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CASAS DE JUDEUS E CONVERSOS

Segundo os historiadores nom existem diferenças


relativamente à tipologia da habitaçom dos judeus e
cristãos na Idade Média. As suas casas e lares eram
semelhantes, já que respondiam a um mesmo modo de
vida consoante o nível económico e social do proprietário.
Por conseguinte, é difícil estabelecer pola sua
configuraçom espacial e funcional que umha dada
habitaçom situada num burgo ou numha cidade, esteja ou
nom dentro da antiga judiaria/judaria, aljama (em
castelhano), ou call (em catalám) ou bairro judeu, tenha
pertencido ou foi ocupada por umha família judia.
O modo de vida judaico era muito semelhante ao dos
cristãos, salvo no que diz respeito das prescrições
alimentares, os costumes religiosos, as festas e o dia de
folga semanal. Nom existem, portanto, condições
morfológicas únicas que diferenciem a habitaçom dum
judeu da habitada por um cristão. O que caracterizava e
singularizava externamente a habitaçom dum judeu era a
mezuzá: umha pequena caixa ou estojo que continha um
rolo ou pergaminho em que som escritos uns determinados
versículos de Deuteronômio e que deve ser
colocado, aproximadamente na altura do ombro dumha
pessoa adulta, no plano interior da ombreira, de
preferência a do lado direito da porta de entrada para a
casa.
Nalguns casos, dependendo dos territórios, era praticado
um pequeno buraco na ombreira da porta para acomodar a
mezuzá. Assim sendo, este vão pode ver-se nalgumhas
casas medievais que ainda se preservam nas judarias de
Girona e Cáceres. Quando isso acontecer, estamos
certamente perante umha casa que foi habitada por judeus,
mas conservam-se muito poucos exemplares. Nos casos
em que nom existir esse buraco para a mezuzá na
ombreira, nada nos diz hoje dum antigo prédio se foi a
casa dum judeu ou dum cristão. Há, porém, uma série de
características que, embora nom som determinantes,
podem ser indícios claros dumha casa que foi habitada
noutrora por judeus.

UM ARQUÉTIPO DE CASA JUDIA


Durante a Alta Idade Média a habitaçom mais comum nos
burgos e pequenas cidades era de um ou dous andares,
construídas de adobe ou de armaçom de madeira e de
adobe, e, raramente, devido ao seu custo mais elevado, era
construída de pedra. Naqueles lugares onde a pedra é
abundante, naturalmente, foi mais utilizada na habitaçom
de tipo médio (FOTO 1). A partir do século XIV incrementa-
se o número de habitações de dous andares, tornando-se
geral este tipo de habitaçom nas áreas urbanas e, quando o
proprietário era um pouco mais rico, construiu a sua casa
sobre em pedra.
(1) Bairro medieval e judeu de Sabugal

Devido à baixa durabilidade do adobe e da armaçom hoje


conservam-se muito poucas casas feitas com estes
materiais, mas ainda se preserva um número considerável
de habitações dos séculos XV e XVI, construídas em
pedra que nos permitem fazer algumas observações (FOTO
2).
(2) Habitações judaicas dos séculos XIV-XV. Rua da Cadeia,
Castelo Rodrigo

A partir de meados do século XV há um tipo de habitaçom


que, embora sem exclusividade, foi muito bem aceite
polos judeus relativamente abastados (a chamada classe
média de hoje) que viviam nos burgos e nas cidades na
época. Ou seja, judeus que exerciam certas profissões,
como médicos, notários, escrivãos, comerciantes e ofícios
como alfaiates, ferreiros, curtidores, etc.

É uma casa de dous andares: a baixa é usada como espaço


de escritório, comércio aberto ao público, ou oficina que
se realiza o ofício, enquanto o andar de cima abriga a casa
da família. O andar baixo tem normalmente duas portas,
umha que costuma ser de maior largura que dá acesso ao
local do escritório, comércio, ou oficina; e a outra que leva
a uma escada permite aceder à habitaçom do andar de
cima, em cuja fachada se abrem umha ou, mais
geralmente, duas pequenas janelas situado quase sempre
localizadas em relação à vertical das portas. Esta casa para
acomodar pessoas relativamente abastadas tem as suas
paredes de pedra, o que fez com que muitas tenham
sobrevivido até hoje em bom estado de conservaçom em
lugares que não tiveram um grande desenvolvimento
urbano importante posterio ou que, por estarem protegidas
hoje como centros históricos, nom foram demolidas.

Embora essas casas som construções simples e muito


funcionais, por vezes isentas de qualquer enfeite, muitas
delas soem ter algum elemento estilístico que varia
dependendo das pretensões dos sue moradores. É quase
umha constante, consoante a arquitetura dessa altura, que
tenham as arestas exteriores exteriores dos ocos das suas
portas e janelas biseladas. Por vezes, é acrescentado um
maior grau de estilo e som decorados os linteis de portas e
janelas com um falso arco conopial ou carpanel muito
retangular (FOTO 3), costume que na habitaçom
judeoconversa vai durar muito além do período
manuelino, ou com motivos mais sofisticados de filiação
tardogótica ou renascentista. Os moradores de muitas
destas casas costumavam usar um pequeno banco exterior
ligado num lado da fachada que servia de ajuda para expor
mercadorias, para sentar e descansar ou como banco de
trabalho. Em muitos casos este banco era substituído por
um poio de pedra, como ainda hoje se pode ver nas casas
que existem em Penamacor (5), perto das ruinas do castelo
(FOTO 4).
(3) Casa do s. XV com lintel manuelino e com cruz, Tui

(4) Arquétipo de habitações judaicas dos séculos XIV-XV,


Penamacor

Outro elemento que pode existir é umha saliência, ao jeito


de base (peana) num ou em ambos os lados dumha janela
do andar de cima. Peanas que hoje som comumente usadas
como suporte para um vaso com umha planta ornamental,
mas na minha opinião poderiam ter servido como suporte
para o candelabro comemorativo da Hanucá. O candelabro
de nove braços das que umha utilizado para manter a
chama com a que se devem acender as oito restantes,
umha por cada dia que dura a celebraçom. "O
candelabro deve ser colocado num local
visível, perto dumha janela se viver num
piso ou na porta de entrada, para indicar
com a sua luz às pessoas que se acham
perante um lar judaico". Costume que nalgum
caso teria perdurado através dos séculos como referente
externo da exibiçom religiosa do convertido e, por isso,
com umha funçom de proteçom semelhante à da cruz
gravurada nas fachadas, como ainda se pode ver em duas
casas do bairro medieval de Monção na que habitaram
judeus e hoje som usadas como peana sobre a que se
coloca um santinho que se ilumina com lamparinas (FOTO
5). Em prol desta tese está a personalidade dum dos santos:
Sam Joám Baptista, nascido judeu, que batizava judeus e
batizou o Messias. Com os antecedentes deste santo, pode
ser censurado um convertido polos seus antecedentes
judaicos anteriores ao seu batismo? Que bom cristão novo
ou descendente de cristão novo pode ser reprovado polas
suas origens judaicas? Mirem o São João Baptista, mirem
a São Pedro, mirem o mesmíssimo Jesus Cristo.

(5) São Jão Baptista sobre peana/base no bairro medieval de


Monção

Esta parece ter sido a finalidade dos pequenos nichos em


forma de arco usados para colocar em cada umha delas a
pequena imagem dum santo e que estám situadas aos lados
dumha janela, exatamente no mesmo lugar da fachada que
corresponderia às peanas e que se podem ver nalgumhas
casas de Valença (FOTO 6) construídas numha época
bastante posterior à expulsom e que, na minha opiniom,
puderam ter sido edificadas por cristãos novos.

(6) Santos em nichos numha casa do s. XVIII, Valença

Como confirmaçom disto pode ser entendido o nicho, que


abriga um pequeno santo sobre umha base, coroada por
umha "cruz de converso" esculpida entre duas janelas
(FOTO 7) sobre a fachada dumha casa do século XVIII,
também de Valença, que é contígua com outra da mesma
época que tem num lugar análogo da anterior um nicho
com um santo.
(7) Nicho e peana com santo, coroada por umha cruz, Valença

A CRUZ DO CONVERSO
Um risco diferenciador, embora nom definitivo, de que
podemos estar perante umha casa de conversos e, portanto,
de antigos judeus ou descendentes de famílias judaicas
som, em opinioim muito partilhada hoje, as cruzes
gravuradas nas fachadas das casas. Amiudamente
localizam-se perto da porta de entrada e, o que é mais
significativo, muitas vezes gravuradas exatamente no local
em que um judeu deveria colocar a mezuzá. Quando nos
encontrarmos perante umha casa dos séculos XIV, XV e
XVI, e mesmo posteriores com estas características, muito
provavelmente estamos perante umha casa de conversos
ou de famílias de cristãos novos.

A mezuzá proclamava externamente a pertença à fé


mosaica da família que habitava a habitaçom, família que
era conhecida polos seus vizinhos. O batismo e conversom
dos judeus muitas vezes foi efetuado de forma maciça
como foi o caso de tantos que sobreviveram aos assaltos às
judarias e o assassinato de muitos dos seus moradores que,
apavorados entravam nas igrejas a suplicar batismo. Isto
foi o que aconteceu depois do assalto à judaria de Sevilha
em 1391, que foi o início dos assaltos e assassinatos que se
produziram noutras judarias de Castela e Aragom.

Os conversos ou os seus descendentes umha vez batizados


foram incomodados, e de facto foram-no muitos deles,
como suspeitos de judaizar e, portanto, de cometer heresia
e cair em mãos do temível Santo Ofício da Inquisiçom.
Perante vagas de intransigência posteriores ao seu batismo
resulta muito lógico que para se proteger proclamassem
externamente perante a sua vizinhança e agentes e
familiares da Inquisiçom a sua nova fé, a sua aceitaçom de
que Cristo é o Messias, gravurando na fachada das suas
casas, em muitos casos exatamente no local que antes
ocupara a mezuzá, umha cruz: "A cruz do converso" (FOTO
8).

(8) Casa do s. XVIII com "cruz de converso" no lugar da mezuzá,


Guarda
Esta cruz que proclama externamente a fé cristã de quem
habita umha habitaçom nom fazia qualquer sentido que se
gravasse na fachada da casa dum ranço cristão, cuja fé é
induvitável e manifesta para a vizinhança. Dalgumha
maneira a cruz gravurada na fachada está a dizer: "sim, cá
mora um judeu ou um descendente de antigos judeus mas
isso era antes, agora somos uns devotos cristãos". Deste
ponto de vista é que apenas pode ser entendido o facto de
nesse momento histórico gravurar umha cruz na fachada,
perto da porta, na habitaçom dalguém cujas convições
cristãs podiam oferecer dúvidas aos seus convizinhos: o
converso ou descendente de conversos.

Durante as perseguições da Inquisiçom aos cristãos novos


que eram suspeitos de judaizar ocultamente, os
despetivamente chamados de marranos, as cruzes
gravuradas nas imediações da porta de entrada às
habitações representavam para os seus moradores, para
além de proteçom, umha espécie de "sambenito", já que
eram nalgumha maneira umha proclamaçom da sua falta
de limpeza de sangue. Quem sem dúvida era um notório
cristão velho nom precisava de o proclamar na porta da
sua casa.

Esta é a explicaçom da existência de tantas inscrições


deste tipo em prédios medievais e noutras mais modernas
situadas em locais onde houve judarias ou populaçom
judaica (a existência destas cruzes é praticamente nula
onde nom houve judeus). As cruzes deste tipo som
abundantes em casas do século XV e XVI, embora as
inscriões puderam ter sido realizadas em época posterior à
da sua construçom, e o momento da sua execuçom viria
determinado polo maior grau de assédio vizinhal ou
inquisitorial ao que se veriam submetidos os seus
moradores. Nalgumha destas habitações som várias as
cruzes gravuradas na fachada (FOTO 9), quase sempre umha
ao lado da outra, o qual poderia ser explicado, quer cada
membro de distintas gerações dumha mesma família de
conversos acede à responsabilidade de governar a casa,
quer os seus sucessivos ocupantes também conversos,
manifestam a sua fe acrescentando umha nova cruz:
confirmam que eles, ao igual que os seus predecessores,
som bons cristãos.

(9) Várias cruzes gravuradas entre duas portas,


Guarda
A cruz que se grava nas fachadas algumhas vezes consiste
simplesmente em dous traços cruzados, mas em muitas
ocasiões é umha cruz que se representa esquematicamente
assentada sobre um suporte que nalgumhas vezes é um
triângulo, em cujo caso parece-se muito com a cruz do
Santo Ofício, e noutras assenta sobre um traço curvo que
cruza o pé. Estes som os arquétipos da que eu chamo de
"cruz do converso" ou "cruz de sobremesa".
Para um judeu o símbolo religioso fundamental é o
candelabro de sete braços, a menorá, que é
representado muito profusamente dumha maneira
esquemática como umha linha vertical assentada
sobre um triângulo ou sobre um traço curvo e cruzada por
três linhas curvas apontadas para cima. Quando se tornar
cristão, em muitos casos forçado e sem ter recebido
previamente umha instruçom religiosa na nova crença,
remove com toda facilidade (e de forma lógica e
automática) este símbolo que opera tam profundamente no
seu inconsciente simplesmente "apagando" quatro braços e
endireitando os dous transversais restantes. Esta é a "cruz
do converso": "umha "cruz de sobremesa", umha cruz que
se sustenta sobre umha basse do mesmo modo como o faz
a menorá. Umha espécie de candelabro de três braços. É
por isto umha cruz que resultava umha imagem familitar, e
que precisamente por coincidir com a do Santo Ofício,
representava em esquema a que talvez em muitos
interrogatórios estava sobre a mesa do inquisidor e teria
para o coitado cristão novo acusado de judaizar um efeito
lenitivo, dalgum jeito quase mágico, de salvaçom. Sob
este ponto de vista, embora este cruz dque eu chamo de
converso nom é exclusivo deste e era usado já com
anterioridade, nom me cabe dúvida qualquer de que a
generalizaçom do seu uso polos judeuconversos deve pôr-
se em relaçom com estes pressupostos. Cabe referir em
reforço desta opiniom que em muitos casos esta base é
representada como um traço curvo transversal que cruza o
pé da cruz de maneira igual a umha representaçom
esquemática típica da base da menorá.
(10) Casa do s. XV-XVI com "cruz de converso" tipo menora,
Caminha
Casas com cruzes gravuradas dos tipos descritos tenho-as
documentado no norte de Portugal (Guarda, Sabugal,
Castelo Rodrigo, Almendra, Pinhel, Caminha, Valença,
Monção, Vila Nova da Cerveira, Chaves, Ponte da Lima,
Montalegre) e na Galiza (Alhariz, Videferre, Mesquita,
Tui e Santiago).
Este uso do converso de gravurar cruzes em substituiçom
da mezuzá, ou nas imediações da porta, tem um
significado ambíguo: por um lado, de proteçom da óptica
dum judeu converso e, por outro, de falta de limpeza de
sangue (um marrano pode ser o morador dumha dada
casa) da óptica dum cristão velho. Este costume perdurou
até bem entrado o século XVIII, mesmo em casas de nova
construçom. Som significativos os casos de La Alberca ou
Candelario, em Salamanca, onde abundava a populaçom
conversa que prospera economicamente, que já se sente
profundamente cristã e, em consequência do seu progresso
económico ergue durante os séculos XVII e XVIII novas
habitações em substituiçom das antigas nas que coloca,
agora orgulhosamente, umha cruz, a "cruz do converso",
no centro do lintel da porta de entrada (Foto 13).

Muitas casas medievais situadas em antigas judarias


possuem um pequeno rebaixamento ou fenda na ombreira
da porta. A presença deste elemento permite deduzir que
possa estar ligado dalgum jeito com a habitaçom judaica
medieval. Ora bem, qual ligaçom e o que significam?

A resposta pode-se conferir no interessante artigo


elaborado por D. Emilio Fonseca Moretón e publicado
no "Anuario Brigantino de Betanzos" achega umha teoria
sobre o significado e carácter judaico deste elemento
presente nas portas das muralhas de Melgaço, Ribadávia
ou Betanços.

Para quem quiser saber mais sobre este assunto,


aconselho a leitura do excelente artigo
intitulado "Viviendas de judíos y conversos en Galicia y el
Norte de Portugal" (em espanhol) do antedito D. Emilio
Fonseca Moretón, publicado no nº 27 do ANUARIO
BRIGANTINO DE BETANZOS (2004).
D. Emilio Fonseca Moretón é arquiteto pola Escola
Superior de Arquitetura de Madrid e arquiteto da
Deputaçom de Ourense. Autor de vários trabalhos sobre a
conservaçom do património e de investigaçom sobre a
cidade de Ourense.
Este post foi redigido com base no texto e fotografias do
antedito artigo, sendo traduzido por CAEIRO.

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