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I

O poeta dormita ao fundo do café,


um pobre café de província.
Envelhecido,
os cabelos grisalhos
pendem-lhe sobre os olhos
que se fecham
a essa hora adiantada da noite.

No entanto,
os seus olhos
descortinam, lá longe,
uma paisagem
tão diferente daquilo que o rodeia!...

É abril!
Pequeninos ramos,
viçosos,
espreitam pelos muros.

Corre um ventinho ligeiro,


alvoroçando as ervas dos caminhos.
E os pássaros,
os eternos cantores
dos jardins, das florestas,
ensaiam
complicados motivos...

Corre um ventinho ligeiro,


bem diferente do vento dessa noite,
a hora em que o criado
corre os taipais do café,
olhando de soslaio o freguês retardatário, sonolento...

II
Um fogacho, um lampejo
vale a pena provocá-los?
vale a pena estender os lábios para um beijo
inútil, que não gera?
Vale a pena estar à espera
não se sabe de quê,
sentindo frio, frio? ...

A mesa do café
o poeta escreve versos,
versos desmesuradamente compridos,
desmesuradamente sentidos,
estilísticamente certos ou incertos,
com rima ou sem rima (tanto faz ...)

— Eh, rapaz!
Um cálice de absinto
para imitar Verlaine e os poetas malditos.

(Mas cautelosamente...
Aqui não se toleram mitos!
Há ladrões! Fechem as casas!)

E a monotonia a armar o andaime...

— Vá, asas,
élitros
de insetos, pássaros ou anjos,
esvoaçai,
palpitai,
acordai-me!

Saul Dias

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