relacionalidade” e da “situacionalidade” (uma
espécie de “relacionalidade” distendida no tempo), em detrimento da substan-
cialidade ou integralidade dos sujeitos socialmente pertinentes.7 É necessário
ainda agregar a esse esforço de relativização da noção ocidental de “indivíduo”
os diferentes testemunhos históricos e etnográficos do fato de que as “pessoas”
(ou agentes) socialmente pertinentes não são necessariamente seres huma-
nos (ou, pelo menos, não o que a cultura ocidental entende como tal), nem,
muito menos, seres humanos necessariamente delimitados pelo que Dumont
(1972:43) chamou de “agente empírico”.8
Dumont (1970) foi particularmente enfático sobre os efeitos que podia
ter sobre a própria percepção antropológica o que ele chamou de “ideologia do
individualismo”. Também se dedicou a explorar algumas propriedades dessa
ideologia para a constituição e o funcionamento da cosmologia ocidental, com
implicações sociológicas de intensa relevância.9 Strathern (1992a) procedeu,
mais recentemente, a uma exploração desse tipo, voltada para um segmento
mais restrito da cultura ocidental (o setor britânico do que ela chama de “cul-
tura euro-americana”). O desafio analítico de Dumont não foi levado muito a
sério pela comunidade antropológica no tocante à compreensão das socieda-
des ocidentais, caracterizadas pela hegemonia do individualismo. No Brasil,
no entanto, houve considerável aceitação de suas idéias, utilizadas por uma sé-
rie de autores para interpretar — de maneiras muito diferentes, aliás — alguns
aspectos da vida social nacional.10 L. Duarte (1986 e 1987a) participou desse
movimento, formulando hipóteses sobre a difusão diferencial da ideologia do
individualismo numa sociedade de classes como a brasileira e, particularmen-
te, sobre o caráter hierárquico (não-individualista) da visão de mundo das
classes populares. Por outro lado, a questão da “individualização” (ou de fenô-
menos a ela relacionados) foi tematizada a partir de diversos outros esquemas
interpretativos, cabendo mencionar Foucault (1975, 1984a, 1984b e 1984c),
Elias (1991), Strathern (1992a), Simondon (2005) e Renaut (1998).11
Dentro da tradição dos estudos brasileiros influenciados pela proposta de
Dumont houve tentativas mais explícitas de distinção entre “individualização”
e “individuação”. Esse empreendimento atendia aos reclamos de esclarecimen-
to de algumas dúvidas cruciais no trato dos fenômenos sociais concretos à luz

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Pertencimento familiar, auto-afirmação, individualização 245

da teoria da “ideologia do individualismo”. A ênfase dumontiana no caráter


“ideológico” desse fenômeno era indissociável de sua proposta da “hierarquia”
como qualidade universal da experiência humana.12 Algumas de suas análi-
ses de fenômenos característicos da cultura ocidental, como o cristianismo, o
fascismo, o racismo, o romantismo e o pensamento econômico, guardavam a
marca fundamental de uma tensão entre hierarquia de fundo e individualis-
mo adventício e desafiador. O método parecia muito adequado para grandes
movimentos culturais, mas apresentava problemas para a interpretação de fe-
nômenos de escala microssociológica. O que estava em jogo nos rituais da tro-
ca e do conflito entre diferentes atores da sociedade brasileira estudados por
DaMatta? E nos comportamentos diferenciadores das múltiplas frações das
camadas médias estudadas por G. Velho e seus discípulos e seguidores? No
primeiro caso, por exemplo, reapareceu na análise a representação de pessoa e
indivíduo característica da tradição inglesa que remontava a Durkheim através
de Radcliffe-Brown. No segundo caso, combinou-se a influência dumontiana
com a representação mais universalizante de um indivíduo-ator subjacente,
característica do interacionismo norte-americano.
A distinção entre a “individualização”, enquanto processo social específi-
co decorrente da assunção da ideologia do individualismo, e a “individuação”,
enquanto processo geral de emergência de um sentimento de especificidade
da condição de cada agente social, buscava fornecer uma via intermediária ou
conciliadora entre a projeção universal do modelo do “indivíduo”, denuncia-
da por Dumont, e o que parecia ser uma dissolução excessiva do sentimento
de particularidade e agência emergente em todas as sociedades (e tanto mais
numa sociedade como a brasileira, partícipe da complexa tradição ocidental).
Salem (2007:37) foi quem mais explicitamente procurou controlar as duas
categorias:

Parece-me mais interessante reservar a noção de individualismo para designar


um fenômeno particular à modernidade, não por motivos etnográficos ou certe-
zas históricas, e sim como maneira de conferir maior precisão analítica ao con-
ceito. Também com vistas a esse propósito, sugiro distinguir dois fenômenos, os
quais nomeio individuação e individualização.(...) A individuação (...) é um fe-
nômeno universal, presente em qualquer sociedade, constituindo-se até mesmo
em imperativo para sua sobrevivência. Já a individualização (...) comporta um
inextricável compromisso com a ideologia individualista no sentido de o des-

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246 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

prendimento do indivíduo (singular ou coletivo) de unidades mais abrangentes


ser instigado pelo preceito da igualdade.

Outra dimensão problemática da individualização decorria do fato de


que, a se aceitar a hipótese dumontiana de uma inevitável combinação con-
creta entre fundamento hierárquico e ideologia individualista nas sociedades
ocidentais, não se poderia supor que os processos de “individualização” fos-
sem sempre da mesma qualidade ou apresentassem os mesmos ritmos e as
mesmas características. O aporte analítico de Simmel, da distinção entre um
“individualismo quantitativo” e um “individualismo qualitativo”, foi eventual­
mente invocado para iluminar algumas propriedades dessa diferenciação de
processos, tanto mais quanto parecia corresponder, grosso modo, à hipótese
dumontiana da emergência do pensamento romântico como paradoxal reação
e continuidade da original dimensão universalista, racionalista, da ideologia
do individualismo,13 correspondendo assim ao “individualismo qualitativo”.
As alternativas para esse impasse eram teoricamente múltiplas. Podia-se
fazer uma associação entre o modelo da oposição entre hierarquia e individua­
lismo e a teoria marxista da diferenciação de classes, sublinhando as muito
óbvias associações entre a emergência da ideologia burguesa e o individua-
lismo, e considerando a relacionalidade prevalecente nas classes populares
como um sinal da resistência (ou pelo menos da impenetrabilidade) desses
segmentos em relação à ideologia dominante. Podia-se considerar que certas
alterações na configuração religiosa das classes populares, como as que come-
çaram a se tornar perceptíveis na década de 1970 com o avanço da adesão aos
movimentos pentecostais, estariam associadas ao progresso do individualismo
desencadeado pelas intensas transformações socioeconômicas daqueles tem-
pos (urbanização, desenraizamento, industrialização etc.).14 Podia-se explorar
fenomenologicamente as correlações entre essas transformações aceleradas
da sociedade brasileira no período do “milagre econômico” e as mudanças
nos estilos de vida de segmentos diversos das camadas médias — o que foi
inaugurado por Velho (1972) em seu A utopia urbana e explorado, posterior-
mente, por um grande número de seguidores —, incluindo explicitamente a
indagação sobre o modelo de pessoa tão peculiar que se associava ao consumo
social da psicanálise.15 Atrelado a esse último tópico emergiu o tema da “psico-
logização” diferencial dentro da sociedade brasileira.16 L. Duarte descreveu o
modelo do “nervoso” nas classes populares como característico de um modelo

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Pertencimento familiar, auto-afirmação, individualização 247

de pessoa diverso e incompatível com o psicologizado,17 suscitando alguma


polêmica com outras interpretações da diferença em questão no ambicionado
processo de extensão da psicanálise às classes populares.18
Em face de tais desafios, foi fundamental para L. Duarte, em seu principal
trabalho sobre o assunto, esclarecer que não se tratava de carimbar como “in-
divíduos” ou “não-indivíduos” os agentes concretos de diferentes segmentos
da sociedade nacional, mas de reconhecer uma poderosa presença da ideologia
do individualismo nas instituições, discursos e práticas das camadas médias
e superiores, hegemônica na faixa dos saberes eruditos e da comunicação de
massa, e de constatar que — em comparação com os efeitos sociológicos pro-
duzidos por essa ideologia naqueles segmentos — as classes populares apre-
sentavam uma visão de mundo nitidamente diferente, que se podia descrever,
tentativamente, como “hierárquica”, relacional, complementar. Esse argumen-
to se nutria da versão “culturalista” do marxismo então corrente, associando
aquela qualidade situacional a um argumento um pouco mais “fundacional”,
que permitia supor que a relação da “posição de classe” com uma “ideologia”
específica e concomitante pudesse ser compreendida à luz do conceito antro-
pológico de “modelo nativo”. Por esse motivo, aliás, o autor se referia então a
“classes trabalhadoras”, em função do papel do valor trabalho na auto-identifi-
cação dos grupos pesquisados.19
Para os cientistas sociais que lidavam com “classes operárias”, “traba-
lhadoras” ou “populares” era muito importante o tema da “ascensão social”,
eventualmente caracterizado como um “emburguesamento”.20 As conotações
pejorativas desse último termo dificultavam a compreensão dos complexos
processos que afetavam os segmentos subordinados das sociedades ocidentais,
em face de diversos desafios estruturais. Uma via importante foi a análise dos
efeitos sobre esses segmentos da escolarização universal e da possibilidade
de transição do trabalho manual para o setor de serviços nas sociedades me-
tropolitanas (o que se expressava no mundo anglo-saxão pela oposição entre
blue-collar e white-collar).21 No contexto atual, com a generalizada vitória das
políticas neoliberais, a precarização dos vínculos de trabalho, a “nova divisão
internacional do trabalho” (decorrente da chamada “economia global”) e a
conseqüente retração das identidades propriamente “operárias”,22 a questão
se coloca de outra maneira, embora o fenômeno dos deslocamentos sociais
continue sendo um tópico de continuada investigação. Na verdade, o tema
da “ascensão social” tem como contrapartida real de grande relevância o da

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248 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

“desqualificação social”, que se apresenta tipicamente sob a rubrica da “pro-


letarização”, seja em sua forma originária, relativa a artesãos, camponeses,
pequenos produtores ou trabalhadores rurais,23 seja em sua forma derivada,
característica da perda eventual dos atributos sociais de classe média ou elite.
A menção a trabalhos produzidos em diversos contextos nacionais per-
mite lembrar que sua especificidade nunca pôde deixar de ser levada em con-
ta, sobretudo num país como o Brasil, cuja “modernização” permaneceu, por
assim dizer, a meio caminho,24 ensejando a coetaneidade do que, nos países
metropolitanos, podia ter sido separadamente característico do “pré-capitalis-
ta” e do “pós-industrial”. Entre as diversas características invocadas,25 preva-
lecem ainda hoje a da extrema precariedade dos aparelhos de Estado voltados
para a universalização dos serviços civis, sobretudo do ensino público bási-
co (diferentemente dos países metropolitanos), e a da intensa e generalizada
presença da televisão (por mais que nuançada pelas muitas condições que
levam à sua recepção diferencial). Atualmente, impõe-se também a acelerada
adesão das classes populares aos pentecostalismos — o que tem suscitado
considerável debate relativo justamente à possível “modernização” ou “indivi-
dualização” aí implicada.26 Não se pode deixar de incluir nesse novo contexto
a constituição, ao longo das últimas três décadas, de uma poderosa rede de
banditismo urbano, associada ao narcotráfico, que levanta — também ela — o
tema de agências e carreiras que poderiam ser aproximadas de processos de
“individualização” (ou de “individuação”?) pela transgressão.
O tema da “individualização” é indissociável do tema da “modernização”.
Com efeito, as teorias do vínculo social instauradoras da visão de mundo mo-
derna dependeram criticamente da representação dos “indivíduos” cidadãos,
portadores da razão natural e da disposição para participar de uma civitas
organizada sob a égide dos valores da liberdade e da igualdade. A “ideolo-
gia liberal” dissecada por Marx abarcava tanto as implicações sociais quanto
econômicas do modelo de sociedade emergente no século XVIII no Ociden-
te. Sua referência às “robinsonadas” dos teóricos do contratualismo social e
do liberalismo econômico sublinhava justamente esse caráter individualizado
dos agentes dessa configuração de valores: ilhas de autonomia irmanadas (ou
constrangidas) por um contrato coletivo.
O desencadeamento de uma série de processos sociais de grande escala
seria essencial para o sucesso do projeto da modernização. A Revolução In-
dustrial não poderia ter prescindido de pelo menos dois deles, intimamente

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ligados à individualização: a generalização da forma “mercado” (o doux com-


merce de seus primeiros defensores) na sociedade e o desenraizamento forçado
ou induzido de grandes parcelas da população, que assim puderam colocar
sua força de trabalho em “mercado” (haja vista o caso clássico das enclosures
inglesas analisadas por Marx).
A mercantilização como modelo das novas relações sociais era indissociá­
vel da representação dos “livre contratantes”, despidos de seus antigos atribu-
tos sociais e dispostos a adquirir uma nova condição. O ideal do indivíduo
moderno é fundamentalmente o de um desenraizado, alguém que se afastou
de seu mundo original e construiu um espaço próprio na nova malha social.
A descrição que fez Tocqueville (1977) da sociedade emergente nos EUA em
meados do século XIX é muito clara sobre a preeminência desse processo
naquela nova e peculiar nação. Aliás, todo o pensamento sociológico daquele
século e do princípio do seguinte ocupava-se fundamentalmente do registro
e interpretação dessa “grande transformação”27 do Ocidente, que parecia estar
atingindo o seu paroxismo. Marx, Tönnies, Maine, Durkheim, Weber, Simmel
— todos eles apresentam fórmulas interpretativas do novo horizonte social,
mesmo que com ênfases e recursos analíticos muito diferentes.
Um aspecto importante não foi muito enfatizado pelos pais fundado-
res (embora repontasse como desafio nos socialistas utópicos e em Le Play, e
aparecesse subsidiariamente em Tönnies e Durkheim): o papel que teve nesse
processo de desenraizamento a constituição de um novo formato de família,
essa mesma que se veio a chamar de “nuclear”, conjugal, restrita, mínima. Po-
rém, autores mais recentes, como Ariès (1978) e Foucault (1979), foram bem
mais claros a respeito: o que hoje se entende por “família” no Ocidente é uma
instituição construída ao longo do século XVIII. Sua principal — e paradoxal
— característica é constituir uma unidade relacional mínima capaz de produ-
zir “indivíduos”, física e moralmente. Essa nova família mereceu uma atenção
permanente do governo das nações modernas, no quadro do que Foucault
chamou de “biopoder”. Donzelot (1980) esmiuçou os processos pelos quais
se desenvolveu uma aliança entre Estado e “família” ao longo do século XIX,
acompanhada de perto pela medicina e a religião. O comprometimento da
nova família com o individualismo se expressa diretamente nas duas dimen-
sões fundamentais de seu funcionamento: a constituição do casal e a criação
da prole. A primeira passa a ser o apanágio de duas vontades individuais,
acordadas entre si graças à instituição do “amor romântico”.28 A segunda passa

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250 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

a ser a obrigação precípua da nova unidade social (a “célula da sociedade”):


fornecer regularmente à sociedade novos sujeitos dotados das qualidades do
indivíduo moderno (cidadãos razoáveis, cônscios de sua responsabilidade de
criar um espaço singular na trama social, ao preço inclusive — ou sobretudo
— do afastamento da sua unidade familiar de origem). O romance oitocentista
(e ainda novecentista) dedicou-se exaustivamente às vicissitudes desse proces-
so, carregado de contradições dramáticas — de Stendhal a François Mauriac,
passando por Thomas Mann e Virginia Woolf.
O processo de desenraizamento, concebido como parte constitutiva da
individualização, pode se dar em relação aos diferentes níveis do seu mundo
de origem: lugar de nascimento, corporação de trabalho, religião herdada e
família. O critério essencial é a substituição do status atribuído pelo status
adquirido. O afastamento da família de que emergiu o sujeito tem aí uma
considerável preeminência, já que dele depende a constituição da neofamília
que garantirá a continuidade indefinida do processo. O desenraizamento é
pensado também como um desentranhamento da relacionalidade original. O
modelo ideal desse trajeto é o da “ascensão social”, da aquisição de uma con-
dição superior àquela que prevalecia na origem.29
Essa “ascensão” pode se dar por duas grandes vias, entranhadas em dife-
rentes sentidos. A primeira, do ponto de vista histórico, é a que se obtém pela
acumulação de recursos econômicos que garantem ao indivíduo sua condição
de “proprietário”, de senhor de seus próprios meios de reprodução social e
com uma posição de eminência no seu contexto social (e por muito tempo
esse critério prevaleceu, inclusive, como condição de acesso pleno à cidada-
nia, nas regras censitárias para o direito de voto). É a mais objetivista das vias
individualizadoras — e dá forma ao que Simmel (1950) chamou de “indivi-
dualismo quantitativo”. A segunda, claramente subjetiva, é a que se obtém
por meio de uma acumulação de recursos simbólicos capazes de fornecer ao
sujeito uma consciência ou sentimento da própria autonomia e singularidade
(nos termos de nossa cultura). Pode ser caracterizada como uma “autonomiza-
ção” subjetiva em relação às condições atribuídas, expressável pelas idéias de
carreira, trajetória pessoal ou projeto de vida. A noção romântica da Bildung é
a manifestação mais exemplar dessa acepção da individualização, compreen-
dendo tanto a dimensão de auto-aperfeiçoamento e expressão da capacidade
criativa quanto a acumulação de elementos da alta cultura garantidores de
uma expansão da capacidade individual de satisfação intelectual e estética.

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Pertencimento familiar, auto-afirmação, individualização 251

Essa autonomização pode ser concebida como associada a processos de auto-


exame e autocontrole que garantiriam, pela maior reflexividade, uma acrescida
autoconsciência ou uma “ampliação dos horizontes interiores” — para empre-
gar uma das expressões com que Elias (1990) qualifica o que ele chamou de
“processo civilizatório”. Esse processo pode ser chamado de “interiorização”,
encontrando na psicologização (ou representação “psicologizada” do sujeito)
uma de suas fórmulas mais radicais e exemplares.30 Outra ênfase do mesmo
processo é a que se expressa pelos conceitos de estetização ou de estilização
da existência. Trata-se certamente de uma dimensão da reflexividade, do auto-
controle e do autocultivo aplicada à vasta área dos meios de satisfação desen-
volvidos na cultura ocidental. Embora não se confunda com mero hedonismo
— ou, mais precisamente, com o que Campbell (1995) chama de “hedonismo
moderno” —, não deixa de ser uma de suas manifestações: apenas sublinha a
atitude interior do sujeito, dedicado a conduzir sua vida como uma contínua
“obra de arte” (no duplo sentido de artifício controlado ou ritualizado e de
objeto de uma determinada taste culture.31
Idêntico processo pode se expressar sob a forma de um “individualismo
ético”, ou seja, como uma particular autoconsciência relativa à responsabilida-
de do sujeito para com seu universo de significação, seja ele terreno ou trans-
terreno. Nesse sentido, pode ser empregado como antônimo de “mágico”, para
expressar uma consciência de autonomia ou independência das mediações
objetais ou institucionais que costumam propiciar a comunicação entre os
sujeitos e seus mais altos valores. É uma dimensão de grande importância
para a compreensão da relação da cultura ocidental com o cristianismo, tanto
no plano histórico quanto no sociológico contemporâneo.32 A emergência ou
construção da via subjetiva da individualização está fortemente associada à
tradição cristã do renascimento pessoal (o rebirth de William James, 1991),
ou seja, a um processo de transformação de si eventualmente descritível pelas
categorias da “conversão” ou da “renúncia”. Berger (1978:343) chamou de “al-
ternação” esse movimento e sublinhou, num belo estudo sobre um romance
de Alfred Musil, a importância para o sujeito romântico moderno do acesso
a “uma outra condição”. O estranhamento, distanciamento ou relativização
da condição original do sujeito é a contrapartida subjetiva do processo mais
objetivo de desenraizamento ou afastamento físico do mundo de origem. A
individualização pela via objetiva e a individualização pela via subjetiva não
são necessariamente excludentes, mas tampouco são forçosamente concomi-

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252 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

tantes. Tem um peso importante no imaginário sobre a construção diferencial


da pessoa na cultura ocidental a representação, forjada dentro do horizonte
romântico, de uma oposição essencial entre os dois pólos, representados tipi-
camente pelo “burguês” ou “filisteu” — característico da via objetiva — e pelo
“artista” ou “herói” — característico da via subjetiva. Essa dicotomia pode ser
transportada para a própria trajetória individual dos sujeitos, representada por
diferentes momentos ou dimensões de sua atualização. Em ambos os casos,
procura-se atribuir à via subjetiva o dom expressivo da “autenticidade”, ou
seja, da coerência entre uma verdade interior do sujeito e a expressão de sua
vontade no mundo.33
Outra forma de organizar (ou resumir) essas múltiplas acepções de nossa
categoria é distinguir os três grandes processos através dos quais (isolada ou
conjugadamente) pode vir a se instaurar uma individualização: a autonomiza-
ção, a interiorização e a distinção. A autonomização é um processo mais asso-
ciável ao que se chamou, há pouco, de via objetiva, ou seja, aquela que opera
pela acumulação diferencial de capital econômico — o que pode se dar, aliás,
de formas as mais diversas, todas relevantes para as modalidades do processo
como um todo. Mas a acumulação econômica diferencial deve ser considerada
apenas como a sua forma mais radical e completa. Pode-se falar de autono-
mização em todas as circunstâncias em que o sujeito se considere liberado de
uma ordem anterior que ele tome como limitadora ou insuficiente: o acesso ao
primeiro emprego masculino, a neolocalidade decorrente de um casamento,
a ocupação feminina de um trabalho fora de casa, a passagem de um trabalho
assalariado para o trabalho por conta própria, o acesso de um jovem favelado
ao porte de uma arma dentro de uma quadrilha, a acolhida por uma congre-
gação religiosa oposta à de sua família de origem, a satisfação de algum desejo
íntimo por meio da afirmação de comportamentos considerados desviantes
(particularmente no plano da sexualidade). A interiorização, por sua vez, é a
via subjetiva por excelência, embora também possa se dar de diferentes for-
mas: a interiorização ética é característica do individualismo original cristão
da cultura ocidental e ainda se encontra atuante em muitos meios e contextos
culturais; a interiorização estética (ou hedonista) é mais recente no Ocidente, e
sua emergência é considerada inseparável da modernidade, como cultivo ideal
de um sujeito pleno de satisfação terrena. A distinção é um processo social
mais abrangente, característico dos segmentos aristocratizantes em qualquer
formação histórica, através da construção de uma diferença “naturalizada” de

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Pertencimento familiar, auto-afirmação, individualização 253

procedimentos, disposições e gostos. Assume, porém, características muito


próprias no contexto da cultura ocidental moderna, em função da ênfase igua-
litária e aquisitiva de status que a caracteriza.34 Dada a considerável ilegitimi-
dade pública de que desfruta a diferença “elitista”, é freqüente que esta se faça
acompanhar de um modo de interiorização hedonista que se poderia chamar
de “estetização”. Trata-se, nesses casos, de atualizar disposições de cultivo in-
terior, que servem ao mesmo tempo, crucialmente, como formas de distinção
em relação a outros segmentos lindeiros no palco social.35
É fundamental levar em conta que esses processos e vias raramente se
dão de forma completamente isolada, embora as tendências diferenciais nas
composições possíveis sejam críticas para a localização dos sujeitos sociais em
seus projetos e trajetórias. É igualmente fundamental atentar para o fato de
que essas disposições não podem vicejar em situações sociais em que não haja
espaço para sua atualização, tanto do ponto de vista econômico quanto simbó-
lico. A distinção há pouco evocada entre individuação e individualização, tal
como enunciada por Salem, é de grande qualidade heurística para as grandes
comparações interculturais, assim como para a compreensão do estilo de vida
e da visão de mundo das camadas médias, fortemente comprometidas com a
ideologia do individualismo e as diferentes ordens de institucionalização em
que ela se materializa.36 No presente livro os autores se vêem às voltas com um
ponto de vista oposto: o das identidades, projetos e processos de reprodução
social de famílias de classe popular. E, mais do que isso, de famílias de classe
popular que se encontram entre as camadas menos pauperizadas, no limite
das possibilidades do acesso a condições de reprodução diferenciadas que per-
mitirão que alguns de seus membros ou linhagens acabem por se encontrar
entre as camadas médias.37 Nessas condições, hesitou-se longamente entre uti-
lizar nesta análise a categoria “individualização” ou a da “individuação”. Esta
última seria insuficiente para designar os processos que impulsionam os su-
jeitos para um processo de mudança numa sociedade onde o individualismo
é hegemônico. A primeira categoria, por outro lado, ao pressupor a ação dos
diversos processos de autonomização, interiorização ou distinção, acaba por
acarretar a confusão com a outra ponta do processo, a da plena alternação para
o reino cosmológico do “individualismo”.
A observação das situações concretas de transformação crítica dos sujei-
tos revela, na verdade, a impossibilidade de aplicação mecânica dos modelos
da individualização. Mesmo nas camadas superiores, letradas, das sociedades

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254 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

ocidentais, expostas primordialmente à ideologia do individualismo, verifica-


se notável variedade de atualizações dos processos antes descritos, quer se
apresentem combinados numa mesma identidade, quer se sucedam ao longo
de uma trajetória de vida. A própria configuração axial do desenraizamento
ou renascimento, tal como pressuposta na análise aqui empreendida, se apre-
senta sob formas tão díspares e sutis que escapa freqüentemente à observação
etnográfica.
Optou-se, finalmente, por fazer referência aos diversos processos de as-
sunção de uma agência própria, pessoal, com algum componente, mais ou
menos intenso, de afastamento do englobamento originário (mesmo que am-
bivalente ou ambíguo) através da categoria de “auto-afirmação”. Não é o ide-
al; mas, pelo menos, aponta para a insuficiência da categoria excessivamente
geral da “individuação” e sublinha a inconveniência da categoria bem mais
precisa e restrita da “individualização”.38
Deve-se levar em conta que esse processo de auto-afirmação pode ser
conformado ou limitado por propriedades de posição dos sujeitos (outras que
não as da posição de classe); pode avançar mais em certas esferas vitais do que
em outras, assim como pode emergir e refluir ao sabor das classes de idade,
dos momentos do ciclo de desenvolvimento das unidades domésticas ou de
circunstâncias históricas conjunturais.
Essa multiplicidade de esferas e posições pode ser mais nitidamente
expressa pela noção de “situação”,39 tal como formulada classicamente por
Evans-Pritchard em Os nuer e retomada por Dumont (1972) para melhor cla-
reza de sua noção de “hierarquia de níveis”.
As especificações que se seguem visam fundamentalmente esclarecer
que a discussão dessa “auto-afirmação” (tal como ocorreria, aliás, em relação
ao uso de “individuação” ou de “individualização”) nas classes populares só
faz sentido “situacionalmente”, ou seja, do ponto de vista de uma construção
comparativa experimental localizada, tentativa, aproximativa. Como já propôs
L. Duarte (1986:54) a propósito da “não-individualização” como intrínseca à
“cultura das classes populares”,

a qualificação aqui reiterada da cultura das “classes trabalhadoras urbanas”


como “hierárquica”, “holista”, “não-individualista”, não é uma afirmação univer-
sal, mas se prende intrinsecamente às propriedades de situação do meu discurso
e da minha comparação. Do meu discurso e da minha comparação porque neste

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Pertencimento familiar, auto-afirmação, individualização 255

caso — e não em outros — essas “situações” se superpõem na designação do


“individualismo” como critério e fronteira.

Embora sejam diversos os planos em que se encenam as possibilidades


de tal “auto-afirmação”, e complexas as formas pelas quais se entrecruzam,
parecem todas articular-se a partir do “pertencimento familiar”, ou melhor,
a partir das formas com que se constitui esse pertencimento à volta de cada
sujeito e a partir dos caminhos que dele divergem, propiciando aqueles afas-
tamentos ou desenraizamentos.
O material empírico sobre as três famílias aqui analisadas é expressi-
vo dessa situacionalidade que ora se sublinha. Embora as possibilidades de
agência das mulheres sempre tenham sido múltiplas, elas se apresentam en-
globadas pela agência masculina na primeira e segunda gerações, mesmo
quando esta se mostra insuficiente, incompetente ou descontínua. Mesmo nas
gerações mais recentes, no entanto, não é generalizada a autonomização ou
preeminência do elemento feminino das unidades domésticas. Reiteram-se
aqui informações já exploradas em capítulo anterior a respeito da condição
englobada do feminino na família ocidental — e sobretudo nas classes popula-
res —, apesar do considerável afrouxamento das antigas e estritas prescrições
de comportamento de gênero.
Os graus e modos de agência diferencial (ou auto-afirmação) das mulhe-
res dependem de muitos outros fatores. A posição na fratria é preponderante,
como demonstra, por exemplo, a trajetória afirmativa de Elza, a primogênita
do casal original dos Campos. A primogênita da segunda geração dos Costa
também tinha considerável preeminência na família, mesmo sem se expandir
para a esfera pública, e seria provavelmente o eixo da sucessão de seus pais
se não tivesse falecido prematuramente. As filhas mais velhas assumem parte
da função materna, sobretudo nos casos de fratrias numerosas e nos contex-
tos em que a mãe tem de trabalhar fora, mas também nas situações em que
esta não pode se desincumbir plenamente de sua função — como no caso de
Pequitita Campos e de Hermínia Costa. É também fundamental, para tanto,
considerar os diferentes momentos da trajetória pessoal e do ciclo de vida do-
méstico. Em todas as gerações examinadas, uma determinada caracterização
das classes de idade se impõe, especificando os momentos em que mulheres e
homens podem afirmar algum tipo de autonomia em relação à trama familiar.
Amélia Costa fala de sua rebeldia juvenil em relação aos pais já nos anos 1920,

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descrevendo as manobras complexas que lhe permitiram realizar um casa-


mento contrário à vontade paterna. A partir daí descreve uma “irrelativizada”
subordinação ao marido e dedicação à casa e à criação dos filhos. A viuvez,
em companhia da filha solteira, assegurou-lhe um período de maior autono-
mia formal. Ela não sublinha, porém, essa condição, a não ser pelo contraste
decorrente da nova subordinação familiar a que se viu depois relegada com a
morte da filha e o enfraquecimento senil. Essa domesticidade não a impediu,
no entanto, ao longo de toda a vida, de se ter desincumbido com notável
energia de todo o espaço de agência que lhe podia ser legitimamente credita-
do: as funções terapêuticas e religiosas de parteira, rezadeira e leiga ativa na
igreja local. As decisões matrimoniais dos membros femininos da fratria da
segunda geração dos Campos são também bastante significativas dessa agência
por excelência que lhes coube: casarem-se, uma após a outra, foi o recurso
de auto-afirmação em relação à casa de origem e seus pesados encargos. Isso
não ocorreu, porém, no caso de Walquíria Duarte, muito provavelmente por
se tratar da única mulher de sua fratria. Na mesma casa em que cresceu como
filha, envelheceu como esposa e mãe, embora se tivesse tornado a provedora
do seu núcleo, com os recursos de seu trabalho fora de casa.
Também as carreiras masculinas se curvam ao longo do trajeto vital.
Embora sejam mais votados à rua desde muito cedo, não se desincumbem
desse destino igualmente entre a juventude pré-matrimonial e a maturidade
de chefes de família. Mesmo quando esta última função é cumprida aquém
da competência exemplar ideal, o status assim adquirido se entranha em sua
identidade pública e expõe os infratores a algumas restrições ou controles
reiterados. Na verdade, como já se viu a respeito da casa popular, a atitude em
relação ao trabalho já se vai configurando desde a adolescência como indício
do destino pessoal e da própria qualidade do casamento ou paternidade even-
tualmente assumidos.
O período da juventude é marcado por um potencial considerável de
auto-afirmação. Trata-se de um momento de ênfase na autonomia possível em
face da unidade doméstica de origem, se bem que mais para os homens que
para as mulheres. O trabalho e o casamento sempre foram os caminhos mais
regulares nessas camadas sociais, aos quais sempre se acrescentou também a
possibilidade de uma carreira desviante (de militância política, de orientação
sexual não-convencional ou de adesão à criminalidade). A via do estudo dife-
rencial é muito mais rara nesses segmentos: o caso de Humberto Costa é muito

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Pertencimento familiar, auto-afirmação, individualização 257

peculiar por se tratar de uma escolaridade focada desde o início na profissão


de marinheiro.40 Uma exceção interessante se encontra entre os Campos, com
a conversão religiosa concomitante ao casamento do caçula da segunda ge-
ração. João Duarte foi exceção no sentido oposto: dedicando-se ao trabalho
desde muito cedo, permaneceu na casa dos pais até o seu tardio casamento.
Situação peculiar é a dos homens da família Campos cujas mulheres foram
atraídas para o quintal dos sogros. Na família Costa, o padrão foi oposto: as
filhas tenderam a atrair seus maridos para a zona de influência de sua casa ori-
ginal (com uma exceção sempre lamentada pelo casal original). Uma diferença
marcante entre as duas casas, já sublinhada em outro capítulo, pode estar
associada a esse comportamento: a casa dos Campos sempre tendeu a ser uma
unidade de trabalho, além de uma unidade doméstica. Abrigou a oficina de
marcenaria e, depois, a birosca, além de ter favorecido algumas iniciativas de
trabalho feminino local — o que pode explicar sua capacidade de retenção dos
descendentes masculinos. Já a casa dos Costa nunca teve esse sentido, a não
ser no tocante ao trabalho feminino na tecelagem das redes e na preparação do
pescado (na geração dos pais de Humberto).41
O trabalho que serve à auto-afirmação não é, porém, qualquer um: deve
poder garantir a instalação de uma nova unidade doméstica, no mais das ve-
zes concomitantemente. Assim, o trabalho juvenil feminino, além de ser em
geral mais instável e pior remunerado, não pressupõe a saída de casa (a não
ser no caso do serviço como empregada doméstica em regime de pernoite). A
condição masculina de trabalhador, por outro lado, é extremamente relativa
(tanto pelo volume da renda quanto pela instabilidade), o que pode acarretar
penosas errâncias ou rearranjos. Os casamentos precoces de Rolembergue e de
Milton Duarte, quando ainda se encontravam em posições fracas no serviço
público, redundaram em atribuladas seqüências de mudanças dos arranjos
habitacionais dos dois casais, sobretudo para o último, cuja esposa não dis-
punha de uma rede familiar forte. Essa fraqueza da condição de provedor
certamente esteve na raiz do retorno da caçula dos Costa para habitar com o
marido e os dois filhos pequenos num apartamento improvisado sobre a laje
da casa paterna, após alguns anos de residência num bairro distante de Juru-
juba, na periferia do Rio de Janeiro.
Todos esses exemplos reforçam a importância do processo de auto-afir-
mação pela neolocalidade pós-matrimonial, cuja capacidade de poder ensejar
uma “individualização” nas camadas médias muito se tem discutido.42 Há, no

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258 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

entanto, muitos casos em que a neolocalidade não se atualiza, apesar do po-


tencial de auto-afirmação contido nas circunstâncias de aproximação de um
casal. O caso mais comum é a gravidez de jovens solteiras, a qual, mesmo não
redundando no casamento esperado com o genitor ou no pagamento de uma
pensão, permite à jovem mãe um novo estatuto perante a sua família, distante
daquele que lhe incumbia, muito subordinadamente, pela sua idade e gêne-
ro.43 Também para os homens a paternidade pode ser acrescentada a outros
atributos de sua condição de adultos, mesmo que ela não seja reconhecida de
direito ou de fato.44
O critério da afirmação masculina, no entanto, será muito mais centrado
no desempenho na esfera pública, pela via do trabalho (eventualmente con-
solidado num emprego), da ação política, do acesso a um estatuto clerical ou
da associação ativa com redes desviantes. Já foi analisada aqui a importância
do acesso ao serviço público (civil ou militar) para quase todos os homens da
família Duarte, assim como do acesso ao serviço policial ou militar para alguns
membros dos Costa e dos Campos. O domínio de um saber especializado, que
propicia não apenas renda, mas também algum tipo de prestígio propriamente
masculino,45 está presente na identidade dos homens das três unidades ori-
ginais: Sebastião, como “mestre” em mecânica;46 Humberto, como suboficial
de Marinha e como “mestre de pescaria” (na posição eminente de “motorista
de pesca”); e Geraldo, como marceneiro profissional. Excetuado o caso de
Sebastião, cujos filhos se tornaram todos white-collars, alguns dos filhos desses
especialistas ainda exibem sinais dessa condição positiva do trabalhador quali-
ficado em suas trajetórias — mesmo que já insuficientes para uma reprodução
digna. Tal é o caso particularmente dramático de Pituta Costa, cujo orgulho
profissional de torneiro-mecânico altamente qualificado torna insuportável e
incompreensível o seu já longo desemprego. A qualificação como “pescado-
res” perdeu progressivamente sua preeminência na linhagem de Humberto,
embora todos os filhos e netos homens tenham de algum modo conhecido
desde cedo alguma dimensão dessa lide. Entre os netos há um que é hoje mo-
torista de pesca e que desse ofício retira seu sustento principal — mas ele é o
único nessa condição.47 Entre os Campos, dois dos filhos de Geraldo tentaram
se manter por meio do ofício herdado do pai — marcenaria e outras variações
da movelaria, como é o caso do estofamento de sofás. Um deles teve sua tra-
jetória marcada pela “perturbação nervosa”, alternando momentos de intenso
trabalho — compartilhado com a esposa — com internações psiquiátricas. O

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Pertencimento familiar, auto-afirmação, individualização 259

domínio da marcenaria sempre esteve associado à sua identidade, como um


contraponto à sua condição mental. O outro filho de Geraldo durante anos
sustentou seu núcleo familiar com a venda e conserto de sofás, no que contou
com a ajuda da esposa. Os altos custos da produção e a demanda restrita de
encomendas fizeram-no contrair dívidas e, por fim, abandonar o ofício. Tor-
nou-se então “ambulante”, vendendo produtos alimentícios nas praias do Rio
de Janeiro, nos fins de semana, e frutas no entorno da Central do Brasil, nos
dias úteis. Mais tarde, ao se instalar em outra cidade da Baixada, deixou de ser
“ambulante” no Rio de Janeiro e passou a vender caldo-de-cana e salgados na
região em que reside. Sua esposa dedicou-se mais sistematicamente à venda
de produtos de catálogos, tarefa muito comum entre mulheres de camadas
populares.48 As dificuldades provocadas pela falta de “trabalho certo” marcam
a trajetória desse núcleo, que, contudo, sempre contou com o respaldo de
parte da rede familiar extensa, apesar da mudança do local de residência e das
limitações financeiras.
A via clássica da acumulação diferencial como um desses desempenhos
públicos capazes de ensejar uma auto-afirmação (e, eventualmente, uma in-
dividualização) se faz presente entre alguns membros da rede dos Campos e
também nos limites das redes de parentesco estendidas dos Costa.
O caso de um membro da terceira geração dos Campos, filho mais novo
de um dos filhos de Geraldo e Piquitita, é exemplar: sua acumulação diferen-
cial se deu através de uma articulação entre trabalho (inicialmente “viração”,
depois “comércio”) e ethos religioso protestante. Os grandes deslocamentos
que realizava desde tenra idade, para vender balas na Central do Brasil, foram
substituídos, numa primeira etapa, pela venda de verduras nas ruas do bairro,
num carrinho de mão de madeira. Já na fase adulta, os produtos passaram a
ser comercializados num ponto fixo: um “sacolão” que inicialmente funciona-
va num espaço anexo à casa original. A religião só entrou definitivamente em
sua biografia na fase adulta, quando já estava em curso o processo de acumu-
lação. Sua conversão ao protestantismo pentecostal exemplifica o complexo
panorama religioso contemporâneo, corroborando — no caso — a hipótese
aventada por L. Duarte de que não seria necessariamente o ethos religioso ofi-
cial o fator determinante da adoção de certos comportamentos pelos respecti-
vos fiéis. À época, o autor indagava-se “se não seria mais heurístico considerar
que a disposição de ethos abraçada pelos sujeitos sociais é, pelo contrário, o
que os impele — em articulação com outros motivos, de múltipla qualidade

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260 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

social — a uma aproximação a tal ou qual opção confessional”.49 Com efeito,


esse membro da família Campos converteu-se e constituiu uma “família cris-
tã”, mas isso não significava manter-se atado à instituição à qual se convertera.
Em sua trajetória religiosa, a escolha se sobrepõe aos laços de compromisso
evocados pela adesão. Um descontentamento com o pastor ou com alguma
orientação doutrinária pode conduzir à mudança de denominação. Fato muito
comentado na rede foi sua abrupta migração de uma igreja evangélica para
outra. O motivo alegado para tanto foi ter ele se indignado com a atitude do
pastor, que quis tornar obrigatória a doação de alimentos à igreja. A experi-
ência religiosa evangélica foi, por outro lado, fundamental para o projeto de
auto-afirmação e, em certa medida, de individualização, expresso num ethos
de gestão econômica racionalizada, na dedicação afetiva reservada a sua famí-
lia nuclear, no investimento no “estudo” dos filhos e na busca da manutenção
do novo status diferencial adquirido.
Nos limites da trama familiar dos Costa havia dois casos de acumulação
diferencial a partir da pesca (entre cinco casos mais nítidos em Jurujuba nos
anos 1970 e 1980), sobre os quais, infelizmente, não há muita informação.
Tratava-se de antigos proprietários de canoa que pareciam ter conseguido
agenciar os complexos e instáveis recursos da atividade pesqueira de modo a
permitir a aquisição de traineiras e sua parafernália técnica correspondente.
Nos relatos de alguns pescadores locais há muitos fatores que podem estar aí
envolvidos, desde os mais oficiais e legais, como empréstimos subsidiados ao
tempo da Sudepe, até outros ilegais, como a exploração dos trabalhadores, o
roubo nas contas ou o envolvimento com contrabando.50 É provavelmente
em função de tais circunstâncias, acrescidas da ambivalência decorrente do
entranhamento das relações de trabalho com o parentesco, a vizinhança e o
espírito de “companha”, que se tornam algo nebulosas as informações sobre
tais carreiras.
Entre os dois armadores enriquecidos, parentes dos Costa, um caso é
considerado como malsucedido a curtíssimo prazo. Com a morte do empresá-
rio fundador, sua descendência teria malbaratado todo o capital herdado, por
motivos diversos: uso de drogas, má administração, desinteresse pela pesca.
A grande casa ostentatória que o fundador tinha construído não muito longe
da casa de Humberto (e em cuja garagem uma vez encontrei o proprietário
consertando redes, sentado no chão, junto com membros de sua equipagem)
encontra-se vazia e abandonada — estranho documento dessa meteórica afir-
mação de um pequeno capitalista local.

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Pertencimento familiar, auto-afirmação, individualização 261

O outro caso era mais antigo. Quando iniciei minha pesquisa de campo,
nos anos 1970, já havia falecido o acumulador original (que me foi descrito
em certa ocasião como um “sócio arrendatário de armador”). Era ele tio de
Humberto (casado com uma irmã de Amélia), conhecido por seu mau humor
e agressividade. De qualquer forma, um de seus filhos estivera por muito tem-
po afastado do bairro, seguindo uma carreira profissional bem-sucedida no
governo federal (que o levara até Brasília). Retornara, porém, com a aposen-
tadoria e mantinha a casa, fronteiriça à de Humberto, onde viveram seus pais
(tendo-se mudado recentemente para um bairro de classe média). Seu único
irmão ainda vive ali. Nos anos 1970, era considerado um “louco” intratável,
devido ao seu comportamento agressivo. Seus gritos, desde a casa paterna,
incomodavam particularmente Amélia, lembrando-lhe sua sofrida irmã. Havia
certo consenso de que se tratava de uma perturbação grave, dessas em que a
qualidade da “loucura” parece mais substancial do que nos confrontos identi-
tários constantes.51
Não há casos de afirmação pela acumulação diferencial entre os Duarte.
A acumulação que aí se processa é paulatina, estritamente vinculada ao maior
ou menor sucesso nas carreiras burocráticas a que se dedicam. Em pelo menos
dois casos masculinos (os dois irmãos mais velhos), pode-se dizer que houve
também “ascensão social” por hipergamia, mas esse é um outro processo, com
implicações próprias que fogem ao âmbito deste estudo. Há uma empresária
bem-sucedida na terceira geração, mas essa condição veio apenas coroar uma
trajetória de individualização encaminhada por outros meios, que envolvem
a interiorização.52
Tanto entre os Duarte quanto entre os Campos há diversos exemplos
de uma individualização pela concomitante auto-afirmação propiciada pela
profissionalização de nível universitário e pelo desenraizamento em relação à
velha casa e seu domínio. Tal processo marcou mais algumas linhagens do que
outras, como já examinamos antes. Não é possível analisar extensivamente o
material disponível sobre essas famílias do ponto de vista dos processos de in-
teriorização e distinção, uma vez que eles só têm início a partir da terceira ge-
ração, concomitantemente à dispersão das linhagens e à perda progressiva da
referência ancestral comum. Pode-se, no entanto, retraçar algumas situações
específicas. O exercício de carreiras profissionais, sobretudo as que deman-
dam um saber universitário, caracteriza uma linhagem dos Campos e duas
dos Duarte. A especificidade do habitus transmitido por Elza Campos e João

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262 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

Duarte (e seus respectivos cônjuges) a seus descendentes também já foi exa-


minada. Avulta nos dois casos a disposição dos dois personagens para investir,
ainda que tardiamente, na educação formal pessoal — o que certamente ense-
jou uma emulação em suas descendências.53 Também os dois filhos adotivos
(e sobrinhos) de Milton Duarte originaram linhagens que associaram serviço
público e formação profissional, com marcante sucesso. Uma das linhagens
mantém um bem-sucedido escritório familiar de advocacia no Centro do Rio
de Janeiro.
Há alguns casos de perturbação físico-moral mais ou menos grave no con-
junto examinado. O “nervoso” de Humberto Costa, o alcoolismo de um dos
netos de Sebastião Duarte, a mediunidade de Milton Duarte, a loucura de um
dos filhos de Geraldo Campos são limites muito importantes — que se apre-
sentam como leituras muito diversas — da construção da pessoa nesses meios.
O processo de psicologização e as interpretações interiorizadas subjetivantes
não integram o horizonte cosmológico de compreensão da maioria desses su-
jeitos. À exceção dos descendentes de João Duarte (que nele se encontram
intensamente imersos) e de uma de suas primas, os saberes psicanalíticos não
são considerados uma alternativa terapêutica. Entre os Campos, inclusive no
ramo socialmente ascendente e escolarizado, esse tipo de recurso é considera-
do ilegítimo e ineficaz para a resolução de questões subjetivas ou emocionais.
A simples menção ou proposta de “fazer análise” pode ser interpretada como
ofensa, por indicar uma incapacidade pessoal de solucionar os próprios pro-
blemas. Complementarmente, há enorme desconfiança em relação aos saberes
“psi”, dirigida tanto aos profissionais como àqueles que buscam seus serviços:
os primeiros são vistos como “charlatões”, e os últimos, além de fracos, como
“desocupados”. No limite, buscar esse tipo de recurso é tido como “coisa de
rico”, de gente sem preocupações com a realidade objetiva. No caso das mu-
lheres, a rejeição é ainda mais forte. A associação do feminino com uma certa
natureza emotiva, concomitante à permanência do modelo hierárquico nas re-
lações de gênero, torna impensável a aproximação das mulheres aos recursos
da psicanálise. A referência a uma possível “depressão” pode ser associada ao
descuido com as atividades requeridas pela família e pela casa.
Independentemente das representações muito diferenciadas sobre sua
realidade e terapêutica, a perturbação pode ser analisada como uma variedade
de individuação, no sentido de que aí se encontra em ação um estranhamento

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Pertencimento familiar, auto-afirmação, individualização 263

ou afastamento das condições “normais” da relacionalidade. Por outro lado,


pode-se considerar que os constrangimentos e limites impostos à plena iden-
tidade social pela perturbação podem impedir uma efetiva auto-afirmação.
Talvez a imagem desconcertante de uma afirmação “negativa” possa expressar
algo dessa ambígua condição, que oscila entre a eventual incorporação de
papéis positivos muito especiais (como a religiosidade espírita que conferiu
um estatuto preeminente a Milton Duarte) e a despersonalização radical re-
presentada pela internação psiquiátrica (haja vista as seguidas controvérsias
relacionadas às internações do filho de Geraldo Campos, considerado uma
pessoa sensível desde a infância, com propensão às artes, e a lembrança par-
ticularmente dolorosa de sua antiga internação evocada por Humberto nos
anos 1970 e 1980). Como ressaltou L. Duarte (1986:174), é muito diferente
o sentido dessas perturbações em sujeitos masculinos e femininos. Nos ca-
sos femininos, tende a ser considerada uma propriedade quase intrínseca da
condição desse gênero e, portanto, não aponta para nenhuma singularidade
ou especificidade (como no caso de Hermínia Costa). É mais nitidamente nos
casos masculinos que surge esse potencial ambíguo de singularização, sempre
ensejado e ameaçado. É impossível separar, por exemplo, a marcante perso-
nalidade de Humberto Costa — e sua carreira tão peculiar — da permanente
ameaça do “nervoso”.
A auto-afirmação, em qualquer grau ou modalidade que se dê, jamais
pode consistir num afastamento absoluto da relacionalidade, embora esta
possa variar gravemente de consistência e abrangência. O exemplo da famí-
lia moderna, restrita idealmente à mínima expressão da unidade doméstica,
é exemplar das tensões que se apresentam entre o horizonte de autonomia
absoluta e o mandamento social da relação. Aí se encontra, nas suas formas
metropolitanas mais radicais, uma díade (eventualmente concebível como um
“individualismo a dois” ou um “entre os dois”)54 fundada na autenticidade
mais premente e pessoal, que tem de votar-se à produção de seres tão autô-
nomos, interiorizados e distintos quanto possível. Esse modelo radical encon-
tra-se consideravelmente distante do universo aqui examinado, a não ser nas
últimas gerações de alguns dos segmentos dos Campos e dos Duarte. Foi ne-
cessário, de qualquer modo, lidar com a hipótese de uma auto-afirmação (ou
relativa autonomização) associada à instalação de núcleos domésticos distan-
tes e independentes da trama familiar original. Viu-se, inclusive, como algu-
mas propriedades das trajetórias religiosas tinham diretamente a ver com essa

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outra dimensão de suas vidas. A nuclearização familiar pode ser vista, assim,
como uma precondição para a auto-afirmação (e, eventualmente, para uma
individualização pela autonomização ou pela interiorização). Como se viu,
porém, a nuclearização raramente consiste numa radical e súbita secessão da
rede familiar originária. No mais das vezes, pode ocorrer por uma combinação
de pressões morais generalizadas (um mandamento cultural naturalizado de
neolocalidade) e por coerções práticas inarredáveis, dada a impossibilidade
de uma constante presença física do novo casal nas unidades domésticas de
origem de cada um dos cônjuges. No universo estudado, a neolocalidade pa-
rece se impor mais pelo segundo motivo do que pelo primeiro, a não ser nos
casos em que, justamente, já se manifesta uma incipiente “individualização”.
Isso permite afirmar que a auto-afirmação não é apanágio inevitável da nuclea­
rização, e sim o resultado de uma disposição anterior de afirmar um espaço
de singularidade própria. Por outro lado, a nuclearização imposta pelas con-
dições práticas da vida pode — em si mesma e a longo prazo — vir a facilitar
a emergência de tal disposição.
Na família Costa a nuclearização parece sempre decorrente da pressão
externa, o que se expressa num contínuo processo de reaproximação da velha
casa, ou pelo menos no desejo de fazê-lo. A caçula veio com toda a família
ocupar uma nova área da casa paterna, e o segundo filho constrói a duras pe-
nas uma nova casa no início do bairro, como nítida estratégia de reaproxima-
ção. Apenas Margaret, já há alguns anos vivendo junto à família do marido em
Minas Gerais, parece conformada com esse arranjo. Deve-se ressaltar, porém,
que isso se deve mais à sua adaptação à proximidade da família do marido do
que à distância de sua família de origem — que ela vem visitar regularmente.
Na família Campos a nuclearização caracterizou a trajetória da linhagem
de Elza, embora a circulação de parentes pelas diferentes unidades (ou, pelo
menos, a disposição de produzir novas aproximações entre eles, distantes de
Éden) tenha se mantido até hoje, quando já cresce a quarta geração. A nuclea-
rização tende também a acompanhar as conversões evangélicas, num processo
que já foi aqui examinado. O velho quintal persiste, no entanto, como núcleo
relacional atrativo, apesar do falecimento do casal original, e funciona em par-
te como um recurso de sobrevivência física e moral em situações de crise.
A nuclearização, em seu formato modelar, é associada à substituição da
relacionalidade a priori demarcada pela família de origem e sua respectiva vi-
zinhança pela relacionalidade adquirida a posteriori. O modelo ideal prevê

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Pertencimento familiar, auto-afirmação, individualização 265

uma concomitante passagem de uma rede de malha estreita para uma rede de
malha frouxa, ou seja, da condição de elo de uma malha em que a maioria das
relações se interconecta em várias direções para a condição de elo de múltiplas
relações que não se entrecruzam necessariamente.55 Essa representação está
claramente presente nas representações dos membros das famílias estudadas:
o que varia é a avaliação do fenômeno. Para uns, essa dupla autonomização
(física e relacional) é uma condição da vida adequada (mesmo que em cer-
tas condições possa haver alguma nostalgia do entranhamento perdido), en-
quanto para outros provoca associações com solidão e desatino. Em Jurujuba
prevalece esta última acepção da representação da nuclearização. Na verdade,
mesmo os armadores locais, que haviam experimentado a acumulação dife-
rencial e dispunham de recursos econômicos muito superiores aos da po-
pulação geral do bairro, continuavam aí morando, assumindo a condição de
patronos/padrinhos (na organização e funcionamento da festa de são Pedro,
por exemplo).56 Nos poucos casos registrados por L. Duarte de afastamento do
bairro e assunção de uma vida nuclearizada, como os do sobrinho de Amélia e
da irmã de um genro de Humberto, essa condição era vista pelo menos como
perigosa ou dúbia, senão como francamente ilegítima. Os dois casos eram
um tanto peculiares porque não corresponderam à formação de novos casais,
tendo em ambos prevalecido o celibato. A diferença de gênero era aí muito
crítica, já que é mais difícil desse ponto de vista a aceitação da imagem de uma
mulher não-relacional do que a de um homem.
Nas três redes familiares há uma certa raridade da habitação isolada,
mesmo masculina. Em Jurujuba a habitação solitária é uma característica qua-
se exclusiva dos homens que vivem à margem do jogo social, já que os poucos
solteiros ou que vivem por longo tempo “separados” permanecem em suas
unidades de origem (em pelo menos um caso levando o próprio filho, sob a
alegação de que a mãe era prostituta). Havia diversos casos de homens desgar-
rados de suas redes, vistos como loucos ou mendigos e que, por não disporem
propriamente de uma “casa”, habitavam cavernas na mata ou um quarto anexo
em algum barraco. A ilegitimidade de alguns dos descendentes do irmão de
Humberto é provavelmente associada à precariedade ou instabilidade de suas
localizações familiares e físicas, impondo a alguns deles prolongados períodos
de “isolamento”.
Entre os Duarte, na terceira geração, quatro mulheres acabaram por mo-
rar sozinhas, devido ao celibato ou à viuvez — mas duas delas, por serem

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266 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

irmãs, mantinham (e mantêm) uma quase constante comunhão social entre


si, apesar de residirem em bairros diferentes. A viúva de Vladimir só passou a
morar sozinha após a morte de suas duas outras irmãs, também viúvas, com
quem compartilhava duas residências no mesmo prédio, na Urca. Entre essas
quatro mulheres, só a viúva de João Duarte assumia claramente sua condição
de moradora solitária de sua unidade doméstica como uma qualidade própria,
e não como expressão de uma incapacidade ou perda. Os três filhos deste
último casal foram os únicos na família, mesmo em sua geração, a assumi-
rem residência nuclearizada sem cônjuge, embora por períodos intermitentes
(o caso do irmão do meio, na verdade, foi bastante peculiar, pois implicou
uma vida afastada da casa original, sem domicílio, ocupação ou conjugalidade
fixa durante vários anos).
Entre os Campos esse tipo de experiência é também raro e descontínuo,
restrito, na verdade, a um integrante da terceira geração do núcleo ascendente
de Elza. No início da fase adulta, ainda em processo de consolidação profis-
sional e financeira, o segundo filho de Elza, formado em medicina, morou
sozinho, em residência própria, adquirida para este fim. A auto-afirmação en-
sejada pela carreira médica era concomitante ao desejo de ter “suas próprias
coisas e sua própria vida”. Tal percepção é vista de maneira positiva, estando
relacionada ao processo de auto-afirmação. Estava este associado às possibi-
lidades inerentes ao “vasto mundo”, propiciadas pelo estudo e a profissiona-
lização. Tempos mais tarde, ele viu esse projeto ser alterado pela gravidez de
sua namorada, que daí por diante passou a ser sua companheira. Contudo, a
nuclearização é a tônica de sua família.57
A auto-afirmação como relativa autonomização propiciada pela nuclea­
rização pode ser vista como negativa de outro ponto de vista: o da ruptura
das redes de solidariedade vicinais e de sangue. Como disse Humberto certa
vez, nos anos 1970: “todos os que sobem esquecem dos que ficam”. Essa frase
revela a associação entre a nuclearização e a possibilidade de uma mudança de
status social — o “subir na vida”. Além disso, expressa o mal-estar que acarreta
tal fenômeno entre os que se sentem deixados para trás.58
Esse tema da ameaça à solidariedade das redes originais convive, no en-
tanto, com as mais variadas e ricas representações sobre a busca de uma “vida
melhor” — e com muitos projetos e práticas visando a obtê-la. O “subir na
vida” é, em si, um valor muito ansiado — a frase de Humberto revela apenas
a percepção sociológica muito nítida de um desafio recorrente da vida social

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Pertencimento familiar, auto-afirmação, individualização 267

popular: o de “subir na vida” sem alterar os aspectos considerados positivos


de sua experiência local. Essa é uma fonte de considerável confusão por parte
dos intérpretes dos valores das classes populares: o desejo de estabilizar suas
condições de existência, expresso por locuções do tipo “ficar melhor de vida”,
“subir na vida”, “vencer na vida”, pode ser considerado como sinal de um pro-
cesso de auto-afirmação, mas não como a expressão linear e literal de um de-
sejo de “ascensão social” (ou de “individualização” no sentido forte do termo),
com as múltiplas implicações de mudança de identidade e de pertencimento
social que tem essa expressão.59
O próprio Humberto, no entanto, revelava em outros contextos uma
concepção diferente da auto-afirmação acarretada pelo acesso diferencial ao
estudo e à consciência das condições de reprodução da pobreza e da explora-
ção. Seu contato ativo com militantes do Partido Comunista e com lideranças
classistas ao longo de sua carreira como pescador e marinheiro até 1964, bem
como as graves conseqüências que tiveram para sua vida as “perseguições” dos
governos militares haviam-no tornado muito sensível às contradições e ambi-
güidades das carreiras dos que assumem tais papéis mediadores. Ele associava
fortemente o estudo à possibilidade de perceber as contradições sociais — e
nesse papel incluía o pesquisador na mesma categoria de seu antigo mentor,
ativista do PC. Suas ambições de estudo para os filhos eram altíssimas e foram
frustradas por uma pletora de motivos, que já analisamos. O filho homem
que lhe era mais próximo era justamente o único que parecia comungar de
sua inquietação com a injustiça do mundo do trabalho, mas — no seu caso,
tanto quanto no de Humberto — isso não vinha do estudo, e sim da experi-
ência direta do assalariamento operário. Humberto também reconhecia que a
possibilidade de acesso a uma “consciência” mais ampla das condições perver-
sas de sua reprodução e a conseqüente busca de uma ação reivindicativa no
ambiente de trabalho da pesca tinham levantado a desconfiança e motivado o
afastamento de boa parte da população local — tanto no seu caso quanto no
de seu amigo Milton Brasil.60
A militância política fortemente presente na trajetória de alguns integran-
tes dos Campos apresenta um componente distinto: a associação com partidos
políticos, no contexto muito peculiar da Baixada. Nos anos 1960 e 1970, a mi-
litância marcou diretamente a trajetória de Rubens, filho de Geraldo, atuante
em movimentos políticos contra a ditadura militar. A perseguição truculenta
perpetrada pelo regime provocava períodos de afastamento, motivados por

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268 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

suas atividades clandestinas ou pelas sucessivas prisões. De qualquer forma, a


experiência política não se dava na localidade. Costumava exercê-la distante
das bases familiares e de vizinhança, estratégia que tanto servia para a pro-
teção das redes mais próximas como para enfatizar o caráter de afastamento
e auto-afirmação do personagem revolucionário. Essa dissociação provocou
distintas interpretações a respeito das várias marcas que passou a carregar em
seu corpo. À época, mesmo entre os familiares, poucos sabiam de sua partici-
pação política, ou percebiam que suas cicatrizes — que nunca desapareceram
por terem se transformado em quelóides — significavam tortura. A explicação
mais corrente — e curiosa — entre os demais parentes alegava uma suposta
ligação com as religiões afro-brasileiras. Os períodos de desaparecimento e as
marcas no corpo significavam que teria “feito o santo”. Pode-se aventar aqui,
a posteriori, uma hipótese sobre a legitimidade alcançada por essa segunda ex-
plicação para as marcas no corpo: a associação com as religiões afro-brasileiras
era uma estratégia de proteção contra a perseguição política que ainda vigorou
nos anos subseqüentes. Afinal, quando se trata desse tipo de atividade, o se-
gredo é o principal abrigo do “subversivo”. Com a abertura democrática, hou-
ve uma mudança dos referenciais e aumentaram as possibilidades de atuação
política. Do segredo, do medo e das estratégias revolucionárias clandestinas, a
ação passou a ser exercida livremente, tornando-se, no entanto, mais voltada
para os “problemas mais próximos”. As carreiras ativistas, como a de Rubens,
passaram a ser exercidas na vivência do bairro e em seu entorno. Voltavam-se
para a resolução — ou, ao menos, a reivindicação de solução — de problemas
mais gerais e imediatos da localidade. Carreiras políticas individuais foram se-
guidas por outros membros da rede familiar. O caso de João Gomes, marido de
Elza, ilustra esse cenário de inserção política. Sua trajetória é importante por
inaugurar um tipo específico de auto-afirmação pela via da carreira política.
Embora não tenha conquistado nenhum cargo eletivo, impedido pelo limite
de sua base eleitoral, imprimiu formalmente sua distinção em relação à prática
política tradicional da região ao atuar num partido considerado de esquerda.
Elza também seguiu esse caminho, mas seu processo de auto-afirmação foi so-
bretudo associado ao seu retorno vitorioso ao estudo. A entrada no mundo do
trabalho contribuiu, em seguida, para esse processo. A carreira de professora
— com cargo público efetivo — lhe proporcionou uma relativa autonomia no
quadro de uma relação conjugal convencionalmente hierárquica. O falecimen-
to do esposo não a impediu de seguir o trajeto de auto-afirmação; pelo con-

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Pertencimento familiar, auto-afirmação, individualização 269

trário, o impulsionou. A carreira política foi facilmente incorporada em seu


cotidiano, apesar de não ter conquistado também os votos necessários para se
eleger. Paralelamente, obteve permissão para se integrar à Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos. A combinação entre
dois pertencimentos aparentemente tão díspares bem revela a inquietação e
constante reflexividade acerca de sua identidade. Esse ethos se reflete nas tra-
jetórias de seus filhos. No que tange ao ativismo político, dois deles passaram
pelo sindicalismo. O filho mais velho aliava inicialmente o sindicalismo à tenta-
tiva de implantar o Partido dos Trabalhadores na região. Mais tarde, passou ao
movimento mais abrangente da luta pelos direitos humanos. O filho mais novo
envolveu-se no sindicalismo no âmbito do funcionalismo público.
A trajetória de Elza é muito expressiva do caráter radicalmente “situacio-
nal” da condição individualizada: a relação que mantém com seus irmãos é
altamente hierárquica, englobante. Já com os filhos é a disposição de autono-
mização que prevalece, não havendo quase nenhuma intervenção em suas vi-
das. Ela sempre declarou que os irmãos precisavam mais dela do que os filhos,
que tiveram uma educação destinada a torná-los autônomos e construírem
seus próprios caminhos. Sua permanência em Éden é o maior indicador da
prevalência de seu papel englobante. Não admite sair de lá, embora os filhos e
netos morem todos fora do bairro, e continua preparando a comida que fazia
quando os filhos ainda lá moravam, pois muitos parentes passam por lá à hora
das refeições. Está sempre preparada para a acolhida. A par disso, mantém seu
desempenho profissional, assim como sua ativa participação na vida política
do bairro e na Igreja Católica.
Assim, de diversos pontos de vista, parece que o valor ameaçado é a so-
lidariedade local, considerada um bem excepcionalmente valioso. Isso explica
por que as unidades que se afastam pela nuclearização (como auto-afirmação
ou autonomização) parecem — numa fase incipiente — freqüentemente ansio-
sas por emitir sinais de “reciprocidade” que lhes reassegurem o sentimento de
pertencimento. Ao fazê-lo, no entanto, não têm como não revelar as condições
que as fizeram justamente encontrar-se no rumo da diferenciação. Talvez seja
esse o papel da militância sindical e política de caráter local dos filhos de Elza
Campos no seu impulso inicial, embora possa ela se desviar insensivelmente
para intuitos mais universalistas ou profissionais.61 Talvez seja esse também o
papel ambíguo das festas (geralmente convocadas em nome de comemorações
de aniversários ou de datas familiares, como o Natal) que eventualmente são

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270 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

oferecidas à rede familiar (ou a uma parte dela) pelas unidades em processo
de nuclearização.62 O caso mais imediato é o de uma das filhas de Humberto,
a única a ter feito um casamento razoavelmente hipergâmico e que, não por
coincidência, é também a única a participar de um movimento de renovação
religiosa católica e a única entre as mulheres de sua fratria a ter atingido uma
condição profissional mais autônoma, graças à qualificação técnica em fisio-
terapia. O pesquisador assistiu à festa de primeiro aniversário de seu segundo
filho, realizada num clube militar e descrita no segundo capítulo. A festa cer-
tamente tinha também o significado de confirmar o afastamento relativo que
a condição daquele casal podia ostentar em relação à rede familiar e de buscar
reforçar os vínculos da reciprocidade ameaçada. Tratava-se inevitavelmente
de uma reciprocidade seletiva, uma vez que não estava presente nenhum dos
membros da linhagem desprestigiada de seu tio Geraldo. Não à toa, havia
uma visível ansiedade da anfitriã em relação à possível ausência de tal ou qual
de seus parentes mais próximos. Talvez não tenha sido realmente por causa
de sua saúde precária que o casal original não compareceu a essa festa, assim
como a irmã caçula e seus filhos. Muitas tensões — que o pesquisador podia
mais pressentir do que ver claramente — ali se ritualizavam e certamente
tinham a ver com a demonstração de uma auto-afirmação e a concomitante
ameaça de autonomização de um membro da fratria.63 As próprias memórias
do pesquisador lhe permitiram reler nessa direção o sentido social das come-
morações de aniversário da filha de sua prima mais velha na Copacabana dos
anos 1950, cercadas de um aparato de luxo e modernidade que parecia ao
mesmo tempo fascinar e constranger alguns dos parentes convidados.
Entre os Campos, as festas de aniversário e casamento também têm sido
momentos críticos, por evidenciarem a tensão entre os processos de auto-
afirmação (e eventualmente de individualização e ascensão) e a tentativa de
manutenção dos laços de solidariedade. Agregações e dispersões (provocadas
pelas distâncias espaciais, como migração e mudança de endereço, ou afeti-
vas, como distância geracional ou mudança de religião) são percebidas nas
comemorações de casamentos, aniversários e batismos. A participação nesses
eventos significa o grau de pertencimento ou vínculo com os realizadores do
encontro familiar. A chamada “sociabilidade cerimonial”64 expressa as contí-
nuas mudanças ocorridas nas redes familiares analisadas. O fortalecimento ou
o rompimento de relações pode depender, diretamente, da participação nesses
eventos. Parentes que não comparecem a essas celebrações sem motivo justi-

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Pertencimento familiar, auto-afirmação, individualização 271

ficado são desconsiderados como tal. Gomes (2006a e 2006c) mostrou como
a presença, nesses eventos, de uma determinada pessoa que ocupa lugar su-
perior na hierarquia familiar pode significar prestígio e reconhecimento para
a família que os organiza. É importante considerar também o tipo de evento:
um simples aniversário ou um casamento realizado no religioso, por exemplo.
O caso mais antigo ainda é vívido na lembrança de Elza de seu casamento, nos
anos 1960. A família do noivo incluía ramos mais abastados, moradores na ci-
dade do Rio de Janeiro, e a festa foi realizada, como já se relatou, por insistên-
cia de Elza, na casa de Geraldo e Pequitita, em Éden. O contraste entre o chão
batido e os saltos-agulha de algumas das convidadas é até hoje uma imagem
marcante da diferença social encenada nessa cerimônia (vinda de fora, nesse
caso). A mãe do noivo tinha em vão tentado evitar o mal-estar, sugerindo que
a festa fosse realizada em local mais prestigioso. Prevalecera, no entanto, a so-
lidariedade da noiva com o seu universo de origem. Mais tarde, seus filhos, ni-
tidamente envolvidos num processo de auto-afirmação através do afastamento
do bairro e das redes locais, passaram a enfrentar novos dilemas. Sua presen-
ça em determinados eventos familiares, como casamentos, embora percebida
como extremamente importante, é marcada pela preocupação de evitar a exi-
bição de marcas que revelem ostensivamente a “diferença social” emergente.
A preocupação com o trajar-se adequadamente impõe limites à vaidade ou à
exibição do novo status pessoal. Entre os que “subiram na vida” há grande cui-
dado em não exagerar no luxo da indumentária quando a comemoração mais
formal ocorre no local de origem, próximo à rede familiar. O objetivo é ser dis-
creto. A atitude “dos que ficam” em sua condição original, quando convidados
a participar de comemorações organizadas pelos “melhores de vida”, é ainda
mais crítica, pois depende de condições materiais objetivas. A participação é
inibida pela falta de recursos para o deslocamento e para a compra de “roupas
adequadas”. Em alguns casos a freqüência é possibilitada pela presença de
laços familiares anteriores, que se refletem nas relações de entreajuda ainda
vigentes, mesmo que se refiram a determinados núcleos ou parentes.
Outra característica dessas festas de mediação propiciadas pelos mem-
bros ascendentes da rede é a presença — em pé de igualdade com os parentes
— dos “amigos” dos anfitriões, representantes das diversas redes que suas
novas identidades lhes impõem. O caráter de parcial anonimato (dos convi-
dados entre si) que preside, assim, a essa nova modalidade de celebração é ao
mesmo tempo um testemunho da aquisição ampliada de capital social e um

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272 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

desafio que as redes frouxas de sociabilidade apresentam para os sentimentos


dos membros das redes de malha estreita originais.
A proposta analítica de uma “estrutura da conjuntura”, sugerida por
Sahlins (1985) para a compreensão das relações entre continuidade e mu-
dança social (sobretudo quando um acontecimento exógeno obriga à rápida
interpretação como um evento significativo segundo a lógica cultural nativa),
pode ajudar a entender o processo que se está aqui examinando.
Os desafios concretos enfrentados ao longo da experiência vital dos su-
jeitos das classes populares que podem enveredar pela auto-afirmação e se
perceber comprometidos com o rumo da “individualização” (seja pela auto-
nomização, seja pela interiorização) não são da mesma ordem cósmica to-
talizante que os eventos examinados por Sahlins na história de algumas das
culturas polinésias. Isso não lhes retira a mesma gravidade estrutural: trata-se
de situações vitais novas, que só podem ser lidas à luz dos dispositivos cultu-
rais interiorizados presentes. Elas desencadeiam, porém, processos de locali-
zação e identificação sociais mais complexos, imprevisíveis do ponto de vista
da situação original. Impõe-se aí o que Sahlins (1985:149, 152) chamou de
“functional revaluation of signs”: o sujeito social se vê a partir de um novo “in-
terested standpoint” decorrente de um remanejamento global de suas relações
significativas com o mundo envolvente.
O pertencimento familiar é uma das características centrais da visão de
mundo e da experiência concreta das classes populares. As pessoas aí se en-
contram entranhadas de modo naturalizado, e muitas das demais caracterís-
ticas de sua condição de vida tendem a reforçar continuadamente esse traço.
Por outro lado, as dificuldades prementes com que se defrontam esses sujeitos
para sua reprodução social legítima os impelem à busca de saídas propiciado-
ras de uma ansiada auto-afirmação social. Isso pode implicar o afastamento
físico e moral das unidades originais; um relativo desenraizamento; uma au-
tonomização pela nuclearização familiar ou pela acumulação diferencial; uma
eventual interiorização pelo acesso a patamares de “estudo”, militância política
ou profissionalização; e, em última instância, até mesmo suscitar uma dispo-
sição de distinção em relação aos segmentos sociais de que passam a se sentir
afastados.65 Nos casos em que esses processos são bem-sucedidos, mesmo que
parcial ou temporariamente, consolida-se a possibilidade de um “salto qualita-
tivo”, com a transição do sujeito (pessoa ou família) para uma nova condição e
identidade social. A partir daí, estruturam-se novos processos de reprodução

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Pertencimento familiar, auto-afirmação, individualização 273

social e simbólica, novas dinâmicas identitárias, que têm sido estudados sob a
rubrica própria das “camadas médias” e, no limite, das “elites”. Nos casos aqui
estudados, algumas das linhagens das famílias Campos e Duarte parecem ter
sofrido esse processo entre a segunda e a terceira gerações, com implicações
que não estiveram no centro da análise aqui empreendida. Como foi dito no
início deste capítulo, pode-se reconhecer aí a consolidação de uma mudança
mais ou menos estável de estilo de vida, de auto-imagem e de projetos indivi-
duais (ou relativos à família nuclear). A epígrafe deste capítulo — “porque os
parente é os dente, e eles dói!” — expressa a tensão permanente nas relações
familiares. A solidariedade inerente à família extensa pressupõe atenção e re-
ceptividade constantes aos integrantes da rede, apesar do reconhecimento de
que “eles dói”. Significa, por exemplo, ter sempre comida na panela, em quan-
tidade superior às necessidades imediatas dos moradores fixos, como ainda é
comum na casa de Elza, da família Campos. Em contraposição, a idéia de que
“parente não é família” — frase recorrente entre os integrantes da terceira gera-
ção dos Campos — ocupa lugar significativo no processo de desenraizamento
em relação à rede ampla. O novo estilo de vida, a preocupação com a reprodu-
ção e a manutenção do status adquirido podem romper — ou ao menos abalar
— as bases da constituição familiar original.
Como se ressaltou na introdução, esse processo está na raiz da “reava-
liação funcional dos signos” de que este livro é testemunho. Afinal, seus dois
autores emergiram, pelo menos em parte, de uma transição desse tipo, e a
reflexão aqui compartilhada (e comparada com um caso externo) pode ser
considerada como um dos muitos resultados possíveis de uma “individuali-
zação”. Há aí uma certa autonomização, uma certa interiorização e — porque
não lembrá-lo — uma certa “distinção”. Afinal, esta peça vai se encaixar em
dois currículos acadêmicos e terá algum peso para a identidade de seus au-
tores, com um valor consideravelmente estranho ao que boa parte de seus
antepassados, parentes ou interlocutores contemporâneos poderia considerar
justo, razoável ou pertinente.

Notas
1
As novelas brasileiras parecem operar com uma tripartição dramática básica que
opõe núcleos relacionais de classe popular, de classe média baixa e de classe média

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alta (ou elite). A maneira como são expressos os sinais de distinção entre esses três
níveis mereceria maior atenção, já que ao mesmo tempo reflete, reforça e reinter-
preta as representações nativas dos seus múltiplos receptores de maneira complexa,
não-linear (ver Leal, 1985; Almeida, 2003; Abu Lughod, 2005). O tema da “indi-
vidualização”, aliás, aí se apresenta de maneira direta, geralmente acompanhado de
um juízo ético sobre as formas corretas e incorretas de construí-la nas trajetórias
sociais. Nesse sentido, pode-se dizer que a teledramaturgia da segunda metade
do século XX retomou os fios romanescos da temática da mudança social, de Jane
Austen e Balzac a Proust e Eça de Queirós.
2
Ver Tocqueville (1977), Durkheim (1970) e Simmel (1971), para enunciados so-
ciológicos da fórmula; e Dumont (1970 e 1985), Wagner (1981), Lukes (1973) e
Strathern (1988), para diferentes apreciações históricas e críticas.
3
Mauss, 1973.
4
Radcliffe-Brown, 1968.
5
Ver em Dumont (1985) a noção de “valor” como diferença.
6
Wagner, 1981.
7
Carsten, 2000.
8
A noção de que a “pessoa”, como nódulo de agência definido por uma determinada
cultura, não tem necessariamente como substrato um “indivíduo biopsicológico”
tem crescido na antropologia contemporânea, sobretudo graças à comparação et-
nológica (Seeger et al., 1979; Wagner, 1991; Strathern, 1992c). No entanto, a pró-
pria história ocidental é pródiga em exemplos dessa relativização, como no caso
crítico das três “pessoas” da Santíssima Trindade cristã ou no da definição das “pes-
soas jurídicas”. Mauss (1973) levanta esse ponto, subsumindo-o, no entanto, numa
perspectiva evolucionista de progressiva revelação da noção moderna de “pessoa”:
o “indivíduo”.
9
Dumont, 1985.
10
DaMatta, 1997; Velho, 1981; Aragão, 1982; Franchetto et al., 1981; Figueira, 1986;
Heilborn, 1984; Reis, 1998; Peirano, 2006; Salem, 2007.
11
Os modelos de Simondon e de Renaut ainda são menos conhecidos na antropologia
brasileira. Sobre o primeiro, cuja noção de individuação insiste num processo per-
manente, observado de um ponto de vista mais formal-abstrato (embora num pla-
no biológico, sobretudo), há uma boa revisão em Sautchuk (2007b:261), incluindo
as ressalvas de Neves (2007b:262). Renaut tem sua distinção entre individualização
pela “autonomia” (como “autodeterminação”) e pela “independência” (como “auto-
suficiência” econômica) utilizada pela sociologia da família encabeçada por Singly

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Pertencimento familiar, auto-afirmação, individualização 275

(2001b:11), tendo influenciado, entre nós, o trabalho de Brandão (2003), onde se


encontra uma boa revisão analítica.
12
Embora Dumont (1978:94) sempre tenha considerado esse esquema analítico in-
suficiente para dar conta da dinâmica de sociedades indígenas de pequena escala,
como as da Melanésia.
13
Dumont, 1991; Duarte, 2005a e 2006d.
14
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Fry, 1978; Fry e Howe, 1975.
15
Figueira, 1986; Velho, 1985.
16
Salem, 2007; Russo, 1993; Duarte, Russo e Venancio, 2005.
17
Ropa e Duarte, 1985; Duarte, 1986 e 1998.
18
L. Duarte (1986:137 e segs.) assim descrevia as interpretações lineares de um “in-
dividualismo” das classes populares disponíveis na literatura: “há uma questão da
‘individualização’ na tradição dos estudos sobre as classes trabalhadoras que se
apresenta como particularmente ambígua e que convém aqui explicitar; por um
lado fala-se freqüentemente que os membros das classes trabalhadoras já são ‘in-
dividualistas’ ou ‘individualizados’ porque expostos basicamente a três tipos de
processos de ‘modernização’ logo descritos; por outro, fala-se que eles ainda são ‘in-
dividualistas’ porque não suficientemente ‘modernizados’, porque herdeiros ainda
muito diretos de um ‘tradicionalismo’. Do ponto de vista analítico aqui utilizado,
nenhuma das duas afirmações ou dos dois níveis de afirmações é sustentável. No
primeiro caso, são referidos três processos. O primeiro é o da quebra: quebra da
família extensa, quebra dos laços tradicionais, quebra da cooperação rural ou vici-
nal, quebra das relações de patronagem, quebra da visão de mundo particularista
ou closed corporate. Essa visão tanto se refere à situação de migração ‘rural-urbana’
quanto à situação de ruptura do urban village. Ora, não só as descrições a respeito
das condições prístinas de atualização desses valores exageram em boa parte a sua
pureza ou univocidade, como a sua própria visão enquanto conjuntos isolados de
‘traços’ impede a percepção da continuidade de princípios culturais ou simbóli-
cos subjacentes a comportamentos superficialmente discrepantes. Além do mais,
mesmo quando as rupturas afetam de maneira realmente profunda as estruturas
culturais, só uma visão muito linearmente evolucionista exigiria que a mudança
daí decorrente implicasse a adoção da ideologia individualista ou, pelo menos, de
alguns de seus princípios. Como se a ‘modernização’ aparente das condições de
vida implicasse uma ‘modernização’ linear do sentido da vida, ou ainda como se
não se pudesse ser ‘tradicional’ de diferentes maneiras, ou para usar minha lingua-
gem — fruir de diferentes formas de cultura ‘hierárquico-holistas’. O segundo tipo

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de processo invocado para argüir a ‘individualização’ é o da invasão: invasão pelos


meios de comunicação (particularmente a televisão), pelos aparelhos centralizados
de educação, saúde, higiene, serviço social etc., enfim, até mesmo pelo contato
das ‘empregadas domésticas’ com os hábitos e padrões de vida de seus patrões das
classes médias e superiores. Hoggart já escrevera o seu livro clássico (...), em 1957,
movido pela necessidade de relativizar o propalado efeito dos meios de comunica-
ção de massa sobre a cultura das classes trabalhadoras. As críticas mais recentes (...)
enfatizam a engenhosa capacidade de ‘resistência’ das culturas ‘ameaçadas’ (através
da seleção, reinterpretação e reinvenção), o que só se faz compreensível na medida
em que se concebem essas culturas não como frágeis feixes de elementos avulsos,
mas como um efetivo sistema simbólico, capaz de digerir elementos exógenos e
freqüentemente agressivos. O próprio aparelho escolar, que é afinal voltado ex-
plicitamente para a inculcação de um hábito letrado, racionalista (solidário com a
cultura permeada pelo individualismo), parece ter generalizados e intensos limites
de eficácia, de mú1tipla ordem, inclusive os seus próprios e inexplícitos critérios
de rejeição de clientes ‘difíceis’ — apesar da atração que exerce sobre as classes
trabalhadoras o valor do estudo. O terceiro tipo de processo invocado ou argüido
é o da experiência do trabalho urbano e fabril, no que se conjugam dois planos
de questões: o primeiro (supondo-se uma situação de ‘migração rural-urbana’) é o
da dissolução da solidariedade unidade doméstica/unidade de produção/unidade
de consumo, que exporia os membros da família à vivência singularizante de um
‘mercado de trabalho’; o segundo é o da experiência fabril, no duplo sentido de
experiência das relações de trabalho capitalistas e de experiência do processo de
trabalho (supondo-se a situação modelar da ‘grande indústria’ descrita e analisada
em O capital) aí vigente. É verdade que a ‘forma fenomenal’ (para usar a locução
de Marx) que assumem as relações ideais capital/trabalho nesses planos é de certo
modo ‘individualizante’ — ora por se ancorar diretamente na ideologia do indi-
vidualismo (como ocorre com a forma ‘salário’), ora por lhe servir indiretamente
através dos processos da fragmentação generalizada e da maximização de recursos
(exacerbação de uma lógica ‘meios/fins’) —, instauradora de um mundo em que
se privilegia a relação pessoa/coisa em detrimento da relação pessoa-pessoa (...).
Ocorre porém que, mais uma vez, apesar de toda a sua já secular prepotência, de
seus insidiosos mecanismos de disciplinarização, da coerção quotidiana com que
invade direta ou indiretamente toda a vida dos operários e de suas famílias, tam-
bém aí parecem poder se articular aqueles processos de ‘seleção’, ‘reinterpretação’

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Pertencimento familiar, auto-afirmação, individualização 277

e ‘reinvenção’ que, em nome dos princípios culturais mais profundos da classe,


ordenam o que, um tanto voluntaristicamente, se nomeia de ‘resistência’”.
19
Diz Duarte, (1998:14): “eu próprio em trabalhos antigos procurei descartar como
impreciso o uso de ‘classes populares’ para designar o pólo que mais se afasta de
nossas próprias representações (de intelectuais de classe média), considerando por
muitos motivos como mais sustentável a categorização de ‘classes trabalhadoras’.
Posteriormente — apesar de continuar considerando como muito bem fundados
os argumentos em prol daquela outra delimitação — acabei por também utilizar
o designativo menos preciso de ‘classes populares’. Dadas as dificuldades de de-
terminação das fronteiras desses espaços culturais, parece-me hoje melhor utilizar
justamente a expressão menos precisa”.
20
Para os problemas dessa caracterização, ver Goldthorpe et al. (1969).
21
Por exemplo, Sennett e Cobb (1972). Um marco dos estudos da relação entre con-
dição de classe, mudança social e escola, a partir das classes trabalhadoras inglesas,
é o trabalho de Willis (1991), utilmente apropriado por Marcus (1986) e Guedes
(1997).
22
Castel, 1995c.
23
Lopes, 1978; Duarte, 1986.
24
L. Duarte (1996:40) tratou dessa questão em duas fórmulas que podem ser aqui
úteis. A primeira trata da diferença entre “não-modernização” e “destradicionali-
zação”: “Já na locução “não-modernização” se estará entendendo a categoria “mo-
dernização” — essencialmente multívoca — como referente a todos os processos
“culturais” comprometidos com a “grande transformação”, ou seja, primordialmen-
te aqueles referentes ao “individualismo” dumontiano, à “disciplinaridade” foucaul-
tiana e à “civilização” eliasiana: “não-modernização”, assim, procura enfatizar o
fato de que a maior parte dos fenômenos de transformação cultural associados
à “modernidade” não se deu na sociedade brasileira, ou foi interrompida ou não
chegou a atingir um grau de intensidade equivalente à “destradicionalização”. A
segunda fórmula (Duarte, 2005b:154) procura distinguir entre uma difusão formal
e uma difusão material da ideologia do individualismo: “chamo de difusão formal a
que atinge e conforma as ordens institucionais da nação, tanto no nível do Estado
quanto da sociedade civil organizada. A difusão material consistiria na interna-
lização dos novos valores enquanto dispositivos ordenadores da ação (a ética de
Weber ou o habitus de Bourdieu), que inspiram justamente a ordem pública liberal
institucionalizada. Em princípio, supõe-se que essas duas dimensões se aproximem
tendencialmente nas sociedades metropolitanas, enquanto se distinguem de ma-

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278 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

neira mais ou menos intensa nas sociedades periféricas. Tanto nas primeiras quanto
nas últimas são as elites e as camadas médias que se ocupam primordialmente da
adequação entre as duas dimensões, até mesmo porque são elas as responsáveis
pela reprodução material e ideológica do novo modelo cultural”.
25
Algumas delas tiveram particular preeminência entre os anos 1950 e 1970. A da
“origem rural dos trabalhadores urbanos”, como fator determinante de sua especi-
ficidade, veio a ser posteriormente criticada e relativizada por Durham (1980). A
da “cultura da pobreza”, capitaneada por Lewis (1998), também veio a ser desacre-
ditada, por força do funcionalismo um tanto mecânico que englobava a sua intensa
disposição etnográfica.
26
Fry, 1978; Pierucci, 2006; Corten, 1995; Machado, 1996 e 2004; Mariz, 1994a,
1994b e 1996; Mariz e Machado, 1994 e 1998; Gomes, 2004; Lima, 2007.
27
Polanyi, 1980.
28
Castro e Araújo, 1997.
29
O modelo positivo do self made man convive, porém, com sua acepção negativa,
de tonalidade romântica, a que termos como “arrivismo”, “nouveau-richismo” ou
“bovarismo” vieram atender.
30
Moscovici, 1978; Velho, 1981; Figueira, 1986; Russo, 1993; Duarte, Russo e Ve-
nâncio, 2005.
31
Gans, 1962. Além de Campbell, Schivelbusch (1993) e Sahlins (1996) são imen-
samente úteis para a compreensão do desenvolvimento de uma ética do prazer
e da satisfação sensorial na cultura ocidental, em progressiva substituição ao seu
original dolorismo.
32
Weber, 1967; Dumont, 1985.
33
Duarte e Giumbelli, 1995.
34
A “igualdade” é um dos componentes centrais da ideologia do individualismo (so-
bretudo enquanto dimensão do “universalismo”), embora tenha sempre suscitado
graves tensões abstratas e concretas com o ideal da “liberdade”. Sua presença tem
sido assim mais determinante em certas dimensões e ordens da vida moderna do
que em outras. Sucessivas teorias da diferença emergiram desde o final do século
XVIII, com qualidades diferentes das que haviam caracterizado o ancien régime, por
se sustentarem quase todas em teorias naturalistas ou fisicalistas (Dumont, 1991;
Laqueur, 2001; Duarte, 2005a; Russo e Ponciano, 2002). A “distinção” pode ser
considerada uma das reelaborações da “diferença” — o que fica muito claro na
análise de Martine Dumont (1984) sobre a fisiognomia de Lavater, ainda no final do
século XVIII —, sobrepondo paulatinamente aos valores “atribuídos” aristocráticos

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Pertencimento familiar, auto-afirmação, individualização 279

os novos valores “adquiridos” burgueses, em estreita ligação com a acumulação ca-


pitalista, por um lado, e com o cultivo romântico de si, por outro. Sua análise por
Bourdieu (1979), em termos de habitus adquiridos e de capitais acumulados, tende
a privilegiar a articulação entre o capital econômico e social (autonomização objeti-
va) e o capital simbólico (autonomização subjetiva pela distinção). A dimensão da
interiorização fica totalmente subsumida àquelas ordens mais “externalistas”.
35
Velho, 1998; Russo, 1993.
36
A referência à modelização proposta por Salem em relação a individuação e in-
dividualização é exemplar por sua explicitude. A oposição entre essas categorias
varia, no entanto, dentro da literatura antropológica e sociológica, não sendo muito
fácil saber que sentido os autores lhe adjudicam. Alguns exemplos, completamente
distantes entre si, de um ponto de vista acadêmico são os de Velho (1981:99 e
1994:99), Cabanes (2006:17) e Strathern (1988).
37
Um problema aqui descartado foi a possível caracterização de uma “pequena clas-
se média” ou “pequena-burguesia” a compor o mundo popular em oposição às
camadas propriamente “trabalhadoras”, ou a ocupar a posição de mediadora (ou
transicional) entre as classes populares e as classes médias. Claro que é legítimo se
inquirir sobre a demarcação das fronteiras de status ou de ethos que poderiam dis-
tinguir segmentos desse tipo. Considerou-se, porém, que essa é uma categorização
que se impõe mais claramente quando a análise parte da compreensão das “classes
médias”, mais ciosas e autoconscientes de suas fronteiras simbólicas (sobretudo
para baixo). Do ponto de partida aqui privilegiado — o pertencimento às camadas
populares —, essa distinção pareceu menos “estratégica”. Heilborn (1984), por
exemplo, estudou uma rede jovem num bairro do subúrbio carioca com caracte-
rísticas que aparecem associadas a categorias tais como “classe média suburbana”
e “baixa classe média”. Algumas das características desse grupo são indistinguíveis
das de alguns núcleos ou linhagens das famílias aqui estudadas, em determinados
momentos de sua trajetória. Por outros motivos, no entanto, discrepam entre si.
Velho (1972), em seu trabalho inaugural sobre prestígio e status na ocupação do
bairro de Copacabana por “estratos médios urbanos”, discutiu a possibilidade de se
falar de uma “subcultura white-collar”, a partir da notória qualificação de Wright-
Mills, o que também nos aproximaria de algumas dimensões da experiência social
aqui analisada (sobretudo no que se refere aos “pequenos funcionários públicos”).
38
Essa é a principal limitação do argumento de Vaitsman (1997) contra a inexistência
de “individualismo” nas classes populares, confundindo — como é comum — os
processos de “subjetivação”, “auto-afirmação”, agência ou “individuação” presentes

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280 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

em qualquer sociedade com a presença ativa da “ideologia do individualismo” e


sua específica “individualização”. Vaitsman cita dois trabalhos de L. Duarte como
representantes de uma corrente que afirmaria a inexistência do individualismo
nas classes populares brasileiras. Este se preocupara, no entanto, em esclarecer
o caráter absolutamente situacional de tal hipótese, que não deveria ser reificada.
Vaitsman usa exemplos de agência afirmativa de mulheres das classes populares
brasileiras como sinal da permeação do “individualismo” nesses meios — o que faz
supor que essa autora considere que, nos contextos “não-individualistas”, os sujei-
tos sejam meros “suportes” passivos da determinação estrutural. Kusserow (1999)
se dispõe também a verificar como é complexa a questão do “individualismo” na
sociedade norte-americana (onde este é considerado, diferentemente da sociedade
brasileira, como um traço originário, generalizado e essencial). Seu propósito de
comparar diferentes classes sociais na região da cidade de Nova York é louvável,
já que — como ela mesma aponta, com razão — a cultura das classes médias da-
quele país é normalmente tomada como a cultura “nacional”. Ela tem, porém, uma
visão desse “individualismo” extremamente reificada, como um sistema de valores
e comportamentos cujas qualidades e traços diferenciais podem ser avaliados com
questionários sobre como pais e mestres tratam e projetam as expectativas sobre
crianças de quatro anos. Esses valores se opõem na forma de um “sociocentrismo”
e de um “egocentrismo” — o que é um modo incomodamente ingênuo de reto-
mar a questão da ideologia individualista (como se esta não fosse uma ideologia
tão “social” quanto qualquer outra). Os questionários se centram diretamente no
destino das crianças, o que já impõe um viés “individualista” curioso, sobretudo
para as famílias de classe trabalhadora, onde a literatura reconhece (mesmo nos
EUA) uma relacionalidade familiar e hierárquica preeminente. Com isso ela acaba
apresentando uma descrição interessante da forma diferencial como esses proces-
sos sociais se desenrolam em bairros socialmente muito distantes na escala social
(e nas condições de reprodução social), mas sua caracterização de um individu-
alismo “defensivo”, em oposição ao “ofensivo” ou afirmativo, é demasiadamente
empirista para contribuir realmente para a compreensão da ação da ideologia do
individualismo nas sociedades ocidentais.
39
Para Duarte (1986:43), “em princípio, ‘situação’ se opõe a ‘substância’ ou ‘substan-
cialidade’, à possibilidade de demarcação universal e ‘irrelativizável’ das identida-
des sociais”.
40
Infelizmente não foi possível obter informação sistemática sobre as histórias de vida
de dois personagens da periferia da rede familiar dos Costa, moradores de Jurujuba

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Pertencimento familiar, auto-afirmação, individualização 281

que vieram a ocupar cargos na administração pública federal (Ministério da Fazen-


da e Tribunal de Contas da União) num período em que as exigências de formação
escolar já eram certamente maiores do que para a entrada da segunda geração dos
Duarte no serviço público municipal.
41
Na verdade, veio a tê-lo, por um curto período, no início dos anos 2000, quan-
do Pituta Costa, desempregado, montou ao lado da casa uma pequena oficina de
torneiro-mecânico. Mas, a essa altura, o seu núcleo doméstico autonomizado já se
estabelecera há muito tempo nas cercanias da residência da família da mulher.
42
Velho, 1981:70.
43
����������������������
Heilborn et al., 2006.
44
Fonseca, 2002.
45
Duarte, 1986:176 e 1999:170.
46
Em um pequeno discurso (cujo texto original foi conservado pela família) de des-
pedida no momento de sua aposentadoria, Sebastião dirigia-se aos trabalhadores
de sua oficina como um “mestre” no sentido mais lato dessa expressão, sublinhan-
do o aspecto comunitário que a relação entre mestres e aprendizes faz ressaltar,
em detrimento da relação entre trabalhadores e “contra-mestres” ou supervisores.
Esse era o sentido em que tal categoria prevalecia na pesca antiga, de “companha”,
presente até hoje na memória social de Jurujuba (cf. Duarte, 1997).
47
É possível que nesse caso a permanência no ofício esteja associada ao fato de sua
única irmã, mais velha, ser casada com um armador, proprietário de traineira (sem
filhos). Esse rapaz é o único neto casado e, embora ainda more com a mãe viúva, já
tem dois filhos.
48
Esse fenômeno é analisado nas classes populares mexicanas por Gutierrez (2007).
49
Duarte, 2005b:18.
50
Duarte, 1999:133 e segs.
51
Sobre o caráter situacional das classificações das perturbações de pessoas perten-
centes aos círculos locais como leves (“nervoso”) ou graves (“loucura”), ver Duarte
(1986).
52
Trata-se, significativamente, de uma empresa de serviços associados ao consumo
suntuário, de elite, com sede em Ipanema.
53
Ribeiro (2007) demonstra o efeito prioritário da escolaridade na mobilidade social
brasileira em relação às demais variáveis (como a “cor”, que só parece se desentra-
nhar como especificamente negativa após concluída a formação universitária).
54
���������������������������
Singly, 2001c; Salem, 2007.
55
Bott, 1976.

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282 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

56
As atitudes em relação à diferenciação social tendem a ser negativas por parte de
quem permanece na condição de status original, a não ser que essa diferença possa
representar uma fonte regular de “redistribuição” material ou simbólica, imediata
ou dilatada pelo afastamento físico e temporal. O tema clássico do “olho grande”
envolve o ambiente de troca simbólica negativa, bem analisado por Foster (1967)
através da “imagem do bem limitado” prevalecente em comunidades camponesas
da América Central. Hoggart (1973) também se refere a um homólogo controle
moral da ascensão ou acumulação diferencial nas classes operárias inglesas do co-
meço do século XX. Há uma grande variedade de situações envolvendo, por outro
lado, a acumulação obtida fora do local de origem, quando possa implicar expec-
tativas de acolhimento de outros migrantes, de remessas de valores ou de retornos
finais redistributivos. Ver, por exemplo, Sahlins (1997).
57
É incomum, e mesmo malvisto, o tipo de “autonomização” constituído pela mora-
dia conjunta de pessoas que não possuem laços familiares entre si (consangüíneos
ou afins), como é o caso das repúblicas de estudantes ou de pessoas que “dividem”
a mesma residência com o objetivo de conter os gastos para poder morar em loca-
lidades mais centrais.
58
Um exemplo etnográfico muito significativo são os sentimentos de traição que
passam a dominar as relações entre pais blue-collar nos EUA e seus filhos, que
ascendem a uma condição white-collar por força da ação combinada da educação
universal e da reestruturação do mercado de trabalho. Ver Sennett e Cobb (1972).
59
Hoggart (1973:94-95) já advertia contra essa leitura ingênua: “mas a limpeza, a
poupança e a dignidade são fruto não da vontade de subir, mas antes do medo
de descer, de sucumbir ao meio ambiente, e a maioria daqueles que desprezam
esses critérios não são espíritos livres, generosos e desinibidos, mas antes indiví-
duos desmazelados e instáveis, refletindo-se esses defeitos nos seus hábitos e nas
suas casas. O próprio desejo de ver os filhos ‘subirem’ e o respeito pelo valor do
saber aprendido nos livros não são fruto do desejo de abandonar a própria classe
ou manifestações de esnobismo. São antes inspirados pela esperança de que essas
crianças poderão assim evitar a maioria das preocupações que afligem os pobres, só
porque são pobres”.
60
Para Hoggart (1973:101), “a minoria que tem consciência das próprias limitações
de classe e procura educar-se — para ‘trabalhar pelos da sua classe’ ou apenas para
se aperfeiçoar — é olhada de forma ambígua”.
61
O rumo seria, nesse caso, simetricamente inverso ao do tio militante — que come-
çara pelo “afastamento” em nome do universal e fora progressivamente se reaproxi-
mando do “local”.

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Pertencimento familiar, auto-afirmação, individualização 283

62
Os aniversários, no modelo tradicional, costumam ser comemorados na casa do
aniversariante, com a presença de parentes e vizinhos, mas sem um caráter de festa
(sem convites formais, por exemplo). A expressão usual para comunicar o evento
entre os Campos é: “só vai ter um bolinho, para não passar em branco”. A festa
familiar típica, mais tradicional, parece só se atualizar, quando economicamente
possível, nas cerimônias de casamento — embora essas cerimônias também pos-
sam se prestar ao uso demonstrativo da autonomização.
63
Pode-se dizer que, nesse caso, como no de algumas conversões da família Campos,
a relativa autonomização se faz acompanhar de uma interiorização em sua dimen-
são ética, expressável num código religioso de fraternidade universal (em relativo
detrimento das fraternidades atribuídas terrenas). É bem possível que algo seme-
lhante se tenha dado com o desenvolvimento da mediunidade de Milton Duarte
— num momento a que o pesquisador só teve acesso por interpostas e distantes
memórias.
64
Guedes e Lima, 2006.
65
Apesar da geral permanência de uma enorme diferenciação social na sociedade
brasileira, alguns trabalhos têm demonstrado, qualitativa ou quantitativamente,
que o processos de “ascensão social” estão se dando continuamente — e, provavel-
mente, num ritmo mais acelerado e numa taxa mais alta do que a também presente
desclassificação social. Para uma análise quantitativa recente, com dados sobre as
transformações no mercado de trabalho masculino e feminino nas três últimas dé-
cadas do século XX no Brasil, ver Ribeiro (2007). Para uma análise qualitativa loca-
lizada, a partir de uma etnografia dos chamados segmentos “emergentes” (ou seja,
supostamente oriundos de uma “ascensão” recente) das elites cariocas na passagem
entre os séculos XX e XXI, ver Lima (2005).

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Anexo
Quadro genealógico da família Costa

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306 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

Quadro genealógico da família Duarte

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Anexo 307

Quadro genealógico da família Campos

Continua

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308 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

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Anexo 309

Mapas de Jurujuba

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310 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

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Anexo 311

Mapa do Estácio

Fonte: Google Maps.

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312 Três famílias — identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares

Mapa de São João de Meriti e Éden

Fonte: Google Maps.

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Anexo 313

Mapa de São João de Meriti

Fonte: Google Maps.

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