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O PÁSSARO DOURADO
REGINA SILVA MICHELLI (FFP-UERJ)
DANIEL SIMÕES SANTOS MASSA
RESUMO:
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familiares, o embate entre razão e paixão, a busca pelo amadure-
cimento emocional, a vivência da morte, entre tantos outros, são
aspectos comuns a homens e mulheres de qualquer época ou so-
ciedade e, por isso, os contos de fadas atravessam séculos sem
nunca perderem o encanto.
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monta. O aprendizado e a percepção são responsáveis pela
aquisição de uma consciência de significação” (Id., ibid., p. 17).
Assim, ouvir, ler, lembrar – vivenciar – uma história de fadas são
atos muito mais complexos do que parecem,
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Neste trabalho procuramos apresentar uma análise da figura
masculina no conto O pássaro dourado – ou O pássaro de ouro –,
dos irmãos Grimm, utilizando a obra Rei, Guerreiro, Mago,
Amante, de Robert Moore e Douglas Gillette, de base junguiana.
Os autores citados apresentam a configuração básica do
masculino – a psicologia do Homem – dividida em quatro princi-
pais arquétipos, os que dão título ao livro. Cada um destes, por
sua vez, possui um equivalente na psique masculina imatura,
chamada de psicologia do Menino. Para alcançar a plenitude do
homem é preciso haver uma morte – simbólica, psicológica ou
espiritual: “o Ego do menino tem de ‘morrer’ ritualmente para
que o novo homem possa surgir.” (MOORE; GILLETTE, op. cit.,
p. 6). Cada um dos arquétipos da psicologia do Menino vai dar
lugar aos arquétipos da masculinidade amadurecida. Assim, à
Criança Divina corresponde o Rei; à Criança Precoce, o Mago; à
Criança Edipiana, o Amante; o Herói vira o Guerreiro: “o homem
amadurecido transcende as forças masculinas da infância, elabo-
rando-as, em vez de demoli-las” (Id., ibid., p. 15). É importante
ressaltar que os potenciais arquetípicos masculinos relacionam-se
entre si, não são energias estanques. Os arquétipos do masculino
imaturo podem ainda se prolongar pela idade adulta, com os
homens apresentando um comportamento infantilizante.
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tipos analisados na obra de Moore e Gillette, utilizando apenas os
que nos permitem configurar o masculino no conto em questão.
O Pássaro Dourado, escrito pelos irmãos Grimm, eviden-
cia o aprendizado pessoal obtido através do deslocamento espa-
cial: as viagens permitem que a personagem principal, o filho
mais jovem do rei, adquira amadurecimento pessoal pelas
experiências de vida e pelas conquistas realizadas. Há no conto
diversas personagens que representam os arquétipos da psique
imatura e amadurecida, e suas respectivas sombras, as disfunções.
O texto (referido no corpo do trabalho pela abreviatura
OPD, de 1991) inicia-se com a apresentação do tempo mítico,
uma personagem e um espaço físico, elementos característicos
deste tipo de narrativa: “Há muito tempo, vivia um rei que pos-
suía, atrás de seu castelo, um lindo pomar, onde crescia uma
árvore que estava carregada de maçãs de ouro” (ibidem, p. 4). Na
descrição do espaço físico, destacam-se dois elementos que meta-
forizam a trajetória da personagem principal: de um lado, o
castelo, símbolo de poder, soberania, defesa, construção levada a
cabo por homens, traduzindo o luxo, a vida social, o encastela-
mento da nobreza, a cultura; de outro, o pomar, sinalizando a
presença da natureza através de seus frutos, que alimentam os
seres vivos. É exatamente neste pomar – espacialmente protegido
e escondido pelo castelo à sua frente – que reside a riqueza e a
manutenção da prosperidade daquele reino: as maças de ouro. A
simplicidade da natureza assinala a verdadeira riqueza.
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O equilíbrio inicial apresentado na narrativa é rompido a
partir da constatação de que uma das maçãs sumira. O rei tomou
ciência do ocorrido e “ordenou que todas as noites alguém ficasse
guardando a árvore.” (Ibidem, p. 4). Coube ao filho mais velho do
rei a tarefa de vigiar o pomar, mas, à meia-noite, ele adormeceu,
sendo roubada outra maçã. O mesmo se repetiu com o segundo
filho. O terceiro, o caçula, a custo obteve a permissão do pai –
“que não confiava muito nele e achava que não teria mais êxito
que seus irmãos” (Ibidem, p. 5).
Bruno Bettelheim trabalha a idéia do filho caçula como
simplório, desvalorizado socialmente, uma vez que o “herdeiro do
trono” é o primogênito, mas obtendo sucesso nas narrativas literá-
rias, espécie de compensação para essa desvantagem “social” e
“histórica”. Cumpre destacar que os filhos mais velhos nada
precisam provar. Sobre o caçula, por ser o mais inexperiente e
imaturo – e às vezes ingênuo -, recai o descrédito do pai. Ele
precisa provar sua competência, sente-se desafiado a isso e sua
honra depende de ser bem sucedido, onde os mais velhos
fracassaram. Observa-se que aquilo que é recebido sem esforço,
pouco mérito e significado (geralmente) adquire para aquele que
recebe tal bem: no conto, os filhos mais velhos não se esforçam
na realização da tarefa que lhes foi concedida. É o empenho
pessoal na realização da conquista que leva ao sentimento de
valorização do que foi obtido.
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O filho mais novo, porém, permaneceu acordado e, à meia-
noite, “um ruído de asas passou pelo ar e ele viu, à luz da lua, um
pássaro voando, suas penas tinham um brilho dourado” (Id., ibid.,
p. 6). O pássaro era o responsável pelo sumiço das maçãs. O
tempo cronológico é enfaticamente marcado nas três ações dos
príncipes: meia-noite representa um período de transição, fim de
um dia e começo de outro. Os príncipes mais velhos assinalaram
sua inépcia para ‘atravessar’ a vida, para ‘amanhecer’: sucum-
biram ao sono, à inércia, à falta de vitalidade para conquistar o
que quer que seja. O filho caçula é o que vai realizar a passagem,
adquirindo o conhecimento acerca da tarefa que se propôs a
realizar: o príncipe lançou uma flecha ao pássaro, que escapou,
mas deixou cair algumas penas, entregues ao rei na manhã se-
guinte. O rei, sabendo do valor daquelas penas, manifestou a
decisão de querer o pássaro inteiro. A luz da lua pode ser inter-
pretada como metáfora do brilho não convencional e forte como o
do sol, tal qual o filho mais jovem, desvalorizado pelas conven-
ções sociais.
Inicia-se uma nova seqüência narrativa, caracterizada pela
busca do pássaro e conseqüente partida dos príncipes, que care-
cem de sair do castelo, lançando-se à vida. Destaca-se a
importância da viagem, elemento invariante na efabulação, as-
sinalado por Vladimir Propp (2003, p. 80-1) e retomado por Nelly
Novaes Coelho na análise dos contos maravilhosos (2000, p. 109-
10; 2003, p. 113-14). A viagem, o sair de casa, é condição
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indispensável à realização do desígnio (ou aspiração) traçado pelo
herói, que “empreende uma viagem ou se desloca para um
ambiente estranho, não-familiar”, pois “basicamente, a luta pela
auto-realização trava-se fora de casa, no corpo-a-corpo do eu com
o mundo exterior, com outros”, afastado do aconchego e da
proteção familiares (COELHO, 2000, p. 110); Propp atribui a esta
função a finalidade da busca: é a “partida do herói-que-demanda”
(2003, p.80).
O primeiro a partir é o príncipe mais velho, caracterizado
na narrativa por auto-suficiência, soberba e maldade: confia em
sua esperteza para obter o pássaro e atira na raposa que surge à
entrada da floresta, pois desqualifica o conselho que ela lhe dá.
Segue adiante e, ao anoitecer, chega à aldeia, onde se achavam as
duas estalagens, conforme avisara a raposa.
As duas estalagens, espacialmente em oposição, uma de
frente para a outra, são também caracterizadas de forma antitética:
uma é apresentada através dos adjetivos triste, desolada, miserá-
vel; a outra é iluminada, associada aos substantivos alegria, far-
tura, festa, música, prazeres. Claramente observa-se a tensão entre
o princípio do prazer (a energia psíquica é utilizada para realizar o
objetivo de evitar a dor e obter o prazer, através da descarga
imediata de tensão) e o princípio da realidade (quando o objeto de
escolha original de um instinto é inatingível, a energia psíquica
investe em objetos substitutivos que reduzam, ainda que parcial-
mente, a tensão): o filho mais velho “entregou-se aos prazeres e
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festa e esqueceu do pássaro, seu pai e todos seus bons ensina-
mentos” (OPD, p. 8). Repetem-se os acontecimentos com o
segundo filho, que não resiste ao chamado do irmão pela janela
da estalagem. Assim, os dois filhos mais velhos desviam-se do
objetivo que os movera ao se deixarem seduzir pelo prazer,
justificando o fato de a ‘melhor’estalagem ser a mais perigosa. Há
ainda a possibilidade de aproximar este evento do discurso bi-
blico, que aponta o caminho mais formoso como, muitas vezes, o
de maior perdição.
O terceiro filho imprime a marca da diferença, tendo que
novamente despender energia para convencer o rei, seu pai, a
também deixá-lo partir, o que obtém depois de muita insistência.
O rapaz prima por um comportamento atencioso para com a
raposa e, segundo a narrativa, “piedoso”. Dirige-se a ela tratando-
a pelo diminutivo “raposinha”, forma aparentemente utilizada
para expressar carinho e não o tamanho do animal. Ouve seus
conselhos e permanece na pequena estalagem.
A raposa é presença constante em todo o conto, efetivando
a função de auxiliar ou mediador mágico, aquele “que afasta ou
neutraliza os perigos e ajuda o herói a vencer” (COELHO, 2003,
p. 113), outra invariante proposta por Nelly Novaes Coelho, na
esteira de Vladimir Propp. A raposa, no conto, é sagaz, sabe que
os príncipes estavam em busca do pássaro de ouro e aconselha-os
quanto ao melhor caminho a ser seguido, refugiando-se na flores-
ta ao se ver ameaçada pelos dois mais velhos. Ao mais novo,
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presta sua ajuda e solidariedade durante todo o conto: estende-lhe
a cauda, para irem rapidamente de um lugar a outro, e a expressão
“correram sobre pedras e galhos e os cabelos voavam ao vento”
aparece reiterada diversas vezes na narrativa, assinalando, em
nossa leitura, os obstáculos transpostos graças à ajuda da raposa
(as pedras e os galhos) e a liberdade de escolha, o livre arbítrio do
rapaz (os cabelos em liberdade). A necessidade de se afastar das
armadilhas da própria vida, que desviam o ser dos objetivos
traçados, aparece expressa através de termos como ir “sempre em
linha reta” (OPD, p. 10, 12), “vá direto ao castelo” (Ibidem, p. 10)
ou “Este caminho leva-o diretamente ao palácio dourado”
(Ibidem, p.14), conselhos dados pela raposa a fim de que o
príncipe seja não apenas bem sucedido, como se mantenha fiel à
sua demanda.
O deslocamento espacial conduz o jovem príncipe de um
castelo a outro. O primeiro é o do pássaro dourado, depois o do
cavalo dourado e, por fim, o palácio dourado da bela princesa. A
estrutura narrativa se repete, de certa forma apresentando as
invariantes destacadas por Nelly Novaes Coelho, com base em
Propp. Há a aspiração, caracterizada pela busca e aquisição de
algo – o pássaro, o cavalo, a princesa -; a viagem de um local ao
outro; o desafio à realização, marcado pelas escolhas a serem
feitas, ou os “obstáculos aparentemente insuperáveis que se
opõem à ação do herói” (COELHO, ibidem, p. 113); a mediação
realizada pela raposa através da ajuda nas viagens e dos conselhos
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quanto ao comportamento mais adequado ao sucesso, o que
significa realizar as escolhas certas. O jovem príncipe, porém,
transgride – ou desobedece – às orientações recebidas, é preso e
punido com a pena de morte, comutada mediante a obtenção de
algo que estabelece uma nova busca, abrindo uma nova seqüência
narrativa. A conquista do objetivo vai sendo postergada, assina-
lando uma trajetória de erros que, ao final, conduzirão à plenitude
das conquistas efetivadas.
Assim, a raposa informou ao príncipe caçula que, ao chegar
ao castelo do pássaro dourado, ele encontraria muitos soldados
dormindo, razão pela qual eles não ofereceriam resistência à sua
passagem. Após percorrer vários aposentos, ele chegaria a um
pequeno quarto onde se encontrava uma gaiola de madeira com o
pássaro dourado, gaiola que não deveria ser trocada pela de ouro,
“pois isso poderá lhe prejudicar” (OPD, p. 10). Tudo acontece
como a raposa havia lhe dito: o jovem encontrou o pássaro e as
três maçãs no chão. Não resistiu, porém, à beleza do pássaro e à
da gaiola de ouro, um “adorno” segundo a raposa, acreditando
que “não seria certo deixar um pássaro tão bonito numa gaiola tão
feia” (Ibidem, p. 11). Ao trocar o pássaro de gaiola, este gritou, os
soldados acordaram e o prenderam. O príncipe “foi julgado e,
como confessou tudo, foi condenado à morte. Mesmo assim o rei
lhe prometeu a liberdade com a condição de que lhe trouxesse o
cavalo dourado, que corre mais rápido que o vento, e como
recompensa ganharia o pássaro de ouro” (Ibidem, p.11). Ao sair,
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o jovem príncipe encontrou a raposa, que o ajudou a chegar ao
castelo do cavalo dourado, repetindo-se as orientações. Agora
haveria guardas dormindo diante da cocheira onde se encontrava
o cavalo dourado, em quem o jovem deveria colocar “a sela velha
de madeira e couro, jamais a sela dourada” (Ibidem, p.12), pois
isso iria lhe prejudicar. Novamente ele se equivocou nas suas
avaliações, considerando que a sela dourada era a que um cavalo
tão bonito merecia, momento em que o animal relincha, açor-
dando os guardas e tudo se repete tal qual no castelo anterior. O
perdão (e a liberdade) seria concedido ao príncipe, junto com o
cavalo, mediante a entrega da bela princesa do castelo dourado.
A escolha correta incide sobre a simplicidade da gaiola de
madeira e da sela de madeira e couro. As gaiolas e as selas
douradas assinalam a eleição tomando por base a aparência, em
detrimento da essência do que se pretende. O valor intrínseco
reside no pássaro e no cavalo, que se encontram em locais sim-
ples, enquanto os objetos materiais encerram um valor superficial.
O exterior simples (de gaiola e sela) favorece a percepção do ser
(o pássaro e o cavalo dourados). A aprendizagem a ser realizada
pelo príncipe é descobrir onde reside a verdadeira importância de
coisas e pessoas, vivenciando o pomar que existe atrás do castelo.
Ele precisa se desprender dos valores sociais em que fora criado.
Para isso viaja, ganha mundo, passa por desafios, enfrenta a
morte, adquire experiência.
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Os soldados e os guardas representam os obstáculos a
serem ultrapassados na conquista do objetivo desejado. São os
guardiões dos tesouros. Se o príncipe manifestasse discernimento
e maturidade, o caminho ser-lhe-ia livre e desimpedido. Como
tropeça em “pedras e galhos”, precisa se defrontar com a falência
e a perspectiva da própria morte, assumindo as conseqüências de
suas escolhas.
Os dois episódios reiteram a necessidade de aprendizagem
e amadurecimento do príncipe, que é colocado sob a mesma
circunstância por duas vezes, repetindo o mesmo padrão
avaliativo, carecendo de efetivar a escolha amadurecida do que é
essencial, sem se afastar do objetivo inicialmente traçado. Cum-
pre ressaltar que essas escolhas equivocadas do príncipe não se
devem à ambição, antes aos critérios de julgamento que ele
possui, valorizando a riqueza e o luxo como prova de mereci-
mento dos seres – tanto o pássaro como o cavalo merecem gaiola
e sela de ouro.
No palácio dourado, outras foram as recomendações da
raposa ao jovem príncipe. Seguindo suas orientações, ele esperou
pela meia-noite e, quando a princesa apareceu na casa de banhos,
deu-lhe um beijo, espécie de salvo-conduto para que ela o acom-
panhasse; o príncipe, porém, não deveria permitir que ela se
despedisse dos pais, pois “isso lhe traria problemas” (OPD, p.
14). Ele terminou por se condoer da princesa que, com lágrimas
nos olhos e ajoelhada a seus pés, implorou-lhe para se despedir
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dos pais antes de partir com ele. O pai, guardião da filha, seu
maior tesouro, e todos os demais acordaram e prenderam o rapaz.
Novo desafio se instala para ele: o perdão ser-lhe-ia concedido,
bem como a mão da princesa, se removesse a montanha que
existia diante da janela do rei e que lhe tirava a visão, tarefa a ser
realizada no período de oito dias. Durante os sete primeiros, o
príncipe executou sozinho a atividade de cavar a montanha, mas,
sem obter grandes sucessos, caiu em grande depressão. A raposa
novamente surgiu, prontificando-se a realizar o trabalho. Na
manhã seguinte, ele reclamou ao rei o cumprimento do que fora
combinado e partiu, levando consigo a princesa.
O beijo, associado à sedução, além de possibilitar a
conquista da princesa, estabelece uma aliança, a confirmação de
um pacto, e por isso o osculum era a última etapa realizada pelo
senhor feudal ao sagrar um cavaleiro. O banho, por sua vez,
assinala a idéia de purificação e limpeza, o desvencilhar-se de
estruturas antigas. Ainda que a princesa não tenha conseguido
tomar o banho que pretendia, é na casa de banhos que ocorre o
encontro dela como príncipe. O tempo cronológico anuncia a
meia-noite, hora de mudança, de transição. A princesa é a grande
conquista do príncipe, o ‘fim da linha’ de sua viagem, ou, como
anuncia a raposa, “O melhor você já tem” (Ibidem, p. 17). Há uma
hierarquia na sucessão dos seres “dourados” presentes na
narrativa: maça (vegetal), pássaro (ave), cavalo (animal
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mamífero) e princesa do castelo dourado (assinalando o encontro
com o outro).
Novamente repete-se a advertência de não acordar os
inimigos, aqueles que podem se interpor e dificultar o alcance do
objetivo traçado. O conselho de que o príncipe não permitisse à
princesa se despedir dos pais significa isso. Assinala ainda a
necessidade de ela não olhar para trás, desatando-se de ligações
afetivas já existentes para estabelecer uma nova, com o marido.
Uma vez acordado o pai, é preciso retirar a montanha que lhe
impede a visão do que há além do castelo: simbolicamente ele só
permitirá que lhe levem a filha (provavelmente o grande objetivo
de sua vida) caso lhe descortinem novos horizontes, possibilitan-
do o estabelecimento de novas perspectivas – de olhar e de vida.
A raposa surge apenas no oitavo dia, após deixar o príncipe
tentar cumprir, pelos seus próprios esforços, a tarefa exigida para
a obtenção da princesa. Se a presença do número sete é uma
constante nas narrativas maravilhosas, (COELHO, 2000, p. 179) e
simboliza, dentre várias possibilidades, “a conclusão do mundo”
levada a cabo por Deus, “e a plenitude dos tempos” (CHEVA-
LIER; GHEERBRANT, 2002, p. 828), o oitavo dia “é o símbolo
da ressurreição, da transfiguração, anúncio da era futura eterna”
(Id., ibid., p. 653), tempo do fazer humano.
Conquistada a princesa, inicia-se um novo ciclo para o
herói: o retorno ao castelo do pai, recuperando todos “os tesouros
conquistados” (OPD, p. 18), pois, como assegurou a raposa, “à
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donzela do palácio dourado também pertence o cavalo dourado”
(Ibidem, p. 17), o que torna lícita esta apropriação. O príncipe
seguiu os conselhos da raposa – adjetivada como “velha amiga”
(Ibidem, p. 12), “leal raposa” (Ibidem, p. 14), “fiel raposa”
(Ibidem, p. 17) – e obteve o pássaro e o cavalo dourados, além da
bela princesa. Este foi o momento em que a raposa se pronunciou
quanto a uma recompensa por sua ajuda: ela pediu ao jovem
príncipe para que a matasse e lhe cortasse a cabeça e as patas. Ele
se negou a fazer isto, não reconhecendo tal ato como prova de
gratidão. Observa-se que o processo de amadurecimento do herói
não se completou ainda: ele não possui suficiente discernimento,
tampouco sabedoria, para avaliar corretamente o que lhe pediu a
raposa, apesar de todas as experiências vividas com sucesso,
graças à ajuda recebida deste animal (que lhe mereceria, portanto,
confiança). Diante da recusa do príncipe para fazer o que lhe
pediu, a raposa anunciou que o abandonaria, não sem antes lhe
dar um conselho e entrar na floresta: “Não compre carne de al-
guma forca e não sente na beira de um poço” (Ibidem, p. 18). O
príncipe estranhou tal recomendação, seguiu em frente e chegou à
aldeia onde haviam ficado seus irmãos, agora condenados à forca
como malandros. O príncipe caçula conseguiu resgatá-los da
morte, pagando por eles. Continuaram todos juntos a viagem e
quando estavam na floresta, os dois irmãos sugeriram “descansar
um pouco perto deste poço para beber e comer” (Ibidem, p. 20).
Esquecendo-se da advertência da raposa, o jovem príncipe
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sentou-se à beira do poço, sendo empurrado pelos dois irmãos,
pelas costas (simbolizando a traição), para dentro dele. Os irmãos
mais velhos retornaram ao castelo do rei, afiançando serem eles
os autores das conquistas realizadas. O narrador informa, porém
que, apesar da alegria reinante, “o cavalo não comia, o pássaro
não cantava e a jovem só chorava” (Ibidem, p. 20), índices de que
algo estava errado.
O príncipe mais novo não morreu na queda, sendo, mais
uma vez, salvo pela raposa que o retirou do poço com sua cauda.
Garantiu-lhe ainda que a floresta estava cercada por guardas
enviados pelos irmãos, com ordens para o matar. No caminho
para o castelo do rei, o jovem trocou de roupas com um velho
pobre, conseguindo chegar a seu destino: “Ninguém o reconhe-
ceu, mas o pássaro começou a cantar, o cavalo começou a comer
e a bela donzela parou de chorar” (Ibidem, p. 21). Tal mudança no
ambiente atraiu a atenção do rei, que indagou a princesa sobre o
significado do que estava ocorrendo. Mesmo sem ter clareza e
conhecimento da presença do príncipe caçula, ela diz ao rei que
“Até parece que meu verdadeiro noivo chegou” (Ibidem, p. 22),
narrando-lhe todos os acontecimentos ocorridos e como fora
ameaçada de morte pelos príncipes mais velhos, caso dissesse a
verdade. O rei reuniu toda a corte, comparecendo o filho mais
jovem, sob a aparência de mendigo (tal como Ulisses, na volta a
Ítaca), sendo reconhecido, mesmo assim, pela princesa. Os dois
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irmãos foram condenados, o mais jovem, herdeiro do trono,
casou-se com a bela princesa.
O próprio narrador interroga: “Mas o que aconteceu com a
pobre raposa?” (Ibidem, p. 22). O príncipe voltou a encontrá-la
na floresta, ouviu de novo o pedido dela para que a libertasse de
sua desgraça, o que só agora ele cumpriu: a raposa transformou-se
no irmão da bela princesa, cessando o feitiço que fora lançado
sobre ele, sem que a narrativa explique os acontecimentos que
envolveram a metamorfose inicial – como se houvesse um conto
anterior, com a princesa de posse de seus animais, de que este
seria a continuação. A maldição só se romperia quando a raposa
efetivamente perdesse sua configuração animal, que precisa
desaparecer para dar vazão ao humano: não lhe bastava ser morta,
o que teria acontecido se ficasse na mira do príncipe mais velho,
sendo necessário o esquartejamento como forma de separar as
partes que a compõem, reduzida à perda do pensar (cabeça) e dos
movimentos (as patas), restando o tronco: “Nos contos de fadas,
redenção refere-se especificamente a uma condição em que
alguém foi amaldiçoado ou enfeitiçado e é redimido através de
certos acontecimentos ou eventos da história.” (FRANZ, op. cit.,
p.7). O conto termina com “a felicidade de todos, até o fim de
suas vidas” (OPD, p.23).
Resgatando-se a linha teórica proposta, observa-se que a
personagem real representa o arquétipo do Rei, remetendo ao
homem primordial, o Adão, à energia do Pai e à imago Dei, “a
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Imagem de Deus” (MOORE; GILLETTE, op. cit., p. 49). O
arquétipo é caracterizado por duas funções principais: “A
primeira é a de ordenar; a segunda é proporcionar fertilidade e
bênção” (Id., ibid., p. 52). Cabe-lhe manter a ordem, a justiça, a
tranqüilidade, a paz, a prosperidade de seus súditos (CHEVA-
LIER; GHEERBRANT, op. cit., p. 774-5). Ele tem o poder da
autoridade, além da responsabilidade de cuidar de seu povo e de
sua terra. No conto, o rei ordena que vigiem a árvore, mas depois
manda que o filho mais velho se incumba da tarefa; julga o filho
mais jovem como inapto ou incapaz de cumprir as tarefas em que
os outros mais velhos não obtiveram sucesso; determina que toda
a sua corte se apresente diante dele, quando a verdade é revelada:
os filhos mentirosos são condenados, cumprindo-se a lei, e o filho
mais novo é declarado o herdeiro do trono. “O rei humano faz o
princípio ordenador do mundo através da codificação das leis. Ele
faz as leis, ou, mais exatamente, as recebe da própria energia do
Rei e as passa à sua nação.” (MOORE; GILLETTE, op. cit., p.
55). No conto, é um rei justo, embora apresente como lado nega-
tivo a cobiça pelo pássaro, que não lhe pertence, ainda que ele
seja o responsável pela manutenção da prosperidade do reino – o
que justifica o cuidado com as maçãs e a sua fala diante do
conselho: “Se esta pena é tão valiosa – decidiu o rei – não tenho
outra alternativa, eu quero ter este pássaro inteiro” (OPD, p. 6). O
rei afasta-se dos arquétipos que evidenciam a sombra ou a
disfunção: não é o Tirano que explora e maltrata, temendo a
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ascensão dos filhos, preocupado com o seu próprio bem estar;
tampouco é o Covarde, que camufla o medo da própria fraqueza
com um comportamento opressivo e cruel. Os outros arquétipos
da psicologia do Homem também não se evidenciam nele.
O arquétipo do Rei concentra o poder, a justiça, enquanto
a ação cabe ao mais jovem, ao cavaleiro, que se desloca em busca
da sua demanda. O príncipe, filho de rei, exprime
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ser “caracteristicamente presunçoso e quase sempre tem um
sorriso arrogante nos lábios” (Id., ibid., p. 29). O filho mais velho
“confiava na sua esperteza e estava certo de que acharia o pássaro
dourado” (OPD, p. 6), depreciando o conselho da raposa, a quem
tentou matar: “Como um animal tão ignorante poderia me dar um
bom conselho?” (Id., ibid., p. 7).
Com relação ao príncipe mais jovem, ele atualiza o
arquétipo da Criança Edipiana, do masculino imaturo, cuja ener-
gia está ligada à Mãe, enquanto relação primordial: ‘É emotivo e
tem um sentimento de admiração e profundo apreço pela comuni-
cação com suas profundezas internas, com os outros e com todas
as coisas. É terno, ligado e afetuoso.” (MOORE; GILLETTE, op.
cit., p. 33). Ele insiste em ajudar a descobrir a causa do sumiço
das maçãs, ouve os conselhos da raposa, mas não os cumpre
integralmente, pois se deixa levar pela emoção. Com pena do
pássaro e do cavalo, coloca o primeiro na gaiola de ouro e lança a
sela de ouro sobre o segundo. Deixa-se enternecer pelos rogos da
princesa e não hesita em libertar os irmãos da forca, sentando
distraidamente na beira do poço. É incapaz, inicialmente, de
realizar o pedido da raposa, a quem chamara de raposinha, para
que a mate. Age movido pela emoção.
O príncipe mais jovem, ainda na condição imatura, articula
um outro arquétipo: o do Herói, considerado por Moore e Gillette
a variedade mais avançada da psicologia do Menino, “o arquétipo
que caracteriza o máximo no estágio adolescente do desenvol-
24
vimento” (Op. cit., p. 37). A energia do Herói torna o menino
capaz de romper com a Mãe, no fim da infância, a fim de
conseguir enfrentar as tarefas que a vida lhe reserva, testando seus
limites:
26
Apresenta-se a “morte” para quem escolheu com
imaturidade, baseando-se em critérios equivocados (a aparência
da gaiola e da sela douradas) ou deixando-se levar pela emoção e
pela bondade ingênua (quando cede aos rogos da princesa ou
salva os irmãos da forca). A trajetória de amadurecimento implica
vivenciar diversas “mortes” ao longo da vida, sucumbindo, prin-
cipalmente, a inocência que fragiliza o ser diante da malícia
necessária à condução da própria vida. O amadurecimento garante
ainda o discernimento da humildade a quem retornou à casa com
as roupas esfarrapadas de mendigo. O texto termina por afiançar a
importância de se responsabilizar pelas próprias escolhas, certas
ou erradas, conscientes ou não. O príncipe amadurece graças à
coragem de enfrentar as limitações decorrentes das decisões que
julga corretas. Por isso, cada nova tarefa significa a aquisição de
um bem melhor que o anterior. Ele adquire autonomia, o que não
significa auto-suficiência, haja vista a presença mediadora da
raposa.
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Amadurecido, o jovem se prepara para o desempenho de
arquétipos ligados à psicologia do Homem. Anuncia-se o
arquétipo do Guerreiro que, na sua plenitude, é “um caminho
espiritual ou psicológico na vida” (MOORE; GILLETTE, op. cit.,
p. 77). Define-se pela coragem em assumir a responsabilidade por
seus atos e ter auto-disciplina; pelo “compromisso transpessoal”,
significando seu senso de dever e “lealdade para com algo – uma
causa, um deus, um povo, uma tarefa, uma nação” (Id., ibid., p.
81), um rei; pela agressividade, entendida como um comporta-
mento de enfrentamento de tarefas e problemas que surgem na
vida. O arquétipo do Guerreiro combinado à energia do Amante
responde pelo sentimento de piedade e ligação com todas as
coisas: “O Amante se relaciona com tudo e com todos, atraído
através de sua sensibilidade. Esta o leva a sentir-se compassiva e
empaticamente unido com eles.” (Id., ibid., p.119). O príncipe
caçula, alçado à condição de herdeiro ao final do conto, evidencia
todos esses atributos, mantendo-se fiel à tarefa designada pelo pai
e às decisões tomadas com base no que considera melhor. É
sincero com todos que cruzam seu caminho, e particularmente
amoroso com os que lhe são caros, como a raposa, a princesa e os
irmãos, ainda que estes últimos não o merecessem. A energia do
Amante manifesta-se plenamente no encontro com a princesa,
cujo amor certamente deveu-se ao sentimento de piedade do jo-
vem. É a princesa que pressente a chegada do noivo e o reconhece
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apesar de sua aparência andrajosa, bem como os animais que ele
conquistara.
“E a raposa?”, perguntamo-nos tal qual o narrador. Ela
representa o arquétipo do Mago, aquele responsável por saber o
que os outros desconhecem, “vidente e profeta no sentido não
apenas de prever o futuro, mas de ver em profundidade.” (Id.,
ibid., p.97), sendo o arquétipo da consciência e da percepção, da
reflexão e da sageza:
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conselheira, ajuda o príncipe em todos os momentos da história,
chegando a demolir a montanha em lugar do jovem amigo e
salvar sua vida ao retirá-lo do poço. Orienta-o durante toda a
aventura com sabedoria e esperteza e é a responsável pela
‘iniciação’ do jovem príncipe, a energia do Mago que faz a
transição do príncipe da psicologia do Menino para a psicologia
do Homem.
A marca do ouro está presente ao longo de toda a narrativa.
Este mineral associa-se simbolicamente ao brilho, à tomada de
consciência, à transmutação alquímica. Pela riqueza que este
conto nos oferece, enquanto leitura de texto e de vida, O pássaro
dourado nos permite voar em suas asas, tão ricas e valiosas
quanto a Literatura Infanto-Juvenil.
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Referências bibliográficas:
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