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PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2000, 20 (3), 8-15

“Masculinidade na História:
A Construção Cultural da Diferença entre os Sexos”1
Resumo: Nos últimos anos, a discussão em torno da identidade do homem contem-
porâneo sugere que há uma verdadeira crise da masculinidade. Assim, procurando
seguir o fio condutor através da vertente histórica da sexualidade, objetivamos neste
trabalho verificar como o conceito de sexualidade e gênero perpassaram a construção
cultural da diferença entre os sexos, e quais implicações teve para a chamada “crise
da identidade masculina” contemporânea.
Palavras-Chave: masculinidade, história da sexualidade, gênero
Abstract: In the last years, the discussion on contemporary man identity suggests a
real crisis of the masculinity. Thus, through the history of sexuality resources, we aim in
this work to verify how the cultural construction of the difference between sexs built
the sexuality and gender concept, and which implications had for contemporary “crisis
of male identity “.
Key words: masculinity, history of sexuality, gender

Salvador Dali
Arttoday

Sergio Gomes Nos últimos anos, o debate em torno da e Ceccarelli (1997). Hoje, assim como ontem,
da Silva identidade masculina tem apontado para uma a discussão em torno da diferença entre os
verdadeira crise da masculinidade do homem sexos conformaria um das características da
Psicólogo graduado contemporâneo. O homem estaria sendo crise da masculinidade a que nos referimos.3
pela UFPB. Especialista colocado em “xeque” porque estaria perdendo
em Sexualidade
Humana, pelo Centro a noção de sua própria identidade, passando a Porém, esta discussão não é tão recente assim.
de Educação, UFPB. buscar uma melhor descrição de si. Este fato, Podemos encontrar ecos dela desde o período
conjuraria um certo mal-estar2 semelhante vitoriano, conforme atestam os trabalhos de
àquele provocado pelo estado de decadência Foucault (1986), Costa (1995), Gay (1995),
8 masculina no final do século passado, conforme Almeida (1995), Badinter (1986, 1993),
descreve Badinter (1993), Schowalter (1993) Spencer (1996), Birman (1997), entre outros.
“Masculinidade na História: A Construção Cultural da Diferença entre os Sexos”

Da teoria do monismo e dualismo sexual, Almeida (1996). Porém, a narrativa mantém a


passando pelo culto à masculinidade e diferença inferior da natureza anátomo-fisio-
finalmente chegando aos movimentos de lógica da mulher.
minorias sociais da década de 60 até hoje,
tornou-se comum questionar as diferenças Com o modelo de perfeição do corpo do
entre homens e mulheres, baseando em uma macho, todas as outras características depen-
hegemonia sexista e de gênero.4 derão dessa forma. A relação entre reprodução,
sexo e orgasmo todas serão seguidas conforme
Vejamos, então, como o conceito de sexua- o modelo masculino.
lidade e principalmente de gênero perpassaram
a construção cultural da diferença entre os Foi apenas na passagem do século XVIII para o
sexos, e quais implicações esta teve para a século XIX que as sensíveis mudanças passa-
chamada “crise da identidade masculina” riam a ocorrer, como a queda do conceito de
contemporânea. unicidade e perfeição do corpo masculino para
o two-sex-model (Birman, 1997; Costa, 1995;
A diferença Entre os Sexos Badinter, 1993; Almeida , 1995).

Até o século XVIII, não era possível encontrar Se a diferença entre os gêneros anteriormente 1-Este artigo é uma ligeira
modificação do terceiro
um modelo de sexualidade humana conforme voltava-se para a relação anátomo-fisiológica, capítulo do meu trabalho de
entendemos hoje. Foucault (1986) vai ressaltar com o two-sex-model, “o sexo político-ideo- Pós-Graduação Lato Senso
(Especialização em Sexua-
que o próprio termo sexualidade é um termo lógico vai ordenar a oposição e a descon- lidade Humana), pelo Centro
tinuidade sexuais do corpo” (...) justificando de Educação da Universidade
surgido no século XIX, portanto pertencente Federal da Paraíba, Campus I,
às sociedades modernas e pós-modernas. e impondo “diferenças morais aos comporta- 1998.
mentos femininos e masculinos, de acordo com 2-O sentido que damos para
Sem possuir um vocabulário que desse conta as exigências da sociedade burguesa, capitalista, o mal-estar é semelhante
àquele referido por Freud
da sexualidade de homens e mulheres, o que individualista, nacionalista, imperialista e colo- (1930[1929]), na forma
vai se estabelecer são normas da diferença nialista implantada nos países europeus” (Costa, conferida Figueiredo (1998),
ou seja, “um estado crônico
sexual entre ambos. A concepção dominante 1995, p. 110-111). mas tolerável de desprazer,
intrínseco à constituição do
até então era a do one-sex-model ou monismo psiquismo e uma condição
sexual. “No one-sex-model, que dominou o De homem invertido, a mulher passa a ser o básica para a procura pelo
pensamento anatômico por dois milênios, a inverso do homem, ou, sua forma complemen- homem das felicidades
possíveis” (p. 01). O estado
mulher era entendida como sendo um homem tar. Apesar disto, as conseqüências morais dela de desprazer, de insatisfação
advinda, manteriam ainda a inferioridade da psíquica é o que guiará, no
invertido. O útero era o escroto feminino, os nosso entendimento, a atual
ovários eram os testículos, a vulva um prepúcio mulher no conflito entre as esferas pública e crise da masculinidade. Fala-
se, e muito, do verdadeiro
e a vagina era um pênis” (Laqueur, 1989, citado privada, no conceito neoplatônico científico e significado do que é ser
por Costa, 1995, p. 100). religioso do mundo e na importância da nova homem na contempora-
neidade, talvez, como resul-
ordem político-econômica do novo estado tado de sua inserção na cultu-
O modelo de perfeição estava representado burguês (Costa, 1995). ra a qual pertence, onde, por
conseguinte, precisa moldar-
na anatomia masculina, onde a regra fálica5, se (sustentando ou criticando,
distinguia perfeitamente o domínio de Parker (1991) enfatiza este pensamento, ao aderindo ou rejeitando, se
integrando ou se afastando,
superioridade e inferioridade masculina e reconhecer que “as atividades do homem eram obedecendo ou resistindo) às
dirigidas para o mundo social mais amplo da regras impostas pela cultura
feminina respectivamente. Concebida como e definidas como normas,
um homem invertido e inferior, a mulher será economia, política e interações sociais, além conformando características,
comportamentos e papéis que
um sujeito “menos desenvolvido” na escala do âmbito da família, enquanto os de sua não necessariamente sejam
da perfeição metafísica.6 mulher eram rigidamente restringidos, limi- aqueles que condizem com
aquilo que ele almeja para si
tavam-se ao mundo doméstico da própria enquanto traços identifi-
Na tentativa de manter e estabelecer as dife- família” (p. 59). catórios.

renças entre os sexos, outras teorias também


serão construídas, conforme apontam os Por outro lado, a bissexualização originária dos
9
achados de Costa (1995), Badinter (1996) e sexos também ressaltou o domínio masculino
Sergio Gomes da Silva

3- Para uma melhor com- sob o feminino, sobretudo referindo-se a humanos, partindo-se da diferença sexual entre
preensão da crise da mascu-
linidade, veja Dorais (1994a, inferioridade da mulher enquanto “fragilidade” homens e mulheres” (p. 128).
1994b), Nolasco (1995a,
1995b) e Badinter (1993).
do corpo (ossos e nervos) e posteriormente
quanto ao prazer erótico. A mulher seria mais Seguidamente, a imagem de “homem inver-
4 - O emprego do termo hege-
frágil, desprovida de calor vital e sofreria de tido” da mulher vai se colar ao próprio homem,
monia sexista, refere-se, assim,
à identidade sexual, conforme menos privilégios que os homens. A nova demarcando o estatuto de anormalidade frente
aprendemos a descrevê-la, ou
concepção da mulher, portanto, havia mudado, as subjetividades sexuais masculinas. O homem
seja, hetero, homo ou bissexual,
apesar de haver, nos dias porém, isto não implicaria na saída do patamar agora passaria pela irremediável possibilidade
atuais, uma certa pluralidade de ser um “invertido sexual”7, e por conse-
de identidades sexuais como de inferioridade em que costumeiramente fora
o(a) transexual, o travestismo colocada. A mudança de concepção veio apenas qüência, passível de cura, já que a inversão era
e até mesmo o drag-queen e a
drag-king, figurariam como reiterar a supremacia masculina, e não levar a tida como “doença” na escala evolutiva humana8.
identidades sexuais possíveis. mulher a um patamar de maior prestígio. Segundo Foucault (1986), “sexualidades
O emprego do termo hegemonia
do gênero, refere-se a própria periféricas provocam a incorporação das per-
identidade de gênero, conforme versões e nova especificação dos indivíduos
aprendemos a definí-la. En-
tendemos identidade de gênero (itálicos do autor) (...) O homossexual do século
como o conjunto de traços XIX torna-se um personagem (...) É necessário
construídos na esfera social e
cultural por uma dada socie- não esquecer que a categoria psicológica,
dade, que definem conse- psiquiátrica e médica da homossexualidade
quentemente, quais os gestos,
os comportamentos, as atitu- constitui-se no dia em que foi categorizada
des, os modos de se vestir, falar
e agir, de forma semelhante para
menos como um tipo de relação sexual do que
homens e mulheres. As como uma certa qualidade de sensibilidade
identidades de gênero tendem
a estar em consonância com o
sexual, uma certa maneira de inverter, em si
sexo biológico do sujeito, po- mesmo, o masculino e o feminino” (p. 43).
rém, não são estruturas fixas,
encerradas em si mesmas; pelo
contrário, podem e estão conti- A partir da inferioridade “social” e “política” da
nuamente se renovando, em
ebulição e a cada momento “fragilidade” do sexo dos “invertidos sexuais” e
podem ser novamente da mulher, a feminilidade passará a atormentar
moldadas de outras formas.
Elas também são impostas pelo o imaginário social do homem burguês. Algo
processo de socialização, que precisava ser feito para que esse estado de
impede cons-truções singulares,
moldando subjetividades decadência não fosse tomado como norma
comuns a todos os indivíduos.
Apesar de não ser uma condição
social. A partir desse instante, dar-se-á o culto à
para a formação das masculinidade no século XIX.
identidades sexuais, elas estão
intimamente ligadas a escolha
afetiva e sexual do sujeito. Nós
Com a chegada do século XIX o culto à O Culto à Masculinidade
podemos encontrar sujeitos
masculinos ou femininos masculinidade vai ser uma decorrência direta
(identidades de gênero), que não A discussão sobre gêneros perpassou o campo
necessa-riamente pertencem ao desta mudança da concepção biológica para a
seu sexo biológico, e que fisiológico e chegou aos ditames das regras e
política, econômica e social, conforme afirmará
podem fazer uma escolha papéis sócio e culturalmente estabelecidos pela
afetiva e sexual do sexo oposto Laqueur (1991, citado por Costa, 1995):
ao seu. Um programa de sociedade burguesa do século XIX.9
televisão (SBT - Repórter -
“Primeiro veio a reprodução das desigualdades
1998) pode ilustrar nossos sociais e políticas entre homens e mulheres,
argumentos, ao mostrar um A Revolução Francesa primeiramente, que
casal bastante incomum para justificada pela norma natural do sexo. Em
os padrões normativos de nossa seguida, o que era efeito tornou-se causa. A apregoava os ideais de liberdade, igualdade e
sociedade. O sujeito
diferença dos sexos passou a fundar a diferença fraternidade, e posteriormente a Revolução
“biologicamente masculino”
trata-se de um travesti (pos- de gêneros masculino e feminino que, de fato, Industrial e as conseqüentes guerras mundiais
suindo traços, atitudes e que se sucederam, trouxeram uma desordem
comportamentos femininos - historicamente a antecedera. O sexo autono-
portanto, do gênero feminino).
mizou-se e ganhou o estatuto de fato originário. no papel do homem burguês, que tentava se
O sujeito “biologicamente
feminino” trata-se de uma Revolucionários, burgueses, filósofos, mora- reconstruir, fazendo com que se consolidasse
homossexual feminina (lés-
listas, socialistas, sufragistas e feministas, todos uma masculinidade e uma virilidade hegemônica
estavam de acordo em especificar as qua- comum a todos os homens (Gay, 1995; Mosse,
10
lidades morais, intelectuais e sociais dos 1998; Badinter, 1993; Almeida, 1995).
“Masculinidade na História: A Construção Cultural da Diferença entre os Sexos”

Sob a ameaça de uma feminilidade inerente a entonação de voz, etc., assim como também bica) e comporta-se como um
homem (possuindo traços,
alguns homens, decorrente do medo de era ressaltado a forma física, a musculatura, os atitudes e comportamentos
masculinos - portanto, do
tornarem-se homossexuais 10, e diante da contornos do corpo masculino, a elegância, o gênero masculino).
obrigatoriedade de por a prova o seu sexo forte, vigor físico e a beleza, e por fim, as qualidades
5 -É interessante notar que a
os homens tiveram que cultivar mais do que psicológicas do homem como a agilidade, a psicanálise, herdeira do
nunca a sua masculinidade e a sua virilidade, coragem, a distinção, a bravura, o heroísmo, pensamento sexista do século
XIX, vai se utilizar deste
caracterizando também a primeira crise da conforme as descrições pontuadas por Gay pensamento para construir sua
identidade masculina. (1995). A sociedade masculinista burguesa, teoria da sexualidade. Apesar
de Freud destacar a impor-
dado essa premissa, construía, assim, a nova tância da presença ou ausência
Badinter (1993) pontuará a crise da identidade imagem de homem, e como conseqüência do pênis no menino, ou o seu
correspondente, o clitóris na
masculina, cujos ecos chegam até nós, através vieram as duras provas pelas quais o homem menina, a anatomia não é a
de países de civilização refinada, ou seja, “(...) deveria enfrentar, como as lutas, como um dos única condição necessária para
a aquisição de uma mascu-
onde as mulheres desfrutam de uma liberdade “componentes do comportamento masculino”. linidade e de uma feminilidade,
mas deve-se sublinhar sua
maior que em outros lugares; exprimem a importância, sobretudo na
necessidade de mudança dos valores domi- aquisição de uma identidade
sexual em ambos os sexos,
nantes e são consecutivas a perturbações dado que, é a castração que
ideológicas, econômicas ou sociais. (...) Nos introduz a menina no com-
plexo de Édipo, e que o finda
séculos XVII e XVIII, a crise só concerne às no menino. Remetemos o leitor
classes dominantes, ou seja, à aristocracia e a a Freud nos seguintes textos:
Três Ensaios Sobre a Teoria da
burguesia urbana” (p. 11). Dentro desta ótica, Sexualidade (1905); Sobre as
a Europa e os Estados Unidos aí estariam Teorias Sexuais das Crianças
(1907); A Organização Genital
incluídos. Não é de admirar que o nascimento Infantil (Uma Interpolação na
dos gender’s studies11, tenham florescido Teoria da Sexualidade) (1923);
A dissolução do complexo de
justamente nesses países.12 Édipo (1924); Algumas Conse-
qüências Psíquicas da Distin-
ção Anatômica Entre os Sexos
Gay (1995) em seu Cultivo do Ódio, vai verificar (1925); Sexualidade Feminina
(1931); Novas Conferências
uma estreita ligação entre a irracionalidade do Introdutórias Sobre Psicanálise
ódio ao culto à masculinidade e ao seu – Conferência XXXIII - Femini-
lidade (1933[1932]). Rio de
respectivo contraste ... a feminilidade. Janeiro: Imago. Ed. Standart
Brasileira, Obras Completas.

A preocupação com uma possível femini- 6 -A semelhança do pênis na


lização por parte de alguns homens, fizeram mulher, será dada pelos
achados de Renaldus
com que investissem e construíssem para si Colombo, em 1559, ao “desco-
brir” o clitóris na mulher, e
uma série de papéis e traços representativos compará-lo a um pênis menos
da sua condição “masculina”, de forma que desenvolvido. Este será tam-
bém o princípio básico dos
descrevesse melhor o atual homem vitoriano, achados freudianos na
em contraste com o seu oposto, a mulher, e distinção anatômica da dife-
rença entre os sexos. Conforme
mais inadvertidamente, a seu inverso , o Costa, 1995.
homossexual.
7 - Os “invertidos sexuais”
era o nome dado ao que hoje
Da mesma forma como alguns homens denominamos homossexuais
pela medicina oitocentista. As
costumam se descrever hoje, “ser homem” discussões de Costa (1992,
1995) nos dias atuais, tem
no século XIX significava “não ser mulher”, e contribuído para diminuição
sobre todas as hipóteses jamais ser Exemplos de personagens másculos ecoavam do “ideário preconceituoso”
em relação ao homoerotismo.
homossexual. A identidade sexual e de gênero através da arte vitoriana, representada so-
do homem vitoriano, estava intrinsecamente bretudo na literatura, pintura e escultura da 8 -O escritor e teatrólogo
inglês Oscar Wilde foi um bom
ligada à representação do seu papel na época. Nos círculos de amizade, ressaltavam- exemplo desse período.
Levado à julgamento pelo
sociedade. Os traços que os descreviam, se com eloqüência, quem representava o mais
voltavam-se para a forma de se vestir, a forma perfeito ideal de beleza masculina, bem como
11
de andar, a maneira de se comportar, a o ideal de virilidade.
Sergio Gomes da Silva

crime de “perversão sexual”, Se a possibilidade de feminilização era mal-


por manter um relacionamento
1993, 1995; Badinter, 1986, 1993) concordam
com um jovem, foi condenado vista para os homens vitorianos, a masculi- que isto traria como conseqüência, a crise da
a dois anos de prisão com
trabalhos forçados por crime
nização também o era para as mulheres. masculinidade.
de pede-rastia e sodomia. A Masculinidade e feminilidade, até certo ponto,
bem pouco tempo, a Inglaterra
reconheceu seu erro, e bem mais
eram cultuadas, ora mais para uns, ora mais “A busca das mulheres por igualdade e inde-
recen-temente, diminuiu de 18 para outros no século XIX. Homens e mulheres pendência, especialmente forte na Inglaterra,
para 16 anos a legalização
das práticas sexuais entre deveriam restringir-se ao seu papel social de representou o desafio mais efetivo à oposição
pessoas do mesmo sexo. acordo com a sua identidade biológica, de social dos homens. Esse desafio incluía uma
9 -Compreendemos papéis macho e fêmea, e por conseguinte, sua escolha crítica da sexualidade masculina, centrada no
sociais como “padrões ou regras afetiva e sexual deveria voltar-se para o sexo duplo padrão de comportamento moral que
arbitrárias que uma sociedade
estabelece para seus membros oposto ao seu. A norma desviante era total- se esperava de homens e mulheres” (Mosse,
e que definem seus compor- mente repelida e punida. Segundo alguns
tamentos, suas roupas, seus
1998, p. 293).
modos de se relacionar ou de autores tais como Showalter (1993), Mosse
se portar (...) através do
aprendizado de papéis, cada A redefinição da masculinidade fornecida pela
um/a deveria conhecer o que é decadência e representada pelos homos-
ser considerado adequado (e
inadequado) para um homem sexuais, encontrava ancoradouro apenas nos
ou para uma mulher numa padrões estereotipados de papéis sociais tão
determinada sociedade, e
responder a essas expecta- bem sublinhados por Gay (1995) e Mosse
tivas.” Conforme Louro, 1997, (1998), ao retomarem os valores sociais e cul-
p. 24.
turais vigentes da época.
10 -.Vale lembrar que a imagem
do homossexual masculino na
Europa oitocentista estava “O ideal masculino era um bastão erigido
muito ligado à imagem femi-
nina, dado que o “tipo
contra a decadência; representava em palavras,
homossexual” da época era em pinturas e em pedra um ideal de virilidade
afeminado, sendo possível,
portanto, uma certa quanti- casta, o qual penetrou profundamente na
dade de feminilidade “atingir” consciência burguesa.” E complementa: “a
os homens.
masculinidade foi a rocha sobre a qual a socie-
11 -Os men’s e women’s studies dade burguesa construiu boa parte de sua auto-
foram decorrentes do movi-
mento feminista, como forma imagem, mas a imagem idealizada da masculi-
de compreender as diferenças nidade parece igualmente para a evolução da
entre homens e mulheres. Se por
um lado, os women’s studies chamada sexualidade anormal, em grande
passaram a procurar uma
definição do papel feminino
parte, denominada pela contra-imagem que a
mais condizente com a sua fazia representar” (Mosse, 1998, p. 304 ).
importância na sociedade na
segunda metade deste século,
(1998) e Badinter (1993), seriam estes os
por outro, os men’s studies marcos que pontuaram o estado da decadên- Com a saída das mulheres do espaço privado
passaram a rediscutir a
masculinidade, procurando
cia masculina, sobretudo após a noção de para o público, como decorrente das duas
criar um papel masculino que bissexualidade introduzida por Freud. guerras mundiais, da industrialização e do
melhor descrevesse o novo
modelo que se redefinia na movimento feminista que ora tentava se firmar,
contemporaneidade. Por outro lado, Freud reforçou no imaginário o resultado foi uma verdadeira avalanche de
12 -Diferentemente de Badinter, social burguês, a idéia de uma atividade e uma pesquisas, discussões e redefinições de papéis
Veloso (1996) vai reportar-se a passividade hegemônica no homem e na sociais cujo o gênero foi tomado como ponto
um trabalho comunitário
desenvolvido numa cidade mulher (Gay, 1995), frente a sua sexualidade. de partida para a discussão, e herdeiro dos
metropolitana do Nordeste do Observamos isso na maioria dos seus trabalhos,
Brasil - Recife - nos dias atuais,
gender’s studies.
junto a um grupo de homens de que tratam da sexualidade dos adultos e das
classe média baixa e baixa,
sob sua coordenação. Estes
crianças.13 Na medida em que o movimento feminista
homens reúnem-se para discutir propunha uma rediscussão acerca dos novos
o significado de “ser homem”
na contemporaneidade, e dis- Enfim, com a noção de bissexualidade e com papéis sociais estabelecidos pela norma sexual
o crescente avanço dos movimentos feministas e moral burguesa, tanto para homens quanto
12 que já nesta época começavam a tomar forma, para mulheres, e na medida em que esta
sobretudo na Europa, alguns autores (Nolasco, discussão passou a ser tomada sob o ponto de
“Masculinidade na História: A Construção Cultural da Diferença entre os Sexos”

vista feminino, passou-se a ficar mais delimitado essa “torre de babel” em que muitos homens
e fortalecido a representação da mulher en- hoje se encontram. Há de se procurar uma
quanto “ser social”. saída, talvez aquela em que promova menos
conflitos identitários, e que não corrobore com
Inaugurava-se, portanto os estudos sobre uma masculinidade hegemônica.
gênero (gender’s studies), onde os estudos
sobre homens foi um reflexo diretamente
decorrido do avanço dado pelas mulheres na
conquista de uma cidadania e de seus direitos,
na ordem pública e privada, na ordem moral e
sexual, e que passaram a propor novamente,
uma nova forma de ver o homem, agora, bas-
tante diferente daquela em que os vitorianos
apregoavam.

De fato, como decorrente do aparecimento


dos estudos de gênero masculino na Europa e
Estados Unidos, os homens passariam a
reivindicar uma nova qualidade no espaço
social, redefinindo a si mesmo, não mais como
um “macho” inveterado, onde sua virilidade
estaria intocada. O novo homem agora admitia
sua fraqueza, sua fragilidade; o corpo já não
servia para impor uma condição masculina. A
sensibilidade feminina também passaria a fazer
parte das novas subjetividades masculinas. A
forma de vestir, de falar, de se comportar, já
não mais se sustentariam por si só. Até mesmo
uma possível quantidade de feminilidade já
passava a ser admitida pelos homens. Mas nem
sempre, esse novo conjunto de características
cordam quanto ao ideário
masculinas contemporâneas, conseguiu dizer Se a própria história mostra a pluralidade das machista e masculinista nor-
da verdadeira identidade masculina. Ela não destino, construído sobre a
descrições identitárias para o homem vitoriano, égide do patriarcalismo e suas
conseguiria descrever a todos os homens, o mesmo não poderia ser diferente para o concepções acerca do sentido
de “ser homem” nos dias
promovendo, com isso, a atual crise de iden- homem contemporâneo. atuais. Retomando o pensa-
tidade masculina. mento de Badinter (1993) “se
a masculinidade se ensina e
Com a diversidade de culturas, crenças e a se constrói, não há dúvida de
Considerações Finais pluralidade de identidades psicológicas, sociais, que ela pode mudar. No século
XVIII, um homem digno deste
de gênero e sexuais na contemporaneidade, é nome podia chorar em público
As nossas identidades (de gênero e sexual) são simplesmente impossível conceber uma hege- e ter vertigens; no final do
século XIX, não o pode mais,
conflitivas, a medidas que não são passíveis monia frente às nossas identidades, porque sob pena de comprometer sua
dignidade masculina. O que
de escolha. Se estas são muito mais uma elas não são fixas, imutáveis, pelo contrário, se construiu pode, portanto,
conseqüência direta dos reforços dados pelo elas estão constantemente sofrendo mudanças, ser demolido para ser
novamente construído” (p. 29),
processo de socialização, bem como os e a cada década, podemos perceber que cada sobretudo após o culto da
conflitos se tornam mais evidentes quando não vez mais a cultura, os modos de vida, de se masculinidade.

sabemos mais nos descrever face às nossas comportar, de ser e de estar, vão se alterando, 13. Veja nota nº 05.
escolhas afetivas e sexuais (independente do adequando-se às exigências do próprio tempo.
sexo biológico que tenhamos), a discussão, e
a recente produção em torno da mencionada Há de se pensar para que serve o recurso 13
crise da masculinidade, faz apenas aumentar histórico, quando a ele recorremos no estudo
Sergio Gomes da Silva

da nossa sexualidade, das relações sexuais e nossas construções singulares e identitárias,


de gênero? Serve para mostrar a diversidade/ indiferente se sejamos homens ou mulheres,
pluralidade de identidades, por exemplo, independente das nossas particularidades
masculinas, ao longo da própria história, e anatômicas, independente dos nossos desejos
aprender com estas experiências anteriores afetivos e sexuais, independente, até mesmo, do
para que não se cometa os mesmos erros no papel social que exercemos no nosso dia a dia.
futuro. Também há de se pensar que enquanto
não nos libertarmos de conceitos tautológicos
Talvez, essa seja uma saída mais justa, mais
e reducionistas, como identidades de gênero
ética, mais humana, para não infringirmos no
(masculinidade e feminilidade) ou identidades
indivíduo, qualquer espécie de sofrimento
sexuais (heterossexualidade, bissexualidade,
homossexualidade), ou seja, enquanto não psíquico ou àqueles que ousaram ir contra às
aprendermos a respeitar as nossas singula- regras impostas pela cultura e pelos processos
ridades, construídas através da diversidade de socialização, aprendidos ao longo do tempo.
histórica, social e cultural em que vivemos, Para não infringirmos sofrimento psíquico
enquanto não nos respeitarmos enquanto aqueles que ousaram questionar os limites de
sujeitos, não conseguiremos respeitar também suas prisões identitárias.

14
“Masculinidade na História: A Construção Cultural da Diferença entre os Sexos”

Sergio Gomes da Silva


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e-mail: sergiogsilva@uol.com.br

Recebido em 20/04/99 Aprovado em 02/10/99

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