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22/09/2018 Máquina e Magia

Tolkien e a Imortalidade

Máquina e Magia
O Anel, como o próprio Tolkien fez questão de esclarecer, não é uma
alegoria do poder atômico nem uma referência aos con itos bélicos do
século passado. O grande tema de “O Senhor dos Anéis”, no fundo, é a
questão da morte e imortalidade.

Mas, para entendermos o que Tolkien quer dizer com isso, precisamos
saber primeiro o que ele entende por “máquina” e o que isso tem a ver
com a mentalidade mágica e gnóstica que tomou conta do mundo
moderno.

Indicam-se abaixo, em forma de tópicos resumidos, os principais pontos abordados nesta


primeira aula do curso Tolkien e a Imortalidade.

Na carta 186, endereçada a Joanna De Bortadano, Tolkien afirma que o verdadeiro


tema de sua trilogia não são as crises políticas e bélicas por que passou a Europa no
século passado, mas o problema da morte e imortalidade.

Intimamente associado a este problema, está o fato de a Terra Média ser um mundo
marcado pelo pecado e, portanto, pela consequência do pecado: a morte.

Neste horizonte, Tolkien concebeu, ao lado dos homens, fadados a morrer, uma raça
— os elfos — destinada a viver para sempre em um mundo com as misérias
próprias da nossa realidade.

A mortalidade dos homens e a imortalidade dos elfos, concebidas em um universo


decaído e marcado pelo pecado, permitem realçar que a morte física, de acordo com
a fé cristã, não tem um caráter exclusivamente penal e negativo, mas também
positivo e, em certo sentido, “libertador”.

Prova disso é o fato de os próprios elfos, como Tolkien adverte na carta 212, verem a
morte humana não só como castigo, mas sobretudo como um dom divino.

Essa visão remete-se, por sua vez, à ideia cristã de que, sendo Deus amor por
essência, os atos punitivos de sua justiça são também atos de misericórdia e, por
isso, uma dádiva para quem os aceita como vindos de um Pai amoroso.

Além da tríade pecado, morte e imortalidade, Tolkien aborda o que denomina

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22/09/2018 Máquina e Magia

p q
“máquina” ou “magia”, entendidas como uma tentativa de remediar os problemas
do mundo, contrariando os desígnios de Deus e pretendendo criar uma terra perfeita
e ideal, à imagem e medida do ser humano.

Como se depreende também da história de Saruman, os termos “máquina” e


“mágica” designam para Tolkien a pretensão de querer vencer o mal, não pelo
esforço pessoal da virtude — ou seja, pela melhora de si mesmo —, mas por meio de
recursos “mágicos”, instantâneos, de caráter puramente técnico e instrumental. O
Anel é disso um exemplo mais do que claro.

O problema para o qual Tolkien está chamando a atenção aqui, noutras palavras, é a
tendência moderna a querer resolver todo tipo de problemas — das “injustiças
sociais” a simples dificuldades de dieta — com artifícios “mágicos” ou tecnológicos,
que não requerem nem comprometimento nem esforço pessoal.

Oposta a esta tendência, temos a figura de Gandalf, cuja morte e ressurreição com
poderes ainda maiores são como que uma “alegoria” do caminho espiritual do
cristão, que só pode crescer em virtude e santidade pela mortificação interior de suas
más tendências (ao pecado em todas as suas formas, ao comodismo, ao egoísmo,
àquela ilusão moderna de tudo solucionar pela aplicação mecânica de uma “receita”
pré-fabricada etc.).

O grande tema de O Senhor dos Anéis consiste, pois, nos dilemas que todo homem
tem de enfrentar hoje em dia: usar ou não o Anel, quer dizer, ceder ou não à
tentação da “máquina”? Aprimorar-se pela virtude e o sacrifício de si ou reduzir a
própria a vida a tecnicismos artificiais? Arvorar-se como senhor e “criador” de tudo
ou submeter-se à ordem natural criada?

A partir dessa intuição de Tolkien, podemos dizer que por trás da mentalidade
mágico-tecnológica atual subjaz uma forma secularizada de gnosticismo, segundo a
qual o mundo em que vivemos está mal feito e somos nós, e não Deus, que
sabemos como ele deveria ser. Isso se nota claramente na ideologia de gênero, por
exemplo, um caso marcante de revolta contra a ordem criada.

A denúncia que perpassa toda a sua obra contra a pretensão do homem moderno de
pôr-se no lugar de Deus Criador por meio de artifícios tanto técnicos como
linguísticos é uma prova de que Tolkien é profundamente antignóstico.

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