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Representações sobre

a docência: a construção
da identidade profissional
Maria Heloísa Aguiar da Silva
Os professores vivem tempos difíceis e paradoxais.
Apesar das críticas e das desconfianças em relação
às suas competências profissionais, exige-se-lhes quase tudo.
Temos de ser capazes de pensar nossa profissão.

Antonio Nóvoa

Começando o diálogo
Refletir sobre a docência no Ensino Superior é um desafio que acompanha
a expansão quantitativa desse nível de escolaridade. Assistimos, na última
década do século XX, a um crescimento vertiginoso das vagas nas univer-
sidades. O sonho de se graduar em um curso universitário tornou-se uma
realidade para um número cada vez maior de pessoas.

Essa nova realidade gerou um aumento da demanda para o Ensino Su-


perior que o levou a profissionalizar o seu corpo docente quanto ao aspecto
pedagógico.

Aqui pretendemos apresentar algumas questões para a reflexão sobre


esse desafio profissional que se apresenta a um pós-graduado, ou seja, pre-
parar-se para a docência universitária.

Há uma representação muito negativa em relação à atividade profis­


sional do professor, gerando inclusive uma rejeição à docência. Por que isso
acontece?

O que caracteriza a docência no Ensino Superior? O que a diferencia da


docência na educação básica? Responder a essas questões iniciais é o objeti-
vo central dessa aula. Para tanto, será necessário trilhar alguns caminhos.
Docência no Ensino Superior

Ser professor universitário:


ambiguidades e conflitos
O que é ser professor?

Se buscarmos uma definição objetiva, encontraremos descrições como


“professor é aquele que ensina”. No dicionário, é possível obter a seguinte de-
finição: “aquele que professa ou ensina uma ciência, uma arte, uma técnica,
uma disciplina, um mestre” (HOUAISS, 2008). Segundo uma definição legal,
professor é o profissional habilitado a lecionar.

Contudo, se fizermos a mesma pergunta a alguns professores a partir da


mesma questão, obteremos outros tipos de respostas tais como: “professor é
aquele que prepara o amanhã”, “um eterno sofredor”, “um abnegado”, “um ser
paciente”, entre outras.

Se indagarmos os alunos, é possível obter respostas como: “aquele que se


compraz em nos reprovar”, “aquele que nos prepara para a vida”, “aquele que
trabalha muito e ganha pouco”.

Cabe fazer aqui uma primeira distinção: temos diferentes respostas para
uma única questão. Por que isso acontece? Em primeiro lugar, é preciso dis-
tinguir definição e representação.

No dicionário, encontramos definições para diversos tipos de palavras, ou


seja, encontramos o significado dos termos, “aquilo que são”. Por isso, os si-
nônimos da palavra professor indicam um caminho, uma compreensão do
significado da profissão docente.

Porém, a discussão ficará limitada se nos ativermos apenas a essa defini-


ção. Para avançarmos um pouco mais nessa discussão, devemos compreen-
der o sentido das representações, isto é, “modos de ver” a profissão docente,
que são baseados em interpretações de vivências e experiências. Isso signi-
fica dizer que a maneira como eu compreendo uma determinada questão
depende das experiências que tive, do lugar que ocupo na sociedade, das
influências que recebo. Por isso encontramos representações diversas sobre
a docência, tanto positivas como negativas. O cuidado a ser tomado é não
substituir a representação pela definição e compreender a representação
no seu contexto de produção. A docência possui uma definição objetiva e
clara que explica o sentido da ação docente. Mas é necessário compreender
também os diferentes modos de ver essa profissão e entender como isso in-
terfere na sua imagem social.
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Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional

Segundo Arroyo (2000), a profissão docente se constitui também como


um ofício construído artesanalmente, a partir de experiências concretas.
Tornamo-nos professores no exercício cotidiano da docência. Não nascemos
prontos para o exercício do magistério, nem predestinados a sermos profes-
sores, como muitos já acreditaram.

No curso superior, recebemos as primeiras orientações para o exercício


profissional, mas essa formação se complementa no cotidiano da sala de
aula. Ao exercemos o nosso ofício, construímo-nos como profissionais. A
ação docente ultrapassa os limites da sala de aula e interfere na nossa con-
dição humana, marcando-nos profundamente como pessoas e profissionais
porque
Somos professores, somos professoras. Somos, não apenas exercemos a função docente.
Poucos trabalhos e posições sociais podem usar o verbo ser de maneira tão apropriada.
Poucos trabalhos se identificam tanto com a totalidade da vida pessoal. Os tempos de
escola invadem todos os outros tempos. (ARROYO, 2000, p. 27)

Contudo, isso também gera um desconforto, pois há que se buscar um


equilíbrio que permita construir o distanciamento necessário. Há, hoje, uma
vasta literatura (ARROYO, 2000; NÓVOA, 1995b; ESTEVE, 1999) que aponta
para a existência de uma crise de identidade entre os professores. O que ca-
racteriza essa crise? É facilmente identificado um quadro atual de insatisfação
profissional, gerado pelos baixos salários, a violência, a indisciplina e o este­
reótipo depreciativo em relação à docência.

Segundo Nóvoa (1995b), essa crise está associada à sobrecarga de traba-


lho que, atribuída ao professor, ultrapassa a ação pedagógica de sala de aula,
a relação de ensino e aprendizagem e passa a exigir o desempenho de tarefas
burocráticas tais como o preenchimento de fichas, relatórios, entre outras.
Isso leva o professor a um afastamento do cerne do seu trabalho (que deve
ser essencialmente criativo e autônomo), conduzindo-o a uma situação para-
doxal, uma vez que seu trabalho se torna alienado. Assim sendo, ele fica im-
possibilitado de refletir sobre sua ação, que se torna mecânica e repetitiva.
A crise de identidade dos professores, objeto de inúmeros debates ao longo dos últimos
vinte anos, não é alheia a esta evolução que foi impondo uma separação entre o eu
pessoal e o eu profissional. A transposição dessa atitude do plano científico para o plano
institucional contribui para intensificar o controle sobre os professores, favorecendo o seu
processo de desprofissionalização. (NÓVOA, 1995b, p. 15)

A profissionalização docente continua como um processo a ser conquis-


tado, pois essas situações transformam o docente em um mero executor, de-
sempenhando uma ação técnica e não reflexiva. Contudo, o autor nos indica
uma saída ao buscar no próprio significado do termo crise uma possibilidade
de superação. Devemos entendê-la “na sua acepção original (krisis = decisão),
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Docência no Ensino Superior

assumindo-a como um espaço para tomar decisões sobre os percursos de


futuro dos professores” (NÓVOA, 1995a, p. 23).

Seria este um momento de reflexão sobre os rumos dessa profissão nesse


início de século, em que tantos desafios se colocam à sociedade. É comum
ouvirmos afirmações que caracterizam este momento, o da virada do milênio,
como a “era do conhecimento”, a “sociedade da informação”. Essas afirmações
baseiam-se, antes de tudo, no acesso que temos a uma quantidade sem fim
de informações com uma velocidade sem comparações em qualquer outro
período do desenvolvimento da humanidade. Isso gera uma nova demanda
para a escola como a instituição reconhecida socialmente como aquela que
tem por finalidade educar e, por consequência, também há uma nova de-
manda para o professor, que viabiliza essa missão da escola.

Contudo, a competência desse profissional está sempre em cheque. Por


muitas vezes, o professor é visto como o bode expiatório de todos os proble-
mas educacionais. Isso destaca sua importância, porém por vias tortas. Ao
mesmo tempo em que encontramos imagens idealizadas desse profissional
como um “salvador da humanidade”, também nos deparamos com imagens
que o depreciam.

Apresenta-se então mais um elemento dessa crise de identidade: quem


somos nós?
Volto à pergunta que nos persegue: quem somos? Dominando competências mudaremos
a imagem? Um ponto de partida para responder estas perguntas poderia ser este:
somos a imagem que fazem do nosso papel social, não o que teimamos ser. Teríamos de
conseguir que os outros acreditem no que somos. Um processo social complicado, lento,
de desencontros entre o que somos para nós e o que somos para fora. Entre imagens e
autoimagens. É frequente lamentar que não somos socialmente reconhecidos. Mas como
se constrói o reconhecimento social de uma profissão? Repito, seria um bom ponto de
partida: somos a imagem social que foi construída sobre o ofício de mestre, somos as
formas diversas de exercer esse ofício. Sabemos pouco sobre nossa história. Nem nos
cursos normais, de licenciatura e pedagogia nos contaram quanto fomos e quanto não
fomos. O que somos? (ARROYO, 2000, p. 29)

Segundo Arroyo, responder a essa questão seria um bom ponto de par-


tida para entendermos os rumos dessa profissão. Para isso, o autor faz uma
distinção entre imagens e autoimagens, ou seja, o que somos para os outros
(imagens) e o que somos para nós (autoimagens).

As representações (imagens) acerca da profissão são diversas e históri-


cas, são modelos construídos nos mais diferentes espaços, são heranças que
carregamos.

O professor é obrigado, muitas vezes, a conviver com imagens negativas


acerca da sua profissão e isso tem gerado um sentimento de rejeição à do-
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Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional

cência. Pesquisas apontam para uma crescente tendência de abandono da


profissão e diminuição do ingresso dos jovens nos cursos de licenciatura, que
correspondem à formação inicial para a docência.

Vejamos a reportagem abaixo, resultado de uma pesquisa realizada pelo


Ministério da Educação (MEC) em 2003:

Apagão na educação –
professor foge da sala de aula
(ARCE, 2003)

MEC identifica falta de 250 mil profissionais nas escolas do país. Baixos
salários e más condições de trabalho são apontados como causas.

Sem merenda, sem infraestrutura e sem o ingrediente principal: pro-


fessor. Um levantamento do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais do Ministério da Educação (Inep/MEC) identificou a falta de
250 mil professores de 5.ª a 8.ª séries e de Ensino Médio nas escolas de
todo o país, prejudicando cerca de 23 milhões de estudantes. As áreas
mais carentes são física e química, que daqui a dez anos ainda terão um
déficit de 40 mil profissionais. Em muitas disciplinas, como matemática,
não faltam vagas no Ensino Superior para formar professores habilitados,
porém os recém-formados aposentam o diploma e preferem outros em-
pregos. Baixos salários e condições de trabalho desestimulantes são os
problemas que afugentam os mestres. Estamos à beira de um apagão nas
escolas, classifica o secretário de Educação Média e Tecnológica do MEC,
Antônio Ibañez, comparando a situação do ensino à crise de fornecimen-
to de energia elétrica que assolou o país em 2001.

De acordo com o estudo, para atender a demanda atual são necessários


235 mil professores no Ensino Médio e 476 mil nas turmas de 5.ª a 8.ª séries,
num total de 711 mil docentes. Mas nos últimos anos formaram-se 457 mil
profissionais nos cursos de licenciatura, que habilitam professores para o
magistério. Com isso, o déficit é de cerca de 254 mil professores, quase 90
mil deles apenas para língua portuguesa. As vagas têm sido preenchidas
de forma precária, com professores não habilitados para a função e proce-
dentes de outras áreas, sem a formação necessária para ensinar, como os
engenheiros que assumem as aulas de física, matemática e química sem
conhecimentos de didática. Além disso, os professores chegam a trabalhar
nos três turnos para suprir a demanda.
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Docência no Ensino Superior

Podemos observar que em 2003 se desenhava um quadro caótico em re-


lação ao futuro da docência em nosso país. Como reverter esse quadro? As
políticas públicas se ocupam de ações de formação docente para suprir essa
demanda, tais como cursos a distância, contratação emergencial de profis­
sionais de outras áreas, entre outras. Porém, é necessário pensar sobre os mo-
tivos que geram essa crise e não se ater a situações que visam atingir apenas
as consequências.

O professor universitário goza de um status profissional um pouco di-


ferenciado, uma vez que, em geral, essa seria a sua segunda profissão. Na
graduação, ele obtém um título profissional – dentista, advogado, engenhei-
ro – e, após concluir uma pós-graduação, torna-se também um professor
universitário.

Em uma sociedade em que a educação ainda é tratada como um privilé-


gio, ter mais de um título profissional, obtido no ensino superior, confere ao
seu portador um respeito intelectual, gerando assim o status profissional di-
ferenciado em relação ao professor da Educação Básica. Contudo, o professor
universitário não está imune à desvalorização profissional do docente, assim
passando a viver, uma ambiguidade. Ele está sujeito a todas as dificuldades e
angústias dessa profissão e acrescenta-se ainda o fato de, muitas vezes, não
se sentir preparado para o exercício da docência universitária.

Cinema e literatura:
desvelando o estereótipo depreciativo
Precisamos compreender o que tem levado a esse processo de rejeição
da docência. A história da profissão docente está associada a diferentes ima-
gens, que oscilam entre a grandiosidade e a mitificação, de um lado, e o des-
prezo e depreciação de outro.

Essas imagens são de diferentes maneiras, construídas a partir das expe­


riências e vivências que se colocam diante de nós pelas mais diversas vias.
São modelos construídos socialmente que passam a configurar nosso modo
de ver a profissão.

Muitas vezes, ouvir de um aluno expressões como: “Nossa, você não parece
uma professora!”, remetemo-nos a uma reflexão sobre qual parâmetro esse
aluno usou para chegar à conclusão de que alguém parece ou não uma pro-

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Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional

fessora. Ele partiu de um modelo, uma representação. Essas representações


estão presentes na música, nas novelas, nos comerciais de TV, na literatura,
no cinema, entre outros.

O cinema e a literatura serão aqui usados como exemplos de construção e


divulgação de imagens acerca da profissão docente. Quantos personagens de
filmes ou livros que conhecemos são professores? Inúmeros. Podemos lem-
brar com facilidade da melodia que tocava ao fundo no filme Ao Mestre com
Carinho, que influenciou gerações inteiras e ainda é uma referência presente.

Em geral, no cinema e na literatura as imagens de professores são ma-


niqueístas: ora é o carrasco, autoritário, sarcástico, que se compraz das difi-
culdades de seus alunos; ora é o herói, salvador da humanidade, abnegado,
totalmente dedicado.

Esses filmes e livros contribuíram para que nós construíssemos imagens


acerca do que é ser um bom ou um mau professor. Como professores, nosso
imaginário é perpassado de imagens metafóricas,
[...] funcionando como elementos de adesão ou de rejeição, que configuram distintos
modelos profissionais. A linguagem metafórica está impregnada de projetos educativos,
sendo utilizada para demarcar posições e para definir atitudes face à profissão. Desde as
metáforas mais agressivas do domesticador ou do escultor, até as metáforas mais doces do
companheiro ou do jardineiro, eis um imenso universo de imagens que nos permite contar
todo o passado e todo o presente dos professores. (NÓVOA, 1995b, p.13)

O uso dessas metáforas contribui para a fixação de modelos a serem re-


produzidos, sendo comum ainda hoje se referir ao professor como “escultor”,
“jardineiro”, entre outras. Dom, sacerdócio, abnegação e vocação são caracte-
rísticas muito associadas à imagem do professor, sendo reforçadas pela litera-
tura e pelo cinema. Vamos observar alguns exemplos dessas manifestações.

Cecília Meireles, educadora, jornalista e poeta formou-se pela Escola


Normal, no Rio de Janeiro em 1917. Em 1923, ela escreve Criança Meu Amor1,
em que demonstra sua preocupação com a infância. Porém, em um dos seus
“Mandamentos”, destaca-se a figura da professora:
I – Devo amar a escola como se fosse meu lar.

II – Devo amar e respeitar a professora, como se fosse minha mãe.

III – Devo fazer dos meus colegas meus irmãos.

[...]

1
Criança Meu Amor é um livro de literatura infantil publicado em 1924, quando a autora tinha apenas 23 anos. O livro foi adotado nas escolas
do Rio de Janeiro, Pernambuco e Minas Gerais nas décadas de 1920 e 1930.

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Docência no Ensino Superior

II – Durante o dia todo, a professora pensa em mim, pensa no que sou, pensa no que hei
de ser.

Ela deseja ver-me instruído e bom; e para isso trabalha. Não conhece cansaço, porque não
tem tempo de descansar. Não conhece doenças, porque não pode adoecer. Quem zelaria
por nós?

Não conhece diversões. Que tempo de se divertir, se ela vive pensando em nós, se ela vive
para nós, unicamente para nós!

A professora é a minha proteção e o meu guia. Devo amá-la e respeitá-la como se fosse
também minha mãe. (MEIRELES, 1924, p. 68)

A professora apresentada neste trecho é abnegada, não tem vida própria,


é quase um ser superior, afastada das situações terrenas. Essa professora, to-
talmente entregue aos seus alunos, era cultuada nos “Mandamentos”.

Em seu livro Coração: diário de um aluno, Edmundo de Amicis (1997) des-


creve seus professores. Observemos a diferença ressaltada entre o professor
e a professora:
[...] o nosso professor é alto, sem barba, com os cabelos grisalhos e compridos, tem uma
ruga na testa; tem a voz grossa, e olha-nos fixamente, um depois do outro, como para ler-
-nos no íntimo; e nunca ri [...] É sempre a mesma, pequena, com o seu véu verde em volta
do chapéu, vestida modestamente, com um penteado simples, pois não lhe sobra muito
tempo para adornar-se; está um tanto mais descorada do que no ano passado, com alguns
cabelos brancos, e uma tosse que não a deixa nunca [...]. (AMICIS, 1997, p. 10, 17)

O professor é descrito como uma figura severa, sisuda, forte, enquanto a


professora aparece como pessoa frágil, de vestes modestas, além de adoen-
tada. São muitos os exemplos desta oposição de gêneros na construção de
imagens de professores.

Assim, as noções de sacerdócio, dom e abnegação anunciadas anterior-


mente estão presentes em uma memória sobre a profissão docente. Em
grande medida, isso pode ser explicado pelo viés religioso, pois a própria
terminologia advém da Igreja. Contudo, isso adquire um sentido ainda mais
forte quando se refere fundamentalmente às mulheres. Como explica o estu-
dioso da área:

A partir de então passam a ser associadas ao magistério características tidas como


“tipicamente femininas”: paciência, minuciosidade, afetividade, doação. Características
que, por sua vez, vão se articular à tradição religiosa da atividade docente, reforçando
ainda a ideia de que a docência deve ser percebida mais como um “sacerdócio” do que uma
profissão. Tudo foi muito conveniente para que se constituísse a imagem das professoras
como “trabalhadoras dóceis, dedicadas e pouco reivindicadoras”, o que serviria futuramente
para lhes dificultar a discussão de questões ligadas a salário, carreira, condições de trabalho
etc. (LOURO, 1997b, p. 450)

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Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional

Ainda hoje, o magistério é uma profissão majoritariamente ocupada por


mulheres, quadro que se reflete no cinema e na literatura que contam as his-
tórias de normalistas e mestres.

No cinema, observamos a ênfase do mito do professor-herói. Há alguns filmes,


em geral hollywoodianos, em que se narra a história de um professor chegando
a uma escola, em geral localizada em um gueto norte-americano, em que con-
vivem todos os estereótipos de exclusão social, tais como indivíduos negros e
hispânicos, a violência, a gravidez na adolescência, dentre outros. Ao longo
da narrativa, esses filmes mostram que a força e a determinação dos profes-
sores – que muitas vezes são rígidos – “salva” a todos, dando um novo rumo à
vida dos alunos. Cabe ressaltar que, se o filme retratar uma professora, muitas
vezes ela conquista a classe com a ternura. Ao final, depois de vencer todos os
contratempos, o professor sai vitorioso, um verdadeiro herói.

Contudo, ao sairmos das salas de cinema e nos depararmos com a reali-


dade, percebemos que as mudanças não ocorrem de forma mágica, como se
fosse apenas uma questão de determinação. O mito do professor-herói tem
colaborado para a construção de uma onipotência entre os professores, fa-
zendo-os acreditarem que são responsáveis por todas as mudanças da socie-
dade. Ao não conseguirem realizá-las, por causa das condições reais impostas
pelo exercício de sua própria profissão, eles desenvolvem um sentimento de
impotência e frustração.

O que é o burnout
A crise de identidade vivida atualmente pelos professores tem sido levada
a situações extremas, tal como o desenvolvimento da síndrome de burnout,
cada vez mais comum entre esses profissionais. Esse distúrbio se caracteriza
pela desmotivação, ou melhor, pela “perda do brilho” e pela desistência pro-
fissional, como veremos a seguir.

A síndrome do burnout
(CANTONE, 2006)

O termo burnout é uma composição de burn = “queima” e out = “exte-


rior”, sugerindo assim que a pessoa com esse tipo de estresse consome-
-se física e emocionalmente, passando a apresentar um comportamento
agressivo e irritadiço.

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Docência no Ensino Superior

Tal síndrome se refere a um tipo de estresse ocupacional e institucional


com predileção para profissionais que mantêm uma relação constante e
direta com outras pessoas, principalmente quando esta atividade é con-
siderada de ajuda (médicos, enfermeiros, professores).

A síndrome de burnout é definida como uma reação à tensão emocio-


nal crônica gerada a partir do contato direto, excessivo e estressante com
o trabalho. É caracterizada pela ausência de motivação ou desinteresse;
mal-estar interno ou insatisfação ocupacional que parece prejudicar, em
maior ou menor grau, a atuação profissional de alguma categoria ou
grupo profissional.

É apresentada como formas de condutas negativas, como por exem-


plo, a deterioração do rendimento, a perda de responsabilidade, atitudes
passivo-agressivas com os outros e perda da motivação, onde se relacio-
nariam tanto fatores internos, na forma de valores individuais e traços de
personalidade, como fatores externos, na forma das estruturas organiza-
cionais, ocupacionais e grupais. Podemos dizer que é uma resposta ao es-
tresse ocupacional crônico. A síndrome de burnout pode trazer sérias con-
sequências não só do ponto de vista pessoal bem como institucional; é o
caso do absenteísmo, da diminuição do nível de satisfação profissional,
aumento das condutas de risco, inconstância de empregos e repercussões
na esfera familiar.

Alguns autores a definem como uma das consequências mais marcan-


tes do estresse profissional, onde se destacam a exaustão emocional, ava-
liação negativa de si mesmo, depressão e insensibilidade com relação a
quase tudo e todos (até como defesa emocional).

Inicialmente, a síndrome foi observada em profissionais que estavam


predominantemente em contato interpessoal mais exigente, tais como
médicos, psicanalistas, carcereiros, assistentes sociais, comerciários,
professores, atendentes públicos, enfermeiros, funcionários de departa-
mento pessoal, telemarketing e bombeiros. Atualmente as observações
já se estendem a todos profissionais que interagem de forma ativa com
pessoas, que cuidam e/ou solucionam problemas de outras pessoas, que
obedecem técnicas e métodos mais exigentes, fazendo parte de organi-
zações de trabalho submetidas a avaliações.

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Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional

Entre os fatores aparentemente associados ao desenvolvimento da sín-


drome de burnout está a pouca autonomia no desempenho profissional,
problemas de relacionamento com as chefias, problemas de relaciona-
mento com colegas ou clientes, conflito entre trabalho e família, senti-
mento de desqualificação e falta de cooperação da equipe.

A síndrome de burnout se difere do estresse; envolve atitudes e condu-


tas negativas com relação aos usuários, clientes, organização e trabalho,
enquanto o estresse apareceria mais como um esgotamento pessoal com
interferência na vida do sujeito e não necessariamente na sua relação
com o trabalho.

Ao longo do desenvolvimento da história da profissão, temos convivido


com inúmeros paradoxos. De um lado, discursos que glorificam a profissão,
sempre bem representados no cinema. Em contrapartida, encontramos ima-
gens depreciativas que apresentam o professor como o bode expiatório de
todos os problemas educacionais. Esse excesso de missão, aliado às inúmeras
desconfianças em relação ao docente, leva muitos professores a desenvolve-
rem essa doença profissional. Isso exige do docente um momento de refle-
xão sobre o seu futuro profissional.

Memória, autobiografia
e histórias de vida
Como uma possibilidade concreta de pensar sobre a profissão docente,
alguns teóricos têm desenvolvido o método autobiográfico de formação con-
tinuada que consiste em refletir sobre o processo pelo qual ele se tornou pro-
fessor, ou seja, sobre o desenvolvimento de seu próprio processo identitário.

O professor é estimulado a pensar sobre a sua trajetória escolar como


aluno e posteriormente como professor, buscando suas influências, identi-
ficando suas escolhas e refletindo sobre elas. A questão fundadora deve ser
“Como eu me tornei o professor que eu sou hoje?”. Essa questão o remete a
outra, anterior: “Que professor eu sou?”

Para responder a tais questões, ele deve refletir sobre suas práticas, a in-
tencionalidade do ato educativo, seus valores, suas crenças, ou seja: o seu de-
senvolvimento profissional está associado ao seu desenvolvimento pessoal.

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Docência no Ensino Superior

Esse movimento ganhou força no Brasil a partir dos anos de 1990, muito
influenciado por produções europeias como a do destacado educador portu-
guês Antonio Nóvoa (1995b). O uso que esse autor faz de algumas narrativas
de professores e de certos relatos autobiográficos permite que se compreen-
da como o professor pode construir sua autoimagem influenciado pelos anos
de exercício de magistério. Como afirma este autor, essa espécie de balan-
ço deve ser feita por todos os professores para que compreendam sob uma
perspectiva mais ampla a lógica que há subentendida em todo seu processo
de formação.

Portanto, em sua obra, Nóvoa (1995b) nos convida a pensar sobre as nossas
próprias questões e propõe a construção de um profissional reflexivo, que
rejeita as metáforas identitárias a que muitos docentes se submetem. Para
descobrirem quem realmente são, os professores não devem buscar amparo
em um discurso de valorização profissional de outras épocas. De acordo com
as palavras do educador português:
A defesa de uma maior autonomia do professorado não se baseia numa qualquer visão
nostálgica da profissão docente, isto é, numa tentativa de reconquista de um qualquer
“paraíso perdido”. Bem pelo contrário, esta defesa é uma aposta de futuro, que anuncia o
fim de um ciclo na história da profissão docente, um ciclo marcado pela subordinação do
professorado a outras instâncias e a outros grupos sociais. (NÓVOA, 1991, p. 528)

De acordo com essa passagem, nota-se que para a construção da identi-


dade docente não basta ir em busca do suposto “paraíso perdido”, mas sim
identificar em um passado recente um momento de valorização profissional.
Para o autor, não devemos separar o eu pessoal do eu profissional. Devemos
sim observar como eles se influenciam mutuamente: “diz-me como ensinas,
dir-te-ei quem és”. E vice-versa.

Podemos dizer então que o método autobiográfico é:

instrumento de reconstrução da identidade individual;

lugar de lutas e conflitos;

maneira de ser e estar na profissão;

construção da memória social da categoria;

instrumento de análise e reflexão;

proposta de intervenção para rever a prática docente.

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Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional

Ao trabalharmos com relatos pessoais escritos por professores ao pensa-


rem sobre sua trajetória escolar e refletir sobre as influências recebidas, en-
contramos alguns traços em comum. Vejamos abaixo.

Aspectos positivos:

leva a compreender a matéria;

amizade;

extrapola o ensinar conteúdos;

confiança;

exemplo;

influência no curso universitário.

Aspectos negativos:

traumas;

humilhações;

não ensina bem;

gosta ou não gosta da disciplina.

Observamos assim que nossas experiências escolares nos marcam profun-


damente como pessoas e como profissionais. Pensar sobre essas questões
pode ser um bom caminho para a superação da tão propalada crise de iden-
tidade docente.

Para finalizar, vamos apreciar a leitura de uma reflexão tão pessoal escrita
por Paulo Freire, renomado educador brasileiro, que tão bem ilustra o método
autobiográfico aqui discutido. O texto faz parte de uma coletânea de peque-
nos textos do autor, escritos no decorrer de 1992 ou proferidos em palestras
e publicados sob a forma de livro, cujo título é Política e Educação (FREIRE,
2001). São textos reflexivos, que retratam a experiência política-pedagógica
do autor.

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Docência no Ensino Superior

Texto complementar

Ninguém nasce feito: é experimentando-nos


no mundo que nós nos fazemos
Ninguém nasce feito. Vamos nos fazendo aos poucos,
na prática social de que tomamos parte
(FREIRE, 2001, p. 79)

Não nasci professor ou marcado para sê-lo, embora minha infância e


adolescência tenham estado sempre cheias de “sonhos” em que rara vez
me vi encarnando figura que não fosse a de professor.

“Brinquei” tanto de professor na adolescência que, ao dar as primeiras


aulas no curso então chamado de admissão no Colégio Osvaldo Cruz do
Recife, nos anos 1940, não me era fácil distinguir o professor do imaginário
do professor do mundo real. E era feliz em ambos os mundos. Feliz quando
puramente sonhava dando aula e feliz quando, de fato, ensinava.

Eu tinha, na verdade, desde menino, um certo gosto docente, que


jamais se desfez em mim. Um gosto de ensinar e de aprender que me
empurrava à prática de ensinar que, por sua vez, veio dando forma e sen-
tido àquele gosto. Umas dúvidas, umas inquietações, uma certeza de que
as coisas estão sempre se fazendo e se refazendo e, em lugar de inseguro,
me sentia firme na compreensão que, em mim, crescia de que a gente
não é, de que a gente está sendo.

Às vezes, ou quase sempre, lamentavelmente, quando pensamos ou


nos perguntamos sobre a nossa trajetória profissional, o centro exclusivo
das referências está nos cursos realizados, na formação acadêmica e na
experiência vivida na área da profissão. Fica de fora como algo sem im-
portância a nossa presença no mundo.

É como se a atividade profissional dos homens e das mulheres não ti-


vesse nada que ver com suas experiências de menino, de jovem, com
seus desejos, com seus sonhos, com seu bem-querer ao mundo ou com
seu desamor à vida. Com sua alegria ou com seu mal-estar na passagem
dos dias e dos anos.

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Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional

Na verdade, não me é possível separar o que há em mim de profissional


do que venho sendo como homem. Do que estive sendo como menino
do Recife, nascido na década de 1920, em família de classe média, acos-
sada pela crise de 1929. Menino cedo desafiado pelas injustiças sociais
como cedo tomando-se de raiva contra preconceitos raciais e de classe a
que juntaria mais tarde outra raiva, a raiva dos preconceitos em torno do
sexo e da mulher.

Como não perceber, por exemplo, que de minha formação profis­sional


faz parte bom tempo de minha adolescência em Jaboatão, perto do
Recife, em que não apenas joguei futebol com meninos de córregos e de
morros, meninos das chamadas classes menos afortunadas, mas também
com eles aprendi o que significava comer pouco ou nada comer.

Atividades
1. Segundo Antonio Nóvoa (1995b), os professores vivem uma crise de
identidade. Explique essa afirmação.

2. O que caracteriza um professor universitário? Por que ele goza de um


status profissional diferenciado em relação ao professor da educação
básica? Pense sobre estas questões e elabore uma breve reflexão so-
bre o assunto.

23
Docência no Ensino Superior

3. Relato autobiográfico: Pense no percurso de sua escolaridade. Pense em


um professor marcante, positiva ou negativamente, e escreva sobre ele.

Nesta atividade, você deve escrever um breve relato sobre sua traje-
tória escolar e refletir sobre as influências que recebeu e as marcas
deixadas na sua vida pessoal e profissional.

Dicas de estudo
Esses três filmes narram histórias docentes, a partir dos quais você poderá
compreender melhor o mito do professor-herói abordado nesta aula.

SOCIEDADE dos Poetas Mortos. Direção de Peter Weir. Abril Vídeo. EUA,
1989. (129min.).

MENTES perigosas. Direção de John N. Smith. EUA, 1995. (99min.).

O PREÇO de um desafio. Direção de Ramon Menendez. EUA, 1988.


(102min.).

24
Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional

25
Docência no
Ensino Superior

Maria Heloísa Aguiar da Silva


Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças
que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende
ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Quem ensina ensina alguma coisa a alguém.
Por isso é que, do ponto de vista gramatical, o verbo ensinar é um verbo transitivo-relativo.
Verbo que pede um objeto direto – alguma coisa – e um objeto indireto – a alguém.

Paulo Freire

Ação docente e a
construção de competências
Independentemente de todas as representações sobre a profissão docente,
podemos afirmar que uma competência fundamental para o professor é saber
ensinar. Logo, isto é algo que se aprende e esse aprendizado se dá nos cursos
de formação docente e também no exercício profissional. Saímos dos cursos
universitários com a certificação de estarmos qualificados profissionalmente.
Contudo, é no exercício da docência, na prática da sala de aula, que nos torna-
mos professores. Estamos constantemente nos fazendo e refazendo.

Torna-se imperioso, portanto, pensar sobre esse processo. Refletir sobre


as competências que precisamos desenvolver para tornar a nossa ação pe-
dagógica mais eficiente, assim possibilitando aos nossos alunos um ensino
de qualidade.

A epígrafe desta aula nos apresenta importantes elementos para uma re-
flexão inicial. “Não há docência sem discência”, ensinou-nos Paulo Freire. A
relação entre ensino e aprendizagem é estabelecida sempre entre sujeitos,
ou seja, pessoas dotadas de vontade, que interagem e participam ativamen-
te do processo. Quando eu ensino, também aprendo; e quando aprendo,
também ensino. O aluno não é um objeto, não é um ser passivo no qual o
Docência no Ensino Superior

professor deposita todo seu conhecimento: ele é um sujeito que quer ou não
quer aprender.

Assim sendo, temos de aprender a conviver, desde o início, com o sen-


timento de insucesso, tanto nosso como o de nossos alunos. Freud costu-
mava dizer que o magistério é uma profissão impossível, pois se exprime
na influência de um sujeito sobre outra pessoa. Perrenoud (1997) nos leva
a refletir sobre a complexidade dessa profissão, uma vez que “nas profissões
que trabalham com pessoas o sucesso nunca está assegurado, e é necessário,
pelo contrário, aceitar uma fração importante de semifracassos ou fracassos
graves” (PERRENOUD, 1997, p. 176).

Portanto, podemos perceber o grau de exigência do magistério para com


aquele que opte por exercê-lo – exigente de uma formação rigorosa e contí-
nua e de um compromisso ético, visto que essa é uma profissão cujo objeto
de trabalho é um ser humano em desenvolvimento.

A formação de professores deve assumir esses desafios e desenvolver um


processo formativo atualizado, flexível, que forneça ferramentas para que o
futuro profissional saiba lidar com situações complexas e imprevistas:
Ensinar significa, por vezes, reagir “com grande precisão” perante situações imprevistas e
“sair delas” sem muitos prejuízos. Significa no melhor dos casos tirar partido do imprevisto
para atingir o fim desejado. Ensinar significa agir rapidamente, com urgência, face a uma
situação complexa, mal conhecida. (PERRENOUD, 1997, p. 107)

Competências para ensinar:


desafios profissionais
Se a educação dos seres humanos pouco a pouco tornou-se mais complexa, o mesmo
deverá acontecer à profissão docente.

Francisco Imbernón

Ao findar o século XX, alguns desafios se colocaram para a escola. Falava-


-se em novas maneiras de ensinar e aprender, exigindo-se uma reconfigura-
ção do papel da escola e, por consequência, do professor.

O século XXI herdou esse desafio e o aprofundou. Esse movimento é pro-


vocado pelo acelerado desenvolvimento tecnológico que nos coloca diante
de um volume de informações nunca visto antes. Não há mais espaço para a
antiga imagem do professor como dono do saber.

28
Docência no Ensino Superior

É nesse novo cenário que emerge a importante discussão sobre a cons-


trução de competências: “afinal, vai-se à escola para adquirir conhecimentos,
ou para desenvolver competências?” (PERRENOUD, 1999, p. 7). Para ambas
as coisas. Para desenvolver competências, ancoramo-nos em conhecimentos.
Então, o que muda, afinal?

A construção de competências exige uma nova postura diante do conhe-


cimento, assim modificando a prática educativa. Da questão “que aluno quero
formar?”, chegamos à questão “que professor forma esse aluno?”.

O conceito de competência adquire força e importância no Brasil a partir


da década de 1990, no bojo das reformas educacionais. Há uma vasta litera-
tura a esse respeito, não se limitando apenas à área educacional, pois esse
debate está presente também nas empresas. Desse modo, devemos enten-
der o significado desse conceito:
São múltiplos os significados da noção de competência. Eu a definirei aqui como sendo
uma capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em
conhecimentos, mas sem limitar-se a eles. Para enfrentar uma situação da melhor maneira
possível, deve-se, via de regra, pôr em ação e em sinergia vários recursos cognitivos
complementares, entre os quais estão os conhecimentos. (PERRENOUD, 1999, p.7)

Ao agirmos eficazmente na solução de uma situação complexa, mobiliza-


mos uma série de competências. Para tanto, recorremos a diversos recursos,
tais como conhecimentos, saberes e experiências anteriores. A vida nos de-
safia a agir dessa maneira. Não podemos interromper nossos afazeres a todo
instante para buscar respostas nos livros, por exemplo.

Abordagem por competência


De uma forma geral, a escola ensina de maneira fragmentária e nós absor-
vemos os conteúdos também desse modo, visto que muitas disciplinas não
dialogam entre si. A proposta pedagógica da abordagem por competências
questiona o modo tradicional de ensinar, pois caso a escola ensine seu aluno
apenas a memorizar e repetir conhecimentos, esse jovem não conseguirá
apresentar respostas novas diante de situações não previstas no modelo, ou
seja, o conhecimento escolar corre o risco de ser necessário apenas na escola,
na realização das avaliações.

Portanto, podemos dizer de uma maneira geral que a abordagem por


competências pretende favorecer o desenvolvimento de uma aprendi-
zagem significativa que tenha uma correspondência com a realidade,
e para isso exige o desenvolvimento da capacidade de resolução de

29
Docência no Ensino Superior

problemas, de invenção, pois “toda normalização da resposta provoca um


enfraquecimento da capacidade de ação e reação em uma situação com-
plexa” (PERRENOUD, 2002, p. 11).

Competências docente
Todo esse processo de inovação pedagógica acaba por se refletir na ativi-
dade do professor, pois desse profissional será exigido o papel que vai além
do mero transmissor de conhecimentos: ele precisará dar subsídios aos seus
alunos para que desenvolvam suas respectivas competências.

Já é sabido pelos professores que, para que possam bem desempenhar


sua função, é necessário que possuam, pelo menos, três competências:

domínio dos saberes a serem ensinados;

domínio teórico e prático dos processos de ensino e aprendizagem;

capacidade para gerir situações complexas.

No entanto, Perrenoud (1996) nos apresenta um referencial com dez novas


competências que devem contribuir para redesenhar a ação docente. O autor
tomou como base um referencial adotado em Genebra para a formação de
professores no ano de 1996. Esse trabalho transformou-se no livro Dez Novas
Competências para Ensinar: convite à viagem. Nessa obra, Perrenoud dedica
um capítulo a cada competência, explicando-as em profundidade. São elas:

organizar e dirigir situações de aprendizagem;

administrar a progressão das aprendizagens;

conceber e fazer evoluir os dispositivos de diferenciação;

envolver os alunos em sua aprendizagem e em seu trabalho;

trabalhar em equipe;

participar da administração da escola;

informar e envolver os pais;

utilizar novas tecnologias;

enfrentar os deveres e os dilemas éticos da profissão;

administrar sua própria formação continuada.


30
Docência no Ensino Superior

Cada competência aqui apresentada se desdobra em outras, ampliando


esse quadro. Devemos entender esse esforço de Perrenoud (1999) como uma
proposta de reorientação da formação de professores, de forma a sempre
inovarem sua ação pedagógica, formando alunos com cabeças bem-feitas e
não simplesmente com cabeças bem cheias de conteúdo, sem saberem refle-
tir acerca do mundo ao redor.

Para compreendermos melhor as novas competências docentes (PER-


RENOUD, 1999), nesta aula optamos por dividi-las em três categorias:

competências relativas ao cotidiano da sala de aula (do 1.o ao 4.o item


da lista);

competências relativas à gestão (do 5.o ao 7.o item);

competências relativas à formação continuada do professor (do 8.o ao


10.o item).

Competências relativas ao cotidiano


da sala de aula
No primeiro bloco, o autor apresenta novos sentidos para as ações coti-
dianas do professor, mostrando toda a complexidade do processo de ensino
e aprendizagem. Segundo o autor, a aula deve extrapolar os limites físicos
da sala e o professor deve ser capaz de gerir situações de aprendizagem, uma
vez que a aula só se concretiza na sua relação com a aprendizagem. Isso sig-
nifica dizer que ser professor não é “dar aulas”, mas sim propiciar situações de
aprendizagem aos alunos.

A avaliação também é vista de outra maneira por Perrenoud (1997) na


medida em que vai acontecer de maneira processual, cabendo ao professor
administrar a progressão das aprendizagens e não medir a quantidade de co-
nhecimento que o aluno acumulou.

A ação pedagógica deve ocorrer em um ambiente bastante heterogêneo. A


sala de aula é um espaço marcado pela diversidade. Nesse sentido, a postura
do professor deve ser inclusiva, favorecendo a convivência e o respeito mútuo.

Como decorrência dessas questões, deve-se buscar a formação do aluno


para a autonomia, possibilitando-lhe o desenvolvimento de projetos pes­
soais. Para tanto, é necessário tratá-lo como sujeito da sua aprendizagem.

31
Docência no Ensino Superior

Competências relativas à gestão


A partir desse grupo de competências, pode-se observar a ênfase de Per-
renoud (1997) no papel do docente como gestor, indicando a necessidade
desse profissional desenvolver competências que vão além da sala de aula, mas
que, no entanto, repercutem diretamente nas atividades ali desenvolvidas.

O trabalho docente deve ser sempre coletivo, agrupando professores e


demais participantes da equipe escolar, assim como a comunidade que é ser-
vida pela escola. Portanto, devemos desenvolver competências de organiza-
ção, coordenação, mediação e mobilização, entre outras.

Competências relativas
à formação continuada do professor
Dessas competências, é importante destacar aqui a necessidade de o do-
cente refletir continuamente sobre os desafios postos ao seu exercício pro-
fissional. Essas competências passam pelas questões das novas tecnologias
como ferramenta fundamental do trabalho pedagógico; pelos dilemas éticos
da profissão, visto que trabalhamos com seres humanos em formação; e
chegam à necessidade e à responsabilidade de professor administrar a sua
própria formação continuada.

Formação inicial e continuada:


a busca da autonomia intelectual
Não basta que uma peça de vestuário esteja bem cortada, que tenha cores bonitas e um
tecido agradável. É necessário que resista à lavagem!

A primeira aula pode “lavar” o professor recentemente saído da escola normal de todas
as suas ilusões e ambições. Isso significa que a sua formação não teve em conta as condições
efetivas da prática, que lhe falamos de uma escola que não existe.

Philippe Perrenoud

As inovações educativas deste início de século exigem a formação de um


profissional consciente de seu papel, capaz de gerir situações complexas. Isto
significa dizer que a formação de professores é hoje um grande desafio para
a educação de qualidade.

32
Docência no Ensino Superior

Para compreendermos melhor o tema de formação de professores, traba-


lharemos com dois conceitos que se complementam: formação inicial e for-
mação continuada.

A formação inicial é aquela realizada no Ensino Superior, fornecendo ao


aluno – futuro professor – as bases para o seu exercício profissional. Trata-se
de um momento importante do desenvolvimento desses futuros profes­sores,
pois é nesse tempo em que adquirem os primeiros conhecimentos que cons-
tituirão a base para o exercício da docência.

Um equívoco facilmente cometido nos cursos de formação inicial dos pro-


fessores é a tentativa de passar ao aluno todo o conhecimento considerado
necessário para o bom desempenho da docência. Contudo, isso é impossível,
pois uma parcela desse conhecimento só será desenvolvida na prática, no
exercício cotidiano da docência, na sala de aula real, com alunos reais.

Devemos então pensar com cuidado na frase de Perrenoud (1997) que


afirma que o primeiro dia de aula pode “nos lavar” de todos nossos sonhos e
expectativas. Sendo um momento crucial no desenvolvimento profis­sional do
docente, a formação inicial deve ser pensada com cautela, deve ser organizada
de modo mais realista, articulando teoria e prática – que são indissociáveis.

Uma vez que a formação inicial não é absoluta, completa, ela deve se or-
ganizar a partir de escolhas conscientes, definindo prioridades na formação
dos professores. Deve basear-se em situações cotidianas e refletir sobre as
angústias e anseios comuns ao professor iniciante.

A formação de professores tem recebido um grande destaque entre os


estudiosos da educação e planejadores das políticas públicas em educação.
Boa parte dos problemas educacionais é interpretada como resultado da má
qualidade na formação docente, fato destacado por Perrenoud:
Aparentemente, quase todas as críticas do sistema escolar são concentradas no mesmo
bode expiatório: a formação de professores, que é considerada curta, inadequada,
inadaptada, insuficiente, antiquada. Mas ela não merece nem este excesso de honra, nem
esta indignidade! (PERRENOUD, 1997, p. 94 [grifo do autor])

Devemos considerar a importância do debate em torno da formação de pro-


fessores, contudo sem identificá-lo como a solução para todos os problemas
educacionais. A formação deve ser repensada e reorientada à sua medida.

33
Docência no Ensino Superior

No Ensino Superior, esse problema torna-se mais candente na medida em


que o professor universitário pertence a, no mínimo, duas categorias profis-
sionais. Por exemplo: ele pode ser um engenheiro e um professor universitá-
rio do curso de engenharia.

No entanto, a formação técnica e a experiência como engenheiro não são os


únicos elementos que tornam o dito profissional um professor universitário. Ele
também precisa contar com uma formação pedagógica que lhe permita ensi-
nar de uma maneira eficaz, sem prejudicar a aprendizagem dos seus alunos.

É comum, por parte dos alunos, críticas evidenciando a deficitária forma-


ção pedagógica do professor universitário. Frases como: “ele é um ótimo ad-
ministrador, mas não sabe ensinar” – são ouvidas quando se busca conhecer
as principais queixas dos alunos universitários.

Isso nos coloca diante de um grande desafio que é a formação continuada


dos professores, incluindo os universitários, que geralmente começam a le-
cionar após terem passado pela pós-graduação. Sabe-se que pouco chega a
ser ensinado sobre a ação docente a esse profissional, que acaba de se tornar
um pós-graduado e que está em vias de encarar pela primeira vez o ambiente
de sala de aula como professor acadêmico.

A formação pedagógica tardia desse profissional decorre de que o próprio


foco da pós-graduação – e, muitas vezes, de todo o seu curso de formação –
não está voltado para a ação educativo-formativa. Ele não visa formar outros
professores que possam transmitir o conhecimento da área. O foco de cursos
que não propriamente o das licenciaturas é o de, transmitir o conteúdo para
que seja aplicado na prática.

Como uma alternativa àqueles que fizeram tais cursos e desejam lecionar
o conhecimento que apreenderam ao longo de sua trajetória acadêmica, há
a formação continuada de docentes, um importante estágio de desenvolvi-
mento profissional.

Permite aos diferentes professores articularem os conhecimentos básicos


advindos da sua formação inicial com o exercício da docência. Por isso, não
basta ser um excelente cardiologista: é preciso saber ensinar esses conheci-
mentos aos seus alunos, futuros cardiologistas.

Devemos entender que a formação continuada se dá a partir do exercício


profissional, refletindo sobre ele. Está baseada essencialmente nos seguin-
tes pressupostos:

34
Docência no Ensino Superior

reflexão sobre a prática;

análise das práticas, gestos cotidianos da profissão;

relação entre teoria e prática;

pensar em um saber que emerge da prática docente;

aprender com os pares de modo colaborativo.

Prática reflexiva
e a profissionalização docente
Se queremos um aluno crítico reflexivo, é preciso um professor crítico reflexivo.

José Carlos Libâneo

Muito se tem falado sobre os desafios da educação para o século XXI. Em


transformação acelerada, a sociedade exige um indivíduo capaz de refletir
sobre suas ações, deixando de agir mecanicamente, como um autômato. Es-
pera-se que essa capacidade para a reflexão seja desenvolvida na escola, de
modo que forme indivíduos autônomos.

No Ensino Superior, esse desafio é apresentado como a necessidade de


formar profissionais competentes, capazes de gerir situações complexas e
apresentar respostas inovadoras. Assim sendo, o desafio de formar esse novo
profissional implica a reorganização dos procedimentos de ensino e apren-
dizagem, bem como um repensar da formação docente, pois – como nos
alertou Libâneo – um professor que não reflete sobre sua ação tampouco
formará um aluno capaz de refletir.

Formar professores para a reflexão significa questionar modelos de forma-


ção docente ancorados no treinamento ou na simples assimilação de conhe-
cimentos novos, pois isso desvaloriza a experiência docente uma vez que não
concebe o mestre como um produtor de conhecimento. Ele constrói novos co-
nhecimentos cotidianamente, sendo seu trabalho intelectual e criativo. Assim,
para que o professor possa contribuir para o desenvolvimento da autonomia
intelectual de seus alunos, é necessário que seja reconhecido como tal.

Ademais, os cursos tradicionais de formação de professores desconside-


ravam a continuidade do processo formativo, não valorizando a experiência
docente. O conhecimento acumulado pelos profissionais deveria ser apenas
renovado ou substituído.

35
Docência no Ensino Superior

A prática reflexiva é uma postura a ser desenvolvida, alçando os profes­


sores ao papel de produtores de conhecimento e não de meros executores:
A noção de professor reflexivo baseia-se na consciência da capacidade de pensamento e
reflexão que caracteriza o ser humano como criativo e não como mero reprodutor de ideias
e práticas que lhe são exteriores. É central, nesta conceitualização, a noção do profissional
como uma pessoa que nas situações profissionais, tantas vezes incertas e imprevistas, atua
de forma inteligente e flexível, situada e reativa. (ALARCÃO, 2004, p. 41)

Somente o professor capaz de refletir sobre suas ações poderá formar


um aluno reflexivo. Esse processo valoriza a prática de sala de aula como
um espaço de construção de conhecimento – sem, contudo, desmerecer
a teoria.

Vale notar que a atividade de reflexão deve ser desenvolvida desde a for-
mação inicial do docente – a qual deve, portanto, fornecer instrumentos ao
indivíduo para que continue sua aprendizagem mesmo após ter terminado
seus cursos na universidade.

É necessário pensar em outras maneiras de formação continuada, que não


se restrinjam a cursos. A realização de grupos de estudo nos locais de traba-
lho, o desenvolvimento de projetos, as reuniões pedagógicas, entre outros
exemplos, demonstram que é possível formar-se continuamente refletindo
sobre a própria prática profissional.

Por isso, faz-se necessário que a escola propicie um ambiente reflexivo e


pense sobre si mesma e sobre sua missão, tornando-se também uma institui-
ção que reflita sobre seu papel e função:
O professor não pode agir isoladamente na sua escola. É neste local, o seu local de trabalho,
que ele, com os outros, seus colegas, constrói a profissionalidade docente. Mas se a vida
dos professores tem o seu contexto próprio, a escola, esta tem de ser organizada de modo
a criar condições de reflexividade individuais e coletivas. A escola tem de se pensar a si
própria, na sua missão e no modo como se organiza para a cumprir. Tem, também ela, de
ser reflexiva. (ALARCÃO, 2004, p. 44)

Assim, podemos afirmar que a prática reflexiva não deve ser episódica e
nem casual, mas um método permanente que valorize os saberes emergidos
da prática pedagógica.

Observa-se então um caminho a ser trilhado para que se alcance uma for-
mação de excelência para o aluno. O aluno reflexivo será formado por um
professor reflexivo em uma escola reflexiva. Esta é, portanto, uma formação
que busca a coerência ao ser expressa em ações conjuntas e coordenadas.
O resultado final de tal processo deve ser uma mudança na aprendizagem
do aluno, mas para que isso ocorra é fundamental que todos os envolvidos
36
Docência no Ensino Superior

pensem sobre sua missão. Segundo Isabel Alarcão (2004, p. 79), ou a “escola é
uma comunidade reflexiva, ou então, é um edifício sem alma”. Assim, o papel
da instituição educativa é colocado em evidência: é ela que vai propiciar ou
não espaços para a reflexão.

Texto complementar

A prática reflexiva
como domínio da complexidade
(PERRENOUD, 2007)

O conceito é conhecido desde as obras de Schön. Entretanto, apesar


dos trabalhos mais centrados na formação de professores, persiste uma
confusão entre:

por um lado, a prática reflexiva espontânea de todo ser humano


que enfrenta um obstáculo, um problema, uma decisão a tomar,
um fracasso ou qualquer resistência do real ao seu pensamento ou
a sua ação;

por outro lado, prática reflexiva metódica e coletiva que os profissionais


usam durante o tempo em que os objetivos postos não são atingidos.

Um sentimento de fracasso, de impotência, de desconforto, de sofri-


mento desencadeia uma reflexão espontânea para todo ser humano e
também para o profissional. Mas este último também reflete quando
está bem, uma vez que haver-se com situações desconfortáveis não é seu
único motor; sua reflexão é alimentada também pela vontade de fazer
seu trabalho de modo mais eficaz e ao mesmo tempo o mais próximo
possível de sua ética.

Num “ofício impossível”, os objetivos raramente são atingidos. É pouco


frequente que todos os alunos de uma classe ou de um estabelecimento
dominem perfeitamente os saberes e as competências visados. Por isso,
no ensino, a prática reflexiva sem ser permanente não poderia se limi-
tar à resolução das crises, de problemas ou de dilemas atrozes. É melhor
imaginá-la como um funcionamento estável, necessário em “velocidade
de cruzeiro” e vital em casos de “turbulência”.

37
Docência no Ensino Superior

Outra diferença muito importante: um profissional reflexivo aceita fazer


parte do problema. Reflete sobre sua própria relação com o saber, com
as pessoas, o poder, as instituições, as tecnologias, o tempo que passa, a
cooperação, tanto quanto sobre o modo de superar as limitações ou de
tornar seus gestos técnicos mais eficazes.

Enfim, uma prática reflexiva metódica inscreve-se no tempo de traba-


lho, como uma rotina. Não uma rotina sonífera; uma rotina paradoxal, um
estado de alerta permanente. Por isso, ela tem necessidade de disciplina
e de métodos para observar, memorizar, escrever, analisar após compre-
ender, escolher opções novas.

Pode-se acrescentar que uma prática reflexiva profissional jamais é inteira-


mente solitária. Ela se apoia em conversas informais, momentos organizados
de profissionalização interativa em práticas de feedback metódico, de análi-
se do trabalho, de reflexão sobre sua qualidade, de avaliação do que se faz. A
prática reflexiva até pode ser solitária, mas ela passa também pelos grupos,
apela para especialistas externos, insere-se em redes, isto é, apoia-se sobre
formações, oferecendo os instrumentos ou as bases teóricas para melhor
compreender os processos em jogo e melhor compreender a si mesmo.

Por que seria necessário inscrever a atitude reflexiva na identidade pro-


fissional dos professores? Responderei inicialmente: para liberar os pro-
fissionais do trabalho prescrito, para convidá-los a construir suas próprias
iniciativas, em função dos alunos, do campo, do meio ambiente, das par-
cerias e cooperações possíveis, dos recursos e das limitações próprias do
estabelecimento, dos obstáculos encontrados ou previsíveis.

Admite-se, certamente, que a parte do trabalho prescrito decresce, em


princípio, num processo de profissionalização. Resta compreender por que
essa parte deveria decrescer no ofício do professor. Uma parte dos sistemas
educativos ainda aposta numa forma de proletarização do ofício do profes-
sor classificando os professores no que a Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE) chamou de “prestação de serviços”.

Podem-se enunciar três argumentos em favor da profissionalização.

As condições e os contextos de ensino evoluem cada vez mais de-


pressa, fazendo com que seja impossível viver com as aquisições
de uma formação inicial que rapidamente se torna obsoleta e que

38
Docência no Ensino Superior

seja mais realista imaginar que uma formação contínua bem pensa-
da dará novas receitas quando as antigas “não funcionarem mais”;
o professor deve tornar-se alguém que concebe sua própria prática
para enfrentar eficazmente a variabilidade e a transformação de suas
condições de trabalho.

Se se quer que todos alcancem os objetivos, não basta mais ensinar, é


preciso fazer com que cada um aprenda encontrando o processo apro-
priado. Esse ensino “sob medida” está além de todas as prescrições.

As competências profissionais são cada vez mais coletivas no âmbito de


uma equipe ou de um estabelecimento, o que requer sólidas compe-
tências de comunicação e de conciliação, logo, de regulação reflexiva.

A atitude e a competência reflexivas apresentam várias facetas.

Na ação, a reflexão permite desvincular-se da planificação inicial, corrigi-


la constantemente, compreender o que acarreta problemas, descentrali-
zar-se, regular o processo em curso sem se sentir ligado a procedimentos
prontos, por exemplo, para apreciar um erro ou punir uma indisciplina.

A posteriori, a reflexão permite analisar mais tranquilamente os acon-


tecimentos, construir saberes que cobrem situações comparáveis que
podem ocorrer.

Num ofício em que os problemas são recorrentes, a reflexão se desen-


volve também antes da ação, não somente para planificar e construir os
cenários, mas também para preparar o professor para acolher os impre-
vistos e guardar maior lucidez.

Talvez caiba sublinhar a forte independência desses diversos momen-


tos. A “reflexão na ação” tem claramente por função:

construir a memória das observações, questões e problemas que são


impossíveis de serem examinados em campo;

preparar uma reflexão mais distanciada, do profissional, sobre o seu


próprio sistema de ação e seu habitus.

Sem entrar aqui na questão dos processos de formação pela prática re-
flexiva (estudo de caso, análise de práticas, discussões, escrita clínica, por
exemplo), cabe sublinhar que ela exige vários tipos de capitais:

39
Docência no Ensino Superior

de saberes metodológicos e teóricos;

de atitudes e de uma relação autêntica com o ofício e com o real;

competências que se apoiam sobre esses saberes e atitudes, permi-


tindo mobilizá-los em situação de trabalho e aliá-los à intuição e à
improvisação, como na própria prática pedagógica.

Os saberes metodológicos incluem a observação, a interpretação, a aná-


lise, a antecipação, mas também a memorização, a comunicação oral e
escrita e até mesmo o vídeo, uma vez que a reflexão nem sempre se de-
senvolve em circuito fechado nem no imediato. Insistirei sobre os saberes
teóricos: o bom senso apoiado sobre capacidades de observação e de ra-
ciocínio permite um primeiro nível de reflexão. Para ir mais longe, importa
sempre dispor de uma cultura em ciências humanas, tanto didática como
transversal. Em certos casos, o domínio dos saberes a ensinar é crucial, se
este falha, alguns problemas não podem ser colocados. Por exemplo, a
interpretação de alguns erros de compreensão é esclarecida pela história
e pela epistemologia da disciplina.

Atividades
1. Realize uma entrevista com um professor universitário guiando-se
pelo roteiro abaixo. Analise as respostas obtidas tendo em vista as
discussões desenvolvidas durante essa aula sobre formação docente.
Essa atividade pode ser realizada em grupo ou individualmente, a cri-
tério dos alunos. Depois, recomenda-se que os alunos tenham tempo
suficiente para discutirem entre si as conclusões a que chegaram rea-
lizando tal atividade.

Roteiro para entrevista


1. Dados pessoais (nome, idade, grau de formação, ano de conclu-
são, série e disciplina que leciona).

2. Questões:

a) O que o levou a escolher esta profissão? Que influências recebeu?

40
Docência no Ensino Superior

b) Fale sobre sua formação inicial.

c) Você sente necessidade de continuar estudando? Comente.

d) A escola pode ser um espaço de formação continuada para os


professores? Comente.

e) Por que muitos professores não continuam seus estudos, não


buscam aperfeiçoamento?

41
Docência no Ensino Superior

42
Docência no Ensino Superior

2. Leia atentamente o texto abaixo e reflita sobre o seu significado abor-


dando as dificuldades do professor iniciante.

Não basta que uma peça de vestuário esteja bem cortada, que tenha
cores bonitas e um tecido agradável. É necessário que resista à lavagem!

A primeira aula pode “lavar” o professor recentemente saído da universi-


dade de todas as suas ilusões e ambições. (PERRENOUD, 1997, p. 100)

3. Comente o texto abaixo e reflita sobre o equívoco da separação entre


pensar e executar na prática pedagógica do professor.

A noção de professor reflexivo baseia-se na consciência da capacidade


de pensamento e reflexão que caracteriza o ser humano como criativo e
não como mero reprodutor de ideias e práticas que lhe são exteriores. É
central, nessa conceitualização, a noção do profissional como uma pessoa
que nas situações profissionais, tantas vezes incertas e imprevistas, atua
de forma inteligente e flexível, situada e reativa. (ALARCÃO, 2004, p. 41)

43
Docência no Ensino Superior

4. Elabore uma reflexão pessoal (que pode incluir menção a alguma ex-
periência vivida) sobre os seus principais anseios e suas expectativas
em relação à docência universitária. Reflita sobre como a formação
continuada pode auxiliá-lo na superação das dificuldades iniciais.

Dica de estudo
Em sua obra Vidas de Professores, Antonio Nóvoa (1995b) nos mostra
com profundidade o modo como a docência toma um espaço signifi-
cativo na vida do professor. A presente obra pretende chamar a aten-
ção para as vidas dos professores, que constituíram, durante muitos
anos, uma espécie de “paradigma perdido” da investigação educacio-
nal. Hoje sabemos que não é pos­sível separar o eu pessoal do eu pro-
fissional, sobretudo numa profissão fortemente impregnada de valores
e de ideais e muito exigente do ponto de vista do empenhamento e da
relação humana. Como descreve Jennifer Nias: “O professor é a pessoa;
e uma parte importante da pessoa é o professor”.

44
Docência no Ensino Superior

45
Avaliação de aprendizagem:
representações e concepções

Isilda Louzano Perez


O saber referente ao ato de avaliar é suscetível
de contribuir para afastar representações inadequadas.

Charles Hadji

A avaliação é um tema cuja abordagem é de fundamental importância no


contexto do ensino-aprendizagem. Portanto, não se pode pensar em avalia-
ção sem contextualizá-la nas dimensões da instituição, do projeto de ensino,
das relações entre professor e aluno, das formas de ensinar ou dos modelos
de aprender.

A avaliação de aprendizagem tem uma existência concreta e está em


­diálogo com todos os demais componentes do processo educativo, sendo
por eles definida e os influenciando, concomitantemente.

Os processos referentes à avaliação não podem ser entendidos apenas


como instrumentos que fornecem resultados por meio de uma escala de
notas ou de conceitos. Tais processos devem ser entendidos a partir da lógica
dos processos de ensino-aprendizagem. Desse modo, avaliar é sempre um
compromisso com a aprendizagem do aluno. Ou em outras palavras, “no
espaço escolar, não deveria a atividade de avaliação ser construída, antes de
tudo, como uma prática pedagógica a serviço das aprendizagens?” (HADJI,
2001, p. 9).

Para entendermos o que significa avaliar, é necessário que se respondam


as seguintes perguntas:

Para que se ensina?

Como se aprende?

Em que contextos são realizados o ato de ensinar e o ato de aprender?


Docência no Ensino Superior

Como criamos convicções sobre a avaliação?

Por que nos pautamos em determinados modelos?

Por que os validamos na prática cotidiana da sala de aula?

De onde procedem as nossas crenças sobre o significado da avaliação


da aprendizagem?

Objetivamente, o que se quer perguntar é:

Como construímos nossas representações sobre o ato de avaliar?

Entendamos representações como as imagens mentais a que somos re-


metidos quando pensamos sobre a avaliação e seus processos: imagens que
povoam e desenham o nosso imaginário pedagógico.

É importante que tenhamos clareza sobre os elementos que se fazem


presentes na construção das nossas representações sobre a avaliação para
que possamos aprender a lidar com eles. Como diz Hadji (2001), é necessário
compreender para agir.

Convicções sobre a avaliação:


representações e concepções
No tocante à avaliação, o desenho de nosso imaginário pedagógico se
constitui a partir de nossas experiências como alunos que já fomos ou que
ainda somos, como profissionais que praticam a avaliação a partir da nossa
vivência social cotidiana.

Como alunos, somos submetidos à lógica avaliativa de nossos professores.


As concepções e representações de nossos professores em relação ao ato de
avaliar determinam o processo de avaliação a que eles nos submetem.

Se a lógica for a da avaliação-resultado, a importância recai sobre uma nota


final, garantidora de uma classificação. Se a lógica for a da avaliação a serviço da
aprendizagem, a importância recai sobre o desenvolvimento do processo, com
as intervenções e adequações necessárias para a sua correção rumo ao sucesso.

Em qualquer dos casos, tendemos a enxergar a avaliação a partir da histó-


ria que construímos ao longo de nossas vidas.

48
Avaliação de aprendizagem: representações e concepções

E, quando falamos da construção das representações, não aludimos – ex-


clusivamente – à avaliação no sentido estrito da “realização de provas”, mas
ao julgamento que vem antes disso.

Além disso, é comum que os professores sejam influenciados por co-


legas em relação ao desempenho de uma turma ou de alguns alunos,
particularmente:

– O Fulano está em sua turma neste ano? Nossa! Você vai sofrer um bocado.
Ele é indisciplinado, desinteressado, não completa as tarefas, não estuda,
parece que quer apenas o diploma...

Muitas vezes, observações dessa natureza são suficientes para que o pro-
fessor que ainda não conhece a turma se influencie e, antes até de ter contato
com seus alunos, já tenha construído uma imagem sobre eles.

A profecia autorrealizadora
(OLIVEIRA, 2007)

Acreditando ser fruto da sua experiência profissional, já no primeiro dia


de aula, o professor se diz capaz de fazer previsões individuais para cada
um de seus alunos. E como se estivesse munido de uma bola de cristal,
determina quase sempre sem errar, o futuro escolar daquelas crianças.
Começa aí uma das práticas mais perigosas – e mais comuns – que se
desenvolvem na escola: a da chamada profecia autorrealizadora.

Por meio do prognóstico do professor, a profecia se realizará sem que


a criança possa intervir, pois o desejo do professor se manifestará no re-
lacionamento desigual com seus alunos, de forma que seu julgamento
inicial se caracterize no final do ano letivo.

O fenômeno da profecia autorrealizadora foi revelado e estudado por


dois pesquisadores norte-americanos, Robert Rosenthal e Lenore Jacob-
son, em 1964, quando foi concluído que as expectativas do professor tem
um efeito poderoso sobre o desempenho escolar de uma criança.

Aos alunos considerados “capazes”, será oferecido maior atenção, maior


oportunidade de participação, maiores estímulos. Os outros, os “incapa-
zes”, desestimulados vão inevitavelmente participar cada vez menos das
aulas, mostrando-se alheios ou passando a chamar a atenção por sua
indisciplina ou falta de interesse.

49
Docência no Ensino Superior

Originada pelos preconceitos do professor, a profecia, portanto, é an-


terior ao contato com a criança. O meio social imputou imagens de um
aluno idealizado e que o professor procura dentre alguns sinais historica-
mente valorizados pela escola, tais como: os mais limpinhos, mais bem-
vestidos, mais branquinhos... Todo esse conjunto de informações pautará
o trabalho e o envolvimento individual do professor com seus alunos.

Na verdade, as profecias autorrealizadoras reforçam a ideia de que os


alunos tendem a nos dar como resposta o que esperamos deles. Sem que
disso tenhamos clareza, favorecemos a produção do fracasso escolar por
meio de um pré-julgamento destituído de qualquer análise ou acompanha-
mento lógico.

Tais profecias são elaboradas não apenas devido à influência que recebe-
mos externamente: nós mesmos nos predispomos a atitudes preconceituo-
sas quando julgamos nossos alunos pela forma como se vestem, pela classe
social de que provêm ou pela forma como falam.

Um professor pode, por exemplo, criar a imagem mental de que alunos


carentes, vindos de famílias socialmente desfavorecidas, sem boa aparência
ou sem boa condição material, não podem aprender bem. É a sinalização
para o fracasso.

Em relação a isso, Philippe Perrenoud (2000, p. 22) adverte que:


O fracasso escolar não é a simples tradução “lógica” de desigualdades tão reais quanto
naturais. Não se pode, pura e simplesmente, compará-lo a uma falta de cultura, de
conhecimento ou de competências. Essa falta é sempre relativa a uma classificação, ela
própria ligada a formas e a normas de excelência escolar, a programas, a níveis de exigência,
a procedimentos de avaliação.

No processo de construção de representações, o cognitivo – entendido


como a “capacidade para aprender” – confunde-se com a produção das de-
sigualdades e das diferenças existentes na sociedade. Via de regra, aquele
que não aprende é o pobre, o excluído, o que não “se iguala” à maioria do
grupo.

Novamente é Perrenoud (2000, p. 22) que nos auxilia nessas reflexões


quando diz que
[...] a explicação dá um passo decisivo, quando se percebe que as diferenças e as
desigualdades extraescolares – biológicas, psicológicas, econômicas, sociais e culturais

50
Avaliação de aprendizagem: representações e concepções

– não se transformam em desigualdades de aprendizagem e de êxito escolar, a não ser


ao sabor de um fundamento particular do sistema de ensino, de sua maneira de tratar
as diferenças.

Temos, portanto, que em si mesmas as diferenças e desigualdades não


devem ser vistas como elementos de distinção cognitiva: será assim se o
próprio sistema escolar e seus agentes fizerem com que isso efetivamen-
te, ocorra.

Perrenoud (1999) cita o que a socióloga Viviane Isambert-Jamati afirma


sobre o aluno fracassado: “O aluno que fracassa é aquele que não adquiriu no
prazo previsto os novos conhecimentos e as novas competências que a ins-
tituição, conforme o programa, previa que ele adquirisse” (ISAMBERT-JAMATI
apud PERRENOUD, 1999, p. 25).

Voltamos, então, à ideia das profecias autorrealizadas: o professor pode


produzir fracasso ou êxito dependendo do foco de seu olhar e das expectati-
vas que elabora acerca de seus alunos.

Um desdobramento dessas atitudes de pré-julgamento são os encami-


nhamentos que a escola propõe aos alunos que não revelam o rendimento
esperado. É possível que em determinadas situações esses encaminhamen-
tos sejam necessários; mas, de maneira geral, o que ocorre é a inquestiona-
bilidade da prática pedagógica, da compreensão do que é ensinar e do que
é aprender.

Não se discute o fato de que as intenções podem ser as melhores,


mas não proporcionam os resultados almejados. Como pergunta Phili-
ppe Perrenoud (2007, p. 73), “Por que intenções louváveis não operam os
milagres esperados?”.

O sucesso na aprendizagem precisa ser visto pela ótica da gestão peda-


gógica, sem que descuidemos, no entanto, da dimensão antropológica, isto
é: das relações que os sujeitos estabelecem na escola, seja a partir de grupos,
das aulas e/ou das relações entre professor e aluno.

Assim, olhando para o quadro descrito, fica claro que a avaliação do de-
sempenho do aluno é muito mais do que aplicação de instrumentos, aferição
de conteúdos e atribuição de notas.

Partindo do principio de que os estudantes são seres distintos, que apre-


sentam modelos particulares de aprendizagem e que percorrem caminhos

51
Docência no Ensino Superior

individuais de construção do conhecimento, é oportuno dizer que a docência


exige do professor muito mais do que o simples respeito às diferenças de
seus alunos. Estas não podem ser vistas sob o prisma da tolerância ingênua.
Vamos explicar melhor com as palavras de Perrenoud:
As diferenças entre alunos? Não as respeito, considero-as”: essa fórmula pode chocar
aqueles que confundem respeito às pessoas e não-intervenção. “Respeitar”, diz o dicionário
[...], é “não atacar, considerar como digno de ser conservado, preservado; não destruir, não
modificar”. O simples respeito às diferenças, por mais humano que seja, poderia levar aos
mesmos impasses da desigualdade, da indiferença às diferenças, e transformá-los em
desigualdade de aprendizagem e de êxito escolares. (PERRENOUD, 2000, p. 118)

Abordagem da avaliação
no contexto da aprendizagem
Para entendermos onde se insere a avaliação no contexto da aprendiza-
gem, vamos retomar o seguinte questionamento:

“No espaço escolar, não deveria a atividade da avaliação ser construída,


antes de tudo, como uma prática a serviço das aprendizagens?” (HADJI,
2001, p. 9).

Trata-se de abordar a avaliação como a possibilidade de localizar o aluno


no seu aprendizado; de fazer com que ele – não por recriminações e sim por
meio de ferramentas de êxito – desenvolva-se, aprimorando cada vez mais o
seu desempenho; ainda, de levá-lo a reconhecer seu próprio erro como uma
forma de aprendizagem e de informação, medida capaz de direcionar o pro-
cesso educativo para o sucesso.

Esse posicionamento pode ser compreendido por muitos como um


modelo ideal, difícil de ser atingido. Ainda que os professores se esforcem
para direcionar o processo de avaliação nesse sentido, há um longo caminho
a ser percorrido para o estabelecimento de uma verdadeira cultura da avalia-
ção. Segundo Dolors Quinquer (2003, p. 15), “para incorporar novas concep-
ções, é muito importante a influência que pode exercer a equipe educativa
que avalia, assim como a ‘cultura’ criada na escola”.

De fato, a tarefa não é fácil mesmo se consideramos os entraves impostos


pelas convicções que se cristalizam, como se abordou na primeira parte deste
texto: a forte presença das representações construídas ao longo da história

52
Avaliação de aprendizagem: representações e concepções

pessoal e profissional dos professores e as interferências do próprio sistema


educacional dificultam a aplicação de uma cultura da avaliação em prol da
aprendizagem.

Há, ainda, fortes marcas da avaliação tradicional que se realiza como um


confronto, como exercício de poder, como instrumento de seleção, consti-
tuindo-se em um entrave no processo de construção de saberes e competên-
cias dos alunos.

Para Charles Hadji (2001, p. 15), “a avaliação em um contexto de ensino


tem o objetivo legítimo de contribuir para o êxito do ensino, isto é, para a
construção de saberes e competências pelos alunos”. Por outro lado, sobre a
avaliação como prática de poder, Juan Miguel Batalloso (2003, p. 49) reforça
que “as práticas rotineiras da avaliação não são unicamente ações orientadas
por conceitos de valor, mas, sobretudo, atos fundamentados no uso e abuso
do poder”.

Porém, considerar a avaliação como parte do processo de aprendiza-


gem não pode se reduzir a um ideal perseguido por alguns: é preciso buscar
uma prática avaliativa que, efetivamente, encaminhe-se para o sucesso da
aprendizagem.

Nesse sentido, faz-se necessária uma revisão que passe por um debate
mais amplo, refletindo sobre:

O que ensinar?

Como selecionar os conteúdos de ensino?

Como buscar possibilidades de constatar o que os alunos não estão


aprendendo satisfatoriamente?

Como enfrentar os descaminhos que se estabelecem no percurso de


ensinar e aprender?

São questões que se dirigem, sobretudo, para o caráter multidimensional


da avaliação, isto é, para suas relações com os demais elementos que consti-
tuem o processo educativo – do projeto educacional à prática da sala de aula.

Pensar e realizar a avaliação comprometida com a aprendizagem implica


rever e compreender as próprias convicções, buscar novos modelos explica-
tivos e, principalmente, ter disposição para a mudança da prática – tanto pe-

53
Docência no Ensino Superior

dagógica quanto avaliativa. A cultura da avaliação requer, portanto, o conhe-


cimento e a compreensão de diferentes lógicas de avaliação por parte dos
docentes. A seguir, apresentamos uma dessas lógicas, sustentada na ideia da
avaliação normativa.

Avaliação normativa:
características da avaliação classificatória
Antes de iniciar a discussão sobre a avaliação normativa, é importante que
se analise o quadro abaixo e se observe o ensino e suas dimensões:

ENSINO

COMO O QUE QUANDO


ENSINAR ENSINAR ENSINAR

COMO,
QUANDO E O
QUE AVALIAR

As formas como se estabelecem as relações entre o que, como e quando


avaliar são definidas pelas concepções que se tem sobre a avaliação. Para Dolors
Quinquer (2003, p. 15), “a maneira como se aborda a avaliação das aprendiza-
gens escolares está intimamente relacionada com as concepções que têm os
docentes sobre o ensino e a aprendizagem”.

Se uma das lógicas da avaliação é a denominada avaliação normativa, com


Charles Hadji (2001, p. 18) indagamos e respondemos: “O que é uma norma?
No sentido social, um modelo de comportamento valorizado por um grupo”.

54
Avaliação de aprendizagem: representações e concepções

No sentido pedagógico, avaliação normativa é aquela que localiza o desem-


penho do indivíduo em função de um grupo de referência e, dessa forma, provo-
ca a classificação, isto é, leva ao que conhecemos como avaliação classificatória.

Por sua vez, a avaliação classificatória é representante da “cultura da men-


suração”, segundo a qual medir implica “hierarquizar” para atribuir valor. De
acordo com Hadji,
Medir significa atribuir um número a um acontecimento ou a um objeto de acordo com
uma regra logicamente aceitável. Isso implica que o objeto ou o acontecimento possa ser
apreendido sob uma única dimensão, isolável, capaz de receber uma escala numérica. A
medida é assim uma operação de descrição quantitativa da realidade. (HADJI, 2001, p. 28)

A avaliação classificatória lida com resultados esperados e trata o erro


como ausência de conhecimento válido. E suas ferramentas principais são

medir (nota/conceito);

classificar (capazes/incapazes, fortes/fracos);

selecionar (aprovação/reprovação).

Esse tipo de avaliação é uma tentativa de homogeneização, pois se con-


sidera que todos aprendem da mesma forma e sob os mesmos modelos de
aprendizagem.

Assim, vejamos um trecho de “Igual-desigual”, poema de Carlos Drum-


mond de Andrade:

Todas as criações da natureza são iguais.

[...]

Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou

coisa.

Não é igual a nada.

Ninguém é igual a ninguém.

Todo ser humano é um estranho

ímpar.

O sentido desse poema se coloca em franca oposição ao que pressupõe a


avaliação classificatória. Os indivíduos são diferentes, têm experiências e his-

55
Docência no Ensino Superior

tórias de vida diferentes, de modo que apreendem a realidade e aprendem


sob diferentes aspectos e com diferentes modelos.

Portanto, os resultados de aprendizagem que revelam são particulares.


Quando os indivíduos são avaliados em relação a um grupo de referência,
não se identifica seu real aprendizado.

De certa forma, a avaliação classificatória prioriza o uso de instrumentos


de avaliação ditos objetivos porque considera sua objetividade como garantia
de justiça e imparcialidade dos resultados. É comum que professores, cujas
concepções transitam pela avaliação classificatória, considerem que os testes
de múltipla escolha, por exemplo, dão objetividade ao resultado e permitem
uma correção mais imparcial.

Essa é uma posição um tanto equivocada se consideramos que a garantia


da objetividade de um instrumento não corresponde ao seu formato e sim
aos critérios que definem as regras e as expectativas sob as quais a avaliação
ocorrerá.

A atribuição de nota também apresenta, no contexto da avaliação clas-


sificatória, um significado especial – afinal, é pela nota que as ferramentas
da avaliação classificatória se consolidam. Zero ou dez? Dois ou oito? A nota
mede, seleciona e classifica, criando expectativa de resultados. Como exem-
plifica a citação abaixo:
– Que nota você tirou?

– Tirei A.

– Mesmo? Oh, eu não queria estar no seu lugar. Tirei C

– E por que você prefere um C a um A?

– Descobri que minha vida ficava bem mais fácil quando as pessoas não esperam grande
coisa de mim. (PERRENOUD, 1999, p. 42)

A avaliação classificatória faz sentido para um modelo que considera a as-


similação do conhecimento em um fluxo que vem de fora para dentro, do
professor para o aluno. Essa visão valida a aprendizagem como memorização
dos conteúdos fundamentais e concebe a avaliação como o ato de aferir o
quanto alguém é capaz de revelar sobre determinado aprendizado.

Da mesma forma, o modelo normativo de avaliação corresponde a uma


afirmação de Dolors Quinquer (2003, p. 17):

56
Avaliação de aprendizagem: representações e concepções

A ideia de que se pode medir qualquer tipo de aprendizagem e de que avaliar é algo
“técnico”, “preciso”, “objetivo” e inclusive “científico” aparece como pano de fundo de
determinadas concepções de alguns professores sobre avaliação.

A prática pedagógica que sustenta o modelo de avaliação classificatória é


identificada pelo apego ao cumprimento do programa, pelo desenvolvimen-
to de uma metodologia passiva, que tem o professor como centro, a nota
como controle e o resultado como finalidade.

Conclusão
A ideia de que a avaliação deve auxiliar o aluno a aprender deve ser priori-
zada nas discussões sobre avaliação da aprendizagem. Há que se considerar
que nada muda de um dia para o outro. Nossas representações e convicções
sobre a avaliação perduram e se cristalizam em nossas mentes e se traduzem
em nossas atitudes pedagógicas.

O importante é o movimento de constante revisão e busca de novos olha-


res sobre a avaliação. Sair da obsessão pela excelência, marca da lógica nor-
mativa, e nos dirigirmos para uma postura mais comprometida com a verda-
deira formação de nossos alunos é um caminho que deve ser trilhado, ainda
que tenhamos a clareza de que a lógica predominante na cultura reinante é a
da avaliação como seleção.

Segundo Philippe Perrenoud (1999, p. 11), “a avaliação é tradicionalmente


associada, na escola, à criação de hierarquias de excelência, definida no abso-
luto ou encarnada pelo professor e pelos melhores alunos”.

De maneira geral, a avaliação que a escola tem realizado é classificatória,


no formato de uma ação dirigida ao grupo, mais de nível global e não tanto
como um olhar sobre o individual, a trajetória de cada aluno.

“Nenhum médico se preocupa em classificar seus pacientes, do menos


doente ao mais gravemente atingido. Nem mesmo pensa em lhe administrar
um tratamento coletivo”, diz Perrenoud (1999, p. 15), estabelecendo uma re-
lação entre a prática da avaliação e a prática da medicina.

Aproveitando-nos dessa colocação, temos a dizer que é preciso que em


avaliação se façam diagnósticos mais precisos, cujos resultados sejam capa-
zes de encaminhar para o desenvolvimento de uma avaliação verdadeira-
mente comprometida com a aprendizagem e com o sucesso.

57
Docência no Ensino Superior

E assim, prosseguindo na comparação com a medicina, podemos encerrar


nossa reflexão com um questionamento:

Se a boa escola é a que reprova, o bom hospital é o que mata? A propos-


ta é a de se pensar na avaliação como uma ferramenta para o sucesso .

Texto complementar

A avaliação não é uma tortura medieval


(PERRENOUD, 1999, p. 14-15)

A avaliação não é uma tortura medieval. É uma invenção mais tardia,


nascida com os colégios por volta do século XVII e tornada indissociável
do ensino de massa que conhecemos desde o século XIX, com a escolari-
dade obrigatória.

Algum dia teria havido, na história da escola, consenso sobre a maneira


de avaliar ou sobre os níveis de exigência? A avaliação inflama necessaria-
mente as paixões, já que estigmatiza a ignorância de alguns para melhor
celebrar a excelência de outros. Quando resgatam suas lembranças de
escola, certos adultos associam a avaliação a uma experiência gratifican-
te, construtiva; para outros, ela evoca, ao contrário, uma sequência de
humilhações. Tornando-se pais, os antigos alunos têm a esperança ou o
temor de reviver as mesmas emoções através dos filhos [...].

Avaliar é – cedo ou tarde – criar hierarquias de excelência, em função


das quais se decidirão a progressão no curso seguido, a seleção no início
do secundário, a orientação para diversos tipos de estudos, a certificação
antes da entrada no mercado de trabalho e, frequentemente, a contrata-
ção. Avaliar é também um modo de estar em aula e no mundo, valorizar
formas e normas de excelência, definir um aluno modelo [...].

Que a avaliação possa auxiliar o aluno a aprender não é uma ideia nova.
Desde que a escola existe, pedagogos se revoltam contra as notas e
querem colocar a avaliação mais a serviço do aluno do que do sistema.
Essas evidências são incessantemente redescobertas, e cada geração crê
que “nada mais será como antes”. O que não impede a seguinte de seguir
o mesmo caminho e de sofrer as mesmas desilusões.

58
Avaliação de aprendizagem: representações e concepções

Isso significa que nada se transforma de um dia para o outro no mundo


escolar, que a inércia é por demais forte, nas estruturas, nos textos e so-
bretudo nas mentes, para que uma nova ideia possa se impor rapidamen-
te. [...]

No entanto, lentamente a escola muda. A maioria dos sistemas declara


agora favorecer uma pedagogia diferenciada e uma maior individualiza-
ção das trajetórias de formação. Também a avaliação evolui. As notas de-
saparecem em certos graus, em certos tipos de escolas... [...]

Talvez passemos – muito lentamente – da medida obsessiva da excelên-


cia a uma observação formativa a serviço das regulações das aprendiza-
gens. Todavia, nada está pronto!

Atividades
1. Leia com atenção o texto complementar e, em seguida, estabeleça
relação entre o que diz o autor e as representações sobre avaliação
abordadas no capítulo. Para fazer essa relação, responda à pergun-
ta abaixo.

Que lugar e que sentido as representações têm na avaliação da aprendi-


zagem?

59
Docência no Ensino Superior

2. Releia o trecho do poema “Igual-desigual”, de Carlos Drummond de


Andrade, reproduzido no capítulo, e depois reflita sobre a prática da
avaliação classificatória. Em seguida, analise a origem e os elementos
que compõem essa forma de avaliação apontando os equívocos que
ela provoca.

3. Redija um pequeno texto tecendo considerações sobre a nota que


mede, seleciona e classifica.

60
Avaliação de aprendizagem: representações e concepções

Dicas de estudo
Na obra Avaliação: da excelência à regulação das aprendizagens,
Philippe Perrenoud nos mostra a complexidade do problema da ava-
liação, apontando seus antagonismos. O autor demonstra que a avalia-
ção está no âmago das contradições do sistema educativo e, constan-
temente na articulação da seleção e da formação, do reconhecimento
e da negação das desigualdades.

61
Avaliação e aprendizagem:
o sentido da transformação

Isilda Louzano Perez


A proposta fundamental deste texto é abordar a avaliação como um ins-
trumento de auxílio à aprendizagem dos alunos.

Sabe-se que, historicamente, a avaliação tem sido abordada como uma


prática de “medida” do nível de aprendizagem. Os resultados dessa “medi-
ção” definem a outorga de títulos, de graus, de reconhecimento, e decidem
sobre a permanência ou a progressão dos alunos em determinadas etapas
da escolaridade.

Por outro lado, na defesa do pressuposto de que avaliar é um ato a serviço


de outro, que é o ato de aprender, este texto se propõe a abordar as tarefas
avaliativas no processo de ensino e de aprendizagem.

Considerando-se que a abordagem da avaliação no contexto da aprendi-


zagem predispõe a um debate sobre a formação do aluno, a questão central é:
Que lugares a avaliação ocupa nesse processo?

Para encaminhar as possíveis respostas, é recomendável que se aponte,


brevemente, o cenário das mudanças dos paradigmas científicos que defini-
ram novas concepções sobre a aprendizagem.

Segundo Dolors Quinquer (2003, p. 17), “as mudanças de paradigmas cien-


tíficos produzidos desde a década de 1960 também se projetam na maneira
como se enfoca a avaliação”. A ciência avança, promove novos olhares sobre
a aprendizagem e coloca em discussão os conceitos existentes.

Novas orientações da psicologia cognitiva, principalmente a partir da


década de 1980, promoveram novos enfoques para a avaliação, passando a
considerar o papel do próprio sujeito no processo de construção da aprendi-
zagem e – nesse contexto – apontaram para a avaliação de caráter formativo,
isto é, inserida no processo de aprendizagem.
Docência no Ensino Superior

Os novos caminhos traçados desvendam para a avaliação um processo


em que o sujeito protagoniza a sua aprendizagem, mediado pelas ações pe-
dagógicas do professor, e portanto “a avaliação em um contexto de ensino,
tem o objetivo legítimo de contribuir para o êxito do ensino, isto é, para a
construção de saberes e competências pelos alunos” (HADJI, 2001, p. 15).

Avaliação criteriada:
os lugares da avaliação na formação
O que é avaliação criteriada?

Considerando os lugares da avaliação na formação do aluno, avalia-


ção criteriada é a que identifica desempenhos em diferentes momentos
da formação.

São três os tipos de avaliação que compõem o quadro amplo da avalia-


ção criteriada, cada um deles, com as suas características e funções: avaliação
diagnóstica, avaliação formativa e avaliação somativa ou cumulativa.

Avaliação diagnóstica
É diagnóstica (ou inicial) toda avaliação que afere os processos já percor­
ridos pelos alunos no decurso da aprendizagem.

Fundamentalmente, responde à pergunta “Quais são as competências


atuais dos alunos em relação à determinada aprendizagem?”.

Diante dos resultados da avaliação diagnóstica, o professor tem condições


objetivas de rever conteúdos, metodologias e procedimentos de ensino.

A realização da avaliação diagnóstica permite ao professor fazer escolhas mais


apropriadas às condições de aprendizagem de seus alunos e, principalmente, in-
vestir na variabilidade didática, isto é, na modificação de práticas de ensino.

Considerar a avaliação diagnóstica como inicial pode conduzir ao equívo-


co de entender que seu acontecimento se dá sempre ao início de um período
letivo, quando o professor, diante de uma nova turma, providencia condições
de identificar as aprendizagens de seus alunos. Porém, o que se tem a consi-
derar é que, ainda que esse acontecimento inicial seja pertinente à avaliação
diagnóstica, seus procedimentos não se restringem a isso.

64
Avaliação e aprendizagem: o sentido da transformação

A avaliação diagnóstica realiza-se, sim, ao início dos períodos letivos, mas


também ao início de novas sequências de aprendizagem. Por exemplo, ao
início de um semestre ou de um ano letivo, o professor propõe a avaliação
diagnóstica, objetivando identificar os conhecimentos anteriores de seus
alunos em relação a determinado campo disciplinar. Com base nos resulta-
dos, esse professor planeja e elabora as sequências de aprendizagens – en-
tendidas como a seleção de determinados conteúdos a serem desenvolvidos
em um intervalo de tempo, acompanhados processualmente e avaliados, e
encaminhando para as mudanças necessárias nas práticas.

Completada a sequência de aprendizagens, novamente o professor


propõe o diagnóstico e repete o processo. Assim, ao longo do período letivo,
sucessivamente e de modo processual, as aprendizagens são monitoradas e,
pelos resultados obtidos, tanto professor quanto aluno são informados sobre
o desenvolvimento do processo de formação.

Hadji prefere o uso do termo “prognóstico” a “diagnóstico”. Para esse autor,


A avaliação precede a ação da formação. Fala-se então de avaliação prognóstica [, que]
tem a função de permitir um ajuste recíproco aprendiz/programa de estudos (seja pela
modificação do programa que será adaptado aos aprendizes, seja pela orientação dos
aprendizes para subsistemas de formação mais adaptados a seus conhecimentos e
competências atuais). (HADJI, 2001, p. 9)

Portanto, a avaliação diagnóstica conduz a ajustes necessários no pro-


cesso de ensino e aprendizagem para melhor atender às características dos
alunos, aos seus modelos de aprendizagens e às necessárias modificações no
processo de ensinar.

Avaliação formativa
É formativa toda avaliação que colabora com a aprendizagem. Em relação
ao lugar ocupado na formação do aluno, a avaliação formativa coloca-se no
centro do processo. Segundo Jorba e Sanmartí (2003, p. 30),
A avaliação durante o processo de aprendizagem ou avaliação formativa é um termo
introduzido em 1967 por M. Scriven para se referir a procedimentos utilizados pelos
professores para adaptar seu processo didático aos progressos e necessidades de
aprendizagem observados em seus alunos.

A avaliação formativa é reconhecida pelo mecanismo da variabilidade di-


dática, isto é, pelas modificações que provoca na prática do professor. Por
acompanhar o processo de desenvolvimento do aluno, a avaliação formati-
va exige essa variabilidade toda vez que os resultados de aprendizagem não

65
Docência no Ensino Superior

condizerem com o esperado. A avaliação formativa informa ao aluno sobre


o desenvolvimento de sua aprendizagem e ao professor sobre os efeitos de
seu trabalho.

Dessa maneira, a avaliação formativa se operacionaliza pelo desenvolvi-


mento da sequência formativa, explicitada abaixo.

A avaliação diagnóstica informa sobre o processo de aprendizagem do


aluno em um dado momento e sinaliza para os ajustes necessários na
ação docente.

A avaliação formativa desenvolve as ações ajustadas, incorporando o


princípio – anteriormente citado – da variabilidade didática. As ações
ajustadas se dirigem para a evolução do aluno e para a continuidade
da ação pedagógica. A esse processo se denomina avaliação contínua,
que é o principal instrumento para se operacionalizar a avaliação for-
mativa e se constitui em repetições das chamadas sequências formati-
vas. A avaliação contínua é, por isso, o processo compreendido entre a
avaliação diagnóstica e o desenvolvimento das ações ajustadas.

E como a avaliação formativa se dá pelo desenvolvimento das sequências


formativas que caracterizam o seu processo, não há um modelo operativo
para a sua realização. É o professor que dá sentido ao que se pode considerar
avaliação formativa – pela forma como ele conduz esse processo.

Desse modo, uma avaliação não deixa de ser formativa porque se apresen-
ta sob o instrumento de testes de múltipla escolha, nem se configura como
formativa porque o instrumento não é objetivo e permite que o aluno “se
coloque mais” na avaliação. Pode-se realizar avaliação de intenção formativa
inclusive sem o uso de instrumentos: é o posicionamento diante do ato de
avaliar e o desenvolvimento do processo avaliativo que tornam a avaliação
formativa ou não.

Assim, todo professor que se preocupa com a avaliação diagnóstica como


forma de conhecer seu aluno; que se permite “mexer na sua forma de avaliar”,
ajustando-a ao que é melhor para a aprendizagem do aluno; que não tem medo
de enfrentar a necessidade da variabilidade didática, realiza avaliação formativa.

A avaliação formativa representa o rompimento com as práticas cristaliza-


das de avaliação que levam mais em consideração o desempenho do grupo
do que, propriamente, as trajetórias individuais.

66
Avaliação e aprendizagem: o sentido da transformação

Segundo Perrenoud (1999, p. 15), “a avaliação formativa introduz uma rup-


tura porque propõe deslocar essa regulação ao nível das aprendizagens e
individualizá-la”.

Perrenoud insere a avaliação formativa no campo da pedagogia diferen-


ciada. Para ele, uma verdadeira avaliação formativa se faz acompanhar de
intervenções diferenciadas cujas finalidades são a de promover o sucesso
das aprendizagens. Compreende que a lógica da avaliação formativa vem
ganhando importância e tem se inserido no contexto da
[...] renovação global da pedagogia, da centralização sobre a aprendizagem, da mutação
da profissão de professor: outrora dispensador de aulas e de lições, o professor se
torna criador de situações de aprendizagem “portadoras de sentido e de regulação”.
(PERRENOUD, 1999, p. 18)

Avaliação somativa ou cumulativa


A avaliação somativa ou cumulativa tem seu lugar ao final da ação de for-
mação. É a avaliação certificativa, que fecha os resultados de um período de
aprendizagem – que pode ser um semestre, um ano ou o final de um curso.
Essa forma de avaliação se constitui nas notas que vão para os boletins e para
os históricos escolares, por exemplo. Sua função é a de registrar as aquisições
que se processaram em um determinado período de formação.

De acordo com Jorba e Sanmartí (2003, p. 32), “A avaliação somativa tem


como objetivo estabelecer balanços confiáveis dos resultados obtidos ao
final de um processo de ensino e aprendizagem”.

Assim, como seu objetivo principal, ela não só informa ao aluno o seu
percurso escolar mas também tem a função social de garantir que a forma-
ção desenvolvida corresponda às exigências sociais.

Notas, critérios e autoavaliação


Na abordagem da avaliação de aprendizagem, não se pode dispensar a
questão dos critérios de avaliação.

Critérios são a explicitação de um sistema de expectativas que responde


ao seguinte questionamento em relação ao que se espera do desempenho
dos alunos:

67
Docência no Ensino Superior

Que saibam o quê?

Que saibam fazer o quê?

Com que competências?

Na definição de Gerard Scallon (apud HADJI, 2001, p. 89), o critério de ava-


liação é “um ponto de vista a partir do qual uma obra, um produto ou um
desempenho são avaliados”.

Definir critérios é sair à busca de “observáveis”, ou seja, daqueles elemen-


tos que dão objetividade à avaliação. E a definição de critérios implica a apro-
ximação entre “o cognitivo real” (o que o aluno pode dar como resposta em
determinado momento de sua formação) e o “cognitivo desejado” (o que o
professor estabelece como resposta desejável para determinado momento
da formação do aluno).

Dizendo de outro modo, os critérios constituem “as regras do jogo”. É fun-


damental que, antes de entrar na disputa, cada jogador conheça e reconheça
as regras a que se submete. Da mesma maneira, é importante que, antes de ser
submetido à avaliação, o aluno conheça e reconheça o que dele se espera.

Assim, ao se pensar em critérios deve-se levar em conta que toda avalia-


ção será apreciada e que para tanto é necessário que se tenha definido ante-
riormente quais serão as referências. E é importante que essas referências se
insiram em três campos, conforme abaixo.

Comportamentos esperados referem-se às atitudes esperadas diante de


determinada situação de avaliação.

Procedimentos referem-se às ações desempenhadas em situações


de avaliação.

Representações e processos referem-se “à versão subjetiva das noções


ensinadas” (CARDINET apud HADJI, 2001, p. 97), isto é, processos cogni-
tivos desencadeados em situação de avaliação.

Desse modo, não são os instrumentos que dão objetividade à avaliação,


como muitas vezes elabora o imaginário pedagógico: o que dá concretu-
de à avaliação é a definição dos critérios. Os instrumentos de avaliação são
sempre desencadeadores que devem obedecer às exigências de pertinência
e de significância, para que o sentido da avaliação não desapareça da visão

68
Avaliação e aprendizagem: o sentido da transformação

do aluno, e também devem possibilitar a observação das reais competências


dos alunos diante de situações avaliativas.

Os critérios de avaliação podem ser classificados em critérios de realização


e critérios de êxito.

Critérios de realização
São regras a respeitar, procedimentos, atos concretos.

Conforme exemplificação de Hadji (2001, p. 88),


[...] para uma tarefa de um texto narrativo, os critérios de realização poderiam ser:
conservar (os possíveis narrativos; os elementos constitutivos), transpor (o esquema
narrativo); modernizar (os lugares, os personagens); traduzir a forma de expressão
do texto.

O autor discute que, no contexto pedagógico, a chave para o êxito é que


os próprios alunos identifiquem os critérios a serem considerados em deter-
minadas tarefas, mas no contexto da avaliação é importante que o próprio
professor analise o que esperar das tarefas, considerando – contudo – que
a “explicitação dos critérios de realização é, neste caso, operação central da
construção do referente” (HADJI, p. 89). Ou seja, é preciso que os alunos co-
nheçam os critérios sob os quais estão sendo avaliados.

E também é importante lembrar que “não se deve mudar as regras com o


jogo andando”.

Critérios de êxito
Esses critérios determinam os limites da aceitabilidade das tarefas de ava-
liação. Hadji (2001, p. 89) descreve o que considera para o estabelecimento
de critérios de êxito:
[...] pertinência do resultado [...]; sua completude, sua exatidão; sua originalidade e,
enfim, precisa Georgette Nunziati [...] o “volume dos conhecimentos e das ideias em
questão”. A determinação dos critérios de êxito exige que o avaliador saiba o que queria
verificar por intermédio dessa tarefa [...]”

Tomemos um exemplo prático: a criação de uma estátua em gesso. Os


principais critérios seriam:

calcular o material;

69
Docência no Ensino Superior

colocar em um molde;

adaptar a peça à sua função.

Esses são critérios de realização porque se referem à operação fundamen-


tal da criação da peça. No entanto, critérios mais específicos se agrupam aos
mais gerais, como podemos ver abaixo:

calcular o material (selecionar, pesar, separar);

colocar em um molde (quantificar, distribuir, aproveitar o material);

adaptar à sua função (solidez; estética).

Esses critérios mais específicos são critérios de êxito.

Como propõe Hadji (2001, p. 90), “Deve-se precisar de que ponto de vista
se aprecia o êxito: por exemplo, a exatidão ou a originalidade da produção;
ou então a impressão esteticamente produzida”.

É a clareza na proposta dos critérios que dá sentido à nota. Em toda dis-


cussão sobre avaliação, a nota aparece como elemento fundamental. Afinal,
o que é a nota? Qual o significado de um dez ou de um dois? De um conceito
satisfatório ou insatisfatório? Em relação a que se colocam? No campo da dis-
cussão dos critérios, o sentido da nota se objetiva: a nota é resultado da apro-
ximação do cognitivo desejado (sistema de expectativas posto pelo professor
em relação à avaliação) e o cognitivo real (as possibilidades de resposta, por
parte do aluno, à determinada tarefa de avaliação em um dado momento).

Assim, o sistema de notas é visto não do ponto de vista da medição, da


mensuração, mas do ponto de vista da negociação. O resultado final de uma
nota ou menção é produto da transação possível entre o que o professor
espera e o aluno realiza. É a passagem do modelo metrológico para o modelo
de transação.

Tão importante quanto avaliar e atribuir notas é definir a forma de comu-


nicar os resultados. Compreende-se o momento de comunicação da nota,
conceito ou menção como um canal formativo. É o momento do feedback, do
resultado que desencadeia reações no aluno, permitindo ao professor expor
e fazer considerações em relação aos resultados de aprendizagem e aten-
der aos alunos em seus pedidos de explicação ou apreciação. O momento
da comunicação dos resultados pode se tornar um momento formativo e de
aprendizagem.

70
Avaliação e aprendizagem: o sentido da transformação

Barlow (apud HADJI, p. 110) apresenta três questões a serem respondi-


das pelos professores, quando em situação de devolutiva de avaliações aos
alunos:

A quem se dirige precisamente minha mensagem? Ela é suficiente-


mente explícita?

O código escolhido (nota cifrada, apreciação) é plenamente acessível


ao aluno receptor?

Estabeleci as possibilidades necessárias de feedback para estar certo de


que a mensagem foi compreendida?

Os cuidados com o ato de devolver as avaliações fazem parte do contexto


de desenvolvimento da avaliação formativa. E não se pode descuidar, ao se
discutir a avaliação de aprendizagem, da participação do próprio aluno em
sua avaliação. Os procedimentos de autoavaliação são indispensáveis para
que o aluno acompanhe o seu processo de aprender, manifeste-se sobre ele
e busque formas de reconduzi-lo no que estiver em sua esfera de ação.

A autoavaliação pode ser focalizada a partir de duas funções, conforme


abaixo.

Autonotação é a realização de um autobalanço sobre as ações já


­realizadas. Sempre se desenvolve a partir de um quadro de referência
sobre o que era esperado. Exemplo de autonotação são os pontos que
os alunos atribuem-se ao final de uma sequência de aprendizagem, a
partir de critérios declarados pelo professor (assiduidade, participação,
realização de tarefas etc.).

Autocontrole diz respeito à autoavaliação como um procedimento du-


rante o desenvolvimento de uma sequência de aprendizagem, “é o
olhar do que se faz enquanto se faz” (HADJI, 2001, p. 102).

Os objetivos da autoavaliação voltam-se, sempre, para a análise e reflexão


do aluno sobre o seu processo de aprendizagem, no sentido de progressão
rumo ao êxito.

Conclusão
O texto procurou desenhar um cenário de avaliação capaz de reforçar a
defesa da relação entre avaliação e aprendizagem.

71
Docência no Ensino Superior

Sabe-se que, sobretudo pela exposição a modelos explicativos forjados na


concepção de medida e resultado, a revisão da prática avaliativa e a adoção
de posturas e procedimentos voltados para o desenvolvimento da avaliação
criteriada não é simples, nem fácil e nem confortável.

Ainda é muito forte a presença da expressão cunhada por Perrenoud: “Não


mexa na minha avaliação!”

A avaliação formativa mereceu destaque em nossa discussão por centrar-


-se no processo e, desse lugar, articular-se com a avaliação diagnóstica e com
a avaliação somativa ou cumulativa.

A discussão sobre os critérios de avaliação e a sua função de demonstra-


dores da nota é um dos pontos de destaque do texto. Não é incomum que os
professores proponham as avaliações e que a intencionalidade e a expecta-
tiva não sejam compartilhadas com os alunos, resultando em conflito e des-
contentamento, muitas vezes abalando a relação entre professor e aluno.

A autoavaliação como autorregulação da aprendizagem é um fator que,


hoje, não pode ficar de fora das discussões sobre a avaliação de aprendizagem.

Como se disse acima, a avaliação com intenção formativa não é realizada


com tranquilidade: obstáculos e dificuldades se impõem ao seu pleno desen-
volvimento. Dentre esses obstáculos e dificuldades, podemos indicar:

as representações que os professores têm sobre a avaliação, como por


exemplo, o apego à excelência e à seleção;

a ausência de quadros teóricos de referência sobre o ensino e a apren-


dizagem;

o medo de enfrentar a mudança de prática.

Mas esses aspectos não inviabilizam a avaliação formativa. É verdade que


pode surgir um incômodo diante de:

modelos de ensino centralizadores e controladores;

currículos com forte desenho disciplinar;

professores descomprometidos com a sua formação; e

práticas docentes que desconsideram a evolução tanto da ciência edu-


cativa como da sociedade.

72
Avaliação e aprendizagem: o sentido da transformação

Mas esse incômodo é um elemento propulsor das possibilidades de de-


senvolvimento de uma avaliação verdadeiramente empenhada com a apren-
dizagem e a seu serviço.

E finalizamos com Perrenoud (2003, p. 144):


Mudar a avaliação é fácil dizer! Nem todas as mudanças são válidas. [...] Para mudar as
práticas no sentido de uma avaliação mais formativa, menos seletiva, talvez se deva mudar
a escola, pois a avaliação está no centro do sistema didático e do sistema de ensino.

Assim, a avaliação é um objeto multidimensional. Transformá-la implica


mover os diferentes elementos constituintes do ato educativo. É possível e
desejável que a prática avaliativa seja revista e transformada em favor do pro-
cesso de formação e isso não é tarefa fácil. Esse é o desafio que se impõe
àqueles que se permitem ousar.

Texto complementar

O gosto e as cores
(BUCKLEY, 2000, p. 79)

Um dia, um menino partiu para a escola. Ele era ainda bem pequeno, e
a escola era bem grande. Porém, quando o menino descobriu que podia
chegar à sua sala entrando diretamente pela porta do pátio, ficou conten-
te. E a escola já não parecia mais tão grande.

Uma manhã, quando o menino já estava na escola há um certo tempo,


a professora disse: “Hoje nós vamos fazer um desenho.” Ele gostava de
desenhar. Sabia fazer desenhos de todos os tipos: leões, tigres, galinhas e
vacas, trens e navios. Pegou sua caixa de lápis e começou a desenhar.

Mas a professora disse: “Esperem! Não é para começar ainda!” E ela es-
perou até que todo mundo parecesse pronto. “Agora”, disse a professora,
“nós vamos fazer flores”. “Legal”, pensou o menino. Ele gostava de dese-
nhar flores. E começou a fazer magníficas flores com seus lápis cor-de-
-rosa, laranja e azul.

Mas a professora disse: “Esperem! Eu vou mostrar como fazer!” E ela fez
uma flor vermelha com um caule verde. “Aí está”, disse ela, “agora, vocês
podem começar.”

73
Docência no Ensino Superior

O menino olhou a flor desenhada pela professora. Depois, olhou as suas


flores. Ele preferia as suas às da professora, mas não disse nada. Apenas
virou a sua folha e fez uma flor como a da professora. Ela era vermelha
com um caule verde.

[...]

E logo o menino aprendeu a esperar. E a olhar. E a fazer coisas exata-


mente como a professora.

E logo não fez mais nada por sua própria conta.

Então, aconteceu de o menino e sua família mudarem-se para outra


casa, em outra cidade. E ele teve de ir à outra escola. Essa escola era ainda
maior que a outra, e não havia porta para entrar diretamente em sua sala.
Ele precisava subir; subir degraus altos e caminhar por um longo corredor
para chegar à sua aula.

No primeiro dia, a professora disse: “Hoje, vamos fazer um desenho.”


“Legal!”, pensou o menino. E esperou que a professora dissesse o que
fazer. Porém, ela nada disse e simplesmente caminhou pela sala.

Quando chegou perto do menino, ela disse: “Você não quer fazer um
desenho?” “Sim”, disse o menino, “o que nós vamos fazer?” “Não sei antes
que você o faça”, disse a professora. “Como eu vou fazer esse desenho?”,
perguntou o menino. “Oh, como você quiser!”, disse a professora. “De
qualquer cor. Se todo mundo fizesse o mesmo desenho, como eu saberia
quem fez o quê?”

“Eu não sei”, disse o menino. E começou a fazer uma flor vermelha com
um caule verde.

Atividades
1. Leia o texto complementar e discuta o limite entre o papel educativo e
o abuso de poder na escola, estabelecendo relação com a avaliação.

74
Avaliação e aprendizagem: o sentido da transformação

2. Leia o trecho abaixo e atente para o questionamento que ele traz. A


seguir, identifique no texto da aula os elementos que respondem à
questão proposta.

Considerando-se que a abordagem da avaliação no contexto da apren-


dizagem predispõe a um debate sobre a formação do aluno, a questão
central é: Que lugares a avaliação ocupa nesse processo?

75
Docência no Ensino Superior

3. O trecho a seguir é de Philippe Perrenoud.

Mudar a avaliação é fácil dizer! Nem todas as mudanças são válidas.


[...] Para mudar as práticas no sentido de uma avaliação mais formativa,
menos seletiva, talvez se deva mudar a escola, pois a avaliação está no
centro do sistema didático e do sistema de ensino.

Depois de ler esse trecho, responda: o que você propõe que se mude
na escola para que, por consequência, também mude a avaliação?

Dica de estudo
Para esta aula, propomos uma reflexão trazida pelo filme O Clube do Im-
perador (The Emperor’s Club, EUA, 2002), dirigido por Michel Hoffman. A
história aborda o papel da avaliação, no contexto de uma escola para ra-
pazes. Aborda também aspectos importantes relacionados a formas de
avaliar, critérios e notas. Sua análise é interessante para a compreensão
dos processos de ensino, de aprendizagem e – sobretudo – de avaliação.

76
Avaliação e aprendizagem: o sentido da transformação

77
Gestão do trabalho pedagógico:
os professores como
planejadores
Isilda Louzano Perez
O grande desafio que se impõe à Educação, neste novo século, é o da
complexidade. Hoje, o conhecimento ultrapassa o limite da compreensão e
da assimilação e exige dos professores o planejamento da ação didática para
além da dimensão cognitiva. A exigência que se faz é a de inserir a dimensão
da Cultura no ato de planejar, o que implica um novo posicionamento em
relação ao sentido e ao significado do conhecimento.

A visão fragmentada, com saberes separados, deve abrir caminho para a


travessia rumo à direção proposta por Edgar Morin; as “realidades ou proble-
mas cada vez mais polidisciplinares, transversais, multidimensionais, transna-
cionais, globais, planetários” (MORIN, 2005, p. 13).

A questão central do planejamento pedagógico passa a localizar-se, se-


gundo Morin, nos princípios organizadores do conhecimento. Conteúdos acu-
mulados passam a ceder lugar às habilidades de pensamento.

Faz-se necessário que, na condição de planejadores, os professores racio-


cinem pedagogicamente sobre as operações que conjugam e matizam a or-
ganização dos conhecimentos. Mais uma vez Morin auxilia na discussão ao
afirmar que “trata-se de procurar sempre as relações e inter-retroações entre
cada fenômeno e seu contexto, as relações de reciprocidade todo-partes”
(MORIN, 2005, p. 25).

Desenha-se um quadro em que novos raciocínios pedagógicos devem


se impor. A reflexão sobre o papel e a distribuição do conhecimento leva à
consideração do projeto pedagógico da escola e dos fazeres de seus atores.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
cação Nacional (LDB, Lei 9.394/96) apontam para a necessária reorientação
exigida por um novo momento histórico.
Docência no Ensino Superior

Referindo-se a esses documentos legais, Penin esclarece que ambos


[...] propõem princípios educacionais e de ensino que podem orientar a implantação de
uma escola básica que atenda a diferentes especificidades de nossa tão heterogênea
população, assim como as demandas das mudanças culturais desse início de milênio.
(PENIN, 2001, p. 31)

Essa mesma discussão pode ser estendida para a educação superior ao


serem consideradas as orientações das diretrizes curriculares para os cursos
de graduação, que percorrem itinerário semelhante ao da educação básica.

A discussão das orientações legais enfatiza a necessária discussão das es-


colas e de seus atores sobre um planejamento voltado para as reais neces­
sidades educativas contemporâneas e apoiado na escolha de procedimentos
criativos e múltiplos, que respeitem as diferenças e levem em consideração
as experiências prévias dos alunos a quem o trabalho se dirige.

A escola precisa ser reconhecida como uma comunidade singular, com


projeto e identidades próprios. Para tanto, essa instituição deve exercer a au-
tonomia no grau em que lhe é possível. Isso tudo são fatores que se refletem
diretamente na atitude dos professores como planejadores da ação didática
e organizadores de seu trabalho pedagógico.

É nesse contexto que se passa, objetivamente, à abordagem dos professores


como planejadores. Que aspectos são relevantes quando se considera o papel
do docente como planejador da ação pedagógica? Que pressupostos estão
presentes na organização do trabalho pedagógico?

É preciso que se considere, a partir da definição de Vani Kenski (2005, p.


97), que o professor é um agente de memória, pois a ação docente pressupõe
a realização de intercâmbios relacionando espaços, tempos e conhecimen-
tos: o ato de planejar tem que ser datado, concreto e compatível com a reali-
dade a que se aplica.

A mesma autora aponta como segunda função própria da docência a


condição do professor como agente de valores, como aquele que age sobre o
comportamento e a atitude de seus alunos. Esta função remete à considera-
ção de que toda ação pedagógica planejada incide, deliberadamente ou não,
sobre os indivíduos a quem se dirige.

E na terceira e última função a autora indica a qualidade do professor como


agente de inovações: o que equivale a dizer que planejar a ação e organizar o
trabalho pedagógico implica considerar o momento e as características do
mundo e da sociedade em que se vive.

80
Gestão do trabalho pedagógico: os professores como planejadores

Esse conjunto de considerações define as condições em que se dá a orga-


nização do trabalho pedagógico.

Dimensões da organização
do trabalho pedagógico
Para que se compreenda as dimensões da organização do trabalho pe-
dagógico na escola, é interessante que antes se definam os planos, isto é, os
níveis em que a atividade escolar se insere. Esses planos são definidos por
Philippe Meirieu (2005) como:

plano antropológico;

plano político;

plano didático;

plano pedagógico.

No plano antropológico, a escola deve ser o local em que os indivíduos


se agrupam e se mobilizam em torno de objetivos comuns. É o que Meirieu
define como “‘a escola do respeito’; respeito aos seres e às coisas, respeito aos
locais e ao material, respeito aos bens pessoais e coletivos sem os quais não é
possível nenhum trabalho coletivo” (MEIRIEU, 2005, p. 28).

No plano político, a escola deve ser o espaço em que os grupos buscam


suas identidades e constroem a coletividade. É o que Meirieu chama de escola
que une. Segundo o autor, essa escola deve ser capaz de
[...] fundir um coletivo no interior do qual as diferenças possam depois ser expressadas,
sem que isso abale suas estruturas. Uma escola que faça da descoberta do que une um
de seus principais fundamentos, o próprio fundamento da possibilidade de expressar, em
seguida, de forma serena, o que diferencia e o que separa. (MEIRIEU, 2005, p. 28)

No plano didático, a escola deve possibilitar a apreensão do mundo por


meio do conhecimento e do entrecruzamento das experiências dos sujeitos
que a compõem. Na definição de Meirieu (2005, p. 29) é a escola que resiste, isto
é, que estabiliza os objetos de conhecimento e permite o debate sobre eles.

Na definição de Meirieu (2005, p. 29), a escola da democracia domestica


e emancipa ao mesmo tempo, pois, respeitando as experiências iniciais dos
sujeitos, leva-os por novos caminhos, visões e relações. E é essa escola que
define o plano pedagógico.
81
Docência no Ensino Superior

Na relação entre os diferentes níveis que compõem a escola é que se dá a


organização do trabalho pedagógico, entendido como o conjunto de medi-
das tomadas a partir de um planejamento visando à viabilização do ensino e
da aprendizagem.

Quando se pensa na organização do trabalho pedagógico, em um primei-


ro momento é comum a identificação da sala de aula como espaço exclusivo
do desenvolvimento da ação pedagógica: esse é o local que abriga o ofício
do professor e o ofício do aluno. Ora, essa visão reducionista do espaço sub-
mete o trabalho pedagógico a um campo de tal forma particularizado que
– muitas vezes – ele é mitificado como o único lugar em que se “dá luz ao
conhecimento”.

Hoje, pensar o desenvolvimento do ensino e da aprendizagem é conside-


rar que o ato educativo ultrapassa o espaço geográfico da sala de aula. A ação
docente tem antecedentes constituídos em aspectos definidos nas leis e nas
diretrizes educacionais, passando pela interlocução com os contextos locais
das escolas e chegando até a sala de aula – no momento da mais legítima
ação docente, que é a aula.

Assim, atualmente a gestão da aprendizagem requer a compreensão de


que se gerencia a complexidade. Compreender isso é quebrar a resistência e
aceitar, conforme aponta Meirieu, que “todos sabem que se pode aprender
sempre e em todo lugar e que esta atividade curiosa não se deixa limitar aos
locais que lhe são atribuídos” (MEIRIEU, p. 1998, p. 15).

Definir as dimensões da organização do trabalho pedagógico é, então,


levar em consideração

as diretrizes legais e educacionais que regem os sistemas de ensino;

as interferências dos contextos locais na produção do trabalho escolar;

os campos pré-configurados dos currículos, que definem de antemão


determinadas ações docentes;

os modelos de gestão, que – dependendo de suas características – de-


terminam formas de ensinar e de aprender;

o trabalho pedagógico na sala de aula e suas especificidades;

o trabalho pedagógico em espaços educativos diferenciados.

82
Gestão do trabalho pedagógico: os professores como planejadores

E isso tendo presente que a essas multidimensões se agregam as de ordem


social, cultural e epistemológica, as quais sustentam, datam e concretizam a
ação educativa. Isso resulta em afirmar que a docência e seus processos são
determinados pelo macrossistema educativo (isto é, pelos aspectos estrutu-
rais da educação, que dizem respeito ao fato de ela se inserir em um projeto
de nação) e pelo microssistema educativo (isto é, pela conjuntura da escola
como instituição, que particularmente constitui o espaço da sala de aula, no
qual são exercidos os ofícios de professor e de aluno).

A organização do trabalho pedagógico pressupõe que se interaja com a


organização da escola. Hoje, via de regra essa organização se dá em sala de
aula, local de agrupamento de estudantes de uma mesma faixa etária (ou
faixas próximas) e com o mesmo nível de escolaridade.

A história da educação no Brasil registra momentos em que outras formas


de agrupamentos tiveram ocorrência e exigiram diferentes formas de orga-
nizar o trabalho escolar. Exemplo disso são as classes multisseriadas, com o
trabalho pedagógico abrangendo em um mesmo agrupamento estudantes
de diferentes faixas de idade e diferentes níveis de escolaridade.

Experiências contemporâneas mostram não só a desconstrução da ideia


da sala de aula como referência de desenvolvimento do trabalho pedagógico
como também a desconstrução da sua existência física, surgindo escolas sem
salas de aula. Trata-se de um modelo de organização institucional que – por
suas características – requer a reorganização do trabalho pedagógico rumo a
um modelo que atenda a essa nova concepção.

Para Zabala, a constituição dos grupos de sala de aula demonstra que “o


surgimento de novos modelos organizativos é a resposta às novas inquieta-
ções no ensino, às diferentes concepções educativas e aos conhecimentos
psicopedagógicos” (ZABALA, 1998, p. 112).

É claro que se reconhece a sala de aula como um espaço de aprendizagem,


interação, formação e pesquisa, mas esse espaço não é o único. Segundo Elsa
Garrido (2001, p. 15),
[...] a sala de aula pode ser esse espaço formador para o aluno. Espaço em que ele aprende
a pensar, elaborar, expressar melhor suas ideias e a ressignificar suas concepções, ao
ser introduzido no universo dos saberes teoricamente elaborados e nos procedimentos
científicos de análise, interpretação e transformação da realidade.

No debate sobre as condições da organização do trabalho pedagógico, é


imprescindível que se aprofunde a ideia da pesquisa na sala de aula: profes-

83
Docência no Ensino Superior

sores e alunos pesquisadores são indispensáveis para o desenvolvimento da


educação que a sociedade contemporânea exige.

É preciso que cada vez mais se tenha a clareza de que a sala de aula tra-
balha não só com o conhecimento produzido, mas também produz conhe-
cimento na medida em que a organização do trabalho pedagógico assim o
permita.

É o que Donald Shön (1992) chama de reflexão sobre a reflexão da prática. A


afirmação de Shön remete à constatação de que o registro dos acontecimen-
tos da sala de aula permite, após reflexão circunstanciada, a revisão da prática
e a proposta de variabilidade, de mudança e de transformação compatíveis
com as exigências do ensino e da aprendizagem.

Nesse caso, a sala de aula e suas interações passam a produzir novos co-
nhecimentos, decorrentes da prática refletida, avaliada e modificada. Nas pa-
lavras de Garrido,
Houve um tempo em que a pesquisa se debruçou sobre o ensino. Tomou consciência
das insidiosas e ocultas interferências do poder, minando as relações entre os diferentes
atores no dia-a-dia da escola. A perspectiva do professor reflexivo/investigativo abre a
possibilidade para a transformação da escola num espaço de desenvolvimento pessoal,
profissional e organizacional aberto a projetos emancipatórios. Que esta via também nos
permita vislumbrar na vivência da sala de aula e nos ambientes escolares “o máximo de
sabor possível”. (GARRIDO, 2001, p. 139)

Pensar a organização do trabalho pedagógico, em qualquer nível de


ensino, é lidar com os contextos pré-configurados, isto é, contextos defini-
dos pela própria organização da escola. O trabalho docente se define, dentre
outros fatores, a partir de qual é o agrupamento, com quantos alunos, em
que nível de aprendizagem, com que experiências. É diferente, por exemplo,
pensar a organização do trabalho pedagógico para uma turma de 30 alunos
ou para uma turma de 60. Todavia, a definição numérica não é decisão do
professor: ela é posta pela organização institucional, de modo que é um fator
que compõe o campo pré-configurado.

A discussão empreendida neste texto permite considerar que a compre-


ensão das dimensões da organização do trabalho pedagógico auxilia na
criação do cenário em que se inscrevem os atos de planejar o ensino e or-
ganizar o trabalho pedagógico em uma perspectiva multifacetada, na qual
entram o planejamento como ação educativa e os planejadores como sujei-
tos dessa ação.

84
Gestão do trabalho pedagógico: os professores como planejadores

Os professores como planejadores


No início, este texto levantou duas questões abordando a ação planejado-
ra do professor:

Que aspectos são relevantes quando se considera o papel do professor


como planejador da ação pedagógica?

Que pressupostos estão presentes na organização do trabalho peda-


gógico?

Pensar o planejamento em seus diferentes níveis – educacional, escolar,


didático – é considerá-lo um processo reflexivo. Assim, planejar o sistema
educacional, a organização da escola ou a aula remete a uma atitude reflexiva
que, segundo Demerval Saviani (1987), incorpora três requisitos:

radicalização – busca da raiz do problema.

rigor – uso de metodologia científica.

visão global – olhar sobre a totalidade do fenômeno.

Retomando as questões anteriores, tem-se que o desenvolvimento do


pensamento reflexivo é relevante no papel do professor como planejador e
pressuposto da sua competência para organizar o trabalho pedagógico.

Ainda que ao professor caiba – diretamente – o planejamento didático,


essa ação não se dissocia das outras esferas do planejamento, pois o plane-
jamento didático implica a consideração de contextos. Assim, planejar não é
um ato neutro, que diz respeito somente ao fazer técnico: planejar implica
compromisso político.

Na sua relação com a prática social (isto é, com a consideração da realidade


e da visão das possibilidades de transformação), o planejamento envolve não
só o saber do professor como também o compromisso com um aluno real,
o conhecimento e a própria formação. Portanto, o planejamento ultrapassa
o limite da especificidade da escola e do trabalho do professor e estabelece
relações entre a escola, a educação e a sociedade.

Recuperando a história da educação no Brasil, vemos que, durante um


bom tempo, a escola tradicional tratou o planejamento como preparo de
aulas ministradas para um aluno abstrato por um docente que era o trans-

85
Docência no Ensino Superior

missor do conhecimento, seguindo um roteiro cujo objetivo principal era as-


segurar que o programa estabelecido fosse desenvolvido no tempo previs-
to. É dessa prática mecanizada e dessa postura acrítica que nasce a aversão
dos professores ao planejamento, frequentemente confundido com plano
de ensino.

Nesse mesmo movimento histórico, encontramos a concepção de pla-


nejamento voltado para as ideias de eficiência e eficácia, aceita e reforçada
pela ausência de reflexão dos professores sobre a prática pedagógica. José
Cerchi Fusari, referindo-se ao recorte histórico compreendido entre o final da
década de 1960 e o início dos anos 1980, diz que:
[...] na ausência de uma análise mais aprofundada dos problemas da educação e de
suas relações com o contexto socioeconômico e político vigente, esta “engenharia” de
planejamento, absorvida acriticamente pelos educadores brasileiros, acabava por ser
implantada de norte a sul do país. (FUSARI, 1989, p. 35)

Os requisitos necessários ao planejamento apontados por Saviani (radica-


lização, rigor e visão global) sustentam a postura reflexiva que o ato requer e
não tiveram lugar nesse momento histórico em que a técnica se sobrepunha
à reflexão crítica.

Como um planejador crítico, o professor deve ter a clareza de que a forma-


ção dos alunos, de qualquer nível de ensino, é condicionada pela qualidade
das aulas, que por sua vez não é garantida apenas pela elaboração de docu-
mentos e registros.

A aula tem que ser percebida como uma síntese complexa, não podendo
ser resumida em um documento chamado plano de aula ou plano de ensino.
E, como síntese complexa, ela traz em si o conteúdo da reflexão crítica que
permeia todas as instâncias que planejam a educação, convergindo para as
ações de ensino e de aprendizagem que dão sentido e definem a própria
função da escola. E é importante lembrar que o planejamento define a atitude
crítica dos professores diante da educação, do ensino e da aprendizagem. Na
definição de Fusari, planejamento é “a atuação concreta dos educadores no
cotidiano do seu trabalho pedagógico, envolvendo as suas ações e situações,
o tempo todo; envolvendo a permanente interação entre educadores e os
próprios educandos” (FUSARI, 1989, p. 10).

Com o tempo, a expressão passou a se confundir com plano, entendido


como o documento que contém a proposta de trabalho pedagógico para
uma área ou para uma disciplina. Essa confusão não se restringiu ao campo
semântico: estendeu-se para o campo conceitual. O que se observa é a confu-
86
Gestão do trabalho pedagógico: os professores como planejadores

são e os equívocos com que se tratam esses dois elementos – planejamento e


plano – tomando-se um pelo outro, sem uma análise mais circunstanciada da
essência de cada um deles, o que esse texto se propõe a fazer.

Documentos norteadores da organização


do trabalho pedagógico e suas funções
Antes que se passe à discussão dos documentos de registro da organi-
zação do trabalho pedagógico, mais particularmente dos planos de ensino,
considera-se importante retomar o conceito de planejamento em suas dife-
rentes possibilidades de significação, com base no estudo de Paulo Roberto
Padilha (2003, p. 32-35).

Planejamento educacional
Nesta acepção, o planejamento é compreendido como a reflexão neces-
sária para a organização do sistema de educação, em seus diferentes níveis –
nacional, estadual ou municipal. Pressupõe a determinação de objetivos, es-
tratégias e avaliação voltados para a consecução das políticas educacionais.

Planejamento curricular
É a dimensão do planejamento da dinâmica da ação escolar, em qualquer
nível de ensino. O planejamento curricular é “a proposta geral das experiências
de aprendizagem que serão oferecidas pela escola, incorporada nos diversos
componentes curriculares” (VASCONCELLOS apud PADILHA, 2003, p. 33).

Planejamento de ensino
É a efetiva ação dos educadores, no dia-a-dia da prática docente. Remete
a aspectos da interação entre professor e aluno nas atividades de ensino e
aprendizagem.

Planejamento escolar
Refere-se ao planejamento geral da escola; às tomadas de decisão sobre a
organização e o funcionamento da escola e à implementação coletiva do seu
projeto pedagógico.

87
Docência no Ensino Superior

Planejamento didático
Constitui-se nas definições em relação ao desenvolvimento das aulas, no
que se refere aos objetivos, conteúdos, metodologias e avaliação. Diz respei-
to às ações organizativas de um curso, de uma área, de uma disciplina ou de
uma aula.

Em qualquer uma das acepções acima, o planejamento se traduz na cons-


trução racional, científica, ideológica e filosófica de princípios que devem, de
alguma forma, materializar-se.

Chega-se, assim, à concepção de plano como documento que registra,


abriga e dá corpo às reflexões e análises desenvolvidas, e às decisões toma-
das no momento do planejamento. Sobrinho define plano como
Documento que registra o que se pensa fazer, como fazer, quando fazer, com que fazer,
com quem fazer. Para que exista plano é necessário que um grupo tenha antes se reunido
e, com base nos dados e informações disponíveis, tenha definido os objetivos a serem
alcançados, tenha confrontado os objetivos com os recursos humanos e financeiros
disponíveis, tenha definido o período de realizações das ações; enfim, tenha organizado o
conjunto das ações e recursos. (SOBRINHO apud PADILHA, 2003, p. 36)

Tal como anteriormente foram abordadas as diferentes acepções de pla-


nejamento, focalizam-se agora as diferentes acepções de plano, ainda na linha
de discussão apresentada por Padilha (2003, p. 36-41).

Plano escolar
É o documento-síntese, resultado do planejamento da escola como um
todo. Articula o projeto pedagógico da escola com os planos de ensino dos
professores.

Plano de curso
É um documento que orienta a trajetória individual e coletiva dos edu-
cadores, registra a essência do currículo e expressa a proposta pedagógica
do curso.

Plano de ensino
É o documento elaborado pelos professores, registrando a sua proposta
de trabalho para uma área ou disciplina, devendo refletir o processo de pla-
nejamento como um todo.

88
Gestão do trabalho pedagógico: os professores como planejadores

O que se tem a destacar, tanto do processo de planejamento quanto


da elaboração dos planos, é a inibição do improviso, colaborando para a
realização de uma ação educativa planejada, registrada, acompanhada
e avaliada.

Assim, o ato de planejar ganha sentido quando voltado para o exercí-


cio de “uma atividade engajada, intencional, científica, de caráter político e
ideológico e isento de neutralidade” (PADILHA, 2003, p. 63). Alguns princípios
devem ser considerados quando se discute a elaboração de planos, em qual-
quer nível de ensino, conforme abaixo.

Articulação entre conteúdos, objetivos, metodologias e avaliação: es-


ses quatro componentes guardam uma relação intrínseca que o plano
de ensino deve explicitar.

Declaração da base teórica da área/disciplina por meio das referências


bibliográficas que integram o plano de ensino.

Clareza na definição dos procedimentos e critérios de avaliação.

Seleção de conteúdos capaz de representar a visão da área específica,


objeto do plano de ensino.

Também é importante pontuar algumas características do plano de


ensino, as quais serão levadas em consideração no sentido de transformá-
-las em um valoroso instrumento de trabalho e não em uma obrigação que,
depois de cumprida, é esquecida em uma pasta qualquer. O plano de ensino
não deve ser

transformado em uma camisa-de-força – é importante que ele


seja flexível;

considerado um instrumento meramente técnico – ele contém decisões


que revelam o posicionamento do professor diante do processo educativo;

produto do isolamento do professor em sua área/disciplina, mas resul-


tado do compartilhamento entre pares;

considerado um documento de exclusivo domínio do professor – é


importante que seja um dos canais de comunicação entre o professor
e o aluno.

Para fechar estas considerações acerca de planejamento e plano, em


uma visão geral, devemos levar em conta que planejar e registrar o que se

89
Docência no Ensino Superior

planejou são atos que potencializam as possibilidades de reflexão, debate,


produção e estabelecimento de redes de conhecimento; redimensionam
espaços e tempos de aprender e de ensinar; tecem possibilidades de reler a
escola política e pedagogicamente. Portanto, não são atos mecânicos, téc-
nicos e repetitivos.

Texto complementar

Os professores como planejadores


(SACRISTÁN; PÉREZ, 1998, p. 276)

Todos os professores/as têm esquemas sobre como será sua prática em


termos gerais, ou seja, dispõem de esboços, mas muito poucos operam
com planos estruturados (MACCUTCHEON), a não ser que entendamos
por isso roteiros muito gerais de temas, distribuição de tempo de um
curso e coisas assim. O planejamento conscientemente desenvolvido há
de ser a reflexão e elaboração de “um curso ação” para realizar determi-
nado tempo. Nesse processo, os professores/as visualizam um esquema
geral de partida que orientará sua futura ação, como uma espécie de re-
presentação ou antecipação do que será sua prática globalmente (CLARK;
YINGER). Essa representação é uma construção pessoal idiossincrática
que cada professor/a se faz, reflexo de como percebem as situações pro-
fissionais, com uma certa influência na ação futura (CHARLIER), cuja orien-
tação, clareza e estrutura dependem das capacidades, da experiência e
da situação em que se atua.

O plano para os docentes significa profissionalmente um tempo para


dar oportunidade de pensar a prática representando-a antes de realizá-
-la num esquema que inclua os elementos importantes que intervêm na
mesma e que propõe uma sequência de atividades (GIMENO). O desen-
volvimento desse esquema deve seguir um processo cíclico de investiga-
ção na ação: pensar antes de decidir, observar e registrar o que acontece
quando se realiza e aproveitar os resultados e anotações tomadas sobre
o processo seguido para voltar a planejar o momento seguinte se ter em
mente como se há de fazer outra vez. Nesse processo vão se elaborando e
polindo esquemas, tomando consciência dos elementos que fazem parte
das situações, diferenciando progressivamente os esquemas, refletindo
sobre a experiência própria passada ou dos outros, “lembrando” as possi-

90
Gestão do trabalho pedagógico: os professores como planejadores

bilidades e alternativas de que se dispõe num dado momento, questionando


os hábitos dominantes de ensino e conscientizando-se, progressivamente,
da multiplicidade de dilemas frente aos quais se opta de fato sem sequer ter
se pensado neles. É um processo formativo progressivo. Um plano concreto
num dado momento expressa o estado desse processo nesse instante para
os que o realizam.

É mais frutífero entender o planejamento de professores/as como um pro-


cesso de resolução de problemas que enfrentam desde suas possibilidades
reais, numa situação em que há certas demandas e certas condições, em que
se deparam com dilemas frente aos quais é preciso optar com justificativas
éticas e científicas, se existem.

Atividades
1. Leia com atenção o trecho abaixo, retirado do texto. A seguir, descreva
como o plano de ensino elaborado pelo professor pode refletir memó-
ria, valores e inovações.

É preciso que se considere, a partir da definição de Vani Kenski (2005,


p. 97), que o professor é “um agente de memória”, pois a ação docente
pressupõe a realização de intercâmbios relacionando espaços, tempos e
conhecimentos. Isso quer dizer que o ato de planejar tem que ser datado,
concreto e compatível com a realidade a que se aplica.

A mesma autora aponta como segunda função própria da docência a


condição do professor como “agente de valores”, como aquele que age
sobre o comportamento e a atitude de seus alunos. Esta função remete à
consideração de que toda ação pedagógica planejada incide, deliberada-
mente ou não, sobre os indivíduos a quem se dirige.

E na terceira e última função a autora indica a qualidade do professor


como “agente de inovações”, o que equivale a dizer que planejar a ação
e organizar o trabalho pedagógico implica considerar o momento e as
características do mundo e da sociedade em que se vive.

91
Docência no Ensino Superior

2. Considerando o trecho abaixo, recortado do texto, procure distinguir


os significados de planejamento e plano de ensino. Discuta por que
esses dois elementos podem diminuir as possibilidades do improviso
na ação docente.

Plano de ensino é o documento elaborado pelos professores, registran-


do a sua proposta de trabalho para uma área ou disciplina e devendo
refletir o processo de planejamento como um todo.

O que se tem a destacar, tanto do processo de planejamento quanto da


elaboração dos planos, é a inibição do improviso que ambos são capazes
de favorecer, colaborando para a realização de uma ação educativa pla-
nejada, registrada, acompanhada e avaliada.

92
Gestão do trabalho pedagógico: os professores como planejadores

3. Leia o trecho abaixo, retirado do texto complementar, e procure res-


ponder a esta questão: por que o plano significa um tempo dado ao
professor para pensar a prática antes de realizá-la?

O plano para os docentes significa profissionalmente um tempo para


dar oportunidade de pensar a prática representando-a antes de realizá-
-la num esquema que inclua os elementos importantes que intervêm na
mesma e que propõe uma sequência de atividades.

Dica de estudo
Para aqueles que desejarem se aprofundar no tema desta aula, suge-
rimos a leitura de Gimeno Sacristán (1998), que discute o projeto edu-
cativo da escola fazendo uma análise interessante e rica sobre planeja-
mento curricular.

Essa leitura, sem dúvida, contribui para a melhor compreensão do sen-


tido de planejamento.

93
A definição de objetivos
e conteúdos

Isilda Louzano Perez


Para que se inicie uma discussão sobre os objetivos e conteúdos do ensino,
é necessário pontuar algumas explicações iniciais.

Objetivos e conteúdos são elementos do plano de ensino que os profes­


sores elaboram a cada novo período letivo para nortear o trabalho pedagó-
gico de suas disciplinas ou áreas. Ao lado da metodologia, da avaliação e das
referências (anteriormente chamadas bibliografia), os objetivos e conteúdos
compõem o documento denominado plano de ensino, que é resultante de
uma fase antecedente, a do planejamento, em que os docentes tomam deci-
sões sobre o trabalho pedagógico que desenvolverão.

É importante registrar que, a partir da concepção acerca de ensino e apren-


dizagem, os professores decidem sobre todos os elementos acima descritos,
os quais compõem o plano de ensino.

Traçar objetivos, selecionar conteúdos, decidir sobre metodologias, esta-


belecer critérios e formas de avaliação, selecionar referencial teórico de base
– em tudo isso está presente a concepção dos docentes sobre o que é ensinar
e o que é aprender.

As concepções presentes podem estar amparadas na visão a que se


pode chamar de pedagogia frontal ou à que se pode chamar de pedago-
gia diferenciada.

De modo breve, pode-se dizer que a pedagogia frontal se sustenta nas prá-
ticas tradicionais de ensino, em que o professor é considerado o detentor e o
transmissor do conhecimento ao aluno, que é considerado tábula rasa, isto
é, destituído de conhecimentos anteriores. A pedagogia frontal compreende
que a escola, tanto básica como superior, imprime no aluno a base de conheci-
mento de que ele necessita para a sua formação. É uma concepção que coloca
força na transmissão de conhecimentos, na sabedoria do professor diante da
ignorância do aluno, na verticalização das relações entre professor e aluno.
Docência no Ensino Superior

Por sua vez, a pedagogia diferenciada compreende as relações de ensino


e de aprendizagem com base em uma outra lógica. Admite que a mediação
do professor é indispensável para a aprendizagem dos alunos, mas também
considera que o aluno traz consigo, levando para a situação escolar, as experi-
ências de sua vida pessoal, social e cultural. Conforme Philippe Perrenoud, “a
Escola não se constrói a partir do zero, nem o aprendiz é uma tábula rasa, uma
mente vazia; ele sabe, ao contrário, muitas coisas [...] Muitas vezes, o ensino
choca-se de frente com as concepções dos aprendizes” (PERRENOUD, 2000, p.
28 [grifo do autor]).

E se o aluno não é uma tábula rasa, o trabalho escolar deve ser planejado le-
vando isso em consideração, levando em conta as diferenças, pois “diferenciar
o ensino é fazer com que cada aprendiz vivencie, tão frequentemente quanto
possível, situações fecundas de aprendizagem” (PERRENOUD, 2000, p. 9).

Um dos pressupostos da pedagogia diferenciada é a busca do sucesso


escolar em todos os níveis de ensino, com implicações diretas nas formas e
possibilidades buscadas para a organização do trabalho pedagógico.

Então, quais as considerações importantes quando se pensa na organização


de um trabalho pedagógico que colabore, efetivamente, para o sucesso escolar?

A organização de qualquer tipo de atividade, inclusive a pedagógica, pres-


supõe a definição de objetivos a serem atingidos. No trabalho pedagógico,
ainda se pressupõe a definição de competências que, espera-se, serão cons-
truídas pelos alunos com a mediação didático-pedagógica do professor. No-
te-se que não há incompatibilidade entre a expressão de objetivos de ensino
e a construção de competências: objetivos traçados colaboram na busca da
construção das competências esperadas.

Mas o que é competência? Segundo Perrenoud, “não existe uma defini-


ção clara e partilhada das competências. A palavra tem muitos significados e
ninguém pode pretender dar a definição” (PERRENOUD, 1999, p. 19). Então,
como compreender a ideia de competência?

Essa ideia se liga

à construção de conhecimentos;

ao resultado de uma aprendizagem significativa que permite ao aluno


compreender o sentido daquilo que aprende e, mais que isso, saber se-
lecionar o conhecimento para uso e aplicação em situações específicas;

96
A definição de objetivos e conteúdos

a aprendizagens complexas, que exigem a mobilização de estruturas


complexas, como analisar, sintetizar, inferir, pesquisar, raciocinar, ar-
gumentar, dentre outras – mobilizar competência é usar o pensamento
complexo e não, apenas, conteúdos memorizados mecanicamente.

Por exemplo, quantas vezes não se ouve o questionamento “Para que


devo aprender análise sintática? Em que me será útil saber sobre o sujeito,
o predicado e os complementos?”. Na perspectiva de um ensino frontal, em
que os conhecimentos são transmitidos, essas perguntas ficam sem respos-
tas palpáveis, mas se consideramos os pressupostos da pedagogia diferen-
ciada podemos responder a essas questões com a ideia de competência: o
sentido da análise sintática pode ser percebido nas situações reais de escrita,
em que devemos nos comunicar com coerência, por meio de um texto coeso,
em que a sintaxe garanta a qualidade do escrito. É no momento da real escri-
ta do texto em que mobilizamos um conhecimento que não se apresentou
com significado para nós durante a aprendizagem. É o momento de uso das
estruturas complexas do pensamento.

Nessa linha de discussão, Perrenoud questiona:


[...] na escola, os alunos aprendem formas de conjugação, fatos históricos ou, por exemplo,
efetuar uma divisão por escrito ou resolver uma equação de segundo grau. Mesmo de
posse desses conhecimentos, eles saberão em que circunstâncias e em que momentos
aplicá-los? (PERRENOUD, 1999, p. 31)

As competências são construídas a partir das situações de interação do


indivíduo com os demais e dos indivíduos com o conhecimento, de modo
contextualizado. Portanto, ser competente é saber utilizar um conhecimento
construído – com significação e com a propriedade que cada situação parti-
cular requer.

Note-se que falar em competências não significa negar o sentido da discipli-


na, como às vezes se pode pensar. Segundo Perrenoud (1999, p. 40), “as com-
petências mobilizam conhecimentos dos quais grande parte é e continuará
sendo de ordem disciplinar”.

Neste ponto, remetemo-nos às considerações de competências e habili-


dades com foco no aluno.

Habilidades e competências: o foco no aluno


Até aqui, toda a nossa discussão sobre competências se dirige para o foco
principal do processo de ensinar e de aprender: o aluno.
97
Docência no Ensino Superior

Ensinar por competências exige um novo olhar sobre quem aprende,


sobre quem ensina, sobre o que e como se ensina. Conforme aponta Per-
renoud (1999, p. 57), “um treinador não dá muitas aulas. Coloca o aprendiz
em situações que o obriguem a alcançar uma meta, a resolver problemas, a
tomar decisões”.

Assim, ocorre uma mudança na relação de ensino e de aprendizagem. Se


para ensinar por competências o professor precisa diferenciar a sua prática e
a organização do seu trabalho pedagógico, por outro lado o aluno precisa se
rever em seu ofício de aluno. Desse modo, um aluno só chega à construção
de competências complexas se for submetido a situações que exijam a mobi-
lização do pensamento complexo. Para Perrenoud,
No campo dos aprendizados gerais, um estudante será levado a construir competências de
alto nível somente confrontando-se, regular e intensamente, com problemas numerosos,
complexos, realistas, que mobilizem diversos tipos de recursos cognitivos. (PERRENOUD,
1999, p. 57)

Com isso, apresenta-se para o professor um duplo desafio: de um lado,


permitir-se a variabilidade didática, isto é, mudanças de prática para melhor
atendimento de um ensino baseado em competências; de outro, convencer
o aluno de que essa nova abordagem exige dele um novo modo de se rela-
cionar com o conhecimento, com o ensino e com a aprendizagem.

O sentido e as necessidades de uma nova organização do trabalho peda-


gógico requerem agora um novo contrato didático, com novas combinações
entre professores e alunos para que a necessária revisão ocorra. Impõe-se a
revisão dos ofícios de professor e de aluno. Quais as possíveis implicações
dessa revisão de ofícios?

Ela implica um grau de transparência capaz de tornar visível:

o que se pretende;

os processos a serem percorridos e o papel de cada um nesse percurso;

o desenvolvimento da cooperação como ferramenta pedagógica, isto


é, uma mobilização não só do indivíduo e sim de todo o grupo no sen-
tido da construção do conhecimento;

uma ruptura com a visão frontal da pedagogia – que, de certa forma,


isola e enfraquece o coletivo.

Que procedimentos são necessários para que, verdadeiramente, os alunos


desenvolvam competências e habilidades? A partir do que deve ser revista a
98
A definição de objetivos e conteúdos

organização do trabalho pedagógico? As respostas a esses questionamentos


exigem uma reflexão sobre:

a consideração dos conhecimentos prévios – incorporação de ações


capazes de identificar quanta experiência os alunos trazem em relação
a determinados conhecimentos disciplinares/áreas.

a significação dos conteúdos – mobilização de recursos cognitivos


que levam os alunos a identificar a importância e o significado do que
aprendem.

conflito cognitivo e atividade mental – previsão de situações que, de


certa forma, obriguem os alunos a refletir sobre o que aprendem e so-
bre as formas como interpretam o que aprendem.

a atitude diante do conhecimento – o interesse pela aprendizagem é


fomentado, em grande parte, pelo tipo de relação estabelecida entre
professor e aluno, de modo que a organização do trabalho pedagógico
deve incluir situações favoráveis a essa relação.

aprender a aprender – a aprendizagem por competência traz em si a


construção da aprendizagem autônoma e, assim, aprender a aprender
faz mais sentido do que simplesmente aprender e, portanto, a organi-
zação do trabalho pedagógico deve permitir que esse processo inves-
tigativo do ato de aprender esteja presente.

A organização do trabalho pedagógico com foco no desenvolvimento das


habilidades e das competências dos alunos considera que a contribuição dos
alunos – com suas experiências pessoais, sociais, culturais e educacionais – é
de fundamental importância porque o trabalho se dirige a sujeitos reais e é
desenvolvido para eles. Por mais apurada que seja a organização do trabalho
pedagógico, ela não produzirá os efeitos esperados sobre o sucesso escolar
do aluno em toda a fase de escolaridade se não pressupor que o aluno modi-
fica a aula.

Os procedimentos de avaliação por competências merecem cuidado es-


pecial. É importante que, como postula Antoni Zabala,
Do papel que tem para a aprendizagem a avaliação que os professores fazem de seus alunos
e da necessidade de que as ajudas que ofereçam sejam adequadas às suas possibilidades
reais, decorre que a função básica dos professores deve ser incentivar os alunos a realizar o
esforço que lhes permita continuar progredindo. (ZABALA, 1998, p. 103)

Se na perspectiva da pedagogia frontal cabe ao professor ensinar, agora


– em novo ângulo – a ele cabe fazer aprender. Todas as ações referentes à
99
Docência no Ensino Superior

organização do trabalho pedagógico que focalizem o aluno e o desenvolvi-


mento de suas habilidades e competências devem considerar a necessidade
de criação de situações de aprendizagem complexas, diversificadas – sem se
tornarem fragmentadas – e interativas, considerando que tanto o ofício do-
cente quanto o ofício de aluno necessitam de constante negociação e de um
balanço das realizações. A isso se acrescente que, para dar conta do leque de
demandas, a organização do trabalho pedagógico deve se preocupar com a
orientação do desenvolvimento de conteúdos de ensino de ordem conceitual,
atitudinal e procedimental.

Tipologia de conteúdos:
conceituais, atitudinais e procedimentais
A abordagem dos conteúdos de ensino – a seleção que os professores
fazem em relação ao que determinada disciplina/área tem de fundamental
– implica a consideração de uma tipologia que classifica os conteúdos em
conceituais, atitudinais e procedimentais, garantindo a visão da área sobre a
qual se trabalha.

Na organização do trabalho pedagógico, é importante que esses três ele-


mentos da tipologia de conteúdos se distingam e, ao mesmo tempo, garan-
tam uma unidade de conhecimento, mas sem serem entendidos como uma
classificação rígida.

É importante o trabalho com diferentes tipos de conteúdos, de modo a


identificar diferentes aprendizagens.

E ainda que cada um desses tipos tenha a sua especificidade, eles não são
estanques e indissociados. Além do que, sempre eles devem ser estabeleci-
dos a partir de contextos que definam:

O que são?

Com que finalidades se desenvolvem?

Que relações estabelecem com o conhecimento global?

Em que grau de complexidade devem ser propostos e desenvolvidos?

Essas são considerações que norteiam o trabalho pedagógico para que se


garanta aprendizagem significativa e global.

100
A definição de objetivos e conteúdos

Segundo César Coll,


A distinção entre os três tipos de conteúdos [...] encerra uma mensagem pedagógica
importante. Entre outras coisas, supõe uma tentativa de romper com a prática
habitual, justificadamente denunciada em inúmeras ocasiões, de um ensino centrado
excessivamente na memorização mais ou menos repetitiva de fatos e na assimilação
mais ou menos compreensível de conceitos e sistemas conceituais. Mas supõe, também,
o que poderia ser ainda mais importante, uma tentativa de acabar com certa tradição
pedagógica que, de forma totalmente injustificada, exclui do ensino sistemático um certo
tipo de formas e conhecimentos culturais, cuja importância está fora de qualquer dúvida
e cuja assimilação é deixada inteiramente à única e exclusiva responsabilidade do aluno.
(COLL et al., 2000, p. 15)

Explicitando a colocação de Coll, tem-se que – muitas vezes – o ensino


frontal deixa por conta do aluno as sínteses que os professores consideram
necessárias: espera-se que os alunos demonstrem domínio sobre certos pro-
cedimentos e revelem certas atitudes sem que isso já tenha ocorrido no de-
senvolvimento das aulas e nem transpareça na organização que o professor
faz de seu trabalho.

Conteúdos conceituais
O conhecimento das diferentes disciplinas ou áreas de conhecimento
pressupõe um conjunto de dados e fatos. Precisa-se de uma base de dados
para se ter a visão da disciplina e a visão da área que a constitui. Porém, não
basta que se tenha à mão uma boa base de dados: é necessário que se saiba
compreendê-la e interpretá-la.

Esse ponto constitui a diferença entre a abordagem conteudística da pe-


dagogia frontal e a abordagem por competências da pedagogia diferenciada.
Vamos utilizar a exemplificação de Juan Ignacio Pozo (2000, p. 20):
[...] o que caracteriza a aprendizagem de dados e fatos é que eles devem ser lembrados ou
devem ser reconhecidos de modo literal. Entretanto, para saber alguma coisa da economia
ou prever de alguma forma as futuras oscilações do dólar ou o preço do dinheiro, não
basta estar informado no sentido de conhecer uma série de dados econômicos. É preciso
também compreendê-los, ou seja, estabelecer relações significativas.

É importante frisar que conteúdos, procedimentos e atitudes são desen-


volvidos simultaneamente, mas determinadas disciplinas ou áreas requerem
mais insistentemente determinado tipo de conteúdo: cada uma delas tem a
sua base conceitual – portanto, uma rede de dados própria.

E ainda que a base conceitual das disciplinas e áreas de conhecimento


seja o que as caracteriza, os outros tipos – procedimentos e atitudes – não
se tornam menos relevantes por isso. Como diz Pozo, “podem ser aponta-

101
Docência no Ensino Superior

dos – em diferentes situações – como transversais, isto é, podem partilhar do


espaço conceitual das disciplinas e áreas” (POZO, 2000, p. 23).

No âmbito dos conteúdos conceituais, é importante que sejam distingui-


dos fatos e conceitos: fatos são aprendidos literalmente, enquanto conceitos
são aprendidos em relação com os conhecimentos prévios. Assim, os fatos
são adquiridos por memorização enquanto a compreensão de conceitos
deve ser significativa.

Como explica Coll, os fatos e os dados são do tipo “tudo ou nada”, ou seja,
sabe-se ou não sobre determinado fato, não há a possibilidade de se saber
mais ou menos. Por sua vez, o conceito, para ser compreendido, depende de
experiências anteriores que devem ser ativadas e ligadas a novas aprendiza-
gens. Assim, “a compreensão não é algo branco ou preto, como a reprodução
de um nome ou de um dado, mas admite muitos tons de cinza intermediá-
rios” (POZO, 2000, p. 27). Aprender significativamente é diferente de aprender
por apelo à memória, conforme distingue o quadro abaixo.

Quadro 1 – Atitudes necessárias à aprendizagem significativa e à


aprendizagem memorística

(NOVAK; GOWIN, 1984)


Aprendizagem significativa Aprendizagem memorística

Esforço deliberado para relacionar os no- Nenhum esforço para integrar os novos co-
vos conhecimentos com os conhecimen- nhecimentos com os conhecimentos já exis-
tos já existentes na estrutura cognitiva. tentes na estrutura cognitiva.

Orientação para aprendizagens relaciona- Orientação para aprendizagens não relacio-


das com experiências, fatos ou objetos. nadas com experiências, fatos ou objetos.

Envolvimento afetivo para relacionar os Nenhum envolvimento afetivo para relacio-


novos conhecimentos com aprendizagens nar os novos conhecimentos com aprendiza-
anteriores. gens anteriores.

Os conteúdos conceituais exigem da organização do trabalho pedagógico


a seleção de materiais significativos que possam estabelecer as relações ne-
cessárias com os conhecimentos prévios dos alunos. Graficamente, as fases
de desenvolvimento das atividades significativas podem ser representadas
conforme a seguir.

102
A definição de objetivos e conteúdos

(POZO, 2000, p. 53)


Atividades significativas

Ativar os conhecimentos prévios – o que os alunos já conhecem sobre o


conteúdo em questão.

Organização dos conceitos a serem apresentados, de forma clara e


motivadora.

Criação de relações entre os conhecimentos prévios dos alunos e a or-


ganização dos conceitos apresentada – comparação, exemplificação,
aplicação etc.

Na aprendizagem de conceitos, o objetivo dessa sequência é permitir a


“ponte cognitiva”, isto é, a ligação entre o material já conhecido e o material
novo.

Para se inteirar do que os alunos já sabem sobre determinado conteúdo,


há alguns caminhos possíveis. Por exemplo,

avaliação diagnóstica, cuja realização ocorre sempre que se inicia uma


nova sequência de aprendizagem;

aplicação de questionários sobre determinado assunto;

apresentação de situações-problema, para observação dos caminhos


de solução escolhidos pelos alunos.

Essas propostas têm uma importante função didática: apresentar os con-


ceitos e observar como os alunos aplicam os conhecimentos anteriores em
situações atuais. Assim, essas propostas

permitem ao professor conhecer o trajeto cognitivo dos alunos – suas


formas de pensar;

permitem que o aluno argumente a favor dos caminhos que escolhe;

desencadeiam a discussão em grupo.

A partir de tudo isso, elas permitem a aprendizagem de procedimentos e


de atitudes.

103
Docência no Ensino Superior

E é preciso apontar os cuidados que a avaliação requer quando se trata da


abordagem de fatos ou de conceitos. O instrumento de avaliação elaborado
deve evitar questões que estimulem a memorização ou a reprodução, incen-
tivando aqueles que propiciam a mobilização de competências relacionadas
ao desenvolvimento do pensamento complexo, como analisar, sintetizar, in-
ferir, concluir, investigar, relacionar, argumentar – dentre outras.

O sentido da avaliação de conceitos se coloca mais na valorização da


compreensão que na repetição; mais na mobilização de competências que
na reprodução de conteúdos; mais no pensamento complexo que no pen-
samento linear.

Conteúdos procedimentais
Como se pode definir o que são procedimentos? Na verdade, procedimen-
tos são ações ordenadas que têm como objetivo a realização de determinadas
ações. Segundo César Coll e Enric Valls (2000, p. 77), os traços característicos
de todo procedimento são:

referir-se a uma atuação;

não ser uma atuação qualquer, mas ordenada;

o fato de essa atuação se orientar para a consecução de uma meta.

As atuações exigidas dos alunos se dirigem, então, para metas esperadas:


para serem atingidas, essas metas dependem do empenho e da seriedade
com que são buscadas. Então, o conteúdo procedimental traz a ideia de “sa-
ber-fazer, saber agir de maneira eficaz” (COLL, 2000, p. 77).

A ideia de procedimento diz respeito às habilidades que queremos que


os alunos desenvolvam e não à metodologia de trabalho do professor. É um
conteúdo escolar, dependendo de aprendizagem, intervenção do professor,
acompanhamento e avaliação.

A afirmação nas DCB1 explica que:


Não devemos confundir um procedimento com uma determinada metodologia.
O procedimento é a destreza que queremos ajudar o aluno a construir. É, portanto,
um conteúdo escolar, objeto de planejamento e da intervenção educativa, e a
aprendizagem desse procedimento pode ser trabalhada por meio de diferentes
métodos. (COLL, 2000, p. 88)

1
Diretrizes Curriculares da Educação Básica espanhola.

104
A definição de objetivos e conteúdos

Para estabelecer a distinção entre conceitos e procedimentos, Coll apresen-


ta os verbos conceituais e os verbos procedimentais, alertando para a confu-
são que comumente ocorre na indicação do que é conceito e do que é pro-
cedimento. Como verbos conceituais, ele indica “descrever, conhecer, explicar,
relacionar, lembrar, analisar, inferir, interpretar, tirar conclusões, enumerar,
resumir...” E, como verbos procedimentais, “manejar, usar, construir, aplicar, ob-
servar, experimentar, elaborar, simular, demonstrar, planejar, compor, avaliar,
representar...” (COLL, 2000, p. 91).

Quando se aborda a aprendizagem procedimental, não se está falando,


exclusivamente, da aplicação de regras, normas, fórmulas, modos de usar,
instruções, mas também da habilidade necessária para colocar tudo isso em
prática. A avaliação de conteúdos procedimentais deve não apenas se voltar
para o procedimento em si, mas também para sua adequada utilização.

E da mesma forma que a aprendizagem significativa de conceitos cria uma


rede conceitual em que cada conceito novo se agrega ao anterior, o mesmo
fenômeno ocorre com a aprendizagem significativa de procedimentos: a cada
novo procedimento se liga um anterior, transformando-o e enriquecendo-o.
A exemplo dos conceitos, esses novos procedimentos vão se estabelecendo
na estrutura cognitiva dos alunos, criando vínculos e conexões.

O progresso dos procedimentos se dá de forma gradativa, diferente do


que ocorre, por exemplo, com os fatos, cujo conhecimento é o do “tudo ou
nada”, conforme explicitado anteriormente. Os procedimentos, isto é, o saber
fazer, o saber colocar em prática, aperfeiçoa-se gradativamente. Sobre isso,
Coll afirma que:
Geralmente estabelecemos claras diferenças entre aquele que faz tudo bem, que é jeitoso,
que é um especialista, e aquele que faz tentativas e não alcança sucesso nas suas ações;
alguns são chamados de hábeis ou destros, outros inexperientes, ou até desajeitados;
na escola, alguns são mais capazes do que outros, alguns atuam com maior perícia, são
rápidos, acertam o caminho que os levará ao sucesso etc. Entre uns e outros há graus de
aprendizagens diferentes. (COLL, 2000, p. 97)

O que se espera do aluno em relação à aprendizagem procedimental é


que, cada vez mais, desenvolva os procedimentos e os aplique em grau cres-
cente de pertinência, automaticidade e organização. Coll indica facilitadores
da aquisição de conteúdos procedimentais:

imitação de modelos;

ensino direto da parte do professor ou de outros alunos;

explicitação dos componentes da ação e da ordem a ser seguida;


105
Docência no Ensino Superior

advertências sobre obstáculos e erros;

fornecimento de pistas a serem seguidas;

análise e reflexão sobre as atuações.

A contínua interação de professor e aluno é de fundamental importância


na aprendizagem de conteúdos procedimentais.

Conteúdos atitudinais
Como se define o que são atitudes? A atitude é uma característica da per-
sonalidade individual, ainda que possa ser vista em função de fatores sociais:
normas, papéis, valores, crenças. Bernabé Sarabia apresenta abaixo defini-
ções de atitude segundo autores diferentes.

Uma organização duradoura de processos motivacionais, emocionais,


perceptivos, cognitivos em relação a algum aspecto do mundo do indi-
víduo (KRECH; CRUTCHFIELD apud SARABIA 2000, p. 122).

Uma tendência ou predisposição do indivíduo para avaliar um objeto ou


símbolo desse objeto (KATZ; STOTLAND apud SARABIA 2000, p. 122).

Uma predisposição relativamente estável da conduta em relação a um


objeto ou setor da realidade (CASTILLEJO apud SARABIA 2000, p. 122).

A atitude envolve um componente afetivo e uma tendência à ação. Assim,


Sarabia define atitudes como “tendências ou disposições adquiridas e rela-
tivamente duradouras a avaliar de um modo determinado objeto, pessoa,
acontecimento ou situação e a atuar de acordo com essa avaliação” (SARABIA,
2000, p. 122). E esse mesmo autor diferencia atitudes de:

temperamento;

humor ou estado de ânimo;

valores;

opiniões;

cognições e crenças;

hábitos;

habilidades ou inteligência.
106
A definição de objetivos e conteúdos

Hoje, as atitudes estão incluídas no ensino como conteúdo, assim como


os conceitos e os procedimentos: o desenvolvimento de todos os conteúdos
escolares, de qualquer nível de ensino, exige a aprendizagem de atitudes. A
organização do trabalho pedagógico deve incluir, em suas disposições, recur-
sos atitudinais capazes de colaborar para o desenvolvimento qualitativo da
aprendizagem.

O ato de aprender recebe influência do que é ensinado, por quem é ensi-


nado e como é ensinado. Atitudes como curiosidade, espírito investigativo,
vontade e interesse favorecem a aprendizagem.

Não é por acaso que os conteúdos atitudinais estão incluídos nos con­
teúdos escolares. Nos objetivos de todas as áreas curriculares, estão implíci-
tas determinadas atitudes esperadas e necessárias para o desenvolvimento
global do aluno.

Uma questão que se coloca na discussão da aprendizagem atitudinal é


“Como se avaliam as atitudes em qualquer nível de escolarização?” As atitu-
des são construtos hipotéticos e por isso não são diretamente observáveis.
Na verdade, não enxergamos as atitudes, mas inferimos a sua existência a
partir da resposta dos sujeitos a determinadas situações. Assim, é mais pela
observação que por instrumentos que se avaliam os conteúdos atitudinais.
Porém, essa observação deve ser guiada e o guia indicado por Sarabia (2000,
p. 172) está nos próprios componentes da atitude:

cognitivos – capacidade de pensar.

afetivos – sensações, emoções, paixões.

tendência à ação – comportamental, de conduta.

O registro pode ser um meio de dar corpo à avaliação atitudinal, tanto


individual quanto coletiva.

Concluindo
Este texto objetivou colocar em discussão o significado de competências e
de habilidades, bem como a construção da tipologia dos conteúdos: concei-
tual, atitudinal e procedimental.

O que se pretende frisar é que para cada uma das situações abordadas
pelo texto é preciso que se pensem as características da organização do tra-
balho pedagógico.
107
Docência no Ensino Superior

Então, planejar o ensino, realizar o plano, desenvolver estratégias de ensino


e de aprendizagem voltadas para uma formação competente exige a devida
adequabilidade das formas e meios de se organizar o trabalho pedagógico.

Texto complementar

Planejamento e plasticidade na aplicação


(ZABALA, 1998, p. 93)

A complexidade dos processos educativos faz com que dificilmente se


possa prever [...] o que acontecerá na aula. Agora, este mesmo inconve-
niente é o que aconselha que os professores contêm com o maior número
de meios e estratégias para poder atender às diferentes demandas que
aparecerão no transcurso do processo de ensino/aprendizagem. Este fato
recomenda duas atuações aparentemente contraditórias: por um lado,
poder contar com uma proposta de intervenção suficientemente elabo-
rada; e por outro, simultaneamente, com uma aplicação extremamente
plástica e livre de rigidez. Trata-se de uma aplicação que nunca pode ser o
resultado da improvisação, já que a própria dinâmica da aula e a comple-
xidade dos processos grupais de ensino-aprendizagem obrigam a dispor
previamente de um leque amplo de atividades que ajudem a resolver os
diferentes problemas que a prática educativa coloca.

É imprescindível prever propostas de atividades articuladas e situações


que favoreçam diferentes formas de se relacionar e interagir: distribui-
ções grupais, com organizações internas convenientemente estruturadas
através de equipes fixas e móveis com atribuições de responsabilidades
claramente definidas; espaços de debate e comunicação espontâneos e
regrados, como resultado da resolução de um conflito determinado nas as-
sembleias periódicas; trabalhos de campo, excursões e visitas que situem
os alunos frente à necessidade de resolver situações de convivência dife-
rentes das que habitualmente lhes oferece a escola, a família ou o grupo
de amigos; conjuntos de atividades e tarefas que geram e favoreçam a

108
A definição de objetivos e conteúdos

multiplicidade de situações comunicativas e de inter-relação que possam


ser orientadas e utilizadas educativamente por parte dos professores.

Ao mesmo tempo, o planejamento tem que ser suficientemente diver-


sificado para incluir atividades e momentos de observação do processo
que os alunos seguem. É preciso propor aos alunos exercícios e ativida-
des que ofereçam o maior número de produções e condutas para que
sejam processadas, a fim de que oportunizem todo tipo de dados sobre
as ações a empreender. Mover-se nos parâmetros de referências metodo-
lógicas extremamente abertas à participação do aluno para conhecer o
processo que cada um segue. Procurar fórmulas organizativas que permi-
tam a atenção individualizada, o que implica o planejamento estruturado
de atividades em pequenos grupos ou individualmente, para que exista a
possibilidade de atender a alguns alunos enquanto os demais estão ocu-
pados em suas tarefas. Tudo isso deve permitir a individualização do tipo
de ajuda, já que nem todos aprendem da mesma forma nem no mesmo
ritmo e, portanto, tampouco o fazem com as mesmas atividades.

Tem que ser um planejamento suficientemente flexível para poder se


adaptar às diferentes situações de aula, como também deve levar em
conta contribuições dos alunos desde o princípio. É importante que
possam participar na tomada de decisões sobre o caráter das unidades
didáticas e a forma de organizar as tarefas e seu desenvolvimento, a fim
de que não apenas aumentem o nível de envolvimento no ritmo da classe
em geral, como seus próprios processos de aprendizagem, entendendo o
porquê das tarefas propostas e responsabilizando-se pelo processo autô-
nomo de construção do conhecimento.

Quer dizer, um planejamento com previsão das intenções e como plano de


intervenção, entendido como um marco flexível para a orientação do ensino,
que permita introduzir modificações e adaptações, tanto no planejamento
mais a longo prazo como na aplicação pontual, segundo o conhecimento
que se vá adquirindo através das manifestações e produções dos alunos, seu
acompanhamento constante e a avaliação continuada de seu progresso.

109
Docência no Ensino Superior

Atividades
1. Na abordagem de Perrenoud, “diferenciar o ensino é fazer com que cada
aprendiz vivencie, tão frequentemente quanto possível, situações fecun-
das de aprendizagem”. Reportando-se às características da pedagogia di-
ferenciada, como se pode explicar o conteúdo do trecho anterior?

2. A partir da leitura do texto abaixo, descreva o sentido do que são as


competências que serão construídas pelos alunos.

A organização de qualquer tipo de atividade, inclusive a pedagógica, pres-


supõe a definição de objetivos a serem atingidos. No trabalho pedagógico,
ainda se pressupõe a definição de competências que, espera-se, serão cons-
truídas pelos alunos com a mediação didático-pedagógica do professor.

110
A definição de objetivos e conteúdos

3. Explique o esquema abaixo, sobre as relações que se estabelecem no


desenvolvimento de atividades significativas, dando sentido à apren-
dizagem significativa.

(POZO, 2000, p. 53)


Atividades significativas

Ativar os conhecimentos prévios – o que os alunos já conhecem sobre o


conteúdo em questão.

Organização dos conceitos a serem apresentados, de forma clara e


motivadora.

Criação de relações entre os conhecimentos prévios dos alunos e a or-


ganização dos conceitos apresentada – comparação, exemplificação,
aplicação etc.

Dica de estudo
Uma leitura ao documento introdutório dos Parâmetros Curriculares
Nacionais – MEC/SEF, 1997 – pode auxiliar na compreensão do signi-
ficado não só dos conteúdos de ensino, mas da própria concepção da
orientação cur­ricular no sistema brasileiro de ensino. É recomendável
essa aproximação.

111
Metodologias de ensino

Isilda Louzano Perez


Tratar de metodologias de ensino requer a consideração inicial de que a
prática docente não se dá no vazio, mas em contextos pré-configurados, que
são apresentados pela organização e pelo projeto pedagógico da instituição.
O professor não tem interferência sobre esses contextos pré-configurados,
são exemplos o número de alunos por turma; os turnos de funcionamento
das aulas; a disponibilidade de espaço físico; a oferta de materiais e recursos
pedagógicos.

Isso significa considerar que a autonomia do professor não é irrestrita: ele


pode manifestar o desejo e a intenção de desenvolver certas metodologias
que considera adequadas ao seu ensino, porém o quanto ele poderá fazer em
relação a isso é determinado pelas condições institucionais.

Zabala (1998, p. 16) refere-se a esses condicionantes da prática docente


explicitando que
A estrutura da prática obedece a múltiplos determinantes, tem sua justificação em
parâmetros institucionais, organizativos, tradições metodológicas, possibilidades reais dos
professores, dos meios, das condições físicas existentes etc. Mas a prática é algo fluido,
fugidio, difícil de limitar com coordenadas simples e, além do mais, complexa já que nela
se expressam múltiplos fatores, ideias, valores, hábitos pedagógicos etc.

Quando os contextos pré-configurados não são considerados nas esco-


lhas de metodologias e – portanto – a prática do professor não se dá a partir
de contextos definidos, o que acaba acontecendo é o desenvolvimento de
uma prática de ensino descontextualizada, técnica, mecânica, aplicada in-
distintamente para qualquer situação de aprendizagem, muitas vezes incor-
porando “pacotes pedagógicos” que vêm de cima para baixo ou modelos a
serem seguidos. Ora, a metodologia de ensino assim considerada transforma
o professor em tarefeiro, sem total domínio sobre a prática que realiza e, por
isso, desprofissionalizado.
Docência no Ensino Superior

A opção por metodologias que considerem os contextos concretos em


que se dá o ato educativo e que se voltam – efetivamente – para a visão da
área de conhecimento sobre a qual se trabalha, garante ao professor o verda-
deiro status de professor.

Em princípio, a abordagem de metodologia, responde a uma pergunta:


Como ensinar?

Porém, uma outra questão se coloca, obrigatoriamente, e sua resposta


deve dialogar com a primeira: O que se ensina?

Ensinam-se conteúdos, que podem ser de três ordens:

conceituais;

atitudinais;

procedimentais.

Dependendo do conteúdo em questão, são necessárias determinadas me-


todologias, condutoras da prática do professor, e o desenvolvimento da aula
– que é, em suma, produto do raciocínio pedagógico do professor. Assim,
não se justifica uma metodologia sem conteúdo, a menos que se conceba a
metodologia como ato mecânico, reprodução de modelos prontos, técnicas
que se aplicam a quaisquer situações e tiram do professor a capacidade de
“pensar” sobre a sua área, sobre os conteúdos de ensino e suas possibilidades
de desenvolvimento. Esse posicionamento revela uma determinada visão de
ensino, que pode ser entendida como transmissiva, reprodutiva, mecânica.

Conforme Zabala (1998, p. 27), “Por trás de qualquer proposta metodológi-


ca se esconde uma concepção do valor que se atribui ao ensino, assim como
certas ideias mais ou menos formalizadas explícitas em relação aos processos
de ensinar e aprender”.

Resumindo, o caminho das metodologias de ensino pode ser assim


entendido:

114
Metodologias de ensino

Visão de conhecimento

(Como é concebido o conhecimento?)

Definição de conteúdos

(O que é relevante que se ensine?)

Contextos pré-configurados

(Quais os limitadores da ação docente?)

Práticas e atividades nas aulas

(Qual o raciocínio desenvolvido para se organizar a aula?)

Sinteticamente, podem-se apontar os seguintes pontos em relação à sele-


ção e o desenvolvimento de metodologias:

o trabalho desenvolvido pelo professor não acontece abstratamente


– ele está inserido e é determinado por contextos e se dá em determi-
nadas condições, que regulam a sua prática pedagógica;

as metodologias de ensino que o professor seleciona devem ser com-


patíveis com os diferentes tipos de conteúdo que ele ensina e os alu-
nos aprendem – conteúdos de natureza conceitual, procedimental ou
atitudinal exigem metodologias diferentes;

115
Docência no Ensino Superior

grande parte da ação docente no desenvolvimento das áreas ou discipli-


nas é determinada pela necessidade de decisões rápidas, que – pela im-
previsibilidade – muitas vezes atravessam a metodologia selecionada;

toda organização do trabalho pedagógico, nela incluídas as metodolo-


gias, acontece em contextos variáveis, determinados menos pela von-
tade do professor que pelas circunstâncias;

as metodologias podem provocar inovações motivadoras para o ato de


aprender, mas por si mesmas não são capazes de transformar o ensino
e a aprendizagem.

Ao se pensar em metodologias, é necessário, ainda, considerar que as


linhas metodológicas propostas pelas escolas não definem, apenas, um que-
fazer do professor, pois também fazem parte do campo de constituição do
plano curricular da instituição. Por isso, decidir sobre metodologias não é
uma questão meramente técnica e de recursos: a decisão sobre a seleção e o
uso de determinadas metodologias, e não de outras , tem a ver com o próprio
plano curricular da escola.

Segundo Gimeno Sacristán,


O professor/a que prepara um plano para um curso, um trimestre ou uma jornada escolar,
ou quando confecciona materiais próprios sobre uma unidade didática concreta e prevê o
uso que vai lhes dar, realiza também um plano de currículo e de suas práticas. (SACRISTÁN,
1998, p. 213)

Vamos considerar que para diferentes conteúdos de ensino são neces-


sárias diferentes metodologias. O cuidado que essa abordagem sugere é a
de não se considerar os tipos de conteúdo de forma compartimentada: essa
diferenciação se dá em função da análise de cada um dos tipos. Sobre isso,
Zabala (1998, p. 39) explica que
[...] antes de efetuar uma análise diferenciada dos conteúdos, é conveniente nos prevenir
do perigo compartimentar o que nunca se encontra de modo separado nas estruturas do
conhecimento. A diferenciação dos elementos que as integram e, inclusive, a tipificação
das características destes elementos, que denominamos conteúdos, é uma construção
intelectual para compreender o pensamento e o comportamento das pessoas. Em sentido
estrito, os fatos, conceitos, técnicas, valores etc., não existem. Estes termos foram criados
para ajudar a compreender os processos cognitivos e condutais, o que torna necessária sua
diferenciação e parcialização metodológica em compartimentos para podermos analisar o
que sempre se dá de maneira integrada.

116
Metodologias de ensino

A metodologia implica na apresentação das atividades em uma dada


ordem, isto é, situadas umas em relação às outras. Independentemente do
tipo de conteúdo, a questão metodológica se organiza em torno da chamada
sequência didática, que pode ser definida conforme abaixo.

Identificação dos conhecimentos prévios dos alunos em relação ao ob-


jeto da aprendizagem.

Apresentação de novos conteúdos (conceituais, atitudinais e procedi-


mentais) de forma significativa, isto é, que permitam a construção da
ponte cognitiva entre o que o aluno tem como experiência e os novos
materiais.

Provocação do conflito cognitivo, isto é, incentivo à atividade mental


do aluno, no sentido de impeli-lo a construir as relações entre o co-
nhecimento anterior, presente em seu aparato cognitivo, e o novo
conhecimento.

Aprimoramento de habilidades que promova, cada vez mais, a autono-


mia de aprender, isto é, que permita o aprender a aprender, a indepen-
dência para praticar as ações esperadas e para assumir as atitudes de-
sejáveis para as situações.

As metodologias selecionadas pelos professores para o desenvolvimento


dos conteúdos dos três tipos (conceitual, atitudinal e procedimental) são ins-
trumentos da prática pedagógica, que se sustenta em uma visão de ensino e
de aprendizagem, na seleção de atividades e – principalmente – na organiza-
ção do trabalho pedagógico que dá forma à aula.

Diferentes habilidades, diferentes metodologias


Os conteúdos que compõem a tipologia conceitual, atitudinal e procedi-
mental, apesar de serem abordados separadamente, na efetiva relação com
o conhecimento se relacionam e se integram. Para efeito de localizá-los na
aprendizagem, no sentido de se processarem as escolhas metodológicas
mais adequadas para desenvolvê-lo, ocorre a diferenciação.

117
Docência no Ensino Superior

Sem dúvida, as metodologias de desenvolvimento de cada um dos tipos


de conteúdos se propõem a lidar com as ferramentas que melhor abordem
suas especificidades: aprender e ensinar conceitos tem as suas peculiarida-
des, que não são as mesmas de tratar com procedimentos e atitudes.

O que este texto passa a abordar agora são essas particularidades da ti-
pologia dos conteúdos, mas sempre para localizá-los na aprendizagem, não
perdendo de vista a unidade de conhecimento que deve ser respeitada.

Conteúdos fatuais e conceituais


Classificam-se como conteúdos fatuais o conhecimento de fatos, aconte-
cimentos, situações.

A prática pedagógica mobilizadora de metodologias adequadas para lida-


rem com conhecimentos fatuais trata de atividades a serem desenvolvidas na
aula, que priorizem as organizações significativas ou associações que facili-
tem a memorização: um fato, acontecimento ou situação é para ser lembrado
enquanto os seus elementos interessarem de alguma maneira.

Zabala (1998, p. 42) sugere, como exemplos de metodologia para con-


teúdos fatuais, “listas agrupadas segundo ideias significativas, relações com
esquemas ou representações gráficas, associações entre este conteúdo e
outros fortemente assimilados etc.” Em relação aos conceitos, esse autor os
define como “o conjunto de fatos, objetos ou símbolos que têm características
comuns” (ZABALA, 1998, p. 42). O que distingue os conceitos dos fatos é que
os fatos são “para ficar”, diferentemente dos conteúdos fatuais, que passam.
Conceitos dizem respeito a conteúdos da ciência, a objetos que trazem em
si um conjunto de características que lhes são próprias e os distinguem dos
demais objetos de conhecimento.

Prosseguindo no raciocínio do autor, no trato dos conteúdos conceituais


fazem-se necessárias as seleções de
atividades experimentais que favoreçam que os novos conteúdos de aprendizagem se
relacionem substantivamente com os conhecimentos prévios; atividades que promovam
uma forte atividade mental e que favoreçam estas relações; atividades que outorguem
significado e funcionalidade aos novos conceitos e princípios; atividades que suponham um
desafio ajustado às possibilidades reais etc. Trata-se sempre de atividades que favoreçam
a compreensão do conceito a fim de utilizá-lo para interpretação ou o conhecimento de
situações, ou para a construção de outras ideias. (ZABALA, 1998, p. 43)

118
Metodologias de ensino

A metodologia para o ensino de conceitos pode ser proposta a partir de


duas direções:

atividades por descoberta; e

atividades expositivas.

As atividades por descoberta enfatizam a observação, a análise, a pesqui-


sa e o estabelecimento de relação entre os conceitos presentes em atividades
diferentes. Assim, os conceitos vão se construindo menos pela exposição do
professor e mais pelo processo de compreensão do aluno.

As atividades expositivas são desenvolvidas pela metodologia que torna


o aluno receptor da informação organizada e explícita sobre os conceitos em
questão.

Conteúdos procedimentais
Os conteúdos procedimentais referem-se ao saber-fazer e trazem consigo
a ideia de desenvolvimento de habilidades específicas e próprias requeridas
por situações também específicas e próprias.

Procedimentos trazem a ideia de regras, técnicas, métodos, destrezas, ha-


bilidades, e, portanto, evidenciam a ideia de ação ordenada dirigida para fins
específicos.

Os conteúdos procedimentais organizam-se por eixos e se estabelecem


dentro de parâmetros, que garantem condições para a realização dos fazeres.

Segundo Zabala (1998), esses eixos podem ser estruturados conforme


abaixo.

Eixo de componentes motores e cognitivos (fazer e pensar sobre o que


se está fazendo).

Números de ações necessárias para o desenvolvimento dos procedimen-


tos (alguns procedimentos exigem poucas ações e outros, muitas ações).

Grau de determinação da ordem de sequências (em alguns procedimen-


tos, a ordem das ações é sempre a mesma, enquanto outros procedi-
mentos têm as ações determinadas em função das situações).

119
Docência no Ensino Superior

A aprendizagem de procedimentos implica praticar ações, isto é, apren-


der fazendo. Importa a essa aprendizagem a exercitação, entendida como a
realização das ações tantas vezes quantas forem necessárias. O diferencial da
aprendizagem procedimental está não só em repetir para aprimorar a ação,
mas também pensar enquanto repete a ação. É fundamental que se considere
que os procedimentos aprendidos devem ser utilizados em contextos varia-
dos, respondendo às situações que se colocarem.

Em relação aos conteúdos procedimentais, a prática pedagógica do pro-


fessor deve ser dirigida por metodologias apropriadas, que colaborem na
aprendizagem desse tipo de conteúdo.

Zabala (1998) apresenta as condições de ensino necessárias para o desen-


volvimento de procedimentos:

as atividades devem partir de situações significativas e funcionais –


o aluno precisa conhecer a função para poder realizar um conteúdo
procedimental;

a sequência didática deve apresentar modelos de desenvolvimento


desse tipo de conteúdo, que mostrem todo o processo a ser percorrido,
ou seja, uma visão completa das fases que o compõe;

as atividades de ensino devem obedecer a uma sequência clara e uma


ordem que encaminhe o processo gradualmente;

as atividades que necessitem de ajuda e de prática diferenciada devem


ser desenvolvidas de tal maneira que o aluno vá demonstrando pro-
gressiva autonomia nos procedimentos que realiza;

as atividades de trabalho independente devem estar presentes no de-


senvolvimento do ensino, para que as competências no domínio dos
procedimentos se evidenciem.

Conteúdos atitudinais
Entende-se por conteúdos atitudinais a série de conteúdos que agrega va-
lores, atitudes e normas.

Na definição de Zabala, valores são “princípios ou ideias éticas que per-


mitem às pessoas emitir um juízo sobre as condutas e seu sentido. São va-

120
Metodologias de ensino

lores: a solidariedade, o respeito aos outros, a responsabilidade, a liberdade”


(ZABALA, 1998, p. 46).

O mesmo autor define atitudes como “tendências ou predisposições rela-


tivamente estáveis das pessoas para atuar de certa maneira. Assim, são exem-
plos de atitudes: cooperar com o grupo, ajudar colegas, respeitar o meio am-
biente, participar de atividades escolares etc” (ZABALA, 1998, p. 46).

Quanto às normas, ele as define como “padrões ou regras de comporta-


mento que devemos seguir em determinadas situações que obrigam a todos
de um mesmo grupo social” (ZABALA, 1998, p. 47).

A observação da aprendizagem de atitudes não se dá de forma objetiva,


como no caso dos conteúdos conceituais e procedimentais: trata-se de uma
aprendizagem observada pela manifestação de pensamento, sentimento ou
ação, capazes de demonstrar, revelar e expressar atitudes.

O ato de ensinar conteúdos atitudinais se insere no campo das atividades


complexas: são conteúdos que obrigam, em situação de ensino, à criação do
que Zabala chama de rede de relações, permitindo a interpenetração desses
conteúdos em todos os outros aspectos que compõem a aula. Nesse particu-
lar, Zabala (1998, p. 47) adverte que
Muitos dos valores que se pretende ensinar se aprendem quando são vividos de maneira
natural; e isso só é possível quando o ambiente de aulas, as decisões organizativas e as
relações interpessoais, as normas de conduta, as regras do jogo e os papéis que se atribuem
a uns e a outros, correspondem àqueles valores que se quer sejam aprendidos.

Metodologicamente, o conteúdo atitudinal exige que sejam consideradas


as experiências dos alunos, suas reais necessidades, as contradições vividas
em relação a sentimentos, papéis, valores. Exige, ainda, a criação de possibi-
lidades de reflexão crítica, a exposição a modelos e o investimento na auto-
nomia moral do aluno.

O que se pode dizer em relação ao ensino da tipologia dos conteúdos, é


que conceitos, atitudes e procedimentos implicam atenção ao que Philippe
Meirieu (2005, p. 174) chama de postura mental em relação ao que se aprende.
Isso quer dizer que em relação tanto a conceitos quanto a atitudes e procedi-
mentos é imprescindível que a prática pedagógica do professor, conduzida
pelas metodologias escolhidas, esclareça o como e o porquê das propostas.

É ainda relevante frisar que a postura mental dos alunos deve incorporar a
ideia de que o como se desenvolvem os conteúdos depende de um o quê os

121
Docência no Ensino Superior

define. Isso pode ficar bem esclarecido nos contratos de aprendizagem – que,
segundo Meirieu, concretizam-se em dois níveis, conforme abaixo.

Ao final do processo, o que o aluno deve saber?

O que se deve fazer ao chegar ao final do processo?

O autor considera essa fórmula para fazer com que os alunos trabalhem,
interessando-se pelas aulas e dando o salto qualitativo na aprendizagem.

A seleção de metodologias deve considerar:

as formas possíveis de despertar o interesse do aluno para desenvolver


os conteúdos;

as possibilidades de propor desafios abordáveis, isto é, desafios que os


alunos possam enfrentar em seu momento de formação;

a mobilização de questões críticas.

Recursos e os espaços pedagógicos


Os recursos e os espaços pedagógicos fazem parte da compreensão da
organização do trabalho pedagógico do professor no desenvolvimento dos
conteúdos conceituais, atitudinais e procedimentais. Os recursos disponíveis
para a ação docente são materiais determinantes nas decisões do professor
em relação ao seu trabalho, desde o planejamento até as intervenções no
processo de ensino e de aprendizagem.

Portanto, não são instrumentos auxiliares e sim constituintes de todos os


processos de elaboração e desenvolvimento da aula.

Muitas vezes, confunde-se o uso de recursos variados e sofisticados com a


qualidade do trabalho pedagógico, e nem sempre isso é verdadeiro. De nada
adianta a seleção e o uso de materiais atraentes se eles não estiverem inte-
grados ao raciocínio pedagógico que o professor desenvolve para as aulas e
nem se inserem na organização do trabalho pedagógico.

A ação didática do professor em sala de aula e em outros espaços peda-


gógicos não pode ser ditada pelos recursos. Isso faz parte da crítica muitas
vezes feita ao apego excessivo ao livro didático, por exemplo, que acaba – ele
próprio – tornando-se a aula. Ou então os recursos do computador, ou filmes
que entram no espaço das aulas sem terem estado presentes na organização
122
Metodologias de ensino

do trabalho pedagógico. Sem dúvida, todos esses recursos podem ser de ex-
trema importância para o desenvolvimento do processo de ensino e aprendi-
zagem, desde que se apresentem integrados à elaboração do planejamento,
aos momentos de intervenção, à avaliação, às peculiaridades dos conteúdos
das aulas e às metodologias selecionadas.

Zabala (1998, p. 167) denomina materiais curriculares o que neste texto


recebe o nome de recursos. Para o autor, materiais curriculares ou materiais de
desenvolvimento curricular são “todos aqueles instrumentos que proporcio-
nam ao educador referências e critérios para tomar decisões, tanto no plane-
jamento como na intervenção direta no processo de ensino-aprendizagem e
em sua avaliação”.

Portanto, materiais curriculares ou recursos pedagógicos se integram ao


trabalho do professor e os apoiam nas decisões sobre o enfrentamento das
fases que compõem a organização do trabalho pedagógico. E Zabala ainda
tipifica os materiais conforme sua intencionalidade, função, conteúdos e su-
porte que oferecem. Objetivamente, essa tipologia abrange recursos relati-
vos à abrangência da ação educativa, recursos dirigidos para as finalidades
da ação educativa, recursos destinados a conteúdos e formas de organização
de conteúdos, e recursos de suporte.

Recursos relativos à abrangência da ação educativa: há recursos que


se destinam a ações gerais da escola; outros, referem-se ao desenvolvi-
mento de projetos didáticos; outros ainda, a um agrupamento, especi-
ficamente; e ainda outros, ao ensino-aprendizagem individual.

Recursos dirigidos para as finalidades da ação educativa: referem-se à


intencionalidade ou função com que são usados. Podem ser, por exem-
plo, os referenciais teóricos e práticos; os guias; os livros didáticos e os
programas audiovisuais.

Recursos destinados a conteúdos e formas de organização de conteú-


dos: são recursos categorizados para o desenvolvimento de práticas de
distintas disciplinas ou para o desenvolvimento de práticas interdisci-
plinares. Também se vinculam à tipologia dos conteúdos – materiais
próprios para o desenvolvimento de conteúdos conceituais, atitudinais
ou procedimentais.

Recursos de suporte: sustentam o desenvolvimento do trabalho peda-


gógico, desde o quadro-negro – o mais comum e tradicional – até a
utilização de multimídias, com suas linguagens próprias, e de especia-

123
Docência no Ensino Superior

lidades como os laboratórios, passando pelos recursos que se utilizam


do papel, como livros, revistas, fichas e jornais, por exemplo.

Os recursos materiais e metodologias são elementos indissociáveis,


porque é do diálogo por eles produzido que a ação educativa se materializa
de forma significativa.

Conteúdos conceituais, que dependem de explicações, por exemplo,


podem ter o quadro-negro como recurso indispensável, assim como a utiliza-
ção do livro e de outros materiais impressos.

Na abordagem de conteúdos procedimentais, os mais indicados são os


recursos que permitam exposições, apresentações de fases, sequências e
construções.

Em se tratando de conteúdos atitudinais, os recursos utilizados podem ser


os mesmos destinados aos conceituais, incluindo-se – pela sua especificida-
de – os que possibilitem o debate e a reflexão, como vídeos , filmes, material
publicitário e mídia.

Sobre a seleção e o uso de recursos, é importante frisar que deve ser evi-
tada a banalização, isto é, o uso indiscriminado e sem alinhamento ao racio-
cínio pedagógico do professor quanto à organização das aulas, ou a super-
valorização, isto é, a crença de que sem recursos sofisticados não é possível o
desenvolvimento de um trabalho pedagógico de qualidade: os recursos têm
as suas aplicações e devem ser selecionados e utilizados de forma apropria-
da, no contexto da organização do trabalho pedagógico .

A propriedade das escolhas de recursos passa pela definição dos objetivos


do uso, pela clara identificação da natureza dos conteúdos a serem trabalha-
dos, pela definição da sequência de atividades propostas para esses conte-
údos, pelas exigências da aprendizagem significativa e pela adequação ao
contexto em que serão utilizados. Em suma, o uso e a seleção de recursos
implicam ter definido o papel que eles podem ter no desenvolvimento dos
processos de ensino e de aprendizagem.

E da mesma maneira que os recursos disponíveis para o desenvolvimento


das aulas são variados e múltiplos, os espaços pedagógicos também o são.
Hoje, a sala de aula não é mais considerada o único espaço de aula na medida
em que laboratórios, bibliotecas e salas de estudos (dentro da instituição es-
colar), assim como museus, teatros, centros de cultura, dentre outros, são es-
paços de ensino e de aprendizagem. Espaços da cidade, do estado e do país

124
Metodologias de ensino

são extensões da sala de aula. A internet e suas possibilidades de contato


com o mundo podem ser entendidas como recurso e também canal de aber-
tura para espaços pedagógicos infinitos.

O trabalho pedagógico centrado exclusivamente na sala de aula tem uma


raiz histórica: a escola, fundamentalmente voltada para conteúdos conceitu-
ais, sempre valorizou as exposições gerais para um grupo de alunos, geral-
mente numeroso. Essa disposição auxiliava, ainda, na manutenção da disci-
plina. A função de transmissão e controle, portanto, assegurou à sala de aula o
status de local por excelência para as atividades de ensino e aprendizagem.

Zabala (1998, p. 131) adverte que


[...] a utilização do espaço começa a ser um tema problemático quando o protagonismo
do ensino se desloca do professor para o aluno. O centro de atenção já não é o que
há no quadro-negro, mas o que está acontecendo no campo dos alunos. Esse simples
deslocamento põe em dúvida muitas das formas habituais de se relacionar em classe,
mas questiona consideravelmente o cenário. O que interessa não é o que mostra o
quadro, mas o que acontece no terreno das cadeiras e, mais concretamente, em cada
uma das cadeiras.

Isso quer dizer que a mudança da pedagogia centrada no ensino para a


pedagogia centrada na aprendizagem exige uma reelaboração do significado
do espaço da aula. O ensino centrado no aluno, a atenção à aprendizagem
significativa e a ênfase na pedagogia da pergunta passam a exigir novos es-
paços de aprendizagem e, mesmo considerando o espaço tradicional da sala
de aula, são necessários uma revisão e novos procedimentos.

Zabala (1998, p. 132) prossegue explicitando que “a observação, o diálogo,


o debate, a manipulação e a experimentação são atividades imprescindíveis
para favorecer os espaços construtivos dos alunos, e para realizar estas ativi-
dades é preciso dispor de espaços que facilitem”.

Independentemente de se tratar da Educação Básica ou do Ensino Supe-


rior, hoje os espaços de aprendizagem são múltiplos, dinâmicos, dialógicos,
interdisciplinares. Para serem compreendidos como tal, é necessário que, por
meio do seu planejamento de trabalho e de suas decisões metodológicas, a
prática pedagógica do professor explicite essas novas exigências de espaço.
Muitas vezes, pela prática secular do ensino na sala de aula, quando subme-
tidos a outros espaços e situações, os próprios alunos não compreendem e
consideram não se tratar de uma aula.

É importante que a sala de aula seja vista a partir das relações entre as in-
tenções formativas e os meios para concretizar a aula. Compreender os novos

125
Docência no Ensino Superior

espaços pedagógicos que se instauram implica rever os conceitos que se traz


sobre o que é a Escola, o ensinar, o aprender, a prática pedagógica, a inovação
de recursos e a seleção de metodologias. É, enfim, ver a aula não sob o olhar
exclusivamente técnico, mas compreendê-la como um evento que, indepen-
dentemente do local onde se realiza, tem um compromisso fundamental com
a formação do grupo em geral e com cada indivíduo em particular.

A situação-problema
Particularmente, o texto traz à discussão a metodologia da elaboração de
problema, não para colocá-la pura e simplesmente como um modelo, mas
como a exemplificação de uma metodologia que trabalha a favor da reflexão
crítica, do raciocínio, da análise, da síntese, das propostas de encaminhamen-
tos – todos elementos que colaboram no desenvolvimento de competências
e habilidades. Não é um modelo, no sentido reprodutivo do termo, mas pode
ser validado como referencial no sentido do que Meirieu (1998, p. 168) apre-
senta como “validade de um modelo”:
A validade de um modelo se deve, na realidade, a três elementos indissociáveis: a
qualidade do projeto ético que o inspira (o que se gostaria que fosse o sujeito educando);
sua conformidade – ou, pelo menos, sua não-contradição – como aportes das ciências
humanas (o que se sabe do sujeito tal como é) e a fecundidade de sua ação (o que se pode
fazer com ele para que o sujeito que é se torne o que se gostaria que ele fosse).

Então, a partir da metodologia da situação-problema, a organização do


trabalho pedagógico leva em consideração esses três elementos do “modelo
válido”: o projeto, o sujeito e sua transformação. A trajetória da aprendiza-
gem significativa se dá a partir das “pontes cognitivas” que se vão construin-
do na relação entre experiências anteriores e atuais. Aprende-se a partir de
aportes teóricos que se relacionam à prática vivida. Os indivíduos solucionam
questões da vida prática e questões sobre o conhecimento de maneira sin-
gular – percorrem caminhos, buscam soluções, desenvolvem raciocínios em
que se fazem presentes os conhecimentos experienciais em diálogo com os
conhecimentos científicos.

O desenvolvimento de metodologias sustentadas em situação-problema


permite que as aprendizagens se construam na articulação das dúvidas do
sujeito com sua busca de respostas, criando uma dinâmica de aprendizagem
em que o sujeito se faz presente.

Rancière (apud MEIRIEU, 1998, p. 170), retomando aspectos da “pedagogia


da emancipação”, diz que
126
Metodologias de ensino

[...] o educador, consciente do fato de que explicar uma coisa a outrem é o melhor meio de
impedi-lo de encontrar por si só, assume a tarefa de inventar situações que impõem que
ele se aproprie das soluções necessárias; o sujeito se vê aí, de certa forma, obrigado a usar
a sua inteligência.

Meirieu se refere a essa diferenciação metodológica entre permitir a


construção de soluções e a oferta de soluções prontas nomeando-a como
pedagogia do problema, no primeiro caso, e pedagogia da resposta no se-
gundo. A pedagogia da resposta também trabalha com problemas, ou seja,
ao final do processo de escolarização, pelos mecanismos de avaliação, de
seleção pelo mercado de trabalho, pela vida, todos irão se deparar com
situações-problema e, de alguma maneira, deverão saber lidar com elas. A
pedagogia do problema, diferentemente, coloca os alunos diante da situa-
ção-problema no processo de formação: não é ao final, na vida, no trabalho,
que as situações serão experimentadas, mas durante o desenvolvimento da
aprendizagem formal.

É bom que se considere, nesse particular, que a participação direta do sujeito


não inviabiliza a sua busca por auxílio e orientação. Não é por que a pedagogia
do problema enfoca soluções singulares que ela deixa de considerar a orienta-
ção como fundamental para o desenvolvimento das competências necessárias
ao trato com situações-problema. Philippe Meirieu (1998, p.174) afirma que
[...] não devemos estranhar o fato de [os alunos] procurarem sistematicamente “a facilidade”,
o amigo “que já sabe fazer”, o objeto “já pronto”. É preciso, antes, questionar se a própria
estrutura da situação pedagógica está bem adequada aos objetivos da aprendizagem
fixados; ou, em outras palavras, se é bem capaz de reduzir o aleatório da interação
problema/resposta.

O mesmo autor explicita que, no caso da situação-problema, “o objetivo


principal pedagógico está no obstáculo a vencer e não na tarefa a realizar”.

Assim, para o aluno, a resolução da situação-problema estará sempre na


tarefa, porque é ela que move a sua ação. Para o professor, entretanto, o foco
se coloca nos objetivos que traçou para o desenvolvimento da situação pro-
posta. Enquanto o “obstáculo” caminha com o professor, para o aluno ele terá
a devida explicação ao final do desenvolvimento da sequência de ativida-
des. Em outras palavras, o delineamento dos objetivos não é algo claro para
os alunos: eles percebem mais concretamente o “problema” enquanto lidam
com ele. Cabe ao educador ter claro qual é o obstáculo e que objetivos são
traçados para superá-lo, para, a partir disso, potencializar nos alunos o ca-
minho para as respostas. E é importante que tanto os objetivos propostos
quanto os obstáculos a serem enfrentados ofereçam condições de transposi-
ção – caso contrário, a tendência é o desinteresse e o abandono da tarefa.

127
Docência no Ensino Superior

A situação-problema trabalha com a mobilização de operações men-


tais (dedução, indução, dialética, divergência), que devem estar bem claras
quanto ao objetivo da tarefa e o obstáculo a ser transposto. E trabalhar com
situação-problema como metodologia também remete à consideração de
outros fatores além dos expostos: fatores institucionais (como as expectati-
vas em relação a esse tipo de organização do trabalho pedagógico) e ma-
teriais (espaço, tempo, instrumentos e recursos). A abordagem de situação-
-problema implica:

seleção de materiais de trabalho;

instruções-alvo;

desenvolvimento de operações mentais;

realização da tarefa/superação do obstáculo;

busca do objetivo;

avaliação do processo.

O quadro abaixo (MEIRIEU, 1998, p. 181) aponta as grandes questões orien-


tadoras para o professor na condução da metodologia da situação-problema.

Qual é o meu objetivo? O que quero fazer com que o aluno adquira e
que para ele representa um patamar de progresso importante?

Que tarefa posso propor que requeira, para ser realizada, o acesso a
esse objetivo (comunicação, reconstituição, enigma, ajuste, resolu-
ção etc.)?

Que dispositivo devo instalar para que a atividade mental permita,


na realização da tarefa, o acesso ao objetivo?

Que materiais, documentos, instrumentos devo reunir?

Que instruções-alvo devo dar para que os alunos tratem os materiais


para cumprir a tarefa?

Que exigências devem ser introduzidas para impedir que os sujeitos


evitem a aprendizagem?

Que atividades posso propor que permitam negociar o dispositivo


segundo diversas estratégias? Como variar os instrumentos, procedi-
mentos, níveis de orientação, modalidades de reagrupamento?
128
Metodologias de ensino

A metodologia da situação-problema permite:

o trabalho significativo, que cada vez mais desencadeia o desejo de


compreender o objeto em estudo;

o desenvolvimento didático, que favorece o desenvolvimento de se­


quências realizadas pela mobilização das operações mentais;

o desenvolvimento individual, uma vez que favorece a manifestação


das diferentes possibilidades de aprender.

Texto complementar

Quando se procura estabelecer


que não se passa simplesmente da ignorância
ao saber sem obstáculo, nem conflito
(MEIRIEU, 1998, p. 57-58)

Platão havia ressaltado insistentemente que o falso saber era um obs-


táculo maior para o saber do que o não saber... Certamente, a lição quase
não teve efeito e continuamos a ensinar com a certeza tranquila de que,
segundo a bela fórmula de Gaston Bachelard, “o espírito começa como
uma lição”. Fazemos como se trabalhássemos em terreno virgem, como se
nada fosse adquirido fora da escola, como se a inteligência não estivesse
repleta de múltiplas “representações” [...]. Antes da intervenção didática,
o sujeito já dispõe de um sistema de explicação; antes mesmo de o pro-
fessor começar a apresentar uma questão, o aluno “já tem dela uma ideia”.
E isso é indispensável, pois sem esta “apreensão primeira” o mundo lhe
seria totalmente impenetrável, os objetos apresentados, absolutamente
opacos. É preciso saber, na verdade, que não há aí uma falta de conhe-
cimento, uma espécie de erro de tática que poderia ser corrigido convi-
dando o sujeito a “libertar-se” de todas as suas ideias falsas; existe aí um
fato irredutível, porque absolutamente necessário: só entro em contato
com as coisas porque crio vínculo com elas e esse vínculo é precisamente
constituído pela ideia que delas tenho, pelo projeto e pelas informações
que já tinha sobre elas. É por isso que, quando o professor apresenta do-
cumentos, exemplos, objetos não pode esperar estar fazendo a organiza-
ção de um conjunto de representações [disparatadas] que os alunos vão
imediatamente calcar sobre eles, não pode esperar estar encaminhando
um processo de aprendizagem que ignoraria toda anterioridade. [...]
129
Docência no Ensino Superior

Não se tem, portanto, nenhuma chance de fazer com que um sujeito


progrida se não se partir de suas representações, se elas não emergirem,
se não forem “trabalhadas”, como um oleiro que trabalha o barro, ou seja,
não para substituí-lo por outra coisa, mas para transformá-lo.

Atividades
1. Leia a afirmação no box abaixo:

Para diferentes conteúdos de ensino são necessárias diferentes me-


todologias, porém com o cuidado para que não se compartimentali-
ze a abordagem dos três tipos de conteúdos: conceituais, atitudinais e
procedimentais.

A partir dessa afirmação, discuta os diferentes tipos de conteúdos


(conceituais, atitudinais e procedimentais) definindo-os, traçando a
relação entre eles e apontando as principais metodologias que po-
dem ser utilizadas para desenvolver cada um dos tipos, identificando
as articulações possíveis.

130
Metodologias de ensino

2. Leia a afirmação no box abaixo:

Metodologia de ensino implica na apresentação das atividades em uma


dada ordem, isto é, em situá-las umas em relação às outras. Independen-
temente do tipo de conteúdo, a questão metodológica se organiza em
torno de uma sequência didática.

A partir da leitura do trecho acima, identifique no texto, apresente a


ordem e defina cada elemento da chamada “sequência didática”. A se-
guir, reflita e expresse a contribuição da “sequência didática” para o de-
senvolvimento da aprendizagem significativa, isto é, da aprendizagem
que se dá pela compreensão e reflexão, a partir da consideração dos
conhecimentos prévios do sujeito e não pela memorização mecânica.

131
Docência no Ensino Superior

3. Leia a afirmação no box abaixo:

A ação didática do professor, tanto na sala de aula quanto em outros


espaços pedagógicos, não pode ser ditada pelos recursos. O livro didá-
tico, os recursos do computador ou de filmes que entram no espaço das
aulas devem ter tido presença na organização do trabalho pedagógico.
Todos esses recursos podem ser de extrema importância para o desenvol-
vimento do processo de ensino e aprendizagem, porém com a devida in-
tegração à elaboração do planejamento, aos momentos de intervenção,
ao processo de avaliação, às peculiaridades dos conteúdos das aulas e às
metodologias selecionadas.

Analise o conteúdo do trecho acima e discuta o significado da seleção


e utilização de recursos integrados à tomada de decisões sobre a aula
e não como meros instrumentos ou ferramentas, dissociados do ra-
ciocínio pedagógico do professor.

Dica de estudo
Uma dica interessante em relação a metodologias é você assistir ao vi­
deoclip do Pink Floyd, The Wall, no capítulo em que um professor tradicional
desenvolve a sua aula e comparar essa cena a outras do filme Escritores da
Liberdade (Freedom Writers, EUA, 2007), em que a professora assume uma
conduta metodológica completamente diferente. São bons exemplos para
comparação e análise de metodologias e posturas de professores.
132
Metodologias de ensino

133
Projeto: um salto
qualitativo na organização
do trabalho pedagógico
Isilda Louzano Perez
Antes de abordar os projetos como forma de organização do trabalho pe-
dagógico, é importante fundamentar a discussão sobre os princípios teóricos
e epistemológicos que sustentam a elaboração de projetos dessa natureza.

É imprescindível, hoje, considerar o caráter multidimensional da realida-


de, entendida como um conjunto organizado de eventos que conduz à visão
do conhecimento sistêmico. Vivemos a época da mundialização, em que as
questões deixam de ser particulares, tornando-se globais e contextualizadas,
fundamentando o princípio do pensamento complexo, cuja característica
primordial é “ligar o que parece separado”.

O termo complexus significa o que tece junto. Por isso, o pensamento com-
plexo é compreendido como aquele que distingue sem separar, aquele que
contextualiza, globaliza, abstrai. Edgar Morin (2005) apresenta os princípios
para se pensar a complexidade, que explicitam o necessário movimento da
“religação” do conhecimento:

Princípio sistêmico ou organizacional – liga o conhecimento das par-


tes ao conhecimento do todo.

Princípio hologrâmico – considera que a parte está no todo e o todo


está na parte.

Princípio do circuito retroativo – rompe o princípio da casualidade


linear, afirmando que a causa age sobre o efeito e o efeito age sobe a
causa.

Princípio do circuito recursivo – considera que o indivíduo produz a


sociedade e a sociedade produz o indivíduo.

Princípio da autonomia/dependência – compreende que os indiví-


duos desenvolvem a sua autonomia na dependência da cultura.
Docência no Ensino Superior

Princípio dialógico – a dialógica entre ordem/desordem/organização,


constantemente em ação no mundo físico, biológico e humano.

Princípio da reintrodução daquele que conhece em todo conheci-


mento – a expressão de que todo conhecimento é a reconstrução de
uma cultura, em um determinado tempo.

Para Morin (2005), pensar a complexidade exige uma reforma do pen-


samento. Pode-se considerar que essa reforma exige o “desaprender” de
algumas coisas ou, como queria o poeta português Fernando Pessoa, “o es­
sencial é saber ver... e isso exige um estudo profundo, uma aprendizagem
de desaprender”.

Essa metáfora da “desaprendizagem” ilustra a transição do pensamento


linear para o pensamento complexo. A adoção desse pensamento exige que
se lide menos com atividades intelectuais isoladas e mais com competências.

Do ponto de vista pedagógico, a transição para o pensamento com-


plexo exige uma mudança de olhar sobre o processo educativo, impõe
uma revisão nas formas de se organizar o trabalho pedagógico, bus-
cando um novo sentido para a aprendizagem e um novo olhar sobre o
conhecimento.

É nesse movimento que se coloca em foco o sentido e o significado da


“disciplinarização” e da “especialização”, ao lado da necessária abordagem de
outras formas de se compreender o conhecimento, transcendendo a ideia da
disciplinaridade.

Transcender a ideia de disciplina


Transcender a ideia de disciplina é considerar que os esquemas cogniti-
vos de um conjunto de conhecimentos podem ser transpostos para outras
disciplinas. Morin (2005, p. 109) exemplifica essa transposição com um relato:
“Claude Lévi-Strauss não poderia ter elaborado a sua antropologia estrutural
sem os frequentes encontros que teve em Nova York – nos bares, parece –
com Roman Jakobson, que já havia elaborado a linguística estrutural [...]”.

O rompimento com os campos conceituais das disciplinas vitaliza seus


conceitos científicos porque os retira do nicho em que eles antes estavam fe-

136
Projeto: um salto qualitativo na organização do trabalho pedagógico

chados. É importante que o diálogo entre esses campos promova a circulação


de conceitos de diferentes áreas de conhecimento de modo que se permita a
criação de novos esquemas cognitivos – sem, com isso, perder a unidade e a
coerência da transmissão de conhecimentos.

Interdisciplinaridade
Um conceito bastante próximo à ideia de disciplina vista aqui é a visão de
conhecimento a partir de um processo integrador e dialógico. Implica a mu-
dança de atitude diante do conhecimento: agir e pensar interdisciplinarmente
é substituir a visão fragmentada do conhecimento e do próprio ser humano
por uma visão unitária e integradora. Em relação à atitude interdisciplinar,
Ivani Fazenda (1999, p. 43) diz que “Por atitude interdisciplinar entendo algo
que não pode ser apenas explicado, porém vivido; que não pode ser apenas
analisado, porém sentido, que não pode ser apenas refletido, porém intuído”.

Transdisciplinaridade
A transdisciplinaridade é “a abertura de todas as disciplinas ao que as une
e as ultrapassa” (artigo 3, Carta da transdisciplinaridade – <www.unipazrj.
org.br/transdisciplinaridade.htm>). Pode-se apontar as grandes questões da
transdisciplinaridade a partir dos princípios constituintes da “Carta da trans-
disciplinaridade” (LIMA DE FREITAS, MORIN e NICOLESCU, 1994). Segundo
esse documento, a visão transdisciplinar é incompatível com:

qualquer definição reducionista do ser humano;

redução da realidade a um só nível e a uma unidade óptica;

formalismo, rigidez e absolutização da objetividade;

ausência de diálogo entre as ciências;

unidimensionalidade da realidade;

privilégio de uma única visão cultural;

rejeição do diálogo e da discussão entre as ordens ideológica, científi-


ca, religiosa, econômica, política, filosófica;

negação da imprevisibilidade, da tolerância e do desconhecido.

137
Docência no Ensino Superior

Esse panorama além de possibilitar a percepção do conhecimento em


suas múltiplas relações, também nos remete à concepção epistemológica da
pedagogia de projetos e ao delineamento de sua estrutura.

Pensar a organização do trabalho pedagógico por projetos é se permi-


tir olhar para o conhecimento de forma caleidoscópica, por interpenetração,
mutabilidade, impregnação, rompendo a lógica da linearidade, da rigidez,
da acentuada demarcação de fronteiras. E, assim, a pedagogia de projetos
requer uma mudança de postura diante do conhecimento e, por consequên-
cia, uma mudança de concepção sobre o ensino e a aprendizagem.

Concepção e fundamentos
A concepção de pedagogia de projetos data do início do século XX, emba-
sada nas ideias do educador americano John Dewey. Naquele momento, as
questões sobre projetos eram discutidas a partir da premissa de que a “edu-
cação é vida” e não uma mera preparação para a vida. Portanto, a concretude
da realidade cotidiana deveria se fazer presente nos currículos escolares.

Na atualidade, o teórico espanhol Fernando Hernández (1998) se dedica


ao estudo da pedagogia de projetos e prefere chamá-la de projetos de traba-
lho. Esse pesquisador iniciou suas experiências com essa maneira de orga-
nizar o currículo em 1982, no Instituto de Educação da Universidade de Bar-
celona. Seus estudos consagram a necessidade imposta à educação de lidar
com situações complexas, organizadas em um currículo de modo que permi-
ta a visão global do conhecimento, incentive ações cooperativas e comparti-
lhadas, manifeste uma visão interdisciplinar do conhecimento e considere o
indivíduo em formação na multidimensionalidade de suas funções.

Esse novo olhar sobre o conhecimento evidencia a necessidade de mu-


danças e de transformações radicais no âmbito da prática docente. Nesse
panorama de transformação, o exercício da docência implica mudar a forma
de conceber o conhecimento. Trata-se, por isso, de uma mudança epistemo-
lógica e não exclusivamente pedagógica.

A concepção presente na organização do trabalho por projetos é globali-


zante, buscando a análise de problemas, situações e acontecimentos em con-
textos concretos e em uma perspectiva inter e transdisciplinar. Vale ressaltar,
no entanto, que trabalhar por projetos não significa por fim às disciplinas,
pois pelo contrário, a pedagogia de projetos faz uso delas posto que são im-

138
Projeto: um salto qualitativo na organização do trabalho pedagógico

portantes instrumentos de cultura, ou seja, fornecem subsídios para a com-


preensão da realidade.

A concepção globalizante se opõe à concepção científica, que considera


o conhecimento exclusivamente em sua particularidade disciplinar e sob
uma única óptica. A organização do trabalho pedagógico por projetos é
uma forma de promover ações compartilhadas e incentivar a cooperação
entre professores.

A prática comum de muitos docentes de desenvolver seu trabalho de


modo individual é antes uma questão de postura: muitas vezes, os professo-
res verbalizam e, uma vez fechada a porta da sala de aula, cada um desenvol-
ve a sua prática como quer. É um discurso frágil, com certeza, principalmente
se consideramos que a ação docente é determinada por contextos sobre os
quais o professor não tem autonomia plena. Todavia, não se pode negar que
a profissão tem uma forte tendência ao isolamento.

Por outro lado, vivemos no mundo da globalização da informação e da


comunicação, da complexidade, das incertezas e da efemeridade. Por isso, os
modelos escolares que delimitam as modalidades de ensino, desde a educa-
ção básica à universidade, precisam ser revistos a partir dessas definições.

A escola lida com o saber historicamente construído, que deve se agregar


aos saberes atuais, religando o passado com o presente. Considerando a or-
ganização do trabalho por projetos, Fernando Hernández (1998) não deixa de
abordar os contextos em que se desenvolve a prática pedagógica, os quais
exigem determinadas intervenções para que ocorra a mudança de postura e
de atitudes e o estabelecimento do desejo de transformação. Assim, a orga-
nização do trabalho pedagógico e suas formas de acontecimento remetem à
consideração de que
Cada contexto de aprendizagem está marcado por um conjunto de fatos e circunstâncias
que conformam sua singularidade. O que acontece na escola, o acúmulo de interações
e intercâmbios comunicativos que nela se produzem, não pode equiparar-se, de forma
alguma, com o que acontece num laboratório ou se reproduz num experimento, nem pode
mimetizar-se com o que acontece em outro centro. (HERNÁNDEZ; VENTURA, 1998, p. 17)

A inovação teórica trazida pela organização do trabalho pedagógico por


projetos deve ser inserida em um quadro de reflexão e discussão para que
não se transforme em mero modismo. Exige uma reflexão que aborde a
tarefa pedagógica, as questões de formação profissional e de epistemologia,
a prática de ensino e o desenvolvimento da aprendizagem. O importante é
que todos esses fatores conjugados se reflitam na sala de aula. E, para que o

139
Docência no Ensino Superior

produto dessa reflexão seja mesmo efetivo para o trabalho docente, há de se


considerar os elementos abaixo. Vejamos:

Contexto da introdução dos projetos

(HERNÁNDEZ; VENTURA, 1998. Adaptado.)


Ponto de partida :
Necessidade da escola em abordar uma aprendizagem globalizada.

Novos projetos geram novas necessi-


dades.

A necessidade leva à revisão dos fun-


damentos da prática.

As alterações traduzem-se nos proje-


tos a serem desenvolvidos.

A revisão produz alterações no próprio


desenvolvimento do currículo.

Atividade docente
A necessidade da elaboração de projetos surge de um novo olhar sobre o
conhecimento, isto é, uma visão mais globalizada e abrangente. Isso implica
na mudança de atitudes não só do ponto de vista do currículo, mas de práti-
cas e posturas do professor e do aluno.

No box abaixo, especificam-se as exigências para o professor, diante da


nova perspectiva metodológica imposta pelos projetos:
(HERNÁNDEZ; VENTURA, 1998. Adaptado.)

Especificar o fio condutor – relacionado com os Parâmetros Cur­riculares.

Buscar materiais – objetivos e conteúdos (o que se pode aprender


no projeto?).

Estudar e preparar o tema – critérios de novidade e de planejamento


de problemas.

140
Projeto: um salto qualitativo na organização do trabalho pedagógico

Envolver componentes do grupo – reforço da consciência de aprender.

Destacar o sentido funcional do projeto – destaque da atualidade do


tema para o grupo.

Manter uma atitude de avaliação – o que sabem, dúvidas, o que acre-


ditar que aprenderam?

Recapitular o processo seguido – ordenação em forma de programa-


ção para contrastar e planejar novas propostas.

Atividade dos alunos


durante a realização do projeto
Na perspectiva da organização de projetos, os alunos também assumem
novos papéis e deles se esperam novas condutas. Abaixo, se apresentam, as
condições impostas aos alunos pela pedagogia de projetos:

(HERNÁNDEZ; VENTURA, 1998. Adaptado.)


Escolha do tema – abordar critérios e argumentos.

Planejar o desenvolvimento do tema – elaborar índice individual.

Participar da busca de informação – colaborar no roteiro inicial da


classe, fazer contato com diferentes fontes.

Realizar o tratamento da informação – interpretar a realidade.

Analisar os capítulos do índice – ordenar e apresentar.

Realizar um dossiê de sínteses – propõe novas perguntas individuais


em grupo.

Realizar a avaliação – aplicando em situações simulada os conteúdos


estudados.

Novas perspectivas – propõe novas perguntas para outros temas.

141
Docência no Ensino Superior

Sequência de síntese da atuação


do professorado e dos alunos no projeto
O quadro abaixo reúne as condições esperadas da relação professor-aluno
no desenvolvimento de projetos.

(HERNÁNDEZ; VENTURA, 1998. Adaptado.)


Por parte do professorado Por parte do aluno

1. Estabelece os objetivos educativos


e de aprendizagem.

2. Estabelece as possibilidades do tema.

3. Seleciona os conceitos, e
procedimentos para os quais
prevê tratamento no projeto.

4. Realiza a avaliação inicial: o que sabe-


mos ou queremos saber sobre o tema?

5. Pré-sequencializa os possíveis conteú-


dos a serem trabalhados em função de
interpretações das respostas dos alunos.

6. Realiza propostas de sequenciação


e ordenação de conteúdos.

7. Busca fontes de informação;


elabora um índice.

8. Compartilham propostas, buscam um consenso organizativo.

9.Preestabelece atividades.

142
Projeto: um salto qualitativo na organização do trabalho pedagógico

10. Planeja o trabalho individual,


em pequeno grupo/turma.

11. Apresenta atividades.

12. Realiza o tratamento da informação


a partir das atividades.

13. Tendo o papel de facilitador, dis-


ponibiliza meios de reflexão, recursos,
materiais, informação pontual.

14. Trabalho individual: ordenação,


reflexão sobre a informação.

15. Favorece , recolhe e interpreta


as contribuições dos alunos.
Avaliação.

16. Autoavaliação.

17. Contraste entre avalização e autoavaliação.

18. Análise do processo individual


de cada aluno: O que aprendeu?
Como trabalhou?

19. Conhecer o próprio processo


em relação ao grupo.

20. Estabelacer uma nova sequência.

Concluindo, podemos dizer que organizar o trabalho pedagógico por


projetos gera novas necessidades de aprendizagem, mobilizando novas
competências para aprender. Novos olhares e posturas diante do conheci-
mento permitem tornar a aprendizagem significativa e colaborativa. O foco
143
Docência no Ensino Superior

se desloca do conhecimento disciplinar para o conhecimento interdisciplinar


e transdisciplinar. As fronteiras do conhecimento se flexibilizam. O trabalho
cooperativo se impõe. Criam-se novas relações entre a docência e a gestão.

Muitas vezes, compreende-se que a organização do trabalho por proje-


tos é uma condição dada apenas à Educação Básica, nível em que a idade
dos alunos requer um trabalho mais concreto e operativo. No entanto, essa
colocação não procede: também na Educação Superior, a organização do
trabalho por projetos é uma oportunidade de o aluno se colocar diante de
situações problematizadoras da realidade e do conhecimento, da pesquisa e
da investigação, da ampliação dos conhecimentos disciplinares, da avaliação
da própria aprendizagem e da própria formação.

Texto complementar

Mas eu adoro extrair vesículas


(ANTUNES, 1998, p. 26)

O diretor chama ao seu gabinete o jovem cirurgião, que há menos de


duas semanas está trabalhando no hospital.
– Bom dia, doutor Marcelo. Tudo bem com o senhor? Como tem sido
sua experiência em nosso hospital? Tem sido bem atendido? Existe algo
de que queira reclamar?
– Não, doutor Carlos Alberto. Estou gostando muito desse meu novo
emprego. Acho todos aqui extremamente competentes, os suprimentos
em ordem, as salas de cirurgia excelentes e todas as enfermeiras muito
atenciosas. Na verdade estou adorando…
– Fico feliz em saber. Este hospital é minha vida e quero que todos sintam
um imenso prazer em exercer sua missão. Mas chamei-o aqui por outro
motivo. Estive analisando o prontuário de suas cirurgias e fiquei muito
preocupado. Em dez dias, o senhor fez 15 extrações de vesículas? Será
que não houve exagero? Em minha atividade como médico, por dezenas
de hospitais que passei, jamais percebi tão elevado índice de cirurgias
específicas e, ainda mais, feitas por um único médico. Por favor, doutor
Marcelo, o que está havendo?
– Não está havendo nada de anormal. Adoro extrair vesículas. Foi minha
especialidade na área médica, fiz pós-graduação sobre esse tema e estou

144
Projeto: um salto qualitativo na organização do trabalho pedagógico

finalizando minha tese. Leio tudo sobre o assunto. Tenho até um site na
internet, estou plugado no assunto. Sem extrair vesículas, minha vida
profissional não teria o menor sentido…
– Mas, diga-me uma coisa, doutor, e seus pacientes? Estavam com pro-
blemas de vesícula? Era necessário extraí-la?
– Ora, doutor, sua pergunta é irrelevante. Sei lá se estavam ou não com
problemas de vesícula. Isso é um detalhe clínico, o que importa é que fiz
lindas cirurgias e isso só pode engrandecer meu currículo e, é claro, seu
hospital. E agora, se o senhor me permite, estou correndo para uma cirur-
gia. Chegou uma nova paciente e com uma vesícula novinha em folha…

Atividades
1. Reflita sobre a afirmação abaixo.

Para Morin, pensar a complexidade exige uma reforma do pensamen-


to. Pode-se considerar que essa reforma exige “desaprender” algumas
coisas ou, como queria o poeta português Fernando Pessoa, “o essencial
é saber ver... e isso exige um estudo profundo, uma aprendizagem de
desaprender”.

Depois disso, elabore uma possível lista das “desaprendizagens” ne-


cessárias para o desenvolvimento do pensamento complexo.

145
Docência no Ensino Superior

2. O conhecimento e suas religações podem ser compreendidos a partir


dos conceitos de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. Discuta
esses dois conceitos no contexto da transcendência (ato de ir além) da
ideia de disciplina.

3. A pedagogia de projetos requer uma mudança de postura diante dos


conhecimentos e, por consequência, uma mudança de concepção
diante do ensino e da aprendizagem. Quais são as novas concepções
sobre o ensino e a aprendizagem em que se assentam a pedagogia de
projetos?

146
Projeto: um salto qualitativo na organização do trabalho pedagógico

Dica de estudo
No livro A Organização do Currículo por Projetos de Trabalho, os autores
Hernandez e Ventura retratam a realidade da Escola Pompeu Fabra, de
Barcelona. Vale a pena conferir nessa leitura, como a escola foi – na prá-
tica e a partir de princípios teóricos – organizando-se rumo aos proje-
tos de trabalho. Trata-se de uma experiência muito interessante de ser
analisada e, por que não, ser vista como uma referência.

147
Pedagogia de projetos:
fundamentos para uma
prática reflexiva
Isilda Louzano Perez
Caracterizada pela complexidade, a sociedade em que vivemos entrecru-
za, cotidianamente, um alucinante volume de aprendizagens, traduzidas em
informações, desafios, problemas a serem abordados, comunicações a serem
estabelecidas. Tudo isso exige novas competências e habilidades dos sujeitos
para gerenciar todas essas informações. Esse tipo de gestão exige, por sua
vez, uma revisão dos contextos formativos em que se dá a educação.

Como diz Isabel Alarcão (2004, p. 14), “o mundo, marcado por tanta rique-
za informativa, precisa do poder clarificador do pensamento”. E, para Edgar
Morin (2005), baseado no filósofo Michel Montaigne, hoje se precisa mais de
cabeças bem feitas do que de cabeças bem cheias, o que remete à exigência
do estabelecimento de uma nova ordem de pensamento, capaz de lidar com
a complexidade da sociedade global buscando a transformação da massa in-
formacional em conhecimento pertinente. E o que é esse conhecimento perti-
nente? Segundo Morin (2005), é o conhecimento que coloca a informação em
um contexto, permitindo a compreensão de seu sentido.

A implicação de todo o cenário na escola é a constatação de que a essa


instituição não se atribui mais o monopólio do saber. Segundo Alarcão (2004,
p. 15), “a escola tem de ser uma outra escola. A escola, como organização, tem
de ser um sistema aberto, pensante e flexível. Sistema aberto sobre si mesmo,
e aberto à comunidade em que se insere”.

É na direção dessas transformações que se espera que a escola efetive


o trabalho com a pedagogia de projetos. Pensar a organização do trabalho
pedagógico por projetos é inseri-lo no âmbito da compreensão da gestão
reflexiva da escola e dos processos de formação profissional do professor e
do “aprender a aprender”.
Docência no Ensino Superior

Gestão reflexiva e projetos:


educando para a complexidade
O que é gestão reflexiva da escola? Por que discuti-la no âmbito da pedago-
gia de projetos? Discutir a escola reflexiva é voltar-se para a organização exi-
gida hoje, que possua o caráter de sistema aberto, pensante e flexível. Uma
escola reflexiva pensa a si mesma, avalia a si mesma e a seus atores, sintoniza-
se com a sociedade, produz conhecimento, autogerencia-se. Nesse movimen-
to, operacionaliza ações capazes de alterar significativamente os contextos
formativos que a compõem, no caminho do desenvolvimento das competên-
cias e das habilidades que conduzem ao “conhecimento pertinente”.

Gerir a escola reflexiva é orquestrar o conjunto de condições necessário


para que, efetivamente, a formação oferecida corresponda ao que dela se
espera. Para Isabel Alarcão (2004, p. 38),
Uma escola reflexiva é uma comunidade de aprendizagem e é um local onde se produz
conhecimento sobre educação. Nesta reflexão e no poder que dela retira toma consciência
de que tem o dever de alertar a sociedade e as autoridades para que algumas mudanças a
operar são absolutamente vitais para a educação do cidadão do século XXI.

Gerir a escola reflexiva implica, dentre outras coisas, buscar novas alternati-
vas de formação do professor: uma escola reflexiva forma um professor reflexi-
vo. Mas quais são as características do professor reflexivo? Pimenta (2002, p. 18)
afirma “que todo ser humano reflete. Aliás, é isso que o diferencia dos demais
animais. A reflexão é atributo dos seres humanos. Ora, os professores, como
seres humanos, refletem. Então, por que essa moda de professor reflexivo?”

A mesma autora dá a resposta para a questão esclarecendo que professor


reflexivo é aquele que, na prática profissional, valoriza a construção de co-
nhecimento por meio de reflexão, análise e problematizacão de suas ações
profissionais. Portanto, o professor reflexivo é um profissional que ultrapassa
os conhecimentos elaborados pela ciência, pois ele trabalha com o conhe-
cimento em ação, continuamente em construção, atendendo às exigências
que se impõem e passando, insistentemente, por análise, explicações, pro-
blematizações, investigações.

Pérez Gómez (apud LIBÂNEO, 2002, p. 56) descreve a reflexividade como


A capacidade de voltar sobre si mesmo, sobre as construções sociais, sobre as intenções,
as representações e estratégias de intervenção. Supõe a possibilidade, ou melhor, a
inevitabilidade de utilizar o conhecimento à medida que vai sendo produzido, para
enriquecer e modificar não somente a realidade e suas representações, mas também as
próprias intenções e o próprio processo de conhecer.

150
Pedagogia de projetos: fundamentos para uma prática reflexiva

Essa reflexividade é de fundamental importância para que a ação docen-


te se transforme e se conduza para as novas competências e habilidades a
serem desenvolvidas pela educação nos indivíduos. Para que o professor
possa dar conta dessa tarefa, é importante que ele próprio tenha construído
novas competências para ensinar e para se relacionar com o conhecimento.

Organizar o trabalho pedagógico por projetos implica uma nova relação


com o conhecimento, um novo olhar sobre o ensino e uma nova concepção
de aprendizagem. Conforme Libâneo (2002, p. 71),
Se quisermos que o professor trabalhe numa abordagem socioconstrutivista e que
planeje e promova na sala de aula situações em que estruture suas ideias, analise seus
próprios processos de pensamento (acertos e erros), expresse seus pensamentos, resolva
problemas, numa palavra, faça pensar, é necessário que seu processo de formação tenha
essas características. Parece claro que às inovações pedagógico-didáticas introduzidas no
ensino das crianças e jovens correspondam mudanças na formação inicial e continuada
de professores.

A formação do professor reflexivo tem de se dar em uma escola reflexiva.


Não é só do professor que as mudanças devem ser esperadas: a reflexivida-
de desse profissional tem como extensão toda a comunidade educativa da
escola. Escola, por sua vez, pode ser entendida como
Uma comunidade educativa, um grupo social constituído por alunos, professores e
funcionários e fortes ligações à comunidade [...] A ideia de professor reflexivo, que reflete
em situação e constrói conhecimento a partir do pensamento sobre a sua prática, é
perfeitamente transponível para a comunidade educativa que é a escola. (ALARCÃO, 2004,
p. 44)

O projeto pedagógico de uma escola reflexiva, que traduz a prática re-


flexiva dos professores, trata de questões voltadas para as dimensões apre-
sentadas por Alarcão (2004) em referência ao conhecimento profissional dos
professores. Dessa forma temos que os conteúdos exigidos pelo exercício da
docência são:

Conhecimento pedagógico – manifestação da organização do tra-


balho pedagógico do professor, maneira como o professor organiza e
gerencia a aula.

Conhecimento do conteúdo a ser ensinado – conceitos e temas, es-


truturas de organização das disciplinas e das relações entre elas, per-
cepção das fronteiras do conhecimento de diferentes áreas.

Conhecimento do aluno – experiências prévias, modelos de aprendi-


zagem, condições socioculturais.

151
Docência no Ensino Superior

Conhecimento de contextos – particularidades de tempos e espaços


que localizam e datam a prática docente.

Conhecimento dos fins educativos – alcance da cultura educativa da


sociedade, fundamentos históricos, culturais, políticos e sociais da edu-
cação.

Conhecimento de si mesmo – autoconhecimento.

Conhecimento da filiação profissional – comunidade profissional.

Toda a discussão sobre a gestão da escola reflexiva e a formação do pro-


fessor reflexivo aponta para as transformações necessárias, para que a escola
cumpra o seu papel social e educativo. Pensar no conhecimento globalizante
– abordado por mecanismos do pensamento complexo – é pensar em pos­
sibilidades pedagógicas que possam sustentar essa forma de compreender o
mundo que nos cerca. Uma dessas possibilidades refere-se à organização e
ao desenvolvimento de projetos coerentes com os princípios fundamentais
da transformação social almejada. Dentre esses princípios podemos citar:

visão global do conhecimento;

desenvolvimento de atividades mentais complexas;

rompimento com o isolamento, tanto do ato de aprender quanto do


ato de ensinar;

aprendizagem significativa e aprendizagem colaborativa;

compreensão da realidade, contextos e cenários;

atitude reflexiva no aprender e no ensinar.

No desenvolvimento de projetos, professor e aluno aprendem a aprender.


Trata-se de uma nova relação com o conhecimento e um novo compromisso
com a formação. Essa nova postura diante do processo de ensino-aprendiza-
gem dá a esse processo novos contornos, significados e importância. Colo-
cando peso na dimensão do aprender a aprender, a ênfase desse texto se dá
na discussão da aprendizagem significativa e da aprendizagem colaborativa,
no bojo da pedagogia de projetos.

152
Pedagogia de projetos: fundamentos para uma prática reflexiva

Pedagogia de projetos: a aprendizagem


Desenvolver o trabalho pedagógico por projetos requer o estabelecimen-
to de uma nova relação com o conhecimento e uma nova visão sobre o ensi-
nar e o aprender. Essa nova visão sobre o ensinar passa pelo desenvolvimen-
to da reflexividade, que significa o pensar crítico sobre a própria prática em
busca das transformações necessárias. Da mesma maneira, trabalhar a partir
dos princípios da pedagogia de projetos demanda uma nova reflexão sobre
o sentido e o significado da aprendizagem.

Aprendizagem significativa
O que é aprendizagem? Aprender é compreender e atribuir significado
à realidade e seus contextos. A aprendizagem escolar, particularmente, tem
como finalidade contribuir para a formação e a autoformação do indivíduo
para a vida em sociedade, ou, como ensina Edgar Morin (2005), a educação
deve ensinar a ser cidadão por meio de uma aprendizagem cidadã.

A partir dessas considerações, tem-se que aprender não significa memori-


zar conteúdos abstratos, categorizados em disciplinas estanques, que devem
ser lembrados em situações específicas – como por exemplo nos momen-
tos de avaliação. Aprender significa ter “a cabeça bem feita”, isto é, o material
aprendido precisa ter significação, ligação com as experiências prévias do in-
divíduo, e compor um todo integrado de conhecimento.

Aproxima-se, assim, do conceito de aprendizagem significativa: é signi-


ficativa a aprendizagem que leva em consideração as experiências prévias
dos sujeitos e permite que essas experiências estabeleçam diálogo com as
novas aprendizagens.

No início da década de 1960, o psicológo norte-americano David Ausubel


apresentou as primeiras teorizações sobre a aprendizagem significativa, em
oposição à aprendizagem mecânica.

Para que se estabeleça a aprendizagem significativa, são necessárias, pelo


menos, duas condições:

153
Docência no Ensino Superior

disposição do indivíduo para aprender;

significância do material.

São duas condições básicas para o desenvolvimento de projetos. Diferen-


temente da abordagem dos conteúdos disciplinares estanques, a organiza-
ção de projetos requer a motivação e a participação do sujeito em sua apren-
dizagem, bem como a flexibilização das fronteiras do conhecimento, o que
remete à compreensão global de situações e contextos.

O conhecimento elaborado a partir da organização de projetos não se


processa por meio da transmissão do professor ou da evocação dos conteú-
dos disciplinares, mas por meio do desenvolvimento de um processo de re-
elaboração, em que o sujeito coloca suas experiências, sua investigação, sua
compreensão de contextos e situações.

Reconhece-se na pedagogia de projetos as três fases da aprendizagem


significativa definidas na teoria de David Ausubel (1982):

organizadores prévios;

diferenciação progressiva;

reconciliação integradora.

Projetos Aprendizagem significativa

Organizadores prévios: conhecimentos que o


Contextos e situações da realidade vivida.
sujeito aprendente traz de sua experiência.

Diferenciação progressiva: gradativamente,


Abordagens entrecruzadas e relações de o sujeito aprendente estabelece novos ne-
conteúdos. xos entre os conhecimentos anteriores e os
novos.

Reconciliação integradora: identificação pelo,


Visão interdisciplinar do conhecimento. sujeito aprendente, do conhecimento global
que define a realidade concretamente.

Dessa forma, o conhecimento se integra à realidade e o sujeito aprenden-


te situa-se nessa realidade concretamente. A pedagogia de projetos trata
com o conhecimento globalizante, que se estabelece a partir da aprendiza-
gem significativa, integrando as experiências individuais à experiência de
diferentes áreas – ou seja, produzindo o diálogo entre o particular e as ex-
154
Pedagogia de projetos: fundamentos para uma prática reflexiva

periências socioculturais. O movimento do aprender a aprender e também o


de aprender a conhecer (definido por Morin como a capacidade de separar
e unir, analisar e sintetizar ao mesmo tempo) possibilitam o enfrentamento
das complexidades.

Aprendizagem colaborativa
Pode-se definir aprendizagem colaborativa como aquela em que os sujei-
tos aprendem juntos, tanto face a face (no interior de uma escola) quanto
mediados pelo computador. Em qualquer uma dessas situações, a aprendiza-
gem colaborativa tem presença na pedagogia de projetos.

A organização do trabalho por projetos implica a interação entre sujeitos


aprendentes, os quais trazem suas experiências pessoais, suas interpretações
e representações da realidade para a situação de aprendizagem. A sociali-
zação dessas experiências e a relação dialógica que se estabelece entre os
sujeitos e entre eles e o conhecimento constitui-se em um elemento de fun-
damental importância para o desenvolvimento de projetos.

O aprendizado conjunto de professores e alunos não só estimula a re-


flexividade sobre as ações como também promove o desenvolvimento de
competências e habilidades necessárias para o enfrentamento de situações
complexas, como são as abordadas por meio de projetos.

A aprendizagem colaborativa tem como marca aprender com o outro e


por isso propicia o compartilhamento do conhecimento, criando o clima de
cooperação indispensável para que projetos possam ser desencadeados e
implementados. Assim, trabalhar por projetos pressupõe o estabelecimen-
to e a busca de objetivos comuns; o enfrentamento de situações, proble-
mas e desafios; e o reconhecimento do modo de pensar, de agir e de apren-
der dos sujeitos envolvidos na tarefa. Portanto, cooperar constitui-se uma
ação fundamental para o desenvolvimento desse tipo de organização.

É importante, ainda, que se reforce a ideia de que esse tipo de aprendiza-


gem colabora para que se rompa o isolamento da ação docente. Organizar o
trabalho pedagógico por projetos pressupõe trabalho coletivo entre profes-
sores de diferentes áreas de conhecimento e seus alunos.

À guisa de conclusão, pode-se dizer que a pedagogia de projetos é uma


proposta de organização do trabalho pedagógico sintonizada com as novas
exigências educacionais e com os traços da sociedade atual. Ela modifica o
155
Docência no Ensino Superior

sentido de aprender, que deixa de ser um ato reprodutivo e mecânico, e o de


ensinar, que assim ultrapassa a dimensão transmissiva (HERNÁNDEZ, 1998).
O processo formativo deixa de ser encarado, exclusivamente, como atividade
intelectual e passa a ser reconhecido como um processo global e complexo.
Dessa maneira, a organização do trabalho pedagógico por projetos integra a
experiência educativa às práticas da realidade vivida, e o sujeito aprendente
forma-se como sujeito cultural, visto que os conhecimentos construídos se
inserem em um contexto histórico-social.

Texto complementar

Os alunos na sociedade da aprendizagem


(ALARCÃO, 2004, p. 26-30)

Numa “sociedade que aprende e se desenvolve”, como a caracterizou


Tavares, ser aluno é ser aprendente. Em constante interação com as opor-
tunidades que o mundo lhe oferece. Mais do que isso: é aprender a ser
aprendente ao longo da vida. O aluno tem de se assumir como um ser
[…] que observa o mundo e se observa a si, se questiona e procura atri-
buir sentido aos objetos, aos acontecimentos e às interações. Tem de se
convencer de que tem de ir à procura do saber. Busca ajuda nos livros,
nas discussões, nas conversas, no pensamento, no professor. Confia no
professor a quem a sociedade entrega a missão de o orientar nessa cami-
nhada. Mas é [o aluno] que tem de descobrir o prazer de ser uma mente
ativa e não meramente receptiva.

Subjaz a esse modelo uma abordagem pedagógica de caráter construti-


vista, sociocultural. A aprendizagem é um modo de gradualmente ir com-
preendendo melhor o mundo em que vivemos e de sabermos melhor
utilizar os nossos recursos para nele agirmos. Uma boa parte das com-
petências hoje exigidas são dificilmente ensináveis. E contudo elas têm
de ser desenvolvidas. [...] referente ao Ensino Superior [...] o excerto de
um texto que, com José Tavares, escrevi em 1995 e que foi recentemente
publicado:

“As aprendizagens na sociedade emergente terão de desenvolver-se


de uma forma mais ativa, responsável e experienciada ou experiencial,
as quais façam apelo a atitudes mais autônomas, dialogantes e colabora-

156
Pedagogia de projetos: fundamentos para uma prática reflexiva

tivas em uma dinâmica de investigação, de descoberta e de construção


de saberes alicerçada em projetos de reflexão e pesquisa, baseada em
uma ideia de cultura transversal que venha ao encontro da interseção dos
saberes, dos conhecimentos, da ação e da vida. É preciso valorizar a cria-
ção de ambientes estimulantes para a aprendizagem e incentivar o de-
senvolvimento da criatividade, da inovação e da sua divulgação. Deverá
destacar-se a explicitação de uma dinâmica espiralada ou bi-implicativa
entre reflexibilidade e autonomia que deverá animar a ação educativa”.

[...]

Essa capacidade de interagir com o conhecimento de forma autônoma,


flexível, criativa é a melhor preparação para a vivência no nosso mundo
supercomplexo, incerto, sempre pronto a exigir novos saberes, inspirado-
res de novas ações.

Atividades
1. Relacione a afirmação abaixo com as características da sociedade
atual e também com o papel e a função da escola.

“O mundo marcado por tanta riqueza informativa precisa do poder cla-


rificador do pensamento” (ALARCÃO, 2004).

157
Docência no Ensino Superior

2. Hoje, o conhecimento profissional do professor inclui diferentes


dimensões, necessárias para que as novas exigências educacio-
nais, sociais e escolares sejam atendidas. Qual a implicação disso
na forma de ensinar do professor?

158
Pedagogia de projetos: fundamentos para uma prática reflexiva

3. Apresente os princípios fundamentais da organização do trabalho


por projetos e os discuta na dimensão do aprender a aprender.

Dica de estudo
Uma leitura recomendável para a compreensão da ideia de “uma esco-
la em projeto”, que, de certa forma, amplia a visão sobre o sentido dos
projetos didáticos e os insere em um contexto institucional, é a da obra:
Inovar no Interior da Escola, de Mônica Gather Thurler, Artmed, 2001.

159
Pedagogia de projetos:
da especialidade aos
conhecimentos em rede
Isilda Louzano Perez
Trabalhar a partir de projetos não significa negar a especificidade dos
campos disciplinares: a visão das áreas de conhecimento deve ser preservada
e, com ela, a cientificidade e as experiências socioculturais que caracterizam
as disciplinas. O desenvolvimento de projetos é uma das formas de flexibilizar
os campos do conhecimento; romper as rígidas fronteiras que os fragmen-
tam; buscar o diálogo entre os conteúdos das diferentes áreas, objetivando
uma visão globalizada da realidade.

A imagem do caleidoscópio ilustra esse empreendimento, nas múltiplas


combinações e diferentes contornos que torna possíveis, sem – no entan-
to – provocar a perda da particularidade de cada peça. Em se tratando do
conhecimento, isso significa que as especificidades dos campos disciplinares
são mantidas, porém elas não ficam fechadas em seus nichos e sim abertas à
interpenetração dos conteúdos e saberes.

Quanto à ação docente, o trabalho com projetos permite que o domínio


da especialidade dialogue com o conhecimento globalizado, criando uma
rede de novas aprendizagens e de novas oportunidades de formação. Assim,
a cooperação entre professores é uma condição indispensável para o desen-
volvimento de projetos, caracterizando uma aprendizagem conjunta. São di-
ferentes vozes que se manifestam, provocando – gradativamente – a diluição
da ideia de propriedade que muitas vezes os docentes mantêm em relação
às suas áreas de formação.

O apego ao conhecimento especializado tem caracterizado um certo fun-


damentalismo pedagógico, marcado pela defesa intransigente da especiali-
dade. Por sua vez, a pedagogia de projetos é uma das possibilidades, uma
das condições para que, a partir da especialidade e sem banalizá-la, haja um
direcionamento para a construção do conhecimento em rede – e isso signi-
Docência no Ensino Superior

fica uma mudança de postura diante do ensino e da aprendizagem, que (é


importante reforçar) não acontece espontaneamente.

Conforme Hernández e Ventura, “as inovações costumam ser produzidas,


entre outras razões por uma pressão exterior (caso de uma reforma educati-
va) ou pela vontade e desejo de mudança de um grupo ou de uma institui-
ção” (HERNÁNDEZ; VENTURA, 1998, p. 20). Desse modo, optar pela mudança
implica refletir sobre a própria prática e avaliá-la. Do processo de reflexão
surgem os indicadores necessários para a busca da transformação.

Organização e desenvolvimento
de projetos: uma visão geral
Como todo procedimento de ordem didático-pedagógica, a organiza-
ção do trabalho pedagógico por projetos pressupõe o estabelecimento de
etapas de ação. Normalmente, são consideradas etapas de desenvolvimento
de projetos:

a definição do tema;

o estabelecimento de objetivos;

a escolha de metodologias;

a escolha de formas de avaliação.

O tema de um projeto é definido a partir do que se identifica como relevan-


te para a área de estudo, para o momento da formação, para a significância da
aprendizagem e para a compreensão da realidade vivida. Esse tema pode ser
definido pelo professor ou surgir do debate epistemológico com os alunos.

A interdisciplinaridade é, reconhecidamente, um ponto forte desse tipo de


organização. Assim, nas tomadas de decisão, a sinergia da equipe docente é
fator indispensável. Objetivos, metodologia de trabalho, formas e critérios de
avaliação e de acompanhamento, bem como o cronograma a ser cumprido,
devem estar suficientemente claros para todos os envolvidos. Quanto maior
a clareza em relação ao que se quer empreender, tanto maiores a segurança
e o êxito no empreendimento.

162
Pedagogia de projetos: da especialidade aos conhecimentos em rede

Objetiva e didaticamente, as etapas podem ser identificadas conforme abaixo:

Tema – é o objeto a ser abordado pelo projeto.

Planejamento do desenvolvimento do tema – envolve as formas, os


conteúdos, os procedimentos, a distribuição de tempo, as principais
tarefas a serem realizadas, as mais significativas fontes de pesquisa.

Objetivos – é o que se pretende com o desenvolvimento do projeto,


incluindo as competências a serem construídas.

Avaliação – o desenvolvimento de um projeto é processual e portanto


pressupõe a Avaliação contínua. Os procedimentos que caracterizam
esse tipo de avaliação, bem como o sistema de expectativa e os crité-
rios que norteiam o processo avaliativo, devem ser comunicados clara-
mente e compartilhados.

Segundo Zabala, essa forma de desenvolvimento “está relacionada com a


importância que se dá ao aprender a aprender e ao envolvimento do aluno
com a sua aprendizagem” (ZABALA, 1998, p. 155).

A definição de etapas cumpre uma finalidade orientadora e metodológica


que não pode imobilizar o dinamismo característico do desenvolvimento do
projeto. Além desse cuidado, no desenvolvimento de projetos também me-
recem atenção:

o diálogo entre os objetivos propostos, as competências definidas e as


formas de intervenção do professor;

a promoção de situações que coloquem os alunos em diferentes con-


textos de trabalho, que mantenham relação com suas experiências
prévias e incentivem a construção do conhecimento;

o incentivo ao estabelecimento, pelo aluno, do diálogo entre fontes de


informação e procedimentos para sua compreensão;

a potencialização de procedimentos que visem à aprendizagem de es-


tratégias e de procedimentos instrumentais, e não somente conceituais;

o envolvimento do grupo nas ações referentes ao projeto, objetivando


o compartilhamento das aprendizagens;

163
Docência no Ensino Superior

a consideração dos diferentes modelos de aprendizagem que distin-


guem os sujeitos aprendentes.

Na proposta de projetos, é importante reconhecer os princípios abaixo.

O objetivo básico de um projeto é conhecer a realidade e saber se co-


locar nela.

O ensino deve estar focado na relação entre conhecimento e reali-


dade.

As atividades indicadas são as que envolvem problemas concretos,


questões da realidade, interesses e necessidades dos sujeitos apren-
dentes.

A estratégia fundamental é a de integrar e relacionar saberes e estabe-


lecer vínculos com o mundo real.

No box abaixo – aqui reproduzido por apresentar os princípios anterior-


mente indicados – Zabala (1998, p. 162) apresenta a sequência didática de
um projeto em que questões e problemas são abordados a partir dos pontos
de vista das disciplinas que compõem o currículo.

Situação realidade A

Problemas/ recursos matemáticos / formalização (matemática) / apli-


cação em outras situações.

Situação realidade B

Dilemas comunicativos / instrumentos linguísticos / formalização


(língua) / aplicação em outras situações.

Situação realidade C

Questões / meios científicos / formalização (ciências experimentais) /


aplicação em outras situações.

Situação realidade D

Conflitos / recursos sociais / formalização (ciências sociais) / aplica-


ção em outras situações.

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Pedagogia de projetos: da especialidade aos conhecimentos em rede

Situação realidade E

Comparações / instrumentos expressivos / formalização (educação


artística) / aplicação em outras situações.

O autor explicita o movimento do projeto, cuja síntese está contida no


box anterior:
Numa escola organizada de forma que cada disciplina ou matéria é lecionada por um
professor ou professora diferente, partir-se-á nesse esquema de situações diferentes. A
professora de matemática, por exemplo, definirá a situação da realidade nos problemas que
deve resolver um grupo de rock que procura alugar uma casa para ensaiar. Os problemas
que se deduzem dessa situação são múltiplos, mas como nos encontramos numa aula de
matemática só nos deteremos naqueles aspectos ou problemas que são matematizáveis:
espaço, investimento, custos fixos e variáveis, consumo, financiamento, rentabilidade
etc. Na aula de língua, o professor propõe um debate sobre uma situação que surgiu na
escola e que provocou mal-estar entre professores, pais e alunos. Após o debate é feito um
acordo de participar da solução elaborando um documento que ajude a compreender as
posições das partes envolvidas. O professor utiliza essa situação para realizar uma série de
atividades relacionadas com as competências linguísticas dos meninos e meninas e com
alguns aspectos morfossintáticos. Cada um dos professores e professoras seguirá o mesmo
esquema na área que lhe corresponde: situação da realidade, proposição de questões,
utilização de instrumentos e recursos disciplinares, formalização conforme os critérios
científicos da disciplina e aplicação a outras situações para favorecer a generalização e o
domínio dos conceitos e das habilidades aprendidos. (ZABALA, 1998, p. 162)

A descrição de Zabala diz respeito a uma das possibilidades de desenvol-


vimento de projetos em que o diálogo disciplinar é criado a partir do marco
individual de cada disciplina. Outras formas, no entanto, são possíveis e
podem ser delineadas a partir dos objetivos pretendidos e das competências
esperadas. Em qualquer escolha que se faça, o protagonista deve ser o aluno,
e os princípios que regem a organização de projetos devem estar presentes.

É importante frisar que todo modelo é sempre uma referência e não uma
receita a ser aplicada em qualquer contexto e circunstância.

O desenvolvimento de projetos transgride a secular regra da busca do


êxito e da progressão somente dentro da própria escola. O trato com os con-
teúdos disciplinares estanques tem sido uma das ferramentas em favor dessa
finalidade. No entanto, hoje, diante das novas exigências de formação, isso é
muito pouco. A esse respeito, Meirieu diz que:
A aparelhagem escolar, composta de uma infinidade de instruções e programas, de
ferramentas e de materiais, de deveres e correções, de ajudas e de punições tem como
vocação o próprio desaparecimento: todo sujeito deve estar preparado, no fim do percurso,
para libertar-se e “pensar por si mesmo”. (MEIRIEU, 2005, p. 108)

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Docência no Ensino Superior

O projeto é um processo contínuo, que parte da problematização inicial e


se dirige para a síntese final, tratando com situações cada vez mais comple-
xas. Dos conhecimentos prévios dos alunos até a consolidação da aprendiza-
gem significativa, o projeto reflete a experiência vivida e a produção cultural
sistematizada e não somente a formação escolar.

O conhecimento construído deverá ser utilizado em situações concretas


da vida social em que se fizer necessário e, nesse momento, manifestar as
competências desenvolvidas.

Organização e desenvolvimento de projetos:


detalhamento das sequências
A opção pelo desenvolvimento de projetos é, em si, uma tomada de deci-
são. Por que projetos e não outro procedimento?

É preciso, para que efetivamente o trabalho aconteça, que se desenvolva uma


sequência de organização que não se apresente de forma linear, mas relacional.

Quadro 1 – Sequência organizativa de um projeto

Sequência Descritores

Introdução e/ou ampliação de experiências, pro-


Critérios para escolha do tema
blemas e complexidades a serem estudados.

Seleção de diferentes propostas, seguindo


critérios, como:

grau de conhecimento sobre o assunto;


Organização e escolha do tema
avaliação de subtemas dentro do tema;

entrecruzamento dos pontos de vista dos


professores e dos alunos envolvidos.

Finalidades do trabalho. Descrição de com-


petências a serem desenvolvidas.
É importante que se considere:

a profundidade que se pretende;


Determinação dos objetivos
as possíveis formas de sistematizar co-
nhecimentos e informações;

os procedimentos e atitudes para lidar


com a situação.

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Pedagogia de projetos: da especialidade aos conhecimentos em rede

Focalização da pesquisa como estratégia de


Pesquisa a fontes de informação trabalho e não , unicamente, como obtenção
de conteúdo.

Formulação de questões provocadoras de


Questionamentos desencadeantes do
reflexão para o início do projeto: perguntas,
processo de aprendizagem
hipóteses, definições, dúvidas etc.

Seleção, a partir dos posicionamentos indi-


viduais, dos principais questionamentos que
Elaboração de índice
orientarão o trabalho coletivo (síntese das
propostas do grupo).

Trato com conceitos e referências; utilização


de procedimentos e fontes; organização dos
Tratamento das informações
aspectos que direcionam respostas aos ques-
tionamentos.

Argumentação sobre as realizações no pro-


Avaliação
cesso. Autogestão da aprendizagem.

A finalização dessa sequência não significa, necessariamente, o encer­


ramento de um projeto: na verdade, ela pode se constituir no fechamento
de um ciclo e no início de novos ciclos, que – como o efeito do choque de
uma pedra na água – vão criando concentricamente novas possibilidades de
abordagens e novas aprendizagens.

Todo conhecimento construído durante o desenvolvimento de um pro-


jeto torna-se passível de transferência para outras situações, tanto em suas
similaridades quanto em suas distinções.

Pedagogia de projetos:
solidez da aprendizagem
e transferência de conhecimentos
Pensar sobre a transferência de conhecimentos para situações novas
implica refletir sobre a solidez da aprendizagem. Como se pensar na trans-
ferência de conhecimento em se tratando de aprendizagens frágeis, estan-
ques e superficiais?

Perrenoud coloca a questão: “não é melhor preocupar-se com a transferên-


cia quando há alguma coisa a transferir?” (PERRENOUD, 2000, p. 54). Assim, a
transferência de conhecimentos implica, necessariamente, uma ação do su-
jeito aprendente. É na mobilização das competências por ele construídas que
a transferência do conhecimento se torna possível.

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Docência no Ensino Superior

Perrenoud reproduz um exemplo que, embora não se refira a projetos es-


pecificamente, contribui para a compreensão do significado de transferência
de conhecimentos:
Medelsohn dá o exemplo da aprendizagem de um teclado de máquina de escrever
ou de computador: toda pessoa que domina o teclado do tipo Azerty vai adaptar-se
rapidamente a teclados da mesma estrutura, embora as teclas não tenham, de uma
máquina a outra, nem a mesma consistência, nem a mesma forma, nem a mesma
sensibilidade, nem o mesmo grafismo. O usuário abstrai tais diferenças. O importante
para ele é que estas respeitem uma configuração familiar. O mesmo sujeito terá
dificuldade em adaptar-se a um teclado Qwerty ou a qualquer outro teclado usado
em outro país, ainda que os outros aspectos físicos sejam idênticos. Vê-se aqui
que se deve distinguir analogias superficiais e parentescos de estruturas, mas que
essa distinção só tem sentido se for feita, conscientemente ou não, pelo sujeito.
(PERRENOUD, 2000, p. 56)

Cada indivíduo se utiliza da aprendizagem anterior em situações novas,


na medida de sua necessidade: a incorporação de aprendizagens anteriores
às aprendizagens atuais vai criando o que se chama de habitus.
O desenvolvimento de projetos possibilita a ruptura com o que tem sido
uma tônica das aprendizagens escolares: a aplicação, fundamentalmente, às
situações escolares. Ainda Perrenoud esclarece essa prerrogativa da aprendi-
zagem escolarizada:
Os indivíduos bem-sucedidos em sua escolaridade têm conhecimentos que comprovaram
durante provas e exames escolares. No entanto, para uma parte deles, tudo se passa como
se tais aquisições perdessem seu valor fora do âmbito escolar. Por que, quando se veem
“contra a parede” não conseguem reinvestir aquilo que, de uma certa maneira, eles “sabem”?
Sem dúvida, porque a transferência não estava no programa! (PERRENOUD, 2000, p. 58)

Os projetos facilitam o reinvestimento do conhecimento em novas aprendi-


zagens que, similares ou não, trarão em si as marcas das aquisições anteriores.
Concluindo, do que foi dito tem-se a destacar que o desenvolvimento de
projetos, ainda que submetido a uma sequência organizativa, não pode por
se deixar engessar por essa sequência. As decisões a serem tomadas coletiva-
mente em relação a esse tipo de trabalho devem garantir a sua dinâmica.
Ainda que os procedimentos da pedagogia de projetos sejam altamente in-
dicados para o desenvolvimento da aprendizagem significativa e colaborativa
(considerando-se hoje inclusive a vertente mediada pelo computador), não são
os únicos. Sempre as escolhas devem se amparar no desejo de mudança e de
transformação das agências e dos agentes formadores.

E é interessante que se reforce a ideia de que há caminhos diferentes para o


desenvolvimento de sequências organizativas de um projeto e que a opção por
qualquer uma delas depende sempre da intencionalidade formativa da proposta.

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Pedagogia de projetos: da especialidade aos conhecimentos em rede

Texto complementar

Comprometer os alunos
em procedimentos de projeto
(PERRENOUD, 2000, p. 67-68)

Em geral, espera-se que um procedimento de projeto seja o motor de


uma atividade, até mesmo de uma aprendizagem porque, como a própria
expressão indica, o sujeito é mobilizado por um objetivo a realizar e de-
pende de esforços, senão para aprender, pelo menos para ter êxito. Toda a
arte é evidentemente comprometer os alunos em projetos cujo êxito de-
pende de uma aprendizagem. O engajamento em um projeto de médio
ou longo alcance oferece uma oportunidade de aprender a planejar, a ne-
gociar, a cooperar, a realizar e, ao mesmo tempo, um quadro integrador
de atividades mais limitadas que, tomadas isoladamente, seriam recebi-
das como exercícios sem grande interesse, em resumo “escolares”. Escrever
uma “verdadeira” carta para obter fundos ou uma autorização não equiva-
le a escrever uma carta fictícia para exercitar-se na forma epistolar…

Além dessas virtudes “psicodinâmicas”, o projeto é favorável à transfe-


rência, porque confronta com situações mais imprevisíveis e mais com-
plexas do que os exercícios escolares. Todos os professores que praticam
uma pedagogia de projetos constatam, aliás, que ele faz alguns bons
alunos fracassarem e revela os talentos de alguns outros, que parecem
medíocres diante das tarefas escolares habituais. O projeto exerce uma
“pressão” à transferência, ao mesmo tempo afetiva, relacional, cognitiva,
simplesmente porque jamais se domina, de início, tudo o que deveria
saber para o empreendimento.

A noção de projeto, muitas vezes, evoca atividades complexas e de


fôlego. Na verdade, há projeto quando há representação de um estado
desejável e desejado, que só ocorrerá ao preço de uma ação voluntaris-
ta e eficaz. Os projetos interessantes para o ensino são evidentemente
aqueles para os quais não basta, para que se tenha êxito, mobilizar ro-
tinas colocando nisso a energia e o rigor almejados. Um projeto não é
formador, a não ser que obrigue ao confronto com situações nas quais
o curso ótimo da ação não aparece imediatemente, porque, para avan-

169
Docência no Ensino Superior

çar, é necessário construir uma estratégia e resolver uma série de proble-


mas, sendo que cada um deles apela para recursos cognitivos diversos,
às vezes, detidos por pessoas diferentes. Dependendo da gestão dos re-
cursos humanos no grupo, essa dimensão cooperativa pode permitir a
cada um aprender ou, ao contrário, confiar cada tarefa àquele que se sai
melhor. Equivale a dizer que não basta “colocar os alunos no projeto”. O
procedimento só é válido pelos obstáculos que encontra e pelo dispo-
sitivo que impede de desviar-se deles, transformando-os em objetivos-
-obstáculo [...], ou seja, em fontes de aprendizagem ou, pelo menos, em
oportunidades de transferência.

Atividades
1. Segundo Zabala, o desenvolvimento de projetos relaciona-se com a
importância dada ao aprender a aprender e ao envolvimento do alu-
no com sua aprendizagem. Discuta essa relação.

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2. Comente a seguinte afirmação:

“O desenvolvimento de projetos transgride a regra secular da busca do


êxito e da progressão somente dentro da escola” (ZABALA, 1998).

3. A transferência de conhecimentos implica, necessariamente, uma ação


do sujeito aprendente. É na mobilização das competências por ele
construídas que a transferência do conhecimento se torna p
­ ossível.

Explique o significado da transferência de conhecimentos no âmbito


da pedagogia de projetos.

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Docência no Ensino Superior

Dica de estudo
Fernando Hernández, em entrevista à Revista Nova Escola, esclarece
os principais conceitos que envolvem a sua proposta de “Projetos de
trabalho”, no âmbito da pedagogia de projetos.

A entrevista encontra-se disponível no site da revista (<www.revista-


escola.abril.com.br>) e é uma boa dica para se entender os conceitos
fundamentais dessa metodologia, a partir das explicações de seu pró-
prio idealizador.

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