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Análise Narrativa no processo de interpretação musical: um estudo teórico-

interpretativo

Solon Santana Manica1


UFBA-PPGPROM- Pós-Doutorado
SIMPOM: Teoria e Prática da Interpretação Musical
solon.flauta@gmail.com

Resumo: Esta pesquisa reflete a respeito do papel da análise narrativa e sua contribuição para
o processo criativo da interpretação musical. Assim como problematiza a tensão existente
entre o pensamento analítico/hermenêutico, do qual a narratividade faz parte, e o pensamento
performático, que vê a performance não como um ato de reprodução (de um texto/partitura),
mas como um ato criativo (criação de significado/sentido).O principal referencial teórico, no
campo da Análise Narrativa, para esta investigação, é o livro “A Theory of Musical
Narrative” de Byron Almén. Conceitos da teoria de Almén como markedness e rank foram
aplicados às gravações. Estes se concentram em diferenças de dinâmica e ritmo (markedness)
entre as duas gravações, aspectos manipulados pelos performers, que posteriormente foram
submetidos a uma relação de classificação: a importância que assumiram na interpretação do
conjunto da obra (rank). A teoria de Almém serviu como uma importante ferramenta para
conectar valores sociais e culturais com a música ao entender o arquétipo (que define a
trajetória narrativa) como resultado do conflito entre ordem hierárquica e sua transgressão. A
diferenciação de elementos e sua classificação foram úteis para o estudo e para estabelecer as
metas a serem atingidas, bem como direcionar aspectos da técnica (o uso da articulação legato
ou staccato para salientar o arquétipo ou criar uma fase dentro da narrativa musical), ou seja,
como conectar aspectos técnicos com as intensões expressivas. Utiliza-se como suporte
teórico no campo da semiótica e hermenêutica o autor Umberto Eco. A restrição ao texto é
colocada em crise pela defesa da complexidade do fenômeno musical, que vai muito além da
partitura. Todavia, caso usada como ferramenta auxiliar, e não como um fim e si mesma, na
criação de uma performance musical, a análise narrativa pode ser de grande utilidade para o
músico.
Palavras-chave: Música; Análise; Narratividade; Performance; Interpretação.

Narrative Analysis in the Musical Interpretation Process: a Theoretical-Interpretive


Study

1
Orientador: Prof. Dr. Lucas Robatto.
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Abstract: This research reflects on the role of narrative analysis and its contribution to the
creative process of musical interpretation. As well as discuss the tension between the
analytical / hermeneutic thought, which narrative is part, and performative thinking that sees
performance not as an act of reproduction (of a text/score), but as a creative act (creation of
significance/meaning). The main theoretical framework in the field of Narrative Analysis, for
this investigation, is the book “A Theory of Musical Narrative” by Byron Almén. Concepts
such as markedness and rank were applied to recordings. These focus on differences in
dynamics and tempo (markedness) between the two recordings, aspects manipulated by the
performers, which were later submitted to a classification relation: the importance they
assumed in the interpretation of the whole of the work (rank). Almém's theory served as an
important tool for connecting social and cultural values to music by understanding the
archetype (which defines the narrative trajectory) as a result of the conflict between
hierarchical order and its transgression. The differentiation of elements and their classification
were useful for the study and to establish the goals to be achieved, as well as to direct aspects
of the technique (the use of legato or staccato articulation to emphasize the archetype or create
a phase within the musical narrative), or how to connect technical aspects with expressive
intentions. In the field of semiotics and hermeneutics the main theoretical support is Umberto
Eco. Defending the complexity of the musical phenomenon that goes far beyond the score the
study put in crisis the restriction of the text. However, if used as an auxiliary tool, and not as
an end itself, in creating a musical performance, the narrative analysis could be very useful for
the musician.
Keywords: Music; Analysis; Narrativity; Performance; Interpretation.

1. Introdução
Das distintas linhas de pesquisa nos estudos da interpretação musical, se destaca o
campo da análise2 que busca compreender a música, em duas de suas vertentes mais
recorrentes, a partir do texto (partitura) ou gravação de uma performance (áudio). Ambas
abordagens são redutoras, a primeira, porque a música não é a partitura em si, mas o
fenômeno musical só se completa na performance; a segunda também, pois, embora analise
uma performance, o faz com apenas uma parte desta, o registro sonoro, e a interpretação de
uma música é um fenômeno muito mais complexo do que o seu registro sonoro. Como
podemos ver na descrição de Zumthor de sua percepção da performance de um cantor de rua
em Paris:

Havia o homem, o camelô, sua parlapatice, porque ele vendia as canções,


apregoava e passava o chapéu; as folhas- volantes em bagunça num guarda-
chuva emborcado na beira da calçada. Havia o grupo, o riso das meninas,
sobretudo no fim da tarde, na hora em que as vendedoras saíam de suas
lojas, a rua em volta, os barulhos do mundo e, por cima, o céu de Paris que,
no começo do inverno, sob as nuvens de neve, se tornava violeta. Mais ou
2
Um panorama mais amplo da pesquisa em interpretação musical no Brasil pode ser visto em Borém (2005),
Borém e Ray (2012).

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menos tudo isto fazia parte da canção. Era a canção. Ocorreu-me comprar o
texto. Lê-lo não ressuscitava nada. Aconteceu-me cantar de memória a
melodia. A ilusão era um pouco mais forte mas não bastava,
verdadeiramente. O que eu tinha então percebido, sem ter a possibilidade
intelectual de analisar era, no sentido pleno da palavra, uma "forma": não
fixa nem estável, uma forma-força, um dinamismo formalizado; uma forma
finalizadora, se assim eu puder traduzir a expressão alemã de Max Luthi,
quando ele fala, a propósito de contos, de Zielform: não um esquema que se
dobrasse a um assunto, porque a forma não é regida pela regra, ela é a regra.
Uma regra a todo instante recriada, existindo apenas na paixão do homem
que, a todo instante, adere a ela, num encontro luminoso. (ZUMTHOR,
2007, p. 28-29).

Pode-se depreender desta citação a complexidade presente no ato performático,


que não se detém apenas a aspectos textuais, mas abrange aspectos físicos do ambiente onde a
performance ocorre, o pôr do sol do começo de inverno de Paris no caso da canção ouvida por
Zumthor, e os demais fatores como o som ambiente, riso das meninas, tudo isso faz parte da
performance, é a performance, é música.

Pretende-se nesta pesquisa refletir a respeito do papel da análise narrativa e sua


contribuição no processo criativo da interpretação musical. Assim como problematizar a
tensão existente entre o pensamento analítico/hermenêutico, do qual a narratividade faz parte,
e o pensamento performático3, que vê a performance não como um ato de reprodução (de um
texto/partitura), mas como um ato criativo (criação de significado/sentido). Com foco na
compreensão do pensamento teórico, pensar sobre música, aproveitando o espaço, bem como
as lacunas, aberto por pesquisas em que a narrativa musical aparece como ferramenta auxiliar
na construção de uma performance, porém mais voltado para aspectos cognitivos (memória).

O principal referencial teórico, no campo da Análise Narrativa, para esta


investigação, é o livro A Theory of Musical Narrative de Byron Almén. Em análise, além de
Almén, serão utilizadas as abordagens de Cook e Bent. Assim como a bibliografia levantada
ao longo da pesquisa.

Utiliza-se como suporte teórico no campo da semiótica e hermenêutica o autor


Umberto Eco. Este é usado como base devido à representatividade de sua obra nesta área do
conhecimento, ademais, é considerado um dos principais semiólogos contemporâneos. Outros
autores, por também apresentarem obras representativas para a semiótica, foram utilizados
para contribuir no entendimento deste assunto.

3
Ver Cook (2006) e Levinson (1993).

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2. Contextualizando a narrativa musical


No livro A Theory of Musical Narrative, Almén procura elaborar e ilustrar uma
teoria da narrativa musical baseada em princípios do meio narrativo em geral, organizados em
torno de discursos específicos da própria música. A partir disso, são reconstituídos os
fundamentos da teoria da narrativa em termos de transvaloração de Liszka4, que serão tratados
ao longo do artigo. Segundo Almén (2008, p. 3) é consenso entre pesquisadores desenvolver
uma teoria da narrativa musical que compreenda as limitações da expressão musical e o rico
potencial da música como meio narrativo, já que a enorme variedade de realizações narrativas
musicais torna improvável que seja projetada uma taxonomia completa e abrangente.

O conceito de narrativa está, quase sempre, atrelado a literatura. O que o autor


sugere é observar o conceito de narrativa em si e a sua aplicabilidade em diferentes meios
(literatura, música, dramaturgia etc). É proposto um “modelo irmão” para a música em
relação a literatura e a dramaturgia, pois cada um destes meios possui diferentes graus de
narratividade. A narrativa envolve a coordenação de múltiplos elementos: a articulação de
elementos conflitantes ou possibilidades, seu engajamento temporal resulta em mudanças
hierárquicas e num quadro interpretativo que estabelece uma perspectiva do todo.

A fim de ressaltar a relação entre música e narrativa Almén (2008, p. 15-16)


apresenta exemplos na história da música que fazem uso de elementos da literatura e da
dramaturgia na descrição de obras musicais (análise musical). São citados os leitmotivs em
Wagner, a análise de Momigny, a organização e a estrutura da forma sonata no séc. XVIII,
entre outros. No entanto, o autor ressalta que é importante observar os pontos em que a
música se difere dos outros meios. A narrativa, quando existente, deve ocupar o espaço
conceitual entre estes, em que se observa por um lado, a insustentável equivalência entre estes
meios e, por outro, uma igualmente improvável disjunção entre eles.

Antes de expor uma definição mais rigorosa de narrativa musical e seus princípios
gerais, o autor procura refutar as principais críticas feitas à narratividade musical,
historicamente, por acadêmicos. De modo geral, o que o autor torna evidente é que mesmo na
literatura os argumentos encontram certa flexibilidade e ambiguidade. Também ressalta que a
narratividade em música pode ser percebida através de processos dialéticos advindos do
contraste entre elementos musicais, como o conflito entre diferentes texturas, dinâmicas,
tonalidades ou temas. As estratégias do ouvinte, a maneira como este constrói uma

4
Liszka, James Jakob. The Semiotic of Myth: A Critical Study of the Symbol. Bloomington: Indiana
University Press, 1989.

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representação mental da música, dependem do conhecimento convencional e idiossincrático.


Por isso, mesmo um texto ou um título de grande especificidade semântica não é o suficiente
para definir a estratégia a ser escolhida por este.

3. Narratividade: Semiótica/Hermenêutica e Interpretação/Performance


A teoria da narratividade em música e a análise narrativa inserem-se dentro do
campo de estudos da semiótica/hermenêutica, que buscam compreender os processos de
comunicação (neste caso texto/partitura) como “sistemas de signos” (ECO, 1976, p. 3). Ou
seja, tem como objeto de estudo a partitura/texto, a partir do qual advém todos os
significados.

Os estudos de hermenêutica estão relacionados com a performance musical e


influenciam o pensar, as diretrizes que os intérpretes utilizam para sua execução. Segundo
José A. Bowen (BOWEN, 1999) a história da performance musical está ligada a história da
hermenêutica. O autor utiliza como exemplo o histórico de gravações da Quinta Sinfonia de
Beethoven e demonstra como, ao longo do tempo, a mudança na maneira de pensar a música
influenciou a sua execução.

Na história da performance, as tradições específicas de uma obra ficam entre


o estilo da época e a inovação individual. Na história da hermenêutica ficam
entre a recepção da obra e sua interpretação. Em outras palavras, a história
da performance intersecta com a história da hermenêutica. (BOWEN, 1999,
p. 446).5

Para entender porque a história da performance está ligada à história da


hermenêutica Thompson (2011) explica a relação que há entre estes dois campos do saber.
Ambos são fenômenos sociais, o primeiro, a performance, um fenômeno prático e o segundo,
a hermenêutica, um fenômeno teórico. Estes fenômenos influenciam a sociedade e, na mesma
medida, são influenciados pela sociedade em que estão inseridos.

Se a hermenêutica nos recorda que o campo-objeto da investigação social é


também um campo-sujeito, ela também nos recorda que [itálico do autor] os
sujeitos que constituem o campo-sujeito-objeto são, como os próprios
analistas sociais, sujeitos capazes de compreender, de refletir e de agir
fundamentados nessa compreensão reflexão. (THOMPSON, 2011, p. 359).

5
“In the history of performance practice, work-specific traditions stand between period style and individual
innovation. In the history of hermeneutics they mediate between the reception of the work and its interpretation.
In otter words, the performance practice history intersects with the hermeneutic history.”

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O que o autor pretende demonstrar é que na mesma medida em que as pesquisas


sociais estudam as transformações que ocorrem na sociedade, o resultado destas pesquisas
pode transformar a mesma. Thompson afirma que o campo-objeto é, também, campo-sujeito.
Por isso, a compreensão dos resultados da pesquisa pelos sujeitos pode mudar sua maneira de
pensar e agir, transformando, por fim, a sociedade como um todo.

A teoria da narratividade musical busca interpretar os significados que os signos


musicais podem assumir, através de uma leitura da estrutura (sistema de signos). Segundo
Almén, o processo de transvaloração que define a trajetória narrativa, através do conflito entre
ordem hierárquica e sua transgressão, sintetiza as relações, as tensões e os conflitos presentes
na sociedade. Porém, a música não se detém apenas a partitura, o fenômeno musical só se
completa na performance, ou, é a performance, como expressa Zumthor.

A dificuldade em estabelecer os limites dos estudos da análise musical, pode ser


percebida também no artigo do Grove Music Online sobre o tema. No qual o autor, Ian Bent,
antes de apresentar um panorama da pesquisa em análise musical, explícita:

A expressão “análise musical”, tomada de um modo geral, abrange um


grande número de atividades diversas. Algumas delas são mutuamente
excludentes: elas representam fundamentalmente diferentes visões da
natureza da música, o papel da música na vida humana, e o papel do
intelecto humano no que diz respeito à música. Estas diferenças de pontos de
vista tornam o campo de análise difícil de definir dentro de suas próprias
fronteiras. (BENT, in Grove, “Analysis”).

Esta dificuldade epistêmica, afirmada por Bent, corrobora a argumentação de


Thompson, que demonstra a intercambialidade entre prática, teoria e sociedade. Por isso, para
compreender como utilizar o pensamento analítico Cook defende que “o melhor método ou a
melhor análise é aquela que possibilita uma maior compreensão de como a música é
experienciada” (COOK, 1987, p. 219), ou seja, que o analista deve mais do que procurar
simplesmente entender a racionalidade presente na música, compreender como esta é
vivenciada por quem a escuta ou mesmo a executa.

O ato performático sintetiza o encontro do “horizonte” presente no sistema de


signos musicais (notação) com o “horizonte” do intérprete, esse ato criativo/interpretativo é
música. A complementaridade entre o pensamento teórico e a prática, que também pode ser

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vista em movimentos como o da “performance historicamente informada”6, é mais importante


do que a dicotomia entre texto/interpretação ou análise/performance, por isso deve-se explorar
a criatividade que reside na tensão entre os limites destas diferentes maneiras de compreender
o fenômeno musical.

4. Análise Narrativa
Para desenvolver uma análise narrativa, Almén se utiliza dos conceitos de
markedness e rank, advindos da teoria semiótica de Peirce e presentes nos trabalhos do
semiólogo Liszka. Um gesto musical se torna significativo na medida em que é distinto de
outros gestos possíveis ou reais (diferenciação) e na medida em que tem um valor semântico
maior ou menor do que outros gestos possíveis ou reais (classificação). De acordo com o que
o autor compreende da teoria de Liszka, são expressas relações hierárquicas entre os gestos
musicais tanto de diferenciação (markedness) - valorações assimétricas de elementos opostos
em um sistema - e relações de classificação (rank) - valorações de importância relativa ou
subordinação em um sistema (entende-se por sistema uma estrutura regida por uma coerência
interna). Estes aspectos, diferenciação e classificação, podem ser observados não apenas na
partitura, mas também em gravações de obras musicais. A diferenciação, em música, ocorre
entre forte e piano, agudo e grave, lento e rápido etc. A classificação observa como estas
oposições se comportam ao longo da música, por exemplo um tema no registro grave que é
repetido consistentemente ao longo da peça adquire, a cada repetição, maior importância
dentro da mesma. Estes aspectos não se detêm a uma análise da partitura, pois podem ser
manipulados pelo intérprete.

Um exemplo utilizado na pesquisa da minha tese de doutorado (MANICA, 2016)


mostra que aspectos como a articulação e dinâmica podem ser avaliados objetivamente
avaliados objetivamente em gravações por meio do programa Sonic Visualiser. Duas
gravações (áudio) da peça Aboio Op.65 para flauta solo foram analisadas e os resultados da
análise demonstraram que a manipulação de aspectos como articulação e dinâmica pelo
intérprete pode influenciar a interpretação narrativa da obra. A peça se baseia no conflito entre
lirismos (melodias em legato) e pontilhismos (melodias em staccato). A primeira gravação
diferenciou de maneira mais consistente este conflito por meio de uma articulação mais
destacada e de um andamento médio mais rápido, já a segunda gravação minimizou esta
diferenciação por meio de uma articulação mais branda e de andamento médio mais lento.

6
Uma visão mais ampla da “performance historicamente informada” pode ser encontrada em Kivy (1995) e
Harnoncourt (1988).

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Outro fator que influenciou a interpretação narrativa foi a condição acústica das salas onde
foram gravadas as performances. Na primeira gravação a sala apresentava pouca ou nenhuma
reverberação, enquanto a segunda gravação ocorreu numa sala com ampla reverberação
sonora. Estes fatores não são sequer considerados em uma análise da partitura e foram
determinantes na análise narrativa da peça, que influenciou o processo criativo do performer
(minha performance realizada na defesa da tese).

A análise narrativa possibilitou conectar aspectos técnicos da flauta com ideias


musicais. Articulação, vibrato e variações de dinâmica foram utilizados de acordo com o
objetivo de realçar ou minimizar a oposição entre lirismos e pontilhismos presentes na peça.
Na análise narrativa proposta por Almén cabe ao analista selecionar qual das oposições
presentes na peça se associa à ordem ou à transgressão. A resolução do conflito entre ordem e
transgressão resulta no arquétipo escolhido para peça (dramático, cômico, irônico ou trágico).
Através da definição de um arquétipo valores presentes na sociedade podem ser relacionados
com a música.

O ponto principal da teoria narrativa de Almén é a abordagem semiótica do


conteúdo musical. Deste modo, observa a música como uma linguagem, um modelo de
discurso, um meio artístico expressivo que dá origem a interpretações e outros modos de
discurso e que, por isso, pode ser entendido como um sistema de signos. Na visão do autor, a
partir de uma perspectiva semiótica se pode entender que embora não haja nenhuma conexão
direta entre o som fonético ou musical e a significação, o emprego de regras de procedimento
cria um sistema que faz correlação entre os dois e tornam, portanto, o significado possível.
Assim, ao realizar mudanças nas relações hierárquicas entre unidades musicais, também se
está fazendo conexões com outros fenômenos temporais que exibem mudanças análogas. Tais
fenômenos incluem interações pessoais e sociais, assim como processos psicológicos de
desenvolvimento. A narrativa funciona, então, como um elo potente para compreender
aspectos importantes da experiência humana.

A análise narrativa desenvolvida na pesquisa mostrou que a definição do


arquétipo reflete aspectos manipulados pelo performer e por meio de entrevista com o
compositor da obra evidenciou a ligação entre conflitos musicais e conflitos presentes na
sociedade. Conflitos como clichê e vanguarda ou tradição e inovação aparecem na música por
meio da articulação entre diferentes sistemas de relação entre os sons. O sistema modal/tonal
representa a tradição da música nordestina (ambiente do compositor) e sistemas que utilizam
outras formas de organização dos sons (serial, dodecafônico, teoria dos conjuntos)

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representam a vanguarda. Estas oposições podem se conectar com outras oposições presentes
na sociedade como países ou regiões hegemônicos e periféricos, norte/sul. As relações
estabelecidas pelo músico auxiliam a conexão da técnica do instrumento com ideias musicais.

Conclusões
A restrição ao texto é colocada em crise pela defesa da complexidade do
fenômeno musical, que vai muito além da partitura. É preciso salientar que esse artigo não
pretende assumir a narratividade musical como um fim em si mesma, mas como ferramenta
na criação de uma performance musical, que pode ser de grande utilidade para o músico.

É evidente a influência do pensar sobre música no fazer musical,


consequentemente, sobressai a importância da compreensão e do uso de ferramentas teóricas
pelo músico/intérprete nas suas atividades, ponto central desta pesquisa. O conhecimento do
discurso intelectual/conceitual a respeito da interpretação musical se torna preponderante para
o músico no momento em que ele impõe as regras de execução no âmbito profissional em
música (audições orquestrais, concursos, etc.), como a “performance historicamente
informada”.

A pesquisa apresenta potencial para observar a relação entre aspectos inerentes da


performance musical com ideias musicais. O que possibilita ao intérprete estabelecer
diretrizes para o seu fazer musical que se conecte não apenas com aspectos técnicos musicais
ou específicos da música (harmonia, ritmo, afinação etc), mas conectar o seu fazer com
tensões e conflitos presentes na sociedade em que vive. A pesquisa também evidência como
teoria e prática se interpenetram, de maneira a ir além das dicotomias (teoria/prática,
texto/performance etc) e pensar a música em toda sua complexidade.

A teoria da narratividade de Almén apresenta uma importante contribuição na


busca de interpretar uma obra musical, mas é claro que não a esgota apesar de seu aspecto
holístico. Ao mesmo tempo em que contribui, a teoria de Almén levanta mais questões a
serem discutidas no campo da interpretação musical, ponto positivo. O dia em que não houver
mais discórdias, não existirão mais diferentes interpretações.

Referências
ALMÉN, Byron. A Theory of Musical Narrative. Bloomington: Indiana University Press,
2008.
BENT, Ian D. e Pople, Anthony. Analysis. In: Grove Music Online. Oxford Music Online.

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