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Nelson Rodrigues

A doença
infantil do
palavrão
Que estaria fazendo eu, ontem, às três da ma-
drugada? Sei que isso é intranscendente, irrele-
vante, mas vamos lá. Simplesmente, eu estava adu-
lando minha úlcera com leite gelado. (Minha úlcera
lambe leite como uma gata). Pacificada a dor, vim
para a janela espiar a noite. E comecei a pensar no
teatro brasileiro. (É triste ser inteligente com dor).
Escrevi, há dois ou três dias, que lavra, por todo o
Brasil, a doença infantil do palavrão. Não há lem-
brança de outra época tão pornográfica. Dirá al-
guém que o brasileiro sempre foi um neto retar-
datário e ululante de Bocage. Isso é e não é ver-
dade. De fato, o povo sempre teve a boca suja.
O nosso Pedro I, segundo informam a histó-
ria e a lenda, soltava, com larga e cálida ênfase, al-
guns dos mais truculentos palavrões da língua. E,
assim, através dos tempos, cada geração recebe
das anteriores um farto legado obsceno. (Claro
que a linguagem das mulheres sempre foi muito

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mais limpa). Eis o que eu queria dizer: — no pas-
sado, o palavrão era muito mais solene, patético,
vital. Bem me lembro de uma vizinha nossa, que
perdeu a filhinha, de febre amarela. (Era ainda a
cidade dos lampiões e da febre amarela). Quando
a menina morreu, e a mãe sentiu a morte, podia
ter rezado. Rezado, em pé, ereta, a fronte alçada.
Não. Ela se esganiçou em palavrões hediondos, in-
clusive alguns que os homens, os latagões presen-
tes, não conheciam. Houve, junto à cama da ago-
nia, um escândalo total. Mas logo todos percebe-
ram que a dor pornográfica é ainda mais terrível.
Uns vinte anos depois, passo, com um amigo,
pela praia de Ipanema. E, por um momento, fica-
mos, ali, feridos de espanto. Que dizer de um po-
ente do Leblon? Um de nós poderia declamar a
seguinte imagem de D’Annunzio: — “O crepús-
culo rola em quedas de silêncio e de luz”. Em vez
disso, o meu amigo arrancou, das próprias entra-
nhas, um palavrão deslumbrado. Aquele poente de

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folhinha como que exigia o uivo obsceno, não con-
vencional.
Disse obsceno e já retifico. Não houve obs-
cenidade nenhuma. Houve, repito, uma unção e
uma carga de espanto que a palavra comum não
suportaria. Não sei se me entenderam. Mas o que
eu queria dizer é que o palavrão não tinha nada de
gratuito, de irresponsável. Nunca. E ainda outro
exemplo: — fui ver um amigo que estava morre,
não morre. Encontrei-o já com a dispneia pré-agô-
nica. Houve um momento em que a mulher cur-
vou-se e lhe fez a pergunta: — “Meu bem?”. Sem
abrir os olhos, ele soluçou um palavrão e morreu.
O homem era pornográfico para morrer. Ou
ainda: — era pornográfico por ódio, medo, paixão.
Havia sempre um sentimento forte. Hoje não. O
chamado nome feio deixou de ser feio. Esvaziou-
se o palavrão de toda a transcendência, de todo o
dramatismo. Ele já não causa o velho impacto he-
róico.

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Realmente, é a doença infantil dos adultos.
Ontem, contei, de passagem, as reações da plateia
do Rei da vela. Um belo espetáculo e um elenco
admirável. O diretor, José Celso, fez um nobilís-
simo esforço. No fim, o texto era uma laranja chu-
pada (o diretor extraíra todo o caldo). Um amigo,
que foi comigo, dizia-me da peça: — “Não tem es-
trutura”. E, de fato, se lhe retirassem os palavrões
enxertados, o Rei da vela não ficaria de pé cinco
minutos.
O que explica o êxito do espetáculo é, exa-
tamente, o engenho diabólico de José Celso. Não
conversamos sobre a execução cênica do original.
Mas quero crer que ele percebeu, em toda a sua
força epidêmica e incontrolável, a doença infantil
do palavrão. As falas de Oswald de Andrade não
chegam ao público ou, na melhor das hipóteses,
são de uma eficácia mínima. Quem reinou, através
dos três atos, foi o palavrão.
Claro que há, no Rei da vela, uma mensagem.

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Mensagem para a qual a plateia é surda, cega e
muda. Em dado momento, no terceiro ato, a peça
emposta a voz e se torna gravíssima. O tédio do
público é então indescritível. Ah, por que fazer um
Oswald de Andrade solene, encasacado como um
mordomo de filme policial inglês?
Já o rendimento plástico e auditivo do pala-
vrão foi absoluto. Na minha frente estava um rapaz
com a noiva. Passei duas horas seguindo as reações
do casal. Diga-se de passagem que era a plateia
mais antipolítica, mais antiideológica que já entrou
no João Caetano.
Volto ao rapaz (um latagão de vastas boche-
chas). A única coisa que o fascinava no espetáculo
era a pornografia e toda a gesticulação correspon-
dente. E sempre que explodia um palavrão, nada
descreve e nada se compara à delícia auditiva do
noivo. Ficava escarlate de prazer (e os outros tam-
bém). Lembro-me que, na minha peça, O beijo no
asfalto, um velhinho trepou na cadeira e pôs-se a

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berrar: — “Indecentes! Imorais! Tarados!”. Houve
porém uma resistência solitária. Alguém, não iden-
tificado, estourou: — “Cala a boca, burro!”. E o
carequinha: — “Burro é a mão na cara!”.
O momento mais alto do Rei da vela foi
quando a plateia, em sua unanimidade ululante,
aplaudiu, de pé, o palavrão mais violento dos três
atos. Ninguém fez cara feia; nenhuma senhora deu
muxoxo; jamais um casal se retirou. No dia se-
guinte, encontro o doce Eduardo Chermont de
Brito. Conto-lhe toda a minha experiência brasi-
leira do Rei da vela. Pergunto: — “Chermont, que
fazem os nossos sociólogos? Que faz o padre Ávila
que ainda não deu uma aula sobre a doença infantil
do palavrão?”. O Chermont suspira: — “É o Brasil,
é o Brasil!”.
E há de ser também o Brasil o Roda-viva do
Chico. Um dos Guinles foi lá, com a senhora, ver
a peça. Queria o Chico terno, tímido, nostálgico.
Pois bem: — e deu de cara com o truculento José

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Celso. Em Roda-viva há uma presença devoradora:
— o José Celso. O casal Guinle saiu, no meio,
como se fugisse do anti-Brasil. Mas é o Brasil, o
novo Brasil com potencialidades imprevisíveis. O
público só irá, daqui por diante, ao espetáculo por-
nográfico. A plateia exige as duas coisas: — o pa-
lavrão e o gesto que lhe corresponde. É como se
a obscenidade de palco justificasse e absolvesse a
obscenidade do espectador. Se eu conhecesse o
padre Ávila, ou outro sociólogo, ou quem sabe um
psicanalista, ou ainda um pediatra, havia de pergun-
tar-lhe: — há ou não, por todo o Brasil, a doença
infantil do palavrão?

[O GLOBO, 1/2/1968]

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