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transferencia_15.html

TEORIA
PSICANALÍTIC
A - Por Carlos
Mario Alvarez
sábado, 15 de agosto de 2015

Início da discussão sobre a transferência: o caso


Anna O. Cap.1, Parte I .
Início da discussão sobre a transferência: o caso Anna O.

“Se algum mérito existe em ter dado vida à psicanálise, a mim não cabe,
pois não participei de suas origens. Era ainda estudante e ocupava-me
com meus últimos exames, quando outro médico de viena, o Dr. Joseph
Breuer, empregou pela primeira vez êsse método no tratamento de uma
jovem histérica(1880-1882)” (Freud)

Essa citação, extraída da primeira das “Cinco lições de psicanálise”,


proferidas por Freud quando da ocasião de sua viagem aos Estados
Unidos (1909), mostra a importância que ele conferia ao trabalho de
Breuer e indica o valor desa experiência dentro da história da
Psicanálise: trata-se de um momento inaugural, onde o método
terapêutico e a investigação psíquica aí realizados por Breuer,
apontaram para o início do estabelecimento de um campo que
futuramente passou a ser reconhecido, a partir de Freud, como o campo
psicanalítico. Assim, o peso do reconhecimento que Freud concede a
Breuer, se não legitima a experiência desse último como uma
experiência analítica, ao menos lhe confere o registro de uma marca
pioneira.
Verdade seja dita, Freud cinco anos mais tarde, reviu sua posição e ,
influenciado já por uma sociedade analítica, decidiu não mais reconhecer
a experiência de Breuer como marco inaugural da psicanálise resolvendo
assumir para si próprio toda a paternidade da psicanálise. O argumento
por Freud utilizado é o de que a ele caberia ter formulado o legítimo
método analítico, a saber, o que teria no trabalho de escuta, a exigência
de se estabelecer uma única regra fundamental - a das associações
livres. Assim, Freud apoiado por um grupo de analistas próximos a
ele passa a compreender “o método analítico de Breuer como um
estágio preliminar da psicanálise, e a psicanálise em si como tendo tido
início quando deixei de usar a técnica hipnótica e introduzi as
associações livres”.
Mesmo que Freud e os analistas aceitem essa divisão, mesmo que a
experiência de Breuer, se avaliada desde a perspectiva de um método,
possa ser entendida apenas como uma precussora de uma psicanálise
propriamente dita, e mesmo que Breuer não tivesse uma teoria acerca
do inconsciente e da sexualidade, não nos parece ser possível deixar de
reconhecer que já alí, exatamente no que diz respeito ao tratamento de
Anna O., havia o trato de questões que se apresentavam como próprias
ao interesse da própria teoria psicanalítica. Na verdade, se Freud pôde
criar a psicanálise, se ele pôde estabelecer paulatinamente uma teoria da
sexualidade, se ele constroi um aparelho psíquico a partir de uma
concepção específica do inconsciente e se ele faz da idéia de
resistência, um conceito eminentemente clínico, tudo isso é feito - ao
menos inicialmente - numa perspectiva crítica ao trabalho de Breuer. O
desenvolvimento desse capítulo procurará deixar essas considerações
satisfatoriamente explicitadas.
Como nosso objeto de estudo nesse capítulo é a realização de um
rastreamento do conceito de transferência na “primeira tópica” de Freud,
acreditamos ser importante poder apontar para o momento onde ele
faz sua aparição inicial , assinalando desde já que não se trata de
realizar uma gênese do conceito, nem tampouco de aceitar a tarefa de
realizar um estudo que se fizesse nos moldes de um desenvolvimento do
conceito de transferência na obra de Freud. A proposta está muito mais
próxima a uma tentativa de problematizar a questão da transferência em
importantes momentos da obra de Freud. O primeiro deles, nós
acreditamos, é justamente quando ele ainda não interage com sua obra
e quando , a partir do relato do caso Anna O., nos é possível não só
entender o que faz Breuer (ou não faz), onde sua prática encontra seus
limites, bem como a crítica da qual parte Freud para , em se
distanciando da experiência de Breuer, fundar a psicanálise e com ela , o
conceito de transferência. O caso Anna O. , nos interessa na medida em
que , em se tratando de uma experiência pré-analítica, torna-se palco
para pensar-se, a posteriori, os efeitos e implicações do que se pode
chamar de transferência. Se Breuer não faz uma teoria da transferência,
por outro lado, seu relato deixa rastros que indicam que a transferência
alí se fez presente, mesmo que de forma embrionária. Nos interessará
nesse momento, acompanhando o texto de Breuer, realizar uma
discussão inicial acerca da transferência.

Ao descrever sua paciente, Breuer reconhece na jovem moça de vinte e


um anos de idade, alguém que dispunha de uma “notável inteligência”,
dotes poéticos, e que era capaz de imaginar as mais diversas e bizarras
fantasias. Sabe-se pelo próprio Breuer que se tratava de uma bela moça
e pode-se ler nas entrelinhas uma curiosa observação: Anna O. , assim
ele a decidiu chamar, era algúem que “nunca se apaixonara”, e que por
conta mesmo disso, poderia se verificar que “a noção de sexualidade era
surpreendentemente não desenvolvida nela”. O curioso em questão, é
que poderá se notar, a partir de uma leitura cuidadosa do caso, que tudo
o que faz Anna O. , ao longo de sua relação com Breuer, é viver uma
situação onde sua entrega e total confiabilidade ao médico acabam por
revelar uma situação de apaixonamento intenso. Seu quadro histérico, a
sintomatologia em questão, farão com que Freud denuncie mais tarde , a
cegueira de Breuer quanto tudo a que dissessse respeito ao campo do
sexual. A sexualidade de Anna O. estava na superfície, espalmada e
disfarçada através de suas horripilantes formações sintomáticas.
Quanto a seus sintomas, eles poderiam ser compreendidos como
fazendo parte de um quadro clássico de histeria da época onde eram
frequentes paralisias e anestesias dos membros superiores e inferiores,
perturbações de visão, tosse nervosa, repugnância para ingerir
alimentos, dentre outras(nota mostrando onde Breuer fala dos sintomas,
pág.58,59). Além disso, Anna O. por um considerável tempo não
conseguia se expressar na língua alemã - sua língua de origem-, falava
apenas em inglês e com frequência experimentava estados de
“absence”, onde imperavam ausência da personalidade e estados de
confusão.
Esses estados de “absensces”, bem entendido, eram situações onde se
verificavam uma espécie de divisão da consciência onde Breuer
assinalava para a existência concomitante de dois estados de
consciência distintos que costumavam se alternar, revelando, no caso de
Anna O., hora uma atitude serena e comportada, hora uma situação
onde se verificava a emergência de um ataque histérico propriamente
dito.
A teoria formulada por Breuer e Freud na ocasião, é a da existência de
“estados hipnóides”. Tais “estados” tinham como característica peculiar
o fato de se constituírem como grupos isolados de representações
demasiadamente investidas capazes de alienarem-se enquanto
associações do resto da consciência, provocando uma dissociação
psíquica constitucional. O ataque histérico, seria a emergência de um
estado hipnóide que se encontraria completamente desconectado da
consciência vigente do sujeito. Nas “comunicações preliminares”, Breuer
e Freud explicitam a relação direta entre os “estados hipnóides” e a
estrutura histérica: “...a divisão da consciência, que é tão marcante nos
casos clássicos conhecidos sob a forma de ‘double conscience’, acha-se
presente em grau rudimentar em toda histeria(...)”.(48)
Breuer, cedo, pôde notar, ao lado dos estados de “absense”, uma
inclinação da paciente a realizar o que ele chamou de “teatro
particular”. Com isso ele desde cedo pôde se interessar e apontar para
uma capacidade fantasística de Anna O., capacidade essa que fazia
com que ela se entregasse à um exercício de “criar historinhas” onde era
capaz de viver verdadeiros contos de fada. Breuer se interessou por
essas “historinhas”. Mais que isso ele se deu conta de que elas tinham
uma função no estado psíquico da paciente.
Ter se interessado pelos devaneios de Anna O., certamente fez de
Breuer um médico diferente. Ele percebeu que toda vez que a paciente
podia narrar, sob hipnose, suas alucinações, suas construções
fantasísticas, ela despertava da hipnose de forma aliviada. Quando à
visitava à tarde, ele diz, Anna já o aguardava sob um estado auto-
hipnótico, onde esperava que o Dr. Breuer pudesse reconhecer nas suas
lembranças, todo um sofrimento e aflição que ela experimentava durante
suas “absenses” ao longo do dia. Comprovando a eficácia de sua
intervenção, Breuer escreve: “Era um contraste realmente notável:
durante o dia, a paciente irresponsável, perseguida por alucinações, e à
noite a moça com a mente inteiramente lúcida.”(62)
.
Esse trabalho, o de desencadear a narrativa de histórias (devaneios) a
partir de um estado de hipnose, realizava-se através de um exercício
catártico onde a paciente, ao falar, exprimia sensações as mais diversas
como tremores de horror, gritos, choros, etc. A “talking cure”, ou
“limpeza de chaminé”, denominações advindas da própria paciente para
o método catártico de Breuer, realizava o que era até então inviável para
ela: dar expressão verbal às alucinações e afetos que eram até então
vividos unicamente sob a forma de estados de “absense” .
Se recorrermos ao texto “comunicações preliminares”, teremos com
clareza a explicitação metapsicológica do que se passava no método
catártico formulado por Breuer . A tese lançada então por Breuer e
Freud é a de que a etiologia da histeria e das neuroses traumáticas
estaria diretamente relacionada com a existência de causas
desencadeadoras, consideradas traumas psíquicos. Um trauma seria
ocasionado por qualquer experiência capaz de despertar afetos aflitivos,
que, devido à sua intensidade e qualidade, permaneceriam no psiquismo
sem obterem descarga. Tal afeto traumático permaneceria no
psiquismo como um corpo estranho em atividade. A atividade em
questão, seria a própria formação dos sintomas histéricos.
Partindo desse achado, a pesquisa de Breuer e Freud acabará por
indicar o caminho da dissolução do sintoma: ele desaparecerá quando,
através do método catártico, for possível trazer à tona com clareza as
representações traumáticas e seus respectivos estados afetivos. O
método catártico consistia em , sob estado de hipnose, induzir o paciente
a descrever as situações envolvidas na problemática dos sintomas
histéricos, de maneira insistente até que os afetos em questão fossem,
transformados em palavras. O esssencial, é preciso frisar, é que
houvesse a ab-reação dos afetos implicados na situação traumática.
Assim, é preciso dizer que o fato de Breuer ter se interessado pelo teatro
particular de Anna O., e com isso, ter , através do método catártico,
viabilizado a ab-reação dos afetos estrangulados, dando um destino às
representações que sustentavam toda a condição sintomática de Anna
O., tudo isso fez com que ele tivesse na economia psíquica de sua
paciente um lugar específico que merece nossa atenção. Podemos
inverter também a proposição e dizer que, por conta de um lugar
específico que Breuer passou a ocupar na economia psíquica de Anna
O., por ele ter se oferecido como possibilidade de ancoramento para uma
fala que carecia de um destinatário , ele estabeleceu uma espécie de
situação que o diferenciou dos outros médicos que dela tentaram
tratar. Com isso, estamos criando condições para lançar algumas
considerações iniciais sobre a transferência.
Desde o início, Breuer estabeleceu com sua paciente uma relação de
proximidade. Todo o aparente nonsense trazido pelos ataques histéricos
de Anna O., pareciam se esmerilhar diante da paciência de Breuer. Mais
que isso, Breuer se investia de uma certa sapiência sobre os motivos sob
os quais repousavam a insatisfação da Srta. O. . Por exemplo, ele diz
com todas as letras que sabia que ela perdera sua capacidade de
articulação verbal devido a algo que ele (Breuer) teria dito e que
provavelmente a teria aborrecido(60). Mesmo sem se dar conta, Breuer
fazia refinadas interpretações que tinham como gancho as nuanças da
relação terapêutica que alí se estabelecia. As interpretações que
tomavam a pessoa de Breuer como centro das atrações, tornaram-se
uma constante no tratamento e podemos afirmar que algo da ordem do
que se conheceu mais tarde como relação trasferencial já se insinuava
no caso Anna O. Em breve, no desenrolar desse capítulo, estaremos
tratando especificamente da idéia de “relação transferencial “tal como ela
se encontra desenvolvida na obra de Freud.
Breuer chega a ser exaustivo e parece mesmo utilizar-se disso como um
triunfo: ele mostra o tempo todo que Anna O. o reconhecia como sendo
o único capaz de realizar progressos em seu estado. Nas ocasiões mais
dramáticas, quando o sintoma parecia levar a uma espécie de
desestruturação drástica, quando em seus estados de “absense” a
paciente era obrigada a fazer um trabalho de “recognizing work” para
poder identificar cada pessoa que a ela se dirigia, quando até isso
parecia ser uma tarefa da ordem do impossível, era a Breuer quem ela
reconhecia sem qualquer dificuldade. Ele sempre estava lá, sempre
pronto a ser uma espécie de estofo onde o despenhadeiro ocasionado
pelos ataques histéricos ganhavam seu limite: “...eu era a única pessoa
que ela sempre reconhecia”, exalta um confiante Breuer.
Quando sua condição sintomática a levava a uma situação
desesperadora a ponto da formação de um quadro anoréxico, quando
Anna parecia que ía definhar, lá estava o presente Breuer, o único capaz
de fazer com que ela se alimentasse. Breuer conta que sua paciente
fazia pouca questão de prestigiar seus outros médicos. Ele era o
único. Em certa ocasião, quando teve que ausentar-se durante vários
dias, ao retornar encontrou sua paciente regredida em estado de
“absenses” alucinatórias, vendo figuras assombrosas tais como caveiras
e esqueletos. À medida em que as limpezas de chaminé prosseguiam,
os laços entre os dois se tornavam cada vez mais acirrados. Para falar,
só se fosse com Breuer. Para saber se se tratava de Breuer, a paciente
chegava ao ato de apalpá-lo: “...ela jamais começava a falar antes de
haver confirmado plenamente a minha identidade, apalpando-me as
mãos com cuidado”.(65)
Todas essas indicações, que se mostram presentes do começo ao fim do
relato da experiência de Breuer com Anna O., mostram que o ponto de
motivação para que a “talking cure” se realizasse, estava no fato de que
Breuer se investiu e foi investido de um lugar destacado na economia do
processo terapêutico. Trata-se de uma angulação que se fez articular de
tal maneira que se tornou viável para Breuer reconhecer os sintomas de
sua paciente desde uma perspectiva subjetiva. Isto é, podemos afirmar
que o que dá condições para que o trabalho de ab-reação fosse
realizado, é justamenteo fato de Breuer ter viabilizado um
endereçamento para a fala de sua paciente. Breuer se descobre como
destinatário de uma fala aparentemente desconexa e encarna com toda
propriedade o lugar de alguém que reconhece um sentido para o que
era vivido até então como puro sintoma histérico Esse reconhecimento,
impossível não notar é o que faz Anna O. eleger Breuer como objeto de
amor, um amor que podemos hoje chamar de transferencial. Sobre o
amor transferencial, trataremos mais adiante, mostrando todo o
desenvolvimento que ele ganha a partir da obra freudiana.
O caso Anna O. tem aí seu limite. Se podemos falar em um sucesso
terapêutico de Breuer, podemos dizer que ele se encontra no alívio e
remissão temporária dos sintomas. Se Breuer escuta Anna O., se ele se
permite se fazer destinatário para uma fala histérica, ele dá provas de
que não sustenta essa posição. Se podemos dizer que Anna fala para
Breuer, isso vai até onde os sintomas não incluíam Breuer em suas
representações. Todo o limite do caso em questão está no fato de
Breuer não dispor de uma teoria da sexualidade e do inconsciente, que
lhe indicasse o valor de todo endereçamento histérico: ele ganha seu
entendimento a partir da lógica do desejo inconsciente.
Sabe-se através do próprio Freud(nota) que Breuer abandonou o caso de
Anna O. por conta do aparecimento de um sintoma impossível de ser por
ele reconhecido e sustentado. A Pseudociese de Anna O., amor de
transferência fecundado em acting -out histérico, foi para Breuer sua
saída de cena. Ele suportou o método catártico. A transferência, não.
Ao comentar o caso, vinte anos mais tarde, Freud retoma a questão,
justamente pela via que nos interessa: ele dirá que é impossível não
reconhecer nos sintomas de Anna O., o caráter sexual que envolvia
representações como “cobra, enrijecimento e paralisia do braço”. Breuer
não teria sabido reconhecer o caráter sexual dos sintomas. No entanto,
Freud reconhece que o relato da experiência de Breuer com Anna O.,
com toda sua intensidade no que tange às questões vividas no que ele
reconhece como um “rapport sugestivo”, testemunhariam uma
experiência já ordenada em termos de uma situação
transferencial., Assim, tratar-se-ía, segundo as palavras do próprio
Freud de algo que serviria “como um perfeito protótipo do que
chamamos hoje de transferência”(21). Tal afirmação freudiana, reforça e
aprova nosso intuito de demonstrar que Breuer, ao conduzir o
tratamento de annaO., mesmo sem o saber, esteve lidando com
questões próprias ao campo da transferência.
Ainda, ao justificar o limite da experiência de seu colega, Freud conclui
que: “Breuer deve ter descoberto por outros indícios a motivação sexual
dessa transferência, mas a natureza universal deste fenômeno lhe
escapou, resultando daí que, como se tivesse sido surpreendido por um
‘fato inconveniente’, ele tenha interrompido qualquer investigação
subsequente”.(21)
É preciso afirmar, a partir da própria crítica que Freud dirige à Breuer,
que , no que diz respeito ao problema da transferência, ela se fará
apresentar sempre como um “fato inconveniente”. Se a gravidez de
Anna O. tornou-se o ponto máximo de desespero de Breuer, se isso
impôs de uma vez por todas o limite entre o que pôde ser tratado por seu
método catártico, também para Freud a transferência, ao menos no
início, será tomada como um corpo estranho e indesejável. Toda a
diferença é que Freud, ao contrário de Breuer, não se recusará a aceitar
o desafio imposto pela transferência. Ao contrário, sua demarche fará da
transferência, um conceito fundamental e constituinte do campo
psicanalítico.

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