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Artigo publicado em: Revista Antropología y Derecho, CEDEAD , v. 7, p. 10-18, 2009.
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Trata-se daquilo que Nader (2002) clamou como sendo uma “antropologia da lei mais holística”.
a realidade, que revestem de significado a multiplicidade de práticas, saberes e
dispositivos empregados para a sua prática3. Desta forma, sentimentos e afetos não são
elementos adicionais ou complementares à esfera legal, ou mesmo resquícios de formas
menos evoluídas de resolução de conflitos. São, ao contrário, partes constitutivas de seu
exercício. Se isso é verdade quando consideramos a constituição dos projetos
civilizadores europeus, como já apontou Norbert Elias (1994), onde o controle das
emoções foi fundamental para a própria elaboração do Estado moderno e da noção de
modernidade e seus valores correlatos – de indivíduo, privacidade, liberdade, autonomia
e democracia -, as práticas restaurativas renovam a discussão acerca do controle e
racionalização das emoções e seu papel na condução de projetos civilizadores no Brasil.
Isto porque a restauração dos laços entre as partes envolvidas nos processos judiciais e
desses com a comunidade mais abrangente é vista como propulsora de paz e harmonia
social, as quais são percebidas como provenientes de um estado subjetivo das partes.
Especificamente para este artigo, meu foco são os sentidos atribuídos às práticas
restaurativas a partir da visão de juízes, teóricos do direito e técnicos judiciários. Como
espero deixar claro ao longo do texto, tais agentes acionam mecanismos de diferenciação
importantes entre as propostas restaurativas e as práticas judiciais mais tradicionais do
sistema penal. Estudar o sentido constituído pelos agentes implicados na criação dessa nova
forma de fazer justiça no Brasil pode ser reveladora não apenas dos propósitos
restaurativos, mas também da visão que tais agentes têm do próprio sistema judicial ao qual
estão vinculados. Através da narrativa desses agentes, vemos uma crítica efetiva ao sistema
judicial tradicional no Brasil, visto como repressivo e conservador. No entanto, a análise
dos processos restaurativos faz perceber que as relações de poder ainda fazem parte dessa
nova prática judicial, embora não sejam características de um tipo de poder definido
exclusivamente pelo seu aspecto soberano, nos termos de Foucault (1988 e 2003). A
hipótese é que a justiça restaurativa associa, ao poder soberano legal, procedimentos
normalizadores, dando-lhes uma centralidade em suas práticas e ideário. Isto porque o foco,
na “justiça restaurativa”, é a transformação das estruturas internas dos sujeitos implicados e
nos seus relacionamentos. A idéia é que “conversando a gente se entende”, na medida em
que comunicação pressupõe troca e a criação de laços entre duas individualidades,
incluindo-se a expressão emotiva. Tais elementos vinculam-se a uma concepção de justiça
que valoriza a negociação, o consenso e a pacificação das relações sociais, centrando-se na
noção de indivíduo como um valor e instrumento de seu exercício.
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Sobre a análise do Direito como forma de pensamento, ver Geertz (1997).
1. A “Justiça Restaurativa” e o Ideário da Modernização do Poder Judiciário
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Por administração alternativa de conflitos entende-se a mediação de conflitos por via da negociação, da
restauração e da compensação – em contraposição aos modelos adjudicatórios e retributivos da justiça
tradicional brasileira (Ministério da Justiça, 2005).
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Ver a resolução 1999/26, de 28 de julho de 1999, do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas.
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Com objetivo de ajudar o governo brasileiro a modernizar a máquina do Estado e prevenir a
criminalidade, o PNUD investiu US$ 150 mil neste projeto de cooperação técnica. As ações do projeto
estão calcadas num diagnóstico sobre as melhores iniciativas do Judiciário brasileiro, realizado há três
anos, também possibilitado através de investimento internacional – desta vez com recursos do BID
(Banco Interamericano de Desenvolvimento). Consideramos tais informações significativas do argumento
de que as transformações judiciais brasileiras respondem a anseios nacionais, mas sem dúvida acontecem
em um contexto de pressões internacionais para reformulações judiciais motivados pelo novo contexto
neoliberal que, como disse Santos (2000), elege o Judiciário como salvaguarda de um Estado não-
intervencionista.
Justiça, 2005). No Brasil, o projeto piloto está implantado em três diferentes regiões
brasileiras: Porto Alegre (RS), onde o modelo de Justiça Restaurativa está sendo
aplicado na Vara de Execuções de Medidas Sócio-Educativas, na área de Infância e
Juventude; no Núcleo Bandeirante, do Distrito Federal, onde o alvo é o Juizado Especial
Criminal e o terceiro projeto-piloto é em São Caetano (SP), onde é implantado nas
escolas através das “câmaras” ou “círculos restaurativos”, no intuito de que os conflitos
não cheguem até o Judiciário7. Há ainda experiências sendo efetivadas em Santa
Catarina e Recife, mas que não compõem os projetos-piloto. O ideário das experiências
piloto centra-se na reparação ou amenização do dano provocado pelo crime, ao invés da
punição do criminoso. Uma justiça mais participativa também é um outro fundamento
da proposta e as práticas de mediação na comunidade são um dos principais dispositivos
inovadores do projeto, que tem como princípio a resolução consensual e pacífica dos
conflitos.
Valorizando a participação comunitária, a “justiça restaurativa” propõe a
informalização dos procedimentos judiciais: as reuniões de restauração devem acontecer
em espaços comunitários, tais como escolas, centros comunitários, etc. A própria
orientação para disposição das pessoas no ambiente das reuniões – circular – já se
propõe a quebrar as hierarquias tradicionais entre agentes judiciais, vítima e infrator. Os
“círculos” ou “comunidades restaurativas” necessitam de um mediador que, no entanto,
deve ser treinado especialmente para esse fim, sendo as Organizações Não-
Governamentais tomadas como importantes parceiros nessa tarefa. A previsão do
projeto é de que os mediadores sejam capacitados por agentes estatais. Aliás, o projeto
também prevê que a decisão de encaminhamento dos casos para os procedimentos da
“justiça restaurativa” seja feita eminentemente pelo juiz da Vara de execução do projeto
– o que revela a não dissociação completa dos procedimentos restaurativos com o
sistema de justiça tradicional.
A proposta restaurativa deseja, porém, ir além da mera resolução processual dos
conflitos, tal qual existente nos modos clássicos de resolução judicial: a restauração dos
laços comunitários e dos laços entre vítima e infrator é vista como propulsora de paz e
harmonia social – percebidas como provenientes de um estado subjetivo das partes. Aí é
que se evidencia uma importância da emoção, do diálogo entre as partes, da evocação
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No Juizado Especial Criminal são julgadas causas criminais em que a pena máxima é de um ano
(geralmente lesões corporais, brigas familiares, ameaças e desavenças entre vizinhos). Na Vara de
Execução das Medidas Sócio-Educativas do Juizado da Infância e da Juventude são executadas as
medidas sócio-educativas, destinadas a adolescentes infratores de idade entre 12 e 21 anos.
da sensibilidade e dos relacionamentos interindividuais: da “acusação” e da “culpa”
para o “perdão” e as “desculpas”; da “punição” para a “cura”, “cicatrização das feridas”
e “reparação” (Maxwell, 2005). Valoriza-se a troca emocional, no intuito de restaurar
sentimentos e relacionamentos positivos. A “reunião restaurativa” é tomada como uma
oportunidade que os envolvidos num ato criminal têm para expressar seus sentimentos,
descrever como foram afetados pelo acontecimento e, daí, promover práticas de
reconciliação e pacificação interpessoal e comunitária. Um elemento interessante,
contudo, é que as experiências restaurativas não visam substituir o modo tradicional de
resolução de disputas, mas introduzir-se como alternativas aos modos já existentes.
Assim também acontece com outros projetos de “justiça alternativa”, como os Juizados
Especiais Criminais, por exemplo, os quais não pretendem substituir os serviços
existentes, mas introduzir a possibilidade de uma resolução conciliatória do processo
criminal. Mas, então, para quem os projetos da “justiça alternativa” fazem sentido? Que
casos são encaminhados para a justiça informal? Qual o público que recorre a tais
serviços? Para quais demandas tais projetos estão se dirigindo?
A não existência de registros sistemáticos acerca da posição social das pessoas
implicadas nas práticas restaurativas impede uma resposta consolidada sobre essa
questão. Tais questões são pertinentes, entretanto, quando analisamos os dados
recentemente registrados em um relatório sobre as experiências de outros projetos de
“justiça alternativa” no Brasil (Balcões de Direitos, Assessoria Comunitária, Justiça
Cidadã, Mediação Familiar, Ouvidoria Agrária, Projeto Justiça Comunitária, etc).
Informações da pesquisa intitulada: “Acesso à Justiça por Sistemas Alternativos de
Administração de Conflitos”, publicada pelo Ministério da Justiça brasileiro em 2005,
revelam que as classes populares têm participação majoritária em 79,1% dos programas
de “justiça alternativa”, enquanto as classes média e alta respondem por apenas 3%. Em
56,7% das iniciativas também prevalecem pessoas com baixa ou sem nenhuma
escolaridade, em 16,4% quem concluiu o ensino médio e em apenas 1,5% quem cursou
o ensino superior (Ministério da Justiça, 2005). Isto é, a população atingida pelos
projetos da chamada “justiça alternativa” é majoritariamente proveniente das classes
populares brasileiras. Esses dados renovam questões já colocadas aos projetos de
informalização da justiça por Boaventura de Souza Santos (1985): a organização da
justiça comunitária tutelada pelo Estado, não seria uma forma desse último expandir-se
sobre a sociedade civil? O controle social não estaria sendo executado sob a forma de
consenso, negociação e ação comunitária? A mesma suspeita é evidenciada por Nader
(1994 e 2002) no caso da resolução alternativa das disputas nos Estados Unidos: para a
autora, tais maneiras de resolução de conflitos são verdadeiros instrumentos de
pacificação social, ligadas a um modelo de justiça terapêutica, que transforma fatos
legais em “sentimentos” e “relacionamentos”.
É preciso colocar, contudo, tais observações em contexto. Isto é, mais uma vez
assinalamos a necessidade de um trabalho empírico, etnográfico, a respeito dos modos
específicos e significados particulares que determinados valores representativos de
hegemonias legais são vivenciados no contexto brasileiro. Na análise de Azevedo
(2001), sobre a implantação dos Juizados Especiais Criminais no Brasil, por exemplo,
vemos que a informalização da justiça penal não ampliou o controle social do Estado
sobre novas condutas, já que esse controle já se exercia pelas delegacias de Polícia; na
verdade, os novos dispositivos judiciais apenas substituíram o delegado pelo juiz, no
exercício da função de mediação. Entretanto, o autor também salienta de que é preciso
destacar a forte influência dos agentes judiciais na implantação dos Juizados Especiais
Criminais brasileiros: embora a lei de criação desses dispositivos tenha previsto a
utilização de conciliadores escolhidos fora dos quadros da justiça criminal, essa
disposição não foi efetivada na prática da implementação dos Juizados Especiais
Criminais. Assim, os mesmos juízes que atuavam nas Varas Criminais passaram a atuar
nos Juizados Especiais Criminais, reproduzindo a relação hierárquica característica do
processo penal tradicional, problematizando o próprio estatuto da “conciliação”
desejada. Os trabalhos de Cardoso de Oliveira, L.R. (2002 e 2005) também corroboram
tais impressões, assinalando que esses organismos judiciais tendem a “(...) impor às
causas que lhe são encaminhadas um forte processo de filtragem, o qual tende a excluir
aspectos significativos do conflito vivido pelas partes, reduzindo substancialmente a
perspectiva de um equacionamento adequado para suas demandas e preocupações”
(Cardoso de Oliveira, L. R., 2005:05). Esses dados revelam a necessidade de analisar
com precisão a própria efetivação dos projetos na prática e, de outro lado, investigar as
próprias tradições e culturas jurídicas em que as práticas de mediação e negociação
judicial acontecem.
Caso comparemos Brasil e Estados Unidos, por exemplo, chegamos a conclusão
de que efetivamente existe uma cultura jurídica diversificada que importa considerar no
momento da análise sobre a implantação de projetos e do estudo de sua significação os
agentes envolvidos na sua efetivação. De acordo com Kant de Lima (1989 e 1995),
existiria uma série de distinções entre a cultura jurídica americana e a brasileira:
diferentemente do Brasil, o sistema de controle social nos Estados Unidos se
apresentaria como tendo uma origem “popular” e “democrática”, haveria uma noção de
igualdade formal em que todos teriam direito à igualdade na diferença e a noção do
espaço público seria a de um espaço coletivo. O Brasil, ao contrário, caracterizar-se-ia
por uma origem elitista do sistema jurídico, o domínio do público seria controlado pelo
Estado e a idéia de igualdade estaria associada à semelhança, não à diferença. Em
conseqüência, enquanto nos Estados Unidos a ordem social se construiria a partir da
explicitação dos conflitos de interesse individualizado, no Brasil haveria a conciliação
forçada de conflitos, visando a imposição da harmonia e do status quo, para manter a
hierarquia e a complementaridade entre elementos diferenciados do sistema (Kant de
Lima, 1989 e 1995).
Desta forma, no Brasil o conflito seria visto como exterior à sociedade, na
medida em que ameaçaria a legitimidade da ordem. O processo de construção de
verdade que poria fim ao conflito seria vivido como um processo de pacificação e
harmonização das desigualdades. Isto porque os desiguais não devem se opor, mas se
complementar harmonicamente. Caso aceitemos as observações de Kant de Lima, o
modelo de uma “justiça restaurativa” baseada nos princípios da negociação e harmonia
poderia, por hipótese, até mesmo vir a corroborar elementos relacionais e hierárquicos
de nossa cultura jurídica e não ser um rompimento significativo com esses valores. Tal
hipótese, contudo, somente deve ser analisada à luz das experiências concretas de
implantação do projeto, da pesquisa da heterogeneidade das práticas judiciais existentes
e do entendimento dos significados desses novos dispositivos judiciais para os próprios
agentes envolvidos na sua implantação. Se, como assinala Nader (2002), a defesa da
implantação das resoluções alternativas de disputas nos Estados Unidos tem sido feita
através do argumento de que a sociedade americana é muito conflitiva, qual o idioma
específico da argumentação veiculada pelos defensores da justiça restaurativa no Brasil?
Para tentar responder tal questão volto-me agora para a descrição de alguns
argumentos de justificação das práticas restaurativas trazidos pelos seus agentes
implementadores no Brasil. Apesar dos projetos pilotos estarem sendo executados em
três distintas regiões do país, neste artigo focalizarei principalmente nos dados que vem
sendo recolhidos desde março de 2006 em Porto Alegre/RS. A pesquisa envolve análise
documental, observações de práticas e entrevistas com agentes diversos participantes
das atividades.
2. “Projetos são Utopias”: a justiça restaurativa em Porto Alegre/RS
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Ver o texto intitulado: “Justiça Restaurativa e a cultura da paz: do conceito ao contexto” (s/d).
práticas da gestão da juventude no Rio Grande do Sul. Agora, sendo o pioneiro na
implementação das práticas restaurativas no Brasil, Dr. Luís também vem adquirindo
uma posição de destaque nacional e até mesmo internacional. A referência ao fato de
que “projetos são utopias” – entendidos como um plano de quimera, da fantasia, do
irrealizado – é significativo porque revela a percepção de uma lacuna entre o que existe
e o que é imaginado e idealizado, espaço que legitima a intervenção dos agentes
jurídicos e lhes atribui um sentido específico de não apenas trabalhar com fatos já
constituídos – mas na realização de um futuro, de algo que existe ainda apenas enquanto
uma virtualidade. O que se propõe é a difusão de um projeto de sociedade,
particularmente caracterizada pela harmonia e paz, que pode ser realizada através de
uma modificação nas formas de conceber o conflito entre as pessoas e de seus valores
fundamentais.
É nesse intuito que Dr. Luís foi um agente difusor das propostas restaurativas,
promovendo seminários e encontros sobre o tema, como o primeiro grande seminário
ocorrido em Porto Alegre, em outubro de 2004, em parceria entre as ONGs Instituto de
Acesso a Justiça – IAJ e a congênere inglesa Justice, evento apoiado pela AJURIS
(Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul). Mesmo que as referências ao estudo das
práticas restaurativas e no interesse de sua discussão sejam datadas de 2001, a “justiça
restaurativa” aparece como objeto de mobilização de diversas entidades, no Rio Grande
do Sul, apenas a partir desse seminário. Além da promoção de seminários e grupos de
estudo sobre o tema, Dr. Luís foi um importante mobilizador de políticos e
institucionais, como a AJURIS (órgão de classe da magistratura), a FASE e a FASC
(entidades estaduais e municipais, respectivamente, de execução de medidas sócio-
educativas), a Secretaria Municipal e Estadual de Educação e a Guarda Municipal, todas
parceiras atuais da “justiça restaurativa” no Rio Grande do Sul. O desafio de reunir
todos esses órgãos em torno das práticas restaurativas seria, segundo as palavras de Dr.
Luís, “instituir um pensamento único”. Mas, como disse em um seminário de
“repactuação” entre os parceiros do projeto, realizado em junho de 2006, a instituição
de um pensamento homogêneo estaria acontecendo porque, conforme Dr. Luís, tais
agentes estão recebendo “ajuda do alto” – palavras que se associam a um sentido
religioso mas que, na verdade, estavam se referindo ao investimento financeiro
realizado pelo PNUD, UNESCO e ONU, especialmente para o desenvolvimento da
capacitação dos agentes para a “comunicação não-violenta”, metodologia específica que
guia o projeto restaurativo no Rio Grande do Sul.
2.1. O diagnóstico da violência e o método da “Comunicação Não Violenta”
3. Considerações Finais
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Como grandes tendências no campo da lei após a II Guerra Mundial, Nader (2002) cita o
desenvolvimento e expansão dos movimentos pelos direitos humanos, o crescimento das resoluções
alternativas de disputas e a expansão de uma combinação entre o secular e o sagrado, no qual a
resolução de disputas agregaríamos a ênfase nos ideais da harmonia, consenso e
pacificação social.
Certamente, podemos levar em conta as observações de Nader (1994 e 2002)
sobre a crescente hegemonia dos modelos harmônicos e da resolução alternativas de
disputas – e a própria existência da chamada “justiça restaurativa” é um indicativo
interessante, ao enfatizar a negociação emotiva como fonte de resolução de conflitos.
No entanto, cabe lembrar que devemos também compreender como sensibilidades
jurídicas particulares (Geertz,1997) incorporam, gerenciam e efetivam localmente tais
influências hegemônicas, uma vez que existem contextos sociais diferentes que
circunscrevem e garantem uma singularidade das experiências realizadas10. E isto é tão
ou mais verdade levando-se em conta também as tradições jurídicas particulares de cada
contexto especifico.
No caso brasileiro, a incorporação na análise da especificidade da tradição
jurídica – marcada por uma origem não popular e de caráter inquisitorial (Kant de Lima,
1989 e 1995) – com o estudo da constituição de sentidos pelos agentes participantes dos
procedimentos estudados fez ver que a “justiça restaurativa” não pode ser entendida
simplesmente como uma transposição de um projeto gerido exteriormente ao Brasil,
como se houvesse uma espécie de “transplante legal” bem sucedido. Tal como vem
sendo implementada no Rio Grande do Sul, a “justiça restaurativa”parece trabalhar com
uma dupla dinâmica: de um lado, a lógica da descoberta da verdade – na medida em
que as práticas restaurativas se adicionam às práticas tradicionais e não vêm substituí-
las - e, de outro lado, funcionam através da negociação como um tipo de pedagogia
transformativa, essencialmente normalizadora. A análise etnográfica mostrou que as
suas ferramentas de ação são o falar e a escuta, tal como nos procedimentos
psicanalíticos. Distinguem-se desses, todavia, tanto pelo fato de que tal procedimento se
coaduna aos processos jurídicos, quanto pelo fato de que os processos de transferência,
que na psicanálise se dá entre paciente e psicanalista, na “justiça restaurativa” são
realizados entre vítima e infrator, os dois sendo alvo do processo terapêutico da
restauração de laços, de seus relacionamentos. A vítima também se torna alvo desse
moralidade dos processos de resolução de disputas estaria sendo altamente influenciada por ideologias
religiosas.
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Como disse Geertz (1989), em um texto sobre as tentativas de modernização da Indonésia e a possível
contribuição antropológica para a compreensão do mundo da política: “As interpretações antropológicas
da política são poderosas na medida em que podem sobreviver, num sentido intelectual, aos
acontecimentos da política” (Geertz, 1989:221).
processo, pois está implicada nas práticas terapêuticas e também é avaliada –
moralmente – quanto à sua capacidade de perdoar, valor máximo da justiça restaurativa.
A importância do perdão explicita a dimensão de religiosidade que é presente no ideário
da "justiça restaurativa" e se evidencia na importância que o perdão e o arrependimento
têm – o que também contribui para a impossibilidade de transpor o modelo psicanalítico
de forma automática para os procedimentos restaurativos.
O que permanece como uma constante em termos de valor é a noção de
indivíduo, pois é através dele – de sua sensibilização emocional – é que irão se restaurar
as relações interpessoais e, daí, se produzirão relações sociais pacificadas e harmônicas,
vistas como existentes num tempo remoto e atualmente destruídas pela racionalidade
econômica, legal e desumanizada. O controle das emoções teria provocado uma
sociedade racional, porém violenta e desestruturada. O processo civilizatório, rumo à
modernização da sociedade brasileira, inversa e simetricamente oposto à proposta de
Norbert Elias, seria efetivado com uma maior vivência emotiva e sua expressão nas
relações entre indivíduos. Talvez seja possível, embora ousado para os limites desse
texto, realizar uma conexão entre essa concepção de extrema individualização do
conflito e de suas formas de resolução e a difusão de ideologias neoliberais. Estabelecer
relações entre aspectos aparentemente distintos pode ser revelador de formas
específicas de ordenação social, assim como de seus dilemas e paradoxos.
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MUNIZ, Jaqueline. “Os direitos dos outros e outros direitos: um estudo sobre a
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NADER, Laura. “Harmonia Coerciva: A Economia Política dos Modelos Jurídicos”. In:
Revista Brasileira de Ciências Sociais. Número 26, Outubro de 1994.
NADER, Laura. The Life of the Law – Anthropological Projects. Berkeley, University
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