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Análises Sociais
Contemporâneas
TrêsFamílias
Identidades e Trajetórias Transgeracionais
nas Classes Populares
ISBN — 978-85-225-1580-6
Copyright © Luiz Fernando Dias Duarte e Edlaine de Campos Gomes
1a edição — 2008
Inclui bibliografia.
Introdução 9
2 A família Costa 59
3 A família Duarte 95
Anexos 305
Quadro genealógico da família Costa
Quadro genealógico da família Duarte
Quadro genealógico da família Campos
Mapas de Jurujuba
Mapa do Estácio
Mapa de São João de Meriti e Éden
Mapa de São João de Meriti
os dois membros do casal Costa ainda estão vivos, ainda que muito idosos e
alquebrados).
Assim, não se trata, neste livro, de produzir uma etnografia densa de cada
um desses casos, com o exemplar efeito monográfico tão essencial para a refle-
xão antropológica. Essa tarefa exigiria a produção de três livros diferentes (que
podem, quiçá, vir a ser escritos em algum tempo vindouro). As informações
trazidas à consideração do leitor são as que mais pareceram iluminar a questão
analítica central, embora seja essa uma fronteira claramente arbitrária. Consi-
derações de ordem prática, como as da limitação ao tamanho de um livro, cer-
tamente prevaleceram aí, mais do que a possibilidade de separar claramente
os dados etnográficos pertinentes e impertinentes para o argumento central.
Como sempre em antropologia, o pressuposto de uma íntima conexão entre
todas as dimensões de cada caso de experiência humana permanece pulsante,
alertando para o risco das pré-construções e vieses analíticos.
A informação etnográfica é díspar entre os três casos por diversas razões.
A primeira é que a família Duarte foi observada a partir do foco de duas ge-
rações passadas, cujos membros já se encontravam quase todos falecidos no
começo dos anos 2000. Os dados foram assim obtidos num confronto entre as
memórias pessoais do pesquisador e as de alguns outros membros de sua gera-
ção (a terceira) e da seguinte, a partir de um trabalho conjunto sobre o acervo
de fotos da família (e a rememoração da experiência social passada, assim
suscitada). É também essa família bem menor em tamanho do que as outras
duas, no âmbito de filiação e geração privilegiado. A família Costa é retratada
a partir de um trabalho mais convencionalmente “etnográfico”, decorrente de
um longo contato de pesquisa e convivência de L. Duarte com um espaço so-
cial distante do seu próprio e concentrado em uma série de anos das décadas
de 1970 e 1980 e de outra série desta primeira década do século XXI. O casal
de referência concentra muito o acesso do pesquisador ao universo social do
campo (com a exceção do período de seis meses em que o pesquisador residiu
no bairro, no ano de 1976, e das diversas saídas de pesca de que participou
naquela época). A família Campos é apresentada também numa situação con-
temporânea, embora o casal fundador já tivesse falecido à época do início
da pesquisa. E. Gomes pertence à terceira geração da família e pôde, assim,
combinar suas memórias pessoais com uma atitude sistemática de observação
e entrevistas. Trata-se de uma família muito mais numerosa do que as outras
duas, o que implica um volume de dados correspondentemente maior.
Duas das três casas axiais encontravam-se, nos seus respectivos períodos de
observação, muito melhor protegidas da violência do que a maior parte das
zonas residenciais de classe popular urbana, sobretudo nas últimas décadas,
em relação ao caso mais contemporâneo. A terceira casa acompanhou mais de
perto o adensamento populacional das áreas pobres da Baixada Fluminense,
encontrando-se assim mais próxima dos cenários de violência, sem fazer par-
te tampouco de algum de seus mais dramáticos epicentros. Em apenas dois
dos casos pode-se reconhecer, na linhagem central ou em suas proximidades,
alguma presença do que é chamado, no modelo marxista, de lumpemprole-
tariado, embora esse limite também possa se apresentar nas franjas colaterais
mais distantes da terceira rede de parentesco em questão. Mesmo que as ca-
sas tenham-se tornado progressivamente vizinhas de favelas ou de periferias
muito pobres, com todas as implicações físicas e morais dessa proximidade na
vivência popular contemporânea, a tendência prevalecente foi a sua distinção
ou afastamento dos limites mais baixos da precariedade (e, eventualmente, da
indignidade) da reprodução social. No contexto da associação prioritária, hoje
prevalecente na “opinião pública”, da imagem dos bairros populares com a
marginalidade e a violência, em função de condições graves, notórias e muito
generalizadas de convivência com uma violência cotidiana e sistêmica aí pre-
dominantes, este trabalho contribui para a visibilização de núcleos familiares
e formas de reprodução que são majoritariamente distantes daquela imagem.
Para a maioria dos personagens aqui aportados, apresentar certa “dignida-
de” moral, apesar das duras dificuldades enfrentadas, parece ser um ponto
de honra suadamente defendido. As poucas exceções a esse padrão acabam
muitas vezes por ser relidas ou reelaboradas naqueles moldes (inclusive por
vias religiosas). De qualquer forma, embora o objetivo do trabalho não seja
etiquetar as unidades familiares aqui analisadas, proceder-se-á a uma revisão
dos modelos que se acaba de evocar, de modo a melhor ressaltar algumas pro-
priedades desses perfis sociais.
O problema da modelização ou classificação dos diversos segmentos,
camadas, classes ou grupos sociais nas sociedades ocidentais modernas tem
sido um dos mais permanentes desafios do pensamento social desde o sé-
culo XVII, legado com grave peso às ciências sociais emergentes no século
XIX. A dissolução do “antigo regime” das sociedades européias, caracterizado
essencialmente por estamentos de status atribuído, cedeu lugar a uma nova
configuração em que a possibilidade relativa de aquisição de novos status se
colaterais das primeiras gerações, ou mesmo contraparentes que não será di-
fícil localizar, apesar de sua ausência nos quadros do anexo.14 A tensão entre
informação básica, externa, de “localização” dos fenômenos aqui trabalhados
e a visão interna das relações reais, vivenciais, de família e parentesco em cada
uma de nossas unidades também não reduz a importância de alguns outros
anexos objetivantes, como os mapas aqui apresentados. Em muitos momentos
é inevitável deixar transparecer a ilusão de um observador abstrato, universal.
Sem essa objetivação, nos perderíamos na mera constatação fenomenológica
de uma justaposição de experiências parciais — a que corresponde apenas
uma dimensão da vida de nossos observados. Espera-se que essa linha instá-
vel aqui construída possa desenhar um horizonte heurístico mais amplo em
torno dos fenômenos observados e ensejar contornos inspiradores para outros
alheios e futuros desenhos.
O compromisso com uma objetivação das experiências observadas e ana-
lisadas implica assumir uma visão “realista” da dimensão simbólica fundado-
ra da condição humana (uma cultura, uma ordem simbólica, um sistema de
significação etc.), só em relação à qual as ações, interações, fluxos e eventos
podem emergir como significativos. Opõe-se tal visão às tendências empi-
ristas e nominalistas contemporâneas que buscam sustentar a possibilidade
de uma invenção etnográfica exclusivamente fundada nas formas fenomenais
mais imediatas, tais como as que se manifestam nos atos e formas interativas e
comunicacionais. O estatuto das diferenças reconhecidas, construídas e obje-
tivadas em quaisquer níveis da vida social é tanto mais complexo, imprevisível
e desafiador quanto se considere que essa ordem simbólica abrangente a partir
da qual se erigem nem é totalmente consciente, nem é totalmente integrada
ou unívoca. Isso significa pressupor que pode haver tensões e contradições
entre diversas dimensões da experiência social, sem que elas surjam apenas da
superveniência de graves desafios externos à sua dinâmica própria, mas que
estejam contidas em sua própria ordenação “principial” — como as de que
trata Sahlins (1985), nos dois níveis. O estatuto não-consciente de dimensões
estruturantes da lógica cultural que sustenta uma determinada ordem simbó-
lica concreta não significa que os sujeitos sociais sejam meros marionetes de
forças ocultas, e sim que a não-transparência das motivações de seus valores
e atos lhes faculta certas condições de agência e de reflexividade, e não outras
(diferentes em função justamente das características do agenciamento sim-
bólico englobante e de suas formas estabilizadas de objetivação). Quaisquer
Notas
1
Os autores adotaram algumas convenções um tanto arbitrárias para permitir a re-
dação de um trabalho conjunto, baseado no entanto em experiências etnográficas
conduzidas em separado por cada um deles. Assim, as partes comuns serão as-
sumidas por um ente bifronte chamado alternativamente de “os autores” ou “os
pesquisadores”, conforme se enfatize mais o texto final ou o processo investigativo
subjacente. As referências a informações, interpretações ou experiências específicas
de cada um dos autores serão apresentadas em terceira pessoa: L. Duarte ou E. Go-
mes. É uma solução um tanto estranha para os próprios “autores”, mas lhes pareceu
mais conveniente para a construção da narrativa do que compartimentar o texto em
segmentos de autoria comum ou individual.
2
Duarte, 2005b, 2006a, 2006b, 2006c e 2007; Duarte et al., 2006; Gomes, 2006a,
2006b e 2006c; Natividade e Gomes, 2006.
3
Também deve ser reconhecida a importância da interlocução com os participantes
de diversos encontros científicos realizados nesse período por iniciativa ou com a
participação de L. Duarte e E. Gomes.
4
O horizonte de pesquisa que resultou neste livro tem muitos pontos de contato
com a proposta de Pina Cabral e Lima (2005) de uma “história de família” como
método de análise socioantropológica específica, sobretudo do ponto de vista da
íntima imbricação entre família e casa.
5
Há uma longa tradição de reconhecimento antropológico das mudanças que ocor-
rem na auto-imagem dos sujeitos sociais ao longo de suas trajetórias e cujo exem-
plo mais clássico ainda é o de Mintz (1960). As críticas de Latour e de Boltanski
à “sociologia crítica” de Bourdieu, em que os sujeitos não podem se reconhecer
nos relatos analíticos, interpretativos, só fazem sentido no contexto radicalmente
empirista em que se formulam as problemáticas desses autores e em relação ao tipo
de situação e de agência por eles privilegiados — os segmentos sociais altamente
reflexivos das elites ocidentais, em situações de controvérsias e justificações em que
os saberes eruditos dessa mesma cultura desempenham papel crucial.
6
Um importante ramo da psicanálise francesa contemporânea, comprometida com
o que chama de “transmissão transgeracional” (que se constrói em diálogo com a
“terapia sistêmica” de origem anglo-saxã), vem produzindo análises de grande inte-
resse sociológico. As informações de que dispõem os psicanalistas sobre a vivência
da trama familiar são muito diferentes, no entanto, das que pode produzir a pesqui-
sa antropológica. De qualquer modo, o diálogo com essa corrente está subjacente à
formulação do interesse na transgeracionalidade presente neste trabalho (ver Kaës,
1993; Ancelin-Schützenberger, 1997; Tisseron, 1999; Attias-Donfut, 2000). A so-
ciologia francesa contemporânea que se ocupa de fenômenos equivalentes repousa,
no entanto, quase exclusivamente sobre a experiência das classes médias, o que a
torna menos estratégica para este estudo (ver Muxel, 1996; Coenen-Huther, 1994;
Déchaux, 1997; Segalen, 1991; Singly, 2001a, 2001b e 2001c).
7
Gomes e Natividade, 2006.
8
Mintz, 1960; Pollak, 1990.
9
Os riscos de um “populismo” epistemológico que sempre cercaram o empreendi-
mento antropológico no trato com os segmentos dominados ou englobados das
sociedades ocidentais parecem hoje rondar algumas aplicações ou extrapolações do
“perspectivismo etnológico”.
10
Sahlins, 1996.
11
Strathern (1992b) refez essa crítica em termos quase homólogos e, aparentemente,
sem conhecimento da crítica de Dumont, apesar de ambos partirem de horizontes
epistemológicos antípodas.
12
Trata-se de um processo homólogo ao da construção da gramática (ou de um glos-
sário escrito) de uma língua ágrafa. Embora se trate de uma formalização estranha
à vivência nativa, ela é imprescindível para qualquer tipo de trânsito cultural a ser
estabelecido regularmente entre os falantes de duas línguas diferentes (e diferente-
mente vivenciadas).
13
Schneider, 1968.
14
É necessário desde já explicitar algumas convenções aqui utilizadas. A categoria
“família” estará sendo utilizada quase exclusivamente num dos seus sentidos “nati-
vos”: o de “família extensa” ou de “rede familiar” (“parentela” ou “grupo de paren-
tesco”). Eventualmente haverá referência às “unidades domésticas” como “núcleos
familiares” (por força da categoria analítica de “família nuclear”). A categoria “rede”
será utilizada para designar o quadro mais amplo da relacionalidade de cada “famí-
lia”; a categoria “linhagem” designará o conjunto dos descendentes (e seus respecti-
vos afins) de um determinado ego dentro da rede; e a categoria “ramo” designará o
conjunto dos membros de uma “linhagem” do ponto de vista de sua contraposição
aos demais. Chamar-se-á de “colateral” a linhagem descendente de outro membro
das fratrias dos ascendentes de algum ego, e de “primo” o membro individual den-
tro do conjunto dos “colaterais”. Será feita menção, menos freqüente, a “contrapa-
rentes”, ou seja, os parentes dos afins em cada linhagem. O uso dos nomes próprios
ocorrerá apenas em relação aos personagens da primeira e da segunda geração. Nas
subseqüentes será feita apenas a localização pela linhagem ou ramo e pela ordem na
fratria, de modo a não sobrecarregar a atenção do leitor com uma galeria nominal
excessiva, nessas que são as mais numerosas gerações.
15
Sobretudo nos casos mais recentes que se apresentem como tendo resolvido — ain-
da que apenas retoricamente — o problema da “dicotomia” entre “indivíduo” e
“sociedade”, falsamente apresentado como uniforme e estável em toda a tradição
antropológica precedente.
16
Segundo Strathern (1987:19) “we need to have some sense of the productive activity
which lies behind what people say, and thus their own relationship to what has been said.
Without knowing how they ‘own’ their own words, we cannot know what we have done in
appropriating them”.
17
Strathern (1987:18) busca distinguir entre “reflexividade” e “autoconsciência”:
“there is a tendency to equate reflexivity with heightened self-consciousness, and thus
to regard it like a personal virtue, which this or that sensitive person displays in their
writings”. Nesse caso, querem os autores sublinhar realmente a dimensão de “auto-
consciência” implicada em uma pesquisa desse tipo — seja qual for a “virtude” aí
envolvida.
A p e s q u i s a n a p r ópria sociedade
( e s o b r e a p r ó pria família)
De te fabula narratur...
E ste trabalho tem como uma de suas características o fato de que, das três
famílias aqui analisadas, duas correspondem às famílias dos próprios auto-
res. E. Gomes é membro de um ramo socialmente ascendente da rede familiar
aqui analisada como a família Campos, seus parentes matrilaterais. L. Duarte
também é membro de um ramo socialmente ascendente da rede que aqui
porta o seu sobrenome paterno. A referência imediata à condição de mem-
bros de “ramos ascendentes” não visa engrandecer os autores em relação a sua
parentela de classe popular (o que, embora legítimo, não seria razoável num
trabalho como este), mas deixar desde logo claro que a condição de autoria
intelectual de uma análise desse tipo dependeu de uma condição de prévio
distanciamento, ambíguo e complexo — não sem implicações para o formato
do trabalho realizado.
A possibilidade de formalizar numa pesquisa sistemática a convivência
com ramos das próprias famílias dos autores, incorporando a complexa in-
formação vivida aí num registro pessoal, surgiu paulatinamente, no decorrer
do projeto sobre “família, reprodução e ethos religioso” em que, juntos, traba-
lhavam. A pesquisadora aportou, a partir de determinado momento, dados
de sua própria família para iluminar, nas discussões, alguns dos tópicos de
interesse comum, o que foi suscitando da parte de L. Duarte uma crescente
curiosidade sobre essa rede em que se apresentavam tantos dados e dimen-
sões esclarecedoras. A partir de certo momento, ocorreu-lhe sugerir que a
pesquisadora passasse a pesquisar explicitamente a própria família, apesar das
seus sentimentos, assim como o fizeram refletir sobre os seus próprios na re-
lação com eles.6
Não chega a ser uma novidade a ativação dos contatos pessoais para
a abertura de redes que possibilitem a entrada em campo. Mas a família é
vivenciada como o reduto do privado, da proteção, do segredo em relação à
dinâmica do mundo externo. Investigar a própria rede familiar é um desafio,
pois pode colocar em risco essas características. No entanto, esta não foi a
impressão inicial de E. Gomes quando das primeiras conversas com L. Du-
arte sobre os direcionamentos da pesquisa sobre família, reprodução e ethos
religioso. Essa via foi por ela sempre considerada de extrema relevância para
a compreensão do campo religioso brasileiro atual. A inserção original numa
ampla rede familiar de origem popular da Baixada Fluminense, com caracte-
rísticas expressivas das mudanças ocorridas nas últimas décadas no panorama
religioso, pareceu-lhe imediatamente um caminho profícuo e digno de análise.
A própria trajetória intelectual da pesquisadora, direcionada para a antropolo-
gia da religião, possibilitou a realização dessa investigação. Desafio múltiplo,
por acionar mecanismos de defesa que partem dos diferentes posicionamentos
localizados na própria rede e na academia, em níveis diferenciados, de acordo
com a posição do próprio pesquisador nesses espaços. Em outras ocasiões, já
havia acionado membros de sua rede familiar, vizinhos e amigos como infor-
mantes. A então novata assistente de pesquisa serviu de elo entre os pesqui-
sadores seniores e seus objetos de pesquisa por ser quem era: originária da
Baixada Fluminense e das camadas populares, por associação, ainda que inte-
grante de um ramo ascendente de sua rede familiar. Essa região (assim como
as favelas e áreas suburbanas consideradas como “periferia”), enquanto lugar
de efervescência religiosa e ao mesmo tempo distante das áreas de prestígio so-
cial e acadêmico do Rio de Janeiro, sempre obteve atenção das ciências sociais.
O acesso foi facilitado pela emergência de alunos universitários provenientes
de áreas periféricas da cidade — movimento também efervescente a partir da
metade dos anos 1980 —, impulsionada particularmente pela experiência ju-
venil nos diversos movimentos sociais que proliferavam à época. Inicialmente,
eles eram percebidos como “informantes privilegiados”, pois supostamente
teriam experiências anteriores que os habilitavam a compreender e a dar mais
agilidade ao campo. Estudar o próprio território ou o seu próprio grupo so-
cial era uma injunção que balizava as primeiras experiências de pesquisa de
muitos dos estudantes da geração de E. Gomes — e das seguintes. O status
de familiar e pesquisadora, servia quase que como motor para a evocação dos
posicionamentos religiosos. A pesquisa acabou ocupando espaços significa-
tivos da vivência familiar da pesquisadora. A antipatia para com os “crentes”
— considerados os “outros” da relação — era tida como um sentimento com-
partilhado por todos ou, pelo menos, um sentimento parecido.
A permanência em constante “estado etnográfico”, hábito adquirido nos
anos de pesquisa em religião, funcionou como um termômetro da conexão
estabelecida externamente entre o tema, a pesquisadora e a família. O plu-
ralismo estava lá, rejeitado por uns e comemorado por outros. A emergência
das novas opções religiosas estava nas conversas, intrigas e fofocas, mesmo
antes de a pesquisadora tentar objetivá-la. Durante muitos anos, houve receio
de que o trabalho junto aos pentecostais pudesse transformar-se em adesão
religiosa. Na verdade, as duas dimensões se confundiam para aqueles que
não compreendiam o ofício do antropólogo. A imersão em campo, com idas
freqüentes às igrejas e contatos constantes com integrantes dessas confissões,
sempre foi percebida como um risco pela família nuclear de origem da pesqui-
sadora, originalmente católica e capitaneada pela filha mais velha do casal ori-
ginal dos Campos, que detém a posição de transmissora dos valores familiares
(incluindo os religiosos, fundados no catolicismo). Em diversas oportunida-
des, a antipatia pelos evangélicos em geral, e pelos pentecostais em particular
— expressa abertamente por aquela liderança —, foi enfatizada como meio
de demonstrar a insatisfação com — ou a quase impossibilidade de aceitação
de — uma possível conversão de sua prole. Quando se tratava de entrevistas
ou conversas estabelecidas em torno dos objetivos da pesquisa, havia relativi-
zações acerca da positividade das conversões, que afinal teriam surtido efeito
regulador sobre os “crentes”, os quais reconhecidamente teriam mudado suas
trajetórias, antes desviantes (em relação a alcoolismo e transgressões sexuais,
sobretudo).
Extrapolar a dimensão do pluralismo religioso intrafamiliar, buscando
analisar outros aspectos das condições diferenciais de reprodução, como tra-
balho, instrução, cor e preconceito, violência, estratégias reprodutivas, mani-
festações explícitas de “diferenciação” social, entre outros, acirrou o processo
reflexivo (ou de autoconsciência...) da pesquisadora.
A relevância maior da família em relação à pesquisadora-nativa estava na
retomada de laços de proximidade. Estes são acompanhados de uma série de
prestações e contraprestações. A (re)inserção na família, promovida pela pes-
zada não tinham sido objetivadas em nenhum outro momento. Esse “dar-se
conta” do seu próprio papel no arranjo familiar permitiu uma complexificação
da reflexão sobre os dados. Houve uma sensação prazerosa de vivenciar uma
aproximação, de rever pessoas ou conhecer as novas gerações. Mas a aproxi-
mação se deu no âmbito de uma pesquisa, o que enseja uma experiência tanto
de membro da família — mesmo que distante da rede mais ampla — como
de antropóloga.
A leitura da produção também fez e ainda faz parte dessa interação. Tão
logo foi publicado, o primeiro artigo com os resultados da pesquisa despertou
interesse entre os familiares mais íntimos. Após o lançamento, a pesquisado-
ra hospedou-se na casa de um irmão que morava mais próximo do local do
evento. A primeira atitude dos presentes foi pegar o livro e verificar se nele
constavam informações secretas sobre parentes. Trechos foram lidos em voz
alta, diante de todos, incluindo a pesquisadora. O desejo era se reconhecerem
nas situações e falas apresentadas no artigo. Nele não constavam nomes e se
evitou elaborar descrições muito precisas, já que se tratava de análise de temas
ligados à sexualidade e reprodução. Um “inquérito” foi realizado pelos presen-
tes. E. Gomes teve que responder a vários questionamentos: uns mais ligados
à fofoca, outros mais à vergonha diante do tema tratado. Por exemplo: “mas
você disse essas coisas aí? Que vergonha!!”, disse uma tia que, em entrevista,
confessou que nunca conversara sobre sexo com suas filhas, pois elas “apren-
deram na escola, na televisão e com as amigas”. Apesar de, à época da entrevis-
ta, estar ciente da utilização das informações, ela se sentiu constrangida — e a
pesquisadora também. Esta voltou a explicar os objetivos da análise: não era
para expor as pessoas a fofocas, mas para saber como, ou se, a religião molda
o comportamento sexual e reprodutivo das pessoas. Apesar de entenderem
formalmente a explicação, a dinâmica fofoca-vergonha prosseguiu.
O desafio antropológico de trabalhar com a própria família extrapola
os limites do trabalho de campo realizado, por exemplo, na cidade, como
na antropologia urbana. Pesquisar o “próximo”, ou de “dentro”, como sugere
Magnani (2002), é algo que em termos cognitivos, afetivos e espaciais se insere
nos limites do que se chama de “familiar” em seu sentido genérico. O limite
se rompe quando a abordagem parte da análise da própria família. Em nosso
caso, não só em relação ao objeto de pesquisa que está próximo, em termos
afetivos ou espaciais, como na antropologia urbana ou numa antropologia das
sociedades complexas, mas também pelo fato de o tema ser a “família”. Falar
da própria família é quase uma profanação, é expor aquilo que há de mais sa-
grado e pulsante, paradoxalmente, no discurso moderno. É nela que os temas
mais críticos e privados se ancoram: sexualidade, conjugalidade, afetividade,
decisões reprodutivas, religião. A família como “crucialidade e intensidade
próximas a uma religiosidade” estabelece — assim como a religião — uma
mediação entre o público e o privado, como acentua Duarte (2006). Família,
lugar de segredo, reduto daquilo em que a sociedade não interfere ou que não
se revela. Lugar privado/sagrado, por isso tabu por excelência na sociedade
moderna. Observar de dentro e expor o que deveria estar circunscrito a uma
redoma de névoa, que permite a visão externa mas não revela suas nuanças,
seria uma subversão total do método antropológico, que pressupõe, em algu-
ma medida, a capacidade de designar um “outro”, estranhá-lo, fazê-lo pró-
ximo e, em seguida, objetivá-lo de forma que possa ser “de fato” conhecido.
Acusação quase religiosa, já que aciona a tradicional relação/oposição entre
“conhecimento” e “experiência”.
Não é descabido evocar em tal contexto o modo como se constrói uma
questão análoga nas narrativas de ficção em nossa cultura. Uma reflexão siste-
mática sobre a relação dessa “invenção” com a experiência biográfica do autor
estabeleceu-se desde o final do século XVIII (veja-se o oitocentista “madame
Bovary c’est moi” de Flaubert) e não deixou de influenciar as recentes correntes
do pensamento antropológico dedicadas a refletir sobre a condição do “antro-
pólogo como autor” e sobre as relações entre o texto etnográfico e as condições
da subjetivação em seu trajeto acadêmico.13
A questão do “distanciamento” está tão presente nos estudos externos
quanto nos que se dedicam às próprias redes, sobretudo familiares. A imagem
de um compartilhamento homogêneo das informações no interior de uma
família ou de uma rede de parentesco é certamente ilusória. Cada unidade
doméstica, cada fratria ou cada relação diádica componente dessa trama po-
dem dispor de um acervo de informações sobre si mesmos ou sobre os outros
que lhes é próprio e que não extravasa para os demais parentes. Fluxos de
segredo ou de “não-ditos” são aí tão palpáveis quanto os fluxos do comparti-
lhamento. Além do mais, as propriedades diferenciais de posição de cada um
desses elementos tende a lhes ensejar um ponto de vista sobre os demais que
não é perfeitamente claro para todos. Também aqui a ilusão de um ponto de
vista absoluto sobre os “nativos” se revela em toda sua crucialidade, até mes-
mo por se dar num lugar social onde o máximo de percepção comum parece
então prevalecentes.14 Isso não deixava de ser parte da verdade, mas pôde ser
— anos mais tarde — complementado pela percepção das ressonâncias de
uma investigação sobre a ambigüidade sociológica de sua formação.
A pesquisa de campo impõe, no entanto, um regime de objetivações que
permite — felizmente — extrapolar ou metamorfosear, em alguma medida,
as condições subjetivas originárias. O mesmo não ocorre com a reflexão co-
tidiana sobre essas mesmas condições, ainda que longamente auxiliada pelos
mecanismos amplificadores da autoconsciência propiciados pela experiência
psicanalítica. As memórias e as dúvidas sobre os detalhes, pormenores, ênfa-
ses e inflexões das trajetórias das duas famílias sempre permaneceram como
um tema reflexivo digno de investimento privado. Evidentemente, essas preo
cupações ou incitações (uma “vontade de saber” — bem se poderia dizer,
no seu sentido tanto psicanalítico quanto foucaultiano) estiveram em diálogo
com muitas outras dimensões da carreira acadêmica do pesquisador — sem
que seja esse o motivo pelo qual essas questões são aqui evocadas. Com efeito,
diferentemente do rico desenvolvimento que deu Bourdieu à questão da “ob-
jetivação participante” — já antes evocada —, não é o objetivo dos pesquisa-
dores neste livro refletir sobre o modo pelo qual o habitus decorrente de suas
condições sociais de origem pôde ensejar a análise aqui empreendida — ou
qualquer outra parte da obra de cada um dos autores. Trata-se, isto sim, de
“objetivar” diretamente a própria experiência familiar, encapsulando-a numa
“pesquisa” mais ou menos formal, tendo em vista uma comparação entre os
processos de identificação transgeracional aí envolvidos.
Para tanto, porém, é necessário proceder a essa sempre parcial explicita-
ção do leito subjetivo sobre o qual se adensou o fluxo de tal empreendimento.
Diferentemente de E. Gomes, o pesquisador nunca tinha feito uso explícito de
informação sobre a experiência social de sua família ao decidir-se por essa via,
no decorrer da pesquisa que aqui desemboca. Inicialmente, a tarefa lhe pare-
ceu fascinante e relativamente fácil, até mesmo porque se daria de modo mais
indireto — histórico, por assim dizer — do que no caso de sua colega. Além
do mais, podia dispor do recurso do arquivo digitalizado das fotos de família,
recém-terminado. Ao começar as conversas/entrevistas com os poucos paren-
tes sobreviventes da terceira geração, surpreendeu-se não só com a quantidade
de informação que objetivamente ignorava sobre a vida de seus ascendentes
e colaterais paternos, mas também com a diferença dos registros e dimensões
dessa memória entre esses primos. Também cresceu a preocupação com a di-
mensão ética da exposição dessas informações numa obra pública, mesmo que
tivesse sempre procurado deixar claro que seu interesse em suas memórias
— além de afetivo — era também profissional. Duas primas foram particu-
larmente receptivas (juntamente com o marido de uma delas). Uma terceira
prima, de quem os demais núcleos da família se encontravam mais afastados
devido a uma série de circunstâncias até hoje pouco claras para o pesquisador,
pareceu extremamente cordial no primeiro contato, marcado com antecedên-
cia por telefone, em que também esteve presente seu marido. Através dela
pude saber um pouco mais sobre sua linhagem (que inclui um irmão e seus
descendentes, igualmente afastados há algum tempo das demais linhagens).
No entanto, logo na semana seguinte, ao trocar mensagens eletrônicas com
sua filha, que me enviara fotos de família escaneadas em seu escritório, foi a
comunicação interrompida sem qualquer explicação ou justificação. Parece
ao pesquisador que, feita por escrito, a referência à dimensão profissional da
pesquisa se tornara mais palpável e viera a incomodar esse ramo dos parentes,
interferindo talvez na expectativa de um reatamento de laços exclusivamente
afetivos ou evocando sentimentos negativos de outros tempos ou de outra or-
dem. O pesquisador não insistiu no contato nem procurou esclarecer o caso,
que lhe pareceu capaz de produzir um desgaste emocional ainda maior entre
as partes. Havia ali certamente alguma diferença de “atividade produtiva” a
empanar o fluxo dos sentidos.
Tal episódio parece revelador do modo como esse tipo de pesquisa pode
envolver negociações tão ou mais duras e complexas do que as que se dão
normalmente entre desconhecidos trazidos ao contrato a termo de uma pes-
quisa. Mostra, sobretudo, como o acervo transgeracionalmente acumulado de
identificações e afetos pode incluir poderosos sentimentos negativos que a
situação de pesquisa faz rebrotar na forma familiar (no duplo sentido) dos
ressentimentos e mágoas. A experiência com seus parentes mais próximos,
seus irmãos mais moços, seu cunhado e seu filho, revelou, por outro lado,
quão distante a história da família Duarte se lhes afigurava. A leitura de al-
guma versão preliminar do capítulo 3 despertou simpatia e curiosidade, mas
não suscitou qualquer participação ativa na pesquisa — pela óbvia razão de
que, por força de sua posição geracional, pouco tinham participado daquela
dinâmica. Por outro lado, sua atitude também revelava quão mais fortemente
se identificavam com a família materna do pesquisador, em cujo contexto se
tinha desenrolado fundamentalmente sua experiência de vida.
Uma das muitas reflexões que podem ser assim ensejadas, no caso de
uma pesquisa com as características desta, é relativa à “propriedade” dos “da-
dos” sobre uma família. O modelo ocidental das relações de “propriedade”
como institutivas da identidade dos sujeitos25 reaparece aqui sob a forma de
uma ambigüidade entre a identidade abrangente, diferenciada e complexa de
uma rede familiar e a capacidade de algum de seus membros de dispor da me-
mória desse conjunto como se fosse especificamente sua (ou, pelo menos, de
sua versão a esse respeito). Na impossibilidade de romper com uma contradi-
ção intrínseca à nossa cultura, os autores assumiram que alguns “indivíduos”
estratégicos poderiam “autorizar” a exposição dos dados de suas famílias num
trabalho como este. No caso da família Costa seguiu-se a representação nativa
da autoridade inconteste de seu chefe, por mais idoso e adoentado que esteja.
Em relação a suas próprias famílias, a questão se colocava de maneira ainda
mais acendrada, já que — como membros da própria rede observada — não
tinham por que não se considerarem autorizados a falar sobre “suas” próprias
famílias. As informações dadas e as negociações estabelecidas com alguns pa-
rentes da família Campos e da família Duarte deveram-se assim a uma atitude
híbrida de “respeito ao informante” e recurso de evitação de uma crise intrafa-
miliar causada por constrangimentos e pelo quase inevitável circuito da “fofo-
ca” que pode ser acionado com a exposição de fatos e ações de determinados
integrantes das respectivas redes.
Hoggart (1973) nos falava de uma nostalgia deformadora, ativa nesses
processos de “visitação da casa paterna”. Aqui, ambos os autores têm consci-
ência de que efetivamente algo da ordem da nostalgia tinge parte de sua dis-
posição e de sua produção em torno da pesquisa com suas próprias famílias.
L. Duarte tem certeza de que seu próprio trabalho de pesquisa em Jurujuba
— por mais distante que fosse originalmente de seu mundo social — sempre
foi atravessado por um profundo sentimento de nostalgia que ele acredita
compartilhar com boa parte de seus interlocutores locais. Tem certeza de ser
também uma parte fundamental de sua atitude afetiva geral em relação ao
mundo.
De qualquer modo, este livro busca refletir sobre as condições em que
as “mudanças” — essa precondição de qualquer esperança ou nostalgia — se
dão através de algumas gerações em famílias ancoradas originariamente na ex-
periência do mundo popular brasileiro. E as mudanças são como viagens para
longe daquilo que ficou, lá e cá, como memória ativa. Nada pode ser mais ca-
Notas
1
Uma das dimensões importantes dessa reflexão está lucidamente contida numa
observação de Narayan (1993:678) sobre a diferença do processo de conhecimento
antropológico quando se trabalha com a própria sociedade (e tanto mais com o
mesmo segmento social e com a “mesma família”): “in some ways, the study of one’s
own society involves an inverse process from the study of an alien one. Instead
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of learning
conceptual categories and then, through fieldwork, finding the contexts in which to ap-
ply them, those of us who study societies in which we have preexisting experience absorb
analytic categories that rename and reframe what is already known. The reframing es-
sentially involves locating vivid particulars within larger cultural patterns, sociological
relations, and historical shifts”.
2
Dumont (1985:219), talvez em função de sua preocupação central com os efei-
tos heurísticos da comparação pelos contrários, em que a sua “Índia” servia como
roteiro para uma relativização do seu “Ocidente”, manifestou-se freqüentemente
sobre os riscos de uma antropologia do próprio mundo social. Isso em duas dire-
ções: a primeira, relativa aos riscos epistemológicos, entranhados na possibilidade
de não obtenção de um suficiente estranhamento, pela ausência da comparação.
A segunda direção, de caráter mais cosmológico e político, enfatiza os riscos que a
generalização de uma relativização dos valores estruturantes de uma cultura podem
acarretar para sua própria sobrevivência. �����������������������������������������
Cita os efeitos desmapeadores da cultura
o que realmente fazia o North End funcionar daquele modo, e quais suas necessi-
dades”. Como ajudante do antropólogo, aprendeu métodos de pesquisa que foram
úteis em sua trajetória profissional e pessoal: “sim, Bill Whyte deu uma virada
completa em minha vida. Ele expandiu meu pensamento, para que eu pudesse
apreciar e entender melhor o North End”. Os dois se tornaram grandes amigos:
“conheci Bill e Kathleen quando tinha 20 anos de idade. Dentro de poucos meses
terei 62, e é esse o tempo que vem durando nossa amizade”.
8
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Geertz, 1974.
9
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Velho, 1978 e 2003.
10
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DaMatta, 1978.
11
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Houve também uma postura, muitas vezes mesclada à crítica metodológica, de
acionar um discurso psi aplicado à escolha “inquietante” do objeto. Foram dirigi-
dos os seguintes conselhos à pesquisadora: “ao invés de pesquisar a família, devia
fazer análise”; “tomar cuidado para não ficar muito mobilizada”; “cuidado com sua
exposição”, entre outros.
12
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Velho, 1994.
13
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A corrente chamada de “pós-moderna” nos EUA expandiu consideravelmente a
reflexividade sobre as condições da produção do texto antropológico, mas acabou
se voltando mais para sua condição retórica do que para sua condição de teste-
munho de uma experiência dialógica vital (ver Clifford, 1986). Há, por outro lado,
a tradição herdada de Bourdieu, que enfatiza mais esta segunda direção. São impor-
tantes também as reflexões sobre o que foi chamado na literatura de anthropology
at home, de “auto-antropologia” ou de “antropologia nativa”. Já foi aqui citado o
artigo de Strathern (1987), publicado numa coletânea dedicada inteiramente ao
último tema. Peirano (1998:61 e segs.) reviu a tradição internacional da anthropol-
ogy at home, destacando o distanciamento da produção brasileira de suas premissas
e horizontes, e propôs uma classificação de quatro vias diferenciais do estatuto
da “alteridade” na antropologia nacional. Um trabalho como este seria certamente
classificável como um exercício de “alteridade próxima”, nos seus termos. Sobre
“antropologia nativa” há um bom resumo no artigo de Narayan (1993:671) em que
ela questiona a possibilidade de jamais se qualificar algum antropólogo como um
autêntico insider, em função da complexidade das condições em que se pode ser
“nativo”.
14
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Nesse caso, diante da expectativa de constituição de uma antropologia marxista,
inseparável de algumas dimensões do estruturalismo, nada podia parecer mais
oportuno do que estudar in loco a mudança num bairro de classe trabalhadora.
15
Salem, 1985.
16
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A referência é explícita a um trajeto paradigmático da auto-reflexividade moder-
na posta a serviço de uma disposição de conhecimento universalista: a da “auto-
análise” de S. Freud.
17
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Segundo Bourdieu (2005:87), “a palavra não é mesmo muito forte para designar a
transformação intelectual e afetiva que me levou da fenomenologia da vida afetiva
(quem sabe derivada também das afeições e das aflições da vida, que era preciso
denegar com sabedoria) a uma prática científica que requeria uma visão do mundo
social mais distanciada e mais realista em seu conjunto�� ”�.
18
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Diz Bourdieu (2005:90): “todavia, eis a prova de que o trajeto heurístico também
tem algo de um percurso iniciático pela imersão total e pela felicidade dos achados
que lhe é concomitante: sucede uma reconciliação com coisas e pessoas das quais
insensivelmente me afastara por conta do ingresso em outra vida e as quais a pos-
tura etnológica obriga naturalmente a respeitar, os amigos de infância, os parentes,
suas maneiras, suas rotinas, seu sotaque. É toda uma parte de mim que me é devol-
vida, essa mesma pela qual eu me ligava a eles e a qual também deles me afastava,
porque eu só podia negá-la dentro de mim ao renegá-la, na vergonha deles e de
mim mesmo��� ”��.
19
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Duarte, 2006d.
20
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O pesquisador pensa reconhecer nessas manifestações a corroboração de sua hipó-
tese de que a experiência da familialidade em nossa cultura se reveste de caracterís
ticas assemelháveis às de uma religiosidade. A exposição desse sacrário íntimo
comporta o horror de uma profanação. Ver Duarte (2006a).
21
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Duarte, 1986, 1987a, 1987b, 1987c, 1999 e 2005b.
22
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A condição de pesquisador (enquanto professor universitário) nunca foi comple-
tamente absorvida pelo grupo local, nem mesmo pelos mais próximos e apesar
de terem em mãos um exemplar de meu livro sobre a pesca local. No começo da
relação, a condição de “professor” levou a uma demanda de ajuda nos estudos das
crianças — o que foi feito de modo assistemático, mas inesquecível para todos até
hoje. A expectativa de uma possível denúncia das condições da vida dos trabalha-
dores ali conhecidos (na pesca, na indústria enlatadora ou na indústria metalúr-
gica) freqüentemente se impôs, com a assimilação da identidade do pesquisador à
de um jornalista.
23
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Segundo Strathern (1987:20), “ultimately the use anthropologists make of their data is
for ends also of their own making. In this sense anthropology domesticates an exogenous
world, making new uses for materials originating under quite different circumstances, and
thereby encompassing the different uses which people have for the way they live their lives.
Such encompassment is experienced as exploitation when people perceive that others have
the power to turn data into materials whose value cannot be shared or yielded back to
them in return”.
24
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Com os originais deste livro quase prontos, resolveu o pesquisador — como já
dito — apresentar o capítulo 2 ao juízo de seu informante principal. O texto foi
aprovado e mesmo elogiado por Humberto Costa, que acompanhou toda sua lei-
tura (com a presença de um dos filhos durante algum tempo). Esse recurso pareceu
eticamente necessário ao pesquisador, sem que qualquer dos problemas evocados
tivesse sido, com isso, esconjurado. A acolhida foi favorável por se inserir na longa
e intensa relação do pesquisador com a família Costa, mais do que por sua ime-
diata faticidade, fidedignidade ou veracidade. Por outro lado, Humberto contou
mais uma vez ao pesquisador, durante essa “entrevista”, um episódio que retorna
com freqüência a seu espírito: quando se encontrava, anos atrás, na frente das
câmeras de uma rede de televisão, na rua principal do bairro, dando mais uma de
suas numerosas entrevistas sobre o bairro, aproximou-se um vizinho jovem, de
carreira desviante, e fez um comentário, alto e bom som, sobre a possibilidade de
Humberto estar mentindo sobre sua própria vida. Pareceu significativo que esse
episódio — que o magoou particularmente — tenha reemergido no momento em
que o pesquisador lhe fazia a leitura de sua versão do que tinha sido sua vida. De
algum modo, creio que — apesar da intimidade e delicadeza de alguns detalhes
— a colocação por escrito desse relato possa ter-lhe parecido produzir um efeito de
“verdade” útil para sua própria identidade.
25
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Ver, sobre esta relação, de um ponto de vista mais histórico, Macpherson (1979) e
Capitan (2000). Dumont e Strathern se encontram entre os antropólogos que mais
diretamente refletiram sobre as implicações negativas desse traço ideológico para a
compreensão cultural comparada.
A f a m í l i a Costa
A primeira parte deste livro decorre da pesquisa de L. Duarte com uma famí-
lia de implantação imemorial no bairro de Jurujuba, município de Ni-
terói. A convivência com diversas gerações dessa rede familiar (fortemente
associada ao trabalho na pesca) ao longo de três décadas permitiu uma per-
cepção bastante densa dos processos identitários e trajetórias a partir da casa
da matriarca viúva, falecida ao final dos anos 1980, e do casal encabeçado por
seu filho mais velho, atualmente com mais de 80 anos.
A delimitação sociogeográfica de Jurujuba não é nada unívoca. A desig-
nação oficial abarca hoje todos os territórios da ponta de terra que fecha pelo
norte a boca da baía de Guanabara, entre a ponta da Tabaíba, na crista do mor-
ro da Viração, lindeiro à praia de Piratininga, e o pequeno saco de mar outrora
chamado de Furna do Gato e que hoje abriga o Clube Naval, dentro da baía
(entre a praia do Preventório e a ponta do Samanguaiá). A área chamada de
Preventório (onde hoje se instala a nova estação de transporte marítimo para
o Rio de Janeiro) não pertence oficialmente ao bairro de Jurujuba, embora o
hospital psiquiátrico ali localizado seja freqüentemente chamado de Hospital
de Jurujuba.1
A área onde hoje se situa o bairro de Jurujuba é dotada de algumas ca-
racterísticas físicas que tiveram considerável peso na conformação das con-
dições de existência e dos padrões identitários locais. O fato de ser uma es-
treita língua de terra habitável entre diversos morros, na parte interna da baía
de Guanabara mais próxima do oceano, não lhe permitiu o mesmo tipo de
construída entre 1666 e 1669. Outras construções coloniais ainda eram visí-
veis até recentemente, como o chamado castelo de Jurujuba, na atual estrada
Fróes, que foi sede do Iate Clube Brasileiro, incendiado durante a II Guerra
Mundial, por causa de sua predominante clientela alemã. No século XIX, a
região passou a ser muito associada à imagem do lazareto fundado na atual
praia do Preventório em 1851, substituído em 1853 pelo imponente Hospital
Marítimo de Santa Isabel, depois chamado de Hospital Paula Cândido e de
Preventório. A sobrecarga desse hospital, ocupado com as ocorrências marí-
timas e portuárias da febre amarela e do cólera, levou inclusive à instalação
de um lazareto flutuante no meio da enseada.6 A memória local desse antigo
hospital é atualmente confundida com a de um hospital psiquiátrico instalado
ao lado, já no século XX. Backheuser (1994:153) transcreve uma passagem
do Dicionário geográfico, histórico e descritivo do Império do Brasil (Paris, 1863),
de Milliet de Saint-Adolphe, relativa à área de Jurujuba, na década de 1840,
que menciona uma “população assaz numerosa, composta por pescadores,
fazendeiros e índios”. A forte presença indígena é freqüentemente ressaltada,
considerando-se que fossem descendentes dos que os jesuítas tinham atraído
para sua fazenda.7
A Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Várzea foi erguida, na área
que até hoje é conhecida por esse nome em Jurujuba, entre 1629 e 1667 e
incorporada à Ordem do Carmo em 1716,8 chegando a se constituir na sede
de uma extensa paróquia criada em 1861, como núcleo de uma nova freguesia
com o mesmo nome, que tinha sido demarcada em 1838.9 Foi por diversas
vezes abandonada, tomando a sua forma atual por ocasião da última restaura-
ção, terminada em 1969. A Igreja de São Pedro, tão importante para a identi-
dade atual do bairro, foi erguida em seu formato atual em 1947,10 no lugar de
uma capela mais humilde, construída pelos pescadores por volta de 1910. A
procissão de são Pedro, em que se carrega a imagem lá entronizada, realizava-
se originalmente por terra, desde 1901. Só em 1932, segundo informações
locais, veio a se transformar em procissão marítima.
A história da propriedade da terra parece ter sido muito complexa, à
exceção das áreas de ocupação popular mais antiga11 e de algumas das habita-
ções da elite, cercadas por extensos jardins.12 A habitação popular ocupou os
interstícios das grandes propriedades, onde se concentrou por muito tempo a
população sob a forma típica de uma aldeia caiçara — tal como a descrevem a
literatura e meus informantes mais antigos. A memória dos habitantes registra
por exemplo, a senhora conhecida como “Mãe Mulata”, que lhe ensinara a
arte de partejar e com quem compartilhara na juventude esse ofício essencial
numa comunidade tão distante dos recursos médicos antes da II Guerra (foi
ela quem fez o parto de seu filho Humberto). Essa memória da escravidão está
presente também no discurso deste último, que começa um de seus relatos
sobre a história do bairro fazendo menção ao fato de que ali viviam muitos ex-
escravos (“homens e mulheres”, sublinha ele). São peculiares essas memórias,
ao mesmo tempo aproximando e afastando esses vizinhos “ex-escravos”. Amé-
lia conta, por exemplo, que, por retirar-lhes os bichos-de-pé e cuidar-lhes dos
eventuais ferimentos, compravam-lhe (“para nhãnhã” — diz) garrafas de licor
de um doceiro italiano que por lá passava de vez em quando. Evoca também
o medo que tinham seus antepassados da “magia dos negros”, despertado por
uma história de aparição sobrenatural em volta de uma fogueira.
A personalidade pública de Amélia era associada sobretudo à sua condi-
ção de parteira principal do bairro durante décadas, atendendo até a distante
Pendotiba.28 No entreguerras participara de um treinamento sob a direção do
dr. Arnaldo de Moraes, importante médico carioca,29 com quem passou a ter
uma longa relação profissional — como ainda lembra com orgulho a família.
Essa relação a levou a participar de atividades ligadas à Legião Brasileira de As-
sistência e ao Hospital de Icaraí. Ainda há pouco, em 2007, foi realizada uma
cerimônia em memória de Amélia (e de sua benemérita atividade passada),
promovida pela Associação dos Moradores de Jurujuba, com a participação
dos alunos do colégio público local. Muitos dos habitantes mais velhos do
bairro ainda se consideram seus “filhos”, por terem sido por ela trazidos ao
mundo. À época em que ficava conversando à porta de sua casa, eram muitos
os que vinham pedir-lhe a bênção.
A verdade, porém, é que essa eminência de Amélia era também muito
ligada à sua condição de rezadeira local. Muito provavelmente, como era co-
mum no Brasil rural,30 as duas funções se complementavam. O pesquisador
chegou a presenciar algumas rezas feitas por ela na varanda de sua casa, com
crianças acometidas de diferentes mazelas. Não há notícia de qualquer outra
rezadeira no bairro desde os primeiros contatos de pesquisa na década de
1970. Isso tornava certamente ainda mais estratégica a função que ela aí de-
sempenhava.
Amélia fazia deslizar suas reminiscências muito tranqüilamente entre o
foco da família (tanto a de origem quanto a que constituíra) e o foco de suas
roupas brancas e uma insígnia com fitas vermelhas, que eram os distintivos
daquela congregação.
A relação com o catolicismo em geral e com a Igreja de São Pedro em par-
ticular é uma tônica também da segunda e terceira gerações. Nenhum de seus
membros, porém, faz qualquer referência a outras dimensões religiosas (salvo
num caso, ambíguo, como depois veremos). Segundo Amélia, havia uma for-
te resistência ao seu sincretismo, como era típico dessa linhagem dos Abreu
Costa. A casa de Humberto está hoje repleta de imagens e inscrições religiosas,
numa das quais se lê: “cuide de sua vida e deixe que Jesus cuide da minha”.
Além de vários crucifixos e imagens, há um grande pôster de santo Antônio de
Lisboa, três Santas Ceias (duas com pequenos relógios embutidos), um Bom
Pastor (também com relógio embutido), uma Santíssima Trindade em gesso,
uma folhinha com o Menino Jesus — tudo isso em meio a enfeites de diversos
tipos, fotografias emolduradas, aparelhos de televisão e de som, plantas natu-
rais e de plástico.31 Sobre uma estante na sala vê-se uma imagem da Virgem,
coberta por uma espécie de manto de renda. Segundo Humberto, trata-se de
uma dessas imagens itinerantes que levam a bênção aos lares.
Uma das razões para esse aparente recrudescimento devocional é talvez a
presença cada vez maior de evangélicos no bairro e no seio da própria família
extensa. Humberto foi o primeiro a me falar, já nos anos 2000, da conversão
à Assembléia de Deus de seu irmão Geraldo, a que se seguira a conversão
paulatina de sua mulher e de parte de sua grande descendência. Humberto
se queixa das diversas tentativas, por parte dos “crentes”, para convertê-lo ou
à sua linhagem. Dá a entender que não os prezava, por sua baixa escolarida-
de e precária condição social. Formula argumentos interessantes, que teria
anteposto a tais iniciativas de proselitismo: a Igreja Católica é mais antiga e,
portanto, mais séria ou justa do que “essas novidades” de duvidosa legitimi-
dade. Repete, assim, as costumeiras representações de uma parte da sociedade
brasileira sobre uma espúria confusão entre religiosidade e dinheiro nessas
denominações religiosas.32
Mas o catolicismo dessa linhagem não é apenas reativo, pois toda a fa-
mília sempre esteve estreitamente ligada à Igreja. Na festa de são Pedro, por
exemplo, Humberto exerce há décadas a função de pregoeiro do leilão, consi-
derado outrora um dos pontos altos das comemorações.33 Na referida congre-
gação local, compete-lhe a tarefa peculiar de polir os castiçais e lampadários
do templo pelo menos uma vez por ano, antes da festa. Além disso, sempre
estivera alugada por uns anos. Geraldo, por sua vez, sempre morou em situa-
ção muito precária, no morro, ainda mais considerando-se o tamanho de sua
família. Exemplo marcante desse contraste foi o fato de Cosme, um dos filhos
mais velhos de Geraldo, primeiro de sua coorte a casar, ter sido obrigado a tan-
to (segundo o pai) por ter engravidado a namorada, ao passo que o primeiro
casamento da fratria descendente de Humberto foi o de sua filha mais velha,
numa cerimônia religiosa formal, seguida de uma festa suntuosa no salão da
Igreja de São Pedro (a que compareceu o pesquisador).
A notícia de que Geraldo tinha se convertido à Assembléia de Deus, al-
gum tempo depois da morte da mãe, impôs imediatamente a percepção de
uma “reconversão” social associada a essa “conversão” religiosa. Com efeito,
não obstante numerosas desqualificações dos “crentes”, Humberto reconhecia
que essa experiência tinha sido boa para Geraldo e para parte de sua linhagem,
cujas qualidades sociais eram bastante fracas tanto do ponto de vista moral
quanto social. Humberto se mostrou surpreso por ter visto uma dessas pessoas
vestindo terno, mas não deixou de reconhecer a conveniência de tal mudança.
Dá-se a entender na família que Geraldo tem uma posição administrativa ou
pastoral na sua igreja, o que lhe garantiria hoje uma reprodução muito mais
estável e legítima, tendo abandonado totalmente a pesca.
A filha mais velha de Humberto, Telma Jocelyn, casou-se com um vi-
zinho, metalúrgico da Companhia Costeira de Navegação (a “Costeira” das
referências cotidianas), envolvido nos anos 1970 na luta sindical devido às
ameaças de privatização da empresa. Como quase todos os homens do bairro,
era também pescador, sempre que havia tempo para tentar a sorte na pescaria
pequena, de canoa. Nos anos 2000 já o encontrei aposentado, torcendo com
a camisa do Flamengo, elogiando o Brizola, com um pouco mais de cerveja
emborcada do que gostaria a família. Morreu subitamente, do coração, com
pouco mais de 50 anos. Sua mulher dedicava-se à gestão da casa paterna
— devido às dificuldades enfrentadas pela mãe — e se preparava para o ves-
tibular de administração, sem grandes expectativas, porque sabia que o curso
noturno que freqüentava era fraco. Depois que se casaram na Igreja de São
Pedro, em 1976, com uma grande festa, foram morar na antiga casa de Amélia,
restaurada com um mutirão dos homens da família. Era uma pessoa de grande
simpatia e intensa dedicação a tudo o que fazia. Foi certamente uma das mais
pacientes informantes da pesquisa de L. Duarte, a ela se devendo o grande
quadro da sua rede de parentesco, com todas as ramificações, compadrios,
sustento da família nos anos 1960. Nos sete anos de interrupção dos estudos,
trabalhara inclusive num bateau-mouche no Rio de Janeiro. Como a escola de
desenho fechara em 1976, falou-me de seu projeto de vir a estudar inglês.
Naquele ano ele já estava empregado como torneiro-mecânico numa indús-
tria metalúrgica (na verdade, tinha acabado de ser despedido da Dieselbrás).
Essa especialização garantiu-lhe diversos outros empregos de remuneração
razoável durante os anos 1970 e 1980. A contração da atividade industrial
fluminense (sobretudo naval, que era sua especialidade), associada à crescen-
te demanda de profissionais com formação técnica escolar (“com diploma”,
como ele diz), deixou-o quase sempre desempregado desde meados dos anos
1990. Em 2003, tinha uma pequena oficina mecânica montada ao lado da casa
paterna, com um bom maquinário (“uns 60 mil reais”, calculava ele), para ser-
viços avulsos de torneiro. Em 2004 já tinha fechado a oficina, porque obtivera
outro emprego. Hoje se encontra novamente desempregado, amargurado com
as contínuas rejeições a seu currículo, onde a experiência avulta, mas falta o
diploma.
Pituta casou-se com uma moça que vivia perto dos parentes maternos
dele, na estrada da Cachoeira, e foram morar no Fonseca, próximo ao centro
de Niterói, numa casa por ele mesmo construída. Lá tiveram um único filho,
que tem hoje 15 anos e estuda numa escola particular nas proximidades. Em-
bora não esteja indo muito bem nos estudos, tanto o pai quanto o avô esperam
que ele venha a entrar para a Marinha, já que gosta muito do mar (está sempre
pescando, nos fins de semana, com alguém do bairro). Pituta diz que o colo-
cou cedo num curso preparatório para a carreira naval, onde ficou por pouco
tempo porque a diretora o aconselhara a só retornar quando já estivesse maior,
pois era ainda muito infantil. Numa ocasião em o pesquisador passeava com
Pituta e o filho pela beira de uma das praias da região, os dois falavam com
imenso gosto sobre os muitos aspectos desse vasto saber que se esconde sob
a rubrica singela da pesca: marés, peixes, redes, luas, lajes, barcos, motores,
ventos, âncoras, mariscos, mercados, tudo entremeado por histórias fantásti-
cas e episódios dramáticos que faziam luzir os olhos do rapaz.
O casal se lamenta da crescente violência na região em que habitam, com
tiroteios freqüentes. Pituta está construindo outra casa, mais uma vez com
as próprias mãos, nos horários vagos, em Jurujuba, na orla da praia atrás da
Igreja de Nossa Senhora da Conceição, na outra extremidade do bairro, ou
seja, a Várzea. Diz que a casa do Fonseca poderia estar valendo uns R$ 160
mil, mas que, devido à violência, ele hoje não conseguiria por ela mais do que
R$ 80 mil.
Pituta tem incontáveis histórias sobre situações em que tentaram ludi-
briá-lo ou humilhá-lo, ou em que assistiu à vitória da injustiça ou da incom-
petência. Nesses casos, sempre ressalta a preocupação que teve em não partir
para a briga física, já que tem a constituição de um touro, o que o faz — como
diz — literalmente muito “estourado”. Não esconde que esse tipo de atitude
não tem facilitado sua permanência nos empregos e lamenta sua incapacidade
de “baixar a cabeça”. Há alguns anos, Pituta adquiriu um barco que estava fora
de serviço, reformou-o e se dispôs a colocá-lo na pesca, como um pequeno
armador, ou seja, sem a contribuição do seu trabalho pessoal. Hoje o barco
está em reparos, e ele diz não estar disposto a tornar a colocá-lo na pesca, pela
dificuldade de conseguir uma tripulação de confiança. Por outro lado, diz es-
tar querendo aposentar-se pelo INSS, uma vez que já teria tempo suficiente de
serviço. Mas o processo parece depender, em parte, de alguma ação coletiva
que não nos foi possível compreender.
O quarto filho, batizado como Juscelino em homenagem ao então presi-
dente da República, é conhecido como Teco. Era o preferido de sua avó Amé-
lia, em cuja casa viveu boa parte de sua infância e adolescência. Foi o único
a prestar o serviço militar, no forte do Imbuí, ali perto. Sua disposição para
os esportes foi muito estimulada nesse período, tendo começado a disputar
competições em nome do batalhão. Nos anos 1970, freqüentava um curso de
contabilidade, estudava violão e pretendia fazer um concurso para a Petrobras,
assim como o seu irmão Pituta. Mais tarde tornou-se treinador de educação
física e de natação, tendo trabalhado numa grande empresa internacional cujo
time ele acompanhou numa excursão à Alemanha. Trabalhou também como
professor de educação física para crianças (que diz adorar) em colégios e clu-
bes. Ultimamente fez um curso de fisioterapia e técnicas de condicionamento
corporal (acupuntura, pilates etc.), o que lhe permitiu ser contratado por uma
grande empresa de prestação de serviços nessa área, onde parece estar bem
satisfeito.
Quando o pesquisador o conheceu, ainda adolescente, era o que parecia
menos ligado à vida do bairro e da pesca, parecendo disposto a enveredar por
rumos diferentes dos de sua família. Hoje está casado e tem dois filhos ado-
lescentes. Mora em São Gonçalo, num bairro que considera tranqüilo (Estrela
do Norte), onde estão estudando os filhos. O mais velho, com 18 anos, se
bem na vida — segundo Humberto, “todos os que sobem esquecem dos de-
mais”. O pesquisador só a viu uma vez, no casamento do irmão, trajada com
um luxo ostensivo.
Bem ao lado da casa de Humberto, do outro lado da rua, fica a casa
de um dos filhos de uma irmã de Amélia que era casada com um senhor de
modos particularmente violentos e que era descrito nos anos 1970 como um
“sócio arrendatário de armador”. Esse filho é descrito como economista, hoje
aposentado como “ministro” de algum tribunal em Brasília. É solteiro e deve
ter como hobby a pintura a óleo, já que Humberto tem em sua sala um quadro
dele representando a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Várzea. Um
de seus três irmãos é considerado “maluco” e mora um pouco mais acima, na
direção do morro.
Ali perto morava também nos anos 1970 um primo irmão de Humberto
que era armador — um homem rico para os padrões locais. Sua casa, grande
e ostentatória, ocupava uma esquina prestigiosa do bairro, de frente para os
jardins da casa dos Behring de Mattos. Havia também diversos outros parentes
pescadores, de canoa ou de traineira, espalhados pelo bairro, com posições
sociais muito diferenciadas.
Do que aqui se descreveu ressalta sobretudo a importância fundante da
dimensão da “família” nesse meio social, por mais móvel e inconstante que
seja a sua fronteira. Isso significa, em primeiro lugar, a família como rede, mais
ou menos ampla, da qual uns se afastam e outros se aproximam, num jogo
complexo em que o que permanece é o reconhecimento de um fio comum,
elástico, unindo família, localidade e pesca — três dimensões do pertenci-
mento comum. Como já se mencionou, essa representação retira considerável
força simbólica da percepção do caráter historicamente consolidado da trama
(como dizia Geraldo nos anos 1970, “antigamente isso tudo aqui era uma
família só”).
Essa representação também se nutria da forma fenomenal das relações
de trabalho no modelo ideal da produção canoeira. Como já se descreveu em
outro trabalho,47 a “companha” era uma unidade produtiva concebida nos
moldes da solidariedade e hierarquia familiares: um mestre/pai em relação
com companheiros/filhos/aprendizes. Apesar da superação da produção cano-
eira tradicional pela produção das traineiras e mesmo da decadência genera-
lizada da pesca local, ainda se realiza esse ideal sob a forma da “brincadeira”
em saídas de pesca que irmanam pescadores mais velhos com seus familiares
mais jovens (filhos, sobrinhos, primos), nos fins de semana, nas férias ou em
qualquer ocasião propícia.
Por outro lado, há toda uma série de processos pelos quais o pertenci-
mento familiar pode ser “manipulado” para longe da ideologia de consangüi-
nidade prevalecente. Isso ocorre com a vizinhança longa e bem-sucedida, mas
pode contemplar elementos da rede de amizade ou de trabalho, através do
compadrio ou de uma mera aproximação com a condição de contigüidade e
confiança imanente características do parentesco: a categoria “parente empres-
tado”48 não é incomum e, embora seja meio jocosa, certamente expressa essa
maleabilidade de tal condição.49 Há uma dimensão de efetividade da relação
de parentesco que acaba por impor, a médio ou longo prazo, a proximidade
física como mais importante do que a proximidade de “sangue”. Isso parecia
se expressar no fato de que os amigos do pesquisador em Jurujuba nunca
perguntavam sobre sua família de origem, da qual sabiam apenas viver longe.
Já no caso da família de sua mulher, que tinha duas antigas e prestigiosas uni-
dades residenciais no bairro da Charitas que eles podiam localizar claramente,
havia um recorrente interesse, mesmo muitos anos depois do anúncio da se-
paração conjugal do pesquisador.
Mas a família é também expressa pelo espaço doméstico, a casa no seu
sentido mais vivencial, cuja importância se aborda no capítulo 5. Trata-se de
um sentimento construído por práticas cotidianas e rituais de compartilha-
mento do mesmo espaço por um tempo continuado, mas trata-se também
— mais especificamente — de um recurso de reprodução fundamental, para
onde afluem as rendas de diferentes tipos e de onde se obtém a alimentação, a
acolhida e outras dimensões da própria renda. Já se mencionou aqui o trabalho
antigo das mulheres na tecelagem das redes de pesca e a importância conti-
nuada da costura doméstica. Mas há práticas ainda mais diretamente voltadas
para a fronteira entre o mercado e a sobrevivência: as “criações”, por exemplo.
Na casa de Humberto, em certa ocasião, não se podia passar pela porta da sala
porque a varanda tinha sido transformada em criadouro de pintos. Vários vizi-
nhos do pesquisador no morro criavam e cevavam leitões para o Natal.
Uma dimensão muito importante desse espaço doméstico é o seu caráter
de casulo infantil. Devido à intensa relacionalidade prevalecente e à concomi-
tante compressão do espaço, percebe-se que as crianças ocupam (e freqüen-
temente dominam) a cena familiar, sobretudo quando mais jovens. Em casa,
os parentes mais velhos sempre estavam cercados de crianças de todos os
tamanhos (de bebês a quase adolescentes). Avós e netos (ou bisnetos) sempre
faziam junto os seus passeios rotineiros. A televisão continuamente ligada na
sala atende na maioria das vezes à curiosidade infantil, embora prevaleçam
os interesses específicos dos adultos em relação a certos programas, como
os jogos de futebol, as corridas de carro e as novelas. Um traço que sempre
impressionou ao pesquisador na família de Humberto (e que não parece ser
exclusivo dela) é a condescendência com que se atende à contínua demanda
de guloseimas, sorvetes e refrigerantes por parte dos pequenos. A festa de
Cosme e Damião retira em parte desse ambiente de acolhimento ao desejo
infantil sua importância e onipresença nas classes populares urbanas.50 Uma
das filhas de Humberto diz que, apesar da idade, não perde nunca a festa de
Cosme e Damião. Escapa do trabalho e vem pegar os sobrinhos pequenos para
coletar doces.
A família não deixa de ser também — nesse formato tão onipresente
— fonte de diversos problemas de difícil solução. Um caso marcante foi o
relato de Pituta, que desistira de manter sua oficina de torneiro-mecânico no
local porque, como disse, “aqui tudo é parente, né?”, querendo dizer com isso
que tinha que fazer serviços de graça ou pagos em prestações, sempre adiadas
ou esquecidas.
A sucessão na irmandade51 é certamente fonte de grandes tensões, mes-
mo em situações sociais em que os bens não são vultosos economicamente.
Por isso mesmo a transferência de unidades restritas e indivisíveis, como o
espaço doméstico ou a posse de uma canoa ou barquinho, é potencialmente
desafiadora da comunhão de uma fratria descendente. Nos anos 1970, um
pescador local, primo de Humberto, que vinha gerenciando o uso da canoa do
pai idoso como “mestre”, inquiria-se sobre o seu próprio destino por ocasião
da morte do pai, quando a embarcação poderia passar a outro irmão.52 É difícil
imaginar, por exemplo, como se resolverá a transmissão da casa de Humberto
após o falecimento do casal.
As condições do casamento parecem ter-se alterado muito da segunda
para a terceira geração. Amélia descrevia com detalhes as peripécias de seu
casamento, devido à oposição do pai. Humberto e Hermínia casaram-se na
Igreja de São Pedro, e uma bela foto lembra essa cerimônia, vendo-se aí o
casal muito bem trajado, diante do altar, acompanhado de três pequenas
damas de companhia. Como já foi mencionado, o casamento da filha mais
velha — assistido pelo pesquisador — se revestiu de grande pompa. Os de-
Notas
1
Muitas atividades de promoção social que têm sido iniciadas na área se defrontam
com a questão dos recortes identitários locais. A ONG BemTv, através do projeto
Olho Vivo 3, por exemplo, manteve atividades desde o morro do Preventório até
Jurujuba em sentido estrito. Neste último local, conseguiu suscitar o interesse de
alguns jovens para editar um jornal diferente do que editava no Preventório, o
Mar de Histórias, de que acabaram saindo apenas três números em 2005. De sua
comissão de atividades participava o Comitê de Defesa de Direitos da Criança e
do Adolescente de Charitas e Jurujuba, cujo nome revela uma visão externa, mais
abrangente, do que seja o ‘‘bairro”.
2
Casadei (1988) encontrou registros, na Cúria Diocesana de Niterói, de diversos
casamentos entre militares aquartelados nesse forte e moças habitantes da região na
segunda metade do século XIX. No material de pesquisa atual há apenas um caso
desse tipo.
3
Há menção à freqüente ocorrência de pesca com cercados ou currais ao longo de
toda a costa de Niterói no século XIX, chegando a Jurujuba. Algumas referências
sugerem que fossem considerados como propriedades privadas, com o uso de tra-
balho escravo ou assalariado. Ver Casadei (1971:128).
4
Não há registros de população específicos para o que se chama hoje de Jurujuba,
até 1920. Os que existem cobrem toda a zona litorânea até Icaraí, o que impede a
comparação com os dados atuais. De qualquer forma, pode-se registrar que, nessa
freguesia ampliada, havia 2.479 habitantes em 1872, chegando a 9.056 em 1920.
Os dados, já específicos de Jurujuba, quanto ao número de habitantes, para as
décadas recentes são os seguintes: 1970 — 4.278; 1980 — 3.724; 1991 — 3.507.
Ver, ainda, para dados sobre a estrutura social contemporânea do bairro, Soares et
al., 2005.
5
Há informações interessantes retiradas das Memórias do Visconde de Taunay
(1889), a cujo original não se teve acesso: “em meados de 1852, fomos passar boa
temporada na Jurujuba, para lá da baía do Rio de Janeiro, por detrás do maciço
rochoso da fortaleza de Santa Cruz, um dos mais pitorescos locais da baía, que os
tem tantos e tão variados. Habitávamos vasta casa abarracada e em parte ladrilha-
da, pertencente ao governo e que meu pai ou alugou ou ocupou, gratuitamente,
por algum tempo — não sei bem. (...) Tenho bem vivas as amenas perspectivas que
se desfrutavam de diversos pontos da casa da Jurujuba, edificada no alto de suave
outeiro, já sobre o grosso da povoaçãozinha à esquerda, já sobre a praia da frente,
no nosso porto de desembarque, já sobre a praia da igreja, por onde se ia à praia de
Fora, isto é, à orla do mar alto, fora da barra” (apud Motta, 1989:9). Ver também
Casadei, 1971:113.
6
Casadei, 1988; Wehrs, 2002.
7
A cidade mesma de Niterói tem sua fundação associada à aldeia indígena de São
Lourenço, instalada no século XVI para o assentamento dos Temiminós de Arari-
bóia, e que ainda subsistia, decadente, no começo do século XIX, acossada pela
cobiça por suas terras, englobadas crescentemente pela expansão urbana.
8
Borges, 1980; Pimentel, 2004.
9
Wehrs, 2002; Borges, 1980.
10
Uma informante local contou ao pesquisador com longos detalhes uma história
sobre essa nova construção: uma milionária argentina, proprietária do Cassino de
Icaraí, teria perdido toda sua fortuna. Assistindo à procissão de São Pedro, fez a
promessa ao santo de lhe reconstruir a igreja, caso recuperasse os seus bens — o
que veio a ocorrer, ensejando o cumprimento do voto.
11
A área plana em torno da Igreja de São Pedro, onde hoje estão as duas principais casas
da família Costa, pertencia a um grande proprietário, que a loteou por volta de 1936.
As casas mais antigas da família, uma ainda de pé, pertencente a um ramo colateral dis-
tante, ficavam mais para trás, nas duas encostas do caminho das praias de Adão e Eva.
12
A grande propriedade da ponta de Jurujuba lindeira ao morro do Morcego per-
tenceu, até os anos 1990, à família dos irmãos Darke e Jorge Bhering de Oliveira
Mattos, grandes empresários no Rio de Janeiro. Jorge é considerado um pioneiro
ecológico, tendo replantado áreas devastadas que doou a diversas prefeituras, como
o parque Darke de Mattos, na ilha de Paquetá. Os ‘‘notáveis’‘ de Jurujuba, entre os
quais Humberto e Hermínia, eram anualmente convidados para um jantar com a
última proprietária, dona Astréia — de quem se falava com grande respeito. Mais
recentemente, a população local assumiu a luta pela preservação dessa área, amea
çada por um grande empreendimento imobiliário. Segundo dizem, conseguiram
até que a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, fosse até lá para confirmar o
status protegido da área.
13
É parte da representação local sobre essa mudança sua associação à abertura do
acesso rodoviário ao bairro, em função dos interesses estratégicos dos fortes duran-
te a II Grande Guerra. Antes havia apenas trilhas longas e tortuosas em direção a
Charitas e Itaipu.
14
Prefeitura Municipal de Niterói, 1996.
15
O Plano Diretor (Estatuto da Cidade) de Niterói classifica a “sub-região Jurujuba”
como parte da “região das praias da baía”. Ali estão oficialmente sediados o Colégio
Estadual Fernando de Magalhães, um posto de atendimento do Sistema de Saúde
da Família, a sede da Colônia de Pescadores Z-8 e a sede da Associação de Mora-
dores de Jurujuba. Nas estatísticas oficiais sobre o bairro no ano de 1996, a área
abarcava 882 domicílios, dos quais 78% tinham homens como chefes. A taxa de al-
fabetização era de 84,53 (uma das mais baixas do município), e 78% das unidades
sobreviviam com até três salários mínimos. Eram classificadas como ‘‘aglomerado
subnormal” (casas de favela) 49,37% das residências (Prefeitura Municipal de Ni-
terói, 1994, 1996). Muita atenção tem sido dada, na imprensa e nos documentos
necologia da UFRJ, sendo o seu primeiro diretor. (...) Entre seus vários feitos cons-
tam a criação, em 1936, da revista Anais Brasileiros de Ginecologia, que seria durante
muitos anos o órgão oficial da cátedra, e a realização, em setembro de 1956, da
Assembléia de fundação da Sociedade Brasileira de Citologia. Além disso, foi presi-
dente da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro (1957/58 e 1959/60)
e diretor da Faculdade de Medicina da UFRJ de 1958 a 1961, ano em que faleceu.”
Disponível em: <www.medicina.ufrj.br/noticiasAntDet.asp?TipoConsulta=0&id_
boletim=62>. Acesso em: 22 maio 2007.
30
Cascudo, 1962; Santos, 2007.
31
A estética doméstica popular, tema que foge ao escopo deste trabalho, é no entanto
fundamental para a caracterização do “estilo de vida” ou da “imagem” que cada família
procura erigir de si mesma. Trata-se, em alguns casos, de verdadeiros altares, como su-
geriram, em momentos e contextos muito diferentes, Heye (1979) e Duarte (2006a).
32
Giumbelli, 2002; Gomes, 2004.
33
A festa tem se transformado muito nos últimos anos, mas por trás da parafernália
externa pode-se observar a mesma tensão entre a parte mais religiosa ou devocio-
nal, cujas manifestações a Igreja busca controlar, e a parte mais lúdica ou profana,
incluindo música e danças, além do risco dos excessos alcoólicos masculinos.
34
Jurujuba sempre fez parte de uma linha constante de contatos e trocas entre co-
munidades pesqueiras, informações e recursos de trabalho que iam desde o Caju,
do outro lado da baía, até Campos, para o norte. Itaipu e Maricá, no entanto,
eram muito mais próximas da auto-imagem local, mesmo que — nesse último caso
— não se praticasse a pesca marítima.
35
Duarte, 1999.
36
Na entrevista em que foi lido para Humberto este capítulo, em fevereiro de 2007,
ele acrescentou ter acabado de adquirir um novo motor, a diesel, mais confiável.
37
Posteriormente, ele disse ao pesquisador que só conseguira passar para o curso de
produção cultural, no campus da UFF em Rio das Ostras.
38
A possível relação entre o cuidado masculino precoce das gaiolas de passarinho e
o seu treinamento na “obrigação” para com a casa e a família foi tratada por Duarte
(1986:184) e tornará a aparecer no capítulo 3 deste livro.
39
Em 2008, vim a saber que ele foi bem-sucedido ao final do concurso, tendo-se
inscrito na Escola de Aprendizes Marinheiros de Vitória, por não querer ficar no
Rio de Janeiro (por causa da violência generalizada). É o primeiro descendente de
Humberto a cumprir com suas expectativas de ver a família na Marinha.
40
Atualmente ela está inscrita no curso de publicidade e marketing de uma univer-
sidade particular muito cara, o que a obriga a continuar trabalhando no comércio.
Sua mãe tem a esperança de obter para ela uma bolsa de estudos.
41
Ela continua praticando a acupuntura, mas, aparentemente, apenas para os mem-
bros da família. Na visita de fevereiro de 2008, Pituta comentou que seu filho
estava melhor na escola, graças a um tratamento longo que sua tia lhe fizera com
aquela técnica.
42
“O padre Leonel Narváez é sociólogo, doutor pela Universidade de Cambridge,
membro do comitê temático de negociação com os guerrilheiros das Farc e com
o governo da Colômbia, e assessor da prefeitura de Bogotá, onde desenvolve um
trabalho de apoio a homens e mulheres vítimas da violência.” Disponível em:
<http://carosamigos.terra.com.br/do_site/sonosite/entrev_dez05_leonel.asp>.
Acesso em: 29 jun. 2007.
43
Em 2008, o marido de Minda tinha uma camioneta estacionada em frente à casa,
na qual se informava que iria trabalhar em transportes de cargas.
44
Quando o pesquisador estava revendo, nos anos 2000, com Humberto (na pre-
sença de sua quinta filha) o “quadro de parentesco” da família, traçado a partir das
informações da primogênita, foi mencionado com jocosa simpatia o caso dessa
prima que vivia com uma mulher — e que assim passou a figurar na seqüência dos
cônjuges de sua fratria.
45
Amélia e Humberto sempre se referiam aos descendentes de um João de Abreu,
seus primos “muito distantes” (inclusive “almirantes” e uma importante atriz do ci-
nema mudo nacional), que teriam morado numa das casas mais antigas do bairro.
46
Essa distribuição se alterou muito entre os anos 1970 e 2000, devido às sucessões
e ao destino das novas gerações. As informações sobre esses parentes, que aparece-
ram em diferentes ocasiões relacionados com Amélia ou com a linhagem de Hum-
berto, são inevitavelmente fragmentárias e freqüentemente ambíguas, o que reflete
diferentes momentos e condições sociais de atualização dos vínculos em questão:
um quadro permanentemente móvel, cuja sistematização foi aqui restrita às duas
linhagens descendentes de Amélia.
47
Duarte, 1999:35.
48
Ibid., p. 107.
49
Schneider (1968) constrói parte de sua interpretação do parentesco norte-ame-
ricano a partir de uma distinção entre “o parente como pessoa e a pessoa como
parente”, a qual possibilita a compreensão das múltiplas variáveis intervenientes no
reconhecimento desse vínculo.
50
Gomes, 2008b.
51
Duarte, 1999:124.
52
Ibid., p. 115.
53
Ibid., p. 252.
A f a m í l i a Duarte
ca, respectivamente. Em 1926 nasceu sua única filha, que viria a iniciar um
curso superior em letras, interrompido para casar em 1947 com um contador,
funcionário de cartório de imóveis (depois tabelião por muito tempo), sendo
ela a primeira, entre vários parentes, a se estabelecer no bairro de Copaca-
bana, em 1948.19 O marido tinha sido seu colega no Colégio Vera Cruz, em
Vila Isabel. Seus pais também se mudaram para Copacabana mais ou menos à
mesma época.20 Rolembergue entrara para o serviço público municipal muito
jovem, em cargos humildes, tendo galgado rapidamente uma posição eminen-
te, como funcionário das influentes secretarias de Viação e Obras e de Finan-
ças.21 Sua filha teve também uma única filha, formada pela Escola Normal e
professora do estado, que veio a se casar e dar à luz, por sua vez, dois filhos.
Mora hoje no Arpoador. Rolembergue teve um papel articulador fundamental
a partir da segunda geração. Graças a sua influência, tornou-se o mediador do
ingresso de vários parentes no trabalho “na prefeitura”, como se dizia na fa-
mília. Seu irmão Vladimir, sua irmã Walquíria (após a doença do marido), um
de seus sobrinhos (filho de Milton) e dois primos (por parte de mãe) deveram
a ele seus empregos. Destes dois últimos, um veio a se formar em medicina,
estabelecendo-se depois em Taboas, onde seu pai tinha sido chefe da estação
ferroviária por longos anos. O outro, considerado meio irresponsável, acabou
vindo morar na casa da Salvador de Sá muito mais tarde, como se verá.
Milton foi o segundo a deixar a casa, em 1931, ao se casar com uma
prima irmã que morava em Paty do Alferes (cidade da família de seu pai),
indo residir numa região suburbana ainda quase rural à época, Ricardo de
Albuquerque, onde Sebastião acabou adquirindo também um pequeno lote de
terras para produção e consumo doméstico de frutas. Laura era filha de uma
irmã de Sebastião que morreu cedo, o que levou o marido a colocar a filha
numa instituição religiosa em Paty do Alferes, onde foi criada e educada até
seu noivado com o primo. Milton desde criança se distinguira por uma grande
habilidade no desenho, o que lhe valeu um emprego público municipal nessa
função, conseguido pelo irmão mais velho. Apesar das dificuldades de susten-
to, que os fizeram mudar freqüentemente de residência, criaram dois filhos:
o mais velho tornou-se também funcionário público, e o segundo, após os
cursos do Colégio Militar e da Academia Militar das Agulhas Negras, chegou
a oficial do Exército, na arma da Cavalaria. Nenhum desses dois teve filhos.
Milton e Laura tinham, porém, adotado um casal de sobrinhos, ainda muito
pequenos, filhos de um irmão de Laura e que foram por eles criados, tendo-se
disse certa vez uma das mulheres da terceira geração. A exceção, mais uma
vez, foi João, com sua dedicação tardia ao estudo e seu gosto pelas artes, que
transmitiu à linhagem. Rolembergue, aparentemente, chegara a compartilhar
com o irmão primogênito interesses mais “cultivados” em sua juventude, ten-
do presenteado um sobrinho, filho de João, com alguns livros e discos antigos
de ópera, pouco antes de morrer (talvez porque não visse interesse nessa área
entre seus próprios descendentes). A construção de sua carreira privilegiou a
competência e a ascensão profissionais no serviço público, no que foi o mais
bem-sucedido de toda a fratria.
A maior parte da família tampouco se dedicava às paixões mais típicas
das classes populares, como o futebol. Apenas o marido e a filha menor de
Walquíria eram torcedores notórios. O marido de Walquíria, na verdade, de-
dicava-se também a uma outra devoção tipicamente popular: a criação de
passarinhos. O quintal da Salvador de Sá, durante o longo tempo em que ele
lá viveu confinado, abrigava um grande viveiro e inúmeras gaiolas, por ele
cuidadas com zelo.
Alguns dos membros da terceira e quarta gerações (não apenas da linha-
gem de João) passaram por situações de perturbação físico-moral que tratadas
com psicoterapias ou medicação psiquiátrica, combinadas ou não com re-
cursos espiritualistas ou da “nova era”. Um dos membros da terceira geração
morreu nos anos 1980 em conseqüência de alcoolismo, mas não foi possível
saber se algum tipo de recurso terapêutico ou religioso chegou a ser utilizado
em seu caso.
Como ficou claro, foi muito importante para o desenvolvimento dessa
família sua forte vinculação ao “serviço público”, sobretudo municipal, onde
as diferentes linhagens e gerações foram sendo introduzidas por força das re-
lações pessoais acumuladas dentro da própria rede familiar. Essa característica
teve diversas implicações que serão discutidas mais adiante neste livro. Mas
pode-se desde já ressaltar a importância, para o destino da família, da incor-
poração das técnicas corporais do “serviço público” brasileiro prevalecentes
até os anos 1960. No nível dos serviços “administrativos” em que foram pro-
gressivamente ingressando todos os membros da rede, à exceção do próprio
fundador (que se desincumbiu até a sua aposentadoria de serviços manuais,
que hoje seriam chamados de “técnicos”; embora numa posição de “mestria”
e supervisão),36 havia um minucioso processo de subordinação às convenções
de uma apresentação “civilizada” de si próprio. Para os homens, por exemplo,
Notas
1
Berger, 1984:124, 165; Laemmert e Laemmert, 1868 e 1898.
2
Uma cópia dessa carta foi conservada por seu filho mais velho até sua morte, como
testemunho de sua importância para o destino familiar.
3
O projeto original previa a sua compra paulatina pelos seus moradores (Finep,
1983:38), o que não chegou a concretizar-se. Por isso as casas pertencem até hoje
ao município, que as aluga.
4
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Segundo Benchimol (1992:237), “a avenida Salvador de Sá, primeira radial aberta
por Passos, com 800 m de extensão e 17 m de largura, destinava-se a evitar a curva
da freqüentadíssima rua Frei Caneca. Começava nela, em frente ao quartel da polí-
cia, e ia até o começo da rua Estácio de Sá, que foi alargada até o largo do Estácio,
centro de convergência dos caminhos do Engenho Novo, São Cristóvão e outros
arrabaldes daquela zona”. Ver também Gerson (2004).
5
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“Pereira Passos, por sua vez, obteve do Conselho Municipal autorização para cons-
truir algumas casas para operários em sobras de terrenos desapropriados para a aber-
tura da avenida Salvador de Sá — uma gota d’água no oceano da problemática habi-
tacional” (Benchimol, 1992:287). Esse ato se concretizou pelo Decreto no 1.042, de
18 de junho de 1905 (cf. Lobo et al., 1989; ver também Bonduki, 2004).
6
Finep, 1983; Carvalho, 1980.
7
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Benchimol, 1992:154.
8
Sobre a comunidade judaica instalada no entorno da praça Onze, incluindo as
prostitutas da zona do Mangue, ver Fridman (2007).
9
A família sempre teve uma maneira peculiar de se referir a esse endereço. Não se
dizia “isso ocorreu na Salvador de Sá” (forma habitual de se referir a uma rua), mas
“em Salvador de Sá”, como se se tratasse de um bairro ou de uma cidade — o que
é significativo.
10
João recorda-se de ouvir a pergunta, ao chegar de férias no interior: “nhôzinho
chegou da Corte?”.
11
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Desde 1869, a Rio de Janeiro Street Railway Company (depois Companhia de São
Cristóvão) atravessava a região com seus bondes em direção a Tijuca, Rio Compri-
do, Catumbi e São Cristóvão. A partir de 1874, também a Cia. Ferro Carril Flumi-
nense passou a atravessá-la na direção da praia Formosa, na altura da atual Estação
da Leopoldina (Benchimol, 1992:104 e segs.).
12
Da biblioteca de seu avô, João conservou um romance de capa-e-espada em vá-
rios volumes, que escapou da dispersão dos bens decorrente da falência. Sua avó
Amélia conservou apenas uns poucos objetos desse período: uma jóia, um prato de
louça e duas compoteiras, que também permaneceram na casa da Salvador de Sá
até os anos 1960 — e com as descendentes de Walquíria até hoje.
13
Dessa residência que lhe fora tão cara João herdou uma fruteira que se manteve na
casa da Salvador de Sá até o seu casamento.
14
A importância da “torrinha” é sublinhada por Araújo (1993:346) num quadro geral
da sociabilidade urbana carioca do começo do século XX, incluindo as formas do
lazer público.
15
A busca de fontes alternativas de recursos conjugada a suas habilidades técnicas
levaram-no a tentar reencher embalagens metálicas de lança-perfume descartadas
no carnaval, o que valeu apenas o susto de uma grande explosão doméstica. Por
outro lado, um de seus filhos lembra que Maricota costumava apostar pequenas
somas no jogo do bicho.
16
Uma das netas de Maricota criadas na casa da Salvador de Sá diz ainda manter rela-
ções com uma antiga vizinha, uma senhora negra que fora sua “mãe-de-leite”; embo-
ra ambas tivessem se mudado há décadas para outros bairros, distantes entre si.
17
Mattos, 2002.
18
O estatuto muito peculiar de todo o conjunto, dependente de uma concessão go-
vernamental (o valor do aluguel pago foi-se tornando irrisório com o decorrer do
tempo), sempre permitiu um rigoroso controle moral da ocupação das unidades
pela própria vizinhança, já que qualquer denúncia comprovada de irregularidade
do comportamento dos moradores à prefeitura podia acarretar a perda da autoriza-
ção de uso.
19
Sobre o processo de ocupação acelerada de Copacabana na segunda metade do sé-
culo XX e sua relação com os processos mais amplos de mudança social na cidade
do Rio de Janeiro, ver Velho (1972).
20
A história é um pouco mais complicada: o casal tinha ficado um ano morando
com os pais da mulher numa vila na Tijuca. Rolembergue obteve um empréstimo
no Montepio da Prefeitura para comprar um apartamento em Copacabana, cujas
prestações eram pagas pelo genro. O jovem casal foi morar lá em 1948, vindo a
comprar outro apartamento, também no Posto 6, em 1953, onde mora até hoje.
Os pais dela foram morar no primeiro apartamento naquele mesmo ano, tendo lá
vivido até sua morte.
21
Esse prestígio o levou à direção de diversas associações de funcionários, chegando
a ser presidente do Club Municipal, entre 1970 e 1976.
22
A linhagem descendente da única irmã de Sebastião teve uma trajetória particu-
larmente acidentada até a terceira geração: ela própria órfã precoce de pai e mãe,
deixou cedo seus cinco filhos órfãos. Uma filha se suicidou na juventude; os dois
filhos homens viveram sempre com grandes dificuldades econômicas (um deles
perdeu um filho com dois anos, enviuvou cedo e teve que entregar os dois outros
filhos à irmã para criar); e Laura, finalmente, veio a ser a única a ter uma vida razoa
28
Tanto assim que, segundo sua esposa, João não pretendia ter filhos ao se casar, dada
a sua idade avançada. A autorização, pela Igreja Católica, do uso do método de
Ogino-Knauss, também conhecido como “tabelinha”, só ocorreu em 1951, quando
esse casal já tinha o seu primeiro filho (Luna, 2002). Essa posição não era, porém,
incondicional, já que, nos anos 1980, quando uma de suas noras (a que chegou a
ter quatro filhos) engravidou mais uma vez, numa atitude que considerava irres-
ponsável, foi francamente favorável a que ela recorresse a um aborto.
29
O espiritismo kardecista estabelecera-se no Brasil desde os anos 1860, ganhando
crescente popularidade e legitimidade, sobretudo a partir da iniciativa de Bezerra
de Menezes de organizá-lo como “religião” — considerada, no entanto, compatível
com o catolicismo — e de promover a sua dimensão letrada, “científica”, tanto
quanto a caritativa. A primeira Sociedade Espírita Brasileira obteve reconhecimento
oficial na Bahia em 1873, ano em que também foi fundada a primeira sociedade ca-
rioca. Em 1884 criou-se a Federação Espírita Brasileira, sediada na avenida Passos,
no Centro do Rio. A difusão do kardecismo passou a se dar através de numerosos
periódicos, como O Reformador, criado em 1884. Os processos sociais que levaram
à realização, em 1941, de um congresso de “fundação” da umbanda como religião
específica favoreceram a continuidade do kardecismo como experiência religiosa
fundamentalmente de classe média. Ver Aubrée e Laplantine (1990).
30
Dos quatro filhos do casal, apenas o primogênito, que veio a se tornar oficial do
Exército, aproximou-se da religiosidade espírita do pai. Os demais mantiveram-se
mais próximos do catolicismo. Uma das descendentes ressalta que essa pluralidade
religiosa no seio da família jamais resultou em tensões ou pressões visando à uni-
formidade de crenças.
31
Atualmente, o tipo de experiência descrito como “falar em línguas” está associado
ao pentecostalismo, cuja presença era extremamente restrita no Brasil do entre-
guerras. O tratamento da perturbação pela via do espiritismo é muito significati-
vo do ethos que a família estava então assumindo. ����������������������������
Segundo Aubrée e Laplantine
(1990:197),��“au Brésil, comme ce fut le cas en France à ses débuts, le livre — signe
d’instruction — renvoie donc toujours dans le spiritisme à un désir de respectabilité socia-
le. Cette
�������������������������������������������������������������������������������������
doctrine ne cherche pas son fondement dans des secrets originels mais dans une
incessante révélation, ouverte et dynamique, attestée par le ‘savoir universel’ que produi-
sent les personnalités hors du commun que sont, d’une part, les savants et, de l’autre, les
artistes”.
32
A hipótese lhe havia sido colocada pelo próprio pesquisador, em função do fasci-
nante exemplo de imbricação entre parentesco terreno e extraterreno disponível
retomar os estudos formais — foi o que mais se aproximou dos sinais de distinção
auferíveis da freqüentação das artes e dos saberes eruditos, legando-os à sua des-
cendência.
41
A assistência da prefeitura transformou-se, em 1932, em Sociedade Beneficente do
Servidor Municipal, com a estrutura de uma policlínica, embora a contribuição que
a sustentava se tivesse mantido voluntária até 1944. Um decreto do prefeito inter-
ventor Henrique Dodsworth (1937-45) encampou a sociedade, transformando-a
no Departamento de Assistência ao Servidor da Prefeitura, englobando a assistência
médico-cirúrgica e dando-lhe o nome de Hospital do Servidor e Centro de Perícias
Médicas. Esse departamento deu lugar ao Instituto de Assistência aos Servidores
do Estado da Guanabara — Iaseg em 1960, com a criação do novo estado da Gua-
nabara. O Decreto-Lei no 99, de 13 de maio de 1975, criou o Iaserj (com a fusão
dos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara), transformando-o em autarquia
vinculada à Secretaria de Administração, com sede na cidade do Rio de Janeiro. O
Decreto no 11.277, de 6 de maio de 1988, vinculou o Iaserj à Secretaria do Estado
de Saúde, mas em 15 de janeiro de 1977, pelo Decreto no 2.2922, o instituto tor-
nou-se novamente vinculado à Secretaria do Estado de Administração. As notícias
mais recentes dão conta da quase completa decadência do seu mais importante
hospital, próximo à praça da Cruz Vermelha, muito utilizado outrora pela família
— seguindo o destino de tantos outros hospitais públicos do Rio de Janeiro (dispo-
nível em: <www.iaserj.rj.gov.br/quem_somos.asp>. Acesso em: 12 mar. 2007).
42
O dado apareceu espontaneamente — e um tanto jocosamente — durante uma en-
trevista e mereceu uma rápida desqualificação do descendente imediato presente.
O pesquisador jamais ouvira antes falar de tal fato.
43
Candidato derrotado nas eleições presidenciais de 1945 e de 1950.
44
A segunda geração dos Duarte cultivava uma ampla rede colateral, com 17 primos
irmãos (com numerosa descendência) e uma série de primos mais distantes, des-
cendentes de uma tia paterna e de um tio materno de Maricota (estabelecido em
São Paulo). Uma das primas irmãs casou-se inclusive com Milton Duarte. A geração
seguinte passou a ser mais seletiva nesses contatos, privilegiando alguns ramos, em
função de sua maior ou menor proximidade social/afetiva. Poucos membros da
linhagem retiveram a memória do conjunto do quadro. Pode-se afirmar que os seg-
mentos espíritas foram os que mais preservaram o contato com os segmentos fracos
ou decadentes da rede, em função — certamente — do papel da caridade nesse
universo simbólico (Cavalcanti, 1983). Pelo menos esse parece ser o caso entre os
descendentes atuais do casal Duarte (à exceção, agora, do próprio pesquisador). É
verdade também que essa posição é ocupada sobretudo por uma filiação uterina
(neta do casal através de uma filha), o que garante o seu caráter de “cuidadora” da
rede — efeito muito conhecido na literatura sobre memória familiar.
45
A festa de casamento da filha mais nova, realizada em 1967 na própria casa da
Salvador de Sá, teve o mesmo papel de agregação abrangente.
46
Ao deixar a casa da Salvador de Sá, L. Duarte acreditava que ela seria devolvida
à prefeitura, uma vez que todos os membros de sua linhagem já tinham seguido
outros destinos e se estabelecido em outras partes. Foi com grande surpresa que
soube por sua tia que um primo distante, de que ele jamais ouvira falar antes
(era bisneto da irmã de Maricota que morava em Taboas e tinha sido beneficiário
da intervenção de Rolembergue para a obtenção de um cargo de funcionário da
prefeitura), iria ocupar a casa com sua família (mulher e dois filhos). Encontrava-
se em grande dificuldade financeira, sem residência fixa, e esse recurso lhe seria
imensamente oportuno. Durante a mudança, ele e o pesquisador encontraram-se
uma única vez. Depois disso, todas as eventuais notícias lhe seriam dadas por uma
prima que mantinha o contato geral entre os ramos. Numa das últimas entrevistas,
ficou claro que esse primo não morava mais lá com a família, não por ter se sepa-
rado da esposa, mas por ter sido condenado à prisão por um crime cometido no
interior do estado.
A f a m í l i a Campos
tiveram mais um filho. A mudança não foi bem-sucedida, já que Pequitita não
se conformava em viver distante de sua família. Durante a estada de dois anos,
viajaram diversas vezes a Muriaé para visitar os parentes. Retornaram então
à cidade natal, onde permaneceram até 1956, quando conceberam mais uma
filha, e em seguida empreenderam a migração definitiva. Mas os vínculos com
os familiares mineiros não se desfizeram imediatamente. Pequitita e os dois
filhos mais velhos, especialmente, ainda mantiveram contato com os de sua
geração, inclusive levando filhos e netos para conhecer os parentes e a cidade
de origem.
O período entre as décadas de 1930 e 1950 é descrito pela literatura so-
ciológica como de intenso fluxo migratório para a Baixada Fluminense — que
integra a região metropolitana do estado do Rio de Janeiro2 — proveniente
sobretudo dos estados do Nordeste, do Espírito Santo e de Minas Gerais.3 A
ocupação desse território não obedeceu a nenhum planejamento urbano, es-
tando ligada a processos migratórios espontâneos, por um lado, e à política de
remoção de favelas das áreas nobres da então capital federal, por outro.
A cidade escolhida pelo casal foi São João de Meriti. À época seus filhos
estavam com idades entre 14 e dois anos (posteriormente, tiveram mais três
filhos). Nessa mudança o casal deixou a filha mais velha em Muriaé, com
parentes, para concluir o ano letivo. A nova cidade passava por uma etapa
de intenso povoamento. Recém-emancipada do município de Duque de Ca-
xias (11 de agosto de 1947), adquirira autonomia político-administrativa. Seu
crescimento fora estimulado pela infra-estrutura de transporte decorrente da
eletrificação da linha auxiliar da Estrada de Ferro Central do Brasil, em 1935,
e da abertura da rodovia Presidente Dutra, em 1946.4
O local de moradia ficava no interior de São João de Meriti, num bairro
ainda hoje denominado Éden, cortado à época pela linha férrea, hoje desa-
tivada. Geraldo comprou um primeiro terreno na Vila Norma — uma das
regiões de Éden — com os recursos oriundos da venda dos bens que possuía
em Muriaé. Mas abandonou a idéia de construir ali a sua casa e adquiriu outro
terreno, longe do “centro” do bairro, no Gato Preto. Disse à família que ficava
num lugar mais bonito, um vale cercado de montanhas. Enquanto construía
a tão sonhada casa, instalou-se com sua prole numa residência alugada, onde
funcionara anteriormente uma mercearia. Esse imóvel pertencia ao casal Go-
mes, um português casado com uma italiana, pais daquele que viria a ser um
dos seus genros, marido da filha mais velha.
tornava então com presentes para a esposa, logo recusados. Não era raro que
trouxesse comida de bar, como salgadinhos. Os filhos contam que a mãe os
jogava no chão e que eles, rapidamente, corriam para catá-los.
Geraldo, além de suprir financeiramente às necessidades básicas da casa,
assumia a tarefa de realizar as compras, inclusive das roupas e dos produtos
de maquiagem da mulher. Pequitita “nunca soube o preço de um quilo de
arroz”, disse uma das filhas. Duas interpretações sobre esse dado convivem
nos relatos dos descendentes. A primeira sugere que ela não se desincumbia
ativamente das tarefas da casa, distribuindo-as entre as filhas, especialmente
a mais velha, por estar sempre às voltas com os filhos pequenos. O cuidado
do marido em relação à esposa teria essa justificativa. Outra vertente avalia
que ela “gostava de ficar de frozô” e que Geraldo se responsabilizava pelas
compras, na verdade, para controlar os gastos. Há, no entanto, lembranças
de Pequitita tentando colaborar, por algum tempo, com as despesas da casa,
fazendo pastéis e cocadas, que seus filhos vendiam pelas ruas do bairro.
O bairro ocupa um lugar central na organização da rede familiar. O Gato
Preto aparece nas lembranças de infância e, também, como parte integrante
da constituição das famílias nucleares na fase adulta dos filhos do casal origi-
nal. A percepção nostálgica vincula casa e bairro. Há a rememoração de um
tempo — os primeiros anos da migração e, conseqüentemente, da infância
— que, embora marcado pelas dificuldades, é percebido como mais organiza-
do e menos sofrido. A paisagem é sempre evocada como um diferenciador do
tempo passado em relação ao tempo presente. No período da infância ou da
adolescência dos filhos do casal Geraldo e Pequitita — que atualmente contam
entre 46 e 66 anos —, o bairro ganha uma descrição bucólica: morros cobertos
por árvores, estradas de barro e casas distantes umas das outras. Era também
menos violento, ao contrário das décadas posteriores, quando a segunda ge-
ração estava na fase adulta: os anos 1970 e 1980 foram marcados pelo grande
número de assassinatos na região. A estação de trem e a Igreja Católica no
centro da praça também são relevantes na construção da paisagem nostálgica
do passado do bairro.
Outras impressões do Gato Preto estão ligadas especialmente à fase adul-
ta da segunda geração e correspondem a diferentes tipos de relação do local
com a família extensa. A recomposição da rede familiar, por meio dos suces-
sivos casamentos dos filhos a partir de meados da década de 1960, implicou
diferentes modos de organização familiar. Mudanças e continuidades são per-
cebidas na relação que a terceira geração estabelece com a casa do Gato Pre-
to. Os diferentes significados que ela encerra dependem de diversos fatores:
vivência compartilhada no espaço, no caso dos netos que foram criados no
tipo de experiência familiar fundado no modelo de “quintal”; vivência parcial
no espaço, entre aqueles que passaram períodos no local; e, ainda, a vivência
distanciada em relação ao “quintal”, dos netos que ali não foram criados.
A lembrança era de que havia escassez de comida para dividir entre os 11
irmãos, mas muito espaço para correr e brincar. Uma bisnaga de pão era cor-
tada na diagonal para que cada pedaço aparentasse ser maior do que de fato
era.6 A imagem da divisão do pão se repetiu em diferentes relatos. Foi repro-
duzida da segunda geração para a terceira e utilizada como argumento moral a
respeito das dificuldades do passado e da “abundância” nas novas gerações. A
idéia é que, no passado, na infância, o pouco que se tinha era valorizado, em
contraste com o presente, com muitas facilidades. Portanto, as gerações mais
jovens tenderiam a não dar valor ao que possuem, devido ao quadro mais
geral de “abundância” e “possibilidades”.
Como já foi dito, Geraldo esteve algum tempo empregado numa mar-
cenaria em Nilópolis, vizinha a São João de Meriti, estando Éden (ou Vila
Norma) situada na fronteira entre essas duas cidades. Foi então que se deu o
acidente com Geraldo, que o levou novamente ao trabalho autônomo, tendo
ele transformado em oficina um dos cômodos da casa. O nexo entre casa,
vizinhança e trabalho é característico da rede familiar. Quando a segunda ge-
ração ainda estava na infância, os filhos de Geraldo e Pequitita partilhavam a
vida doméstica e a vida profissional do pai, na marcenaria. A necessidade do
sustento da família estava entranhada na forma como esta se organizava. Era
no quintal que os meios de subsistência ganhavam contorno. Aí circulavam
galinhas, criadas para o abate, a fim de suprir às necessidades da casa. Assim
como os filhos adultos, muitos dos netos — a terceira geração — também
vivenciaram tal experiência.
O investimento na educação escolar dos filhos não recebia atenção es-
pecial do casal, sendo a subsistência mais urgente. Além disso, a região não
contava com uma rede de ensino público consolidada, e o acesso à educação
formal era dificultado pelas grandes distâncias e a precariedade dos meios
de transporte. Assim, metade dos filhos do casal Geraldo e Pequitita possui
apenas as “primeiras letras”. O primeiro filho e os dois mais novos concluíram
o 1o grau (hoje chamado ensino fundamental). A trajetória educacional da
filha mais velha (segunda na fratria) foi radicalmente oposta à do restante dos
irmãos, tendo ela retomado os estudos após o casamento e o nascimento de
seus cinco filhos. Recomeçou da 3a série do ensino fundamental e alcançou
o nível de pós-graduação. O investimento na escolarização é evidente em seu
núcleo familiar: todos os filhos concluíram cursos superiores em universida-
des públicas e privadas (direito, medicina, fisioterapia, análise de sistemas e
ciências sociais).
A segunda geração seguiu as mais diversas carreiras profissionais, formais
e sobretudo informais, em sua maioria não relacionadas ao grau de ensino
alcançado. Cabe ressaltar que os filhos homens conviveram com o ofício do
pai e serviram como ajudantes, aprendendo as técnicas de marcenaria e es-
pecialidades tais como desenho, corte e montagem de móveis, pintura e lus-
tração. Somente os dois irmãos mais velhos, Silvério e Elza, se integraram ao
serviço público, o primeiro na carreira militar. Silvério integrou-se à Polícia do
Exército cumprindo com as regras de recrutamento em vigor antes do golpe
militar de 1964. Foi então incorporado e levado a trabalhar no Serviço Na-
cional de Informação, onde permaneceu até o final do período militar, sendo
posteriormente transferido para outros setores. Hoje está aposentado como
sargento. Após retomar os estudos, Elza conquistou o cargo de professora e,
depois, de orientadora educacional na Secretaria de Educação do estado do
Rio de Janeiro. Quando a filha caçula completou oito anos, Elza, então com
34, retornou aos bancos escolares numa escola particular perto de sua casa,
a mesma em que seus filhos estudavam. Concluiu o ensino fundamental no
regime de supletivo, e o 2o grau, no sistema regular. Fez o curso de formação
de professores, no período matinal, sendo obrigada a usar uniforme escolar
apesar de sua idade. No ano seguinte à formatura, fez o exame vestibular e
passou para o curso de pedagogia da Universidade Gama Filho. Concomitan-
temente, realizou com sucesso um concurso público para o cargo de professo-
ra. Atualmente está licenciada por motivo de saúde. Rubens, o irmão seguinte,
sempre foi barbeiro. O ofício lhe foi ensinado, precariamente, pelo pai, que
comprou uma cadeira de barbeiro para que ele pudesse iniciar uma profissão.
Geraldo exercia essa profissão em “época de vacas magras”, mas não era sua
especialidade: “inventou o corte caminho de rato”, brinca um de seus netos.
Rubens também foi motivo de preocupação para a família no período militar.
Foi preso várias vezes e torturado, pois era tido como “subversivo” pelo regi-
me. Sempre foi assumidamente de esquerda, atuando na resistência contra os
anos, João obteve seu primeiro trabalho com carteira assinada, como ajudan-
te numa loja de móveis dos Abraão Davi, tradicional família de Nilópolis. O
ramo de móveis foi durante quase duas décadas sua principal fonte de renda.
Já adulto, abriu sua própria loja na praça de Éden. Já era comerciante quando
conheceu Elza, em 1961. Esse encontro fez voltar à tona a questão do precon-
ceito racial. A apresentação da futura esposa à família foi dramática. Devido à
sua cor, Elza foi recebida com a pergunta cortante de Olímpia: “tem preto na
família?” Olímpia viu esse casamento como uma nova queda de status. Além
de “preta”, na perspectiva dos olhos azuis da italiana, a nora vinha de família
mais pobre. No entanto, a despeito da resistência de Olímpia, o casamento
foi realizado. O primeiro grande confronto foi a escolha do local para a festa.
Para marcar posição, Elza resistiu aos apelos da sogra, que não queria ver a
festa realizada na casa de Geraldo e Pequitita. A casa era muito simples, com
chão de terra batida, e não condizia com o que a sogra gostaria de mostrar aos
parentes que viriam da cidade do Rio de Janeiro. O fato é que a mistura das
cores tornou-se inevitável. Ventura morreu no ano seguinte ao casamento, e
Olímpia viveu até os 86 anos. A questão da cor continuou presente nos demais
casamentos da mesma geração e nos da geração seguinte.
O casamento da filha mais velha repercutiu profundamente na organi-
zação da casa de Geraldo e Pequitita. As falas de suas irmãs mais novas expli-
citam fortes (res)sentimentos em relação a esse evento. A diferença de idade
entre a filha mais velha e suas irmãs mais novas é de cerca de uma década.
“Abandonadas” pela irmã, ainda receberam toda a carga de responsabilidade
deixada por ela — cuidar da casa, lavar e passar roupa. Neuza casou-se com
apenas 14 anos, pouco depois do casamento de sua irmã mais velha, e foi
morar com o marido em outra casa, mas na mesma região. Teve o primeiro
dos cinco filhos com 15 anos, tornou-se avó com 32 e bisavó com 46. Maria
Luiza, então com 10 anos, foi morar com a irmã mais velha assim que nasceu
o primeiro filho desta, só saindo de lá ao se casar, aos 24 anos. Assim, a tarefa
de ajudar na casa materna teve que ficar a cargo da caçula, Lenimar Aparecida.
Mas, nesse período, a maioria dos irmãos já havia constituído suas respectivas
famílias nucleares e moravam em casas separadas das dos pais, ainda que no
mesmo quintal. Os irmãos homens passaram a ser “cuidados” por suas respec-
tivas esposas, enquanto as irmãs cuidavam de seus respectivos maridos.
A casa principal, mais ampla, serviu sobretudo como lugar de passagem
para as filhas mulheres. Chegou a ser reformada para receber as duas filhas
mais novas, já casadas, que moraram por algum tempo com os pais. A casa foi
adaptada, na medida do possível, para permitir aos casais certa privacidade.
A filha mais velha, no entanto, jamais voltou a morar ali após seu casamen-
to. Neuza, a segunda filha, casada aos 14 anos com José, foi morar com seu
marido em outro local do bairro, vindo a ocupar esporadicamente um dos
cômodos do “quintal” somente após o falecimento do marido, no início da
década de 1990. As outras duas passaram pela casa dos pais no início da vida
conjugal. Os dois casais formados buscaram diversas alternativas de moradia.
A residência no local também não foi concomitante. Maria Luiza e Adílson,
após um ano morando de aluguel, mudaram-se para o quintal de Neuza. Seu
filho mais velho nasceu nesse período. Devido a conflitos com José, o casal
mudou-se para a casa original, aí permanecendo por três anos até consegui-
rem construir uma “meia-água” em terreno próprio. Foi ainda no quintal que
tiveram suas duas filhas. À época, a irmã mais nova, Lenimar, já havia se casado
e fora morar no quintal da sogra, lá ficando por um ano. Assim que Maria Luiza
e sua família desocuparam o cômodo, Lenimar passou a viver lá com o marido
e a filha, aproximadamente pelo mesmo tempo em que sua irmã o utilizou. Em
seguida, foram morar de aluguel numa residência que ficava em frente à casa da
sogra. Mais tarde, conseguiram adquirir uma casa na mesma rua. A não-perma-
nência no quintal das famílias formadas pelas mulheres da fratria estava de certo
modo vinculada ao seu caráter patrilocal. A figura masculina externa entra em
disputa com os “de dentro” e desafia a organização familiar vigente.
A mesma característica se apresenta na terceira geração: nenhuma neta
morou no local após o casamento. Essa geração é composta por 31 netos (dois
faleceram na primeira infância, e um, na adolescência), tendo o mais velho
nascido em 1966, e o mais novo, em 1991. São 11 mulheres e 19 homens, en-
tre 15 e 42 anos. Todos moraram no bairro Éden na infância e adolescência. A
preponderância da localidade segue seu curso. Somente três netos, integrantes
da linhagem de Elza, se distanciaram desse tipo de vínculo e foram morar na
cidade do Rio de Janeiro, onde exercem profissões liberais. Outros continua-
ram morando no Éden e arredores e trabalhando “lá embaixo”12 — no Centro
da cidade do Rio de Janeiro.
Dos 17 netos homens, cinco chegaram à universidade. O restante acom-
panha o mesmo perfil irregular de educação formal da geração anterior, tendo
o ensino fundamental incompleto, na maioria dos casos. Entre as 11 netas,
quatro chegaram à universidade: duas a concluíram, uma a está cursando e
sua casa um sobrinho, filho de um irmão de seu marido, que estava em pro-
cesso de separação.
A casa de Elza e João, além de ocupar um lugar central para as suas res-
pectivas redes familiares, ganhou outra dimensão com a entrada de João na
política em 1986. Para a surpresa de muitos de seus amigos integrantes de
partidos políticos de “direita”, ele se filiou ao Partido Socialista Brasileiro (PSB)
para poder concorrer a vereador. Para aqueles, ele tinha um nome forte para
concorrer e, com o apoio logístico que a direita arregimentava na Baixada Flu-
minense, acreditava-se que teria chance real de conquistar um cargo legislati-
vo municipal. No entanto, sua opção foi pela esquerda e pela implementação
de um projeto político por meios próprios. As prévias das eleições de 1988
chegaram e houve a possibilidade de coligação entre os partidos de esquerda
do município, que até então tinham representatividade incipiente. O PSB não
concordou com essa estratégia política. João e outros pré-candidatos se trans-
feriram para o Partido dos Trabalhadores, fundado pouco tempo antes em São
João de Meriti. Muitos integrantes do PT ficaram insatisfeitos com a entrada de
um comerciante nas fileiras do partido, pois ele era considerado um represen-
tante das forças conservadoras. Afinal, não era o típico trabalhador proletário.
Acontece que o filho mais velho de João era um dos fundadores do PT no
município. Como líder sindical do funcionalismo público federal e militan-
te do movimento de direitos humanos, influenciara sobremaneira a carreira
política do pai. A casa passou a ser o núcleo do partido no bairro, abrigando
regularmente reuniões da diretoria, para organização da campanha e outras
atividades relativas à associação de moradores. Na eleição de 1988, o PT não
conseguiu votação de legenda necessária para eleger candidatos. Mesmo que
isso tivesse ocorrido, os votos conquistados por João não seriam suficientes
para sua própria vitória. Sua candidatura foi novamente apresentada na elei-
ção seguinte, em 1992, e novamente derrotada nas urnas. Ele não perdeu o fô-
lego e preparava-se para voltar a concorrer ao pleito de 1996 quando faleceu,
no início do mesmo ano. Mas a política não deixou de estar presente na casa.
Elza era brizolista há anos, votava somente em integrantes do PDT, mas
não se filiara ao partido. Filiou-se ao PT quando João passou a integrar seus
quadros. Após se recuperar da morte do marido, resolveu candidatar-se ao
cargo de vereadora nas eleições de 2000. Sua militância na esquerda nunca es-
tivera associada a grupos organizados, mas, junto com João, ajudara a escon-
der perseguidos políticos no pequeno hotel da família, inaugurado em 1970.
Certa vez, ainda solteira, por pouco não foi presa como subversiva. Trabalhava
então na rádio local, cuja programação era transmitida através de alto-falan-
tes distribuídos pela praça do bairro. Em seu programa, reproduzia músicas
solicitadas pelos ouvintes, lia recados enviados pelos moradores e cantava,
a pedidos, principalmente músicas de Dalva de Oliveira. Certo dia escolheu
uma música instrumental para a abertura da programação da rádio. O sinal
foi captado pelos aparelhos da Marinha brasileira, e tratava-se nada mais nada
menos que o hino da “Internacional Socialista”. No dia seguinte, a pequena
rádio foi invadida e destruída por militares. Houve muita tensão, mas Elza
escapou da prisão “milagrosamente”. O dono da rádio alegou que tudo tinha
sido um grande engano, ensejado pela pouca idade e ingenuidade da jovem.
Não se soube o porquê da atitude benevolente dos militares nesse caso, já que
o regime se caracterizava por notória truculência. A rádio nunca reabriu, e a
carreira de Elza nessa área foi abortada. Àquela época, ela se sentia responsável
pela guarda de dois de seus irmãos: um militar e outro “subversivo”. Por mo-
tivos diversos, ambos passavam longos períodos desaparecidos: um, atuando
como agente do regime; outro, participando da resistência.
Na campanha eleitoral de 2000, a candidata realizava visitas às famílias
antigas do bairro. Em sua casa não mais se realizavam reuniões partidárias,
e ela assumiu a campanha praticamente sozinha. Com a implementação da
lei de cotas para mulheres,15 os partidos precisavam incrementar a participa-
ção das mulheres nos pleitos. Sua candidatura não gerou grande polêmica,
mas também não contou com apoio expressivo do partido, que até então não
conquistara nenhuma vaga na Câmara de Vereadores do município e investia
maciçamente em certos nomes que supostamente teriam mais condições de
eleger-se.16 Ao final da apuração, ela conquistou suados 130 votos, entre os
amigos e a família. Nesse período houve atritos com parentes que não se com-
prometeram a votar na filha mais velha do casal fundador dos Campos. Alguns
deles eram cabos eleitorais de outros candidatos, recebendo pagamento em
troca; outros seguiam as orientações dos pastores de suas respectivas igrejas.
O conflito não se devia ao receio da derrota nas urnas, já que era reconhecida
a fragilidade de sua candidatura. A questão central era a confirmação de que a
família não vinha mais em primeiro lugar. Elza enfrentou nova campanha nas
eleições de 2004, agora um pouco menos ativa que da vez anterior. Também
não conquistou a vaga, mas colaborou com seus 82 votos para a eleição do
primeiro vereador do partido na cidade. É interessante mencionar que os três
filhos que se haviam mudado para a cidade do Rio de Janeiro não transferiram
seu domicílio eleitoral para poderem votar em Elza. Nessa mesma eleição,
mais dois filhos do casal principal se candidataram ao cargo de vereador: um
em São João de Meriti e outro em Nova Iguaçu. Nenhum deles foi eleito.
A casa de Elza se consolidara como um importante suporte para os Cam-
pos desde seu casamento. Mas a doença e a morte do patriarca em 1988 pro-
vocou sensíveis mudanças na organização familiar, incluindo a maior centra-
lidade da casa da filha mais velha. Alto, muito magro, Geraldo jamais coubera
em sua cama. Após adoecer, ficava com as pernas, da canela até os pés — se-
gundo sua filha —, apoiadas numa banqueta. Ele não se locomovia mais sozi-
nho devido às dores que sentia. Após longos anos de trabalho autônomo, sem
contribuir para a previdência social, deixou como herança material apenas o
quintal. Com o seu falecimento, Pequitita passou a morar com a filha mais
velha, fora do espaço físico do quintal. Após o velório de seu marido, nunca
mais voltou a morar na casa. Com isso, o centro de decisão familiar — ético
e moral — foi transferido para a casa da filha mais velha, que sempre tinha
desempenhado um papel central na família. Conta-se que Pequitita não quis
voltar a morar na casa, pois Geraldo tinha sido velado na sala.
A estada da viúva na casa da filha mais velha se estendeu por mais de
uma década. Sem nenhum tipo de subsídio deixado por seu marido, passou a
contar afetiva e materialmente com a assistência desse núcleo, o mais estável
da família. Anos mais tarde, passou a receber um benefício previdenciário,
a “renda mensal vitalícia”, popularmente denominada “pé na cova”. Com a
Constituição Federal de 1988, seu valor passou de meio salário mínimo para
um salário mínimo integral. Tratava-se de benefício individual e intransferível,
concedido aos que jamais contribuíram ou haviam contribuído parcialmente
para a previdência social. Era preciso apresentar uma declaração do empre-
gador, o endosso de alguma autoridade e realizar uma entrevista no INSS. No
caso de Pequitita, foi acionado o tradicional “jeitinho brasileiro”. Para com-
provar que tinha realizado “trabalho urbano sem contribuições”, amigos da
família declararam que ela tinha trabalhado como passadeira em sua casa.
Outra conhecida, diretora de uma escola (e autoridade moral), confirmou a
veracidade do fato, e Pequitita foi preparada pelos familiares para a entrevista
sobre sua “carreira profissional”.
Em 2001, a convivência diária com o núcleo familiar de sua filha mais
velha foi bruscamente interrompida por um câncer desta última. Como o tra-
tamento seria longo, ela não teria mais como se responsabilizar pessoalmente
pela mãe, que, já em idade avançada e com deficiência cardíaca, necessitava
de atenção constante. Estando ambas fisicamente debilitadas, foi necessário
delegar a responsabilidade às outras irmãs. Esse período foi bastante instável
para a mãe, que constantemente mudava-se para a casa de um ou outro filho.
Houve, de qualquer modo, a transferência do cuidado para os outros filhos.
Em 2003, Pequitita faleceu. Diferentemente de seu marido, que mor-
reu e foi velado em casa, ela faleceu aos 87 anos no hospital e foi velada no
cemitério. A morte não era mais um momento a ser partilhado com a família
dentro de casa. Nenhum familiar quis “vestir a falecida” para prepará-la para
o funeral. As roupas foram enviadas para o hospital pela filha mais velha, e lá
uma enfermeira realizou o procedimento. O contato com o corpo sem vida do
ente querido estava em processo de transformação.
Todos achavam, àquela altura, que Pequitita “não morreria mais”. Por
diversas vezes estivera internada em centros de terapia intensiva — CTIs. Os
médicos a tinham desenganado uma dúzia de vezes: tinha o “coração grande”
e por isso não teria muito tempo de vida. Essa situação gerava brincadeiras
entre os filhos e netos: tão pequena, com um coração tão grande. Nas últi-
mas internações, os parentes pararam de se preocupar, pois acreditavam que
ela voltaria. Na última vez em que foi internada, a família não se mobilizou.
Na certeza de sua recuperação, não cancelaram nem mesmo um almoço em
comemoração pela primeira comunhão de um de seus bisnetos. No meio da
celebração, foram avisados de que ela estava “nas últimas”. Ninguém se im-
portou com a notícia. Pouco depois, ao receberem o aviso da morte, quase não
acreditaram.
No funeral, realizado num recinto do próprio cemitério, estiveram pre-
sentes filhos, noras, genros, netos, bisnetos, vizinhos e velhos amigos. Figura
muito querida de todos, do alto de seu 1,40 m de altura, era quase uma “lenda
viva”, como disse um de seus netos. Seus descendentes costumavam carregá-la
nos braços de um lado para o outro. Raramente falava alguma coisa, somente
ria das situações e das conversas. Mas era muito vaidosa, pintava os cabelos de
preto, fazia as sobrancelhas, pintava as unhas e adorava vestidos novos. “Não
contrariava ninguém”, diziam.
As situações que cercaram as mortes dos fundadores dos Campos mos-
traram tensões e mudanças importantes nos rumos da família, principalmente
em seu perfil religioso. Religião e experiência religiosa são temas centrais en-
sua participação nos ritos, legitimada pela conversão. Católica praticante e au-
toridade moral da família, a irmã mais velha não permitiu manifestações evan-
gélicas no velório e no enterro, impedindo as orações. Foi, assim, segundo o
ritual católico que enterraram Geraldo, aos 72 anos, junto com a sua própria
interpretação dos eventos ocorridos logo antes de sua morte.
Outra dimensão desse episódio foi apresentada à pesquisadora por João,
neto mais velho de Geraldo, também católico e primeiro dos cinco filhos de
Elza. Segundo ele, seu avô tinha chegado a lhe pedir que chamasse um padre
para ministrar a extrema-unção. Assim foi feito, e um padre amigo da família
realizou o ritual no próprio quarto do enfermo. O informante relatou esse fato
para confirmar a identidade católica de seu avô, principalmente porque não
tivera conhecimento da controvérsia até aquela entrevista, mostrando-se então
sensivelmente contrariado com tal “acusação”, capaz de manchar a memória
de seu avô.
A suposta conversão do patriarca permaneceu no imaginário familiar,
contribuindo para a disputa por legitimidade religiosa. Mas algumas mudan-
ças tornaram-se evidentes no funeral de Pequitita, em 2003. Momentos antes
do enterro propriamente dito, os netos convertidos ao pentecostalismo toma-
ram a palavra e fizeram orações em voz alta. A baixa escolaridade e a esponta-
neidade das falas era evidente. Não faltaram “aleluias!” e “Senhor Jesus”. Não
foram, no entanto, impedidos de manifestar sua fé e render suas homenagens.
As críticas continuavam a existir, mas começava-se a reconhecer o pluralismo
religioso intrafamiliar.
O cortejo fúnebre se encaminhou até o local onde o corpo seria enterra-
do. Lá chegando, fizeram-se novas orações. Não havia ali um padre católico,
pois nenhum estava disponível.18 A oração do pai-nosso congregou todas as
facções, mas o ritual católico ainda prevaleceu, com as orações finais e a en-
comenda do corpo. Confirmava-se assim uma crescente aceitação das conver-
sões religiosas e da participação efetiva dos evangélicos nas comemorações
familiares ao longo das décadas de 1990 e 2000, principalmente no tocante à
terceira geração. Ao mesmo tempo, os grandes encontros da família — com a
presença de todas as 10 linhagens descendentes — tornaram-se escassos.
Com a complexificação do campo religioso, principalmente devido à ex-
pansão e crescimento das igrejas pentecostais a partir dos anos 1970, as refe-
rências religiosas e espaciais foram ampliadas. Não há mais apenas uma igreja,
mas muitas, de vários nomes e tipos, não raro situadas lado a lado. A paisagem
Notas
1
Disponível em: <www.muriae.mg.gov.br>. Acesso em: 6 jun. 2007.
2
A Região Metropolitana do Rio de Janeiro é composta pelos seguintes municípios:
Belford Roxo, Duque de Caxias, Nilópolis, Japeri, Nova Iguaçu, Queimados, São
João de Meriti (todos na Baixada Fluminense), Guapimirim, Itaboraí, Magé, Man-
garatiba, Maricá, Niterói, Paracambi, São Gonçalo e o próprio Rio de Janeiro.
3
Costa (2006) elabora uma boa síntese da história e do processo de estigmatização
da região e de seus moradores. Destaca, no entanto, a existência de “novas constru-
ções identitárias” locais a partir dos anos 1990, quando a Baixada passa de “gueto”
a “caldeirão cultural”. Ver também Enne (2002).
4
A região, considerada uma “cidade dormitório”, fornece mão-de-obra especialmen-
te para a cidade do Rio de Janeiro. Em conjunto com os demais municípios, São
João de Meriti tornou-se conhecido por figurar nas páginas policiais dos jornais
como “área de desova” e quase sempre como sinônimo de violência e miséria, o que
lhe confere uma carga negativa e preconceituosa (ver Alves, 1998). Sua densidade
demográfica é hoje a mais elevada do país (ver IBGE, 2000).
5
Disponível em: <www.prefeiturasaojoaodemeriti.rj.gov.br/eden.html>.
6
Mas também há relatos sobre a conservação das carnes em banha de porco, em
latões de 20 litros. Geraldo não comia abóbora porque era “comida para porcos”
nas fazendas. Essa postura pode parecer contraditória, mas, se a associarmos ao
período próspero anteriormente vivido em Minas Gerais, em contraste com o pos-
sível passado de pobreza na infância, torna-se compreensível que “comer abóbora”
simbolizava sucumbir à nova condição de pobreza que se apresentava.
7
Birosca é um tipo de comércio familiar construído à frente das casas, em bairros
populares. Geralmente aí se vendem vários produtos, mas principalmente bebidas
e salgados. Ver Machado da Silva (1969) para uma análise do botequim de favela,
antecessor da birosca.
8
Bourdieu, 1962; Salem, 1981; Duarte, 1986; Sarti, 1995 e 1996.
9
Whyte, 2005.
10
DaMatta, 1997.
11
Essa “patrilocalidade” poderia ser interpretada nos termos do privilégio da relação
entre os filhos homens e suas mães nas classes populares, tal como proposto por
Salem (2006) com relação ao conhecido tema da “matrifocalidade”. O modelo re-
ferido, no entanto, aplica-se às freqüentes unidades domésticas em que o pai pro-
vedor é fraco ou está ausente e em que a moradia do filho representa, no mais das
vezes, sua separação da companheira ou da mãe de seus filhos. A situação aqui é
outra, já que se trata da agregação de novos núcleos completos a uma unidade ori-
ginal em que o pai esteve presente até sua morte (ocasião em que a viúva se afastou
de sua própria casa).
12
Essa locução marca a distinção entre a Baixada Fluminense e a cidade do Rio de Ja-
neiro. Quando se dirigem para o Centro da cidade do Rio de Janeiro, os moradores
da Baixada costumam dizer que vão “descer para a cidade”.
13
Nas camadas populares, a entrada masculina na “viração” ocorre já na adolescência
ou mesmo na infância, sem considerar outras dificuldades supervenientes para a
C a s a e f a m í l i a nas classes
p o p u l ares
O acesso a uma casa — que representa sua inclusão em uma família — pode
representar a diferença entre a possibilidade de se manter nos segmentos mais
estabilizados da classe trabalhadora ou de se transformar em um morador
de rua, naquele “trabalhador que não deu certo”, na apropriada
expressão de Delma Pessanha Neves.
Guedes, 1983:133
não faz parte das preocupações essenciais de seus integrantes. Salvo raras ex-
ceções, a lembrança dos antepassados se restringe ao nome dos avós e de
alguns episódios, geralmente engraçados (ou assim considerados a posteriori),
que evocam atitudes presenciadas pelos respectivos netos. Estes, já adultos
e com filhos que conviveram por poucos anos com os avós, compartilham
essas lembranças ou com a geração anterior ou com a sua própria. É notória
a defasagem na transmissão dessas informações à geração subseqüente, ou
seja, os filhos dos netos, que, mesmo participando dos encontros familiares,
são ainda crianças e não incorporam os detalhes das narrativas. Além disso,
não há uma pedagogia de transmissão da memória familiar a elas direcionada.
As recordações e os nomes se atualizam entre os adultos, que poucas vezes
se reúnem para “lembrar” e se perdem na relação frouxa estabelecida com as
novas gerações. Assim, os vínculos com os antepassados são paulatinamente
esquecidos, na falta de recursos formais ou institucionais de memória.
Outro problema regular da pesquisa com redes familiares consiste na
objetivação de uma experiência fluida e móvel de relações de parentesco num
“quadro” estabilizado. Não é recente na antropologia a consciência e a crítica
do efeito desvirtuador do sentido da experiência relacional original produzido
pela representação ocidental de um “quadro genealógico”, “grade de parentes-
co” ou “árvore genealógica”,8 em virtude da hegemonia de nossa ideologia da
descendência “de sangue”, da conseqüente bilateralidade do reconhecimento
dos laços ascendentes e descendentes e do enrijecimento, num esqueleto for-
mal, de uma complexa e permanente mobilidade.
Embora a ideologia da descendência substantiva pelo sangue seja com-
partilhada por todos os segmentos das sociedades ocidentais, ela não leva
necessária nem regularmente à formalização de quadros genealógicos. Trata-
se de uma prática que, no caso aqui examinado, era totalmente estranha aos
Costa, aos Gomes e aos Duarte, que não dispunham de qualquer representa-
ção objetivada desse tipo. A própria preocupação com a preservação da me-
mória da composição das gerações pretéritas não era distribuída uniforme-
mente nessas famílias. Sempre parecia haver portadores preferenciais dessa
memória,9 mas sua sucessão não era linear ou garantida. Na medida em que
são os membros mais velhos dessas redes (e, entre eles, prioritariamente as
mulheres) que tendem a assumir a função de rememorar as condições ante-
riores da vida familiar — e, por meio delas, as formas passadas de composi-
ção das redes —, também se pode verificar uma distribuição desse papel nas
inscritas. Assim como a lembrança dos nomes dos antepassados não vai muito
além dos avós, salvo para os poucos especialistas das “memórias familiares”, os
objetos parecem também se perder na dinâmica familiar das camadas popu-
lares. Os significados ficam restritos a determinados ramos ou núcleos e facil-
mente se diluem logo nas primeiras gerações subseqüentes. Os deslocamentos
espaciais (na casa ou entre casas) e transgeracionais dos objetos sempre lan-
çam luz sobre as dinâmicas englobantes.11
L. Duarte foi o primeiro a transformar os dados esparsos das memórias
individuais das famílias estudadas numa tabela ou quadro racionalizado (tanto
para os Costa quanto para os Duarte). Em ambos os casos, houve certa dificul-
dade, por parte dos informantes a quem foram mostrados esses quadros, para
perceber através das convenções antropológicas da descendência as relações
reais a que buscavam se referir. A partir daí, no entanto, interessavam-se em
completar ou corrigir as lacunas dessa fórmula, embora ficasse claro — mais
para os Costa do que para os Duarte — que a memória e o conhecimento não
eram uniformemente distribuídos na trama bilateral e na sucessão das gera-
ções. Por vezes eram evocados “parentes” cuja localização na “árvore” não era
totalmente clara, embora isso não lhes tirasse a condição de “parentes”. Uma
informante da família Duarte, por sua vez, ao ver o nome de uma parente por
afinidade (ou seja, uma “contraparente”) no quadro, na linha correspondente
à segunda geração, fez ver ao autor que aquela pessoa não era “parente” e,
portanto, não devia figurar ali — ainda que, na condição de viúva sem filhos,
tivesse participado intensamente da rede familiar do cunhado. Na casa dos
Costa, ao discutir com Humberto o quadro que compusera com sua falecida
filha mais velha há mais de 30 anos, uma outra filha presente exclamou em
tom meio irônico: “ah, é a nossa árvore genealógica!”, mas na verdade não par-
ticipou com grande entusiasmo da tarefa, evidentemente um tanto aborrecida
para todos, de checar nas respectivas memórias se tal primo distante casara,
mudara ou tivera filhos. O quadro de que dispunha o pesquisador — bastante
abrangente e de que outrora muito se orgulhara — parecia agora um instru-
mento tosco e incômodo. Ocorreu também um fato análogo entre os Campos.
E. Gomes, como mencionado anteriormente, fora reconhecida pelos familiares
como uma “profissional que faz árvore genealógica”. Em termos instrumentais,
foi a pesquisadora que acabou por compô-la, com o auxílio de alguns familia-
res. A principal informante foi Elza, a responsável pela tarefa de “lembrar”. No
entanto, o inventário dos nomes se relacionava aos antepassados, aos de sua
suas contínuas atividades manuais, porém sem fins econômicos (pelo menos
regulares). Assim como a casa, o originário bairro operário passou por intensas
transformações. A paulatina degradação urbana e a pauperização do entorno
do Centro da antiga capital federal alterou a paisagem do bairro operário ori-
ginal, pondo em xeque o modelo sanitarista anterior. Algumas relações de vi-
zinhança construídas na interação de casa e bairro ainda sobrevivem ao tempo
e às mudanças de endereço. A casa é ponto de referência e, ao mesmo tempo,
de passagem, de modo a ensejar a impressão de que se pode sempre retornar.
Permanece habitada por membros da família, assim como nas lembranças da-
queles que por ali passaram.
Em Jurujuba, como já dito, a “casa” tem, na verdade, uma configuração
mais ampla e um tanto frouxa, de que participam várias construções não con-
tíguas. A presença física do casal original numa dessas construções lhe confere
um status focal, mas a memória familiar e a experiência pessoal concreta do
habitar abarcam uma rede de unidades domésticas mais ou menos próximas.
O fato de se localizarem no mesmo bairro confere à maioria delas um caráter
mais intenso que o das demais. Como a implantação da família no bairro é
imemorial (podendo-se mesmo falar de um mito de autoctonia), há pouca
ênfase na história de cada uma das unidades, como se casa e localidade se
confundissem ou se amalgamassem em determinados níveis. Em certos relatos
surge uma espécie de linhagem de casas (físicas) pelas quais perpassa a casa
moral. Algumas ainda subsistem como residências de parentes, outras se en-
contram em ruínas, na mata. As duas casas vivenciadas como principais, a de
Humberto Costa e a que pertencera a seus pais (e veio a ser ocupada por sua
filha primogênita e seus descendentes) foram provavelmente fruto de auto-
construção e passaram por numerosas modificações, tendentes a expandir sua
capacidade de acolhimento e a incorporar as novas modalidades de conforto
doméstico surgidas ao longo do século XX.
A casa de Humberto não se caracterizava como um espaço de trabalho.
Porém, do ponto de vista da antiga pesca artesanal, podia ser considerada
como uma unidade conjunta com a pescaria e com a “companha” (nela se
guardavam parte dos apetrechos móveis da atividade, se teciam e remendavam
redes, se salgava parte do pescado para consumo doméstico). No período em
que o pesquisador lá esteve, essa característica começava a se diluir, embora
Humberto até hoje teça redes para a família na sala de visitas, como forma de
“se distrair”. Como foi mencionado, num determinado momento da carreira
filho mais velho e alguns de seus descendentes que até então moravam nas
imediações. Os cômodos de baixo foram transformados em pequenas lojas
(“sacolão”, barbearia, lanchonete), construídas para o sustento dos ramos res-
ponsáveis pelos respectivos comércios ali instalados.
As três casas abrigam distintas histórias familiares, marcadas por profun-
das mudanças sociais, principalmente a partir de meados do século XX. Foram
espremidas pela ocupação desenfreada de seus entornos, em decorrência de
um longo processo de pauperização e luta pela sobrevivência da população
dos bairros pobres ou das periferias metropolitanas. A casa, o bairro e a vizi-
nhança reúnem elementos imprescindíveis para a manutenção e reprodução
da família popular. Nas três casas15 das famílias analisadas, a combinação fa-
mília-casa se soma a bairro ou localidade como categoria significativa, que os
seus integrantes tomam como referência.16 As memórias das três casas origi-
nais estão atreladas à história das localidades nas quais foram construídas.
Jurujuba, Salvador de Sá (Estácio) e Gato Preto (Éden) assumem em muitas
situações a qualidade de sinônimos das famílias Costa, Duarte e Campos, res-
pectivamente. Os termos se confundem e são freqüentemente utilizados para
designar a ocorrência de algum evento na respectiva casa. “Passar no Gato Pre-
to”, por exemplo, significa que se fará uma visita à casa original dos Campos.
Casa, família e localidade estão integradas nas lembranças dos grupos domés-
ticos, amalgamadas por sua longa vinculação no tempo. Hoggart (1973:99)
assinala a essencialidade da família, do bairro e da vizinhança na vida das
classes operárias e os riscos da fluidez da vida moderna para a preservação
de sua identidade. Essa característica se impõe pela crucialidade das relações
mais próximas, face a face, de redes densas:
o indivíduo sabe que está integrado num grupo, porque experimenta o calor
humano e a sensação de segurança que lhe são facultados pelo próprio fato de
pertencer ao grupo, porque o grupo se mantém sempre igual a si mesmo, e por-
que se vê freqüentemente obrigado a recorrer à ajuda dos vizinhos (...).
um bom número de anos. Assim também fizeram, ainda que por períodos
bem mais curtos, seus dois irmãos. Antes disso, o círculo kardecista de Milton
Duarte tinha mantido intensa a circulação moral local. Já se falou também da
importância das festas que ali congregavam a parentela, desde os aniversários
dos moradores ou de outros parentes até festas de casamento ou de bodas.
Para o pesquisador, o cheiro de mate queimado é até hoje indissociável do in-
defectível lanche da tarde servido com pão e manteiga a um cambiante círculo
de convivas na varanda dos fundos.
A casa de Humberto Costa ainda é o epicentro das trocas sociais da rede
de parentes, vizinhos e amigos. Nela dificilmente estão presentes apenas os
seus moradores regulares (os que ali dormem todas as noites), sobretudo agora
que a avançada idade e precária saúde do casal exigem companhia constante.
Em diversos momentos convivi com pessoas que ali habitavam e cujo estatuto
me era impossível discernir — um pouco agregados, um pouco empregados
ou acompanhantes, confundiam-se com o fluxo dos parentes. A parte frontei-
riça da casa (varanda, sala e cozinha) está na maior parte do tempo disponível
para quem quer que se aproxime, embora a porta da sala só costume ser aberta
para acolher “visitas”, como a do pesquisador. O acesso dos familiares se faz
normalmente pela cozinha. Em ocasiões festivas, como na festa de são Pedro,
a casa permanece literalmente aberta, com uma enorme panela cheia sobre o
fogão, da qual os mais variados visitantes vão-se servindo. De vez em quando,
alguma das muitas mulheres da rede trata de pôr ordem na mesa da cozinha e
nas pias, para possibilitar o fluxo constante dos comensais.
Trata-se sempre de uma “cozinha relacional” — e não de um mero en-
contro de indivíduos —, pautada pelas relações interpessoais que envolvem
a “comida” numa sociedade com as características da brasileira.27 A distinção
entre “comida” e “alimento” é um aspecto relevante para se abordar o tema.28
Gonçalves (2007:182) afirma que “a comida é assim social e culturalmente
significativa e conseqüentemente distinta da experiência estritamente fisioló-
gica de alimentar-se. A ‘comida’ tem a ver com apetite e paladar. No caso do
‘alimento’, o apetite é substituído pela fome”. Ele ressalta a importância da
referência feita por DaMatta (1984) ao lugar da farinha no sistema culinário
brasileiro, relacional, em oposição a outros sistemas nos quais os alimentos
são servidos em pratos separados, individualizados, civilizados. A farinha seria
o componente que permite a mistura, a combinação entre os diferentes ali-
mentos e seus sabores. E. Gomes lembra-se de um episódio em que essas duas
esparsas memórias jocosas ainda perduram) foram “criados” por longos perío
dos por Sebastião e Maricota Duarte. E, num caso mais extremo, por se ter
consolidado até o fim de suas vidas, ocorreu a “adoção” informal, por Milton e
Laura, do casal de sobrinhos órfãos. Em Jurujuba, o permanente fluxo entre as
unidades componentes da configuração doméstica torna difícil definir quais
crianças estão morando com quem em cada momento. A situação mais nítida
e formal foi a do terceiro filho homem de Humberto, que foi oficialmente
“criado” por Amélia, enquanto esta morava autonomamente.
A circulação não é jamais percebida como um abandono, pois as crianças
não são “dadas” a outros, e sim cuidadas por pessoas próximas, que comun-
gam de uma mesma lógica familiar.31 Nesse ponto não há diferença entre a cir-
culação entre parentes que vivem no mesmo quintal ou entre aqueles que mo-
ram fora dos limites desse território. A noção de casa é ampliada moralmente,
passando a incluir os parentes externos ao quintal. No caso da circulação de
crianças no circuito de parentes mais distantes, um fator importante para a
decisão é o lugar ocupado pelo cuidador na hierarquia familiar, geralmente
avaliado pela linha feminina.
O empenho dos autores em transmitir a estranheza que causa aos obser-
vadores de “classe média” a experiência de um tão intenso regime de circula-
ção de bens e pessoas talvez possa dar ao leitor a impressão de uma excessiva
idealização da imagem de um paraíso relacional em via de se perder (ou ine-
xoravelmente perdido, no caso dos Duarte). Cumpre então repetir que o re-
trato assim traçado visa a iluminar as dimensões lembradas e vivenciadas por
seus interlocutores como positivas e dignas de mais enfático registro. Elas são
sempre o contraponto cálido e acolhedor de memórias ou registros presentes
de vidas extremamente mais complexas, onde o papel da luta, do sofrimento
e dos conflitos é absolutamente crucial. Melhor dizendo, é talvez o pano de
fundo contra o qual se recortam todas as qualidades positivas da solidariedade
e da comunhão. Não se trata aí apenas das dificuldades de reprodução eco-
nômica, da falência dos projetos de vida, das ameaças da doença e da morte.
A comensalidade, o acolhimento e a circulação de crianças não se dão sem
tensões e desapontamentos. O insucesso relacional pode ser tão enfatizado
nos relatos quanto seu curso positivo, dependendo da posição dos sujeitos e
da situação de entrevista ou conversa. Amélia Costa, por exemplo, tão vivaz
em toda a sua relação com a vida e o passado, expressava sentimentos extre-
mamente amargos em relação ao núcleo familiar com o qual era obrigada a
pela difusão permanente, ainda que irregular, da cosmologia moderna nas so-
ciedades contemporâneas, levada a cabo por uma disseminação produtora de
“institucionalizações” estruturantes que vêm atingindo inclusive as camadas po-
pulares: mercantilização, igualitarização, liberalização do espaço público.33
Ficou muito difícil. Se (...) eles tiverem que ir para a igreja, não deixam de ir para
a igreja para estar com a família. É aquele negócio, a família deles é mais lá. Eles
consideram mais lá. Eu acho que eles consideram mais irmão os de lá que os ir-
mãos mesmo. Só esse negócio de aniversário, fazer bolo, levar para partir na igreja
e deixar os outros olhando. Mora lá nos fundos, passa com bolo cheiroso e leva
para a igreja. Os irmãos estão ali, no mesmo quintal e não ganham nenhum peda-
ço. Não pode! Há uma separação. Eles separam, sim. Eles separam. Se convertem
e ficam se sentindo o máximo. Aí, os sobrinhos pequenos vão porque vai cortar
o bolo lá [na igreja]. Quer dizer, é um chamariz. Igual na macumba, quando tem
bolo e guaraná o pessoal vai. Igual a Cosme e Damião. Aí enche a igreja.
essa família ou ‘grupo doméstico’ do que o sujeito social isolado que valoriza-
mos sob a categoria indivíduo”.48 A autoridade tradicional — relacional — é
abalada pela autoridade individual, sobretudo quando o convertido assume
um novo status influente dentro da dinâmica familiar.
Assim como a inscrição na fachada da casa de Humberto Costa, novas
atitudes foram surgindo em decorrência do contexto religioso contemporâ-
neo. Elza, responsável pelas memórias materiais e imateriais da família dos
Campos, assumiu nova função: guardiã de objetos sagrados rejeitados e de-
serdados devido às conversões de familiares e conhecidos. A casa convive dia-
riamente com o pluralismo religioso na vizinhança, no bairro e nas próprias
relações de parentesco. Elza faz questão de enfatizar suas marcas distintivas
em relação aos evangélicos. É integrante da tradicional Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos. Entre seus objetos fa-
voritos e dignos de um lugar especial em seu quarto estão imagens e quadros
de santos, além do Sagrado Coração de Jesus e da Sagrada Família. Essa cole-
ção não ocupa grande espaço no conjunto da casa, mas se destaca por ostentar
a forte adesão ao catolicismo. A coleção vem recebendo novos objetos, por
vias curiosas. Sua nora lhe contou que uma conhecida não sabia o que fazer
com uma estátua de são Jorge que estava há tempos na família. A conversão ao
pentecostalismo lhe impusera o afastamento da devoção ao santo. Não queria
quebrá-la, como demonstração explícita de seu novo pertencimento religioso.
Embora demonstrasse forte adesão ao novo credo, não desejava destruir a
imagem, embora necessitasse romper afetiva e efetivamente com ela. O dilema
foi resolvido com a adoção do são Jorge por Elza, que propôs recebê-lo em
sua casa. A ex-devota convertida não teve que levar às últimas conseqüências
a iconoclastia de sua nova confissão, e a católica ficou satisfeita por salvar a
imagem de sua devoção.
Batismos, casamentos, aniversários e outras reuniões se configuram como
aglutinadores dos familiares pertencentes às três casas. Novos contornos e sig-
nificados para tais rituais — muitas vezes sutis — são identificáveis em fun-
ção da emergência do pluralismo religioso dentro das famílias. A participação
nesses eventos e a relação com os rituais e objetos que neles circulam também
vão-se alterando de acordo com diversos outros fatores ao longo do tempo,
com a sucessão das gerações, a bifurcação e afastamento das linhagens, as dife-
renciações sociais, as mudanças mais gerais impostas pelo processo histórico.
Apesar de todas essas mudanças gerais e das transformações por que passa-
ram as relações nas três famílias e suas bases domésticas originais, é inevitável
concordar com DaMatta (2006:18) quando ele diz que a casa “continua sendo
uma instituição ainda sem rival na sociedade brasileira”.
Notas
1
�����������������������������������������������������������
Schneider, 1968; Lévi-Strauss, 1983; Singly, 2001a e 2001b.
2
������������
Goody, 1969.
3
����������������
Woortmann, 1995.
4
�����������������
Guedes, 2006:141.
5
��������������������������������������������������������
Dumont, 1971; Schneider, 1968; Strathern, 1992a e 1992b.
6
Abreu, 1982; Schneider, 1968.
7
Cabral, 2005.
8
É importante destacar que o ensino formal atual no Rio de Janeiro, principalmente
em colégios privados, adota materiais didáticos que estimulam a coleta de infor-
mações sobre os antepassados, por meio da confecção de árvores genealógicas que
partem de ego para os ascendentes, geralmente até os avós maternos e paternos.
9
Barros, 1987; Lomnitz e Perez-Lizaur, 1987; Carvalho, 2005; Duarte, 2006a.
10
Barros (2006:25) aponta diferenças de percepção entre homens e mulheres em
relação às lembranças sobre a casa. Esta, nos relatos das mulheres, era associada ao
“extenuante trabalho doméstico que se misturava com a “ajuda” ao marido”, geral-
mente no local de trabalho dele, como um comércio, ou na própria casa, como é o
caso da costura, da lavagem de “roupa para fora” etc.
11
Carvalho, 2005; Gonçalves, 2007.
12
A gestão das famílias sobre sua identidade no tempo pode variar enormemente,
mesmo dentro de grupos de ethos muito semelhantes. Na família Duarte, por exem-
plo, uma das linhagens menos preocupadas com as fotos dos antepassados (dis-
pondo mesmo de muito poucas) tinha grande zelo pelo acervo de fotos dos vivos
e descendentes (a filha e os netos da informante, por exemplo). No entanto, esse
membro da terceira geração que dispunha de tão poucas fotografias era o mesmo
que conservara maior número de documentos pessoais e mesmo de objetos de seu
pai (como uma camisa que ele usava para praticar remo nos anos 1930).
13
A amplitude e o significado dos três quadros de parentesco apresentados em anexo
não são os mesmos para cada uma das redes. As famílias Costa e Duarte reconhe-
cem numerosas linhagens colaterais (às vezes remontando a várias gerações), mais
19
Guedes (1997:144) sugere que a incorporação do modelo de família nuclear con-
jugal pode ser vista como uma tentativa de adequação “a um modelo de família que
se naturalizou como ‘o’ modelo, impondo-se por diversas vias”.
20
Gell (1998:104) desenvolve uma interessante análise do que chama de distributed
personhood, para dar conta da “emanação” contínua que se desprende dos entes
dotados de uma qualidade religiosa (e “artística”) no seu meio social, para além
dos limites de suas corporalidades imediatas. Menciona, inclusive, em homologia,
a experiência das fotografias como índices da presença real das pessoas. Embora
pareça apenas uma versão empirista da noção maussiana do mana (abstraída como
“significante flutuante” por Lévi-Strauss), essa imagem pode ser útil para evocar a
qualidade quase palpável desse “éter” em que se banham as relacionalidades fami-
liares populares. Numa rede mais holista de relações, como as que se analisam aqui,
esse entranhamento precede os sujeitos que aí emergem. As identidades constro-
em-se nas interações concretas de cada trajetória, mas isso ocorre num mundo já
dado, culturalmente imantado. Sofrerá talvez mutações nesses trajetos, em função
dos muitos eventos que poderão (ou não) desafiá-lo, de geração para geração. Ver
também Sahlins (1985).
21
Guedes e Lima (2006:139) assinalam a importância dos “puxados”, “quintais” e
“lajes” no estabelecimento das relações familiares e de vizinhança no Grande Rio.
Pode-se acrescentar aqui o papel das “esquinas” (Foote Whyte, 2005) e “calçadas”
como locais de agregação e sociabilidade das periferias urbanas, como os subúr-
bios.
22
Segundo Mauss (2001:122), na reciprocidade “sabemos que nos comprometemos
(...). Faz-se mais do que se beneficiar de uma coisa e de uma festa, aceitou-se um
desafio, pôde-se aceitá-lo porque se tem a certeza de retribuir, de provar que não se
é desigual”.
23
Peixoto, 2000.
24
Marcelin, 1999:33.
25
Referindo-se à diferença entre a sociedade norte-americana e as sociedades me-
lanésias por ele estudadas, Wagner �����������������������������������������
(1981:91)��������������������������������
faz uma afirmação que bem pode
aplicar-se à preeminência da casa sobre seus membros observada no meio social
aqui analisado: “these ‘styles’ of familial and kin interaction differ from those of middle-
class Americans in that they make family and relationship the invisible context of explicit
individual action, rather than make the individual the implicit context of purposeful fa-
milial existence. The
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family (and for that matter ‘society’ as a whole) is not ‘planned’, it is
precipitated”.
26
Duarte, 1999:26.
27
DaMatta, 1984.
28
Cascudo, 1962; DaMatta, 1984.
29
Maués (2006) fez uma análise interessante da circulação de crianças, estendendo-a
a outras camadas sociais. A seu ver essa prática pode ser considerada um elemento
básico no tipo de organização de parentesco encontrado no Brasil.
30
Maués, 2006:188.
31
Sarti, 1996.
32
“Por todas estas razões, a vida no proletariado parece guiada por uma espécie de
hedonismo, que considera a vida muito aceitável, desde que se consigam evitar as
grandes preocupações (as dívidas, a bebida, a doença), e enquanto seja possível
“ter alguns prazeres”. Mas esse hedonismo é muito relativo, pois subsiste sempre
a convicção profunda de que as melhores coisas da vida são para outros. (...). São
muito comuns as frases do gênero “temos de ver o lado bom das coisas”, “o que
é preciso é cara alegre”, “os pequenos prazeres é que dão graça à vida”, “temos de
aproveitar o que há de bom em cada dia”, “não somos ricos, mas tiramos partido
da vida”. Hoggart, 1973:163.
33
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Duarte et al., 2006:17.
34
Para uma discussão mais aprofundada sobre esse debate, ver Sanchis,1994 e San-
chis et al., 2001.
35
Gomes, 2008.
36
Segundo Vera Telles (2006:75), “as formas de moradia e sua localização no tecido
urbano, para além dos indicadores de maior ou menor precariedade habitacio-
nal, traduzem tempos coletivos e trajetórias urbanas, representam a consolidação
ou rupturas de redes sociais e teias de solidariedade e interagem com dinâmicas
familiares e formas de composição da vida doméstica, tudo isso convergindo na
construção de uma topografia da cidade que não corresponde ao seu mapa físico.
É uma topografia feita de marcações de distâncias e proximidades, desenhada pelos
circuitos e que interagem com os fluxos urbanos que, em princípio, os serviços
públicos organizam ou deveriam organizar”. Bott (1976:109) considera como fator
significativo para a compreensão da “família urbana” o “grau de conexidade das
redes estabelecidas (‘malha estreita’ e ‘malha frouxa’), dependendo este do investi-
mento das próprias famílias no estabelecimento da amarração das malhas. Fatores
como escolher ou não a aproximação com a vizinhança e as mudanças de endereço
afetam as conexões que sustentam as redes”.
37
Gomes, 2006a; Couto, 2001. Ver também a análise que Reinhardt (2007) fez das
relações entre as instituições de culto afro-brasileiras e as igrejas pentecostais em
Salvador, na Bahia.
38
Fernandes, 1998.
39
Birman, 2003; Hervieu-Léger, 1997; Mariz e Machado, 1998.
40
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Duarte et al., 2006.
41
A importância do espaço da varanda nesse meio social foi apontada por Guedes
(2006:138). Também para os informantes de Heilborn (1984:95), caracterizados
como de “baixa classe média”, no subúrbio carioca, a varanda tinha grande impor-
tância, diferenciando-se dos casos aqui analisados por ser dupla: uma frontal e uma
posterior (mais íntima).
42
A idéia de vitória como sinônimo de conquista (Gomes, 2004 e 2007) orienta as
vertentes mais recentes do cristianismo, em especial as neopentecostais e as ca-
rismáticas católicas, que acentuam o papel da prosperidade em suas doutrinas e
práticas. Ver também Lima (2007).
43
Magnani (1991:43-44) aponta a existência de distintos tipos de umbanda, não sen-
do possível a realização de uma síntese doutrinária e ritual. O kardecismo de “mesa
branca” tem caráter mais “ocidentalizado”, contido, o pólo oposto ao candomblé,
no qual “desaparecem os atabaques, pontos cantados e riscados, substituídos por
palmas, preces e música suave, havendo predileção pela ave-maria (...). Tudo muito
organizado, os horários seguidos à risca (...), onde só descem espíritos evoluídos de
médicos, padres, cientistas”.
44
Ao contrário do que ocorreu com sua esposa, cuja morte foi intermediada pela
instituição hospitalar — “morte moderna” (Ariès, 1981), “medicalizada” (Foucault,
1979) e afastada da vida cotidiana dos parentes e vizinhos (Elias, 2001).
45
Duarte, 2006:20.
46
Entre os Campos observou-se um investimento contínuo na conquista de espaço
entre os participantes das correntes religiosas em disputa. Uma característica inte-
ressante, a ser aprofundada em próximas pesquisas, é a freqüente adesão às práticas
religiosas da mãe do marido, quando são as esposas que se mudam para o “quintal”
da família do cônjuge. A sogra assume papel crucial na adoção de um novo ethos re-
ligioso pela nora, mesmo que o cônjuge não freqüente a denominação de sua mãe.
A adesão à nova família não ocorre sem tensão, principalmente quando também
inclui a adoção da fé religiosa da família do marido, tornada evidente na realização
do casamento no espaço religioso da nova família. Ver Gomes (2006a e 2006b).
47
A combinação entre conversão e casamento está fortemente presente na terceira ge-
ração. Isso incrementa a dinâmica interna de diversificação religiosa da rede fami-
liar. Entre os netos, as formas de regulação das relações conjugais via religião estão
articuladas ao espaço adquirido pelos evangélicos pentecostais dentro da rede fami-
liar na década de 1990. Nas conversões ao campo evangélico, as relações de aliança
e sociabilidade vinculadas à opção religiosa tendem a se tornar mais preeminentes
que as relações de sangue. Os casais que se formam — aqueles que privilegiam o
casamento no religioso — tendem a ser intra-evangélicos.
48
Duarte, 1995:33.
C o n d i ç õ e s d i f erenciais de
r e p r o dução
A s formas pelas quais os sujeitos que povoam este livro foram construin-
do suas trajetórias, mais ou menos centradas no núcleo casa/família, de-
pendem de uma série de fatores envolventes, de um “contexto”, que se pode
apreciar de um ponto de vista mais socioeconômico ou mais moral, bastante
variável ao longo do período histórico aqui privilegiado.
A separação entre essas diferentes condições de reprodução não é apenas
um artifício ético, exógeno, decorrente das compartimentações dos saberes
sobre o humano em nossa cultura erudita. Também os sujeitos observados
buscam delimitar patamares diferentes de explicação dos processos que en-
frentaram em suas histórias de vida — patamares que podem variar situa-
cionalmente, é claro. Não procedem, porém, a essa busca com os mesmos
instrumentos e a partir das mesmas propriedades reflexivas que os dos pesqui-
sadores. A possibilidade de objetivação ou racionalização desses “fatores” está
contida nas regras mesmas de construção de seu mundo significativo, onde
O trabalho
Dantes, a classe do meio era rala e composta em boa parte pelos próprios fun-
cionários, cujos cargos, dos poucos regularmente pagos, permitiam situar o in-
divíduo num quadro definido da hierarquia social. Quando se pensa que as
oligarquias provinciais e depois estaduais reservavam ciosamente para si a indi-
cação do pessoal das repartições e de lugares como delegado, coletor provincial
ou geral; quando se pensa nisso é que se vê até que ponto a vida na nação girava
em boa parte à volta do ser ou não ser funcionário.
alta posição na administração imperial, através de uma das raras portas abertas
à mudança de status na sociedade brasileira:7
Tinha saído do nada e queria subir. Quais os caminhos? Podia ser comer-
ciante, traficar escravos, contrabandear, arranjar concessões públicas; mas
para isso era preciso uma certa paixão do ganho que quebra a linha, e ele
evitava por natureza os aspectos brutais da luta. A política seria a carreira
suprema, mas estava praticamente fechada porque lhe faltavam, além da vo-
cação, outros requisitos: não era doutor, não tinha parentela, nem dinheiro,
nem aliados. Nessa redução de perspectivas, a burocracia foi a porta estreita
que daria o pão com o respeito, que permitiria exercer o mando depois de
muito obedecer, que poderia capitalizar como trunfos as boas maneiras, as
boas leituras, o bom jeito.
teste para ser confirmado num cargo nessa empresa pública, para o qual,
no entanto, tinha sido indicado por um oficial amigo num momento par-
ticularmente difícil de sua vida. Desse emprego, fonte de grande ambi-
valência para Humberto, em função de sua associação prioritária com a
pesca e a marinha, ele conseguiu, afinal, obter sua primeira aposentadoria,
ainda que por motivos de saúde. O único filho que, por influência sua,
entrou também nesse emprego acabou sendo afastado. Hoje, dois de seus
jovens netos lá se encontram trabalhando, ao mesmo tempo em que estu-
dam — mas não foi possível saber se alguma influência pessoal se juntou
à necessária aprovação nos concursos oficiais para ingresso na empresa,
mesmo em seus níveis menos qualificados.
O acesso e a promoção por desempenho já estavam mais firmemente
implantados no serviço público militar há mais tempo, aliás, apesar de con-
sideráveis contradições, sobretudo na Marinha,11 e em relação aos soldados,
praças e suboficiais. De qualquer modo, é parte inseparável do orgulho de
Humberto em relação à sua carreira militar o fato de ter sido aprovado no
exame para escola de Angra dos Reis. Sua menção aos contemporâneos que,
à mesma época, tinham sido majoritariamente mal-sucedidos sublinha a im-
portância desse fato nos anos 1930, sobretudo para gente associada às lides
do mar, como os pescadores. Não se pode deixar de ressaltar a importância
da estabilidade (apesar das vicissitudes de uma carreira como a de Humberto)
e do valor relativamente alto dos soldos (sobretudo em contraste com outras
áreas do serviço público).12
As carreiras de professora (pela Escola Normal) e de militar (pela via da
Escola Militar e da Academia Militar), mais comuns entre os elementos mais
velhos da terceira geração dos Duarte (três mulheres e um homem, entre os
oito nascidos até 1950), derivavam parte de seu grande prestígio do caráter
mais claramente não-clientelístico de sua efetivação — tal como as carreiras
universitárias vieram a se apresentar a partir da ampliação de suas bases nos
anos 1960. Isso não quer dizer evidentemente que não houvesse um suporte
social mínimo para tal desempenho diferencial. Na verdade, poder-se-ia di-
zer que o prestígio decorria mesmo da relação entre a qualidade “meritocrá-
tica” da avaliação por “concurso” e a posse de um certo capital social, de um
habitus suficientemente elaborado para a vitória nessa seleção. Impunha-se
assim uma nova ética da distinção social, já então menos personalizada ou
patrimonialista.
O habitus e o estudo
Como parece ter ocorrido com o conselheiro Tolentino, não era ainda crucial
para a segunda geração dos Duarte dispor de um alto capital escolar formal.
Claro que tinham que estar presentes as condições básicas para as “boas lei-
turas”, numa população ainda majoritariamente analfabeta.15 À medida que
avança o século e aumenta a disponibilidade escolar, os requisitos para o pro-
cesso de estabilização e eventual auto-afirmação vão se tornando maiores — e
menos acessíveis, na verdade, para os membros das classes populares. Tam-
bém fazia (e continua fazendo) uma considerável diferença a maior ou menor
proximidade física dos meios qualificados de aprendizado. Compreende-se
assim que tenha sido duplamente mais fácil para os Duarte atingir os pata-
mares mínimos das “boas leituras”, no entreguerras e em seu bairro central.
Tanto para os Costa quanto para os Campos, as escolas em geral, e as boas em
particular, estavam longe, e os patamares de exigência mínima de desempenho
tinham subido consideravelmente a partir dos anos 1960.16
As condições diferenciais do acesso ao estudo são inseparáveis de dispo-
sições entranhadas ou incorporadas, associadas às idéias de autocontrole, con-
tenção e civilização. As “boas maneiras” e o “bom jeito” acompanham necessa-
riamente as “boas leituras”. O desempenho escolar adequado pressupõe e/ou
impõe um jogo de corpo/mente muito peculiar, envolvendo as habilidades de
domínio gestual e cinestésico, concentração mental, abstração conceitual e
capacidade expressiva. Essas habilidades correspondem a um habitus cultural-
mente característico das classes médias e das elites, que buscam imprimi-lo a
seus infantes desde o nascimento.
O ethos familiar é inseparável, por sua vez, dos universos da vizinhan-
ça e do trabalho, onde os processos de auto-regulação corporal-expressiva
se impõem imperceptivelmente, não sem contradições, hesitações e adapta-
ções desviantes ou criativas. Esses processos são mais nítidos em contextos de
maior densidade ou entranhamento das relações, tais como os que se podem
encontrar justamente nas vizinhanças populares e em trabalhos que pressu-
ponham uma cooperação corporal, presencial. Diz-se que eles são mais níti-
dos. Seria melhor dizer que parecem mais nítidos, em contraste com a forma
de auto-regulação corporal-expressiva característica dos segmentos médios e
superiores, que também depende, evidentemente, dos contextos onde ela se
portanto, pelas marcas de uma competência física muito diversa da dos des-
cendentes de Sebastião.
Um ponto muito importante dessa construção diferencial dos corpos
masculinos no contexto de um bairro como Jurujuba é o seu uso combati-
vo juvenil. São freqüentes as histórias masculinas a respeito de brigas, lutas
corporais, nos mais diversos contextos e sob os mais diversos pretextos. Em
princípio, elas se concentram na sociabilidade juvenil, em torno de episódios
ligados aos esportes, ao namoro ou mesmo ao trabalho. Em alguns casos, o
tema da força física e das vantagens e riscos envolvidos no seu uso permanece
pertinente através da vida adulta — tal como se relatou anteriormente a pro-
pósito de Pituta Costa. Neste último caso, paira uma permanente ameaça do
uso inadequado dessa força como disposição belicosa, sobretudo no contexto
mais formal do trabalho assalariado (como operário). No universo do trabalho
pesqueiro, essa disposição belicosa e os meios de fazê-la valer são bem mais
toleráveis ou mesmo convenientes, em função de diversas características do
processo de trabalho tanto no mar quanto em terra (no tenso espaço do mer-
cado de peixe, por exemplo).19 Nada de semelhante se apresentava na memó-
ria familiar da experiência juvenil da segunda geração dos Duarte — o que não
quer dizer que não tivesse existido de alguma forma, em algum dos contextos
sociais em que circularam. Mas certamente não teve o peso estruturante que
marcou a juventude em Jurujuba, nem conservou o peso imaginário que con-
tinua tendo para os agora adultos Costa.
Um caso interessante é o do mais novo dos filhos de Humberto, que
parecia ser, nos anos 1970, o que menos atenderia às expectativas de auto-
afirmação paternas. Fazia um uso mais recreativo do corpo do que os irmãos,
sobretudo a partir do serviço militar, durante o qual se destacara pela disposi-
ção esportiva. Hoje é, dos três irmãos, o que parece estar em melhor situação
profissional. Encaminhou lenta e tentativamente sua disposição esportiva para
o ensino de natação em clubes e outros serviços ligados aos esportes. Chegou
a ser treinador esportivo de uma grande empresa, onde trabalhou com sucesso
por longo tempo, chegando a acompanhar seus atletas numa viagem à Euro-
pa — experiência que ainda marca fortemente sua imaginação. Atualmente,
depois de um curso de treinamento em fisioterapia (feito na mesma “clínica”
freqüentada por uma de suas irmãs menores), trabalha numa empresa de pres-
tação de atendimento fisioterápico (o que, no caso de ambos os irmãos, en-
volve também acupuntura, pilates e outras técnicas terapêuticas alternativas).
filhas, que chegaram aos mais altos níveis dessa atividade. Pode-se dizer que
a capoeira serviu como instrumento de auto-afirmação de uma delas. Durante
muito tempo, “ser capoeirista” permitiu-lhe expandir as fronteiras do bairro.
Juntamente com o marido, ambos mestres na arte, fazia apresentações em di-
versos locais, incluindo a Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Tal habilidade
possibilitou-lhes dar aulas particulares a pessoas de outro meio social. A do-
ença do marido e outras circunstâncias levaram-nos a abandonar a atividade.
Contudo, permanecem vinculados à rede de sociabilidade construída no meio
da capoeira.
O tema da corporalidade envolve muito diretamente — embora não line-
armente — as estratégias e trajetórias matrimoniais. A dimensão da “beleza”,
tão particularmente crítica nas suas implicações para o destino social dos su-
jeitos quanto é ambígua e controversa no tocante aos seus critérios e compo-
nentes, é matéria pouco explorada nas ciências sociais.23 Entram aí em jogo os
dados sobre a constituição física básica da pessoa e os mais variados níveis dos
processos de auto-regulação, mais ou menos bem-sucedidos em cada etapa da
história de vida. Avulta, em primeiro lugar, a questão dos estigmas físicos em
geral (como no caso do sobrinho deficiente físico de Humberto, que só conse-
guiu casar já bem adulto) e dos juízos relativos à “cor”.
Esse último ponto é particularmente delicado, já que não aparece
explicitamente no material relativo às famílias Duarte e Costa, embora seja
bem vívido na família Campos. Não parece de todo descabido especular
sobre a possível correlação entre a precoce perturbação físico-moral de
Milton Duarte e seu casamento tardio com o fato de ter sido o mais escuro
de pele de sua fratria (tal como se verifica nos retratos de família), numa
situação simetricamente inversa à de seu irmão Rolembergue, o mais claro
de pele e cabelos, o primeiro a se casar e o mais bem-sucedido na carreira
burocrática. Esse dado só faz sentido se observado da perspectiva mais
ampla da relação entre a observação, pelo pesquisador, dos acervos foto-
gráficos de sua família paterna e os discursos espontâneos ou induzidos
em situações de entrevista a respeito da história familiar. Com efeito, é
bem provável que a questão da “cor” de Milton evocasse uma questão da
“cor” no tocante à família de sua mãe. Um retrato tardio do avô paterno de
Maricota, o baiano Florentino Montenegro, do final do século XIX, deixa
pouca dúvida sobre o seu caráter “mestiço”, aparentemente mais “mulato”
do que “caboclo”. As próprias fotos de Maricota revelam um tipo que,
e Aníbal Cirino de Campos, por sua vez, era filho de um português com
uma escrava chamada Felícia. “Essa sim era preta retinta”, disse a filha mais
velha de Geraldo ao discorrer sobre a composição racial de seus ascenden-
tes. Os nomes e a quantidade de integrantes das fratrias dos antepassados
se perderam. Entre os Campos esses elementos não figuram como centrais
na construção e na transmissão da memória familiar: “todo mundo só quer
lembrar dos portugueses”, diz Elza. No caso específico dos antepassados
negros, os registros socioafetivos sucumbiram à hierarquia de cor vigente,
que relegava ao esquecimento ou ao segredo o parentesco consangüíneo ou
por afinidade com negros, principalmente escravos, mesmo que a “cor” e
os traços — cabelo, nariz, boca — denunciassem as origens negras. Esses
vínculos remontam a um passado longínquo e inexpressivo, ao contrário da
origem indígena, que é evocada romanticamente nos relatos. A postura de
Pequitita é marcante para se compreender a inserção do “branqueamento”
na família nas gerações seguintes. Mesmo não sendo “branca” e tendo casado
com um mulato, a contragosto da família, ela reagia às “escolhas” preferen-
ciais de seus netos, principalmente os filhos de Elza, dizendo: “demoramos
tanto para branquear as cores e agora...”. Lembremo-nos de que sua filha
mais velha casou com um homem mais obviamente “branco”, filho de um
português com uma italiana. Mas essa mistura, de certa maneira, foi singular
nessa geração, pois todos os demais irmãos — homens e mulheres — ca-
saram com “mestiços”. Ou melhor, um dos irmãos de Elza casou com uma
mulher loura, de olhos claros, mas não foi possível esclarecer sua ascendên-
cia (afinal de contas, o grau de mistura alcançado na população brasileira
permite possibilidades infinitas de variação de cores a partir de toda sorte de
combinações). Para a ideologia materna, Elza foi quem ascendeu: mestiça,
somente com as primeiras letras, casou com homem branco e comerciante.
Geraldo, no entanto, tinha outra opinião: ficava todo risonho quando sabia
das namoradas mulatas de seus netos, como se revivesse a situação inicial de
seu casamento. A presença da “mistura” na família é sua base fundamental,
mas está sempre em tensão, principalmente quando estão em jogo relações
afetivo-sexuais que levam a namoros mais sérios, com a possibilidade de
vínculos duradouros. O fato é que, dos três filhos de Elza e João que se
casaram, dois o fizeram com pessoas “mulatas”, configurando-se ao olhar
de todos como casais heterocrômicos. Dois novos membros foram assim
incorporados: a mulher do segundo filho e o marido da filha mais nova. A
Meu pai foi me buscar em Minas. Durante a viagem me contou muitas histórias
sobre o lugar onde eu ia morar. Viemos de carona num caminhão de um amigo
de meu pai. Na época, o caminho era muito longo. Sei que cheguei ao Rio e ele
me levou para ver a praia. Era uma novidade para mim. Eu vinha perguntando:
“já está perto, estamos chegando?”. E nada. Pegamos o trem, e o tempo foi pas-
sando, já estava bastante cansada. “Já está chegando” — ele tentava remediar. A
paisagem mudava conforme o tempo corria. Comecei a perceber que as coisas
haviam mudado, que minha própria vida mudaria. Chegamos em Nilópolis e
pegamos outra condução, até que chegamos na praça de Éden, que tinha apenas
uma igrejinha — só mais tarde é que a igreja principal foi construída. Mas, ainda
não era ali. Tivemos que andar um bom pedaço de chão para chegar em casa.
Acho que ele não sabia mais o que dizer. A casa era de chão, muito pobre, mas
tinha um bom terreno. Não pude mais estudar. Com 10 anos tive que cuidar dos
meus irmãos, que eram todos pequenos ainda.
das técnicas da interação ritual entre homens (que envolve uma complexa
etiqueta, ligada à bebida, ao carteado e, sobretudo, ao complexo jogo de ba-
zófia, ameaças e acusações que se estabelece em torno do futebol e da sexua
lidade/gênero/conjugalidade). A participação na farra é muito variada para
cada homem em cada momento de sua trajetória. Em princípio, trata-se de
um comportamento juvenil ou de solteiros, mas envolve a maioria dos adul-
tos, mesmo casados, em certas circunstâncias quase rituais, como o retorno
de longos períodos no mar. O espírito de communitas que caracteriza a farra
pode se manifestar de forma plena ou parcial. A farra paradigmática envolve
um grupo grande, num local público porém reservado, com intenso consumo
de bebida e a presença eventual de uma ou outra prostituta.51 Em certas con-
dições, a prática do próprio futebol pode estar envolvida nesse clima, com o
uso de uma linguagem mais desabrida e a presença mais ostensiva do clima de
agressividade entre machos.52
Em toda essa outra dimensão da formação da legítima identidade mas-
culina, a bebida desempenha um papel crucial.53 É mesmo o principal vetor
diferencial das conversões evangélicas masculinas, menos comuns e menos
estáveis que as femininas. Nos anos 1970, os comportamentos negativos asso-
ciados ao excesso de bebida tinham muito a ver com as freqüentes batidas po-
liciais nos bares da orla, que provocavam uma generalizada indignação local.
Entre a esfera do trabalho e da obrigação, por um lado, e a da farra e
da influência, por outro, desenha-se uma dimensão intermediária, de cética
inquietação com os destinos de sua ocupação tradicional: “pescaria é ilusão”,
diziam-me alguns rapazes nos anos 1970. Esse sentimento basicamente nega-
tivo, em que o reconhecimento da imprevisibilidade do trabalho e da renda
prevalece, não deixa de conter, no entanto, um grão de prazer na submissão
ao jogo do acaso: a “sorte” sempre pode vir a sorrir. E engloba ainda, muito ex-
plicitamente, o valor da “liberdade” subjacente a esse mundo menos regulado
e confinado do que o de um operário ou funcionário típicos.
As condições de habitação
xadrez e era mais afeito à matemática. A caçula chegou a cursar piano e canto
durante alguns anos de sua adolescência. Importa ressaltar que, para além das
aptidões e desejos dos filhos, havia um projeto de proporcionar — a duras pe-
nas — a formação mais completa possível, para que pudessem galgar posições
sociais mais prestigiosas. O processo de distinção segue seu curso, agora com
a quarta geração. Elza tem cinco netos consangüíneos e mais duas por afinida-
de. São cinco meninas e dois meninos. Todos estudam em escolas privadas e
realizam atividades extracurriculares. O menino mais velho se dedica ao vio-
lão e coleciona diversos instrumentos musicais. Entre as meninas, a principal
atividade é o balé. Com talento, ou não, as meninas passam grande parte de
seu tempo em academias de dança. Em contraste com a capoeira, atividade
realizada por alguns membros dos Campos, o balé expressa o caráter distinti-
vo alcançado por esse ramo da família. A idéia é que essa atividade disciplina
o corpo e a mente. De certa maneira, o balé atua no fortalecimento dos laços
familiares — do núcleo de Elza e seus descendentes, além de outros poucos
parentes. A cada final de ano são realizadas apresentações das academias em
diferentes teatros, fazendo com que todos se reúnam em torno das crianças.
São eles também os que mais se distanciaram espacialmente do bairro e da
casa original. O processo de distinção impõe esse estranhamento, principal-
mente na expressão dos novos valores e status adquiridos pela terceira geração.
Não é à toa que aqueles que saíram do bairro para regiões consideradas mais
aprazíveis, como as zonas Sul e Oeste, especificamente nas áreas de classe
média, foram os que vieram a ter filhos.
O acesso à casa e sua manutenção têm certa relação com o tamanho da
rede familiar que lhe está associada, sobretudo em situações como as que se
está estudando aqui, na qual foi possível explorar o espaço útil em diversas
direções ou lhe agregar outras unidades próximas. Essa flexibilidade é funda-
mental para atender aos diferentes momentos dos ciclos de desenvolvimento
das unidades domésticas e às diferentes configurações que a rede familiar vai
assumindo ao longo do tempo. O quarto suplementar e a varanda que servia
como sala de almoço na casa da Salvador de Sá mal dava conta das necessi-
dades do núcleo doméstico por volta de 1950, quando sete ou oito pessoas
ali viviam regularmente. A partir de 1969, a casa veio a ser confortavelmente
habitada por uma, duas ou três pessoas concomitantemente, até voltar a abri-
gar cinco ou seis pessoas nos anos 1980 e 1990. A casa principal de Jurujuba,
antes das ampliações efetivadas nos anos 1990, chegara a abrigar pelo menos
pesca certamente foi um dos princípios vitais dessa identidade, mas não se
pode descartar o efeito da posição de enclave territorial a que já se aludiu — e
que permanece até hoje bem atuante. Aí as vantagens físicas de um bairro in-
tegrado numa natureza exuberante, variada e acolhedora55 sempre se contra-
puseram à precariedade dos serviços públicos em todos os níveis, até resultar
na atual — e irônica — combinação de poluição generalizada com relativa
melhoria do acesso a água potável.
A experiência social dos Costa pode apontar para a face negativa das van-
tagens de se crescer protegido numa “comunidade” densa e bem delimitada,
com acesso a recursos naturais privilegiados: parece ter havido para todos os
descendentes de Humberto um menor estímulo à busca por saídas individu-
ais, uma dificuldade maior de civilização das técnicas corporais, uma con-
siderável restrição do circuito possível de trocas conjugais e uma irrefutável
permanência da representação da casa ancestral como eixo não relativizado da
representação de uma vida plena.
Éden também é um bairro periférico, mas num sentido mais ordinário,
por fazer parte dessa vastíssima Baixada Fluminense, cuja identidade se dese-
nha em simétrico contraste com o centro urbano carioca (e seu entorno pres-
tigioso). A grande distância dos pólos dinâmicos de serviços e trabalho, não
compensada — como no caso de Jurujuba — por uma especialização profis-
sional característica, representa um considerável estreitamento das possibili-
dades de desenvolvimento pessoal ou auto-afirmação. A linhagem ascendente
se caracteriza justamente por um pertencimento relativo — um pé dentro,
outro fora —, que redundou na saída do bairro de parte da terceira geração.
É claro que o impulso fundamental para esse afastamento se deve à atitude
interior relativamente distanciada de Elza, mas não se pode deixar de levar em
conta que a identidade de seu marido e as condições econômicas diferenciais
de seu negócio também contribuíram para isso.56
As condições de habitabilidade do bairro se modificaram radicalmente
desde o tempo dos pioneiros até hoje, como já se descreveu. De modo ge-
ral, as vantagens originais da terra livre e da tranqüilidade foram cedendo
lugar às desvantagens da distância, da precariedade dos serviços públicos e
dos equipamentos urbanos, e da crescente violência. Apesar de sua distância
dos pólos urbanos dinâmicos, o bairro não deixa de apresentar uma grande
permeabilidade, como o demonstra a dispersão de boa parte da família. Essa
permeabilidade parece se restringir, no entanto, ao circuito da própria Baixada
e dos subúrbios do Rio de Janeiro, a não ser em alguns casos especiais.
bora a diferença seja sutil, não parece tratar-se da mesma justificação para a
transição prevalecente nas camadas médias.62 Nestas trata-se mais explicita-
mente da maior possibilidade de permitir uma formação individualizante para
os infantes, de regular o número de filhos de acordo com a capacidade dos
orçamentos domésticos para cobrir os pesados investimentos visando a equi-
pá-los como indivíduos autônomos. Nas famílias que estudamos (excetuados
os segmentos ascendentes), o argumento é bem mais negativo que positivo,
já que o reconhecimento das dificuldades se aplica tanto a uma grande prole
quanto a uma pequena.63
A relacionalidade que conforma a habitabilidade inclui diversas dimen-
sões de “apresentação de si”, de infinita complexidade. Avulta, nesse quadro, a
receptividade à vizinhança e aos estranhos adventícios. O papel das varandas
ou das cozinhas meio abertas ao acesso público é bastante conhecido nos
bairros populares. Mais uma vez, a racionalização originária da vila operária
da avenida Salvador de Sá privava-a de tal recurso, fazendo com que as casas
mostrassem uma fachada inabordável e as varandas só se abrissem para os
fundos. Isso não impedia, como se viu, um intenso trânsito entre as casas, mas
a “fachada” era literalmente mantida sob a forma do anonimato e da autono-
mia.64 Em Jurujuba, a varanda dos Costa era um dos pontos mais conspícuos
do bairro, por seu tamanho, sua localização estratégica e sua acessibilidade.65
A sala de visita que se lhe segue é literalmente coberta de signos variados,
hoje relativos sobretudo à religião católica, provavelmente em função — como
já se aventou — das tensões com os evangélicos proselitistas. O quintal dos
Campos fazia às vezes de “varanda”, já que sua estrutura não comportava um
recinto como esse. Por vezes, membros da segunda geração se sentavam à
frente da casa, na calçada. Esta também representa um espaço de sociabilidade
importante para as camadas populares. É comum — ainda que a violência pú-
blica tenha avançado tanto — a reunião de vizinhos nas calçadas das periferias
urbanas, que podem mesmo acolher encontros festivos, regados a churrasco
e cerveja. À semelhança dos Costa e dos Duarte, a varanda da casa de Elza
— como foi visto anteriormente, passou a ser o personagem central para a fa-
mília após a morte de Geraldo, como local de recepção de parentes e vizinhos.
Todos os assuntos eram ali resolvidos, e das conversas sérias aos bate-papos
despretensiosos era ela testemunha.
E. Gomes (2008) examinou minuciosamente o significado da festa de são
Cosme e são Damião, com seus rituais tradicionais de circulação coletiva e pú-
blica de guloseimas, bem como as transformações por que ela vem passando
devido à sua associação com os cultos afro-brasileiros e à crescente presença
evangélica. A distribuição e recepção desses “doces” era um componente da
sociabilidade das três famílias, mas tinha um caráter muito mais amplo e sis-
temático entre os Campos. A distribuição de doces no dia das crianças e no
de Cosme e Damião é uma prática corrente, especialmente na Baixada Flumi-
nense e no subúrbio do Rio de Janeiro, podendo assumir diferentes formatos
ao longo do tempo.66 Na primeira forma de “dar doce”, mais comum nos anos
1970 e 1980, quando a terceira geração dos Campos ainda estava entre a in-
fância e a adolescência, várias pessoas se colocavam nos portões das casas e
distribuíam saquinhos de papel com diversos tipos de doces — em sua maioria
industrializados, embora alguns deles, como bolos e cocadas, ainda pudessem
ser feitos em casa. A maneira de “pegar doce” era sair de casa com sacolas e an-
dar pela vizinhança com colegas ou algum adulto. A segunda maneira era ir a
um centro de umbanda, geralmente de “mesa branca”, ou a uma casa de algum
integrante dessa religião. Lá se encontrava uma grande mesa, coberta com toa-
lha branca, recheada de guloseimas, como bolos e doces caseiros. Ainda havia
as festas de erê, nos terreiros de candomblé, porém menos procuradas pelos
“pegadores de doce” que não se relacionassem mais diretamente com essa
religião. O terceiro modo de se obter os doces era recebê-los em casa. Nessa
modalidade, as relações de amizade ou vizinhança se reforçavam: mesmo que
as crianças não fossem buscar os doces, estes eram guardados e enviados no
mesmo dia ou nos dias subseqüentes. Em todos os formatos o que conta é a
relacionalidade presente nos laços sociais. De casa em casa, de saquinho em
saquinho, as pessoas comungavam de uma certa sociabilidade religiosa. Du-
rante anos, Elza e João “deram doces”. Na casa, toda a família sempre estava
envolvida no ritual. Os preparativos requeriam a ajuda de todos: escolher e
comprar os doces em quantidade e variedade suficiente para encher o núme-
ro de saquinhos estipulado pela promessa; ensacá-los de modo equânime; e,
por fim, distribuí-los. “Dar doce” em casa pressupõe acolhida e confiança na
reciprocidade. No momento da distribuição, a casa, de certa maneira, estava
sendo partilhada com os visitantes. Mas esse desprendimento parece não mais
caracterizar as relações de sociabilidade atuais. “Dar doce” em casa significava
uma proximidade e afetividade que, em contextos modernos e individualistas,
podem ser consideradas invasivas e até mesmo perigosas. Ultimamente tem-se
destacado uma nova maneira de “dar doce”: o ofertante vai à rua, mostra sua
como muito parecido com aquele descrito para os Costa.70 Os “doces” sem-
pre foram importantes na alimentação da rede familiar, em particular em seu
próprio núcleo. Neste chegava a ser uma forma de expressar distinção e auto-
afirmação. A variedade e a fartura significavam a capacidade de extrapolar as
necessidades imediatas, uma demonstração de status. Além do mais, sua casa
estava continuamente aberta aos parentes, sendo sempre necessário “oferecer
alguma coisa”.
A condição moral da habitabilidade é um ponto que emana continua-
mente de todas as manifestações dos informantes das três famílias, seja em
relação a uma situação atual, palpável, para os membros das famílias Costa e
Campos, seja em relação a uma situação passada e rememorada, para alguns
dos membros da família Duarte. A aura do casulo prístino, apesar de suas limi-
tações, dramas e crises, perdura intensamente em algum patamar da memória
afetiva dos informantes, inclusive dos pesquisadores — como já se ressaltou.
A sensação é que ela, a casa, estará sempre lá, receptiva e em seu lugar original,
mesmo que já não mais se queira lá voltar.
As condições de encantamento e desencantamento em relação a essas
“casas” variam em função das trajetórias pessoais e da fração da experiência
coletiva vivenciada diretamente por cada um: houve os que conviveram mais
longamente sob o mesmo teto com os mesmos personagens de sua fratria ou
de sua coorte; houve os que a vivenciaram mais como uma referência indi-
reta, episódica ou periódica (mesmo numa família mais entranhada como a
dos Costa); houve os que cresceram imersos no mesmo ambiente familiar por
todo o seu período de formação subjetiva; houve os que experimentaram o
contraste entre diferentes unidades e tradições familiares durante esse mesmo
período; houve homens e mulheres; houve primogênitos e caçulas; houve de-
votos e transgressores.
Os tempos em que se deram essas vivências também foram diferentes
ao longo da história do século XX, com seus múltiplos reflexos sobre a vida
cotidiana e popular, assim como foram diferentes as formas com que a tem-
poralidade (e, particularmente, o passado) se impôs à experiência singular. A
imagem da casa, atual ou em seus formatos passados, pôde ser transmitida
pelas reminiscências pessoais, pelas rememorações narrativas ou rituais (que
incluem relatos cosmogônicos, heróicos e etiológicos) ou pelo uso de recursos
objetivados (documentos, objetos, fotografias). Ou por tudo isso junto.
Notas
1
Isso é, provavelmente, o que quis dizer Strathern (1987:19) ao falar sobre o
sentido diferencial das “atividades produtivas” entre pesquisador e “nativo”.
Hoje são comuns as fórmulas mecânicas a respeito da “simetria” entre os parti-
cipantes de uma experiência de pesquisa antropológica, como se as situações de
campo devessem ser sempre consideradas como colocando em cena “sujeitos”
em condição igualitária, mutualista. Afora as propriedades hierarquizantes da
“situação” muito peculiar dessa cena, é necessário atentar para a complexidade
da difusão da “reflexividade” (ou da autoconsciência, talvez melhor dizendo)
entre as múltiplas dimensões da experiência vital de cada sujeito (dentro de
cada cultura ou ordem simbólica). Os informantes desta pesquisa certamente
incluem pessoas extremamente atiladas, que se preocupam em discutir e ex-
plicar para si mesmos e para seus círculos algumas dessas dimensões. Isso não
pode ser generalizado, no entanto, para todas as dimensões. Muitas delas per-
manecem como “dadas”, e não como “construídas”. Humberto e Pituta Costa
podem discorrer e especular indefinidamente sobre as condições e vicissitudes
do mundo do trabalho na pesca ou na indústria mecânica. Amélia Costa ou
João Duarte podiam retornar a suas memórias de juventude com impressio-
nante minúcia, especificando os focos de prazer e desprazer — no tocante à
música, por exemplo. Elza Campos enfrentou, a partir de sua formação univer-
sitária, de sua militância política e das transformações do campo religioso em
sua família, consideráveis desafios cognitivos que a fizeram mudar de posição
— por exemplo, em relação à sua identidade de cor.
2
No sentido abrangente e instituinte de Mauss (2001) e levando em conta as im-
plicações mais recentemente levantadas por Bourdieu (1980), Strathern (1988) e
Godbout (1999).
3
Trata-se de questões que se desenrolam num regime que Boltanski e Thévenot
(1991) classificariam como característico da cité domestique, por oposição ao da cité
civique, onde avultam as possibilidades de uma análise em termos de controvérsias
e casos e de colocação em cena das capacidades reflexivas dos agentes.
4
Essa não é certamente a única fonte das mudanças recentes no peso relativo da
contribuição feminina à reprodução familiar. Diferentes vias de acesso a maiores
possibilidades de agência ou autonomia permitem o que Cabanes (2006:31) chama
de “inovações no domínio das relações sociais de sexo e da divisão do trabalho”,
descrevendo-as com adequada minúcia no quadro dos “percursos familiares”.
5
Bourdieu (1962) descreveu um caso clássico de vantagem relativa das mulheres
num momento de desorganização da economia de seu mundo de origem, baseada
na preeminência do trabalho e da responsabilidade masculinas. Estando apenas
subordinadamente comprometidas com a ideologia da reprodução da casa campo-
nesa, sua adaptação à vida citadina se tornava mais fácil que a dos homens — in-
clusive e sobretudo por força da diferença dos habitus incorporados. Um exemplo
homólogo recente é a comunidade pesqueira estudada por Sautchuk (2007b) no
Amapá.
6
Hoje associadas à criação do Dasp (a Constituição de 10 de novembro de 1937
previu, na estrutura burocrática do governo federal, um Departamento de Admi-
nistração Geral, e a Lei no 579, de 30 de julho de 1938, criou o Departamento Ad-
ministrativo do Serviço Público), mas que remontam a uma tendência mais antiga,
originalmente localizada no Exército, ainda no século XIX. Ver Castro (1995).
7
É interessante que Nicolau Tolentino, o personagem tão ricamente analisado por
Antonio Candido, seja — ao que consta — um antepassado seu, o que não fica, no
entanto, claramente expresso na obra.
8
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Segundo Benchimol (1992:�������������������������������������������������
177),��������������������������������������������
“considerando agora o período compreendido
entre os Censos de 1890 e 1906, verifica-se que o terciário apresenta uma dinâmi-
ca surpreendentemente grande em alguns de seus segmentos. (...). O [número] de
militares, policiais e funcionários públicos quase duplicou, passando de 17.254,
em 1890, a 30.793, em 1906 (15.831 militares e policiais; 14.692 burocratas).
O contingente de funcionários públicos aumentou 108,4% entre as duas datas, ao
passo que a população total da cidade cresceu 46,8 %”.
9
O tema do funcionalismo público como um segmento privilegiado e ineficiente,
em função do clientelismo, atravessa toda a segunda metade do século XX, da de-
núncia das “marias candelárias” à dos “marajás”. Exemplo interessante, justamente
por evocar a hierarquia das “letras” da ascensão na carreira, é a marcha considerada
como a melhor do carnaval de 1952, “Maria Candelária”, uma sátira aos funcio-
nários apadrinhados que, ao invés de trabalharem e fazerem carreira no serviço
público, já chegam ao topo da escala do merecimento sem esforço algum: “Maria
Candelária/ É alta funcionária/ Desceu de pára-quedas/ E caiu na letra ó/ Ó, ó, ó,
ó!/ Começa ao meio-dia/ Coitada da Maria/ Trabalha, trabalha/ Trabalha de fazer
dó /Ó, ó, ó, ó!”. Disponível em: <http://decadade50.blogspot.com/2006/08/maria-
candelria-sassaricando-no-servio.html>. Acesso em: 15 nov. 2007.
10
Em 1931, a Diretoria Geral dos Correios e a Repartição Geral dos Telégrafos foram
fundidas no Departamento de Correios e Telégrafos — DCT (como autarquia do
Ministério da Viação e Obras Públicas). O departamento foi substituído pela Em-
presa Brasileira de Correios e Telégrafos — EBCT, instituída pelo Decreto-Lei no
509, de 20 de março de 1969, como empresa pública vinculada ao Ministério das
Comunicações — situação que se mantém até hoje.
11
A ênfase na “hierarquia” certamente tornava menos linear a aplicação do critério
do “mérito”, uma vez que a atitude adequada à posição de cada um influenciava
fortemente a carreira. Humberto é muito claro sobre a contradição entre essas duas
dimensões em sua memória da carreira naval. É interessante lembrar que foi no
encouraçado “Minas Gerais”, em que Humberto viria a servir durante a II Guerra,
que estourou a “Revolta da Chibata”, em novembro de 1910, contra a aplicação
de castigos físicos aos marinheiros, abolidos em 1889 e restabelecidos em 1890. A
violenta repressão aos participantes da revolta justificou-se exatamente em função
da ruptura da hierarquia.
12
A tão esperada promoção de Humberto a primeiro-tenente, comunicada ao pesqui-
sador por telefone — para grande satisfação mútua — no final de 2008, significou
o acesso a um soldo muito superior ao salário deste último como professor univer-
sitário.
13
Em oposição a esses concursos blue-collar a que podiam aspirar os Costa na Petro-
bras ou na Costeira, essa é a época de apogeu do prestígio dos concursos white-
collar para o Banco do Brasil, num dos quais fora aprovado, justamente no começo
dos anos 1960, o marido de uma das Duarte formadas pela Escola Normal.
14
Não podemos esquecer das mudanças nesse tipo de inserção no mundo do traba-
lho a partir da Constituição de 1988, que passou a impedir — de maneira mais
universalizada e imperiosa do que antes — o acesso ao funcionalismo sem concur-
so público. É claro que ainda existem brechas para a via relacional das contratações,
possibilitadas pelos cargos de confiança e pela terceirização dos serviços públicos,
mas sempre em tensão com o sistema meritocrático.
15
As taxas de analfabetismo nacionais podem ser resumidas na transição dos 65,3%
da população acima de 15 anos em 1900 para 50,06% em 1950 e 13,6% em 2000
(embora esta última taxa possa subir provavelmente para o dobro, se calculada em
termos de “analfabetismo funcional”). Ver Pinto et al. (2000).
16
Vale sublinhar a crescente freqüentação de escolas privadas mesmo por alguns seg-
mentos das classes populares (e não apenas pelas classes médias, como é mais
notório). Pelo menos metade dos netos de Humberto freqüenta pequenas escolas
privadas, próximas dos bairros de moradia de seus pais — diferentemente das ge-
rações anteriores, exclusivamente dependentes dos colégios públicos (e de um ou
outro curso pago técnico ou pré-vestibular de caráter popular). O mesmo ocorre na
quarta geração dos Campos, mas com menos intensidade. O investimento no es-
tudo segue a lógica da geração anterior, na qual o ensino formal representa o prin-
cipal meio de afirmação social, postura seguida pelos núcleos ascendentes. Cabe
considerar a extrema diferença de qualidade entre as instituições de ensino privado
existentes nas regiões de periferia, na qual se destacam, em especial, as poucas es-
colas católicas. Estas são poucas e acessíveis apenas às camadas mais privilegiadas,
as “elites locais”.
17
Os círculos em que se movem as elites são mais amplos, mas constituídos explici-
tamente como uma pirâmide de redes seletivas, distribuídas em patamares rigoro-
samente delimitados e muito restritos no seu topo. A lógica da “distinção” depende
de uma aguda consciência do meio mais amplo em que se manifesta, justamente
por seu caráter intrínseca e continuadamente diferenciador. Donde a importância
dos múltiplos rituais públicos em que essa seletividade se expressa (e se reproduz
como inculcação de um habitus entre os descendentes). Ver �������������������������
Pinçon e Pinçon-Char-
lot (1989); Lomnitz e Perez-Lizaur (1987); Lima (2003).
18
Entre as múltiplas mudanças acarretadas pela difusão maciça dos valores român-
ticos através da contracultura inclui-se um radical investimento na construção de
uma corporalidade humana que se caracterizaria pela visibilidade pública (como
sinal da “autenticidade” individual). Isso implicou uma complexidade muito me-
nor do sistema de vestuário ocidental, tanto masculino quanto feminino, e um
intenso investimento na construção de corpos destinados a serem imediatamente
vistos — por meio de diversas estratégias estéticas e funcionais (ver Goldemberg,
2002). Esse processo se deu primordialmente entre as camadas médias, mas veio
progressivamente a afetar as classes populares, onde acabou dando lugar a um ou-
tro modelo, combinado com a tradicional ênfase na apresentação pública da força
masculina e na exposição da qualidade sensual do corpo feminino (ver Piccolo,
2006; Sautchuk, 2007a).
19
Duarte, 1999.
20
Como não foi feita por L. Duarte pesquisa direta a respeito do trabalho na pesca no
seu último período de campo (a partir de 2000), não é possível aquilatar a relação
do ethos desse jovem com o dos seus outros companheiros atuais.
21
Fernanda Piccolo (2006) apresenta dados etnográficos muito ricos sobre a apre-
sentação de si de jovens de uma favela do Rio de Janeiro, incluindo as técnicas
corporais e o vestuário feminino.
22
Tipo de jogo em que duas equipes que se distribuem em lados opostos de um cam-
po, com o objetivo de atingir com uma bola o corpo de algum dos adversários.
23
O estatuto transcultural do “belo” é um dos grandes desafios da comparação antro-
pológica — e há uma rica literatura sobre a questão, construída sobretudo a partir
do tema da “arte”. No que toca à beleza humana (e mesmo essa demarcação não
deveria ser tomada como óbvia), conhecemos apenas dois estudos marcantes: o de
Bateson (1967) sobre a máscara de uma “bela mulher” iatmul e o de Sahlins (1985)
sobre a beleza “corporal” como índice de valor na sociedade havaiana tradicional
(no que ele chamou de uma “economia política do amor”). Para a sociedade brasi-
leira, ver Goldenberg (2002, especialmente o artigo de Peter Fry).
24
Nogueira, 1998.
25
Há na casa outras fotografias de duas de suas irmãs mais velhas, mas tiradas ambas
em sua juventude, como a ressaltar sua beleza de então.
26
As implicações das relações afetivo-sexuais heterocrômicas no Brasil e na África
do Sul foram discutidas detalhadamente por Moutinho (2004). A autora avalia
que, entre os casais heterocrômicos, aqueles formados por “homem negro e mulher
branca” são mais passíveis de sofrer preconceito. Cabe frisar que, ao ultrapassarem
as barreiras e oposições familiares, há uma tendência de diluição da “cor” e da
“raça” dos neoparentes, principalmente quando se trata de narrativas construídas
pelas famílias sobre suas próprias composições.
27
Sabe-se que as trajetórias individuais não são lineares. As alternações são possíveis,
como sugere Berger (1976:61). Em sua trajetória, o indivíduo pode “alternar entre
sistemas de significado logicamente contraditórios. A cada alternação, o sistema de
significados que ele adota proporciona-lhe uma explicação de sua própria existên-
cia e de seu mundo, incluindo-se nessa interpretação uma explicação do sistema de
significados que ele abandonou. Além disso, o sistema de significados lhe oferece
instrumentos para esclarecer suas próprias dúvidas”.
28
Segundo Paiva (2007:4), “da união das confrarias de Nossa Senhora do Rosário e
de São Benedito, ambas fundadas por negros alforriados, ladinos e escravos, fun-
36
Segundo Alves (1998:63), “a população da Baixada, como um todo, havia passado
dos 140.600 habitantes, de 1940, para os 360.800, de 1950. Um salto maior ainda
seria dado entre 1950 e 1960. Neste último ano chegava-se aos 891.300 habitan-
tes, num crescimento de quase 150% na década. Para abrigar esta massa urbana as
fronteiras iam se estendendo, até chegar aos limites atuais por volta de 1940. Daí
em diante houve mais um adensamento do que um avanço desta onda urbanizado-
ra. Os fatores desta atração, onde apenas 12,3% dos migrantes que chegavam, entre
1930 e 1950, iam para as favelas, tendo o restante se dirigido para os subúrbios,
funcionavam de forma conjunta com a evasão dos pobres do centro carioca”.
37
As paisagens arquitetônicas dessas localidades, como Éden e Jurujuba, são seme-
lhantes e se aproximam da descrição feita por Guedes (1997) ao tratar da cidade
de São Gonçalo, também integrante da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o
Grande Rio, sob os aspectos da “horizontalidade” e da “heterogeneidade visual”.
O primeiro aspecto se caracteriza pela quase exclusiva existência de construções
que não ultrapassam a altura de sobrados e por um comércio variado que atende à
população local, geralmente instalado no terreno das casas, como ocorre entre os
Campos e (em circunstâncias especiais) entre os Costa.
38
É crescente e preciosa a produção sociológica sobre a Baixada Fluminense, prin-
cipalmente a partir dos anos 1990. Ver Grynszpan (1990); Alves (1998); Enne
(2002); Costa (2002 e 2006).
39
E. Gomes acompanhou de perto esses acontecimentos, quando participava dos
debates sobre direitos humanos e relações raciais na Baixada Fluminense.
40
Ocorrida em 29 de agosto de 1993, a chamada “chacina de Vigário Geral” consistiu
no assassinato de 21 pessoas em represália à morte de quatro policiais na Zona
Norte do Rio de Janeiro. As discussões e conseqüências desse evento podem ser
encontradas em Leite e Birman (2004).
41
No caso descrito no capítulo 4, a violência ganha novos contornos, distintos daque-
les observados num modelo hierárquico englobante. A quebra dos valores tradicio-
nais, ligados à casa e à vizinhança, nos casos da mudança de registro efetivada pela
violência, considerada “externa”, traz novos códigos que se chocam com os antigos,
baseados na reputação, no respeito e na honra, mesmo entre os desviantes. Fonseca
(2000:44, 126) observa, por exemplo, que “para os ladrões ‘profissionais’ é uma
questão de honra não ‘trabalhar’ na vizinhança. Os maconheiros não excluem todos
os vizinhos do rol de vítimas potenciais, mas são levados a respeitar o pacto implí-
cito que existe entre os ‘integrados’ do grupo. O novo tipo de violência, instaurado
pela invasão de uma ‘bandidagem outsider’, leva ao rompimento dos ‘laços de inti-
midade’ construídos pelas ‘famílias antigas’ e que estão assentados nas relações de
vizinhança. (...) na relação entre os ‘aldeões’ e os ‘recém-chegados’, há temor de que
ocorra mudança no estilo de vida já muito bem estabelecido”.
42
Duarte, 1987c.
43
No contexto do trabalho embarcado, onde a monossexualidade e as propriedades
relacionais decorrentes da confluência da colaboração com a competição produ-
ziam uma exacerbação marcante dos rituais de agressão, a cor chegou a aparecer
como tema (com o “branco” característico dos “catarinos” — tripulantes vindos do
Sul do Brasil — em posição francamente desprivilegiada), mas muito aquém dos
significantes oriundos do mundo do futebol e da sexualidade/conjugalidade. Ver
Duarte (1987b e 1987c).
44
Algumas famílias, como a da linhagem de Humberto, reforçaram notavelmente os
sinais públicos de sua continuidade de adesão ao catolicismo: há hoje certamente
muito mais imagens religiosas espalhadas pela casa e pela varanda do que há três
décadas atrás. Por outro lado — e de modo semelhante ao que caracterizou essa
clivagem na família Campos —, os católicos reconhecem as virtudes de experiên-
cias religiosas capazes de “pôr na linha” muita gente cujo comportamento deixava
a desejar. Se há, por um lado, uma ruptura da antiga continuidade família/vizi-
nhança/Igreja Católica, por outro, as conversões podem contribuir para reforçar o
“ambiente familiar” coletivo tão prezado.
45
Polignano, 2007.
46
A regulamentação oficial da pesca no Brasil teve início com a instituição do dízimo
do pescado em 1534. Em 1602 deu-se a criação dos pesqueiros reais e a oficiali-
zação das armações de baleias. A criação das Capitanias dos Portos, a que sempre
esteve subordinada a navegação pesqueira, data de 1845. O Decreto no 358 autori-
zou o governo a estabelecer uma capitania dos portos em cada província marítima
do Império. No mesmo período foram instituídos os distritos de pesca. Em 1919
criou-se o sistema das colônias de pesca (ainda oficialmente em vigor), em parte
devido à iniciativa do comandante Frederico Villar, a qual envolvia a promoção
social dos pescadores e questões de defesa marítima do território. Amélia Costa
guardava uma lembrança muito vívida desse processo, cujo significado social mais
amplo é bem analisado por Callou (1994). Houve códigos de pesca no Brasil pro-
mulgados em 1934, em 1938 e em 1960 (atribuindo-se a este último o estímulo à
industrialização, em detrimento da chamada “pesca artesanal”). Pela Lei Delegada
no 10, de 11 de outubro de 1962, foi criada a Superintendência do Desenvolvimen-
to da Pesca (Sudepe), como autarquia federal, com sede na cidade de Rio de Janei-
poderia ser vista como comportando tanto elementos de “gestação” como de “me-
tamorfose”, em função de trajetórias menos nitidamente polares. É comum, no
entanto, enfatizar-se a primeira dimensão, como no dito “só vive da pesca quem
nasce na pesca”.
50
Duarte, 1987c e 1999:112.
51
Um dos pescadores solteiros que viviam em Jurujuba nos anos 1980 criava, junto
com seus pais, um filho havido de uma relação com uma prostituta. Era um dos
mais “farristas”; o que significava encontrar-se no limite do consumo de bebida
aceitável para um trabalhador. Suas companhias mais próximas, de dentro e de
fora de Jurujuba, encontravam-se no mesmo limite, chegando em alguns casos à
condição de “mendigos”. Entre as descrições muito diversas de que se pode dispor
de tais eventos, ocorre a menção a eventuais experiências homoeróticas (sempre
mencionadas como ocorridas com outras pessoas), devido à presença de alguma
“bicha” ou “travesti”, ou à “escorregadela” de algum colega. Como esse é um tema
constante do sistema de conflito verbal e de acusações morais entre os pescadores,
nunca fica claro em que medida se trata de eventos reais ou de fórmulas demarca-
doras das qualidades modelarmente “masculinas” do informante. A ambigüidade
do tema pode ser expressa por uma de diversas histórias etiológicas a esse respeito:
um pescador aceitara acompanhar outro homem até a praia deserta que fica entre
Piratininga e Camboinhas com a intenção de “comê-lo”, mas, lá chegando, teria
sido forçado a assumir a posição oposta. Está aí claramente em jogo o modelo
“hierárquico” do homoerotismo popular descrito por Fry (1982), com sua poten-
cial ambigüidade. A praia em questão era sempre mencionada nas conversas com
o pesquisador, inclusive quando se passava de barco ao seu largo, como lugar de
prazer e transgressão — como o é toda farra, na verdade.
52
Em certa ocasião, nos anos 1980, o pesquisador aproximou-se do campo de futebol
durante um jogo, sem ser visto por seus amigos. Humberto usava de uma lingua-
gem desabrida e de um tom de voz desafiador e jocoso que ele nunca apresentara
antes, ao longo de tantas situações de contato. Ao ver o pesquisador, manteve-se
onde estava e com o mesmo interesse na partida, mas passando a conversar no
seu registro contido e formal habitual. É um evento que bem expressa a impossi-
bilidade do mesmo pesquisador ter acesso a todas as dimensões vivenciais de seus
interlocutores, em função do “contrato de imagem” por ele passado.
53
Duarte, 1999.
54
Não só as “letras” assumiam papel significativo; a voz sempre esteve presente na
trajetória de Elza como um componente em seu processo de distinção. Em sua
cismo popular, marcado pelo sincretismo religioso. Provém de uma “religião falsa”,
que deve ser combatida, e deve ser evitado por todo aquele que professa a “religião
verdadeira”. No entanto, há possibilidade de adequações. A distribuição de doces
de Cosme e Damião é reconfigurada por representantes de determinadas igrejas,
como a Iurd, que distribui na mesma época “doces consagrados”. Esses rearranjos
são mencionados por Silva (2005), que aponta a existência de uma sincronia entre
o calendário da Iurd e o das religiões afro-brasileiras. As controvérsias que cercam
o debate sobre a autenticidade das práticas iurdianas, incluindo os doces consagra-
dos, foram analisadas por Gomes (2004). Seu trabalho mostra como inautentici-
dade e sincretismo aparecem como categorias acusatórias no diálogo dessa igreja
com a sociedade mais ampla. Dentro do próprio campo evangélico ela é vista como
“igreja menos pura”, “igreja desfigurada”. A Iurd elaborou um tipo de autenticidade
distinta através da categoria nativa “pontos de contato”, isto é, os “objetos” ou “coi-
sas físicas” por ela utilizados em suas práticas rituais e cuja característica essencial
é não possuírem, em si, um poder mágico. Eles servem com uma espécie de porta
para a ativação da fé, fato que não se caracterizaria como idolatria. A utilização ou
não desses “pontos” depende do grau de inserção que o fiel possui em relação à
igreja. Conforme vai “amadurecendo” a crença, a importância desse uso entra em
declínio.
69
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Campbell, 1995; Schivelbusch, 1993; Sahlins, 1996.
70
A forma dessa disponibilização das guloseimas, dirigida sobretudo às crianças me-
nores, lembra a “paparicação” descrita por Ariès (1978) para o período pré-mo-
derno na cultura ocidental. Uma interpretação nessa direção encontraria eco na
socialização muito precoce no mundo adulto dessas crianças (sobretudo através
do trabalho) e na própria prática da “circulação” tratada em outra parte deste livro
— como uma modalidade diferente da construção do sentimento da infância em
relação àquela prevalecente nos segmentos superiores.
P e r t e n c i m e n to familiar,
a u t o - a f i r m a ç ã o , individualização
O outro caso era mais antigo. Quando iniciei minha pesquisa de campo,
nos anos 1970, já havia falecido o acumulador original (que me foi descrito
em certa ocasião como um “sócio arrendatário de armador”). Era ele tio de
Humberto (casado com uma irmã de Amélia), conhecido por seu mau humor
e agressividade. De qualquer forma, um de seus filhos estivera por muito tem-
po afastado do bairro, seguindo uma carreira profissional bem-sucedida no
governo federal (que o levara até Brasília). Retornara, porém, com a aposen-
tadoria e mantinha a casa, fronteiriça à de Humberto, onde viveram seus pais
(tendo-se mudado recentemente para um bairro de classe média). Seu único
irmão ainda vive ali. Nos anos 1970, era considerado um “louco” intratável,
devido ao seu comportamento agressivo. Seus gritos, desde a casa paterna,
incomodavam particularmente Amélia, lembrando-lhe sua sofrida irmã. Havia
certo consenso de que se tratava de uma perturbação grave, dessas em que a
qualidade da “loucura” parece mais substancial do que nos confrontos identi-
tários constantes.51
Não há casos de afirmação pela acumulação diferencial entre os Duarte.
A acumulação que aí se processa é paulatina, estritamente vinculada ao maior
ou menor sucesso nas carreiras burocráticas a que se dedicam. Em pelo menos
dois casos masculinos (os dois irmãos mais velhos), pode-se dizer que houve
também “ascensão social” por hipergamia, mas esse é um outro processo, com
implicações próprias que fogem ao âmbito deste estudo. Há uma empresária
bem-sucedida na terceira geração, mas essa condição veio apenas coroar uma
trajetória de individualização encaminhada por outros meios, que envolvem
a interiorização.52
Tanto entre os Duarte quanto entre os Campos há diversos exemplos
de uma individualização pela concomitante auto-afirmação propiciada pela
profissionalização de nível universitário e pelo desenraizamento em relação à
velha casa e seu domínio. Tal processo marcou mais algumas linhagens do que
outras, como já examinamos antes. Não é possível analisar extensivamente o
material disponível sobre essas famílias do ponto de vista dos processos de in-
teriorização e distinção, uma vez que eles só têm início a partir da terceira ge-
ração, concomitantemente à dispersão das linhagens e à perda progressiva da
referência ancestral comum. Pode-se, no entanto, retraçar algumas situações
específicas. O exercício de carreiras profissionais, sobretudo as que deman-
dam um saber universitário, caracteriza uma linhagem dos Campos e duas
dos Duarte. A especificidade do habitus transmitido por Elza Campos e João
outra dimensão de suas vidas. A nuclearização familiar pode ser vista, assim,
como uma precondição para a auto-afirmação (e, eventualmente, para uma
individualização pela autonomização ou pela interiorização). Como se viu,
porém, a nuclearização raramente consiste numa radical e súbita secessão da
rede familiar originária. No mais das vezes, pode ocorrer por uma combinação
de pressões morais generalizadas (um mandamento cultural naturalizado de
neolocalidade) e por coerções práticas inarredáveis, dada a impossibilidade
de uma constante presença física do novo casal nas unidades domésticas de
origem de cada um dos cônjuges. No universo estudado, a neolocalidade pa-
rece se impor mais pelo segundo motivo do que pelo primeiro, a não ser nos
casos em que, justamente, já se manifesta uma incipiente “individualização”.
Isso permite afirmar que a auto-afirmação não é apanágio inevitável da nuclea
rização, e sim o resultado de uma disposição anterior de afirmar um espaço
de singularidade própria. Por outro lado, a nuclearização imposta pelas con-
dições práticas da vida pode — em si mesma e a longo prazo — vir a facilitar
a emergência de tal disposição.
Na família Costa a nuclearização parece sempre decorrente da pressão
externa, o que se expressa num contínuo processo de reaproximação da velha
casa, ou pelo menos no desejo de fazê-lo. A caçula veio com toda a família
ocupar uma nova área da casa paterna, e o segundo filho constrói a duras pe-
nas uma nova casa no início do bairro, como nítida estratégia de reaproxima-
ção. Apenas Margaret, já há alguns anos vivendo junto à família do marido em
Minas Gerais, parece conformada com esse arranjo. Deve-se ressaltar, porém,
que isso se deve mais à sua adaptação à proximidade da família do marido do
que à distância de sua família de origem — que ela vem visitar regularmente.
Na família Campos a nuclearização caracterizou a trajetória da linhagem
de Elza, embora a circulação de parentes pelas diferentes unidades (ou, pelo
menos, a disposição de produzir novas aproximações entre eles, distantes de
Éden) tenha se mantido até hoje, quando já cresce a quarta geração. A nuclea-
rização tende também a acompanhar as conversões evangélicas, num processo
que já foi aqui examinado. O velho quintal persiste, no entanto, como núcleo
relacional atrativo, apesar do falecimento do casal original, e funciona em par-
te como um recurso de sobrevivência física e moral em situações de crise.
A nuclearização, em seu formato modelar, é associada à substituição da
relacionalidade a priori demarcada pela família de origem e sua respectiva vi-
zinhança pela relacionalidade adquirida a posteriori. O modelo ideal prevê
uma concomitante passagem de uma rede de malha estreita para uma rede de
malha frouxa, ou seja, da condição de elo de uma malha em que a maioria das
relações se interconecta em várias direções para a condição de elo de múltiplas
relações que não se entrecruzam necessariamente.55 Essa representação está
claramente presente nas representações dos membros das famílias estudadas:
o que varia é a avaliação do fenômeno. Para uns, essa dupla autonomização
(física e relacional) é uma condição da vida adequada (mesmo que em cer-
tas condições possa haver alguma nostalgia do entranhamento perdido), en-
quanto para outros provoca associações com solidão e desatino. Em Jurujuba
prevalece esta última acepção da representação da nuclearização. Na verdade,
mesmo os armadores locais, que haviam experimentado a acumulação dife-
rencial e dispunham de recursos econômicos muito superiores aos da po-
pulação geral do bairro, continuavam aí morando, assumindo a condição de
patronos/padrinhos (na organização e funcionamento da festa de são Pedro,
por exemplo).56 Nos poucos casos registrados por L. Duarte de afastamento do
bairro e assunção de uma vida nuclearizada, como os do sobrinho de Amélia e
da irmã de um genro de Humberto, essa condição era vista pelo menos como
perigosa ou dúbia, senão como francamente ilegítima. Os dois casos eram
um tanto peculiares porque não corresponderam à formação de novos casais,
tendo em ambos prevalecido o celibato. A diferença de gênero era aí muito
crítica, já que é mais difícil desse ponto de vista a aceitação da imagem de uma
mulher não-relacional do que a de um homem.
Nas três redes familiares há uma certa raridade da habitação isolada,
mesmo masculina. Em Jurujuba a habitação solitária é uma característica qua-
se exclusiva dos homens que vivem à margem do jogo social, já que os poucos
solteiros ou que vivem por longo tempo “separados” permanecem em suas
unidades de origem (em pelo menos um caso levando o próprio filho, sob a
alegação de que a mãe era prostituta). Havia diversos casos de homens desgar-
rados de suas redes, vistos como loucos ou mendigos e que, por não disporem
propriamente de uma “casa”, habitavam cavernas na mata ou um quarto anexo
em algum barraco. A ilegitimidade de alguns dos descendentes do irmão de
Humberto é provavelmente associada à precariedade ou instabilidade de suas
localizações familiares e físicas, impondo a alguns deles prolongados períodos
de “isolamento”.
Entre os Duarte, na terceira geração, quatro mulheres acabaram por mo-
rar sozinhas, devido ao celibato ou à viuvez — mas duas delas, por serem
oferecidas à rede familiar (ou a uma parte dela) pelas unidades em processo
de nuclearização.62 O caso mais imediato é o de uma das filhas de Humberto,
a única a ter feito um casamento razoavelmente hipergâmico e que, não por
coincidência, é também a única a participar de um movimento de renovação
religiosa católica e a única entre as mulheres de sua fratria a ter atingido uma
condição profissional mais autônoma, graças à qualificação técnica em fisio-
terapia. O pesquisador assistiu à festa de primeiro aniversário de seu segundo
filho, realizada num clube militar e descrita no segundo capítulo. A festa cer-
tamente tinha também o significado de confirmar o afastamento relativo que
a condição daquele casal podia ostentar em relação à rede familiar e de buscar
reforçar os vínculos da reciprocidade ameaçada. Tratava-se inevitavelmente
de uma reciprocidade seletiva, uma vez que não estava presente nenhum dos
membros da linhagem desprestigiada de seu tio Geraldo. Não à toa, havia
uma visível ansiedade da anfitriã em relação à possível ausência de tal ou qual
de seus parentes mais próximos. Talvez não tenha sido realmente por causa
de sua saúde precária que o casal original não compareceu a essa festa, assim
como a irmã caçula e seus filhos. Muitas tensões — que o pesquisador podia
mais pressentir do que ver claramente — ali se ritualizavam e certamente
tinham a ver com a demonstração de uma auto-afirmação e a concomitante
ameaça de autonomização de um membro da fratria.63 As próprias memórias
do pesquisador lhe permitiram reler nessa direção o sentido social das come-
morações de aniversário da filha de sua prima mais velha na Copacabana dos
anos 1950, cercadas de um aparato de luxo e modernidade que parecia ao
mesmo tempo fascinar e constranger alguns dos parentes convidados.
Entre os Campos, as festas de aniversário e casamento também têm sido
momentos críticos, por evidenciarem a tensão entre os processos de auto-
afirmação (e eventualmente de individualização e ascensão) e a tentativa de
manutenção dos laços de solidariedade. Agregações e dispersões (provocadas
pelas distâncias espaciais, como migração e mudança de endereço, ou afeti-
vas, como distância geracional ou mudança de religião) são percebidas nas
comemorações de casamentos, aniversários e batismos. A participação nesses
eventos significa o grau de pertencimento ou vínculo com os realizadores do
encontro familiar. A chamada “sociabilidade cerimonial”64 expressa as contí-
nuas mudanças ocorridas nas redes familiares analisadas. O fortalecimento ou
o rompimento de relações pode depender, diretamente, da participação nesses
eventos. Parentes que não comparecem a essas celebrações sem motivo justi-
ficado são desconsiderados como tal. Gomes (2006a e 2006c) mostrou como
a presença, nesses eventos, de uma determinada pessoa que ocupa lugar su-
perior na hierarquia familiar pode significar prestígio e reconhecimento para
a família que os organiza. É importante considerar também o tipo de evento:
um simples aniversário ou um casamento realizado no religioso, por exemplo.
O caso mais antigo ainda é vívido na lembrança de Elza de seu casamento, nos
anos 1960. A família do noivo incluía ramos mais abastados, moradores na ci-
dade do Rio de Janeiro, e a festa foi realizada, como já se relatou, por insistên-
cia de Elza, na casa de Geraldo e Pequitita, em Éden. O contraste entre o chão
batido e os saltos-agulha de algumas das convidadas é até hoje uma imagem
marcante da diferença social encenada nessa cerimônia (vinda de fora, nesse
caso). A mãe do noivo tinha em vão tentado evitar o mal-estar, sugerindo que
a festa fosse realizada em local mais prestigioso. Prevalecera, no entanto, a so-
lidariedade da noiva com o seu universo de origem. Mais tarde, seus filhos, ni-
tidamente envolvidos num processo de auto-afirmação através do afastamento
do bairro e das redes locais, passaram a enfrentar novos dilemas. Sua presen-
ça em determinados eventos familiares, como casamentos, embora percebida
como extremamente importante, é marcada pela preocupação de evitar a exi-
bição de marcas que revelem ostensivamente a “diferença social” emergente.
A preocupação com o trajar-se adequadamente impõe limites à vaidade ou à
exibição do novo status pessoal. Entre os que “subiram na vida” há grande cui-
dado em não exagerar no luxo da indumentária quando a comemoração mais
formal ocorre no local de origem, próximo à rede familiar. O objetivo é ser dis-
creto. A atitude “dos que ficam” em sua condição original, quando convidados
a participar de comemorações organizadas pelos “melhores de vida”, é ainda
mais crítica, pois depende de condições materiais objetivas. A participação é
inibida pela falta de recursos para o deslocamento e para a compra de “roupas
adequadas”. Em alguns casos a freqüência é possibilitada pela presença de
laços familiares anteriores, que se refletem nas relações de entreajuda ainda
vigentes, mesmo que se refiram a determinados núcleos ou parentes.
Outra característica dessas festas de mediação propiciadas pelos mem-
bros ascendentes da rede é a presença — em pé de igualdade com os parentes
— dos “amigos” dos anfitriões, representantes das diversas redes que suas
novas identidades lhes impõem. O caráter de parcial anonimato (dos convi-
dados entre si) que preside, assim, a essa nova modalidade de celebração é ao
mesmo tempo um testemunho da aquisição ampliada de capital social e um
social e simbólica, novas dinâmicas identitárias, que têm sido estudados sob a
rubrica própria das “camadas médias” e, no limite, das “elites”. Nos casos aqui
estudados, algumas das linhagens das famílias Campos e Duarte parecem ter
sofrido esse processo entre a segunda e a terceira gerações, com implicações
que não estiveram no centro da análise aqui empreendida. Como foi dito no
início deste capítulo, pode-se reconhecer aí a consolidação de uma mudança
mais ou menos estável de estilo de vida, de auto-imagem e de projetos indivi-
duais (ou relativos à família nuclear). A epígrafe deste capítulo — “porque os
parente é os dente, e eles dói!” — expressa a tensão permanente nas relações
familiares. A solidariedade inerente à família extensa pressupõe atenção e re-
ceptividade constantes aos integrantes da rede, apesar do reconhecimento de
que “eles dói”. Significa, por exemplo, ter sempre comida na panela, em quan-
tidade superior às necessidades imediatas dos moradores fixos, como ainda é
comum na casa de Elza, da família Campos. Em contraposição, a idéia de que
“parente não é família” — frase recorrente entre os integrantes da terceira gera-
ção dos Campos — ocupa lugar significativo no processo de desenraizamento
em relação à rede ampla. O novo estilo de vida, a preocupação com a reprodu-
ção e a manutenção do status adquirido podem romper — ou ao menos abalar
— as bases da constituição familiar original.
Como se ressaltou na introdução, esse processo está na raiz da “reava-
liação funcional dos signos” de que este livro é testemunho. Afinal, seus dois
autores emergiram, pelo menos em parte, de uma transição desse tipo, e a
reflexão aqui compartilhada (e comparada com um caso externo) pode ser
considerada como um dos muitos resultados possíveis de uma “individuali-
zação”. Há aí uma certa autonomização, uma certa interiorização e — porque
não lembrá-lo — uma certa “distinção”. Afinal, esta peça vai se encaixar em
dois currículos acadêmicos e terá algum peso para a identidade de seus au-
tores, com um valor consideravelmente estranho ao que boa parte de seus
antepassados, parentes ou interlocutores contemporâneos poderia considerar
justo, razoável ou pertinente.
Notas
1
As novelas brasileiras parecem operar com uma tripartição dramática básica que
opõe núcleos relacionais de classe popular, de classe média baixa e de classe média
alta (ou elite). A maneira como são expressos os sinais de distinção entre esses três
níveis mereceria maior atenção, já que ao mesmo tempo reflete, reforça e reinter-
preta as representações nativas dos seus múltiplos receptores de maneira complexa,
não-linear (ver Leal, 1985; Almeida, 2003; Abu Lughod, 2005). O tema da “indi-
vidualização”, aliás, aí se apresenta de maneira direta, geralmente acompanhado de
um juízo ético sobre as formas corretas e incorretas de construí-la nas trajetórias
sociais. Nesse sentido, pode-se dizer que a teledramaturgia da segunda metade
do século XX retomou os fios romanescos da temática da mudança social, de Jane
Austen e Balzac a Proust e Eça de Queirós.
2
Ver Tocqueville (1977), Durkheim (1970) e Simmel (1971), para enunciados so-
ciológicos da fórmula; e Dumont (1970 e 1985), Wagner (1981), Lukes (1973) e
Strathern (1988), para diferentes apreciações históricas e críticas.
3
Mauss, 1973.
4
Radcliffe-Brown, 1968.
5
Ver em Dumont (1985) a noção de “valor” como diferença.
6
Wagner, 1981.
7
Carsten, 2000.
8
A noção de que a “pessoa”, como nódulo de agência definido por uma determinada
cultura, não tem necessariamente como substrato um “indivíduo biopsicológico”
tem crescido na antropologia contemporânea, sobretudo graças à comparação et-
nológica (Seeger et al., 1979; Wagner, 1991; Strathern, 1992c). No entanto, a pró-
pria história ocidental é pródiga em exemplos dessa relativização, como no caso
crítico das três “pessoas” da Santíssima Trindade cristã ou no da definição das “pes-
soas jurídicas”. Mauss (1973) levanta esse ponto, subsumindo-o, no entanto, numa
perspectiva evolucionista de progressiva revelação da noção moderna de “pessoa”:
o “indivíduo”.
9
Dumont, 1985.
10
DaMatta, 1997; Velho, 1981; Aragão, 1982; Franchetto et al., 1981; Figueira, 1986;
Heilborn, 1984; Reis, 1998; Peirano, 2006; Salem, 2007.
11
Os modelos de Simondon e de Renaut ainda são menos conhecidos na antropologia
brasileira. Sobre o primeiro, cuja noção de individuação insiste num processo per-
manente, observado de um ponto de vista mais formal-abstrato (embora num pla-
no biológico, sobretudo), há uma boa revisão em Sautchuk (2007b:261), incluindo
as ressalvas de Neves (2007b:262). Renaut tem sua distinção entre individualização
pela “autonomia” (como “autodeterminação”) e pela “independência” (como “auto-
suficiência” econômica) utilizada pela sociologia da família encabeçada por Singly
neira mais ou menos intensa nas sociedades periféricas. Tanto nas primeiras quanto
nas últimas são as elites e as camadas médias que se ocupam primordialmente da
adequação entre as duas dimensões, até mesmo porque são elas as responsáveis
pela reprodução material e ideológica do novo modelo cultural”.
25
Algumas delas tiveram particular preeminência entre os anos 1950 e 1970. A da
“origem rural dos trabalhadores urbanos”, como fator determinante de sua especi-
ficidade, veio a ser posteriormente criticada e relativizada por Durham (1980). A
da “cultura da pobreza”, capitaneada por Lewis (1998), também veio a ser desacre-
ditada, por força do funcionalismo um tanto mecânico que englobava a sua intensa
disposição etnográfica.
26
Fry, 1978; Pierucci, 2006; Corten, 1995; Machado, 1996 e 2004; Mariz, 1994a,
1994b e 1996; Mariz e Machado, 1994 e 1998; Gomes, 2004; Lima, 2007.
27
Polanyi, 1980.
28
Castro e Araújo, 1997.
29
O modelo positivo do self made man convive, porém, com sua acepção negativa,
de tonalidade romântica, a que termos como “arrivismo”, “nouveau-richismo” ou
“bovarismo” vieram atender.
30
Moscovici, 1978; Velho, 1981; Figueira, 1986; Russo, 1993; Duarte, Russo e Ve-
nâncio, 2005.
31
Gans, 1962. Além de Campbell, Schivelbusch (1993) e Sahlins (1996) são imen-
samente úteis para a compreensão do desenvolvimento de uma ética do prazer
e da satisfação sensorial na cultura ocidental, em progressiva substituição ao seu
original dolorismo.
32
Weber, 1967; Dumont, 1985.
33
Duarte e Giumbelli, 1995.
34
A “igualdade” é um dos componentes centrais da ideologia do individualismo (so-
bretudo enquanto dimensão do “universalismo”), embora tenha sempre suscitado
graves tensões abstratas e concretas com o ideal da “liberdade”. Sua presença tem
sido assim mais determinante em certas dimensões e ordens da vida moderna do
que em outras. Sucessivas teorias da diferença emergiram desde o final do século
XVIII, com qualidades diferentes das que haviam caracterizado o ancien régime, por
se sustentarem quase todas em teorias naturalistas ou fisicalistas (Dumont, 1991;
Laqueur, 2001; Duarte, 2005a; Russo e Ponciano, 2002). A “distinção” pode ser
considerada uma das reelaborações da “diferença” — o que fica muito claro na
análise de Martine Dumont (1984) sobre a fisiognomia de Lavater, ainda no final do
século XVIII —, sobrepondo paulatinamente aos valores “atribuídos” aristocráticos
56
As atitudes em relação à diferenciação social tendem a ser negativas por parte de
quem permanece na condição de status original, a não ser que essa diferença possa
representar uma fonte regular de “redistribuição” material ou simbólica, imediata
ou dilatada pelo afastamento físico e temporal. O tema clássico do “olho grande”
envolve o ambiente de troca simbólica negativa, bem analisado por Foster (1967)
através da “imagem do bem limitado” prevalecente em comunidades camponesas
da América Central. Hoggart (1973) também se refere a um homólogo controle
moral da ascensão ou acumulação diferencial nas classes operárias inglesas do co-
meço do século XX. Há uma grande variedade de situações envolvendo, por outro
lado, a acumulação obtida fora do local de origem, quando possa implicar expec-
tativas de acolhimento de outros migrantes, de remessas de valores ou de retornos
finais redistributivos. Ver, por exemplo, Sahlins (1997).
57
É incomum, e mesmo malvisto, o tipo de “autonomização” constituído pela mora-
dia conjunta de pessoas que não possuem laços familiares entre si (consangüíneos
ou afins), como é o caso das repúblicas de estudantes ou de pessoas que “dividem”
a mesma residência com o objetivo de conter os gastos para poder morar em loca-
lidades mais centrais.
58
Um exemplo etnográfico muito significativo são os sentimentos de traição que
passam a dominar as relações entre pais blue-collar nos EUA e seus filhos, que
ascendem a uma condição white-collar por força da ação combinada da educação
universal e da reestruturação do mercado de trabalho. Ver Sennett e Cobb (1972).
59
Hoggart (1973:94-95) já advertia contra essa leitura ingênua: “mas a limpeza, a
poupança e a dignidade são fruto não da vontade de subir, mas antes do medo
de descer, de sucumbir ao meio ambiente, e a maioria daqueles que desprezam
esses critérios não são espíritos livres, generosos e desinibidos, mas antes indiví-
duos desmazelados e instáveis, refletindo-se esses defeitos nos seus hábitos e nas
suas casas. O próprio desejo de ver os filhos ‘subirem’ e o respeito pelo valor do
saber aprendido nos livros não são fruto do desejo de abandonar a própria classe
ou manifestações de esnobismo. São antes inspirados pela esperança de que essas
crianças poderão assim evitar a maioria das preocupações que afligem os pobres, só
porque são pobres”.
60
Para Hoggart (1973:101), “a minoria que tem consciência das próprias limitações
de classe e procura educar-se — para ‘trabalhar pelos da sua classe’ ou apenas para
se aperfeiçoar — é olhada de forma ambígua”.
61
O rumo seria, nesse caso, simetricamente inverso ao do tio militante — que come-
çara pelo “afastamento” em nome do universal e fora progressivamente se reaproxi-
mando do “local”.
62
Os aniversários, no modelo tradicional, costumam ser comemorados na casa do
aniversariante, com a presença de parentes e vizinhos, mas sem um caráter de festa
(sem convites formais, por exemplo). A expressão usual para comunicar o evento
entre os Campos é: “só vai ter um bolinho, para não passar em branco”. A festa
familiar típica, mais tradicional, parece só se atualizar, quando economicamente
possível, nas cerimônias de casamento — embora essas cerimônias também pos-
sam se prestar ao uso demonstrativo da autonomização.
63
Pode-se dizer que, nesse caso, como no de algumas conversões da família Campos,
a relativa autonomização se faz acompanhar de uma interiorização em sua dimen-
são ética, expressável num código religioso de fraternidade universal (em relativo
detrimento das fraternidades atribuídas terrenas). É bem possível que algo seme-
lhante se tenha dado com o desenvolvimento da mediunidade de Milton Duarte
— num momento a que o pesquisador só teve acesso por interpostas e distantes
memórias.
64
Guedes e Lima, 2006.
65
Apesar da geral permanência de uma enorme diferenciação social na sociedade
brasileira, alguns trabalhos têm demonstrado, qualitativa ou quantitativamente,
que o processos de “ascensão social” estão se dando continuamente — e, provavel-
mente, num ritmo mais acelerado e numa taxa mais alta do que a também presente
desclassificação social. Para uma análise quantitativa recente, com dados sobre as
transformações no mercado de trabalho masculino e feminino nas três últimas dé-
cadas do século XX no Brasil, ver Ribeiro (2007). Para uma análise qualitativa loca-
lizada, a partir de uma etnografia dos chamados segmentos “emergentes” (ou seja,
supostamente oriundos de uma “ascensão” recente) das elites cariocas na passagem
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