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21/09/2018 A heresia gnóstica

História da Igreja Antiga

A heresia gnóstica
Nos primeiros séculos, a fé católica sofreu um duro golpe e quase foi
aniquilada pela heresia gnóstica. Deus levantou grandes santos para
combatê-la, todavia, seus resquícios são observados até os dias de hoje.
Mais do que você imagina. Quer saber se o seu pensamento é gnóstico?

Apesar da grande perseguição sofrida pelos cristãos durante o Império Romano, conforme visto
na aula passada, a Igreja continuou crescendo. Esse fenômeno foi muito bem explicado por
Tertuliano, escritor cristão do terceiro século, que viveu no norte da África: “o sangue dos
mártires é semente de novos cristãos”. Mas, a maior ameaça enfrentada pelo cristianismo
recém-nascido foi a dificuldade cultural, espiritual e religiosa do gnosticismo.

O gnosticismo era um fenômeno religioso e filosófico no qual se encontrava uma explicação


para a origem do mundo, e do mal no mundo, de uma forma mais plausível que a oferecida
pelo cristianismo. A pretensa racionalidade do gnosticismo atraiu um número considerável de
pessoas e acabou por adentrar ao seio da Igreja nascente, de certa maneira parasitando-a,
sugando suas forças e fazendo com que os devotos se tornassem falsos devotos, pois aderiam a
uma filosofia estranha ao cristianismo.

Em sua obra “A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires”, Daniel-Rops descreveu o gnosticismo,
também chamado de heresia do conhecimento, da seguinte forma:

“O gnosticismo apoiava-se em duas idéias: a da sublime elevação de Deus, idéia


tomada dos judeus dos tempos mais próximos, para quem Javé se tornara
infinitamente longínquo e misterioso - o Poder, o Grande Silêncio, o Abismo -, e a
miséria infinita do homem e da sua abjeção. Mostrava-se obsessionado por dois
problemas, exatamente os mesmos que hoje continuam a prender a atenção das
inteligências: o da origem da matéria e da vida, obras tão visivelmente imperfeitas de
um Deus que se diz perfeito, e o do mal no homem e no universo. [...] Deus, único e
perfeito, está absolutamente separado dos seres de carne. Entre Ele e esses seres, há
outros seres intermediários, os éones que emanam dEle por via da degradação; os
primeiros assemelham-se a Deus por terem sido gerados por Ele, mas por sua vez
geram outros menos puros, e assim sucessivamente. Cálculos esotéricos de números
permitiam dizer quantas classes de éones havia, e o conjunto formava o mundo
completo, os trezentos e sesseta e cinco graus, o pleroma.” (p.284 e 285)

Assim, para os gnósticos, principalmente para aqueles que seguiam a vertente de Valentino, era
impossível que o Deus Perfeito tivesse criado esse mundo tão imperfeito e cheio de miséria.
Criaram então um sistema de degradação que justificaria o mal no homem e no mundo. Para

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eles, Deus criou pares de éons (sizígias, pares ativos-passivos, masculinos-femininos, machos-
fêmeas), os quais originaram quatro casais(octôades), degradaram-se e deram origem a outros
cinco casais (décades), novamente degradaram-se e originaram mais seis casais (duodécades).
Quanto mais degradados tanto mais distantes da divindade (éon). Na última degradação, havia
um éon passivo (feminino) chamado Sofia que, tomada pela soberba, quis dar origem a algo
sozinha. Ela criou a matéria e um outro éon muitíssimo imperfeito, chamado Demiurgo.
Daniel-Rops explica de maneira resumida:

“No meio da série, um éon cometeu uma falta: tentou ultrapassar os limites
ontológicos e igualar-se a Deus. Expulso do mundo espiritual, foi obrigado a viver a
sua descendência no universo intermediário, e foi na sua revolta que ele criou o
mundo material, obra má e marcada pelo pecado. A este éon prevaricador alguns
gnósticos chamam Demiurgo, e outros o identificam com o Deus criador da Bíblia.”
(p.285)

O Demiurgo, então, “brincando” com a matéria, criou o mundo material. Como ele estava
isolado dos demais éones acabou por crer-se o único e, ainda segundo Valentino, passou a
revelar-se aos homens, originando o Antigo Testamento. Daniel-Rops continua:

“Que acontece ao homem nestas perspectivas? Em si, ele não é integralmente mau,
visto que, como suprema emanação do éon, contém uma centelha divina, um
elemento espiritual cativo na matéria e que aspira a ser libertado. A falta é existir; o
mal é a vida. Aqueles que se contentam com existir, os ‘hílicos’ ou ‘materiais’, estão
rigorosamente perdidos; aqueles que empreendem pela gnose o caminho da salvação,
os ‘psíquicos’, podem avançar rumo à paz divina; aqueles que renunciaram a toda a
vida, os ‘espirituais’, iniciados superiores e almas muito elevadas, são os que se
salvam.” (p.285)

Para os gnósticos, Jesus não era o Filho de Deus, mas um éon que, através do conhecimento,
guiaria as pessoas presas à matéria ao verdadeiro Deus. Um psicopompo. O autor de “A Igreja
dos Apóstolos e dos Mártires”, sintetiza:

“Mesmo através de um resumo tão breve, vemos até que ponto tais especulações se
opunham ao cristianismo. A personagem histórica de Jesus desaparecia e Cristo não
era mais do que um membro da hierarquia divina de éones, e a sua carne humana
uma espécie de invólucro ilusório da centelha divina. O ideal cristão da redenção do
homem inteiro, alma e corpo, pelo sofrimento e morte de Cristo encarnado, e o da
realização do reino de Deus, eram substituídos por uma espécie de apelo ao nirvana,
pela libertação da alma arrancada às abjeções do mundo material. A moral cristã cedia
o lugar a uma outra moral que, umas vezes brutalmente hostil ao corpo, conduzia a

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asceses excessivas; e outras, pelo desprezo da carne, tornava-se complacente e dava


livre curso aos instintos.” (p. 285)

A heresia gnóstica possuía um ar de racionalidade muito atraente. A maldade e miséria do


mundo era colocada na conta do Demiurgo, deixando Deus livre. E também pelo fato de que a
salvação era algo fácil de ser conseguido, pois bastava a pessoa tomar ‘conhecimento’ de tudo
isso e seria libertada.

Aceitar a gnose significa fazer parte de uma elite, de um grupo de ‘escolhidos’ (os pneumáticos).
A missão destes era levar o conhecimento (a gnose) ao segundo grupo, os ‘psíquicos’. Para o
terceiro grupo de pessoas, os hílicos não havia salvação, posto que não possuíam alma,
nasceram para serem destruídos.

O gnosticismo se proliferou de maneira espantosa entre o cristianismo, como bem disse Daniel-
Rops, “como um câncer espiritual”. Era necessário que a Igreja reagisse e assim se deu. “Cada
comunidade se agrupou em torno de seu bispo, que era o legítimo depositário da tradição
ortodoxa, e as instituições cristãs se tornaram mais precisas e rigorosas, para que o ácido da
heresia não as corroesse.” (p. 289) Em especial, surge a figura de Santo Irineu de Lyon, nascido
na atual Turquia, provavelmente próximo à Esmirna, que teve Policarpo como bispo. Policarpo
havia conhecido o apóstolo João que, por sua vez, havia sido o discípulo amado de Jesus. A fim
de combater a heresia gnóstica, Santo Irineu usa como argumento a sucessão apostólica.

A ideia da tradição apostólica é algo bastante documentado ao longo da história. No final do


primeiro século, quando, provavelmente, São João ainda estava vivo, houve um bispo chamado
Inácio de Antioquia, o qual foi levado para Roma a fim de ser martirizado. No caminho, Santo
Inácio escreveu diversas cartas e existem registros de sete delas. Nelas, o santo é enfático ao
dizer que para ser Igreja é preciso estar unido ao Bispo, ao episcopado. “Ubi episcopus, ibi
ecclesiae”, onde está o bispo, aí está a Igreja. Em outra carta, Santo Inácio afirma que é a Igreja
de Roma quem preside sobre as demais (a Igreja de Roma preside na caridade…), ou seja, a
Igreja não ficou católica, mas já nasceu católica. Nestas cartas se vê claramente o princípio da
catolicidade, a estrutura e a hieraquia da Igreja.

Santo Irineu viveu depois de Santo Inácio e teve de enfrentar a heresia gnóstica que estava
seduzindo o seu rebanho. Para tanto, ele escreveu a sua maior obra intitulada “Exposição e
refutação da falsa gnose”, mais conhecida como “Adversus haereses” (Contra os Hereges), em
cinco volumes:

“(...) nos dois primeiros volumes, Santo Irineu analisa com precisão todas as heresias
de seu tempo; diz ele: “Expor os sistemas é vencê-los, assim como arrancar uma fera

das selvas e trazê-la para a luz do dia é torná-la inofensiva. Por outro lado, nos
últimos três volumes, apresenta a doutrina ortodoxa de tal forma que os erros
heréticos não mais serão possíveis. Assim surge um pensamento filosófico e teológico

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não tão novo quanto sólido, e que no futuro servirá de base para todo o pensamento
cristão. (...)
Materialmente, não é uma sequência qualquer de pretensos iniciados cujo
pensamento não se pode determinar; é a tradição da Igreja, que todos podem
conhecer, a dos bispos, cuja lista se pode estabelecer, a de Roma, que desempenha
aqui um papel eminente. Espiritualmente, não é um dado fossilizado, que maltrata a
inteligência; é um princípio de vida ‘que o Espírito rejuvenesce sem cessar’, que
orienta a razão e lhe determina o fim.” (p. 292)

Um outro fator explorado por Santo Irineu de Lyon no combate às heresias, especialmente ao
gnosticismo, foi a chamada Regula Fidei, ou seja, a Regra de Fé, a reafirmação da fé primeira de
que Deus é um só e é Ele o criador do céu e da terra. Não há outro Deus e se o mundo está mal,
não é por causa da matéria - que é boa -, mas por causa do diabo, seus demônios e dos
próprios homens. Para a Igreja Católica o pecado não tem origem na matéria.

Deste modo, com os três pilares descritos: os bispos (sucessão apostólica), a regula fidei e a
Sagrada Escritura, a Igreja foi respondendo aos poucos a grave dificuldade em que se constituiu
a heresia gnóstica

Bibliogra a

“A Igreja dos Santos e dos Mártires”, Daniel-Rops, Editora Quadrante.

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